Zygmund Bauman

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Zygmunt Bauman

ENSAIOS SOBRE O

CONCEITO DE CULTURA

Tradução:Carlos Alberto Medeiros

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Ttulo original:Culture as Praxis

Tradução autorizada da segunda edição inglesa,publicada em por Sage Publications Ltd., de Londres, Inglaterra

Publicado originalmente em , por Routledge & Kegan Paul,

de Londres, Inglaterra

Copyright © , Zygmunt Bauman

Copyright da edição em lngua portuguesa © : Jorge Zahar Editor Ltda.

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Preparação: Angela Ramalho Vianna | Revisão: Eduardo Monteiro,Eduardo Farias | Indexação: Nelly Praça | Capa: Sérgio Campante

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CIP-Brasil. Catalogação na onteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Bauman, Zygmunt, -Ensaios sobre o conceito de cultura / Zygmunt Bauman; tradução

Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Zahar, .

Tradução de: Culture as praxisíndiceISBN --3--

. Cultura. . Estrutura social. 3. Sociologia – Metodologia. . Antro-pologia. I. Ttulo.

CDD: 36CDU: 36.-6

B3e

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. Sumário .

Introdução  7 

A cultura como autoconsciência da sociedade moderna, 11 • Sistema ou ma-

triz?, 29  • Cultura e identidade, 44  • Relatividade da cultura e universalidade dos

homens,69 

1. Cultura como conceito  83 

A cultura como conceito hierárquico, 90  • A cultura como conceito diferencial,

103  • O conceito genérico de cultura, 130  

2. Cultura como estrutura  155 

O conceito de estrutura, 157  • Condição ontológica e epistemológica da estru-

tura, 166  • Síntese do projeto estruturalista, 178 

3. Cultura como práxis  215 

O cultural e o natural, 231 • Cultura e sociologia, 278  

Notas  305 

Índice remissivo  321

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. Introdução .

Reeditar um livro escrito há quase três décadas exige uma expli-cação. Se por acaso o autor ainda é vivo, recai sobre ele o trabalhode explicar.

A primeira parte dessa tarea é descobrir, passados todosesses anos, o que o livro ainda tem de atual e novo o sucientepara justicar apresentá-lo uma vez mais aos leitores – a leitoresdierentes, uma ou duas gerações mais jovens que aqueles quedevem ter lido o exemplar na edição original. O segundo traba-lho é oposto ao primeiro, mas o complementa: ponderar o queo autor teria alterado no texto caso o estivesse escrevendo pelaprimeira vez.

A primeira tarea não é ácil, seja qual or o padrão, dada a velocidade desconcertante com que todas as ideias desapareceme caem no esquecimento antes de ter a chance de amadurecer eenvelhecer de orma adequada em nossa era, como diz GeorgeSteiner, de coisas e pensamentos calculados “para o impacto má-ximo e a obsolescência instantânea”. Uma época em que, comooutro autor observou, a vida de um best-seller nas estantes das

livrarias é algo entre o leite e o iogurte. À primeira vista, este éum trabalho assustador, talvez impossível…

Mas quem sabe não se possa extrair algum consolo da sus-peita, não de todo antasiosa, de que, dada a velocidade com que

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os “temas quentes” da moda são substituídos e esquecidos, nãose pode saber ao certo se as ideias antigas realmente envelhece-ram, sobreviveram ao uso ou oram abandonadas por motivo de

obsolescência. Será que certos temas deixaram de ser comenta-dos por ter perdido a relevância, ou deixaram de ser relevan-tes porque as pessoas caram cansadas de alar a respeito deles?Sobre nós, cientistas sociais, Gordon Allport disse uma vez que jamais resolvemos problema algum, só nos entediamos com eles.Mas, desde então, se tornou marca registrada de nossa sociedadecomo um todo o ato de não mais nos movermos nem acredi-

tarmos nos mover “para a rente”; nós nos deslocamos de lado,com requência de trás para a rente, e novamente para trás. Porsua vez, vivemos na era da reciclagem; nada parece morrer deuma vez por todas, nada – nem a vida eterna – parece destinadoa permanecer para sempre.

Assim, as ideias devem ser enterradas vivas – muito antesde estarem “bem mortas” –, e sua morte aparente é apenas um

arteato de seu desaparecimento de nosso campo visual. O atodo enterro, mais que qualquer teste clínico, é que garante o ates-tado de óbito. Se resgatadas da amnésia coletiva em que oramdestinadas a hibernar, elas podem – quem sabe? – ganhar maisum tempo de vida (com certeza, não muito longo). E não ape-nas porque oram espremidas até secar em sua primeira visita,mas porque, como manda a dinâmica dos discursos, as ideiasestimulam o debate e o colocam em movimento “por impacto”,embora esse eeito inicial dicilmente seja seguido de plena as-similação. A princípio, não há limite para o número de retornos;a cada vez o impacto tem novo eeito – como se o retorno osseuma primeira apresentação. É verdade que não se pode entrar no“mesmo” rio duas vezes, mas também é verdade que “a mesma”ideia não pode entrar duas vezes no rio dos pensamentos. Hojeavançamos não tanto pelo aprendizado cumulativo e contínuo,

mas por uma mistura de esquecimento e lembrança. Essa parece,em si mesma, uma razão boa o suciente para reeditar um livro– ainda mais pelo ato de que ele não voltará sozinho. O texto oiescrito num diálogo ativo com outros que então se encontravam

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na linha de rente do debate intelectual, mas que hoje tambémacumulam poeira nas estantes das bibliotecas. Recordar os pro-blemas que enrentaram e tentaram resolver juntos não será ino-

portuno para todos aqueles que estão imersos e engajados naspreocupações atuais.

A segunda das duas tareas é mais simples, pelo menos emaparência. Para o autor, também é mais graticante. Exige algoque os autores dicilmente têm tempo de azer em seu pensar eescrever cotidianos: examinar em retrospecto a estrada que per-correram – ou melhor, organizar as pegadas esparsas para pro-

duzir um simulacro de estrada. Ao atender a essa exigência, elestêm a rara oportunidade de imaginar (descobrir? inventar?) umaprogressão lógica naquilo que vivenciaram como uma sucessãode problemas e temas singulares, “um de cada vez” – trabalho emgeral deixado aos estudantes encarregados de produzir disserta-ções sobre a obra dos autores. E, conrontando-se mais uma vezcom seus próprios pensamentos iniciais, podem colocar em rele-

 vo suas ideias atuais. Anal, todas as identidades – incluindo asidentidades das ideias – são eitas de dierenças e continuidades.O objetivo desta Introdução é tentar realizar essas duas tareas.Vamos antecipar a direção que a tentativa irá tomar: quando

lido trinta anos depois de ter sido escrito, o livro parece passar noteste da “verdade”. Tem desempenho um pouco inerior no testede “somente a verdade”. E racassa terrivelmente no teste de “nadamais que a verdade”. Creio que a maior parte do que nele há deerrado se reere ao que alta – mas deveria estar presente, tal comoo vejo agora – em qualquer avaliação da cultura que se pretendaabrangente e correta. Se osse escrever este livro outra vez, talvezeliminasse pouca coisa do texto antigo, mas muito provavelmenteacrescentaria alguns tópicos, e com toda a certeza remanejaria asênases. O restante desta “Introdução”, portanto, contém algumasrevisões, mas seu principal oco é preencher os espaços em branco

que o texto original deixou de orma inadvertida.Mais uma observação se az necessária, tendo em vista so-

bretudo o tempo de vida curto de nossa memória coletiva. Umlivro sobre cultura escrito trinta anos atrás tinha de conrontar

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leitores muito dierentes daqueles que estarão presentes em suasegunda encarnação. Pouco se podia ar nas ideias arraigadasdos leitores naquela época, enquanto hoje o mesmo texto pode

contar com leitores experimentados na “problemática da cultu-ra”, com estruturas cognitivas básicas e conceitos essenciais r-memente estabelecidos. Certas ideias que há trinta anos teriamde ser explicadas com muito labor agora parecem evidentes, nolimite da trivialidade.

Nesse sentido, o caso mais evidente é o da própria noção decultura: na década de 1960, na Grã-Bretanha, ela estava quase

ausente do discurso público, em particular do discurso socio-cientíco – e isso apesar dos esorços pioneiros de Matthew Ar-nold para inseri-la no vocabulário das classes letradas britânicase da brava luta posterior por sua legitimidade, empreendida porRaymond Williams e Stuart Hall. Admito desde logo que – porsorte da opinião culta britânica – é diícil acreditar hoje que esteera o estado de coisas apenas há trinta anos. Mas, algum tempo

depois de vir a público a primeira edição deste livro, passei pelaagonia de explicar aos ilustres intelectuais membros da comissãode planejamento da universidade o que signica a palavra “cul-tura”. A ocasião para isso oi a proposta de instituir um Centrode Estudos Culturais interdepartamental – então um espécimeextraordinariamente raro nas Ilhas Britânicas. Da mesma orma,a ideia de estrutura como enômeno diacrônico, e não sincrô-nico, não era ácil de transmitir, tampouco de ser apreendida edigerida pelos potenciais leitores, antes que a “estruturação” deAnthony Giddens atingisse o status canônico no primeiro anodos cursos de sociologia.

Hoje, aquilo que no passado parecia uma ousada aventuraintelectual se transormou na repetição irrefetida da rotina. É danatureza das ideias que elas nasçam como heresias perturbado-ras e morram como ortodoxias aborrecidas. É necessário muito

poder de imaginação para azer ressurgir (que dirá reviver) seuantigo e poderoso impacto emancipatório, instigador da refe-xão: por exemplo, a agitação causada pela visão de cultura comouma série inndável de permutas, da autoria de Claude Lévi-

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Introdução 11

Strauss. Anal, a unção de toda rotina é transormar a refexão,o exame, a comprovação, a vigilância e outros esorços árduos edemorados em luxos sem os quais se pode passar.

Assim, somando-se às duas tareas antes mencionadas, cabeao autor remodelar algumas das ideias agora incorporadas à “ro-tina”, na esperança de restaurar, se possível, seu poder de corte.Ou, se preerirem, azer ressurgir numa canção de ninar o seupassado de toque de alerta…

A cultura como autoconsciênciada sociedade moderna

Em sintonia com a visão sociológica prevalecente três décadasatrás, para mim a cultura era um aspecto da realidade social –um dos muitos “atos sociais” que deviam ser adequadamenteapreendidos, descritos e representados. A principal preocupa-

ção do livro agora reeditado é como azer isso da maneira apro-priada. Eu pressupunha a existência de um enômeno objetivochamado “cultura” que – em unção do notório “retardo do co-nhecimento” – talvez tenha sido descoberto com atraso, porém,uma vez descoberto, poderia ser empregado como ponto de re-erência objetivo em relação ao qual tornava-se possível medir eavaliar a propriedade de qualquer modelo cognitivo. Quem sabehouve três dierentes discursos em que o mesmo termo teve seusignicado alterado, causando certo grau de conusão semânti-ca? Assim, era preciso distingui-los com cuidado, de modo queo signicado em que o termo “cultura” é usado em cada caso -casse claro e livre de contaminação; mas a presença, o convívio ea intererência mútua dos três discursos me pareciam então, emsi mesmos, não problemáticos. Era outro “ato social”, e não umquebra-cabeça a exigir o esorço de uma escavação arqueológica

ou necessitando ser “desconstruído”. Ainda não havia por pertoMichel Foucault e Jacques Derrida para dar uma ajuda…

É uma espécie de paradoxo o ato de que a desconstrução doconceito de cultura tenha acabado por vir na onda da “cultura-

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lização” das ciências sociais. Originalmente, na segunda metadedo século XVIII, a ideia de cultura oi cunhada para distinguiras realizações humanas dos atos “duros” da natureza. “Cultura”

signicava aquilo que os seres humanos podem azer; “natureza”,aquilo a que devem obedecer. Porém, a tendência geral do pen-samento social durante o século XIX, culminando com ÉmileDurkheim e o conceito de “atos sociais”, oi “naturalizar” a cul-tura: os atos culturais podem ser produtos humanos; contudo,uma vez produzidos, passam a conrontar seus antigos autorescom toda a infexível e indomável obstinação da natureza – e os

esorços dos pensadores sociais concentrados na tarea de mos-trar que isso é assim e de explicar como e por que são assim.Só na segunda metade do século XX, de modo gradual, porémcontínuo, essa tendência começou a se inverter: havia chegado aera da “culturalização” da natureza.

Qual a razão de tal reviravolta? Pode-se apenas conjecturarque, depois de um período dominado pela busca renética dos

undamentos sólidos e inabaláveis da ordem humana, conscientede sua ragilidade e carente de conança, veio um tempo em quea espessa camada de artiícios humanos tornou a natureza quaseinvisível – e suas ronteiras, entre elas as ainda intransponíveis,cada vez mais distantes e exóticas. Os pilares da existência huma-na construídos pelo homem oram plantados em proundidadesuciente para tornar redundante qualquer preocupação comoutras e melhores bases. Podia começar a era do contra-ataque:as armas, a vontade e a autoconança agora estavam a postos.A “cultura” não precisava mais mascarar sua própria ragilida-de humana e desculpar-se pela contingência de suas escolhas. Anaturalização da cultura oi parte e parcela do moderno desen-cantamento do mundo. Sua desconstrução, que se seguiu à cul-turalização da natureza, tornou-se possível – talvez inevitável –com o reencantamento pós-moderno do mundo.

Reinhart Koselleck batizou o século XVIII de “a era das pas-sagens da montanha” (“Sattelzeit ”).¹ O nome é merecido, já que,antes do nal daquele século, um abrupto divisor de águas losó-co oi negociado e deixado para trás, em vários pontos ao mesmo

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tempo. Para a história do pensamento humano, as consequênciasdesse evento não oram menos seminais do que o oram, para ahistória política, aquelas provocadas pela travessia do Rubicão por

César. Em 1765, o conceito de “losoa da história” apareceu noEssai sur les moeurs, de Voltaire, gerando uma leva de tratados deGeschichtephilosophische. Em 1719, Gottried Müller começou adar um curso de antropologia losóca em que o sujeito cogniti- vo cartesiano se expandiu para o modelo em tamanho natural do“homem total”. E em 1750, Alexander Gottlieb Baumgarten publi-cou seu livro Aesthetica, ampliando ainda mais a ideia da “huma-

nidade” dos seres humanos, ao adicionar às aculdades racionaisas da sensibilidade e do impulso criativo. Em suma, emergiu uma visão do “homem” que, nos duzentos anos seguintes, deveria ser- vir de eixo em torno do qual iriam girar as imagens do mundo.

Aquela era uma nova visão, produto coletivo de uma novalosoa – uma losoa que via o mundo como uma criação hu-mana e um campo de testes para as aculdades do homem. Daí

em diante, o universo deveria ser entendido basicamente como oambiente para atividades, escolhas, triunos e equívocos huma-nos. Numa tentativa de explicar o súbito aparecimento de umanova Weltanschauung , Odo Marquard cita Joachim Ritter: derepente, o uturo oi “desacoplado” do passado – começou a sedesenvolver a percepção de que um uturo cujo ponto de partidaé a sociedade humana não guarda continuidade com o passado.O próprio Koselleck assinala a nova experiência de uma brechaentre realidade e expectativa. Não se poderia continuar a seruma criatura do hábito, não se poderia mais deduzir o estado decoisas uturo a partir de seus estágios presente e passado. Comoo ritmo da mudança se acelerava a cada ano, o mundo pareciacada vez menos algo eito à semelhança de Deus – ou seja, cada vez menos eterno, impenetrável e reratário. Em vez disso, assu-miu uma orma cada vez mais humana, tornando-se, aos poucos,

algo eito “à imagem do homem” – multiorme, instável e instabi-lizante, caprichoso e cheio de surpresas.

Havia mais que isso, porém: o ritmo acelerado da mudan-ça revelava a temporalidade de todos os arranjos mundanos, e a

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temporalidade é uma característica da existência humana, nãoda divina. O que algumas gerações atrás teria sido uma criaçãodivina, um veredicto contra o qual era impossível apelar em

qualquer tribunal humano, agora, de orma problemática, pare-cia consistir no traço característico das realizações humanas –certas ou erradas, mas mortais e revogáveis. Se a impressão nãoestava equivocada, então o mundo e a orma como as pessoasnele viviam constituíam uma tarea, e não algo dado e inalterá- vel. Dependendo de como as pessoas a encarassem, era possívelrealizar essa tarea de maneira mais ou menos satisatória. Ela

podia ser eita com desleixo, mas também ser bem-executada,para beneício da elicidade, da segurança e da expressividadeda existência humana. Para garantir o sucesso e evitar o racas-so, era necessário começar com um cuidadoso inventário dosrecursos humanos: o que as pessoas podem azer, se levam atéo limite suas aculdades cognitivas, sua capacidade lógica e suadeterminação.

Essa era, em resumo, a premissa da nova Weltanschauung ,do humanismo moderno, sobre o qual John Carroll escreveu:

Ele tentou substituir Deus pelo homem, colocar o homem no centro

do Universo. … Sua ambição era encontrar uma ordem humana

sobre a Terra, na qual prevalecessem a liberdade e a elicidade, sem

apoios transcendentais ou sobrenaturais – uma ordem inteiramente

humana. … Mas, para que o indivíduo se tornasse o ponto ocal do

Universo, ele deveria ter um lugar para se apoiar que não se movesse

sob seus pés. O humanismo precisava construir uma rocha. Tinha

de criar do nada algo tão orte quanto a é do Novo Testamento,

capaz de mover montanhas.²

Em Legisladores e intérpretes, procurei as raízes comuns ea ressonância mútua, a “anidade eletiva”, entre o novo desao

que conrontava os administradores da vida social – a tarea desubstituir a desintegrada ordem divina ou natural das coisas poruma ordem eita pelo homem, articial, de base legislativa – e apreocupação dos lósoos em substituir a revelação pela verdade

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Introdução 15

de base racional. As duas preocupações em essência modernas eintimamente interligadas convergiam numa terceira – a pragmá-tica da construção da ordem, envolvendo a tecnologia do con-

trole e da educação comportamentais: a técnica da moldagem damente e da vontade. Esses três interesses então recém-chegados,embora penetrantes e irresistíveis, deveriam juntar-se e undir-se na ideia de “cultura” – esta última considerada, ao lado daGeschichtsphilosophie, da antropologia e da estética, um dos mar-cos da “passagem na montanha” do século XVIII, talvez o maisnotável entre eles.

O que levou o pensamento do século XVII à passagem namontanha oi a dúvida corrosiva quanto à dedignidade das ga-rantias divinas da condição humana. Veredictos inegociáveis dopoder supremo de repente pareciam sedimentos, por vezes dasabedoria humana, por vezes da ignorância ou da estupidez. Odestino inapelável, predeterminado no instante da Criação, co-meçou a parecer mais um momento na história – uma realização

humana e um desao à inteligência e à vontade do homem; nãouma questão de abrir e echar, mas um capítulo inacabado es-perando ser concluído pelos personagens da trama. Em outraspalavras, por sob os meandros do destino humano ora vislum-brada a autodeterminação.

A liberdade de autodeterminação é uma bênção – e umamaldição. Estimulante para o ousado e diligente, atemorizantepara o raco – de espírito, de braços ou de vontade. Mas não ésó isso. A liberdade é uma relação social: para que alguns sejamlivres a m de atingir seus objetivos, outros devem ser não livresno que se reere a opor resistência aos princípios. A liberdadede uma pessoa pode ser desconcertante, já que está impregnadado risco de erro. Mas a liberdade dos outros parece, à primeira vista, um obstáculo perigoso à liberdade de ação de uma pessoa.Ainda que a liberdade de alguém possa ser contemplada como

uma bênção indubitável, a perspectiva de liberdade ilimitadapara todos os outros poucas vezes é agradável. Mesmo para osmais ardentes entusiastas da autodeterminação humana, a noçãode “restrições necessárias” dicilmente oi algo estranho.