Fernando A. Novais
Aproximações estudos de história e historiografia
Apresentação de Pedro Puntoni
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]'ai grand peur que cette nature ne soit e!Ze
même qu 'une premiere coutume, comme la
coutume esc une seconde nature.
Blaise Pascal
En suma, que e! hombre no tiene naturalqa,
sino que ciene ... hiscoria.
José Ortega y Gasset
[co] Lu i{ Felipe de Alencastro trata de algumas dessas questões no livro
dele. O senhor considera suas contribuições importantes i'
Acho um livro fundamental. Contudo, temos divergências também fundamentais. O meu recorte não coincide com o dele, e o centro de minha análise - o processo de acumulação primitiva de capital - não é a sua categoria analítica. Isso impõe diferenças na reconstituição do objeto. Como em História não há certo ou errado absolutos- como em geometria-, essas diferenças devem ser encaradas com naturalidade. Cabe aos leitores verificar quem dá mais inreligibilidade ao objeto. Não é assim?
SOBRE A HISTÓRIA
[co] Quando o senhor afirmou que a História é mais conservadora, como
domínio do conhecimento, é do ponto de vista teórico e da dimensão de seu
campo de atuaç!}o?
A História não é bem uma ciência, é um domínio de saber muito antigo, anterior à ciência, à universidade e, obviamente, às Ciências Sociais. Tão antigas como a História só a Filosofia e as artes. Todo livro de história da História diz isso, mas nem sempre tiram as implicações teóricas desse fato. Primeira implicação: se de fato é assim, é possível estudar o impacto das Ciências Sociais na História, e não o inverso. Não é possível estudar o impacto da História sobre a Sociologia, mas existe o impacto da Sociologia sobre a História. A segunda implicação é que a História não responde às demandas sociais semelhantes ao que ocorre com as outras ciências. Pode-se associar o aparecimento da Sociologia na segunda metade do século x rx ao aparecimento da sociedade urbana industrial moderna. O aparecimento da Economia está diretamente ligado à Revolução Industrial. Já a História está associada à criação da memória, mas nem todo o discurso que cria a memória é um discurso historiográfico. Claro, toda a sociedade necessita de memória; sem memória o "bicho não desce da árvore e vira gente". É um problema gravíssimo saber por que certas sociedades não prescindem do discurso historiográfico para a constituição da memória social e ourras prescindem - essa é uma distinção entre os chamados primitivos e os societários. Costumava-se dizer que os índios não têm história. Claro
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que os índios têm história, todo mu,ndo tem história. Então, todos passaram a dizer que o índio tem história, porque todo mundo tem história. Péssima solução para um problem·a real. História tem dois significados: primeiro significa todo acontecer humano em todo tempo e em qualquer lugar. O segundo é a narrativa desse acontecer. É claro que no primeiro sentido todas as sociedades humanas têm história; no segundo sentido, nem todas. Os índios não têm história, eles têm mitos. O passado para eles é o mito. Eu defendo o ponto de vista de que nós, historiadores, temos que lutar pela identidade de nosso discurso, ao contrário do norte-americano Hayden White, que escreveu Meta-história, e que está na moda. Para ele, não há nenhuma diferença essencial entre o discurso literário e o discurso historiográfico; isto, a meu ver, é um equívoco. Agora, por que certas sociedades necessitam da narrativa histórica na constituição da sua memória e outras prescindem desse discurso, bastando-lhes o mito, a poesia, a música e o imaginário? Para mim, essa é uma questão muito complexa e nunca encontrei explicações totalmente convincentes, no máximo aproximações. É um mistério, e nunca li nada que explicasse isso.
[co) O senhor disse que essas diferenças mais profundas entre a História e
as ciências do homem que surgem no decorrer dos séculos XIX e XX estão rela
cionadas principalmente com as demandas sociais que aparecem nesses sécu
los. Isso significa que essas ciências surgem marcadas por demandas sociais
e, conseqüentemente, com a expectativa de criarem alternativas e soluções
aplicadas à realidade? Esses aspectos, da aplicabilidade e a transformação
da realidade social não serviram para marginalizar um pouco a História?
A História como discurso não corresponde às mesmas demandas das Ciências Sociais, pois é muito anterior a elas. A que demanda corresponde a História? À necessidade de criação da memória social. A distinção entre o que é memória social e História é extremamente difícil, tanto que autores como Hayden White, como já adiantei, dizem que não existe. Vou dar um exemplo muito claro: Marshall Sahlins quando escreve Ilhas da história, sobre as relações da Antropologia com a História. O livro está escrito com base nesta indistinção: ele não distingue na primeira página memória e história; mito, imaginário, poesia, música são partes constituintes da memória social, mas a memória histórica (isto é, a narrativa dos acontecimentos) é também constituinte da memória
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social, e não se confunde com as outras. Se ele tivesse feito essa distinção, não precisaria mais escrever o livro. Então, há uma distinção e ao mesmo tempo não é fácil estabelecer onde está o limite. Isso distingue a História das Ciências Sociais. Mais ainda, o campo da História é indelimitável. Qual é seu objeto? É o acontecer humano em qualquer tempo e em todo espaço, só o futuro não é seu objeto. O que caracteriza esse objeto? A impossibilidade de delimitá-lo- não se sabe onde é que ele acaba. O que delimita o conhecimento da História não é o que deixou registro; o fato de não se conhecer registros de um acontecer histórico não quer dizer que ele não tenha ocorrido. Como experiência, limita o resultado, não 'se pode falar sobre ele, mas ele não saiu do campo da História. Por isso Paul Veyne diz que a História não existe, a não ser
"a história de". Não existe História simplesmente, porque o que vem depois do "de" recorta. História do Brasil, história da América, história do amor, história do sexo, são recortes. Simplesmente história, sem "de" em seguida, liquida o assunto e o livro só poderia ser escrito por Deus. As pessoas não Jlensam nas conseqüências disso. O historiador não deve discutir teoria porque não tem formação teórica. Mas o que define uma ciência? Em qualquer manual de metodologia, a ciência se define por duas coisas: pelo objeto e pelo método. Objeto claramente recortado e método adequado ao objeto. Quanto mais adequado o método, maior a cientificidade e o domínio do conhecimento sobre o objeto. Ora, a característica principal da História é que seu objeto é indelimitável e não existe um método específico. O que temos são técnicas de investigação relacionadas às ciências auxiliares: como se faz levantamento documental, como tratar os documentos, como se faz estatística, paleografia, técnicas e mais técnicas. Método é a posição do sujeito em face do objeto. Fora isso, não é método. O que não quer dizer que os historiadores não usem métodos e conceitos das Ciências Sociais- claro que usam.
[CO J Conseqüentemente, se não há objeto e nem método, a História não pode
ter cientificidade e não é ciência no sentido mais tradicional. ..
A História não pode ter cientificidade, mas não é porque os historiadores sejam menos inteligentes. O objeto da História é que a torna mais difícil. Ela usa os métodos das Ciências Sociais, usa os métodos da Economia, da Sociologia etc. A única tentativa de fundir realmente as duas dimensões é o materialismo histórico, que tenta fazer da História uma
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