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Departamento de Filosofia 1 WITTGENSTEIN E A IMPOSSIBILIDADE DE UMA LINGUAGEM E DE UMA EXPERIÊNCIA PRIVADAS Aluno: Henrique Rondinelli Orientador: Ludovic Soutif Introdução Esta pesquisa tem como objetivo realizar uma leitura direcionada do argumento da linguagem privada, presente nas Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein. Assim sendo, será exposto o papel ficcional que a figura de uma linguagem privada cumpriu nas correntes epistemológicas fundacionalistas. A impossibilidade da linguagem privada deverá ser metodologicamente demonstrada a partir do abandono da tese de que os signos significam por meio de uma associação, o que nos engajará necessariamente em uma leitura holística das Investigações Filosóficas, de tal maneira que o argumento da linguagem privada não seja interpretado como um pontual e factual questionamento acerca do vocabulário da dor, mas como o momento mais crítico de todo texto onde as incoerências centrais da tese do significado enquanto associação são postas em evidência. Por fim, é feita uma primeira aproximação entre as semelhanças do argumento da linguagem privada e a doutrina do Mito do Dado, de Wilfrid Sellars. Daí, pretendi elucidar como ambas doutrinas compartilham do desejo de demonstrar que nenhum dado epistêmico imediato, nem mesmo as sensações aparentemente mais privadas, podem servir de fundação para o conhecimento e de embasamento para a justificação de nossas outras crenças. A crítica ao projeto fundacionalista dentro do viés da pesquisa Ainda que as principais correntes do pensamento epistemológico tradicional apresentem claras e incontáveis divergências, tal como constatamos, por exemplo, entre o projeto de atomismo lógico de Russell e o racionalismo cartesiano, há de se falar de um elemento teórico comum presente na maior parte dessas doutrinas: a crença de que todo conhecimento acerca do mundo e das coisas deve estar, em última instância, fundamentado em um conhecimento auto-justificado, imediatamente acessível ao sujeito e indubitável. Todas as correntes que compartilham desse elemento podem, então, ser chamadas de fundacionalistas. O conhecimento fundacional, então, deveria cumprir concomitantemente dois requisitos epistêmicos: ele possuiria eficácia para gerar e justificar todos os nossos outros conhecimentos e ele seria independente de qualquer outro conhecimento, sendo o mais anterior logicamente. A partir desse breve quadro do conhecimento fundacional, podemos inferir tão logo algumas incoerências: por ser um conhecimento e por ser capaz de sustentar nossas cadeias de justificações acerca de outros conhecimentos dos quais ele é a fundação, o conhecimento fundacional já deveria localizar-se dentro de nossa esfera conceitual. Todavia, a sua petição por imediatidade não permite que ele seja intermediado por nenhum conceito inferido, tais como ocorrem nas instâncias dos signos públicos que aprendemos em uma comunidade de indivíduos falantes. Daí, para preservar a imediatidade e, ao mesmo tempo, manter-se inserido na esfera conceitual de um sujeito, o conhecimento fundacional requereu uma estranha ficção

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Departamento de Filosofia

1

WITTGENSTEIN E A IMPOSSIBILIDADE DE UMA LINGUAGEM E

DE UMA EXPERIÊNCIA PRIVADAS

Aluno: Henrique Rondinelli

Orientador: Ludovic Soutif

Introdução

Esta pesquisa tem como objetivo realizar uma leitura direcionada do argumento da

linguagem privada, presente nas Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein. Assim

sendo, será exposto o papel ficcional que a figura de uma linguagem privada cumpriu nas

correntes epistemológicas fundacionalistas. A impossibilidade da linguagem privada deverá

ser metodologicamente demonstrada a partir do abandono da tese de que os signos significam

por meio de uma associação, o que nos engajará necessariamente em uma leitura holística das

Investigações Filosóficas, de tal maneira que o argumento da linguagem privada não seja

interpretado como um pontual e factual questionamento acerca do vocabulário da dor, mas

como o momento mais crítico de todo texto onde as incoerências centrais da tese do

significado enquanto associação são postas em evidência. Por fim, é feita uma primeira

aproximação entre as semelhanças do argumento da linguagem privada e a doutrina do Mito

do Dado, de Wilfrid Sellars. Daí, pretendi elucidar como ambas doutrinas compartilham do

desejo de demonstrar que nenhum dado epistêmico imediato, nem mesmo as sensações

aparentemente mais privadas, podem servir de fundação para o conhecimento e de

embasamento para a justificação de nossas outras crenças.

A crítica ao projeto fundacionalista dentro do viés da pesquisa

Ainda que as principais correntes do pensamento epistemológico tradicional apresentem

claras e incontáveis divergências, tal como constatamos, por exemplo, entre o projeto de

atomismo lógico de Russell e o racionalismo cartesiano, há de se falar de um elemento teórico

comum presente na maior parte dessas doutrinas: a crença de que todo conhecimento acerca

do mundo e das coisas deve estar, em última instância, fundamentado em um conhecimento

auto-justificado, imediatamente acessível ao sujeito e indubitável. Todas as correntes que

compartilham desse elemento podem, então, ser chamadas de fundacionalistas. O

conhecimento fundacional, então, deveria cumprir concomitantemente dois requisitos

epistêmicos: ele possuiria eficácia para gerar e justificar todos os nossos outros

conhecimentos e ele seria independente de qualquer outro conhecimento, sendo o mais

anterior logicamente.

A partir desse breve quadro do conhecimento fundacional, podemos inferir tão logo

algumas incoerências: por ser um conhecimento e por ser capaz de sustentar nossas cadeias de

justificações acerca de outros conhecimentos dos quais ele é a fundação, o conhecimento

fundacional já deveria localizar-se dentro de nossa esfera conceitual. Todavia, a sua petição

por imediatidade não permite que ele seja intermediado por nenhum conceito inferido, tais

como ocorrem nas instâncias dos signos públicos que aprendemos em uma comunidade de

indivíduos falantes. Daí, para preservar a imediatidade e, ao mesmo tempo, manter-se inserido

na esfera conceitual de um sujeito, o conhecimento fundacional requereu uma estranha ficção

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epistemológica e pré-teórica, amparada na figura de uma linguagem privada. Ou seja, cada

indivíduo seria capaz de elaborar autonomamente uma biblioteca conceitual a partir de signos

privados – e não inferidos da convivência em uma comunidade – que obteriam os seus

significados por meio da associação direta com as sensações privadas que cada sujeito possui

e cujos significados não podem ser definidos em jogos de linguagem, mas somente por meio

de ostensões diretas às próprias sensações que designam (o que os coloca em um patamar de

superprivacidade).

Explicita-se, então, o último elemento teórico que compõem o quadro geral do

fundacionalismo: a crença de que o significado adviria, em última instância, da associação

com as experiências privadas que um sujeito possuiria, de tal maneira que essas experiências

seriam compostas por sensações que não somente seriam imediatamente conhecíveis, mas

também seriam a própria entidade do significado do nosso vocabulário privado.

Explicar porque a figura da linguagem privada é uma falácia que alimenta e

proporciona vigor às correntes epistemológicas fundacionalistas é uma tarefa que envolve a

explicitação de mal entendidos contidos e assumidos dentro dessas próprias correntes.

Explanar as incoerências e as incompletudes dessa visão implica, necessariamente, o nosso

engajamento em outras formas de compreender o significado. Daí, o movimento presente nas

Investigações Filosóficas dentro do argumento chave contra a possibilidade de uma

linguagem privada faz-se claro: o vocabulário das sensações, inclusive o vocabulário da dor

(o exemplo mais paradigmático daquilo que parece absolutamente incompartilhável e

superprivado), não adquire significado por meio de associações às sensações, mas por meio de

conceitos e regras compartilhados em comunidade que nos permitem deter estados

epistêmicos acerca das sensações e, só assim, ser capaz de designa-las por meio de palavras.

Dessa forma, defendo que a argumentação que explicite a impossibilidade de uma

linguagem privada não pode ser realizada por meio de argumentos que minem problemáticas

pontuais e factuais, tais como ocorre com o argumento da falibilidade da memória, mas pelo

movimento geral de que, em princípio, devemos abandonar a perspectiva de que o significado

advém de uma associação. Nesse sentido, a leitura das Investigações Filosóficas só pode ser

realizada por um viés holístico, onde as seções 244 – 273 (a célebre divisão do argumento da

linguagem privada) compõem apenas um caso particular, porém, o mais radical, da crítica

geral de Wittgenstein à tese do significado enquanto associação. A refutação de uma

linguagem privada, então, deve ser feita a partir da refutação da tese associativa e da adoção

de novos modelos de explicação do funcionamento da linguagem.

Se a refutação do fundacionalismo constitui, concomitantemente, o abandono das teses

associativas do significado, então o endosso do aprendizado de uma linguagem pública para a

garantia da existência de qualquer experiência conceitual e para a intermediação de estados

epistêmicos acerca de quaisquer experiências – inclusive aquelas que parecem absolutamente

privadas – torna-se a ferramenta pela qual devemos orientar nossos horizontes teóricos. A

inversão fica cada vez mais clara: o conhecimento do mundo não pode ser realizado da

interioridade dos juízos para o mundo exterior, mas sim pelo intermédio dos signos públicos

que instanciam conceitos aprendidos em comunidade.

Por fim, a pesquisa enveredou-se à explicitação das similaridades entre o argumento

da linguagem privada e a doutrina do Mito do Dado. Defendo que a conclusão mais fértil à

epistemologia que pode ser extraída do argumento presente nas IF é que uma sensação pura

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não pode servir de fundamento para a justificação de nenhum conhecimento e isto nos remete

diretamente à refutação do dado mitológico elaborada por Sellars, uma vez que ambas as

críticas trazem à tona os problemas envolvidos nas concepções fundacionalistas que se

baseiam em dados epistêmicos (seja ele a sensação, não-proposicional, da dor para a dação de

significado do vocabulário da dor; seja o formato proposicional do cogito cartesiano para a

fundamentação de um sujeito metafísico). Ao afastar o dado mitológico, estamos, também,

nos afastando da figura de uma linguagem privada que dê a investidura conceitual a esse

dado. Ao nos afastarmos da figura de uma linguagem privada, estamos endossando a

refutação de um dado mitológico que sirva de entidade de significado aos signos privados.

Acredito que devemos elucidar como as noções de uma linguagem e experiência

privadas cumprem o papel de nos apresentar uma enganosa figura de fundação do

conhecimento, garantindo uma suposta infalibilidade dos juízos internos, a partir dos quais

constituímos as nossas outras crenças. As semelhanças e problemas comuns entre correntes

tão distintas que utilizei de exemplo – o atomismo lógico e o racionalismo cartesiano –

evidenciam-se cada vez mais patentemente. Em um, a descrição dos dados dos sentidos, um

conhecimento de trato, deve servir de base para todo conhecimento por descrição1; e o acesso

que um sujeito tem desses dados não pode ser compartilhado, tampouco os signos usados no

seu trabalho de descrevê-los, pois estes se remetem diretamente a esses dados dos sentidos.

No outro caso, o conhecimento do mundo exterior só se torna possível após a obtenção de

estados cognitivos subjetivos indubitáveis. Em ambos, o conhecimento do mundo externo

deve ser racionalmente construído a partir das suposta certezas obtidas nos juízos acerca das

experiências privadas, acessíveis por meio de uma linguagem, também privada.

A crítica de Wittgenstein no contexto das Investigações Filosóficas

Desvencilhar-se da sedutora ficção da linguagem privada requer o afastamento de

determinada imagem pré-filosófica do funcionamento da linguagem que engendram

sofisticadas teses filosóficas, por mais que Wittgenstein não apresente uma tese positiva do

significado nas IF. Curiosamente, esse único movimento, o da mudança de perspectiva da

compreensão do significado e do funcionamento da linguagem, é o mais fundamental para

levar à ruína a figura da linguagem privada e é esse o sentido de minha argumentação: a

refutação da linguagem privada não é simplesmente dada por meio da apresentação de uma

série restrita de argumentos, mas pelo endosso de toda uma nova visão do fenômeno e do

funcionamento da linguagem, menos enviesada do que as tentativas anteriores, onde o jogo de

linguagem da ostensão foi apontado como o mais primordial para a geração de significado. A

refutação da linguagem privada se dá, então, na mudança de perspectiva de como

compreendemos a maneira das palavras significarem.

Dessa forma, torna-se estranha aquela canônica e célebre delimitação de que há um

argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada entre as seções 244 e 271. O que

há nessas seções que pode ser separado de forma mais clara e argumentativa são as patentes

tentativas de ilustração de uma linguagem privada, o que dá ao argumento uma espécie de

1 RUSSELL, Bertrand. The Problems of Philosophy; Our Knowledge of the External World.

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formato reductio ad absurdum2, e uma estreita correlação da maneira como as nossas palavras

se referem às nossas sensações, o que é facilmente compreensível, uma vez que se é possível

explicar o aprendizado e o funcionamento do vocabulário das sensações privadas dentro da

concepção do significado enquanto o uso (essa concepção amplamente evasiva da

subjetividade e da privacidade), todos os outros vocabulários tornam-se, por assim dizer,

menos problemáticos. Dessa forma, não devemos empenhar tantos esforços em tentar

evidenciar a estrutura argumentativa presente nessas seções (244-271), mas devemos nos

empenhar em explicitar o papel argumentativo que essas seções desempenham no livro

inteiro.

Buscar o argumento central do livro, todavia, seria uma tarefa exaustiva demais para

frutos pouco satisfatórios. Dizer que as IF possuem um argumento seria reduzir a variedade

dos assuntos abordados, como quem procura um único fio que perpassa todas as linhas do

texto, e, de certa forma, ir contra a própria proposta do livro, que raramente adota uma postura

argumentativa. O seu viés é dialogal, apresentando uma gama de posturas filosóficas e

experimentos mentais que, muitas vezes, não parecem contribuir para alguma pronta

conclusão. Entretanto, devemos elucidar quais pontos devem ser distintamente esclarecidos

para provocar a mudança de perspectiva necessária para tornar a figura da linguagem privada

naturalmente incoerente e impossível. Na verdade, analisar a questão da possibilidade da

linguagem privada é um importante movimento realizado por aqueles que, em específico,

analisam as seções 244-271; o mais importante, entretanto, é demonstrar que ela é uma

suposição pré-teórica desnecessária, e por isso uma estranha ficção, para explicarmos a

geração de significado.

A imagem tradicional da linguagem, como foi dito no início da seção 1, reduz a

totalidade dos fenômenos linguísticos a uma hierarquia do significado, onde a prática da

nomeação (do ritual da ligação entre um nome e um objeto ou entidade de significado) é o

jogo de linguagem mais fundamental. Afirmar que o significado se dá, em última análise, ao

ritual da ostensão é o sintoma daqueles que não enxergam que a própria ostensão só gera

sentido a um indivíduo após muitas coisas já estarem devidamente acordadas, estabelecidas e

preparadas. Dizer que a finalidade das palavras e das frases é gerar associações e descrições,

como uma série de imagens mentais ou como um mecanismo que aciona ideias, é,

basicamente, não levar o sentido de “finalidade” a fundo. Palavras não apenas servem para

guiar práticas humanas, mas são os constituintes mais elementares das mais complexas ações.

Até a mais minuciosa atividade descritiva não se esgotaria na associação do significado dos

termos que emprega.

Saber o significado das palavras não está ligado a alguma competência essencial que

possuímos para associa-las a entidades de significado, mas está completamente vinculado às

nossas competências de utiliza-las de acordo com as regras de seu uso. Nas palavras de P.

Hacker: “The meaning of an expression is what one understands when one understands the

expression. It is what is explained by an explanation of meaning. An explanation of meaning

provides a standard or a rule for the correct use of an expression. For one’s use of a word is

correct, makes sense, when it accords with an appropriate explanation of meaning . A

2 Ver The Private Language as a reductio ad absurdum. CASTAÑEDA, Henri-Neri. The Private Language Argument. Bristol: McMillan and Co Ltd, 1971.

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person’s understanding of an expression is manifest in his use of it and in giving his correct

explanations of it on appropriate occasions”3.

A defesa dessa forte tese está atrelada à análise de como aprendemos as palavras e

como as empregamos em ações cotidianas. As primeiras seções das IF têm, em comum, a

explicitação de jogos de linguagem muito elementares, onde palavras são empregadas de

forma simples para nomear objetos que participam de uma ação (o grito “lajota” para um

indivíduo pegar uma lajota). Aos poucos somos afastados da ideia de que a palavra, por

exemplo, “lajota” só adquire significado na medida em que compartilha uma natureza íntima

com o objeto designado. Em seu lugar, passamos a compreender que a palavra tem uma

função diferente da pura significação; por mais que, durante tantos séculos de investigação

acerca da linguagem, a função pragmática dos nomes fora completamente banida das nossas

concepções de linguagem em detrimento da concepção da designação de uma ideia enquanto

finalidade do signo.

Para os semânticos mais atentos, parece que muito pouco foi explicado: têm-se a

impressão de que o uso não é capaz de explicar absolutamente nada do significado para além

da óbvia constatação de que proferir palavras e sentenças são uma forma de ação.

Perguntariam, então “Mas como pode o indivíduo saber que quando lhe gritam ‘lajota’, ambos

possuem em mente o mesmo objeto?”. Contudo, esse tipo de questionamento ainda está

vinculado aos preceitos do modelo associativo de significado, pois subjaz aí a crença de que

compreendemos os significados das palavras em um flash; ou seja, como se apenas uma

utilização feliz do termo atrelado a uma prática fosse necessária para a dação de significado.

Ora, isso não seria em nada distinto da velha figura da ostensão. Entender o papel do uso da

constituição do significado é elucidar que a nossa linguagem e nossas ações são

indissociáveis, constituindo uma forma de vida específica, de tal maneira que não se aprende,

exatamente, um uso de uma palavra, mas as regras que guiam a nossa gramática (regras que

guiam, também, o uso de cada palavra) pela completa inserção nos jogos de linguagem, desde

o nosso nascimento. Palavras não adquirem significados independentemente umas das outras,

pois isso seria supor, mais uma vez, que o significado é uma relação direta entre o signo e a

entidade por ele designada (sendo a própria dinâmica da relação entre os dois um ritual muito

estranho na ausência de uma forma de vida acostumada a atribuir relações). Em vez disso, é a

constante utilização das palavras em diferentes jogos de linguagem que nos permite traçar o

seu alcance conceitual, que não deve ser entendido como uma espécie de condensação em

uma ideia, mas como as manifestações bem-sucedidas dos usos que fazemos das palavras.

Deter um conceito (e, nesse sentido, conhecer um significado), como bem já abordou Hacker,

não diz respeito a suscitar representações ou ideais corretas, mas é primordialmente a nossa

capacidade de justificar a sua detenção por meio do uso na linguagem, o que,

necessariamente, atrela-nos a outras palavras. Surge-nos, então, a figura do holismo

semântico-conceitual, uma vez que não posso justificar a propriedade de um conceito ou do

conhecimento do significado de uma palavra separadamente sem antes deter toda uma rede

conceitual que me permita compreender o que me é exigido quando sou indagado acerca do

significado de determinada palavra (não há como sequer conceber essa tarefa sem entender o

que é “significado”, “justificação”, “conceito” e etc).

3 Insight and Illusion. HACKER, P. M. S. Nova York: Oxford University Press, 1986, p. 247.

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O movimento que proponho, o de mudar as perspectivas acerca do significado, não se

compromete com a defesa de que há uma tese do significado enquanto uso nas IF, pelo

simples fato de que é muito difícil estipular, tão enfaticamente e distintamente, uma clara tese

acerca do significado nos escritos de Wittgenstein. Pretendo, contudo, a partir das IF,

reformar a maneira como concebemos a função designativa dos nomes tendo a abordagem da

noção do uso como ponto principal. De forma geral, as teses associativas incorrem em uma

espécie de dualismo (palavra – entidade de significado). Daí, naturalmente nos vemos presos

a analogias epistêmicas extremamente problemáticas, como a do conhecimento imediato entre

sujeito e objeto (outra forma de dualismo recorrente) que, já vimos, são as condições de

pensamento mais tentadoras a nos levar a entender o estado perceptivo como suficiente para a

ocorrência de estados cognitivos. Nesse sentido, torna-se clara a importância central da

discussão acerca das sensações (principalmente do exemplo paradigmático da dor), uma vez

que são nas circunstâncias das experiências que nos parecem absolutamente privadas e não-

compartilháveis que a tese do significado enquanto associação melhor cria força: não parece

haver melhor explicação ao aprendizado do vocabulário das sensações que a da associação

que fazemos diretamente entre as palavras e essas sensações que sentimos. Entretanto,

entender o papel do uso (e, antes, do aprendizado) das palavras no intermédio do

conhecimento nos apresenta uma visão mais completa e madura do significado. Se por um

lado temos o dualismo semântico e a independência conceitual4 como elementos centrais, do

outro surge-nos a imagem do monismo semântico5 e do holismo conceitual, presentes nas IF.

Feita a distinção entre estados perceptivos e cognitivos, eliminam-se alguns possíveis

mal entendidos. Wittgenstein nunca argumentou em favor da não existência de sensações na

ausência de uma linguagem, como se elas fossem um nada (analogamente, nunca argumentou

contra a existência de processos mentais internos). O que está em jogo é a maneira como

acessamos esses estados perceptivos de forma eficaz para a produção de estados cognitivos. A

postura de Wittgenstein não é óbvia. É claro que nomes podem designar sensações, “pois não

falamos diariamente das sensações e não as denominamos?”6. A questão está na maneira

como essa designação é feita e o papel que acreditamos ser exercido pela sensação designada,

pois ela não se trata de uma entidade de significado que preenche a palavra – e aí está a

profunda incoerência nas visões associativas do significado que endossam que a ocorrência da

sensação é suficiente para a vincularmos a ocorrência de um estado cognitivo. As designações

são feitas, na realidade, a partir de regras gramaticais que guiam os corretos usos dos nomes

(como, por exemplo, dizemos que sentimos uma dor de dente aguda em um molar). O

importante a ser destacado é que a designação da sensação somente foi possível a partir do

aprendizado das regras e da extensão conceitual dos nomes nela empregados, sendo ambas (as

regras gramaticais e as palavras) elementos públicos compartilhados em uma comunidade de

4 A independência conceitual está atrelada a noção de que o significado das palavras surge em um flash, de tal forma que aprender o significado de um determinado termo necessita somente de uma associação a sua suposta entidade de significado, sendo uma ação independente de outros conceitos. 5 O monismo semântico, numa breve exposição, é a postura que recusa que o significado seja obtido a partir de entidades as quais a palavra se associa. 6 IF, p. 98.

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falantes. Não há dúvidas de que as sensações são um algo7 mesmo nos seres que não detém

linguagem. Ir contra esse ponto seria endossar a terrível e equivocada conclusão de que as

sensações sem designações conceituais inexistiriam, uma vez que elas estariam desamparadas

da rede conceitual que permite o conhecimento das sensações8. O que Wittgenstein tenta

elucidar, na verdade, é que as sensações puras não têm a eficácia para constituir um estado

cognitivo, que requer minimamente uma experiência conceitual dada a partir do aprendizado

da linguagem pública. O movimento anticartesiano, então, torna-se patente: até o acesso

epistêmico aos nossos estados aparentemente mais privados requerem o intermédio de

elementos públicos e compartilhados. Daí é possível dizer que as experiências absolutamente

privadas são uma estranha ficção escoradas na figura, igualmente estranha e ficcional, de uma

linguagem privada, que cumpriria, aqui, o papel de tornar os estados perceptivos prontos para

o ritual da nomeação, com objetos discriminados em um espaço lógico9, com todas as

características de uma experiência conceitual dada nos episódios cognitivos.

Dois casos

Até o momento, foram traçadas linhas gerais acerca das más compreensões das teses

associativas do significado e foram explicitados os primeiros aspectos de uma visão mais

coerente, onde a capacidade das palavras designarem objetos, principalmente, as sensações,

não advém da experiência direta desses objetos, mas da habilidade que obtemos de adquirir

conceitos que nos permitem intermediar os conhecimentos de nossas experiências. A posse

dos conceitos, por sua vez, foi elucidada enquanto um processo que exige a imersão em

práticas compartilhadas por uma comunidade, onde aprendemos as regras que guiam os usos

corretos das palavras. A mudança de perspectiva que defendo não consiste, tão simplesmente,

no abandono das teses associativas e na adoção de uma suposta “tese do significado como

uso”, como muitos dos comentadores de Wittgenstein prontamente fazem. A tese do

significado enquanto uso pode levar-nos rapidamente a alguns mal-entendidos sobre o

funcionamento da linguagem, como, por exemplo, a crença de que palavras não têm poder

designativo – assumir essas posturas nos coagiria a retirar a credibilidade que a linguagem

detém quando “toca o mundo” ou quando diz corretamente que as coisas estão em

determinado arranjo. Designações são uma das diversas funções das palavras e ao que

devemos nos ater quando dizemos que as palavras têm poder designativo é em dar as corretas

explicações de como essa designação ocorre - e é aqui que a noção de uso e todos os rituais

compartilhados e executados por uma comunidade de falantes tornam-se cruciais. A mudança

de perspectiva é, sobretudo, passar a compreender que a linguagem pública é o intermédio

essencial e necessário para a detenção de qualquer estado cognitivo (até mesmo sobre aqueles

estados que absolutamente não são públicos), de tal maneira que a alegoria do conhecimento

7 “Ela [a sensação] não é algo, mas também não é um nada! O resultado foi apena que um nada presta os mesmos serviços que um algo sobre o qual não se pode falar nada. Rejeitaríamos aqui apenas a gramática que se quer impor a nós.” IF, p.109. 8 Aqui, claramente, confundem-se os sentidos de “deter um conhecimento” e “deter uma sensação”. 9 Adianto, aqui, um conceito de Wilfrid Sellars, por mais que a metáfora do espaço lógico surja no Tractatus Logico-philosophicus, do primeiro Wittgenstein. O que um pensante tem acesso no espaço lógico está de acordo com os nomes e conceitos que lhe estão disponíveis, sabendo-se que alguém não pode pensar sobre algo se não possui o seu conceito.

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imediato que um sujeito possui a partir do simples estado perceptivo venha à ruína.

Entretanto, para quem lê as IF pode ocorrer o pensamento de que falo de coisas

completamente distintas do que está no livro. Em parte, compreendo essa crítica e a explico

de duas formas: primeiro, é necessário entender que o vocabulário utilizado aqui pouco tem a

ver com a proposta das IF. Estado cognitivo, estado perceptivo, espaço lógico, conhecimento

imediato, linguagem pública, rede conceitual, holismo semântico; todos são termos ausentes

nas IF; entretanto, acredito que eles sejam fruto de uma análise mais clara e acurada e de uma

interpretação mais direcionada do que está ocorrendo (principalmente entre as seções 244 e

273) nas IF. O segundo ponto que explicito está diretamente ligado ao tipo de interpretação

direcionada que realizo. Quando digo que tenho uma interpretação direcionada do argumento

da linguagem privada, não estou apenas dizendo que há outras formas de ler o argumento que

não seguirei; estou dizendo, na verdade, que o próprio argumento ilustra casos diferentes do

que podemos vir a chamar de linguagem privada e que tomo apenas um deles para a análise,

aquele que considero ter maior importância para a epistemologia.

A seção 257 nos apresenta o caso de uma criança que, supostamente, não detém uma

linguagem pública e que, mesmo assim, consegue nomear uma sensação10. Logo em seguida,

na seção 258, vemos o caso de um homem adulto que já possui uma linguagem pública e que

decide anotar em seu diário a letra “S” para todas as ocorrências de uma determinada

sensação sua. Ambos os exemplos tentam nos vender uma plausível imagem da ocorrência de

uma linguagem privada que logo vem a ser desconstruída. Sem dúvidas, os dois casos

compartilham de problemas semelhantes por meio dos quais se constroem as críticas em

comum; como, por exemplo, a ausência de um critério de correção externo ao sujeito para a

aplicação dos signos e a falta de uma finalidade. Todavia, o fato de que a criança ainda não

possui uma linguagem pública torna o seu caso uma análise muito mais interessante para o

meu tipo de interpretação.

O adulto, por já deter uma linguagem pública, está habituado a possuir estados

cognitivos; ou melhor, a sua relação com o mundo é, nesse sentido, primordialmente

caracterizada como a ocorrência de estados cognitivos a partir de sua experiência conceitual.

Por meio dos signos da linguagem que possui, ele é capaz de discriminar objetos em sua

experiência e conhecê-los. Dessa forma, quando ele decide nomear uma sensação com o signo

“S”, não há, a princípio, grandes problemas, pois o adulto já possui as competências

conceituais para discriminar aquela sua determinada sensação e designa-la. Nesse caso, o

adulto não comete aquilo que tenho apresentado como o engano central dos defensores da

possibilidade da linguagem privada: a crença de que a ocorrência de estados simplesmente

perceptivos basta para a ocorrência de estados cognitivos. O homem adulto, por já deter uma

linguagem pública, não elabora a sua linguagem privada (na verdade, o seu signo privado) a

partir de estados puramente perceptivos, mas sim de estados cognitivos que já possui.

A criança, pelo contrário, ainda não detém uma linguagem pública e, como já

sabemos, consequentemente não detém uma experiência conceitual e, tampouco, consegue

sustentar estados epistêmicos. Em seu caso, a partir da pura experiência perceptiva, ela

supostamente conseguiria discriminar uma sensação e nomeá-la11. A possibilidade da

10 IF, p. 101. 11 IF, idem.

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existência de uma linguagem privada nessas circunstâncias é radicalmente mais problemática

do que o caso do adulto. Também, são nessas circunstâncias, onde tentamos conceber as

relações com o mundo de um ser pré-linguístico, que afloram os maiores enganos epistêmicos

da tradição filosófica. Nesse sentido, cabem as palavras de Wilfrid Sellars, em seu ensaio

Empirismo & Filosofia da Mente: “This is the fact that when we picture a child – or a carrier

of slabs – learning his first language, we, of course, locate the language learner in a

structured logical space in which we are at home. Thus, we conceive of him as a person (or,

at least, a potential person) in a world of physical objects, colored, producing sounds,

existing in Space and Time. But though it is we who are familiar with this logical space, we

run the danger, if we are not careful, of picturing the language learner as having ab initio

some degree of awareness – ‘pre-analytic’, limited and fragmentary though it may be – of this

same logical space. We picture his state as though it were rather like our own when placed in

a strange forest in a dark night. In other words, unless we are careful, we can easily take for

granted that the process of teaching a child to use a language is that of teaching it to

discriminate within a logical space of particulars, universals, facts, etc., of which it is already

undiscriminatingly aware, and to associate this discriminated elements with verbal

symbols.”12

É essa figura da linguagem privada, em particular, que tenho em mente quando me

refiro a uma ficção epistemológica constantemente suposta pré-teoricamente na tradição

filosófica. O caso do adulto certamente contribui para argumentação geral acerca da

impossibilidade de uma linguagem privada uma vez que ataca, diretamente, a ausência de

critérios eficazes para a verificação e para a correção dos usos que fazemos dos signos

privados – críticas que, por sua vez, também são válidas à figura da criança. Todavia, como o

viés da minha investigação tem seguido o caminho de elucidar os enganos gerados pela tese

do significado enquanto associação, o caso da criança torna-se, patentemente, mais

importante, uma vez que a minha argumentação se dá na direção do combate ao conhecimento

imediato, adquirido a partir da simples associação de signos privados às experiências de um

sujeito, tal qual ocorre quando a criança, genialmente, nomeia sozinha a própria sensação sem

sequer deter uma linguagem compartilhada. Se o combate à imediatez se dá, então, pelo

intermédio necessário do aprendizado de uma linguagem pública, o caso do adulto não se

torna mais tão paradigmático, uma vez que ele já a possui.

Critérios externos e finalidade

Possuir uma linguagem implica em participar de uma dinâmica normativa; isto é, ter a

capacidade em cada (nova) ocasião de usar as palavras de acordo com as regras que

determinam seu significado. Nesse sentido, até os defensores da tese do significado enquanto

associação (os defensores da possibilidade de uma linguagem privada, inclusive)

concordariam com essa afirmação. Para eles, seja no caso da criança ou do adulto, associar

uma palavra a sua entidade de significado seria uma atividade normativa, como, por exemplo,

12 SELLARS, Wilfrid. Empiricism and the Philosophy of Mind, Cambridge: Harvard University Press. 1997.

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associar a palavra “azul” à cor azul. Definitivamente, uma linguagem privada teria suas

próprias regras, que constituiriam, basicamente, em ostensões privadas. Tais regras, porém,

seriam, igualmente, apenas conhecíveis pelo sujeito que as aplica de maneira inteiramente

privada, o que nos faz questionar se essa aparente investidura normativa constitui, de fato, o

cenário adequado para aquilo que podemos chamar de um verdadeiro critério para a aplicação

correta dos signos de uma linguagem. Um critério privado, como elucida Wittgenstein na

seção 258, não pode constituir um critério de correção uma vez que o sujeito que o detém

privadamente não poderia conferir se seguiu determinada regra corretamente ou se apenas

detém a impressão de que o fez. É nesse sentido que classifico que a real atividade normativa

que constitui o funcionamento de uma linguagem necessita de critérios externos ao sujeito;

isto é, critérios que tenham a capacidade de impor àquele indivíduo algo diferente do

conteúdo das suas próprias crenças nas circunstâncias em que o indivíduo está enganado ou

erra.

Da mesma maneira como os signos de uma linguagem privada seriam

incompartilháveis por se referirem àquilo que somente o seu falante pode conhecer,

igualmente seriam os critérios de correção das regras dessa linguagem, pois para se dizer que

um indivíduo usou corretamente ou não determinado signo, dever-se-ia poder ter acesso às

suas experiências privadas. O propósito de elucidar que uma linguagem privada não apresenta

critérios externos de correção é demonstrar que o que acreditamos serem as regras que guiam

essa suposta atividade seriam impressões de regras, das quais não se poderia extrair nenhuma

noção de correção ou incorreção.

Comumente foi advogado que o único critério de correção para uma linguagem

privada seria a memória do linguista privado, que se lembraria das associações entre os seus

signos e as sensações correspondentes. Por isso, argumentou-se que a impossibilidade da

detenção de uma linguagem privada adviria do fato de que a memória é falha. Argumentar

pelo viés da falibilidade da memória não constitui, todavia, nenhum tipo de refutação à

possibilidade de uma linguagem privada. A refutação da linguagem privada deve ser

fundamentada em princípio e isso não ocorre nesse caso. O fato de a memória falhar ainda nos

permite imaginar um indivíduo que, por alguma aptidão, possuiria uma memória boa o

suficiente para utilizar corretamente e regularmente os seus signos privados. No caso do

adulto, por exemplo, não temos garantias de que ele escreveria o signo “S” corretamente, mas

igualmente não temos garantia de que ele erre. A questão central da discussão acerca da

normatividade de uma linguagem privada não está centrada no fato de que critérios privados

são falhos ou não-verificáveis, mas na própria noção de que não há algo como um critério

privado, no sentido de uma regra privada.13 Seguir uma regra implica, necessariamente, a

noção de que pode-se segui-la corretamente ou não, o que desaparece ao tentarmos conceber

uma regra absolutamente privada. No caso da criança, as ostensões privadas realizadas por ela

seriam o exemplo central da regra privada que foi supostamente seguida para a dação de

significado de cada símbolo.

13 Devemos traçar a evidente diferença entre uma regra privada, uma espécie de atividade ou ritual que apenas um indivíduo poderia seguir, tal como associar signos às suas sensações; e uma regra seguida privadamente, que seria a aplicação de uma regra compartilhável por um indivíduo em particular. Seguir uma regra privadamente não implica em nenhuma problemática profunda e, inclusive, estamos constantemente o fazendo.

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Tendo isto em mente, a existência de um critério externo para a verificação da

aplicação das regras que norteiam os usos dos signos em uma linguagem é um componente

necessário e básico na constituição de uma linguagem, o que vem a ratificar a imagem que

temos construído da linguagem enquanto fenômeno público e comunitário. Uma outra forma

de perceber isso é notar que regras privadas não poderiam desempenhar nenhum papel eficaz

em um jogo de linguagem compartilhado, o que nos leva a refletir que as regras e os signos

que compões essa linguagem não teriam qualquer tipo de finalidade.

Linguagem privada e o Mito do Dado

A noção de que um estado puramente cognitivo possa bastar para a geração de um

estado epistêmico é o ponto que mais tem recebido a minha atenção nesse trabalho, uma vez

que acredito ser essa a ficção epistêmica central na qual os defensores de uma linguagem

privada incorrem. É para isso que realizei a secção entre dois casos ilustrativos da prática de

uma linguagem privada presente nas IF. O primeiro, o caso do adulto, ao qual dei menos

relevância epistemológica, uma vez que, como já destaquei, o adulto já possui uma linguagem

(pública) a partir da qual ele pode inserir-se em um espaço lógico, discriminar objetos a partir

de conceitos e sustentar estados cognitivos. O segundo caso, o da criança, é naturalmente mais

rico para o debate epistemológico que abordo. Nesse caso, a criança ainda não deteria uma

linguagem pública e a sua linguagem privada serviria, acima de tudo, como intermédio pelo

qual detém uma experiência conceitual. Sendo assim, o seu puro estado perceptivo já seria

compreendido como uma espécie de estado cognitivo, possível por meio do aparato conceitual

de uma linguagem privada. Essa maneira de interpretar a linguagem privada; ou melhor, de

interpretar qual é o papel que essa figura vem desempenhando nas narrativas epistemológicas

tradicionais, nos possibilita, por fim, apresenta-la e refuta-la enquanto uma estranha ficção.

De forma análoga, esse tipo de leitura apresenta diversas semelhanças e compatibilidades à

doutrina do Mito do Dado14, onde se destaca um dado epistêmico que cumpriu em diversas

narrativas epistemológicas o papel de fundação última do conhecimento e, seguidamente,

refuta-se a possibilidade de existência de um dado nessas circunstâncias, transformando-o em

um mito.

Para expor as semelhanças entre os temas, devo, brevemente, apresentar o que é o

Mito do Dado. O dado mitológico seria aquele elemento imediatamente conhecido da

experiência a partir do qual se inferiria o resto do conhecimento, ou, num caminho reverso,

seria o elemento a partir do qual se fundamenta e justifica todo o conhecimento. Assim, já

poderíamos concluir que o dado mitológico satisfaria concomitantemente duas condições

epistêmicas bastante complicadas: (i) ele seria epistemicamente independente, isto é, ele não

poderia depender de nenhum outro tipo de conhecimento para se fazer valído; e (ii) ele seria

epistemicamente eficaz, isto é, a partir dele seria possível fundamentar todos os nossos outros

conhecimentos15. Devemos saber, também , que o dado pode surgir de duas maneiras: (i) ele

14 Importante doutrina epistemológica surgida em meados do século XX a partir do pensamento do filósofo norte-americano Wilfrid Sellars. 15 A apresentação do dado como o elemento epistêmico que cumpre essas duas funções (de eficácia e independência epistêmica) é fruto da magistral apresentação do pensamento de Sellars feita por Willen A. deVries e Tim Triplett, na introdução do livro Knowledge, Mind and the Given, Indianapolis: Hackett Publishing Company, Inc. 2000.

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pode ser proposicional ou (ii) não-proposicional. Suponhamos que o nosso dado possua a

forma proposicional, tal como um princípio primeiro, um princípio lógico, uma proposição

acerca da percepção ou um enunciado relacional entre universais. Nesse caso, podemos até

conceber que esse tipo de conhecimento seja capaz de servir como base inferencial a outros

conhecimentos, dando o status de eficácia epistêmica. Todavia, não poderíamos dizer que ele

possui independência epistêmica, uma vez que, por deter uma forma proposicional, ele seria o

produto do processo inferencial de um sujeito ao aprender uma linguagem. Sendo assim, a

linguagem seria o intermediário fundamental para o acesso ao tipo de conhecimento que se

pretende, afastando a sua imediatidade.

Suponhamos agora que o dado seja não-proposicional, tal como os dados dos sentidos

ou uma experiência perceptiva. Por ser não-proposicional, poderíamos até imaginar que esse

dado cumpriria o requisito de ser epistemicamente independente. Entretanto, tal dado jamais

poderia servir como a premissa para algum tipo de conhecimento, uma vez que sequer deteria

a investidura conceitual para essa empreitada16. Mais uma vez, faz-se necessário o intermédio

de alguma linguagem que dê a feitura conceitual a esse dado para que ele possua alguma

eficácia epistêmica.

Quando analisamos melhor o papel que uma linguagem privada cumpre em um

modelo epistêmico, percebemos que ela se presta como uma justificação para a validade do

dado mitológico que pretendemos derrubar pela enganosa imediatidade e por reivindicar

independência e eficácia epistêmica concomitantemente. Ao dizer que um indivíduo que

endossa a possibilidade de uma linguagem privada cai no mito do dado, estou acusando-o de

ter dado erradamente o papel epistêmico de fundação do conhecimento a algo que não tem a

capacidade de fazê-lo (e, por isso, é um mito). Essa tese se une à crítica central que elaborei

quando elucido que para os defensores de uma linguagem privada, no caso da criança, pelo

menos, acredita que os estados puramente perceptivos se bastam para a existência de estados

cognitivos; pois, nessas circunstâncias, os dados da percepção bastariam para preencher um

vocabulário conceitual privado, o que daria independência e eficácia epistêmica para esse

imediato ato perceptivo, tornando-o, também, um estado cognitivo. Como já vimos, essa é

uma mazela teórica advinda do equivocado movimento que realizamos ao projetar a nossa

experiência, estruturada em um espaço lógico e conceitual, aos seres pré-linguísticos. Ao

advogar que uma das boas conclusões do argumento da linguagem privada é elucidar a

necessidade de uma linguagem pública para possibilitar o acesso epistêmico das sensações

mais privadas, estamos, ao mesmo tempo, demonstrando que essas puras sensações não

podem servir de fundação o conhecimento, mesmo que detenham essa irresistível aparência

de imediatamente conhecíveis (até porque são imediatamente sensíveis), principalmente se

estamos presos às enganosas concepções acerca das teses associativas de significado.

O filósofo inglês John McDowell entende que o ataque central elaborado pelo

argumento da linguagem privada consiste em demonstrar que nem mesmo os juízos dos

sentidos internos estão fundamentados, em última instância, em bare presences17. E se isso se

aplica aos juízos acerca das sensações privadas, então podemos adotar a versão mais geral

16 Mais uma vez retornamos à passagem kantiana “Intuições sem conceitos são cegas”. 17 A expressão é utilizada pelo próprio McDowell no livro Mind & World, p. 19.

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dessa moral: “a bare presence cannot be a ground for anything”18. Esse tipo de interpretação

do argumento consiste em um movimento de aproximação com os temas e as preocupações da

doutrina do Mito do Dado. A sensação de dor, por ser uma bare presence, constitui um tipo

de dado não-proposicional como abordamos acima. Acreditar que esse dado não-

proposicional possa servir de justificação para qualquer juízo, e por isso, acreditar que eles

possam vir a compor imediatamente uma forma de conhecimento, é dar a credibilidade

conceitual a um dado que não a possui e, por isso, fazê-lo cumprir um papel epistêmico

mitológico.

McDowell explicita, então, que qualquer conceito cuja constituição seja justificada por

uma relação imediata à sensação é, no final das contas, um conceito privado e, por isso, um

endosso à enganosa concepção de uma linguagem privada. E mais, para formar esse conceito,

o sujeito deveria ser capaz de aplicar a si mesmo uma ostensão privada, que, por sua vez,

constituiria a definição do conceito. Esse tipo de definição ostensiva, amplamente creditada

pelos defensores de uma linguagem privada, além de ser compor o quadro de uma falsa regra

ausente de critérios externos de verificação, constituiria um estranho cenário de dação de

significado a parte do poder justificativo dos jogos de linguagem. Isto quer dizer, em termos

da doutrina do Mito do Dado, que um dado mitológico (no caso, não-proposicional) exterior à

esfera conceitual de um sujeito estaria cumprindo o papel de justificativa epistêmica a outros

conhecimentos (que seja o mero significado de uma palavra). Nesse sentido, duas passagens

das IF mostram-se particularmente marcantes. Na seção 258, lemos: “Quero escrever um

diário sobre a repetição de uma certa sensação. Para tanto, associo-a com o signo ‘S’ e

escrevo este signo num calendário, todos os dias em que tenho a sensação. – Observarei,

primeiramente, que uma definição do signo é impronunciável. – Mas posso dá-la a mim

mesmo como uma espécie de definição ostensiva! – Como? Posso apontar para uma

sensação? – Não no sentido habitual”19. A definição do signo seria impronunciável uma vez

que não constituiria na justificação dada dentro de um jogo de linguagem entre indivíduos,

mas seria o apontamento direto e imediato à sensação, que somente poderia ser conhecida

pelo sujeito que a possui – sendo, então incompartilhável e privada. Reforça essa tese a seção

261: “ Que razão temos para chamar de ‘S’ o signo referente a uma sensação? ‘Sensação’ é,

na verdade, uma palavra de nossa linguagem geral e não de uma linguagem inteligível apenas

par a mim. O uso dessa palavra exige, pois, uma justificação que todos compreendem. – E não

ajudaria nada dizer: não precisaria ser uma sensação; quando ele escreve ‘S’, tem algo – e

mais não poderíamos dizer. Mas ‘ter’ e ‘algo’ pertencem também à linguagem geral. Assim,

ao filosofar, chega-se por fim lá onde desejaríamos apenas proferir um som inarticulado. –

Mas tal som é uma expressão apenas num jogo de linguagem determinado que se deve agora

descrever”20.

Não precisamos, todavia, nos ater ao caso do dado não-proposicional, que constitui a

confusão central entre estado perceptivo e cognitivo, dentro dos possíveis cenários onde se

configura uma linguagem privada. Entre muitos filósofos, principalmente racionalistas,

muitos princípios foram adotados como imediatamente conhecíveis, tais como enunciados

entre universais ou proposições indubitáveis. Essa forma de conhecimento configuraria não

18 M&W, p. 19. 19 IF, p. 101. 20 IF, p. 101.

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somente um dado proposicional, como também uma pressuporia a existência de uma

linguagem privada, que não fora aprendida pela convivência em comunidade, para se realizar

juízos e ter acesso a conceitos acerca dos universais.21 Dessa forma, o termo bare presence

utilizado por McDowell (o qual não tive a pretensão de elaborar uma tradução adequada) não

necessariamente significa, estritamente, sensações; seria melhor entende-lo como o elemento

epistêmico mais geral (proposicional ou não-proposicional) que cumpriria o papel mitológico

de um dado que funda diretamente as justificações para todos os conhecimentos.

Conclusão

Ao aproximar o argumento da linguagem privada, de Wittgenstein, à refutação da

doutrina do Mito do Dado, de Wilfrid Sellars, eu não apenas pretendi realizar um apanhado

histórico de correntes epistemológicas que, curiosamente, encontram-se em períodos tão

próximos22 e compartilham temas em comum. Na verdade, incorporar a doutrina do Mito do

Dado a maneira como pensamos o argumento da linguagem privada é uma forma de gerar

uma interpretação mais sistemática, clara e direcionada do argumento – pelo menos quando

pensamos o caso da criança. Quando endossamos Wittgenstein nas IF, estamos, também, nos

impedindo de cair no Mito. Quando buscamos as origens do motivo de um dado ser

mitológico, constantemente nos depararemos com a suposição pré-teórica e ficcional de uma

linguagem privada, que cumpriria o papel de dar investidura conceitual, por meio de conceitos

estritamente privados, a um dado que desempenharia, em última instância, a justificação final

para um conhecimento. Quando esse dado surge na forma de sensações individuais, como a

dor, somos amplamente tentados a acreditar que a sensação possa desempenhar esse papel

mitológico e, por si só, nos fornecer um estado cognitivo acerca de nós mesmos. Mas essa

enorme tentação, como tentei elucidar, está primordialmente embasada em uma errônea

maneira de conceber que o significado é uma associação entre a palavra e a sua entidade, no

caso, a sensação de dor, que torna-se imediatamente acessível por meio de uma ostensão

privada. Afastar essa incoerente visão é uma mudança de perspectiva que torna as coisas um

pouco mais claras. O argumento da linguagem privada e a doutrina do Mito do Dado

funcionam, complementarmente, nessa mesma direção. Ambos se engajam na luta contra a

imediatez, que já vem ocorrendo de maneira explícita e desenvolta desde os escritos

hegelianos; mas é nessas duas obras mais recentes que se torna patente o movimento de

intermediar aquele conhecimento que enganosamente nos parece o mais imediato por meio de

uma linguagem completamente exterior ao indivíduo. Detemo-nos, então, com uma espécie

estranhamento inerente: a filosofia foi deslocada do sujeito para a comunidade. E, em certa

medida, é exatamente esse estranhamento que pode nos auxiliar na empreitada de ver as

coisas dentro de uma nova perspectiva, onde o conhecimento não é mais um fenômeno

imediato que ocorre, independentemente, entre um sujeito e um objeto, mas sim um complexo

conjunto de crenças e de justificações, somente possíveis pela existência de uma linguagem

compartilhada e apenas profundamente verificáveis segundo os critérios de uma determinada

forma de vida.

21 A defesa racionalista muitas vezes argumenta que o conhecimento dos princípios universais não é intermediado por nenhum tipo de linguagem, sendo tão somente um movimento intuitivo da mente. 22 As IF foram publicadas em 1953, na Inglaterra, enquanto Empirismo & Filosofia da Mente foi publicado em 1956, nos Estados Unidos.

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Referências Bibliográficas

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(IF)

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BAKER, G. P. & HACKER, P. M. An Analytical Commentary on Wittgenstein’s

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SELLARS, W. Empiricism & the Philosophy of Mind. Cambridge, Massachusetts: Harvard

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