1
DINÂMICA DE ATUAÇÃO EM REDE ENTRE ASSOCIAÇÕES DE MORADORES DO MUNICÍPIO DE SANTO AMARO DA IMPERATRIZ
Autores:Neide Lara Broering (ESAG/UDESC) – [email protected] Moraes Pinheiro, Dr. (ESAG/UDESC) – [email protected]
RESUMOO artigo tem por objetivo analisar a dinâmica de atuação em rede entre associações de moradores do município de Santo Amaro da Imperatriz, e conferir seus impactos em relação ao desenvolvimento comunitário e ao fortalecimento da cidadania. A pesquisa destaca sua importância no fomento ao desenvolvimento sustentável do município. A metodologia é a qualitativa, com a abordagem do estudo de caso (YIN, 2005; WORTHEN et al., 2004). Por meio de entrevistas com os gestores das associações e da participação em reuniões, buscou-se compreender a dinâmica da rede com os demais atores locais, assim como o papel dos atores envolvidos no processo de consolidação da rede de associações. É possível perceber, na análise, traços marcantes do conceito de cidadania democrática (DENHARDT, 2008), no sentido de empoderamento e engajamento das pessoas, quando se veem como responsáveis por suas atitudes no contexto em que vivem e pela realidade social de sua comunidade. A pesquisa comprova a importância de se estimular a força associativa nas localidades, ampliando-se nas comunidades à medida que se compreendem o conceito de capital social e suas dimensões (PUTNAM, 2006), já que esses ambientes apresentam relações cotidianas e próximas mais favoráveis à criação de laços de reciprocidade, cooperação e solidariedade, características essenciais ao desenvolvimento de qualquer região. Este trabalho descreve a busca dos gestores em ampliar espaços que propiciem o diálogo entre os diferentes atores da sociedade, e demonstra a importância do fortalecimento desses movimentos na construção de uma sociedade mais justa, humana e inclusiva, utilizando de forma coerente os instrumentos legais e os espaços institucionais já existentes nas localidades.Palavras-chave: Redes, Democracia, Cidadania, Participação
RESUMENEl artículo tiene como objetivo analizar la dinámica de la creación de redes entre las asociaciones de vecinos en la ciudad de Santo Amaro da Imperatriz, y comprobar su impacto en el desarrollo comunitario, como también el fortalecimiento de la ciudadanía. Esta investigación hará hincapié en su importancia para el desarrollo sostenible del municipio. La metodología es cualitativa, con el enfoque de estudio de caso (Yin, 2005; WORTHEN et al., 2004). Para el estudio, se realizaron entrevistas con los directores de las asociaciones, además, participamos en reuniones con la gente del lugar. Así, tratamos de comprender la dinámica de trabajo en red con otros actores locales, así como el papel de los actores que participan en la consolidación de la red entre el grupo de asociaciones. Es posible observar en el análisis, las características sobresalientes del concepto de ciudadanía democrática (Denhardt, 2008), en el sentido de empoderamiento y la participación de la gente, cuando ven por sí mismos como responsables de sus acciones en el contexto en el que viven y la realidad social de su comunidad. La investigación demuestra la importancia de estimular la fuerza asociativa en las localidades, la ampliación de las comunidades, ya que entienden el concepto de capital social y sus dimensiones (Putnam, 2006), ya que estos ambientes tienen a diario y estrechas relaciones más favorables a la creación de lazos de reciprocidad, cooperación y la solidaridad,
2
esencial para el desarrollo de cualquier región. En este trabajo se describe la búsqueda de directivos de grandes espacios que faciliten el diálogo entre los diferentes actores de la sociedad, y demuestra la importancia de fortalecer estos movimientos en la construcción de una sociedad más justa, humana e incluyente, utilizando constantemente los instrumentos jurídicos y los espacios institucionales existentes en los lugares.Palabras clave: Redes, Democracia, Ciudadanía, Participación
ABSTRACT
The article aims to analyze the dynamics of networking between associations in the city of Santo Amaro da Imperatriz, and to check their impact to community development, also the strengthening of citizenship. This research will highlight their importance to the sustainable development of the municipality. The methodology is qualitative, with case study approach (Yin, 2005; WORTHEN et al., 2004). For the study, interviews were conducted with managers of the associations as well as the participation in meetings with the locals. So, it was attempted to understand the dynamics of networking with other local actors even as the role of the actors involved in network consolidation between the group of associations. It is possible to observe in the analysis, outstanding features of the concept of democratic citizenship (Denhardt, 2008), in the sense of empowerment and engagement of people, when they see by themselves as responsible for their actions in the context in which they live and the social reality of their community. The research demonstrates the importance of stimulating associative strength in localities, expanding the communities as they understand the concept of social capital and its dimensions (Putnam, 2006), as these environments have daily and close relations more favorable to creation of reciprocal ties, cooperation and solidarity, essential to the development of any region. This paper describes the search of managers in larger spaces that facilitate the dialogue between the different actors in society, and demonstrates the importance of strengthening these movements in order to build a fairer, more humane and inclusive society, by using consistently the legal instruments and institutional spaces existing in the locations.Keywords: Networks, Democracy, Citizenship, Participation.
3
1 INTRODUÇÃO
A análise do conceito de cidadania permite uma derivação para os mais diversos e
complexos campos de debates sociais. Geralmente, porém, é possível observar que o
significado desse termo ainda é muito limitado, sendo entendido como algo comum à
sociedade em geral, mas com reflexões restritas, intangíveis ao cidadão comum. As
discussões mais profundas são normalmente delegadas ao campo da academia ou a
pequenos grupos. Na maioria das vezes, a cidadania relaciona-se apenas à garantia do
direito do cidadão, concebido de forma passiva pela sociedade como pressuposto para o
equilíbrio social.
No momento em que se adotava o regime de governo democrático no Brasil,
estabelecia-se um cenário favorável ao processo de ocupação dos espaços públicos pelos
cidadãos, uma das prerrogativas mais básicas para uma sociedade democrática. Um dos
efeitos desse processo foi o direito de associação, inserido no Título II da Constituição
Federal de 1988, tornando-se um direito e garantia fundamental do ser humano,
assegurando-lhe a liberdade de reunião e associação. Com os distintos movimentos
populares urbanos brasileiros, como aponta Sousa (2002), nos anos 80 foram surgindo as
organizações locais; dentre elas, mais especificamente, as associações de moradores.
Essas associações surgiram de uma relação espontânea de participação e organização dos
moradores, visando à melhoria da qualidade de vida dos bairros e, por consequência, do
município como um todo (SANTOS, 2000).
Neste novo contexto, as organizações locais apresentam um lado do conceito de
cidadania diferente daquele atrelado ao direito. O cidadão, de sujeito passivo em seu
contexto social, passa a ator, com o dever como base de suas ações. A cidadania passa a
ser entendida como ação, no sentido de que empodera e compromete as pessoas,
tornando-as responsáveis por suas atitudes no contexto em que vivem e pela realidade
social da sua comunidade. Dessa maneira, assim como os direitos, o cidadão é visto como
detentor de deveres por viver em sociedade. Um dos mais importantes, para a
compreensão deste trabalho, é o de possuir uma “visão” comunitária, considerada
elemento de conexão entre tantos outros que vão formar o contexto em que se encontra
inserido.
Ao longo deste artigo, será possível compreender a importância do trabalho
realizado pelas três associações de moradores de bairro no município de Santo Amaro da
4
Imperatriz nesse processo de transformar a população em ator da sociedade, superando a
visão de mero agente passivo do contexto político de seu bairro e município.
Como será apresentado adiante, o recorte temporal do contexto político propiciou
a observação de um momento crucial no qual as associações lutam pela adoção de um
novo plano diretor do município. O plano diretor, juntamente com o Estatuto das Cidades,
é um instrumento de planejamento obrigatório para municípios com mais de 20 mil
habitantes e pode ser considerado como uma “caixa de ferramentas” em uma política
urbana local, permitindo considerar as características de cada local e que o crescimento
dos municípios seja realizado de forma sustentável.
Será possível, dessa forma, observar, ao longo do artigo, a relevância da atuação
das três associações por meio de uma “rede” de parceria e comunicação que reflete uma
intensa atuação, tanto no caso do novo plano diretor, como no de outras problemáticas da
localidade. Esta consolidação demonstra a união das organizações na busca do bem
comum, não apenas de cada bairro, isoladamente, mas do município de Santo Amaro da
Imperatriz como um todo. Os objetivos deste trabalho e a sua construção metodológica
são detalhados no próximo item.
2 CAMINHOS METODOLÓGICOS
Este trabalho foi construído em torno da seguinte questão central: “Como a
dinâmica de atuação em rede entre Associações de Moradores dos Bairros de Santo
Amaro da Imperatriz pode contribuir para o fortalecimento da cidadania e o
desenvolvimento comunitário do município?”.
Delinearam-se, a partir disso, o objetivo geral e os objetivos específicos para se
iniciar o estudo da temática. Definiu-se como objetivo geral da pesquisa analisar o
processo de reconhecimento do trabalho desenvolvido pela Rede de Associações de
Moradores de Santo Amaro da Imperatriz como um caminho para o fomento do
desenvolvimento sustentável do município. Com base nisso, foram formulados como
objetivos específicos: (a) analisar o contexto atual da formulação do novo plano diretor a
partir da dinâmica da rede de associações do município, seus participantes e suas relações
com outros atores-redes no município e região; (b) identificar de que maneira as
comunidades envolvidas participam em conjunto com as associações do processo de
formulação do novo plano diretor do município.
5
Existem diversas maneiras de se realizar uma pesquisa. Para diferenciá-las, é
necessário identificar primeiramente a questão a ser aprofundada. Dessa maneira, quando
o objeto de análise for respondido com questões do tipo “como” e “por que”, Yin (2005,
p. 25) recomenda a metodologia de Estudo de Caso, pois “[…] isso se deve ao fato de que
tais questões lidam com ligações operacionais que necessitam ser traçadas ao longo do
tempo, em vez de serem encaradas como meras repetições ou incidências”.
No caso do presente trabalho, a utilização desse método se deve ao fato de se
tratar do estudo de um fenômeno contemporâneo, no qual, a partir da compreensão em
profundidade de cada um dos casos observados tanto isoladamente quanto em conjunto,
foi analisada a relação entre as três associações de moradores de bairro de Santo Amaro
da Imperatriz e seus papéis como espaços para o fomento do exercício da cidadania no
município. Para Worthen et al. (2004), os estudos de caso, na maioria das vezes, usam
métodos de coleta de dados, mas também dependem de técnicas que utilizam métodos
qualitativos, como observações e entrevistas.
No caso, foram captadas informações a partir da técnica de observação e seus
devidos registros, com a participação em reuniões de três associações e na passeata em
favor da formulação do novo plano diretor, nas reuniões de bairro para esse fim,
complementarmente à aplicação de entrevistas com o corpo diretivo das associações
envolvidas, em reunião com dinâmica e metodologias apropriadas.
Na visão de Goldenberg (2004, p. 27), os meios mais adequados para o
pesquisador captar a realidade seriam os que lhe permitem compreender o mundo através
“dos olhos dos pesquisados”. A autora também fala da importância de se utilizar as
pesquisas qualitativas como forma de estudar as questões que às vezes se tornam difíceis
de quantificar, como, por exemplo, os sentimentos, as motivações, as crenças e as atitudes
dos indivíduos. Worthen et al. (2004) também advogam que a utilização de entrevistas se
torna necessária quando é preciso obter informações em profundidade. As entrevistas
pessoais trazem uma grande quantidade de informações; as exploratórias, quando
utilizadas com grande número de interessados no início do processo, ajudam a clarear
suas perspectivas e preocupações.
Para a pesquisa foram realizadas entrevistas individuais e semiestruturadas com os
gestores de três associações do município. Os entrevistados poderão ser identificados ao
longo da análise pelas abreviações: E1, E2 e E3. Esses números foram escolhidos de
forma aleatória para cada gestor entrevistado, a fim de não o caracterizar ou identificar de
6
maneira direta, em respeito ao pedido dos entrevistados, para que ficassem mais à
vontade quanto às suas respostas.
As entrevistas foram analisadas de forma descritiva e interpretativa, a partir de
questões originadas dos objetivos específicos e do referencial teórico de base,
considerando, na visão de cada entrevistado, elementos que caracterizassem conceitos
centrais, como: (a) capital social; (b) cidadania; (c) rede; (d) participação.
O processo de coleta é complementar à análise documental dos dados do
município e das associações que ajudam a contextualizar e caracterizar formalmente o
local e o objeto de estudo; relaciona-se diretamente com os achados no processo de
observação anteriormente descrito. Ainda, durante todo o processo de pesquisa, para
fortalecer os laços com as associações e legitimar a participação dos pesquisadores, foi
realizado um acompanhamento sistemático de reuniões e apresentações dos objetivos do
trabalho à comunidade.
Com base nas informações captadas, pôde-se realizar uma análise que permitiu
compreender o cenário atual em que se encontram inseridas as três associações e a visão
de cada um dos entrevistados. Dessa forma, foram identificados elementos essenciais ao
trabalho, posteriormente relacionados como instrumentos de participação social e
exercício pleno da cidadania no processo de formulação do novo plano diretor do
município.
3 CONTEXTUALIZAÇÃO GEOGRÁFICA E HISTÓRICA
Santo Amaro da Imperatriz, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), apresenta uma população estimada, em 2014, de 21.572 habitantes e
uma área de 352,4km². Sua posição geográfica pode ser considerada privilegiada por estar
conectada ao planalto e ao litoral catarinense pela Rodovia BR 282. Seu território é
cortado pelo Rio Cubatão. Apresenta muitas opções de lazer, com águas termais, atrativos
naturais e algumas festividades religiosas e culturais, das quais os santo-amarenses muito
se orgulham em preservar.
De acordo com o IBGE, o município apresentava, em 2010, um IDH-M (Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal) de 0,781. A população residente em 2010 era de
19.823 pessoas, das quais 9.984 homens e 9.839 mulheres. Em 2010, entre sua população
residente foram identificadas 17.588 pessoas alfabetizadas e 5.445 pessoas que, na época,
frequentavam creche ou escola.
7
Além das suas belas paisagens naturais, resultantes de seus verdes vales e de uma
fauna e flora exóticas, Santo Amaro da Imperatriz tem sua economia atualmente baseada
em dois eixos: agricultura e turismo.
Quanto ao número de bairros no município, não foram encontrados dados oficiais.
Nesta pesquisa, será considerado o número de 21 bairros, segundo estimativa das três
associações. Dentre esses, alguns apresentam associações de moradores de bairro. No
início, cinco delas se destacavam por sua luta coletiva pelos interesses de seus bairros e
do município como um todo. Porém, segundo os entrevistados, ao longo do tempo os
interesses em comum entre essas associações acabaram se distanciando e apenas três
delas continuam o trabalho em conjunto, de forma ativa e unida, na busca por uma cidade
mais cívica para todos. Fato, aliás, que explica o motivo de as três associações terem sido
escolhidas como objeto da presente pesquisa, considerando a intenção de observar a
dinâmica de cooperação existente entre instituições.
A seguir, de forma breve, apresenta-se cada uma das associações, com a
identificação de algumas de suas características gerais, para, no item seguinte, proceder-
se à análise:
i. Bairro Fabrício: A AMFA (Associação de Moradores do Bairro Fabrício) foi
fundada em 6 de agosto de 2009. Possui atualmente trinta associados, os quais
contribuem financeiramente de forma descontínua.
ii. Bairro São Francisco: A AMAR (Associação dos Moradores do Bairro São
Francisco e Sítio de Dentro) foi fundada em 18 de agosto de 2007. Atualmente
ela conta apenas com o seu corpo diretivo, por não possuir associados ainda.
iii. Bairro Sul do Rio: A Unisuldorio (Associação dos Moradores do Bairro Sul do
Rio) foi fundada no dia 23 de setembro de 2009. Apresenta atualmente trinta
associados que contribuem mensalmente.
4 AS ASSOCIAÇÕES COMO ESPAÇOS DE ESTÍMULO À PARTICIPAÇÃO CÍVICA
4.1 A Cidadania
No dicionário Aurélio (2010, p. 164), cidadania pode ser definida como “a
qualidade ou estado de um cidadão”, por sua vez conceituado como “o indivíduo no gozo
8
dos direitos civis ou políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com
este”.
A conceituação do dicionário é bastante semelhante ao entendimento de E1,
considerando-se que sua compreensão de cidadania advém da capacidade das pessoas de
se apropriarem do seu espaço, da moradia, da vida, no sentido de se apropriar da cidade.
Conforme destaca o entrevistado, “a minha compreensão de cidadania é essa: as pessoas
conseguirem se sentir protagonistas do caminho da cidade, do bairro, intervir
cotidianamente nesse debate da cidade, do município, do bairro”.
Esta visão se assemelha ao conceito histórico de cidadania: “Ser cidadão é ter
direito à vida, à propriedade, à igualdade perante a lei: e, em resumo, ter direitos civis. É
também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos”
(PINSKY, 2003, p. 9). Para E1, o exercício do voto é apenas parte de um processo, sendo
necessário, mais do que participar, apropriar-se do próprio direito de participar; esse seria
o objetivo da cidadania.
Nessa mesma linha de pensamento, Denhardt (2012) apresenta o conceito de
“cidadania democrática” como um espaço em que o indivíduo divide o autogoverno de
forma mais ativa. O autor defende que o papel do cidadão seria olhar além do
autointeresse, enxergando, assim, um interesse público mais amplo, criando uma
perspectiva mais abrangente e duradoura.
Essa acepção de "cidadania democrática" entrega uma responsabilidade ao
cidadão, segundo a qual não o encara como um ser passivo na sociedade, mas como
sujeito com o dever e o poder de mudar a sua realidade. Neste sentido, a cidadania passa a
dar "voz" aos indivíduos, tornando-os mais responsáveis e críticos com a realidade que os
rodeia. Analisando o contexto local, nota-se que as associações de moradores estudadas
neste artigo criam um importante ambiente para a promoção dessa cidadania democrática
e participativa, que possibilita aos mais diferentes habitantes de uma comunidade
questionar a realidade presente e criar um novo "olhar". A partir disso, o cidadão não
espera que as mudanças ocorram e passa a perceber que, com a sua ação, elas se tornam
possíveis de maneira mais fácil.
Outro termo interessante de ser analisado no contexto apresentado é o de
comunidade cívica, apresentado por Putnam (2006, p. 101), segundo o qual “[...] a
cidadania se caracteriza primeiramente pela participação nos negócios públicos.” O autor
9
também evidencia que a virtude cívica residiria em buscar o bem público acima de
qualquer outro interesse, individual e particular.
A cidadania, em uma comunidade cívica, implica direitos e deveres de forma
igualitária para todos. Ainda segundo o mesmo autor (2006, p. 102), uma comunidade
cívica: “[…] se mantém unida por relações horizontais de reciprocidade e cooperação, e
não por relações verticais de autoridade e dependência”. Um ponto importante que ele
também relata (2006, p. 102), é que: “[…] tal comunidade será tanto mais cívica quanto
mais a política se aproximar do ideal de igualdade política entre cidadãos que seguem as
regras de reciprocidade e participam do governo”.
No processo de entrevista, ficou claro que os questionados reconhecem a
existência de outros grupos relevantes em cada bairro e que sabem da importância de
possuir o apoio e a parceira deles, a despeito de sua institucionalização. Esta posição se
destaca quando E1 enfatiza que, de alguma maneira, esses grupos oferecem espaços
importantes de discussão e alinhamento dos interesses do bairro e que as associações
devem agregar esses atores, processo que, infelizmente, ainda não ocorre. Porém,
segundo E1, já se discute entre as associações sobre a unificação dos conjuntos dos atores
da comunidade em objetivos que sejam comuns a todos.
A propósito das relações com os atores de uma comunidade, segundo Putnam
(2006, p. 129) “[...] a desarmonia social e o conflito político são inimigos da boa
governança. O consenso é tido como pré-requisito da democracia estável.” O autor
também nota que em sociedades com muitas divisões, maior será a dificuldade de
formular um governo estável que possua consentimento dos governados. Assim, quando
existirem muitas divergências a respeito de determinada questão importante para aquela
comunidade, menor será a possibilidade de se encontrar uma solução coerente. Essa ideia
pode ser demonstrada, na prática, pelo contexto estudado, em que os diferentes atores de
um município estão discutindo atualmente a formulação de um plano diretor, que deve ser
de interesse de todo o município, observando-se, assim, a importância e o desafio de
encontrar um sentido comum e equilibrado entre diferentes interesses e prioridades.
Putnam (2006, p. 113) escreve que as “[…] regiões onde há muitas associações
cívicas, muitos leitores de jornais, muitos leitores politizados e menos clientelismo
parecem contar com governos mais eficientes”. Dessa forma, observa-se a importância do
comportamento dos atores e do papel da associação, que, além de estarem presentes nas
comunidades, estabelecem mecanismos que auxiliam na formulação de relações estáveis
10
entre os diversos atores apresentados pelas três associações estudadas. Espera-se que,
juntos, consigam melhorar o fluxo de informações entre eles existente, encontrando assim
melhores formas de relacionamento para alcançar objetivos comuns da melhor forma
possível.
As associações comunitárias possuem uma representativa integração horizontal
em uma comunidade. É importante desenvolver sistemas horizontais, como na sociedade,
para manter a confiança e a cooperação social, pois fluxos horizontais tornam-se mais
confiáveis que os verticais, considerando os laços de reciprocidade entre as partes. Assim,
é maior a probabilidade de as pessoas agirem em benefício mútuo (PUTNAM, 2006).
Segundo E2, existe a percepção de que a população está notando a
“movimentação” realizada pelo trabalho da “rede” de associações, uma vez que as
pessoas passam a comentar cada vez mais sobre elas. E1, por sua vez, relembra a passeata
realizada pelas associações dia 12 de junho de 2014, com o objetivo de conscientizar a
população de que o plano diretor do município se apresentava ultrapassado e a induzi-la a
exigir providências da prefeitura sobre o caso. Segundo ele, a fraca participação nesse
episódio se explica pelo fato de a passeata ter sido, em suas palavras, “[...] um ato político
mais efetivo do ponto de vista dos interesses da comunidade”, demonstrando ainda a
inexistência de uma cultura de participação ativa de parte da população. De acordo com o
entrevistado, isso poderia ser atribuído à leitura que as pessoas fazem do que é
apresentado na televisão sobre as passeatas: “[…] ou a leitura que não vai resolver, ela
não tem a leitura em compreensão da passeata como um instrumento de pressão pelos
direitos dela, ainda”. O entrevistado defende que essa nova compreensão precisa ser
construída.
Para fechar a ideia construída nesta parte da entrevista, E1 conclui que, no seu
entendimento, o nível de participação vai estar estritamente ligado ao nível de consciência
da comunidade, e abre uma questão: “Como é que a gente avança nesse processo da
construção da consciência social da comunidade?”.
Por indagações como esta surgiram estudos de campo sobre as relações que
formam a sociedade, entre eles o de Putnam (2006), nos quais observou a relação entre
uma sociedade civil fortalecida e o nível de seu desenvolvimento. Em sua análise, o
pesquisador (2006, p. 126) verificou: “[...] que a coisa pública é mais bem administrada
nas regiões mais cívicas. Portanto, não admira que os cidadãos das regiões cívicas
11
geralmente estejam mais satisfeitos com a vida do que os cidadãos das regiões menos
cívicas”.
Outra relação por ele observada (2006, p. 112) foi que “[...] quanto mais cívica a
região, mais eficaz o seu governo”, constatando que as regiões que apresentam
adiantamento econômico possuem governos regionais mais eficientes pelo fato de nelas
existir maior participação cívica.
Dessa maneira, o que o estudo apresentou foi que uma sociedade que dispõe de
uma representativa cultura cívica e cidadã se torna mais propensa à prosperidade
econômica e a uma boa governança. O fenômeno observado por Putnam, mais tarde
chamado de capital social, para Franco:
[...] se refere aos laços fracos (não hierárquicos, não funcionais, não parentais ou consanguíneos) entre pessoas, em conexões voluntárias, baseadas em reciprocidade, cooperação, solidariedade. E esse fenômeno se manifesta na sociedade civil em maior intensidade do que aquela se verifica nas outras esferas da realidade social ou nos outros tipos de agenciamento, como o Estado e o mercado (2005, p. 5).
Constata-se nos estudos de Putnam (2006) que a cooperação voluntária se torna
mais fácil de existir em uma comunidade com um representativo estoque de capital social,
possível de ocorrer de forma mais espontânea em ambientes que possuem regras de
reciprocidade e instrumentos que vão incentivar a participação cívica.
Compreende-se também que o conceito de capital social é político, por se tratar de
um tipo de poder. Porém, um poder distinto do sentido de mandar em alguém, mas no de
levar a fazer, a empreender e a inovar. Pela análise de Franco (2005), esse poder seria
uma forma de empoderamento, uma forma de a sociedade “criar” forças em seus
indivíduos. Essa ideia de empoderamento do cidadão compreende a maneira como irá ser
exercida a cidadania democrática citada anteriormente.
O fato de esse fenômeno, chamado capital social, se apresentar de forma mais
significativa na sociedade civil mostra a importância de se incentivar o seu
fortalecimento, principalmente nas comunidades. Isso porque é nelas que se vivem as
relações sociais cotidianas. O envolvimento local, pela proximidade entre os cidadãos,
torna-se mais favorável à criação de laços de reciprocidade, cooperação e solidariedade,
que, juntos, formam o capital social. Este ponto evidencia a importância do trabalho
desenvolvido pelas associações de moradores do caso estudado.
12
O autor também destaca que para ocorrer esse empoderamento é necessária a
existência de uma rede social. A correlação se torna mais nítida trazendo o conceito de
redes sociais de Elias:Para ter uma visão mais detalhada desse tipo de inter-relação, podemos pensar no objeto de que deriva o conceito de rede: a rede de tecido. Nessa rede, muitos fios isolados ligam-se uns aos outros. No entanto, nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser compreendidas em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles, isoladamente considerados; a rede só é compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca (1994, p. 35).
Os entrevistados foram questionados sobre a utilização desse termo para
conceituar o fenômeno que está ocorrendo na atualidade com a união de três associações
de moradores de Santo Amaro da Imperatriz. A relação apresentada foi compreendida,
identificada, aceita por eles, e complementada por E1, que destacou que essa ideia se
torna mais interessante ainda quando se pensa no conjunto dos atores, constituindo para o
entrevistado um desafio a percepção dos atores envolvidos no processo.
Assim como uma rede de tecido, as comunidades só existem pela união desses
diversos e diferentes "fios" que as compõem. Por este motivo, enfatiza-se a necessidade
de que as três associações consigam de alguma forma organizar os “fios” (indivíduos) de
cada bairro, de forma que se encontrem bem alinhados e organizados para que o “tecido”
(comunidade) possua o melhor aspecto, desempenhando o seu papel de reciprocidade da
melhor forma possível.
4.2 A Comunidade
Outro conceito importante de se destacar nesse contexto é o de comunidade. Para
Denhardt (2012, p. 256), “a comunidade baseia-se em solicitude, confiança, trabalho em
equipe, e se conecta por um sistema forte e efetivo de colaboração, comunicação e
resolução de conflitos”. De acordo com o autor, as comunidades verídicas seriam as que
congregam as pessoas ao redor de entendimentos e compromissos mútuos, assim
satisfazendo os interesses comuns mais elementares. A essência da comunidade também é
definida por Gardner da seguinte forma:Os membros de uma boa comunidade se tratam com humanidade, respeitam as diferenças individuais e valorizam a integridade de cada pessoa. A boa comunidade fomenta uma atmosfera de cooperação e conectividade. Os membros reconhecem que precisam uns dos outros.
13
Há um sentimento de pertencimento e identidade, um espírito de responsabilidade mútua (1991, p. 18 apud DENHARDT 2012, p. 256).
Observa-se, analisando a perspectiva fornecida por E1, que a noção sobre a
importância de se envolver a comunidade no processo de cidadania juntamente com as
três associações já está sendo construída. O entrevistado deixou claro que não enxerga o
papel da associação como um mecanismo de resolução de problemas da população local;
ao contrário, deixa clara a sua visão de que ela tem o papel de fomentar e envolver a
população do bairro na resolução de seus problemas. No caso, pode-se dizer que a
associação de moradores teria o papel de incentivar a comunidade a exercer
verdadeiramente a função social anteriormente definida pelos autores citados.
Segundo E1, a associação de moradores é um instrumento de cidadania,
principalmente por seu papel de realizar um esforço contínuo de desconstrução da
“cultura paternalista”, presente no município estudado, e incentivar a construção de uma
cultura ativa. Isto, segundo ele, “para as pessoas se sentirem: eu vou lá porque a cidade é
minha, o bairro é meu”. Percebe-se, no relato, a importância desse mecanismo social para
o fomento da coprodução nas comunidades envolvidas, no sentido de passar a
responsabilidade pelo que acontece no município a cada indivíduo que nela exerce
alguma função.
4.3 A Coprodução
O termo “coprodução”, com base em diversos autores, em particular Schommer et
al. (2011), surge para explicar a transformação dos indivíduos de uma comunidade, seja
ela macro ou micro, em atores responsáveis pela produção de bens públicos em redes e
parcerias, promovendo um engajamento mútuo entre governos e cidadãos
(individualmente ou em organizações associativas ou econômicas). Essa estratégia cria
nos cidadãos um ativo envolvimento, tanto na produção quanto na entrega dos bens e
serviços públicos, fazendo com que eles se tornem corresponsáveis pelas políticas
públicas que serão desenvolvidas.
De acordo com Schommer et al. (2011), a coprodução se caracteriza por processos
movidos a conflitos, relações de poder e articulações que devem ser negociados entre os
atores envolvidos. Esta caracterização é comprovada pelos autores no capítulo que trata
das relações com os atores e as associações no contexto analisado, que envolvem não só
distintos atores, mas também diferentes interesses e perspectivas. É preciso, porém,
14
aprender a lidar com esse fato, intermediando as diferenças através do diálogo,
construindo consensos e objetivos em comum.
Com a formulação correta de um processo que permita a coprodução, obter-se-á a
participação direta e ativa de diferentes atores, o que, segundo Schommer et al. (2011, p.
40), admite que se levem em consideração “[...] prioridades nos processos de elaboração,
implementação, controle e avaliação de políticas públicas, tendo a democracia como
critério fundamental de desenvolvimento dos serviços públicos”. Dessa maneira,
compreende-se ser este um caminho que abre inúmeras oportunidades de participação
cidadã, produzindo como resultado a aproximação de governantes e cidadãos, o que fará
com que as políticas públicas se tornem cada vez mais adequadas à realidade local.
É inquestionável o fato de que em qualquer comunidade sempre existirão
diferentes interesses: alguns, coletivos; outros, privados e alguns, mistos. Porém, Putnam
mostra o fato de que, mesmo em casos de interesse próprio, ele assumirá um caráter
distinto quando inserido num contexto social que fomente a confiança mútua. Esta
particularidade se explicaria, segundo o mesmo autor (2006, p. 103), por essas relações de
confiança permitirem que uma comunidade cívica possa “[...] superar mais facilmente o
que os economistas chamam de “oportunismo”, no qual os interesses comuns não
prevalecem porque o indivíduo, por desconfiança, prefere agir isoladamente e não
coletivamente”.
Por esse motivo, entende-se que a harmonização, a partir de um processo de
coprodução, apenas se torna possível pela concepção de um sentimento de pertencimento
e responsabilidade entre as pessoas que participam do sistema. Este ponto retoma a
discussão anterior sobre o papel da rede de associações de moradores como facilitadora
do processo de conscientização da população, que gera, a longo prazo, uma mudança da
cultura atualmente preponderante nas comunidades estudadas.
Como resultado desse processo de coprodução, facilitado pela atuação da “rede”
de associações de moradores, os cidadãos são direcionados a discutir entre si e a pensar
em soluções globais, o que acaba criando e fortalecendo um senso coletivo, pelo qual não
se foca mais o interesse individual, mas se constrói um ideal de bem comum para a
localidade como um todo.
Borba (2010, p. 182) apresenta o conceito de bem comum como “um dos valores
fundamentais da humanidade”, destacando que deve ser uma das preocupações
prioritárias dos cidadãos e das sociedades. Este termo, tão presente nas mais simples
15
relações cotidianas de uma comunidade, possui um papel decisivo na promoção do bem-
estar e da segurança coletiva, tornando-se fundamental para o futuro de uma sociedade.
Se o ideal do bem comum for entendido como uma atitude moral básica que merece ser
respeitada, tratada como uma determinação predominante da coletividade que deveria ser
formalmente seguida, as prioridades sociais seriam mais facilmente entendidas e
atendidas.
Dessa maneira, torna-se mais fácil identificar o que, dentre tantas outras demandas
sociais existentes, seria claramente prioritário. Daí a importância de esse valor ser
difundido nas relações presentes em uma comunidade, pois são elas que facilitam o
processo de identificação das prioridades de cada região, permitindo que os indivíduos
comecem a pensar de forma coletiva e pelo bem geral da comunidade em que vivem.
Portanto, acaba impedindo que interesses privados suprimam os interesses do bem
comum da comunidade.
Pressupõe-se, dessa maneira, que se trata de um conceito que precisa surgir
através da organização da sociedade, não sendo algo que pode ser imposto pelos
governantes ou por qualquer outra pessoa da comunidade. Deve estar presente de forma
natural nas mais diversas relações sociais e requer um esforço social contínuo para existir
e se fortalecer. Na visão de E1, fomentar esse bem comum na comunidade é função da
“rede” de associações nela inseridas. Isso porque, como em outro momento lembrou o
mesmo E1, as associações de moradores servem para encontrar meios que incentivem os
diferentes atores presentes numa sociedade a pensar de forma comum e solidária.
Quanto à questão da união das três associações em uma “rede”, E3 acredita que a
união das associações torna seu trabalho mais fácil quanto ao alcance da construção do
bem comum do município. Se as associações não fossem atuantes e estivessem unidas
como estão hoje, E1 acredita que o processo sobre a discussão de um novo plano diretor,
pelo qual passa o município hoje, seria totalmente distinto. Em sua opinião, isto é hoje
possível graças às associações, criadas justamente para gerenciar ações coletivas como
essa. Sem sua participação no exercício do papel de cobrança do poder público por
medidas adequadas à lei, o entrevistado acredita que dificilmente o processo estaria no
“caminho” em que se encontra. Acredita que cenário político atual de Santo Amaro da
Imperatriz é o mais propício para se alcançar a cidadania. Isso por existir uma “força”
contra esse processo, posto que a administração municipal não está cumprindo a
legislação prevista no Estatuto das Cidades, sendo algo que vai interferir na vida de todos.
16
Para ele, o contexto atual é um cenário propício ao fomento do debate entre as
pessoas, a fim de intervirem, lutarem, para que esse acesso seja verdadeiramente
participativo.
Dessa forma, constata-se que a cidadania apresentada na forma da participação
cidadã, já iniciada por cada indivíduo nas comunidades de Santo Amaro da Imperatriz por
meio do entrelaçamento atual dessas associações, tornou-se essencial para a formulação
de um capital social que criou redes de confiança entre as três associações.
Nesse contexto, a dinâmica apresentada pela rede de associações no município,
além de ter conquistado a atenção das autoridades sobre a necessidade de um novo plano
diretor, também criou um importante ambiente de incentivo à inclusão dos cidadãos no
processo de discussão e formulação do novo plano diretor da região, tornando-o cada vez
mais próximo da realidade e das necessidades de cada bairro inserido naquele espaço.
5 ESTATUTO DAS CIDADES: PLANO DIRETOR E O CASO DO MUNICÍPIO DE SANTO AMARO DA IMPERATRIZ
Um movimento durante a consolidação da Constituição Federal de 1988 lutou para
que fossem adicionados instrumentos que levassem à instauração da função social da
cidade e da propriedade no processo de construção das cidades.
O Estatuto das Cidades funcionaria, assim, como uma espécie de “caixa de
ferramentas” em uma política urbana local. Dessa forma, definirá a cidade que querem as
pessoas que nela vivem. Chama-se a atenção, porém, para o fato de que isso irá depender
da forma como os planos diretores serão formulados em cada um dos municípios, nos
quais será determinada ou não a mobilização dos instrumentos presentes, e sua forma de
aplicação. Observe-se que a natureza e a direção de intervenção do uso dos instrumentos
propostos no estatuto irão depender do engajamento da sociedade civil.
Dessa maneira, a população efetivamente engajada na transformação da cidade, no
sentido de superar uma ordem urbanística excludente, patrimonialista e predatória,
encontra no Estatuto das Cidades um instrumento importante para essa “luta”. O estatuto
supõe a necessidade inicial de se encontrar e incentivar elementos nos municípios que
permitam um maior controle social desse instrumento, para que, dessa forma, seja
efetuado da melhor maneira possível.
O Estatuto da Cidade se apresenta tanto como um meio, quanto como uma
oportunidade para que os cidadãos construam e reconstruam espaços urbanos
17
humanizados, integrados ao ecossistema em que estão inseridos, respeitando ao mesmo
tempo a identidade e a diversidade cultural de cada cidade brasileira. Para Carvalho Filho
(2013), a necessidade de organização urbanística não consistiria apenas no
embelezamento das cidades, mas adviria da necessidade de que esses espaços propiciem o
pleno desenvolvimento de suas funções sociais e garantam, assim, o pleno
desenvolvimento de suas funções sociais e o bem-estar dos cidadãos.
A política urbana, segundo Carvalho Filho (2013), trata de um conjunto de
estratégias e de ações do poder público, de forma isolada ou em cooperação com o setor
privado, “[…] sendo necessárias à constituição, à preservação, à melhoria e restauração
da ordem urbanística em prol do bem-estar das comunidades”. Em outro momento, o
autor afirma que os propósitos urbanísticos têm a participação das coletividades por
serem elas as titulares de interesses ligados ao fenômeno urbanístico. Para ele, o conceito
de bem-estar das comunidades não poderia ficar de fora, visto que se trata da direção da
política urbana, por visar ao atendimento do interesse público.
No caso de Santo Amaro da Imperatriz, o que atualmente se observa mais
especificamente é um descaso do poder público com a formulação adequada e atualizada
do plano diretor. Aprovado em 1991, hoje com 23 anos, está no mínimo desatualizado.
Não existe, porém, por parte da prefeitura, um esforço para que o plano seja atualizado e
compatível com a realidade atual do município. A impressão que se capta nessa situação é
que o plano diretor seria um favor, algo a mais que a prefeitura estaria proporcionando
aos cidadãos. De fato, porém, trata-se de uma obrigação, de um direito dos indivíduos que
residem nessa localidade de ter um crescimento ordenado, sustentável e compatível com
as características locais.
Atualmente, o objetivo principal das três associações é a defesa desse direito, por
acreditarem na força desse instrumento em modificar a realidade na qual se encontra o
município. Visando ao alcance disso, as associações buscaram a prefeitura para auxiliá-
los nesse processo. A proposta de uma tentativa de parceria durou aproximadamente um
ano.
Nesse período, foram realizadas reuniões mensais entre as associações de
moradores de Santo Amaro da Imperatriz juntamente com o prefeito e sua equipe diretiva.
Nas reuniões, cada bairro tinha a oportunidade de apresentar os seus problemas, como
forma de utilizar essas demandas para a confecção do novo plano diretor do município.
Após um ano de reuniões, as associações perceberam que as reuniões pouco adiantavam,
18
pois as demandas captadas não foram utilizadas para nada, o que gerou um
estremecimento da relação de confiança que tinha sido até então construída. A partir de
disso, as associações informaram ao prefeito que não “andariam” mais com ele, e que
tomariam outras providências para que as suas solicitações fossem atendidas.
Por conta desse “enfraquecimento” dos laços políticos com o poder local
instituído, as associações buscaram o apoio do Ministério Público de Santa Catarina e do
Fórum da região. Segundo todos os entrevistados, a relação e a comunicação com esses
órgãos foram boas em todos os momentos. Pelos relatos, tanto um quanto o outro
conseguiram perceber a importância do que estava sendo solicitado, cumprindo, até o
presente momento, o seu papel na defesa dos interesses coletivos e direitos da
comunidade em questão. A Polícia Militar também foi lembrada por todos os
entrevistados como um ator sempre presente nas ações realizadas pelas associações e
sempre disposta a ajudar, quando necessário.
Junto com o apoio das instituições, outras medidas foram tomadas pelas
associações. Uma delas foi a passeata, com placas e panfletos explicativos, que ocorreu
no centro da cidade, passando pela prefeitura e a Câmara de Vereadores. Com ela,
pretendia-se chamar a atenção da sociedade sobre a importância de um novo plano diretor
para o município e também pressionar as autoridades a assinar um acordo com as
associações de um prazo para a realização do plano.
Após essa movimentação, reuniões ocorreram em alguns bairros do município
sobre o novo plano diretor do município, promovidas pela Câmara de Vereadores, por
terem sido pressionadas pela “rede” de associações para ocorrerem. Essas reuniões
deveriam ser importantes espaços de discussão, dando destaque ao futuro desejado pelas
comunidades, espaço em que a população deveria ter a oportunidade de discutir sobre o
que se tem hoje e o que se deseja para o futuro.
Porém, como E1 destaca, o plano diretor que está sendo desenvolvido atualmente
pela administração só está sendo realizado por existirem liminares da justiça que a
obrigam a isso, pois, caso contrário, iriam continuar postergando a sua confecção, como
anteriormente. Segundo o entrevistado, as associações encaminharam outro documento,
depois de realizadas audiências sobre o plano diretor nos bairros. Isso se deveu ao
descontentamento geral das associações e comunidade. De acordo com E1:Nós estamos encaminhando outro documento agora, porque para se ter uma ideia, como que em três horas que participamos lá, não deu nem três horas de debate, você vai conseguir que a comunidade se aproprie de um documento de 115 páginas e mais doze anexos.
19
Detectou-se ainda, com as reuniões, maior participação em alguns bairros do que
em outros, um sentido de bem comum mais apurado e incentivado. O fato se explica pela
distinta cultura de cada comunidade, com diferentes atores que possuem diversas
maneiras de se relacionar, sendo natural, portanto, que o processo de participação seja
diferenciado em cada região. Embora cada uma de acordo com suas características, todas
devem ser levadas em consideração pelas associações em suas ações de incentivo à
participação.
O entrevistado conclui que todos estes fatos demonstram, ao longo do tempo, que
não existe um interesse político de viabilizar um plano diretor com uma verdadeira
participação social, o que comprova mais uma vez a importância de a rede de associações
continuar em seu trabalho de incentivar a população a participar desse processo e cobrar a
aplicação correta de instrumentos que o validem.
Estes dados permitem considerar que o processo para a construção de uma
participação mais ativa e cívica já foi iniciado pela “rede” de associações de moradores de
Santo Amaro da Imperatriz. A partir de seu trabalho, constata-se que a visão “micro” está
em desconstrução e a noção de que as comunidades precisam deixar de ser secções do
município para se tornar partes integrantes de um todo que está sendo fortalecido com o
trabalho dos participantes da “rede”.
Verificou-se que as associações estão alcançando um estágio de conscientização
muito importante, pelo qual perceberam que, afora o papel individual, juntas elas podem
alcançar de forma efetiva tanto seus objetivos individuais quanto a criação de objetivos
comuns.
Constata-se, assim, que a cidadania apresentada na forma da participação cidadã,
já iniciada por cada indivíduo nas comunidades de Santo Amaro da Imperatriz, se tornou
essencial, por meio dessas associações, para a formulação, primeiramente, de um capital
social que criou redes de confiança entre as três associações, e, segundo, seu
entrelaçamento no processo de formulação do novo plano diretor.
O que fica claro, porém, é o fato de que ainda existe muito trabalho a ser realizado
e desafios a serem superados. Para que essa “rede” se fortaleça cada dia mais, estratégias
precisam ser delineadas, de forma que ela tenha a capacidade de abranger as comunidades
e os atores que ainda não fazem parte e de fortalecer as relações já existentes, de forma
que eventuais empecilhos não impeçam o município de continuar a lutar por uma cidade
mais humana, sustentável e cívica.
20
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente artigo, ficam evidentes as diversas razões que demonstram a
importância de se estimular a força associativa nas comunidades. Observou-se que, pelas
relações cotidianas e de proximidade que representam para o envolvimento local, tornam-
se mais propícias à criação de “laços” de reciprocidade, cooperação e solidariedade, pois
tais laços formam o capital social tão essencial ao desenvolvimento de qualquer região.
A partir dessas relações, torna-se mais fácil que os indivíduos se sintam
responsáveis por sua realidade, por lhes permitir uma noção de pertencimento que resulta
no fomento da cidadania democrática que enxerga o cidadão como um ser ativo, com
capacidade de compreender que o interesse público deve ser mais amplo do que o
privado.
A partir da análise empreendida no campo, seja nas entrevistas, nas participações
nas reuniões das associações e na análise documental, foi possível perceber a penetração e
a relevância da ação que as três associações de moradores do município de Santo Amaro
da Imperatriz estão desenvolvendo em suas localidades, criando um ambiente favorável à
promoção dessa cidadania democrática e participativa, que possibilita aos mais diferentes
habitantes dessa comunidade a possibilidade de questionar a realidade atual e criar uma
nova percepção sobre a atuação cívica conjunta.
Cabe destacar, neste ponto, o importante papel da união e do trabalho em conjunto
dessas associações na busca pela criação de um novo plano diretor para o município.
Além disso, que sua formulação seja fruto da mobilização dos bairros, permitindo que
eles deixem de se ver como “secções” e passem a se perceber interdependentes, sentindo-
se integrantes do município do qual fazem parte, notando que unidas possuem mais poder
de provocar as autoridades na tomada de atitudes concretas em prol da comunidade.
21
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORBA, E. N. Por Uma Ordem Social Solidária. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2013.
DENHARDT, Robert B. Teoria Geral de Administração Pública. 6. ed. Tradução de Francisco Heidemann. Florianópolis: ESAG/UDESC, 2008.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio Nova Ortografia. Rio de Janeiro: Editora Positivo, 2010, p. 164.
FRANCO, Augusto. Desenvolvimento, capital social, redes sociais e sustentabilidade: o conteúdo de minhas palestras de 2003-2005. In: Carta Capital Social 93, set. 2005. Disponível em: http://goo.gl/S2hg5K. Acesso em: 14 fev. 2014.
GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. 8. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2004.
IBGE. Cidades. Disponível em: http://goo.gl/OAuhlP. Acesso em: 21 ago. 2014.
PINSKY, Jaime. Introdução. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). História da Cidadania. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003.
PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência na Itália moderna. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 260 p.
SCHOMMER, P. S.; BOULLOSA, R. F. Gestão Social como caminho para a redefinição da esfera pública. Coleção Enapegs; v. 5. 2011.
SANTOS, A. S. R. Importância das Associações de Bairro. 2000. Última Arca de Noé. Disponível em<http://www.aultimaarcadenoe.com.br/associacoes-de-bairro-2/ >. Acesso em: 25 mar. 2014.
SOUSA, Maria das Dôres. Associações de moradores de Picos PI na década de 1990; crise e práticas educativas. 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) - UFPI. Teresina.SUBSÍDIO para a avaliação no VII encontro regional centro; Teresina: 2001. (Texto Mimeografado).
WORTHEN, Blaine R.; FITZPATRICK, Jody L.; SANDERS, James R. Avaliação de Programas: Concepções e práticas. São Paulo: Editora Gente, 2004.
YIN, Robert K. Estudo de caso: Planejamento e métodos. Trad. Daniel Grassi. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.
Top Related