7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
1/33
A Boa-F como Modelo
(uma aplicao da Teoria dos Modelos, de Miguel
Reale)
J
udith Martins-Costa
Umacoisa pertencenteaumaardemdeespritos aarganiz14odavida jurdicadasociedade e
outra muito diversa pertencente outra ordem
anlise
ou
sntese
dos
elementos componentes do
direito. Entre crtica e encarnao do
direito
haver
sempre
graruie
distncia.
Assim conw nem
histria
nem
teoria
da arte
foi
nunca
obra dosgrandes artistas o s wmbm s
legisladores
que
f zem sistematizao dos fatos edas
relaes
jurdicas. Qoaquim Nabuco, Um Estadista do
Imprio ).
Sumrio: Introduo. I)
A Teoria dos Modelos: os modelos doutrinrios aos
modelos jurisprudenciais. II) A Casustica da BoaF Objetiva nos Tribunais
Brasileiros
1
Texto originalmente apresentado, com o ttulo
A
Boa f
como
Modelo (notas para a
compreenso
da
boa-f
obrigacional
como
modelo doutrinrio e jurisprudencial
no
Direito Brasileiro ) ao
Convegno
La
f'orma>:'.ionc
de
Sistema
Giuridico
Lninoamericano:
Codici
e Giuristi, Amalfi, abril
de
2001,
tendo
sido atualizada apenas a referncia ao novo Cdigo Civil Brasleuo.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
2/33
Judith Martins-Costa
A boa-f obrigacional,
tambm
dita boa-f objetiva,
chegou
tarde ao Direito Brasileiro.
muito recentemente, a partir de 1990, o direito legislado passou a contempl-la como
no
domnio prprio das relaes de consumo
2
O vigente
Civil Brasileiro, de 1916, no
contm
regra acerca da boa-f obrigacional, diversamente
que
ocorre com
o
novo
Cdigo, ora
em
aguardo da sano presidencial,
no
qual so
3
bem
verdade que o vetusto Cdigo Comercial, de
no
art. 130, boa-f como cnone hermenutica dos contratos
4
,
mas este texto
desempenhou
funes de clusula geral, pouco passando de letra morta
5
Mesmo
em
sua feio objetiva, impositiva de standard
aos que entram em relao obrigacional, vem sendo aplicado pela jurisprudncia
como fonte de especficos deveres de conduta e como limite ao exerccio de direitos,
nem sempre seja usada idntica gramtica, havendo mesmo expressivas diferenas
ao modo e s hipteses de sua incidncia.
Cdigo de Defesa do Consumidor (Lei n 8.078, de 11.9.90) a prev
no
art. 4, inciso IH
como
um dos
de Consumo, visando
harmonizao
dos interesses dos
das
reLaes
de consumo
e
o
art.
51,
inciso
IV,
como critrio
de
aferio
de
abusividadc de
cujo
efeito
a nulidade.
Para
as referncias ao novo Cdigo Civil, vide o texto
O
novo Cdigo Civil Brasileiro: em busca da
ora nesta obra e ainda
MOREIRA ALVES,
Jos Carlos, A Boa-F Objetiva no Sistema
e
Amrica Roma,
vo. 7,1999.
Art. 130, caput e
inciso
l, in verbis: Sendo necessrio interpretar
as
clusuLas do contrato, a interpretao,
das regras sobreditas, ser regulada sobre as seguintes
bases
I. a inteligncia simples e adequada, que for
boa-f, e ao verdadeiro esprito e natureza
do
contrato, dever sempre prevalecer
rigorosa
Acentua, a propsito, Jos
Carlos
lvfORE1RA ALVES: de notar-se, porm, que esse dispositivo, que
se
de clusula geral,
at
poca relativamente recente foi tido como simples princpio
se
baseia na boaf subjetiva .
(in
A
Boa-F Objetiva no Sistema Contratual Brasileiro ,
p. 194).
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
3/33
A
Boa-F como Modelo
349
Pesquisa realizada em
sites
de Tribunais brasileiros
6
indica que no ementrio de
decises do Superior Tribunal de
Justia-
ao qual compete, constitucionalmente, unificar
a jurisprudncia nacionaF - dezoito 18) decises encontram fundamento no prindpio
8
No Supremo Tribunal Federal, o guardio da Constituio Federal, embora sejam inmeras
as
decises fundadas na boa-f possessria e na proteo aos terceiros de boa-f, h um nico
acrdo que revela a funo da boa-f como regra de conduta,
a
sendo o princpio alegado,
no Direito Administrativo,
como
limite
defesa, em juzo,
da
Administrao Pblica
9
No
mbito dos Tribunais de Justia dos Estados o Tribunal
de
Justia do Rio Grande do
Sul,
pioneiro na sua aplicao, que apresenta o maior nmero
de
decises fundadas
na
boa-f
objetiva, havendo mais de trezentas (300) referncias, das quais aproximadamente vinte e
cinco por ccnto(25%) apresentam
uma
feio inovadora, da qual possvel retirar uma
verdadeira construo das funes que, tal qual observa-se no Direito Comparado,
6
Pesquisa realizada nos meses de maro a junho de 2001, pela
Internet,
tendo em
conta
os seguintes
critrios: Tribunais Superiores (STF e STJ) e Tribunais de Justia dos Estados do Rio Grande do Sul 304
acnhlos), Rio Grande do
Norte 9
acrdos) Par
9
acrdos) Bahia
2
acrdos), Gois
6
acrdos),
Paran 1 acr&io), Paraba
1
acrdo), Rondnia(l acrdo), Pernambuco 9 acrdos) c Distrito Federal
(24 acrdos).
Os
demais Tribunais estaduais ou no tm nenhuma referncia em seus ementrios, ou
no tm a jurisprudncia acessvel em suas
home
pages. Foram feitas consultas por
junto aos
Tribunais
de
Justia de So Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Mato Grosso e Esprito Santo,
as
quais
no tiveram resposta, salvo a procedida junto ao Tribunal de Justia de Pernambuco. A Justia estadual de
So Paulo, atravs do Juizados Especiais Cveis, conquanto no
tenha
jurisprudncia disponibilizada pela
Internet, est comeando a utilizar o princpio
como
mandamento de recproca confiana incumbente
s
partes notadamente em tema
de
Direito do Consumidor, como exempliflcativamente, os acrdos
proferidos pelo seu Primeiro Colgio Recursal dos Juizados Especiais Cveis da Capital nos Recursos
nos 7.959 em 14.12.2000); 7.766 j. em 13.11.2000); 7747 em 1. 11.2000 c 7.767(j. em 13.11.2000), em
todos eles sendo Relator o Juiz Laerte MARRONE. Para a realizao dest'l pesquisa os verbetes procurados
foram: boa f objetiva ; boa,
f
e obrigao ;
boa-f contratual
,
boa-f
c contrato e boa-f c
princpio . Poram desconsiderados os acrdos relacionados
s
palavras-chave 'boa-f c contratos'
relativos proteo Ja boa-f de terceiros que
di:>:iam
respeito a situaes subjetivadas da boa-f.
Assinab-se que, segundo os sistemas
de
indexao usuais, as expresses buscadas deveriam constar da
ementa. Para esta pesguisa devo registrar o
meu
agradecimento ao valioso auxlio prestado pelo acadmico
de Direito Alexandre PEREIRA DUTRA, da Faculdade
de
Direito
da
UPRGS, que desenvolve projeto de
iniciao cientfica sob minha orientao, com bolsa de estudos patrocinada pelo
CNPq-BIPIC.]
7
Constituio Federal, art. 105, inciso Jll, ao conferir a
competncia
para julgar, em recurso especial
(Resp), 'as causas decididas, em nica ou
ltima instncia
pelos
Tribunais Regionais
Federais ou pelos
Tribunais dos
Estados,
do
Distrito Federal e Territrios , quando a deciso recorrida:
a)
contrariar tratado ou
lei federal, ou negar-lhes vigncia; b) julgar vlida lei ou ato de governo local contestado em face de lei
federal; c) der lei federal interpretao divergente da que lhe haja atribudo outro tribunal.
8
Nomeadamente: Agr. Reg. no AI n 47. 901 - 3 - SP;;\GA 47901;EDRESP 167691;RESP 256274;RESP
107211;RESP 80036; RESP 32890;RESP 3714/RS;RESP 7187/SP; RESP 85521/PR; RESP 101061/PB;
RESP 157841/SP; RESP 5932/RS; RESP 158728/RJ; RESP 18.4573/SP, RESP 95535/SP;RElVfS n 6183-
MG;.ROMS 6183; ROMS 1694/RS.
q
STF, 2'
T,
RE 158448/MG, Relator Ministro Marco Aurlio de i\IELLO,
j.
em 29.06.1998, sendo a boa-f
invocada articuladamente aos princpios da continuidade da prestao
Jc
servios e
da
realidade.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
4/33
Judith Martins-Costa
notadamente o direito alemo e o italiano, tm sido cometidas ao princpio
10
,
Ora,
os dados desta pesquisa sinalizam
uma modelagem
brasileira" da boa-f
bjetiva, de cunho fortemente jurisprudenciaL
Numa
cultura jurdica na qual ainda forte a tradio legalista, ao apego
lei em seu
formal,
sua mais espessa literalidade, uma tal circunstncia curiosa. Na busca das
azes
que
a expliquem, recorro preliminarmente (Parte I a um especfico recorte terico,
ual seja, o da teoria das fontes e
dos
modelos jurdicos, proposta por Miguel
Reale
.Compreendido
este aporte ter ico- que aqui suporte, e busca de explicao
tentarei visualizar a formao de um modelo jurisprudenial da boa-f objetiva no Direito
rasileiro,
mediante
a indicao das funes que, na concreta prtica da vida jurdica, o
esmo chamado a operar (Parte II).
I
A
TEORIA DOS
MODELOS: DOS MODELOS
DOUTRINRIOS
AOS
ODELOS JURISPRUDENCIAIS.
Ao
debruar-se sobre
o
fenmeno
da normatividade,
percebeu
Miguel
Reale que as
normas
jurdicas,
provindas
das quatro
fontes
s quais
so
econhecidos os atributos da
autoridade
e da prescritividade - a saber, a
fonte
egislativa, a
jurisprudencial,
a
consuetudinria
e a negociai - podem apresentar
se como modelos, vale dizer, como
estruturas norm tiv sque orden m
fatos
segundo
valores,
numaqualifo:afo tipolgimdecomportamentos
turos,aqueseligamdeterminadasconseqnciaS' .
Correspondentes,
no plano jurdico, s estruturas normativas verificadas nas
estruturas sociais,
os
modelos so constantemente
construdos pela experincia
jurdica, clistinguindo-se entre modelos jurdicos - assim os provenientes das quatro
fontes de
produo
jurdica, dotados que so de fora prescritiva - e os modelos
dogmticos, ou hermenuticas, cuja elaborao
doutrinria e cuja fora
indicativa,
argumentativa ou persuasiva.
10
Para este cmputo a autora considerou as invocaes a boa-f no repetitivas e as decises nas quais as
funes da boa-f objetiva so efetivamente desenvolvidas, desconsiderando aquelas em que o princpio
meramente alegado, sem a correspondente motivao e o estabelecimento dos nexos com a concreta
situao ftica e ainda os acrdos fundados em similar situao de fato e idntica argumentao.
V e j a ~ s e
de Miguel REALE, "Fontes c Modelos no
Direito-
para um
novo
paradigma hermenutico",
So Paulo, Saraiva, 1994, e, "l)ara uma teoria dos modelos jurdicos",
in
Estudos de Filosofia c de
Cincia do Direito", So Paulo, Saraiva, 1978.
12
REALE, Miguel, "Para
uma
teoria dos modelos jurdicos",
in
Estudos
de
Filosofia e de Cincia do
Direito", cit., p. 7.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
5/33
A BoaF como Modelo
351
A referncia fora meramente indicativa ou persuasiva da doutrina merece, no Direito
Brasileiro, um cuidado particular. Somos, os luso-brasileiros, tributrios de uma longa tradio
"bartolista"
13
,
e, portanto, a fora da doutrina tem
um peso
especifico, de alta densidade
culturaL que, desde as nossas mais fundas origens, o mos italicus refletido exemplarmente
na obra de Bartolo de Saxoferrato, conformou uma mentalidade. Se razo cabe a Fernand
Braudel
ao
aludir 'longa permanncia" das estruturas na Histria
14
-
comparativamente s
conjunturas e aos eventos, conformadores de ciclos
de
mdia e de curta
durao-
o certo
que
a estrutura das mentalidades, dos "enquadramentos mentais" a que alude BraudeP
5
a que
apresenta a mais longa durao.
o que ocorre com a nossa viso
do
papel da doutrina na
formao do Direito.
No antigo direito lusitano nem o centrabsmo jurdico representado pela precoce
ordenao do Direito sob o signo da autoridade estatal- nossas primeiras Ordenaes do
Reino so de 1447
16
,
t eve
fora para afastar a doutrina
como
verdadeira fonte de direito.
13
Veja,se ALMEIDA COSTA, Mario Jlio, "Romanismo e Bartolismo no Direito Portugus", Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra vol. XXXVI, 1960, p. 16.
14
BRAUDEL, Fernand,
Histria
e Cincias Sociais", traduo
portuguesa
de Rui Nazar, Lisboa,
Editorial Presena,
4'
edio, 1982, notadamente o ensaio "A Longa Durao", p. 7 a 39. Para a apreenso
das categorias braudelianas na Histria do Direito, PARADISI, Bruno, "Questioni Fondamentali per una
Moderna Storia
de
Diritto",
in
Quaderni Fiorentini per
la
Storia de Pensiero Giuridico Moderno, vol.
1,
Firem:e, 1972, em especial pp.
31
e ss., e VARELA, Laura Beck, 'Algumas Contribuies
da
Cincia
Histrica Tarefa do Historiador do Direito ,
in
Revista da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio
Grande do Sul, vo . 18, Porto Alegre, 2000.
-
BRAUDEL, Fernand, "Histria e Cincias Sociais, dt., p. 14.
u
Ordcnaes Afonsinas cuja concluso ocorreu no segundo semestre de 1446 ou
no
primeiro de 1447.
O seu sistema de fontes estabeleceu (Livro l i ttulo IX) a hierarquia entre as eis do reino que, se
insuficientes seri:lm supridas pelas Lr:ys lmperiaies,
e
pelos Santos
Canones
e sucessivamente se
o
caso
de que se trauta
em
partica, nom fosse determinado per Ley do Regno,
ou
estilo,
ou
custume suso dito ou Leyx
lmperiaaes, ou Santos Canones,
entom mandamos que
se guardem as grosas
d Acursio
encorporadas
nas
ditas
Leys. E quando pelas ditas
grosas
o
caso
non for determinado, mandamos que se guarde a opiniom de
Bartholo, n6 embargante que
os outros Doutores
diguam o contrario.
O sistema foi mantido, com
pequenas variantes, nas Ordenaes J\hnue]jnas (redao definitiva em 1521) e nas Ordenaes Filipinas
(1603, que vigoraram no Brasil at 1916).
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
6/33
352
Judith Martins-Costa
Ainda 'lue
os
textos legislativos previssem, formalmente, o carter de fonte subsidiria,
relatam os historiadores do
ius com
mune ibrico ter
por
vezes
cabido
doutrina de Acursio
e Bartolo papel proerninente frente ao prprio direito do rei
17
Isto significa dizer que em nossa profunda mentabdade, paradoxalmente,
18
articulou
se, ao legalismo, a ateno
doutrina
como
fonte de
produo
de
modelos hermenuticas,
mesmo os derivados da experincia estrangeira. Para os efeitos de uma possvel histria das
mentalidades jurdicas, o termo
"bartolismo"
indica, pois, este fenmeno cultural, marca
permanente,
o de
em
nossa forma mentis estar fortemente arraigada a idia de a doutrina
no apenas desenvolver o papel de
formadora
dos cnones de interpretao, mas o de,
concebendo
os modelos hermenuticas destinados a preencher as
lacunas
do sistema"
tornar-se fonte prescririva. Diferentemente
do
que ocorre em outros pases, entre ns os
juzes recorrem,
em
suas decises, a largas citaes da doutrina, nacional ou estrangeira.
Por
esta via, os modelos doutrinrios, largamente aceitos pela jurisprudncia, so convertidos
em
modelos
jurdicos jurisprudenciais, estes sim
marcadamente
prescritivos,
graas
ao
poder constitucionalmente conferido ao juiz 2o, assim dinamizando de maneira exponencial
(ou, por vezes, cristaJizando), as solues oferecidas pela fonte legislativa, em
si mesma
esttica.
Os modelos
jurisprudenciais incluem-se entre os
modelos
jurdicos ou prescritivos.
Estes, diz Reale,
no
so o mesmo que normas, constituindo suas especificaes, geralmente
resultando
de
uma pluralidade de
normas
que, entre si articuladas
numa
certa estrutura,
compem
uma unidade lgica de sentido
2
Se
determinada estrutura serve de base uma
srie
ordenada e
conjugada
de
atos
tendentes a alcanar
certos
objetivos
visados ,
tem-se
um
modelo, que assim se apresenta
como
uma "estrutura paradigmtica" a qual,
no
campo das
cincias sociais,
notadamente
no Direito,
marcada por
um
essencial illnamismo, sendo-lhe
' 'Afirma HESPANHA que em Portugal "apesar de as Ordenaes conferirem ao direito romano u lugar
apenas subsidirio no quadro das fontes
do
Direito (Ordenaes Filipinas, l l, 64} na prtica
ele
era o direito
principal, sendo mesmo aplicado contra o preceito expresso
do
direiro local" (HESPANHA, Antonio Manuel,
"Panorama da Cultura Jurdica Europia Lisboa, Publicaes Europa-America, 1997, p 67, nota 79, por
"direito
romano"
devendo entender-se fundamentalmente a
obra
de
Acursio
e Bartolo).
18
O paradoxo diminuir se considerarmos que a doutrina brasileira vem recoberta, em larga medida, pela
tradio praxista, a qual
pouco
criativa, pois cingida aos comentrios da prtica forense, caracterizando
se, por vezes, por uma vocao de retrospectividade mais do 1ue de prospectividade.
19
REAL \ Miguel, "Fontes
e
Modelos no Direito-
para um novo paradigma hermenutica ,
cit., p. 107.
zn
Idem,
ibidem.
21
REALE,
Mit,>ucl,
"Fontes
c Modelos
do
Direito -para um
novo
paradigma hermenutico ,
cit.,
pp. 29
e
30.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
7/33
A Boa-F
como Modelo
353
inerente
o movimento, a direo no sentido de um
ou
mais fins a serem solidariamente
alcanados ''2
2
Um modelo pode, assim, articular normas de hierarquia diversa, compondo,
numa unidade de sentido, princpios constitucionais, regras nfraconsritucionais e prescries
que resultam da atividade jurisdicionaL Por isto
que,
enquanto
expressivas de modelos, as
normas passam
a ser captadas (...) em sua plenitude s quando o intrprete atende
dinamicidade que
lhes
inerente e
totalidade
dos
fatores que atuam
em
sua aplicao ou
eficcia, ao longo de todo o tempo
de
sua vigncia 2
3
Bem por isto, no so os modelos estruturas estticas ou fixas, presas ao passado:
sendo elaborados continuamente tm, a par da vocao retrospectiva (por decorrerem
das fontes, que so estticas) a vocao prospectiva,
pois
se projetam no presente e
para o futuro, assim agregando a experincia do passado, mas estando abertos para o
que est por vir, nesta perspectiva possibilitando a soluo de novos problemas ou a
adequao das solues tradicionais
s
novas escalas axiolgicas vigentes
24
Ora,
no
Direito
Brasileiro a boa-f objetiva apresentou-se, inicialmente, como
um modelo
hermenutico, ou
doutrinrio,
na
acepo
que
lhe
d Miguel Reale,
podendo
ser atribuda
obra
de Clvis do
Couto
e Silva
25
,
eminente jurista falecido
em
1992,
Professor Titular
da Faculdade de
Direito do
Rio
Grande do
Sul, a sua
'
REALE, Miguel, "Jurisprudncia e Doutrina", in "Questes de Direito", So Paulo, Sugestes Literrias,
1981.
v REALE, Miguel, Fontes
e
Modelos ,cit., p
30
grifos do autor.
2
' Creio que a percepo de Rea c acerca da prospectividade dos modelos plasma a antecipao, em
dcadas, do
pensamento
CJUC,
na Europa, viria a ser desenvolvido
por
adeptos
mais recentes da Teoria
Hermenutica, como Guseppe
ZACCARIA
acerca da positivao
das
normas
como um processo
dinmico
- e no por acaso
estruturado numa
trade - ,
ou
por Friederich MLLER sobre a
normatividade
como processo
estruturado , conseqente
distino
que
procede
entre o texto da
norma e o seu
programa como
"pauta ordenadora" obtida no
processo
de interpretao, o sentido e
o alcance da norma sendo alcanados apenas na
c o n c r e t i ~ a o
(para estas referncias vide ZACCARIA,
Giuseppe, "Sul
concetto
di positivit ne diritto ",in Diritto Positivo e Positivit dei Diritto,
Turim,
Giappichelli, 1991, e L'Arte de 'interpn.:tazione, Pdua, Ccdrtm,1990 e MLLER, Friedrich, "Discours
de l Mthode Juridique", P;uis, PUF, 1996, em especial pp. 18G t ss.)
zs
Notadamente em "A Obrigao
como
Processo", Tese de Ctedra, Porto Alegre, 1964, posteriormente
publicada (So Paulo, Jos Bushatsy Editor, 1976) e em"(_) Princpio
da
Boa-F no Direito Brasileiro c
Portugus", in "Estudos de Direito Civil Brasileiro e Portugus", So Paulo, Revista dos Tribunais, 1986,
p 43-72.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
8/33
54
Judith Martins-Costa
efetiva conformao como prinpio ativo, capaz
de
operar
verdadeira
transformao jurdica
atravs da doutrina e do
Poder
]udicirio
26
.
Conquanto referncia
boa-f contratual j
constasse das obras de iguel Maria de Serpa Lopes
27
, Orlando Gomes
18
e de Alpio
Silveira
29
,
as decises que iniciaram a trajetria de seu
acolhimento como modelo
jurisprudencial fazem expressas referncias
obra de Couto
e Silva e a de autores que divulgou,
como o portugus Mario Jlio de Almeida Costa,
30
os quais deram ao princpio um
desenvolvimento dogmtico ausente das demais
obras
mencionadas, explicitando
os
deveres
de cooperao que,
na
relao obrigacional, decorrem da sua incidncia. Como observa
Couto
e Silva,
os autores que escreveram, posteriormente ao brasileiro, no mencionam
em
geral a importncia do princpio da
boaf
para
uma
moderna concepo da relao
obrigacional, no a definem como
uma
complexidade,
uma
estrutura ou um sistema de
processos
31
E, confirmando o nosso bartolismo , a
b o ~ f
objetiva ingtessa na doutrina
brasileira pelas mos de Emilio Betti,
como
alude
Couto
e Silva ao lembrar o
'magnfico
curso"proferido pelo extraordinrio jurista italiano
na
Faculdade de Direito da Universidade
Federal
do Rio Grande do
Sul, em 1958
32
Com
base
na
percepo
da relao obrigacional
como um
processo que
se
desenvolve no tempo,
em sucessivas fases, polarizado pelo adimplemento,
transps
Couto
e Silva
para
o direito civil brasileiro a
concepo
bettiana da existncia imanente,
nestas relaes, de deveres de colaborao,
ora
secundrios
ou
anexos
obrigao
principal, ora apresentando-se,
por
fora
da
boa-f,
como
deveres
autnomos.
Conjugando
esta concepes aos aportes da
doutrina
e da jurisprudncia alems, que
26
COUTO E SILVA, Clvis, O Princpio da BoaF no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p. 43.
z
7
SERPA LOPES, Miguel Maria. "Curso de Direito Civil", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1' edio, 1957.
28
GOMES, Orlando, "Transformaes Gerais do Direito das Obrigaes", So Paulo, Revista dos Tribunais,
1' edio de 1967.
29
SILVEIRA, A pio, A BoaF no Cdigo Civil", Tomos I e II, So Paulo, Editora Universitria de
Direito, 1973. Este, autor de um amplo estudo gue procura distinguir entre a "boa-f crena" e a 'boa-f
lealdade", mesmo assim atribui,
segunda, o carter de um estado subjetivado, como se observa pelos
grupos de casos que analisa no 2 volume de sua obra.
J
ALMEIDA COSTA, Mario Jlio, Direito das
Obrigaes ,
Almendina, Coimbra, ora na
8
edio
(2000), e cuja primeira edio
de 1968.
3
COUTO
E SILVA, Clvis,
O
Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus", cit.,
p.
58.
12
COUTO
E SILVA, Clvis,
O
Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus", cit., p. 43, nota 1.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
9/33
A
Boa-F como
Modelo
355
deram
um
notvel desenvolvimento
norma
do pargrafo 242
do
BGB, atribuiu Couto e
Silva,
boa-f objetiva, o papel de fonte autnoma
de
direitos e obrigaes, por cuja incidncia
transforma-se a relao obrigacional manifestando-se
no
vnculo dialtico e polmico,
estabelecido entre devedor e credor, elementos cooperativos necessrios ao correto
adimplemento
33
Enfatizou
Couto e Silva que o fato de o Cdigo Civil no contemplar de forma
expressa o princpio constatao que decorreria de uma interpretao meramente
gramatical , consagradora de um absurdoJ
4
-
no
poderia
levar concluso de que o
mesmo no integra o ordenamento.
Quando num
cdigo
no
se
abre
espao
para um princpio
fundamental,
como se
fez
com
o
princpio d boa f, para
que
seja enunciado com
a
extensW que se
pretende
afirmou,
ororre
aindaassim
a
suaaplim{iJporser
o
multado de
nemsid des
ticasessenciais
que
se
impem ainda quando falte
disposio
legislativa expressa ,
reconhecendo, porm, que,
neste
caso,
percepo ou captao desua apliro torna-se
muito
dif:il, por o existir uma lei de
referncia
a
quepossam
os
juzes
relacionar
a
sua
deciso''_
Estas dificuldades foram
e
continuam
a
ser sentidas. No entanto,
progressivamente, a partir da dcada de 80, parte da jurisprudncia passa a
acolher
esta doutrina, concretizando o princpio e formando, em pequenos
passos, a sua dogmtica.
A
jurisdio, acentua Reale, antes de mais nada, um poder
constitucional de explicitar normas jurdicas, e,
entre
elas, modelos jurdicos
36
Este poder, embora
desenvolvido
normalmente na realizao das normas legais
adequadamente
aos casos concretos
37
tambm
se
apresenta,
excepcionalmente,
como poder de
editar
criadoramente regras
de
direito,
em
havendo lacuna no
ordenamento
38
A inexistncia de expressa
previso no
Cdigo Civil ao princpio da
boa
f passou
a exprimir
lacuna,
angustiosamente sentida quando
os tradicionais
princpios
de Direito das
Obrigaes
- o da autonomia privada,
expresso
na
auto-vinculao,
e o da responsabilidade por
culpa
-
comearam
a se
mostrar
mais que nunca insuficientes para uma justa soluo de casos resultantes,
por
exemplo,
33
COUTO E SILVA, Clvis, O Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus , cit.,
p. 47
.
.1 As expresses grifadas esto em COUTO E SILVA, Clvis,
O
Princpio da Boa-F no Direito
Brasileiro e Portugus , cit.,
p
61.
1
COUTO E SILVA, Clvis, O Princpio da Boa-F no Direito Brasileiro e Portugus , cit., p p.
61
e 62.
36
REALE, Miguel, Fontes e Modelos do Direito , dt. ,
p.
69.
37
Idem,
p.
70.
Idem, ibidem.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
10/33
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
11/33
A Boa F
como
Modelo
357
incidindo em relao a ambos os participantes da relao obrigacional
45
O efetivo desenho destas hipteses deve ser recortado da jurisprudncia que vem
empregando o mtodo de raciocnio tpico para modelar "grupos de casos tpicos" de
violao
do
dever de agir segundo a boa-f,
em
construo ainda no-sistemtica, das
hipteses
46
,
porm
indicativa das figuras componentes de
um
possvel cdigo discursivo da
boa-f
em
efetivo uso em alguns Tribunais brasileiros.
A fim de sistematizar estes casos,
proponho
agrup-los
em
trs setores, o primeiro
deles atinente ao que chamarei de "funo de otimizao
do
comportamento contratual" , o
segundo relativo
"funo de reequilbrio" do contrato e o terceiro correspondente
"funo
de limite" no exerccio de direitos subjetivos, recolhendo casos que dizem respeito s relaes
privadas de direito comum, de direito do consumidor e de direito administrativo, campo de
tambm especial relevncia na atuao da boa-f objetiva.
A)
A BOA-F E A FUNO
DE OTIMIZAO
DO
COMPORTAMENTO
CONTRATUAL
A
funo
otimizadora
do
comportamento
contratual
obtida por
dois
modos
diversos:
de um lado,
pela
imposio de deveres de
cooperao
e de
proteo dos recprocos interesses, deveres inst rumentais de conduta, pois visam o
exato processamento
da relao obrigacional, a
satisfao dos interesses
globais
envolvidos, auxiliando na realizao positiva
do
fim contratual e
na
proteo pessoa
e aos
bens da
contrapart'.
De
outro,
pela utilizao
do
princpio
da
boa-f
como
cnone de
interpretao e integrao
do contrato consoante
funo econmico
social
que concretamente
chamado a realizar.
45
Para a explicitao deste tema, ver o meu A o a ~
F
no Direito Privado", cit., em especial pp. 437 e ss.
46
:. natural a formao tpica ou casustica quando se
trata de
dar concreo aos modelos jurdicos
semanticamente
abertos, como o de
boa-f,
ocorrendo a ressistematizao das decises mediante a
formao de grupos de casos tpicos conforme o interesse concretamente lesado e consoante a
identidade ou a similitude da ratio decidendi, em torno destes construindo a jurisprudncia certos
tpicos ou parmetros que possam atuar, pela pesquisa do precedente, como amarras excessiva flutuao
do entendimento jurisprudenciaL Facilitada, assim,
estar
a
pesquisa
do precedente e a elaborao,
progressiva e aberta de tpicos, nos sentido viehweguiano, obtendo-se, pouco a pouco, a ressistematizao
das fattispecies j previstas e permitindo"se a incorporao
de
novas hipteses sem que fosse necessrio
recorrer punctua interveno do legislador. (Para o exame das funes e modos
de
operar as
d ~ u s u l s
gerais, o meu
r\
Boa F no Direito Privado",
cit.,
330 a 377).
4
., Sobre
os
deveres instrumentais vide o meu
A
Boa-F no Direito Privado", cit., p. 440.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
12/33
358
Judith Martins-Costa
O mais imediato dever decorrente
da
boa-f
o dever de lealdade com a contraparte.
J decicu a jurisprudncia
48
ferir a boa-f objetiva o comportamento
de
cliente de banco,
titular
de conta-corrente
que, depois
de
sucessivos saques, a limite coberto ou no, alega a
inexistncia de dbito, Assim
tambm
detectou-se a quebra
do
dever de lealdade de contratante
de
seguro privado de sade que no preenchera,
com
lealdade e honestidade, o questionrio
sobre
doenas pr-existentes, que lhe fora fornecido pela seguradora no perodo antecedente
concluso do negcio jurdico, estando ciente da existncia de molstia
49
A atuao contratual dos profissionais liberais, como a
dos
mdicos e dos advogados,
caracteriza relao fiduciria, na qual os deveres de agir segundo a boa-f no so anexos ,
mas absolutamente nucleares, a fidcia integrando o
contedo do prprio
dever principal.
Por isto,
j
decicu o Judicirio que
o
advogado que recomenda providncia judicial onerosa
ara o cliente e benfica a ele, estipulando-a no contrato de honorrios, age com deslealdade,
violando o princpio
da
boaf contratual ,
o que, na espcie, conduziu
nulidade
do
ajuste
50
A
lealdade marca
tambm as
relaes de Direito Administrativo. Em
paradigmtica deciso, o
Superior Tribunal
de
Justia assentou que o
compromisso pblico assumido pelo Ministro da Fazenda, atravs de Memorando
de Entendimento para suspenso da execuo judicial de dvida bancria de
devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no
muturio
a justa
expectativa de que essa suspenso ocorrer, preenchida a condio .
Da
decorrer
o
direito do particular
de
obter a suspenso fundado no princpio da
boaf
objetiva, que privilegia o respeito
lealdade
5
A violao da lealdade restou evidente na
medida
da
presuno que
o
compromisso
pblico
assumido
pelo
Governo,
atravs
do seu Ministro da Fazenda,
o condutor da poltica
financeira do
pas, e
com
a
assistncia dos
estabelecimentos de
crdito diretamente envolvidos,
tivesse
sido
celebrado para ser efetivamente cumprido.
Por
isto a invocao,
no
aresto,
do
princpio
eral da boa-f que, se vale
no
Direito Privado,
valeainda mais para a administrao pblica
48
1JRGS, Ap.
Ci\
n 598225720- 17' C. Civ., j 06.4.99, Rei. Demtrio Xavier LOPES
NETO
~ T J R G S
Ap.
Cv. n 597019439- 6'
C. Civ., j
12.11.97, Antonio Janyr DALL'AGNOLJUNIOR.
50
1JRGS,
Ap. Civ.194.045.472- 9' C. Civ., j.26.4.94,
Rel.
Des. Antnio
Guilherme
Tanger JARDIM, in
evista Direito do Consumidor, vol. 14, p, 173.
11
REMS n 6183-MG, STJ, 4'T. Rei. Min. Ruy ROSADO
DE
AGUIAR, unnime, j 14.12.1995, p. DJ 8.12.95.
ratava-se de hiptese em Banco do Brasil, que
entidade bancria oficial, vinculada Administrao
blica, havia ajuizado processos de execuo de dvida contra clientes inadimplentes. O Ministro da
Fazenda, autoridade qual, em ltima instncia est a autarquia bancria vinculada, havia firmado Memorando
de Entendimento no curso de tratativas visando solucionar a questo, JUe atingia um grande nmero de
devedores, comprometendo-se a suspender temporariamente a execuo se os devedores se apresentassem
para renegociar o dbito.
Embora
o
compromisso,
o Banco do Brasil prosseguiu,
mesmo
assim, a
xecuo judicial, negando o carter obrigacional do mencionado Memorando de Entendimento .
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
13/33
A
Boa-F
como
Modelo
359
e
para
a
direo
das
empresas cujo
capital
predominantemente pblico,
nas suas relaes
com os c i d d o s ~
sendo
inconcebvel que um Estado democrco, que aspire a realizar a
Justia esteja fundado
no
prindpio
de
que o compromisso pblico assumido
pelos
seus
governantes
no
tem valor, no tem significado, no tem eficcia. Especialmente quando
a Constituio da Repblica consagra o princpio da moralidade administrativa
52
Reforando o dever de lealdade nas relaes de direito d m i n i s t r t i v o ~ mas j agora
o dever de lealdade de servidor para
com
a Administrao Pblica- est o caso em que
mdica, servidora municipal, foi licenciada para tratamento de sade. No perodo da licena,
porm, passou a atender pacientes em clnica particular, o gue motivou a sua punio
(suspenso disciplinar).
Inconformada,
a mdica ajuizou ao indenizatria
contra
a
Administrao, decidindo o Judicirio pela improcedncia da demanda, face ao dever,
descumprido pela mdica, de no atender paciente particular,
ou
trabalhar
em
instituio
hospitalar particular,
no
perodo da licena,
comprometendo
a plena recuperao de sua
sade, objetivo precpuo da licena que lhe havia sido concedida
3
Como
mandamento de cooperao intersubjectiva e de considerao aos interesses
do
parceiro contratual a boa-f provoca
um
aumento dos deveres, isto , a sua otimizao ,
como demonstra
deciso gue imps companhia seguradora o dever de, previamente
suspenso dos efeitos de contrato de seguro, por inadimplemento
do
devedor, notificar o
segurado, especificando os efeitos do
no-atendimento
5
4
Este acrdo aponta,
exemplarmente, concreo que deve presidir a aplicao da boa-f
como
mandamento de
considerao, pois o relativo
peso
dos deveres ata-se, de
modo
incindivel, natureza
do
contrato e s concretas circunstncias
no
qual concludo e desenvolvido.
Dada
a natureza
essencial
do
seguro-sade, a sua intrnseca importncia relativamente a
um
bem fundamental,
como o a sade, extremada massificao destas prestaes e a gravidade das conseqncias,
para o segurado, penalizado
com
a perda da indeni2ao, foi acrescido o dever de informao
que, em outras circunstncias, eventualmente no se manifestaria, assim
demonstrando
o
acrdo o trao essencial da circunstancialidade que preside a incidncia da boa-f objetiva.
No
mesmo sentido de otimizao do contedo contratual pela imposio de deveres
de considerao para com o parceiro contratual est acrdo que examinou hiptese de
inadimplemento contratual, caracterizado pela violao do dever de absteno de condutas
que
pudessem prejudicar o co-contratante, afrontados
que
foram, pelo contratado, os
let.,rtimos interesses daquele.
Na
hiptese, valendo-se da licena para uso de marca comercial,
a empresa contratada, a par de no executar corretamente as obrigaes principais decorrentes
do contrato, passou a veicular, na Internet, propaganda comercial na qual utilizava,
no
mundo
virtual, o
nome
de domnio da empresa contratante, assim prejudicando,
no mundo
real,
52
Conforme os fundamentos da deciso citada.
5
l
TJRGS, Ap.
Civ.
n
596131060,
3
C. Civ.
j.
26.07.97,
Rel.
Des. Moacyr ADIERS.
54
TJRGS, Ap.
Civ. no
598037257, 5'
C.
Civ.
Rel.
Des. Carlos Alberto
BENKE,
j. 19.03.98.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
14/33
360
Judith Martins-Costa
os seus legtimos interesses ccon6micos
55
Por isto que,
tendo
presente o mandamento de considerao, tem a jurisprudncia
atentado aos deveres de proteo
com
a pessoa e o patrimnio da contrapartc. Acrdo
exemplar neste sentido encontra-se na jurisprudncia do STJ, pelo qual,
o estabelecimento
bancrio que
pe
disposio
dos
seus
clientes
uma
rea
para
estacionamento
de 'veculos
assume o dever, derivado
da
boaf objetiva, de proteger
os
bens e a pessoa do usurio
Ao
apreciar a lide, no teve em conta o julgador apenas
os
deveres principais, decorrentes
do contrato bancrio, mas a totalidade dos interesses envolvidos. A proteo dos bens e da
pessoa
do
usurio (consumidor) dos servios bancrios encontra-se finalisticamente vinculada
relao de consumo dos servios bancrios que liga o Banco e
os
usurios dos seus servios.
No
estando orientados diretamente ao cumprimento da prestao principal, estes deveres
esto referidos otimizao da relao obrigacional visualizada complessivamente, isto ,
satisfao dos interesses globais envolvidos.
Do mesmo modo,
em
ao na qual litigava-se acerca de contrato de participao
financeira em sociedade por aes, decidiu o Judicirio caber sociedade o dever de
promover subscrio,
no
prazo de
doze
(12)
meses, do
montante das aes,
correspondenternentc ao valor patrimonial de cada ao na
data
do pagamento
do
preo pelo aderente, a ser obtido no balano
do
perodo anterior integralizao,
tudo
fundado
no
prncpo da boa-f objetiva
57
O mesmo
dever
de proteo conduziu,
.\O TJRGS, Ap. Civ. n 70001059641, 6 C. Civ., Rd. Dcs. Carlos Alberto Alvaro de OLIVEIRA, j em
25.04.2001. Na fundamentao do voto do Relator l-se a seguinte passagem: 0 imperativo
da
bo j
exigia da demandada conduta que respeitasse a parceira, no tentando se apropriar, em lance de esperteza, do
patrimnio desta, iludindo sua confiana e assim tornando invivel a continuao do contrato .
16
STJ,
4 T, ;\gr.
Reg.
no Al n
17.
901 - 3-
SP, j
12/09/04,
Rei.
Min. Ruy Rosado de AGUIARJNIOR.
TJRGS,
Ap.
Civ.
n 70000457093,
lO
C. Cv.,
j
25.5.00,
ReL
Luiz
\ry
VESSINI
DE
LIMA, a exemplo de
outras dezenas de acrdos similares.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
15/33
A Boa-F como Modelo
361
em
contrato de consrcio para a alienao de automveis,
ao
dever, da empresa, de restituir
as parcelas pagas
por
consorciado desistente, e no contemplado
com
o sorteio
do
bem
5
8
Os deveres de proteo, diret.m1ente derivados do dever geral de colaborao imanente s
relaes obrigacionais, podem
se
estender s fases pr e ps contratual. Muito embora no exista,
no
ordenamento brasileiro, regra similar
do
art.
1337
do
Codice
Civile
italiano, os juizes
brasileiros tm iniciado a construo
destajattispecie
com base no princpio da boa-f objetiva e
no
dever de proteo das legitimas expectativas dos contratantes e dos pr-contratantes.
Vejamos, em primeiro lugar, as hipteses de responsabilidade pr-contratual
9
, seja
nos casos de recesso injustificado das tratativas
~ o s
quais mxima a tenso entre o
princpio da boa-f objetiva, de
um
lado, e a autonomia privada, de outro- seja na concreo
de deveres pr-contratuais de proteo, de informao e de sigilo.
Recente acrdo
do
Tribunal de Justia do Rio Grande
do
Sul, confirmando
iterativa
jurisprudncia
, considerou caber o pagamento de perdas e danos
demandante que havia
tratado a locao de
imveL
rompendo o proprietrio do
m v ~
injustificadamente,
as
negociaes
e locando-o a
um
terceiro.
Tendo havido tratativas srias
referentes
locao de
imvel,
rompida pela
requerida
sem justificativa, e
sem
a
observncia
de deveres anexos,
decorrentes do
princfpio d boa f objetiva ,
consignou-se
no
aresto, cabe
indenizao
Em
outra hiptese a boa-f foi utilizada para determinar a responsabilidade ps
contratual62, imputada ao fornecedor de servios, que no sustara a cobrana de ttulo extra
judicial
pago pelo
devedor/consumidor, embora com
retardo.
Entendeu-se
que o
50
TJRGS, Ap.
Civ. na
70000094433- 14' C. Civ., j 25.11.99, Rei. Aymor Roque POTIES DE MELLO.
59
Como aponta MOREIRA ALVI.':S, muito embora no haja no Cdigo Civil regra expressa acerca da
responsabilidade
pr>contratual, a
doutrina
a aceita,
sendo dominante o entendimento de que a
denominada culpa
in
contrahendo
se
funda
na inobservncia
da
boaf.
( A Boa F Objetiva no
Sistema Contratual Brasileiro ,
dt.,
p. 197).
MJ
Para
o
exame de anteriores
acrdos
que
romperam
com a tradio dt:
conectar
a
responsabilidade
pr-contratual
prova do comportamento culposo veja-se o meu A Boa-F no Direito Privado , cit.,
pgs. 472 a 514.
61
TJRGS, Ap. Civ.
no
598209179, 16
C.
Cv. J. em 19.08.98, Rel. Des. Helena Cunha
VIEIRA
1
'
2
Tambm aqui
h
a prvia modelagem pela doutrina. Assim aponta MOREIRA ALVES ( A Boa-F
Objetiva no Sistema Contratual Brasileiro , cit., p. 200,)
segundo
o gual a
doutrina brasileira,
apesar do silncio da legislao, reconhece a existncia de condutas a
ser
observadas no pen'odo ps
contratual (post contractum). Para
os
que no admitem que, em nosso sistema jurdico vigente, se
possa
ter a boaf objetiva, sem textos legislativos expressos, como clusula geral no direito
das obrigaes
para justificar a existncia desses deveres secundrios, socorrem-se
eles
da teoria do abuso
de
direito
e,
portanto, segundo a doutrina alem,
de
teoria vinculada
boa
f
objetiva ,
aludindo
doutrina
de
Darci BESSONE acerca
da interpretao
dos contratos comerciais.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
16/33
Judith Martins-Costa
ecedor deveria ter detenninado ao estabelecimento bancrio incumbido da cobrana do
amento do dbito, para que assim fosse evitado um
ovo
e agora injustificado
do ttulo
63
que os deveres de colaborao
implicam
em agir positivamente
que o fim contratual seja alcanado e em no agravar a situao da contraparte.
Porm,
conforme
o caso, o dever de colaborao
incumbe
ao
prprio devedor. Assim
hiptese
em
que o dbito, expresso
em
duplicata, foi pago com trs dias de atraso na
da
empresa credora. Ocorre que o ttulo de crdito havia sido entregue instituio
com autorizao para cobrana, o que motivou o protesto. O devedor pleiteou,
por
dano moral, o que foi rejeitado.
Entendeu
o Tribunal que o autor,
ciente
do protesto
iminente, nada fez para e v i t ~ l o sequer solicitando empresa
ra que o sustasse, no
agindo
com
a
preocupao daqueles
que
se
sentem
atingidos
em
dignidade no podendo
agora
pretender indenizao por dano m o r a l J ~ J
.O dever
foi
o de colaborar para obstar a prtica do ato,
o
que
poderia
terfeito em
decorrncia
lealdade
que
deve presidir
s
relaes
negociais ,
como expressa
a fundamentao
do
do
Desembargador Relator que, apelando doutrina de Karl Larenz, determinou que
ofensa ao princpio da boa-f, estabelecia uma concorrncia de
modo a diminuir a responsabilidade da instituio bancria pelo indevido protesto
titulo.
A proteo da expectativa legitimamente criada pela contraparte de exponencial
tambm
no
Direito Administrativo, pois a conduta da Administrao Pblica,
princpio constitucional da moralidade pblica
65
vem ainda revestida
presuno
da
legalidade
dos
atos administrativos.
Por
esta
razo,
entendimento
mantido acerca da interpretao da lei s pode
ser
subitamente alterado se
er a proteo das expectativas daqueles que confiaram na prtica por longos anos mantida.
se decidiu, neste sentido, em sede de Ao Civil Pblica, rejeitar a pretendida anulao de
ia de professoras, especialistas em educao, na medida em que as requeridas
pelo cargo de especialista aps longos anos de exerccio
em sala
de
aula, poca em
e vigorava o entendimento administrativo
no
sentido
de
o benefcio da
aposentao
TJRGS, 1\p. Civ. n 70001037597- 9'
C. Cv.,
j 14.6.00,
Rel.
Paulo de Tarso Vieira SANSEVERINO, em
l: ( .. .
Descumprimento
do dever de diligncia pela
fornecedora
apelam-e, decorrente da
boa
objetiva, no
perodo
ps-contratual, em face
da no comprovao das
medidas necessrias para orecolhimento
ttulo
posto em cobrana bancria .
64TJRGS, Ap. Cv. n 589078542, sa c Civ. j 13.02.90, Rel. Des. Ruy Rosado de
\
GUIAR
JNIOR,
in
Constituio Federal, art. 37, caput.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
17/33
A
Boa-F como Modelo
363
abranger quem exercia dito
cargo , fundando-se a deciso
nos
princpios da boa-f objetiva
e da segurana jurdica
66
A proteo da justa expectativa conduz
adoo
de
medidas positivas, razo pela
qual acrdo do S1J entendeu que,
((nas
circunstncias
do negcio,
o
credor
tinha odever,
decorrente
da
boaj objetiva,
de
adotar medidas oportunas para,
protegendo
o
seu
crdito,
impedir a
alienao dos
apartamentos a
terceiros
adquirentes
de
boaj'
67
Na
espcie, v-se
a conjugao entre, de
um
lado, o dever de agir segundo a boa-f objetiva, imposto
incorporadora-
esta deveria agir para impedir a alienao dos imveis, no apenas propondo
a ao de execuo, mas averbando-a no Registro de Imveis e informando a empresa
financiadora- e, de outro, a boa-f subjetiva,
ou
boa-f crena, dos terceiros adquirentes. Fica
a evidente a distino que h entre agir segundo a boa-f e agir de boa-f.
Importante
grupo
de deveres positivos diz
com
a prestao de informaes, de
aconselhamento, de aviso, assim
compondo
os deveres de informao, em sentido amplo e
de veracidade. Atuando,
como
todos os deveres que
decorrem
do princpio da boa-f, em
relao a ambos os participes do vnculo contratual, o dever de informao imposto,
por
exemplo, aos segurados que, no contrato de seguro sade,
no podem
omitir circunstncia
relevante. Neste sentido,
j
decidiu o Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, fundado no
princpio da boa-f objetiva, faltar direito a
segurado
que omite circunstncia relevante,
capaz
de aumentar o risco, quanto o
mais
quando demonstrado o liame de
causalidade
entre
aquela
e o fato que
se
pretende
acobertado
68
As companhias seguradoras tm,
por
sua vez, o dever de prestar informaes detalhadas acerca do contedo do contrato, no
momento
da concluso
da
avena
69
,
cabendo-lhes
informar
a parte sobretudo sobre as
clusulas de excluso do beneffcid
0
Do
mesmo modo o princpio da boa-f foi considerado
a fonte do dever de sociedade annima de telefonia
informar
contraparte o real valor da
venda de aes
71
66
Comarca de Porto Alegre, 2' Vara da Fazenda Pblica, Ac. Civ. Pub.
n
01195487226, Rel. Juiz Clademir
MISSAGIA,
j
07.08.98.
67 STJ, RESp. n 32890/SP, 4' T j 12/12/94, Rei. Min. Ruy Rosado de AGUIAR JNIOR,
in
RSTJ 73/
227.
{> i 1JRGS, Ap. Cv. n 59719439, 6
C.
Civ., j 12.11.97, Rel. Des. Antnio Janyr DALL'AGNOLL JNIOR.
1
'
9
1JRGS, Em. Dcc. no 196722656- 6' C. Civ., j 17.4.97, Rel. Roque Miguel FANK.
7
nTJRGS, Em. lnf.
n
598007607- 3 Grupo de
C. Civ., j
03.4.98,
Rei.
Antonio Janyr DALL'AGNOL
JUNIOR.
71
TJRGS,
Ap. Civ.
n 59907596 - 6'
C.
Civ., j 05.4.00,
ReL
Joo Pedro FREIRE.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
18/33
364
Judith Martins-Costa
Por vezes a boa-f mostra-se a via adequada para a recepo de doutrinas que se
formam no Direito Comparado, o que mais uma vez confirma o nosso bartolismo .
Assim ocorreu com a Teoria da Violao Positiva do Contrato (Positive Vertrageverletzung}
cuja origem,
nos
direitos da famlia romano-germnica radica-se nas idias do alemo H.
Staub,
em
1902, constituindo tambm conceito versado
no
direito
do
common law
sob a
denominao de
anticipated
breach
o contract.
Afirma Couto c Silva que esta recepo haveria de contribuir decisivamente para
um nova concepo
da
relao obrigaciona/
12
O incumprimcnto antecipado ocorre
quando o devedor, em contrato cujo adimplemento sujeito a prazo mais ou menos longo,
pratica, no transcorrer desse prazo, atos que, por fora da natureza da prestao ou da lei,
tornam impossvel o futuro cumprimento. Alguns doutrinadores, notadamente os discpulos
de Couto e Silva
73
, passaram a examinar a aplicabilidade desta concepo ao direito brasileiro
utilizando, para
t l
fim, regras legisladas acerca da impossibilidade e da mora, interpretadas
segundo o princpio da boa-f, para entender que
alm
da
impossibilidade, o incumprimento
antecipado
pode resultarda conduta contrria
do devedor,
por ao(..)
ou
omisso(..)
ou
a
declarao
do
devedor
expressa no sentido
de
que
no
ir cumprir a
prestao w
4
,
podendo
tambm resultar do chamado comportamento concludente .
De
modelo doutrinrio logo migrou o Inadimplemento Antecipado
para
a
modelagem jurisdicional, entendendo-se caracterizado, por exemplo, o dever do
construtor
de construir,
em
tempo hbil, a prometida obra industrial em terreno que havia sido adquirido
por
preo subsidiado, o qual, descumprido, deu ensejo ao
provimento
da demanda
resolutria
75
A funo otimizadora do contedo contratual tambm opera por via da interpretao
e integrao de lacunas do contrato. Por evidente, a invocao da boa-f deve ser congruente aos
72
COUTO E SILVA, Clvis, () Princpio
da
B o : d ~ no Direito Brasileiro c Portugus , citado, p. 47.
73
Assim FRADERA, Vera Maria ,
A
Quebra Positiva do Contrato , Revista Ajuris,
v
44, Porto Alegre,
1988, p. 144-152, AGUIAR JR, Ruy Rosado, Extino dos
Contratos por
Incumprmcnto do
Devedor
(Resoluo) , Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 126 ss FERREIRA
DA
S l l ~ V A J o r g e Cesa, ''A Boa-F e a
Violao Positiva do Contrato , Porto Alegre, 1999, no prelo.
-,AGUIAR
JR., Ruy Rosado, Extino dos Contratos por Incumprimento do Devedor , cit., p. 127.
70
TJRGS,
Ap. Civ.
n 596251181
l ' C. Civ.,
j
18.3.98, Rei. Armnio Jos
ABREU
LIMA DA ROSA.
Em
sentido similar, TJRGS, Ap.
Civ.
n
59671530-
s
C.
Civ., j 23.5.96, Rd. Paulo Augusto
MONTE
LOPES.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
19/33
A
BoaF como Modelo
365
fatos considerados e
s
demais normas do sistema, tendo-se em conta, notadamente, o
programa contratual considerado concretamente, pois, se assim no ocorrer, corre-se o risco,
no descurvel, de a boa-f servir de anteparo ao
partipris
do julgador.
Deciso em que tal no ocorreu, caracterizando, a
meu
juzo, o emprego adequado
do
princpio, exemplificado
por
acrdo do Tribunal de Justia
do
Rio Grande
do
SuF
6
em
matria de contra to de seguro automobilstico que previa a responsabilidade da seguradora,
em caso de infortnio, para danos pessoais . Recusando-se a empresa a pagar indenizao
por danos extrapatrimoniais, por entender que a expresso
'danos
pessoais indicava to s
os danos corporais , assentou o julgador o primeiro elemento contextual, qual seja, a
incindibilidade da
indenizao da
dor causada pelo
dano corporal
ou pessoa. da
do dano
moral
ou psicolgico,
forte
na
bioestrutura de
ser
humano, corporal e psicologicamente
indissolvel.
A diviso existente
corpo
epsiqu ,por evidente, tem o im
apenas
pedaggico,
para poder melhor estudar a
pessoa
humana e
no
como pretende a
seguradora".
Em seguida, recorreu o magistrado ao princpio da boa-f objetiva, estatuindo que,
na dvida quanto ao significado de clusula predisposta por uma das partes, "a interpretao
deve
ser
no sentido menos favorvel a quem a redigiu ,
assim reenviando ao princpio da
interpretatio contra preferentem,
ou ainda a regra
in dubio contra stipulatorem,
que,
assinalou,
especialmente importante
hoje
em dia, devido
difuso dos contratos
padronizados ede
adeso".
No ir e vir' entre o texto e o contexto, no esqueceu o julgador da funo econmica
do contrato. Afirmando constituir este
nada mais
que o
revestimento juddico
de
uma
operao
econmica"
entendeu de
"sopesar,
na
anlise
de
contrato, a
satisfao
da
necessidade,
a
obteno
do
bem que levou
as partes
a contratarem, e a funo econmica que o
pacto
exerce
na
vida
de relao". Realizada a ponderao entre todos os elementos, de fato e de
direito, enfim decidiu:
E a escolha
dever ser
feita
de
modo a
assegurar prevalea o interesse
que se apresenta
mais vantajoso
em termos de custo social': o qual, no contexto do programa
contratual considerado, apontava diviso dos prejuzos.
Tambm
considerando a prpria
consecuo
da finalidade do contrato , o que
djzcr, a sua objetiva causa, h deciso em matria de contrato de seguro-sade cuja clusula de
vigncia
temporria
foi tida como abusiva, por impeditiva
do
alcance daquela concreta
finalidade
77
A interpretao do contrato,
com
o consegente afastamento da clusula abusiva,
ocorreu complessivamente, fazendo o relator apelo doutrina de Cludia Lima Marques
78
que examinou a boa-f no mbito das relaes de consumo.
"'GTJRGS,
EI n 1%032114,4 Grupo de C. Cveis,
Re .
Des. Roberto I:.xpedito da CUNH;\ MADRID,
j em
17.
3.
97.
'TJRGS, Ap. Civ. n 596230888,
5"
C. Cv., ReL
Deo.
Luiz Felipe BRASIL SANTOS, j
em
5.6.97.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
20/33
366
Judith Martins,Costa
Para alm destas hipteses - aqui lembradas a titulo exemplificativo - outras se
verificam para promover o concreto reequilbrio das prestaes contratuais ameaado seja
pela
inexistncia de sinalagma gentico, seja pela
quebra
do sinalagma funcional, seja ainda,
notadamente no mbito das relaes de consumo, pela insero de clusulas abusivas.
B)
A BOA-F E O EQUILBRIO CONTRATUAL
O relativo equilbrio entre prestao
e
contraprestao que deve presidir os contratos
bilaterais e sinalagmticos quebrado
ou
pela leso
ou
pela excessiva onerosidade.
Ambas
hipteses
hoje em
dia tm especfica previso legal no
mbito
das relaes jurdicas de
conswno
e no Cdigo Civil projetado. Porm, no
campo
do direito comum
por
vezes a
boa-f
chamada
para ensejar a reviso das prestaes
79
lesionrias
ou
excessivamente
onerosas
80
,
muito
embora nem
sempre
os
juzes realizem o
correto
discrime entre ambas.
O instituto da leso, conquanto previsto nas
Ordenaes Filipinas (Livro IV, Titulo
XIII) do Reino portugus, constituindo, pois, figura antiqussima no direito luso-brasileiro,
inclusive regulado
por
Teixeira de Freitas na Consol idao das Leis Civis (art. 359), estava
ausente de nossa legislao desde 1916
81
,
tendo sido reincorporado no domnio das relaes
de consumo
pelo Cdigo de Defesa do
Consumidor,
de 1990S
2
Manteve-se a a nossa
tradio de considerar a leso
(laesio
enorme, e enormissima defeito objetivo, diferentemente
dos sistemas de raiz francesa. Tambm o Projeto de Cdigo Civil a prev, no art. 157.
Segundo Moreira Alves,
no
concernente
leso o
Projeto
se afastou
tambm do
sistema alemo e do italiano - e, portanto, do adotado pelo Cdigo Civil portugus de
78
MARQUES, Cludia Lima, Contratos no Cdigo
de
Defesa do Consumidor , So Paulo, Revista dos
Tribunais,
3
edio, 1999.
~ T J R G S Ap.
Ch n 196105167, 6 C. Cv.
j
em 8.8.96, Rei. Des. Armnio Jos ABREU LIMA
DA
ROSA,
e assim ementada:
"Contrato
de
financiamento.
Excessiva
Onerosidade.
Embora
no se aplique,
diretamente,
aos contratos bancrios, o CDC pode
ser objeto
de utilizao
analgica
quando manifesta a
excessividade
de
interesses
remuneratrios
do capital. Caso
em que,
de resto, caberia recorrer
a princpios
gerais de
Direito e
evitar Locupletamento indevido de
uma
das
partes.
Mantena da TR,
juros
moratrios de
1%
ao
ms
e multa.
Apelo provido
em partr '.
80
No tocante reviso por quebra
Ja
base negociai objetiva o leading case foi a Ap. Civ. n 5880591113,
T J R ~ 3
C. Cv.,
j
6.12.88,
Rel. Des. Ruy
Rosado DE
AGUIARJR.
Bl Na dcada de 50 a leso foi recebida no Direito penal atravs da
figura
da usura, prevista na
Lei
n1521,
de
26/12/51, art.4 .
82
Cdigo
de
Defesa do Consumidor, Lei n8.078,
de
11
de setembro
de
1990, art.6, inciso
V,
primeira
parte.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
21/33
A
Boa-F como Modelo
367
967 no
se preocupando em punir a atitude maliciosa
do
favorecido, mas em tutelar o
lesado. Assim sendo, a leso ocorre
quando uma
pessoa,
sob premente necessidade, ou por
inexperincia, se obriga a
prestao
manifestamente desproporcional ao valor da
prestao
oposta ,
admitindo a
lei
a suplementao da contraprestao,
ou
a reduo
do
proveito, para
afastar
a
conseqncia
anulatria
83
.
A leso
introduzida
pelo
Projeto
um
defeito
que
se instala
no momento
da concluso
do
negcio, impedindo a formao
do
sinalagma gentico, razo pela qual, no
meu
entender, pressupe contrato bilateral e
comutativo,
m e n s u r a n d o ~ s e
o desequilbrio tendo-se
em
conta o contrato
como
uma
totalidade, isto , no devem ser consideradas apenas
as
prestaes principais.
Para alm da leso, o Cdigo de Defesa
do Consumidor
e o projetado Cdigo Civil
tambm permitem
ao juiz revisar o contrato quando fatos supervenientes
sua concluso
tornarem excessivamente onerosa a prestao, embora o faam
por
modos distintos, exigindo
distintos pressupostos.
O Cdigo
do
Conswnidor no exige que a desproporo tenha por causa acontecimentos
extraordinrios
ou
imprevisveis, razo pela qual, conquanto a referncia, na lei,
excessiva
onerosidad
4
,
mais proximamente se trata da adoo da Teoria da Base Objetiva
do
Negcio.
Nesta imediata a correlao entre a reviso
do
contrato e o princpio da boa-f, o que, de resto,
vem
do
Direito alemo, como relata a t t e n h a u e ~ ao comentar a pioneira sentena de
28
de
novembro de 1923
do
Tribunal Supremo
86
Igualmente Clvis do Couto e Silva estabelecera
83
Assim pronunciou-se
MOREIRA
ALVES ao dar parecer sobre a emenda supressva do Senador
Gabriel Hermes:
A
leso ocorre quando h
a
usura real. No h, na leso, ao contrrio
do
que ocorre com
o estado
de
perigo,
que
vicie a
simples oferta.
Ademais,
na leso no
preciso
que
a outra
parte
saiba
da
necessidade ou da inexperincia:
a
leso
objetiva. j no
estado
de perigo
preciso que
a
parte beneficiada
saiba
que
a obrigao foi
assumida
pela
parte contrria para
que
esta
se
salve
de
grave dano {levando-se
em
conta,
pois, elemento subjetivo }.In
O
Projeto de Cdigo Civil no Senado , Tomo Il, Braslia, Senado Federal,
1998, p. 015.
CDC( Lei n 8.078/90, art. 6, inciso V primeira parte.
8
;;
HATTENHAUl::R, Hans, Conceptos Fundamentaks dd Derecho Civil , trad. espanhola, Ed. Ariel,
Barcelona, 1987, p. 90.
8
RGZ, 107, 78, 87 e ss, apud HATIENHAUER, op., e p., acima referidas. Por esta deciso precisou-se que
no
era somente o devedor, mas ambos os partcipes da relao contratual gue deveriam
suportar,
conjuntamente, os prejuzos da inflao, fundando-se o decidido justamente na clusula geral da boa-f
objetiva inscrita no pargrafo 242 do Cdigo Civil. Estabelecido que a adstrio ao pactuado
(pacta
sunt
servanda)
devia amoldar-se
b o a ~ f
e aos costumes do
trfego
juridico,
reformulou-se,
no direito
alemiio, a
teoria
da
base
do negcio
e o
antigo princpio
da
equivalncia,
com
o
gue, afirma
HATTENHAUER,
a
teoria das relaes obrigacionais abriu-se
para
novos caminhos .
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
22/33
368
Judith
Martins-Costa
esta correlao
87
, acolhida pela jurisprudncia brasileira
88
. J o Projeto de Cdigo Civil,
no
art. 478 prev a resoluo por excessiva onerosidade nos moldes como este instituto
previsto em sua matriz italiana, podendo, na forma do art. 480, caber a reviso para evitar a
excessiva onerosidade. Se, contudo, a reviso conduzir a que o contrato perca o seu sentido
original como regramento objetivo de interesses dotado de determinada funo c o n m i c o ~
social, a sim caber o remdili) extremo da resoluo.
No vigorando ainda o novo Cdigo, a jurisprudncia faz apelo
boa-f
objetiva. O
Tribunal de Justia do Rio
Grande
do
Sul
decidiu revisar
contrato com
fundamento no
princpio da boa-f, entendendo cabvel a ao revisional de contrato de locao, por excesso
de onerosidade, uma vez que indexao do valor locatcio fora pactuada pela variao do
dlar americano, que sofrera sbita valorizao em face do
real.
Neste caso, embora inaplicvel
o Cdigo de Defesa do Consumidor, pois no configurada a relao de consumo, caberia,
diante
das
peculiaridades
da situao
econmica vigente
aps
a
edio
do
Plano
Real,
em
que
os
ndices inflacionrios tem
sido
insignificantes(. .
)
a anlise
de
cada
caso
a fim
de
se
verificar a possibilidade ou no de reviso
dos
contratos pretendidos revisar . Na espcie,
considerando a indexao dos encargos contratados pela variao do dlar americano e a
elevao sbita deste, pareceu ao Judicirio
perfeitamente possvel a
reviso do
contrato
pelas partes, com base na boaf objetiva
89
.
o mesmo princpio,
por
igual, que est no substrato das regras do Cdigo de
Defesa
do
Consumidor
que preceituam
a nulidade
de
clusulas abusivas,
que
desequilibrem o contrato e que sejam inquas, atentatrias
boa-f e
eguidade
90
Entre outros inmeros
casos
que
poderiam
ser aqui
lembrados est
a deciso
que
cominou
de nulidade,
por
abusividade, j que atentatria boa-f objetiva, clusula
de
contrato
de seguro que estabelece, como parmetro
indenizao, o preo de
mercado
do bem,
determinando
devesse o mesmo ter em
conta
o valor indicado na
aplice de seguro
91
.
Por fim, o
modelo
jurisprudencial da boa-f
no
Direito Brasileiro tem sido
ainda
composto por
hipteses em que a boa-f
opera
negativamente, impedindo
ou
sancionando condutas contraditrias e
vedando
o exerccio
de
direitos subjetivos
ou
de
ireitos potestativos.
COUTO
E SILVA, Clvis, Teoria da Base do Negcio , So Paulo, RT v 655, 1990.
Exemplificatwamente, A
c.
'IJRGS, Ap.
Civ.
na 588059113, 5'
C.
Civ. Rei. Des. Ruy Rosado de AGUIAR
j em 6.12.88.
T J R G S
Ap.
Civ.
n 70000078626, 15'
C.
C i \ ~ Rd. Des. Ricardo RAUPP RUSCHEL, j em 22.3.2000.
CDC, art. 51, pargrafo
4.
1
TJRGS,
Ap.
Civ.
n 599443694
1' C.
de Frias
Civ. j
21.10.99,
Rel.
Paulo
de
Tarso Vieira SANSEVERINO,
a exemplo de outros acrdos.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
23/33
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
24/33
370
Judith
Martins-Costa
pretenso de quem reclama algo em aberta contradio com o que havia anteriormente
aceitado, corno explica o tambm argentino Moisset de Espans
97
Este breve delineamento conceitual explica a razo pelo qual o venire tem tido
progressiva aceitao nos Tribunais.
Em
matria de contrato de seguro,
j
decidiu o Superior
Tribunal de Justia que a
b o ~
f
veda o
comportamento contraditrio
inclusive na fase
processual,
por
forma a incidir na fixao do dies aquo para o
clculo
da prescrio extintiva,
pois se a recusa da seguradora a aceitar os dados de que
dispunha em
seu departamento
mclico como suficientes para caracterizar a incapacidade coberta pelo seguro, e a no-aceitao
do
laudo apresentado pelo segurado ao propor a ao
conduziu
realizao de
perida
em
juzo, no poderia ensejar a invocao daquelas datas dos laudos no-aceitos para a fluncia
do
prazo prescricional, estatuindo a deciso:
a
boa
f objetiva que tambm
est
presente
no
rocesso, no
permite que uma partealegue
contra
a outra um fato que ela
no
aceita epara
o qual
exige
prova judicializada l i l .
Tambm
pela invocao ao
venire
a Administrao Pblica viu limitada a pretenso
de exigir a devoluo de vencimentos pagos a servidor durante o
perodo
de concesso de
licena remunerada, a qual, constatou-se posteriormente, havia sido equivocadamente
concedida
99
, em outra hiptese sendo a boa-f foi o limite que impediu a reviso de contrato
que j fora alvo de transao, em anterior oportundade
w.
Pela mesma via da boa-f objetiva tm a jurisprudncia brasileira acolhido tambm o
conceito de Adimplemento Substancial, oriundo do direito do common law pelo qual
limita-se
ou
se impede o exerccio do poder formativo (potestativo) de resoluo contratual
nos casos em
que
a
prestao contratual, embora no
totalmente
cumprida,
foi
substancialmente adimplida .
O adimplemento substancial significa, segundo o magistrio de Clvis do Couto e
Silva, o cumprimento prximo do resultado final, que exclui o direito de resoluo, facultando
apenas o pedido de adimplemento e de perdas e danosw
1
Fazendo expressa remisso a esta
7
MOISSET
DE
ESPANS,
Luh,
''La Teoria
de
los
Propios
Actos
y
la
Doctrina y
la Jurisprudencia
acionales ,
apud
BORDA, op. cit., p 26.
98 STJ, REsp
n
18.4573/SP, ST.J, 4' T. Rei. Min. Ruy Rosado de AGUIAR .JNIOR, DJ. 15.03.99. p. 241.
ambm no STJ, e fundado na mxima do
venire
o RESP 95535/SP, DJ 1 4.10.96, p. 39015.
wTJRGS, Ap.
Civ. n 597200237
3> C. Civ.,
j.04.6.98, Rel. Percano
CASTILHO$
BERTOLUCI.
100
TJRGS,
Ap.
Cv. n 598474237 20 C. Civ., j.15.2.00, Rel.Jos Aquino FLORES
DE
CAMARGO.
101
COUTO
E
SILV1\,
Clvis,
O Princpio
da
Boa-F no
Dirtito
Brasileiro
e
Portugus ,
cit.,
p. 56
e
57.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
25/33
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
26/33
372
Judith M a r t i n s ~ o s t a
utilizado, outra figura, a surrectio aponta ao nascimento de um direito como efeito, no
tempo, da confiana legitimamente despertada na contraparte por determinada ao ou
comportamento. Assim ocorreu ao examinar-se lide decorrente de contrato de locao
107
que
previa a resilio unilateral,
mediante
prvio aviso
de
sessenta (60) dias contraparte, por
carta
protocolada que expressasse o poder extintivo da denncia contratual, contemplando,
outrossim, a possibilidade de renovao do contrato, desde que,
por
meio de carta
protocolada, a parte interessada assim expressasse vontade com antecedncia mnima de
sessenta
(60)
dias.
Por
um perodo superior a doze
(12)
anos,
as
partes vinham prorrogando
a avena, sempre mediante o recurso
formalidade do envio de cartas.
Em
certa ocasio,
contudo, em resposta ao pedido de prorrogao, feita pelo locatrio, respondeu a locadora
que no pretendia renov-lo. O debate centrou-se na argumentao,
do
lado locatrio, do
"direito
autornaticidade" da prorrogao, de outro,
por
parte da locadora, da legitimidade
de sua pretenso a resilir a avena.
deciso, embora considerando caber razo
locadora,
no
sentido da inocorrncia
de uma automaticidade da prorrogao contratual, uma vez terem as partes sempre
observado o requisito da forma contratualmente prevista, entendeu, porm, obstado o
poder
formativo extintivo de resilio (denncia contratual), apontando, consequentemente,
ao nascimento
do
direito prorrogao pelo fato de, no perodo imediatamente anterior ao
dies ad quem
do prazo
contratual, ter a locadora imposto, ao locatrio, a realizao de
despesas com reformas no prdio, levando-o a acredar que no romperia, inopinadamente,
uma tradio de
doze
(12) anos no sentido da continuidade da relao contratual. Nos
fundamentos do
acrdo est o princpio da boa-f objetiva, como proteo confiana
traida.
Estes exemplos so suficientes, no meu entender, para
demonstrar
como vem a
jurisprudncia brasileira construindo a normatividade do princpio da boa-f objetiva como
norma rei tora da proteo da confiana, da colaborao c da considerao com os interesses
alheios que presidem a relao obrigacional. Neste modelo em plena construo necessrio,
no entanto, atentar para trs pontos importantes.
O primeiro est em que o princpio da
o a ~ f
objetiva a via para a concretizao, no
domnio das relaes obrigacionais, notadamente as contratuais, dos deveres que defluem
da diretriz constitucional da solidariedade sodaP
08
A
doutrina
e jurisprudncia italianas
tm, neste aspecto, uma lio a ensinar, na medida em reconduzem os deveres de agir
1
mTJRGS, IM n 197280175, 1'
C.
Cv, j 9.8.98,
Rei.
Des. Irineu MARIANI.
1
r;
8
Escrevi sobre o tema in M.ercado e solidariedade social entre cosmos e taxis a boa-f nas relaes de
consumo , ensaio integrante de A Reconstruo do Direito Privado- reflexos dos princpios, diretrizes
e
garantias constitucionais
no
Direito Privado', no prelo.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
27/33
A
Boa-F como
Modelo
373
segundo a
b o ~ f no perodo
contratual e p r ~ c o n t r t u l
diretriz constitucional da
solidariedade sodal
109
,
reconhecendo que esta, por sua hierarquia constitucional,
qualifica
o complexo das atividades juridicamente relevantes dos sujeitos, compreendidas as pr
negociais 1w,
constituindo a boa-f
um aspecto do princpio geral (que) exprime a
necessidade
de um
esprito
de colaborao recproco
entre
os
contraentes eem
condies
de
paridade, em Juno da realizao
da
pessoa hum n e
de seu
pleno e igual
desenvolvimento
Com efeito, constituindo "norma-princpio"
112
,
mais propriamente um modelo, a
boa-f objetiva em sua concreta atuao opera articuladamente
com
outros princpios e com
outras regras. No substrato desta tcnica combinatria est a considerao das transformaes
que sofre a
ordem
econmica em razo da chamada "globalizao" e que utiliza as normas
vagas, em combinao
com
normas imperativas, juntamente
com
outros procedimentos,
tais
como
novas formas de articulao negociai, para minimizar os riscos das fissuras
econmico-sociais, tendendo a assegurar, como assinala
Jos
Eduardo Faria,
um equilbrio
substantivo entre
os partcipes das relaes econmico-sociais e criando, na medida do
possvel,
as
condies para
a consecuo de
padres
bsicos
de
solidariedade ecooperao
113
O segundo trao a assinalar diz com a responsabilidade da doutrina ao apontar os
modelos hermenuticas que auxiliaro o juiz, e mesmo ao legislador, na elaborao dos
modelos jurdicos. Vivemos
em um
tempo que tem pressa, mas a atividade doutrinria no
pode prescindir da reflexo, do tempo de maturao das idias e das novas concepes,
equilibrando-se na tenso
entre
o apontar de novos caminhos, constitutivo da sua misso
antecipante de novas solues, e a necessidade de ponderao, a cada dia mais dificultosa e
IO J Neste sentido PIGNATARO, Giseh, "Buona fede oggettiva e rapporto precontrattuale: gli ordinamenti
italiano e franccse, Salemo, l _ ~ , d i z i o n i Scicmifiche Italiane,
1999,
p
47, e MONATERI, Pier Giuseppe,
La
Rcsponsabilit
Contrattualc
e
Prccontrattualc, Turim,
UTET, 1998,
p
377 e ss, com indicao
da
jurisprudncia.,
1
w
PIGNATARO, Gisela, "Buona Fede oggettiva c rapporto precontrattuale, cit,
p
48, traduzi.
111
PlGNAT1\RO, Gisela,
Buona
fede oggettiva e rapporto precontrattuale, cit, p 48, traduzi.
112
Utilho
aqui as lies
de
ALEXY, Robert, "Teoria
de
Los Derechos Fundamenta es", Madri Ed.
Centro de Estudios Constitucionales, 1993, em especial pp. 81 a 93.
113
L\RIA,
Jos Eduardo,
O Direito
na Economia Globalizada", Tese apresentada ao
concurso
para
Professor Titular de
Departamento de
Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de So Paulo,
1999,
p
304.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
28/33
374
Judith
Martins-Costa
necessria porque, como disse Hannah
Arendt
114
,
a irreflexo,
''a imprudncia
temerria ou
a irremedivel confuso ou a
repetio
complacente de 'verdades que se tornaram triviais
e vazias
parece
ser
uma
das
principais
caractersticas do nosso
tempo .
O terceiro trao, por fim, diz com a misso da jurisprudncia. Se o Direi to no
um
'dado que o jurista recebe,
uma tarefa que
o
concita a
u
ingente esforo e a uma
profunda responsabilidadel
5
,
devemos considerar que o princpio da boa-f objetiva,
justamente
por
configurar
norma
vaga, semanticamente aberta, carreia, para o juiz,
um extraordinrio acrscimo de sua responsabilidade.
No
pode
nem
recair no crasso
decisionismo,
nem no
voluntarismo,
tanto
primrio
quanto
perigoso aos valores
da
Democracia.
Se
bem
verdade que o princpio enseja uma tarefa de reconstruo dogmtica do
Direito obrigacional, tambm verdadeiro que esta no absolutamente
uma
tarefa arbitrria.
A invocao
da
boa-f
contratual est
contida nos limites da realidade do contrato,
sua
tipicidade, estrutura e funcionalidade, com aplicao dos princpios admitidos pelo
sistema
116
Toda e qualquer reconstruo dogmtica est,
em
primeiro lugar, atada aos
valores e diretivas do ordenamento, os quais exigem do juiz no apenas ato de vontade, mas,
fundamentalmente, ato de conhecimento e de responsabilidade, razo pela qual a exigncia
constitucional da motivao da sentena deve ser acrescida pela mais completa explicitao
dos elementos de fato e de direito que ensejaram, na hiptese examinanda, a invocao da
boa-f. Em segundo lugar depende do donnio tcnico do magistrado acerca dos mecanismos
-metodolgicos e dogmticos- que permitem a soluo justa
nos
quadros do ordenamento.
Bem sopesadas estas condicionantes, creio que,
com
passos s vezes hesitantes,
nem
sempre adequados, mas com a coragem para enfrentar os desafios cotidianamente colocados
pela tenso entre o Direito e a realidade, a jurisprudncia brasileira comea a construir o seu
prprio modelo da boa-f objetiva.
ARENDT, Hannah, "A Condio Humana , 5' edio, Rlo de Janeiro, Forense Universitria, 1991, p 13.
11
;;
A
expresso de
CASTANHEIRA NEVES, O
Papel do Jurista no
: losso Tempo , om
inDigesta, voL
1, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 32.
AGUIAR JR,
Ruy
Rosado de, A Boa-F nas Relaes de
Consumo ,
Revista Direito do Consumidor
vo .
14,
So Paulo, 1995 p. 25.
7/24/2019 A Boa-F Como Modelo
29/33
Boa F
como Modelo
375
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
AGUIAR JR, Ruy Rosado, ''Extino dos Contratos por Incumprimento do Devedor
(Resoluo) , Rio de Janeiro,
Ai de,
1991.
---. A o a ~ F nas Relaes de Consumo , Revista Direito do Consumidor vol.
14,
So
Paulo, 1995.
ALMEIDA COSTA, Mario Jlio, Romanismo e Bartolismo
no
Direito Pottugus , Boletim
da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVI, 1960
- - - . D i r e i to
das Obrigaes , Almendina, Coimbra,
ga
edio, 2000.
ALEXY, Robert, Teoria de Los Derechos Fundamentales Madri, Centro de Estudios
Constitucionales,1993.
ARENDT, Hannah,
A
Condio Humana'', Rio de Janeiro, Forense Universitria, sa edio,
1991.
BECKER,
Anelise, A doutrina do adimplemento substancial no Direito Brasileiro e em
perspectiva comparativista , Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Rio
Grande
do Sul, vol.
9,
Porto Alegre, 1993.
BORDA, Alejandro, La Teoria de los Actos Proprios , Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 3
edio , 2000.
BRAUDEL, Fernand, Histria e Cincias Sociais , traduo portuguesa de Rui Nazar,
Lisboa, Editorial Presena, 4a edio, 1982.
Top Related