XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - … · A pergunta sobre o que somos não é somente...

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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM HELDER CÂMARA TEORIA E FILOSOFIA DO ESTADO JOSE LUIS BOLZAN DE MORAIS LEONARDO DA ROCHA DE SOUZA KARINE SALGADO

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XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM

HELDER CÂMARA

TEORIA E FILOSOFIA DO ESTADO

JOSE LUIS BOLZAN DE MORAIS

LEONARDO DA ROCHA DE SOUZA

KARINE SALGADO

Copyright © 2015 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.

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T314 Teoria e filosofia do Estado [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/ UFMG/ FUMEC/Dom Helder Câmara; coordenadores: Jose Luis Bolzan De Morais, Leonardo da Rocha de Souza, Karine Salgado – Florianópolis: CONPEDI, 2015. Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-134-0 Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações Tema: DIREITO E POLÍTICA: da vulnerabilidade à sustentabilidade

1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. Teoria do Estado. 3. Filosofia do Estado. I. Congresso Nacional do CONPEDI - UFMG/FUMEC/Dom Helder Câmara (25. : 2015 : Belo Horizonte, MG).

CDU: 34

Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br

XXIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI - UFMG/FUMEC/DOM HELDER CÂMARA

TEORIA E FILOSOFIA DO ESTADO

Apresentação

CONPEDI 2015-MG

TEORIA E FILOSOFIA DO ESTADO

PREFÁCIO

Os livros que abordam Teoria e Filosofia do Estado têm o grande desafio de enfrentar

questões teóricas, relacioná-las a questões práticas e realizar propostas de avanços ou de

soluções para os problemas enfrentados. Tudo isso nem sempre atingido. O livro que

organizamos a partir dos trabalhos selecionados e apresentados no GT CONPEDI Teoria e

Filosofia do Estado -, e ora apresentamos, pretende dar conta de tudo isso.

Dos textos apresentados, percebemos uma grande preocupação nas discussões sobre os tipos

de Estado. Nessa temática, um dos textos deste livro trata do Estado de Bem-Estar Social,

com uma análise das suas origens até os dias atuais. Outros cinco textos abordam o Estado de

Direito, relacionando esse tema à esfera pública, à soberania e à pós-modernidade, além de

analisar sua evolução histórica e as relações de poder presentes nesse projeto, sempre

inacabado.

O livro também conta com trabalhos relacionados à soberania dos Estados e suas relações

transnacionais. São textos que estudam: a relativização da soberania quando necessária para

garantir a proteção ambiental, os desafios da nação na globalização, bem como os exércitos

privados e os diplomatas independentes em uma realidade cosmopolita.

Outro bloco de artigos se preocupou com temas que envolvem a Constituição e a democracia.

São propostas de reconstrução da teoria deliberativa, da relação entre democracia e Estado na

América Latina, e entre democracia e crise, bem como sobre os fundamentos da

representação política. Além desses temas, dois trabalhos abordaram o novo

constitucionalismo na América Latina, um deles envolvendo o surgimento do Estado

Plurinacional e outro estudando a busca pela libertação da diversidade.

Três outros trabalhos apresentaram temas relacionados à federação, um deles mais teórico,

voltado à jurisdição constitucional, e dois abordando a autonomia e as atribuições dos

Municípios no modelo federativo brasileiro.

Por fim, tivemos textos com temas mais diversificados, tratando de: separação de poderes e

função judiciária, natureza humana e origens do Estado, direito de resistência, servidão

voluntária e a questão das massas, concepções de justiça, humanismo e segurança jurídica.

Percebemos, assim, com os trabalhos constantes neste livro, a riqueza de temas e de

abordagens que podem ser feitas quando se estuda a Teoria e a Filosofia do Estado. Aqui se

apresentam as grandes dificuldades e os imensos desafios para aqueles que se dedicam a (re)

pensar as circunstâncias que envolvem as instituições político-jurídicas, em particular na sua

expressão moderna, projetando-as para o futuro. Um futuro incerto que nos leva a termos

presente a necessidade de revisitar o conhecimento jurídico para que possamos dar conta dos

dilemas que incidem nas experiências da modernidade.

Uma boa leitura a todos!

Prof. Dr. José Luis Bolzan de Morais - UNISINOS

Prof.ª Dra. Karine Salgado - UFMG

Prof. Dr. Leonardo da Rocha de Souza - UCS

A IDEIA DE NATUREZA HUMANA E AS HIPÓTESES DE ORIGEM DO ESTADO: EM DEFESA DE UMA APROXIMAÇÃO ENTRE AS CIÊNCIAS

THE IDEA OF HUMAN NATURE AND THE HYPOTHESIS OF THE ORIGIN OF THE STATE: DEFENDING AN APPROACH BETWEEN SCIENCES

Renato César CardosoPâmela de Rezende Côrtes

Resumo

Esse artigo visa compreender a importância do conceito de natureza humana na busca da

origem do Estado. Essa pesquisa se dará, primeiro, lastreando o conceito de natureza humana

presente em alguns autores importantes da filosofia política e do Estado, como Aristóteles,

Maquiavel, Hobbes e Rousseau; depois, demonstraremos como o conceito de natureza

humana ainda hoje utilizado nos estudos de filosofia política e ciências sociais como um todo

estão cada vez mais distantes das pesquisas das ciências naturais; por fim, defenderemos uma

maior aproximação entre as várias ciências, sobretudo nas pesquisas sobre o humano, como

forma de melhor embasar os estudos sobre política e sobre o Estado.

Palavras-chave: Origem do estado, Natureza humana, Filosofia política

Abstract/Resumen/Résumé

This paper will show the importance of the concept of human nature present in the search of

the origin of the state. The research will begin with the concept of human nature in some of

the most important authors in political philosophy, like Aristotle, Machiavelli, Hobbes and

Rousseau; then, will show how the concept of human nature still used in the studies of

political philosophy and social sciences is distant from the researches of natural sciences; in

the end, we will defend an better approach between the sciences, especially the sciences

about the human, to better base the studies of politics and the state.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: The origin of the state, Human nature, Political philosophy

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1 INTRODUÇÃO

É fundamental saber as razões que levaram as sociedades humanas a organizarem-se

em torno do Estado. A origem do Estado é uma discussão que se perde no horizonte da

filosofia política, e, na própria acepção da palavra “Estado”, é preciso questionar as condições

e motivos de seu surgimento. Afinal, ele surgiu para cumprir alguma função e, ainda que essa

função tenha se alterado ao longo da história, é preciso perceber que a origem e a definição

são questões que se confundem, que se misturam, que estão conectadas uma à outra.

As instituições sociais, culturais, o Estado, as normas, são todos produtos humanos

que surgiram por alguma razão. Há vários caminhos possíveis na busca do surgimento do

Estado, e diversos autores ao longo da história da Filosofia tem tentado responder essa

pergunta, sob múltiplos enfoques. Infelizmente, há muito mais interesse em compreender a

formação de Estados por derivação, ou seja, pela fragmentação ou junção de Estados já

existentes. Ressalta Dallari

A criação de Estados por formação derivada, isto é, a partir de Estados

preexistentes, é o processo mais comum atualmente, havendo por tal motivo

um interesse prático bem maior nesse estudo, bem como a possibilidade de

presenciarmos a ocorrência de muitos fenômenos ilustrativos da teoria.

(DALLARI, 1998, p.56)

Fato é que não poderemos mais presenciar o surgimento dos Estados originários,

primeiros. O tempo histórico e o contexto material já passaram e, ainda que fosse possível

encontrar uma sociedade absolutamente isolada e livre de qualquer influência dos Estados já

existentes, nada garantiria que caminhariam pela mesma via que resultou na ubiquidade do

Estado.

É importante ressaltar: a origem é essencial na definição do objeto. Descobrir porque o

Estado surgiu, em que contexto, devido a que condicionantes humanos é essencial na

definição de seus elementos. E mais, suas transformações contemporâneas podem ser mais

bem compreendidas se tivermos em mente as razões originárias e fundantes do Estado, que

talvez nos ajudassem a esclarecer quais as diferenças do contexto do surgimento e do contexto

atual.

Lastreamos e aprofundamos a busca da origem do Estado até que essa busca

encontrasse sua própria raiz inevitável: a própria discussão da humanidade. A investigação da

relação entre natureza humana e política é encontrada ao longo da história da filosofia política

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e do Estado. Para todos os autores em filosofia política há, fundamentalmente, uma concepção

de humanidade, mesmo que seja a de que ela é uma tábula rasa. Ela pode estar embutida,

pressuposta, compreendida apenas por derivação e desdobramentos dos argumentos centrais.

No entanto, ela também pode estar escancarada, declarada, e ser ponto de partida para as

conclusões subsequentes sobre a política. O conceito de natureza humana é fundamental em

todas as teorias de origem do Estado, e em todos os autores basilares dessa discussão.

A pergunta sobre o que somos não é somente fundamental e onipresente nas

discussões sobre a política ou o Estado, diversos são os ramos que delineiam soluções ou

discutem os aspectos da nossa humanidade. “O que nós somos?” é certamente uma das

perguntas mais importantes da filosofia. De que somos feitos, o que nos define, o que nos

diferencia, o que nos aproxima, o que permite que uma miríade de individualidades seja

compressa num mesmo conceito? Essa pergunta é inescapável em qualquer das áreas de

estudo da filosofia, da epistemologia à ética. É uma pergunta central também em outras

ciências. Tanto dentre as ciências sociais quanto dentre as ciências naturais é possível

encontrar essa pergunta. Para cada faceta do ser humano, há uma ciência que lhe diga

respeito. A noção de humanidade é multidisciplinar e

[s]e encontra fragmentada entre diferentes disciplinas biológicas e em todas

as disciplinas das ciências humanas: o psiquismo é estudado de um lado, o

cérebro de outro, o organismo alhures, assim como os genes e a cultura.

Trata-se, efetivamente, de aspectos múltiplos de uma realidade complexa,

que só adquirem sentido se forem religados a esta realidade em vez de

ignorá-la. (MORIN, 2009, p. 48)

Em cada ciência alguma resposta, ainda que provisória, é dada para a pergunta sobre o

que somos. No entanto, boa parte das vezes essas respostas não dialogam, cada área dando

respostas distintas. É preciso colocar essas respostas em diálogo, compará-las, questionar suas

concordâncias e discordâncias. Não será possível que as ciências sociais e naturais possam

ajudar a compreender a natureza humana, e então melhor fundamentar outras conclusões?

Nesse sentido, será que descobertas nas ciências naturais não poderiam melhor fundamentar

estudos das ciências sociais, tais como quanto à origem do Estado?

Partindo dessa hipótese, apresentaremos a relação entre filosofia política e natureza

humana por meio de alguns autores clássicos como Aristóteles, Maquiavel, Hobbes e

Rousseau, demonstrando a conexão entre o humano e a origem do Estado presente nos

mesmos. Depois, demonstraremos a importância dessa pergunta em diversos outros campos

do saber, em especial em algumas ciências naturais. Por fim, defenderemos que o diálogo

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entre as ciências naturais e sociais deve ser aprofundado, considerando os avanços hodiernos,

no sentido de uma melhor fundamentação do conceito de natureza humana, necessário aos

estudos sobre a origem do Estado.

2 A NATUREZA HUMANA E O PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO: UMA BREVE

APRESENTAÇÃO

O conceito de natureza humana é complexo e fundamental na história do pensamento

filosófico. Uma concepção de humanidade determina os caminhos e descaminhos de um

filósofo, e em nenhuma área da filosofia é possível eximir-se da discussão sobre o sujeito que

filosofa ou teoriza. Diz Francis Wolff, Professor da Ècole Normale Supérieure:

Pois à pergunta ‘O que é o homem?’ depende, talvez, tudo o que podemos

conhecer e tudo o que devemos fazer. [...] No fundo, é o que afirmava Kant.

Para ele, as interrogações humanas fundamentais são as seguintes: ‘O que

posso saber?’ (questão metafísica); ‘o que devo fazer?’ (questão moral); ‘O

que posso esperar?’ (questão religiosa). Todas eles dependem, porém, de

uma quarta: ‘O que é o homem?’ (WOLFF, 2012, p. 8)

Não só para as teorias filosóficas essa concepção é fundamental. Como afirma

Stenvenson:

Há muitas coisas que dependem de nossa concepção da natureza humana:

(...) no caso das sociedades humanas, rumo a que visão de comunidade

humana podemos esperar caminhar ou que tipo de mudanças sociais

deveríamos fazer. Nossas respostas a todas essas perguntas tão complexas

dependem de pensarmos se existe ou não alguma natureza ‘verdadeira’ ou

‘inata’ dos seres humanos. (STEVENSON, 2005, p. 5)

A pergunta sobre o que é o homem está implícita na filosofia como uma questão

originária. Da reflexão de si se torna possível a reflexão do mundo. Desde o surgimento da

filosofia é preciso partir de alguma acepção do ser humano, mas, assim como todas as outras

acepções centrais da filosofia, esta não se encontra pacificada. É sobretudo na contraposição

entre transcendência ou idealismo e imanência ou materialismo que a resposta sobre o que

somos vem sendo formulada.

Na maior parte dos mitos e religiões há uma concepção humana transcendente ou

idealista, que se transferiu para a filosofia tornando-se ponto de partida de grandes filósofos

da história. Essa concepção compreende a essência do ser humano como algo para além da

corporeidade: existe um algo que sobrevive ao desgaste e morte do corpo, convencionalmente

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chamado de espírito ou alma. Essa teoria é no fundo a teoria oficial da filosofia e da história

da filosofia ocidental, como nos alerta Onfray:

Platão reina então como mestre porque o idealismo, fazendo os gatos

mitológicos serem tomados por lebres filosóficas, permite justificar o mundo

como está, convidar a se desviar do cá embaixo, da vida, deste mundo, da

matéria do real, para ficções com as quais se compõem as histórias para

crianças a que se reduzem todas as religiões: um céu das idéias puras que

escapa ao tempo, à entropia, aos homens, à história, um além-mundo

povoado de sonhos aos quais se atribui mais realidade do que ao real, uma

alma imaterial que salva os homens do pecado de encarnação, uma

possibilidade para o homo sapiens que consagra escrupulosamente toda sua

vida a morrer enquanto vivo, de conhecer a felicidade angélica de um

destino post-mortem – e outras tolices que constituem uma visão de mundo

mitológica na qual muitos ainda estão estagnados. (ONFRAY, 2008, p. 16)

Contrapondo-se à concepção transcendente ou idealista encontra-se a visão imanente

ou materialista da natureza humana, que afirma não existir a alma ou uma essência

extramundana. Há a corporeidade, o mundo material, o ser humano material. Essa posição é

renegada ao longo da história da filosofia, sobretudo devido à sombra platônica sobre as

reflexões e às influências do pensamento religioso sobre a filosofia. A visão de oposição se

faz como uma “(…) filosofia que não se constitui contra o corpo, a despeito dele ou sem ele,

mas com ele.” (ONFRAY, 2008, p. 22). A imanência da humanidade transfere a discussão

sobre ela para a realidade material, compreendendo que não faz sentido buscar uma resposta

transcendente.

Partiremos, portanto, na busca pela visão imanente da humanidade, numa tentativa de

resgatar a importância da materialidade na filosofia e na compreensão da ação do ser humano

no mundo.

2.1 RELAÇÕES ENTRE A ORIGEM DO ESTADO E A NATUREZA HUMANA NOS ESTUDOS DE

FILOSOFIA POLÍTICA E DO ESTADO

O sujeito é o único que pode agir politicamente e socialmente. A natureza humana é,

portanto, ponto de partida para compreender a política e o Estado. A discussão sobre o que é o

humano não passou despercebida pelos autores fundamentais da política e do Estado.

A ideia de natureza humana possuirá, ao longo da trajetória do pensamento

ocidental, estreita ligação com a política. Para vários filósofos políticos é a

natureza humana que estabelece o formato do Estado que se deseja construir,

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o mesmo acontecendo em relação à tarefa de explicar a origem do estado.

(GUANABARA, 2009, p. 36)

A discussão da natureza humana está cravada no início do pensamento político e sobre

o político e o Estado, e pode ser encontrada desde o pensamento grego, cruzando todo o

pensamento ocidental sobre o assunto. Como diz Roger Masters: “A natureza humana tem

sido a fundação do pensamento político desde que os filósofos da Grécia Antiga

desenvolveram o conceito de natureza como o conhecemos no Ocidente” (MASTERS, 1990,

p. 95)1.

Não só a natureza humana, mas a relação entre ela e a origem do Estado está presente

nos autores clássicos. Aristóteles, por exemplo, diz que

É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem

é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que

aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa

de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. (...)

Evidentemente, o Estado está na ordem da natureza antes do indivíduo;

porque, se cada indivíduo isolado não basta a si mesmo, assim também se

dará com as partes em relação ao todo. Ora, aquele que não pode viver em

sociedade, ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio, não faz parte do

Estado; é um bruto ou um deus. (ARISTÓTELES, 2009, p. 16-17)

É evidente para Aristóteles essa relação entre a natureza humana e a sociedade, e então

o Estado. Ele já

inicia a obra [A Política] discutindo acerca da origem do Estado, ou seja, da

sociedade política, e revela que tal origem remonta a leis naturais. O Estado

teria um fundamento natural, pois seria o resultado de um processo

desencadeado por força da natureza. (MACIEL, 2009, p. 11)

Ainda para Aristóteles,

o homem seria um zoon politikon, ou seja, um animal político, pois teria uma

tendência natural à vida em sociedade. Existiria na própria natureza humana

um desejo de viver em sociedade, responsável pela reunião de muitas

famílias e a formação do pequeno burgo. (ARISTÓTELES, 2009, p. 11)

Percebe-se a relação entre a concepção de natureza humana para Aristóteles e o

desenvolvimento de sua filosofia política. Mas esse não é um caso isolado. Em Maquiavel,

outro autor central nos estudos da política e do Estado, o conceito de natureza humana é

central. Ele começa a obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio fazendo um

diagnóstico do humano como um ponto de partida óbvio e inquestionável:

Ainda que, devido à natureza invejosa dos homens, sempre tenha sido tão

perigoso encontrar modos e ordenações novos quanto procurar águas e terras

1

Original: “Human nature has been at the foundation of thinking about politics since the ancient Greek

philosophers developed the concept of nature as we know it in the West.”. Tradução Livre.

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desconhecidas - por estarem os homens sempre mais prontos a censurar do

que a louvar as ações alheias -, assim mesmo, levado pelo natural desejo que

em mim sempre houve em trabalhar, sem nenhuma hesitação, pelas coisas

que me pareçam trazer benefícios a todos (...)(MAQUIAVEL, 2007a, p. 5)

Para ele, a imagem do ser humano é pessimista.

Eis, portanto, o diagnóstico maquiaveliano: os homens não são bons, e tal

situação inviabiliza a bondade permanente como política de Estado. […] O

pessimismo acerca da natureza humana será tema constante em todos os

escritos de Maquiavel. ( GUANABARA, 2009, p.36-37)

Como o ser humano, segundo ele, comete vícios sem podê-los evitar, é melhor que os

governantes sejam temidos que amados, resguardando o governo e sendo cauteloso com a

tendência a trair, mentir e enganar.

Assim, um príncipe prudente não pode, nem deve, guardar a palavra dada,

quando isso se torna prejudicial ou quando deixem de existir as razões que o

haviam levado a prometer. Se os homens fossem todos bons, esse preceito

não seria bom, mas, como são maus e não mantêm sua palavra para contigo,

não tens também que cumprir a tua. (...) Assim, deves parecer clemente, fiel,

humano, íntegro religioso – e sê-lo, mas com a condição de estares com o

ânimo disposto a, quando necessário, não o seres, de modo que possas e

saibas como tornar-te o contrário. (Maquiavel, 2007b, p. 84-85)

Não só é fundamental a um príncipe ter em mente a natureza corruptível e corrompida

do ser humano, mas o próprio poder político deriva, fundamentalmente, dessa natureza vil.

O poder político tem, pois, uma origem mundana. Nasce da própria

“malignidade” que é intrínseca à natureza humana. Além disso, o poder

aparece como a única possibilidade de enfrentar o conflito, ainda que

qualquer forma de “domesticação” seja precária e transitória. Não há

garantias de sua permanência. A perversidade das paixões humanas sempre

volta a se manifestar, mesmo que tenha permanecida oculta por algum

tempo. (SADEK, 1989, p. 20)

Dentro da filosofia política, contudo, o debate mais proeminente que tem como pano

de fundo diferentes concepções de natureza humana é o travado entre Hobbes e Rousseau.

Hobbes é um importante pensador do século XVII que desperta o interesse de estudiosos de

diversas áreas, tais quais política, direito, teologia e história. Em sua teoria política, embora o

Leviatã deva “ser compreendido como símbolo político-religioso que funda uma teoria

moderna do Estado a partir de mitos e imagens sagradas”, ainda assim “não há espaço para

verdades transcendentais, emanadas da vontade divina, da tradição do conhecimento dos

antepassados ou razão como potência reveladora de essências”. (BRANCO, 2009, p. 50-52)

Isso significa que, embora reconheça o poder da simbologia na concepção do Estado, Hobbes

parte de uma visão materialista do mundo e da política.

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Assim também o é sua concepção de humanidade. Claramente negativo e pessimista

com relação aos homens e mulheres,

Ao pintar um retrato em que se revelam a miséria cognitiva e a pujança das

paixões humanas, Hobbes procura despir o mundo de qualquer significado

extrínseco ao homem, de modo que a religião, o poder, a política e o Estado

são forjados pelo homem e não mantém nenhuma relação com poderes

invisíveis de outro mundo. (BRANCO, 2009, p. 51)

Nas palavras de Hobbes:

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do

espírito, que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais

forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando

se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não

é suficientemente considerável para que um deles possa com base nela

reclamar algum benefício a que outro não possa igualmente aspirar. (...)

Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança

de atingirmos os nossos fins. (HOBBES, 2008, p. 106-107)

Essa igualdade não é uma igualdade absoluta, ele afirma que somos “iguais o bastante

para que nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro” (RIBEIRO, 1989, p. 55). E é

dessa percepção da igualdade perante os outros que surge a necessidade de um Estado. Antes

da existência do Estado2, há para Hobbes o estado de natureza, em que há guerra e caos,

motivados pela natureza negativa da humanidade. Hobbes é um contratualista,

quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII

(basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está

num contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem

organização – que somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles,

estabelecendo as regras de convívio social e de subordinação política.

(RIBEIRO, 1989, p. 53)

O contrato firmado visa garantir a segurança e a estabilidade do grupo organizado.

Esse momento originário do Estado é feito não por selvagens ou seres que, pela própria

incapacidade de socializarem-se, seriam logicamente incapazes de iniciarem um agrupamento.

É fundamental compreender que

(...) o homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que

vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda

conforme o tempo, ou a história, ou a vida social. Para Hobbes, como para a

maior parte dos autores de antes do século XVIII, não existe a história

entendida como transformando os homens. Estes não mudam. (RIBEIRO,

1989, p. 54)

2 Não adentraremos na discussão sobre o estado de natureza ter existido de fato ou ser apenas um pressuposto

teórico para Hobbes ou qualquer outro autor contratualista.

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É, portanto, devido a esse reconhecimento da igualdade de condições e da perenidade

da natureza humana que surge o Estado. Na sua obra Leviatã, Hobbes apresenta três

principais causas de contenda:

De forma que na natureza do homem encontramos três causas principais de

discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a

glória. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro;

a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a

violência para se tornarem senhores de pessoas, mulheres, filhos e rebanhos

dos outros homens; os segundos, para defenderem-nos; e os terceiros, por

ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente, e qualquer

outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigidio às suas pessoas, quer

indiretamente aos seus parentes, amigos, nação, profissão ou ao seu nome.

(HOBBES, 2008, p. 108)

Há íntima relação entre as duas primeiras causas. A competição leva o ser humano a

atacar outro pela busca de recursos. A difidência ou desconfiança surge, portanto, através do

medo que um sujeito tenha de perder por meio de um ataque os recursos que possui, sentindo-

se motivado a atacar de forma preventiva. Note-se, no entanto, que surge um círculo vicioso:

alguém, com medo de ser atacado, tenderá a atacar primeiro, preventivamente. O outro,

porém, sabendo desse risco, tenderá a fazer um ataque preventivo ainda anterior. Para escapar

dessa escalada de violência, pode-se usar uma “política de dissuasão”:

não ataque primeiro; seja forte, o suficiente para sobreviver a um primeiro

ataque e retalie no mesmo grau contra qualquer agressor. Uma política de

dissuasão que tenha credibilidade pode remover o incentivo do competidor a

invadir pelo ganho, pois o custo imposto pela retaliação anularia para ele as

vantagens previstas. (PINKER, 2013, p. 71)

No entanto, não é difícil concluir que essa política de dissuasão é frágil. Qualquer

gesto mínimo de desrespeito ou ameaça poderá levar rapidamente a escaladas de retaliações,

trazendo à tona, mais uma vez, a violência generalizada. A resposta final que Hobbes dá a

esse problema é a instituição de um Leviatã, um Estado soberano que terá poder total e será

responsável por proteger a vida dos indivíduos a ele submetidos. Caberá a ele, terceiro

desinteressado, o papel de solucionador de conflitos, interrompendo a cadeia de eventos da

armadilha hobbesiana.

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de os defender das

invasões dos estrangeiros e dos danos uns dos outros, garantindo-lhes assim

uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labior e graças aos

frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua

força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa

reduzir todas as suas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.

(HOBBES, 2008, p. 147)

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Então, Hobbes “acreditava que as pessoas só poderiam escapar dessa existência

infernal entregando sua autonomia a uma pessoa ou assembleia soberana” (PINKER, 2013, p.

26). Percebe-se a concepção de natureza humana e a origem do Estado dela proveniente

negativos e calcados num pessimismo realista, e “porque apresenta o Estado como

monstruoso, e o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do

bom governante (comparado a um pai) e do indivíduo de boa natureza” pode-se dizer que

“Hobbes é, com Maquiavel e em certa medida Rousseau, um dos pensadores mais ‘malditos’

da história da filosofia política – pois, no século XVII, o termo ‘hobbista’ é quase tão

ofensivo quanto ‘maquiavélico’” (RIBEIRO, 1989, p. 76) 3

.

Já Rousseau é um importante pensador do século XVIII, e grande representante do

Iluminismo. Suas ideias transitam entre a teoria política e a pedagogia. “Sem pretender dar-

nos sermões, Rousseau deixou-nos trabalhos exemplares em vários domínios, da música à

política, passando pela produção de peças de teatro” e de literatura (NASCIMENTO, 1989, p.

191). Todo o seu arcabouço teórico certamente é influenciado pela sua concepção do que é o

ser humano. Logo no início da obra Discursos sobre a Origem e os Fundamentos da

Desigualdade entre os Homens Rousseau relaciona a questão da natureza humana com sua

própria teoria política: “É do homem que tenho de falar” (ROUSSEAU, 2009a, p. 31). Não

apenas nessa, como em outra de suas obras políticas basilares, O Contrato Social, ele começa

fazendo um diagnóstico da condição humana para depois derivar sua teoria: “O homem

nasceu livre e por toda parte está agrilhoado” (ROUSSEAU, 2003, p. 9). Para Rousseau, o

ser humano é maleável, sua natureza é fluida e é a partir desse diagnóstico da humanidade que

ele desenvolve suas ideias. Respondendo a um opositor que teria dito a ele que a sociedade

era fruto da natureza humana e de Deus, Rousseau ironiza:

Dizeis que o homem é tal como exige o lugar que ele deve ocupar no

universo. Mas os homens diferem tanto de acordo com os tempos e os

lugares que, com tal lógica, estaríamos sujeitos a extrair, a partir do

particular para o universal, consequências bastante contraditórias e bem

pouco conclusivas. (...) Quando se trata de raciocinar sobre a natureza

humana, o legítimo filósofo não é nem índio, nem tártaro, nem genebrino, e

tampouco de Paris, mas sim homem. (ROUSSEAU, 2009b, p. 127)

Assim como em Hobbes, é fundamental em Rousseau entender o seu estado de

natureza. Nesse estado inicial, o ser humano não sente necessidade de estabelecer vínculos

sociais.

3 O autor afirma que o fato de Hobbes negar um direito natural do indivíduo à sua propriedade é outro fator

importante para que ele seja malquisto na história da filosofia política. Contudo, essa questão não é do escopo

desse trabalho, razão pela qual preferimos suprimi-la.

435

Parece, à primeira vista, que os homens nesse estado, não tendo entre si

nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam

ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes (...). Não vamos

principalmente concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma idéia de

bondade, o homem seja naturalmente mau (...) de sorte que se poderia dizer

que os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser

bom. Com efeito, não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei,

mas a calma das paixões e a ignorância do vício que os impedem de fazer

mal (...) ( ROUSSEAU, 2009a, p. 51-52)

No estado de natureza, ou estado anterior à sociedade,

O homem se relaciona instintivamente com a natureza e dela retira a

sobrevivência. E outros homens fazem parte dessa natureza e se comportam

da mesma maneira. Os vínculos sociais, além de inexistentes, não são

necessários. E, mesmo isolado, o homem vive feliz, naturalmente em paz,

totalmente de acordo com sua natureza. No estado de natureza, portanto, o

homem é “bom” porque não conhece o “mau”.(ROMÊO, 2009, p. 157)

O ser humano “é naturalmente bom” (ROUSSEAU, 2009a, p. 99), mas através de

vínculos sociais e os vícios daí decorrentes é corrompido. Todos nascem bons, mas é na

criação e nas relações que se origina a maldade.

Tanto no Emílio quanto no Contrato Social, ambos publicados em 1762, a

motivação de Rousseau era a mesma, qual seja, com base no conhecimento

de como foi estabelecida a vida social, reformular os valores humanos e, por

fim, propor a reconstrução das relações sociais em acordo com a natureza

humana ((ROUSSEAU, 2009a, p. 153)

Para Rousseau, só é possível a sociedade porque a natureza humana é maleável, a

“natureza humana é mutável, e, assim o sendo, resta saber o que ocasionou a mudança.”

(ROUSSEAU, 2009a, p. 158) O estado de natureza rousseauniano divide-se em dois

momentos: o primeiro em que havia isolamento, e o segundo no qual a proximidade e a

linguagem levaram os homens e as mulheres a estabelecerem o contrato social, buscando o

progresso através das diferenciações. (ROUSSEAU, 2009a, p. 158-165).

Percebe-se a diferença da concepção de estado de natureza em ambos os

contratualistas. Se para o primeiro o estado de natureza é belicoso e a sociedade e a política o

pacificam, para o segundo o estado de natureza é bucólico e a sociedade e a política o

corrompem. É fácil apontar a relação desta contraposição com a diferença de concepção da

humanidade. No primeiro, o ser humano é mal e precisa ser contido, no segundo o ser humano

é bom, mas é corrompido no convívio. Apesar de expressarem “quadros contrastantes do

estado de natureza que tem inspirado pensadores de séculos posteriores”, ainda assim “as

ideias de Hobbes e Rousseau não são tão díspares”, já que ambos acreditam na

fundamentação da sociedade e do Estado por meio de um contrato social, no qual está

materializada a vontade coletiva ou geral (PINKER, 2013, p. 27).

436

Mais importante do que delinear a concepção de natureza humana em cada um desses

autores, é perceber o quanto essa discussão interfere na teoria política clássica. Seria possível

fazer uma digressão infinita por toda a história do pensamento político ocidental

demonstrando o conceito de natureza humana e a relação deste com o surgimento do Estado

em cada autor. Contudo, a proposta aqui é apenas a de exemplificar, por meio de quatro

autores centrais no pensamento político, a relação entre natureza humana e Estado.

3 DIALOGANDO CIÊNCIAS: O NATURAL E O SOCIAL

É difícil imaginar como discutir os limites do conhecimento humano sem compreender

os limites do próprio humano. A ciência se dá dentro dos limites da racionalidade humana, e

somente pelo reconhecimento da capacidade e limites da cognição que se pode supor ser

possível reconhecer e conhecer o mundo.

A epistemologia tem necessidade de encontrar um ponto de vista que possa

considerar nossa própria consciência como objeto de conhecimento, isto é-,

um metaponto de vista, como no caso em que uma metalinguagem se

constitui para considerar a linguagem feita objeto. Ao mesmo tempo, esse

metaponto de vista deve permitir a autoconsideração crítica do

conhecimento, enriquecendo ao mesmo tempo a reflexidade do sujeito

conhecedor. (MORIN, 2011, p. 44)

Para que se possa reconhecer o que é a ciência, seus limites e suas divergências, o

diálogo entre as ciências é imprescindível. A realidade é um fenômeno complexo que

acontece à revelia da nossa sistematização. Insistimos num paradigma simplificador que, por

isso mesmo, é falho. O ser humano ainda é, certamente, o melhor exemplo dessa

simplificação estéril. Diz Morin:

Tomemos como exemplo o homem. O homem é um ser evidentemente

biológico. É ao mesmo tempo um ser evidentemente cultural, metabiológico

e que vive num universo de linguagem, de ideias e de consciência. Ora, estas

duas realidades, a realidade biológica e a realidade cultural, o paradigma de

simplificação nos obriga a disjuntá-las ou a reduzir o mais complexo ao

menos complexo. Vamos, pois, estudar o homem biológico no departamento

de biologia, como um ser anatômico, fisiológico etc. e vamos estudar o

homem cultural nos departamentos das ciências humanas e sociais. Vamos

estudar o cérebro como o órgão biológico e vamos estudar a mente, the

mind, como função ou realidade psicológica. Esquecemos que um não existe

sem o outro, ainda mais que um é a outra ao mesmo tempo, embora sejam

tratados por termos e conceitos diferentes. (MORIN, 2011, p. 59)

437

A realidade não é segmentada. Ela se dá de forma completa e complexa, sem divisões

disciplinares ou conceituais. Universo e átomo, homem e animal, social e biológico, tempo e

espaço, objeto e sujeito, essas categorias conceituais confundem-se no aqui e agora,

superpondo-se, integrando-se. Ordem (cosmos) e desordem (caos) fazem parte do próprio

devir do mundo.

A racionalidade humana exige uma simplificação ordenadora: é preciso dividir para

que se mantenha firme a pretensão científica de esgotar o assunto, os objetos, a realidade. A

realidade, no entanto, teima em existir para além do etiquetamento. As delimitações dos

objetos são artificiais, não-ontológicas. As etiquetas são artifícios mentais, necessidades da

razão, cabides nos quais se torna possível vislumbrar as regras, as leis do mundo. “O universo

é muito mais rico do que podem conceber as estruturas de nosso cérebro, por mais

desenvolvido que ele seja” (MORIN, 2011, p. 49). Diante dessa dificuldade, torna-se

imperioso analisar as partes do mundo, dividi-lo, decompô-lo. Essa análise torna o mundo

inteligível.

O conhecimento seguiu um curso de sistematização e disciplinarização que encontrou

seu apogeu na modernidade recente.

O conhecimento clássico e medieval não estabelecia nenhuma separação

radical entre os vários mundos possíveis que eram objeto de pesquisa e

reflexão. Havia sim hierarquias, entre as diversas áreas de conhecimento,

mas não hiatos intransponíveis. (LEIS, 2004, p. 40).

Na modernidade, viu-se não apenas um crescimento exponencial de métodos e

técnicas, mas uma explosão de ciências e ramos que colaborou no processo de segmentação

da realidade.

Nossa formação escolar e, mais ainda, a universitária nos ensina a separar os

objetos de seu contexto, as disciplinas umas das outras para não ter que

relacioná-las. Essa separação e fragmentação das disciplinas é incapaz de

captar ‘o que está tecido em conjunto’, isto é, o complexo (...) (MORIN,

2009, p. 18)

Mas é preciso encontrar os pontos de interseção, sobretudo para que as ciências desenvolvam-

se de maneira integrada e colaborativa. Esse debate é especialmente frutífero para as ciências

sociais, como veremos mais à frente.

3.1 O PROBLEMA DA CISÃO ENTRE AS CIÊNCIAS SOCIAIS E AS CIÊNCIAS NATURAIS

438

Para além de sua existência como pano de fundo da epistemologia e da ciência, a

natureza humana é o objeto direto de diversas ciências. Diversas ciências esbarram nessa

discussão ou a tomam como ponto de partida. E várias delas vêm conseguindo alguns

avanços, obtendo dados, desdobrando a pergunta. Estudos

e investigações provenientes da ciência cognitiva, da neurociência cognitiva,

da genética do comportamento, da primatologia da psicologia evolucionista,

entre outras,(...) buscam entender em que consiste nossa natureza.

(FERNANDEZ, 2008b, p. 105)

Nas ciências sociais, contudo, essa discussão é feita na comparação entre os autores da

área. Em nenhum momento questiona-se a validade científica dos conceitos de humanidade.

São abstrações, concepções metafísicas, pressupostos teóricos. A partir dessas abstrações

constroem-se grandes monumentos teóricos e toda a Ciência Política e do Estado. É preciso

indagar, no entanto, se as concepções de política e do Estado não podem ser favorecidas por

diversos desses estudos. Diz Masters:

Ao invés de formular hipóteses e submetê-las a testes empíricos, as teorias

políticas no século XX tem sido vistas como um estudo de ideias e história

dos famosos pensadores que escreveram sobre natureza humana e política

(MASTERS, 1990, p. 195) 4.

Historicamente, as ciências sociais vêm de um processo de tentativa de delimitação de

sua ciência, excluindo para tanto as pequenas invasões dos outros campos do saber. Acontece

que os pesquisadores das ciências humanas “tendem a ficar longe das preocupações das

ciências naturais, sem perceber quanto essa atitude deriva dos traumas de seu nascimento”

(LEIS, 2004, p. 41). Na busca pela delimitação e fortalecimento como um ramo independente

de ciência, as ciências sociais ou humanas buscaram erigir muros que impedissem a invasão

pelas ciências naturais.

Com exceção talvez da economia, todas as outras ciências sociais e

humanas, incluindo a antropologia, a psicologia, a história, a filosofia, talvez

no afã de se constituírem em saberes com seus próprios padrões de

excelência científica e metodológica, ignoraram que a espécie humana, e

mais agudamente as ações humanas, são o resultado da interação específica

entre, de um lado, cenários e situações sociais e históricas específicos, e, de

outro, indivíduos constituindo espécies biológicas, indivíduos que

dependem, para interagir socialmente, de um órgão diferenciado na

economia do corpo: o cérebro (WAIZBORT, 2008, p. 252)

O ser humano é a base da pesquisa nas ciências sociais. Nesse sentido, não é possível separar

o social daquilo que o compõe: o próprio sujeito.

4 Original: “Instead of formulating hypotheses and subjecting them to empirical tests, political theory in the

twentieth century has generally been viewed as a study of the ideas and history of famous thinkers who wrote

about human nature and politics”. Tradução Livre.

439

Não parece efetivamente coerente construir uma ciência isolada, que parte de

abstrações teóricas enquanto outras ciências chegam a conclusões empíricas sobre o objeto

em questão. O diálogo entre as ciências sociais e as ciências da natureza é permeado de

incompreensões e preconceitos. Há muito que a simples afirmação de que existe uma natureza

humana biologicamente fundamentada é combatida veementemente.

A incapacidade de grande parte das ciências humanas e sociais para se

aproveitarem dos descobrimentos derivados das ciências biológicas

contemporâneas está associada à crença de que a cultura é a única “natureza

humana” existente ou de que a cultura determina e explica tudo (crença

plenamente reforçada no senso comum emergente na segunda metade do séc.

XX, que definiu como politicamente correto evitar qualquer contaminação

com preconceitos biologicistas) (LEIS, 2006, p. 32)

Além da necessidade de delimitação, há outros motivos para esse isolacionismo

prejudicial. Um deles é a ignorância quanto ao tema. Na obra Tábula Rasa, Steven Pinker

afirma que há uma teoria oficial. Essa teoria oficial, preconizada e difundida por teóricos de

diversos campos das humanidades, é a da tábula rasa, ou seja, a de que nascemos livres de

inclinações ou tendências e que a experiência, a sociedade ou a educação seriam responsáveis

por moldar o indivíduo que nos tornaríamos.

Durante o século passado, a doutrina da tábula rasa norteou os trabalhos de

boa parte das ciências sociais e humanidades. Como veremos, a psicologia

procurou explicar todo pensamento, sentimento e comportamento com

alguns mecanismos simples de aprendizado. As ciências sociais procuraram

explicar todos os costumes e disposições sociais como um produto da

socialização das crianças pela cultura circundante: um sistema de palavras,

imagens, estereótipos, modelos e contingências de recompensa e punição.

(PINKER, 2004, p. 24)

Pinker diz que, atrelados ao conceito de tábula rasa, há ainda outras duas importantes

doutrinas da teoria oficial: a do bom selvagem, e a do fantasma da máquina. A primeira

doutrina “capta a crença de que os seres humanos em seu estado natural são altruístas,

pacíficos e serenos, e que males como a ganância, a ansiedade e a violência são produtos da

civilização.” (PINKER, 2004, p. 25). A segunda é a dualidade corpo e alma, que faz surgir

uma instância transcendente que habita o corpo material, um fantasma que ocupa a máquina.

Embora essas três doutrinas, que encontram representação nas teorias por ele enumeradas:

empirismo, romantismo e dualismo sejam “logicamente independentes”, na prática são

correlacionadas (PINKER, 2004, p. 28). Foi a ideia de tábula rasa que guiou as pesquisas das

ciências sociais, que “procuraram explicar todos os costumes e disposições sociais como um

produto da socialização das crianças pela cultura circundante” (PINKER, 2004, p. 24).

440

Essa é a descrição da natureza humana aberta, ou de uma não natureza humana, ou

ainda de uma humanidade que se constrói apenas na prática social.

Os modelos explicativos dominantes nas ciências sociais impedem,

precisamente, de fazer a ponte com pesquisas que negam o senso comum

vigente, o qual pretende que os seres humanos nascem sem qualquer

instrução ou característica congênita codificada na sua natureza, sendo

moldados apenas pelo ambiente e pela educação. Neste caso, tudo seria

construção. (LEIS, 2006, p. 32).

Para Pinker, a ideia que se opõe à tábula rasa e à qual ele se filia é a de uma natureza humana

que possui ao menos minimamente estruturas inatas em sua composição. Para ele,

a mente é equipada com uma bateria de emoções, impulsos e faculdades para

raciocinar e comunicar, que têm uma lógica comum a todas as culturas, são

difíceis de apagar ou redesenhar a partir do zero, foram moldadas pela

seleção natural atuando ao longo da evolução humana e devem parte de sua

estrutura básica (e parte de sua variação) a informações do genoma.

(PINKER, 2004, p. 111)

Atahualpa Fernandez completa

Dito com outras palavras mais simples, nosso programa genético torna

possível o desenvolvimento de um cérebro dotado de umas emoções e umas

capacidades de aprendizagem que foram premiadas pela seleção natural.

(FERNANDEZ, 2008a, p. 20)

Essa última posição pode ser compreendida de forma mais refinada na categorização

de Matt Ridley. Para ele, essa diferenciação entre natureza e criação é vazia e não contempla

o cerne daquilo que nos faz humanos. Para ele, “[n]ão é mais uma questão de natureza versus

criação, mas de natureza via criação.” (RIDLEY, 2013, p. 12). Isso quer dizer que o debate

não deve estar centrado na discussão sobre a influência ambiental/social ou genética/natural.

É impossível dividir e estancar cada parte: o que é social e o que é natural não são

diferenciáveis, são partes de uma mesma coisa chamada humano.

Na verdade, a natureza humana é uma combinação dos universais de

Darwin, da hereditariedade dos Galton, dos instintos de James, dos genes de

De Vries, dos reflexos de Pavlov, das associações de Watson, da história de

Kraepelin, da experiência formativa de Freud, da cultura de Boas, da divisão

de trabalho de Durkheim, do desenvolvimento de Piaget e do imprinting de

Lorenz. Você pode encontrar todas essas coisas na mente humana. Nenhum

relato da natureza humana seria completo sem todas elas. (RIDLEY, 2013, p.

15)

Então, ao postularem influências e relações biológicas para o comportamento e a

definição do humano, poucos cientistas se aventuram a defender que a biologia é razão

determinante e suficiente. Quando as discussões se aventuram a roçar a temática da genética,

então, as incompreensões chegam a tornar quase impraticável o debate. Isso porque, na maior

441

parte das vezes, as pesquisas são alardeadas como se fossem definitivas e acachapantes,

enquanto na verdade são boas hipóteses sobre as quais dificilmente se extrapola para

conclusões afirmativas e genéricas como sobre a essência do ser humano ou sua total

determinação.

A biologia contemporânea demonstra que as características dos animais não

são fixas e não-afetadas pelo ambiente ou pela história de vida. Nem se pode

assumir que os tratos identificados pelo observador são mutuamente

excludentes. Humanos- assim como quaisquer animais – são altamente

variados e passíveis de apresentar traços contraditórios. (MASTERS, 1989,

p. 1) 5

Os estudos sobre a natureza humana não excluem os efeitos do ambiente, da cultura,

das sociedades, muito menos desconsidera os contraditórios e a imensidão que é aquilo que

somos. Tampouco é preciso derivar desses estudos prescrições no campo da ética e da moral.

O pavor de uma natureza humana permanentemente perversa assume duas

formas. Uma delas é um medo prático: o de que a reforma social seja perda

de tempo porque a natureza humana é imutável. A outra é uma preocupação

mais profunda, nascida da crença romântica de que o que é natural é bom.

(PINKER, 2004, p. 224)

Essa ideia de que o que é natural é também positivo é equivocada. A naturalidade de

um comportamento não reafirma sua validade ética ou moral. Não há nada no estudo do que é

o ser humano que ateste que não possam existir parâmetros de conduta que se choquem com

tendências do indivíduo. Essa ideia esconde uma acepção essencialista do ser humano, a de

que as ciências da natureza humana estão descobrindo o que somos e que isso é imutável.

Outra razão para a dificuldade do diálogo está nas benesses advindas da concepção

errônea do ser humano como uma tábula rasa, uma folha em branco na qual sociedade e

educadores podem escrever livremente sobre qualquer assunto, resguardando a esperança de

que é possível mudar o status quo através das palavras certas. Isso se deu não só como forma

de alçar a cultura e a sociedade como razões suficientes para a conformação humana, mas

também como forma de legitimar ideologias e avanços éticos. De acordo com Pinker,

A tábula rasa também serviu de sagrada escritura para crenças políticas e

éticas. Segundo a doutrina, toda diferença que vemos entre raças, grupos

étnicos, sexos e indivíduos provém não de diferenças em sua constituição

inata, mas de diferenças em suas experiências. Mudando as experiências –

reformando o modo de criar os filhos, a educação, a mídia e as recompensas

sociais – podemos mudar a pessoa. (PINKER, 2004, p. 24)

5 Original: “Contemporary biology shows that the characteristics of an animal are not fixed and unaffected by its

setting or life history. Nor can it be assumed that traits identified by the observer will be mutually exclusive.

Humans- like other animals – are highly variable and likely to show contradictory traits.” Tradução Livre.

442

Ainda ele: “ [d]e modo mais geral, cientistas sociais viam a maleabilidade dos seres humanos

e a autonomia da cultura como doutrinas que poderiam concretizar o imemorial sonho da

humanidade perfeita.” (PINKER, 2004, p. 50).

Por fim, há o medo histórico das pesquisas e dos resultados dessas pesquisas

assumidos por ideologias políticas que vão de encontro à democracia e a valores humanos.

As mais repugnantes associações de uma concepção biológica da natureza

humana são com o nazismo. Embora a oposição à idéia de uma natureza

humana tenha começado décadas antes, os historiadores concordam que

lembranças amargas do Holocausto foram a principal razão de a natureza

humana ter se tornado tabu na vida intelectual depois da Segunda Guerra

Mundial. (PINKER, 2004, p. 216)

Mas não é apenas na afirmação da existência de fatores inatos que é possível embasar a

execução de atrocidades. É possível encontrar, na história, eventos igualmente horrendos

baseados na teoria oficial, da tábula rasa.

O Holocausto nazista (…) não foi o único holocausto inspirado na ciência no

século XX, e os intelectuais estão apenas começando a assimilar as lições

dos outros: as chacinas em massa na União Soviética, China, Camboja e

outros Estados totalitários perpetradas em nome do marxismo. (PINKER,

2004, p. 218)

Percebe-se, portanto, que, “embora tanto a ideologia nazista como a marxista

conduzissem à matança em escala industrial, suas teorias biológicas e psicológicas eram

opostas” (PINKER, 2004, p. 218). Ainda que seja em nome de objetivos nobres e com vistas

à manutenção de valores, os riscos inerentes a esse isolacionismo superam em grande medida

os riscos de uma interação informada.

Concepções diferentes da natureza humana levam a ideias distintas sobre o

que devemos fazer e como podemos fazer. Se um Deus todo-poderoso e

supremamente bom nos criou, então é Seu propósito que define o que

podemos ser e o que devemos fazer, e temos de buscar Sua ajuda. Se, por

outro lado, somos produtos da sociedade, e se julgamos nossa vida

insatisfatória, não pode haver uma solução real até que a sociedade humana

seja transformada. Se somos radicalmente livres e nunca podemos fugir à

necessidade da escolha individual, temos de aceitar essa condição e fazer

nossas opções com plena consciência do que fazemos. Se nossa natureza

biológica nos predispõe ou nos determina a pensar, a sentir e a agir de uma

dada maneira, temos de levar isso em conta de forma realista.

(STEVENSON, 2005, p. 7)

Diz ainda Masters:

O estudo das ciências da vida é necessário para mudar nossa compreensão da

natureza humana e da história. Pesquisas em evolução dos hominídeos,

443

etologia, neurofisiologia, sociobiologia, e linguística não podem mais ser

ignoradas por ninguém seriamente interessado em política humana e

comportamento social. O desafio é grande porque é preciso integrar biologia,

filosofia política e ciências sociais numa era de especialização acadêmica. E

o resultado será controverso porque desafia opiniões prevalecentes sobre

ciência, ética e natureza humana. (MASTERS, 1989, p. 234) 6

Não há, ao que tudo indica, uma inclinação totalitária dos próprios estudos sobre a

natureza humana. E não há nenhuma garantia que, ao partir de uma tábula rasa, chegaremos a

um ideal de política e de Estado mais ético do que se partirmos dos estudos contemporâneos

sobre o humano. No entanto, há um risco ao ignorarmos as ciências naturais de nosso tempo,

que é o de fundamentarmos teorias que não se sustentam e conceitos que já tem outros

desdobramentos científicos e, com isso, acabarmos cada vez mais distantes das conclusões de

outras áreas. Se é preciso partir de algum ponto, que seja do ponto firmemente ancorado na

realidade.

4 CONCLUSÃO

Não se pode estudar um objeto sem inquirir sobre sua origem. Do universo às

partículas, as ciências estão sempre na busca pelas razões fundantes, iniciais, estruturais. Não

apenas enquanto momento histórico, mas como um efeito que se ancora em causas. As causas

da origem do Estado devem ancorar-se no ser humano, uma vez que ele não é um dado da

natureza, mas construção humana.

O que é o ser humano é uma pergunta da qual não pode se isentar alguém que pretenda

conceber uma Ciência do Estado. A ideia de uma fundamentação transcendente vai de

encontro aos princípios da ciência. O Estado, enquanto objeto científico, precisa se encontrar

enquanto um dado da realidade. A ação humana, o comportamento humano, as instituições

humanas só podem ser pensadas dentro da pergunta do sujeito que as possibilitam. Não se

pode ter o Estado como uma excepcionalidade, um milagre, uma escapulida humana das

6 Original: “The study of the life sciences makes it necessary to change our understanding of human nature and

history. Research in hominid evolution, ethology, neurophysiology, sociobiology, and linguistics can no longer

be ignored by anyone seriously interested in human political and social behavior. The task is difficult because it

is necessary to integrate biology, political philosophy, and the social sciences in an age of academic

specialization. And the results will be controversial because they challenge prevailing opinions concerning

science, ethics, and human nature.” Tradução Livre

444

regras da natureza que nos condicionam. Nesse sentido, o estudo do Estado deve acompanhar

os estudos de outras ciências, dialogar, partir de onde já estão outros cientistas.

A natureza humana da qual se precisa partir não enrijece os estudos como releituras de

pesquisas de outras áreas. Retorna-se a uma concepção de natureza humana complexa,

multifacetada, donde indivíduo e grupo, biológico e social, são peças integrantes de um

mesmo arcabouço conceitual. E retorna-se, também, à importância do diálogo entre as

ciências. A compreensão sobre o ser humano e sobre suas instituições, como o Estado, só

pode ser completa se intercambiada. Não se pode prescindir da análise do que somos para a

compreensão do que fazemos, nem do reflexo do que fazemos sobre o que somos.

Esse estudo da origem do Estado interdisciplinar também pode ajudar a compreender

os limites e as possibilidades do Estado. Reconhecer a origem nos faz perguntar sobre o

destino, e reconhecer os limites nos faz refletir melhor sobre as projeções. É preciso ver no

Estado e na sua finalidade um reflexo do que queremos, indivíduos, sociedade ou espécie.

Essa concepção de Estado ancorada na realidade e em estudos empíricos não pode ultrapassar

seus limites através de governantes prepotentes, nem deixar de atender sua finalidade através

de governantes lenientes. Somente através do que somos, através do que o Estado é, se pode

percorrer o caminho da história. Ter consciência disso poderá fazer o caminho melhor

adaptado, e melhor o seu destino.

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