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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
BOLAS DE PAPEL:
Sociedade, gênero e território em contos de futebol argentinos
VITOR LOURENÇO RODRIGUEZ SALGADO
UFRJ
Rio de Janeiro
2018
BOLAS DE PAPEL:
Sociedade, gênero e território em contos de futebol argentinos
Vitor Lourenço Rodriguez Salgado
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do
título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos).
Orientador: Prof. Doutor Ary Pimentel
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018
Bolas de papel:
Sociedade, gênero e território em contos de futebol argentinos
Vitor Lourenço Rodriguez Salgado
Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos)
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Ary Pimentel – PPGLEN - UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Miguel Angel Zamorano Heras – PPGLEN - UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Beatriz Resende – PPGCL - UFRJ
_________________________________________________
Prof. Doutor Paulo Roberto Tonani do Patrocínio – UFRJ, Suplente
_________________________________________________
Prof. Doutor Victor Manuel Ramos Lemus – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2018
Salgado, Vitor Lourenço Rodriguez.
Bolas de papel: Sociedade, gênero e território em contos de futebol
argentinos / Vitor Lourenço Rodriguez Salgado. - Rio de Janeiro: UFRJ /
Faculdade de Letras, 2018.
109f.; 31 cm.
Orientador: Ary Pimentel
Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas, 2018.
Referências Bibliográficas: ff. 103-108
1. Relatos de futebol. 2. Narrativa argentina. 3. Questões de gênero. 4.
Eduardo Sacheri. 5. Claudia Piñeiro. I. Pimentel, Ary. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas. III. Título.
RESUMO
SALGADO, Vitor Lourenço Rodriguez. Bolas de papel: sociedade, gênero e território
em contos de futebol argentinos. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, 2018. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas.
O crescimento da produção de narrativas associadas ao futebol esboça a
consolidação de um campo literário que, cada vez mais, ganha destaque em meio aos
círculos da crítica acadêmica. Seu substancial desenvolvimento ao longo das décadas
expressa-se através do aumento da quantidade de obras por nomes reconhecidos como
Osvaldo Soriano, Eduardo Sacheri e Claudia Piñeiro, refletindo a legitimação do tema
na literatura e um rompimento maior com a comum banalização do futebol na esfera
intelectual. A partir da análise de elementos do universo da bola presentes nas narrativas
argentinas, seria possível observar uma série de práticas do cotidiano de torcedores e
torcedoras que se alinham de forma semelhante aos valores reproduzidos nas mais
diversas esferas da sociedade. Ademais, a leitura do jogo vivido pelos indivíduos
permite uma compreensão sobre as maneiras pelas quais sujeitos se reconhecem e se
representam no dia-a-dia, agenciando formas coletivas de estar-no-mundo.
Tangenciando questões relacionadas à discussão de gênero e aos expedientes afetivos de
subjetividades localizadas na tensão entre o microterritório, o nacional e o global,
operamos uma racionalização das ações no interior do esporte que se combinam na
produção de autores e autoras, dando a ver a composição do social em seus mais
variados aspectos. Por meio de contos de futebol argentinos, este trabalho procura
pensar as dinâmicas próprias à vida cotidiana de sujeitos e grupos sociais desde os
expedientes simbólicos do futebol representados na literatura.
Palavras-chave: relatos de futebol, narrativa argentina, questões de gênero, Eduardo
Sacheri, Claudia Piñeiro.
ABSTRACT
SALGADO, Vitor Lourenço Rodriguez. Bolas de papel: sociedade, gênero e território
em contos de futebol argentinos. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, 2018. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas.
The growth in the production of narratives associated with football outlines the
consolidation of a literary field that, increasingly, starts to be highlighted in circles of
academic criticism. The substantial development over the decades is expressed through
the increase in the number of works by renowned names such as Osvaldo Soriano,
Eduardo Sacheri and Claudia Piñeiro, reflecting a legitimation of the subject in
literature and a greater break with a common banalization of football in the intellectual
sphere. From the analysis of elements of the universe of football, it is possible to
visualize a series of practices of the daily life of fans that are aligned specifically to
values reproduced in the most diverse spheres of society. In addition, the reading of the
game lived by the people allows an understanding on how the subjects recognize and
represent each other day by day, building collective forms of being-in-the-world. By the
reading of issues related to the discussion of gender and the affective processes of
subjectivation located in the tension between the microterritory, the nation and the
global, we operate a rationalization of the sport‟s phenomenons, combined in the
production of authors, giving to see the composition of the social at its most variety.
Through Argentine football narratives, this work tries to think the particular dynamics
of the daily life of individuals and social groups, as well as the symbolic records of
soccer represented in the literature.
Key words: football narratives, Argentine narratives, gender issues, Eduardo Sacheri,
Claudia Piñeiro.
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio
financeiro durante os dois anos de pesquisa.
Ao Professor Doutor Ary Pimentel pela orientação, confiança e comprometimento em
todo o processo.
Aos professores Miguel Ángel Zamorano Heras, Victor Lemus e às professoras Silvia
Cárcamo e Beatriz Resende pelas diversas contribuições durante a pesquisa, assim como
pelo carinho com que sempre me receberam.
Ao Departamento de Letras Neolatinas da UFRJ, especialmente a Vladimir e ao
professor Antônio, por toda disponibilidade e atenção aos trâmites institucionais
relacionados à pesquisa.
A Thiago Carvalhal, pela parceira e pelos conselhos tranquilizadores.
A Gabriel Ponciano, pela escuta e presença de todas as horas.
À Renata Dorneles, pela amizade e pelas ricas discussões sobre feminismo.
Ao meu presente inesperado, Mariana Nunes, por aguentar minhas inquietudes durante
a escrita.
À minha irmã, Tayane Lourenço, e ao meu cunhado, Nilton Scher, pela força e amparo
afetivo.
À minha prima Fátima Elizabeth, por todo o entusiasmo compartilhado.
Aos meus primos Márcio e Luiz, por aliviarem a pressão nas horas difíceis.
À minha filha Malu, meu espelho e esperança.
À minha avó Djalma e ao meu avô Ademar, falecido durante o processo. Sem eles nada
seria possível.
E, por fim, agradeço pela perseverança e insistência da minha mãe, Márcia, meu maior
exemplo e porto seguro.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1. CAMPO ABERTO: entre a erudição e o popular .............................................................. 26
1.1. O popular representado: encontro entre torcedores e a literatura ...................... 30
2. AS DONAS DA BOLA .......................................................................................................... 40
2.1. Breve apresentação do quadro argentino contemporâneo ......................................... 41
2.2. Entre o público e o privado: driblando a desigualdade de gênero............................. 46
2.3.Representações na literatura: a voz das mulheres no futebol ..................................... 55
3. AS TRIBOS DA BOLA: descompassos entre o território e o Estado-Nação................... 72
3.1. Micronações de torcedores: futebol, nação e imaginário coletivo ............................. 75
3.2. Territorialidades: mapas simbólicos de torcidas no contexto argentino ................... 77
3.3. Torcedores em deslocamento: pertencimento, melancolia e performance ............... 81
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 104
Em homenagem à memória do meu avô
Demar, flamenguista inconformado,
E para minha avó Didi, que assiste às
partidas todo domingo.
“En un partido de fútbol caben infinidad de novelescos episódios”
Alejandro Dolina
INTRODUÇÃO
Em uma crônica publicada em seu último livro, que leva o expressivo título El
fútbol, de la mano, Eduardo Sacheri reconhece que “muchos de nosotros usamos el
fútbol para muchas cosas importantes. Por ejemplo, para conocernos a nosotros
mismos” (2017, p. 14). Pouco mais de uma década antes, Franklin Foer já intitulava seu
importante obra com uma afirmação que a muitos poderia parecer pretensiosa: Como o
futebol explica o mundo. Numa imbricação dessas duas formas de ver o fenômeno
futebolístico como algo que nos ajuda conhecer a nós mesmos e ao mundo em que
vivemos, esta dissertação tem como tema a análise de aspectos sociais implicados nas
representações do futebol presentes na literatura argentina. Trata-se da percepção de que
o universo do esporte manifesta uma série de elementos relacionados aos costumes e
hábitos sociais que podem ser estruturadores de indivíduos e grupos. Algumas destas
características se fazem presentes não só pela prática esportiva, mas também se
manifestam na esfera literária de representação do esporte, constuindo um ponte entre o
campo das produções simbólicas e os espaços mais cotidianos nos quais os indivíduos
jogam, torcem, compartilham sentimentos, estruturam redes de memórias, constroem
identidades. Segundo Marc Auge, “el fútbol constituye un hecho social total porque
está relacionado con todos los elementos de la sociedad, pero también porque se puede
analizar desde diferentes puntos de vista” (1998, s.p., grifo nosso).
O olhar lançado aos temas e problemas, práticas e expedientes rotineiros de
sujeitos sociais, como, p. ex., torcedores e torcedoras, profissionais do esporte, amigos e
amigas de esquina ou de bar que se reúnem em encontros para disputar ou assistir às
partidas, juntamente com a pronlematização crítica das produções da imaginação
literária constituem os níveis basilares da discussão que desejamos pautar nessa
dissertação, isto é, a promoção do estudo da sociedade fundado nos modos de
representação de uma prática (“fato social total”) que nos permite ler distintas
dimensões do social. A ponderação sobre esses parâmetros tem como propósito a
racionalização de um espaço simbólico específico, o universo das quatros linhas e suas
múltiplas implicações sociais, que engendra rituais e práticas concretas na sociedade,
expressando diversos aspectos de organização da cultura. Desse modo, o resultado final
da nossa pesquisa apresenta-se sob a forma de um texto através do qual se busca ler a
sociedade por meio de um determinado locus literário ainda bem pouco explorado.
12
Na segunda metade do século XX, vemos surgir no campo literário argentino um
número expressivo de narradores que passam a escrever relatos ficcionais cujo tema é o
futebol. Entre eles, poderíamos destacar os nomes de Pablo Rojas Paz, Roberto Jorge
Santoro, Osvaldo Soriano, Roberto Fontanarrosa, Juan Sasturain e Alejandro Dolina.
Com a chegada de novas gerações que deram continuidade a essa dimensão dos
diálogos entre literatura e futebol, observamos, já no século XXI, além do surgimento
de novos escritores que conjugam as duas paixões, a exemplo de Eduardo Sacheri e
Alejandro Parisi, a presença crescente da figura feminina em uma área tradicionalmente
dominada por homens. Entre as narradoras que passam a investir nessa temática,
poderíamos mencionar Liliana Hecker, Gabriela Cabezón Cámara, Selma Almada,
Esther Cross, entre tantas outras.
Observa-se já uma grande quantidade de produções por escritores e escritoras
reconhecidos pelo cânone e, gradualmente, os estudos sobre o tema vem ganhando
amplitude na crítica da literatura, a exemplo de Ignacio Martino, estudante da Faculdade
de Comunicação de La Plata, com o artigo “Fútbol y literatura: um pase entre líneas”
(2015), e Daniel Marroquín Botero, estudante da Faculdade de Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá, com a publicação “Los héroes del fútbol:
una nueva épica latinoamericana” (2010), que investem na discussão, propondo novas
formas de estudar o contexto social e o campo literário latinoamericano através da forte
marca cultural do futebol.
Na sociologia não faltam referências que tratem do vínculo entre futebol e
sociedade. Pablo Alabarces (2009) demonstra, com o aporte de Néstor García Canclini,
como as representações ligadas ao esporte, mediadas pelo mercado, podem transformar
o sentimento nacionalista em produto e os cidadãos em consumidores. Em outro
momento rico dessa linha de pesquisa, no livro Fútbol y patria (2007), o professor da
UBA e pesquisador do Instituto de Investigaciones Gino Germani contextualizará a
história argentina de acordo com os acontecimentos do mundo da bola, articulando
desde as sagas de equipes locais até os grandes momentos de comoção atribuídos às
conquistas e aos deslizes da seleção nacional. María Graciela Rodríguez (“The Place of
Women in Argentinian Football”, 2010) debate a dominação masculina dentro do
futebol, proporcionando uma crítica ao modelo hegemônico de masculinidade que
vigora nas arquibancadas. Ramón Llopis-Goig (2009) sinaliza a descentralização dos
nacionalismos frente ao crescimento das identificações com grandes clubes, como Real
Madrid e Barcelona, no nível global, sugerindo o desenvolvimento de um cenário pós-
13
nacional no futebol. Alejandro Fabbri (2006) fará um mapeamento do modo como as
paixões clubistas se organizaram no território argentino. Willian Mendoza Gil (2016)
propõe uma leitura crítica do mercado global no qual o esporte se insere, partindo das
Olimpíadas de 2016 no Rio para convalidar a tese de que as representações midiáticas
de grandes espetáculos desportivos regulam e estruturam os comportamentos e
aspirações sociais dos indivíduos. Juan Villoro (2014), de maneira muito irreverente,
debaterá particularidades de jogadores, times e personagens históricos vinculados ao
futebol, com o intuito de explorar a dramaticidade característica do esporte. Por fim,
Richard Giulianotti (2002) delineia os marcos históricos e sociais sobre os quais o
futebol se construiu, ressaltando as problemáticas de classe social, industrialização e
popularização do jogo.
O impasse em relação às abordagens cruzadas de futebol e literatura representa
uma das inúmeras facetas do que no século XX irá se configurar como a tensão
hierárquica que opõe “alta cultura” e “cultura de massa”, numa época em que ainda se
falava de “cultura de elite” versus “cultura popular”, e a “cultura de massas” aparecia
como um mediador entre ambas. Dentre as principais observações sobre a aparição e o
desenvolvimento da cultura de massa, a dessublimação da arte é a que mais nos
interessa para o desenvolvimento deste estudo.
Walter Benjamin, em “A obra de arte na era da possibilidade de sua reprodução
técnica” (2017), dá um enfoque privilegiado às, até então, novas formas de produção e
reprodução do objeto artístico. Ao identificar que a obra de arte sofre uma perda de sua
aura a partir do momento em que pode ser reproduzida do modo inquantificável, isto é,
rompendo o caráter ritualístico da relação artista/obra que a mantinha na esfera do
sagrado, Benjamin privilegia os traços formais e os meios pelos quais esse novo modelo
se manifestava (2017, p. 18-19). A fotografia, o cinema e o rádio merecerão, nesse
momento, uma atenção particular, pois não se tratava apenas do conteúdo a ser
apresentado pela obra, mas dos modos inovadores de representação e, invariavelmente,
das diferentes maneiras de percepção que tais mudanças operavam.
Hoje a interação entre essas formas de cultura tornou-se cada vez mais dinâmica
e as estratificações que as situavam em espaços mais ou menos estanques já não se
sustentam. Esses câmbios se tornariam ainda mais significativos quando as novas
possibilidades de fazer arte não se detinham exclusivamente sobre seu próprio domínio,
aproximando a arte e a vida prática. O que até certo momento se demonstrou como
transformação técnica adquiriu importância maior na medida em que se compreendiam
14
as modificações sociais dentro deste panorama. Desde o instante em que a arte adentra o
cotidiano, as variações recorrentes no âmbito artístico significam ao mesmo tempo a
construção de novas sensibilidades e, consequentemente, mudanças no social,
constituindo outros modos de perceber não só a arte, mas a própria realidade na qual se
insere, como sinaliza a leitura de Jesús Martín-Barbero sobre o teórico alemão. Segundo
ele: “a arte se fará „acessível ao povo como os parques‟, oferecida ao desfrute de todos,
introduzida na vida como um objeto a mais, dessublimado” (2015, p. 76).
Edgar Morin enriquece a discussão com ponderações substanciais sobre a
matéria de acordo com seu quadro semântico: “uma cultura fornece pontos de apoio
imaginários à vida prática, [e] pontos de apoio práticos à vida imaginária” (2011, p. 5).
Historicamente, só foi possível entender arte enquanto mais uma das formas
socializadas da cultura após ela ter descido de seu patamar sacralizado e ter se
incorporado ao solo da realidade do homem comum. Nesse sentido, vale ressaltar que
grande parte dos elementos que compõem a rede de significados da vida social estão
ligados diretamente às produções artísticas e aos veículos de informação. Morin encara
a cultura como algo fundamental para entender como a sociedade se reestrutura durante
e após os acontecimentos marcantes nos finais da década de 1960 no mundo todo. Para
ele, a cultura não é um código, mas uma série de intercâmbios de sentidos que
produzem arquétipos e estruturam a vida dos indivíduos sociais. De acordo com Morin:
“a cultura de massa é uma cultura: ela constitui um corpo de símbolos, mitos e imagens
concernentes à vida prática e à vida imaginária, um sistema de projeções e de
identificações específicas” (2011, p. 6). Dito de outro modo, a cultura de massa
entranha a vida social através da formulação de um imaginário comum que organiza os
sentidos de percepção da realidade.
Nesse sentido, a representação na literatura de temas que transitam entre o
popular e o massivo, no nosso caso, o futebol, nem sempre recebeu a devida atenção ou
respaldo acadêmico, impossibilitando muitas das vezes o desenvolvimento de estudos
substanciais.
Incluída também a crítica negativa que se sustenta sob as bases do juízo
canônico, dois fatores serão centrais para observar o menor valor atribuído pela
academia sobre a representação do universo futebolístico na literatura: 1) os aspectos
estético-formais (VILLORO, 2014) e 2) o processo civilizatório de construção do
Estado e das práticas sociais ligadas a ele (VILLORO, 2014; ELIAS & DUNNING,
1992).
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A respeito do primeiro ponto, inserido na discussão relacionada à particularidade
dos gêneros literários, Juan Villoro põe em questão a dramaticidade dos relatos
originados nos estádios e nas partidas disputadas entre duas equipes de futebol:
Cada cierto tiempo, algún crítico se pregunta por qué no hay novelas de
fútbol en un planeta que contiene el aliento para ver un Mundial. La
respuesta me parece bastante simple. El sistema de referencias del
fútbol está tan codificado e involucra de manera tan eficaz a las
emociones que contiene en sí mismo su propia épica, su propia tragedia
y su propia comedia. No necesita tramas paralelas y deja poco espacio a
la inventiva de autor. (2014, p. 22)
Como ponto de partida, o autor situa o futebol como uma espécie de gênero
narrativo que não se constitui suficientemente pela apresentação em campo, mas que
depende de uma narratividade sobre a qual se constrói na forma de relato. A
composição estética das representações do futebol derivaria dessa autonomia narrativa
própria ao esporte.
As partes que constituem o drama ou o próprio relato se enunciam prontamente a
partir do mundo da bola, que vive de seus próprios personagens, mitos e lendas. Para
ele, a literatura se encarregaria, portanto, de recontar o que já foi narrado em outro
universo. Daí a dificuldade proveniente da gênese formal. Uma estética construída por
cronistas e narradores de futebol, ainda que utilize ferramentas narratológicas, não se
enquadraria em definitivo no âmbito da literatura. No entanto, na passagem de um
campo a outro, aqueles que se propõem a escrever literatura sobre futebol são
capturados imediatamente pela estrutura formal que se fortaleceu tradicionalmente pelas
crônicas de jornais, pelos canais esportivos e pelo respaldo da cultura popular, mas
nunca pelo cânone da crítica literária. Não por acaso, em diversos trabalhos, incluindo
este, encontraremos uma manifesta demarcação nominal entre o que é literatura e o que
é literatura de futebol. A partilha do espaço literário não é certificada e, muitas vezes,
não é reconhecida.
Sob o segundo aspecto, Norbert Elias e Eric Dunning, em A busca da excitação
(1992), e o mesmo Juan Villoro, em Dios es redondo (2014), irão ressaltar, sob
diferentes perspectivas analíticas, os rastros do processo civilizatório no/através do
futebol e seus efeitos na sociedade e na literatura.
Elias e Dunning postulam que o futebol foi um dos instrumentos que ajudaram
na constituição dos estados modernos europeus e na reformulação dos costumes sociais.
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O crescimento do esporte em questão, a partir do século XIX, se deu paralelo ao
fortalecimento dos Estados Modernos e à expansão industrial, acarretando uma
transição de hábitos e práticas sociais por parte dos indivíduos. Tomando como base a
violência decorrente das relações ainda não plenamente mediadas pelo domínio estatal,
os teóricos assinalam que o controle das disputas através do esporte possibilitou a
pacificação dos conflitos e, posteriormente, “a monopolização do direito de utilização
da força física” (1992, p. 30). No bojo de um movimento que tem como propósito a
regulação das atividades sociais, a reprodução estrutural pela população do que se
experienciava através das condutas desportivas pacificadas agenciava novas formas de
interação na sociedade e deslocava o âmbito das pulsões para a excitação proporcionada
pelos eventos. O que se mantém paradoxal nessa elucidação do processo civilizatório é
exatamente a violência praticada pelos grupos de torcedores fanáticos, como as “barras
bravas” argentinas ou o hooliganismo, no caso inglês. O irracionalismo presente nas
manifestações de torcidas organizadas se choca com o conceito de civilização e
ressuscita no universo do futebol um espectro de barbárie, levado a cabo até o século
XXI.
Já Villoro, por uma via alternativa, ressalta os indícios não civilizatórios do
futebol. Diz ele que:
el fútbol le parecía menos intelectual que el tenis o el ping-pong porque
carecía de la intermediación de la raqueta. Sus movimientos ocurren en
bruto, sin pasar por un instrumento civilizatorio; además, prescinde de
las manos, fundamento de la cultura. El tenis presupone un desarrollo
histórico más complejo: la forma de llevar el score es un capricho de la
razón y las raquetas confirman el ingenio de una especie industriosa,
capaz de aprovechar tripas de gato. (2014, p. 60)
Na comparação bem humorada entre o tênis e o futebol, é feita uma leitura que
toma por base a industrialização e a cultura como marcos centrais para o
desenvolvimento da civilização. O uso dos pés para controlar a bola se contrapõe ao uso
das mãos, notadamente assinalado pelo manejo de objetos, diferença que revela a
distinção de uma cultura social/racional para uma natureza animal. A racionalização não
se exprime apenas no domínio de instrumentos, mas na própria capacidade industrial de
produção de bens, diferentemente do futebol onde, no âmbito doméstico ou amador,
pode ser usado no lugar da bola qualquer outro objeto que possibilite o jogo, quer seja
uma bola feita de trapos ou uma tampinha de garrafa. Isto é, não há exigência específica
que impossibilite a prática do esporte como entretenimento: “el deporte de las patadas le
17
parecía un regreso a la temprana edad del hombre sin utensilios” (VILLORO, 2014, p.
60).
O estigma irracionalista faz com que se perpetue um rechaço evidente ou uma
desconfiança em relação aos temas do futebol na produção de textos literários. Ainda
que os atos de violência e o fanatismo de torcidas possam demonstrar certos pontos
contraditórios do processo civilizatório, escrever sobre futebol não exime ou inibe os
autores e as autoras de tratar sobre os temas universais relativos à sociedade sobre os
quais gira a esfera literária.
Assentando os dois pontos sobre o embate entre os defensores da “alta cultura” e
os que admitem a entrada da “cultura de massas” na literatura, o traço de distanciamento
teórico cria suas raízes no cerceamento do campo de investigação a partir do qual a
vertente estético-formal e a tradição civilizatória presente na evolução da escritura se
instalam hegemonicamente como cânone crítico-literário frente à emergência de novas
discussões que lutam por afirmação no cenário acadêmico-institucional.
As mudanças decorrentes da produção e do objetivo da produção das obras de
arte alteram o modo como operam os campos de estudo. Sem negar a importância da
tradição nas linhas de desenvolvimento teórico, parece-nos necessária a abertura para
pensar através das representações literárias temas que na sociedade desempenham uma
forte influência no modo de ver e agir socialmente.
Raymond Williams e Guy Debord assinalam substancialmente sobre a
dramatização do social e sua transformação em espetáculo.
Williams, ao investigar sobre o teatro inglês dos séculos XVIII e XIX, encontra
resíduos marcantes de transições acontecidas no passado londrino nas atividades
próprias ao século XX. Partindo do pressuposto de que a escrita foi naturalizada nas
sociedades modernas, ele aponta as novas relações sociais que se constituem de acordo
com a inserção da imaginação na vida cotidiana. Diante disso, a principal constatação é
a de que “o drama não é mais coextensivo ao teatro” (2014, p. 13). Primeiramente, ele
observa as diferenças entre textos para serem lidos em silêncio e textos para serem
encenados ou lidos em voz alta. O que se instala socialmente a partir da escrita tornar-se
“comum” é a transposição do efeito dramático da performance para a escrita,
coexistindo em ambas as esferas. Um texto de Shakespeare, que deveria ser reproduzido
através de montagens e atuações, passa a ser lido. Sem esquecer das desigualdades
econômicos-sociais que impossibilitam a democratização plena da aprendizagem de ler
e escrever, essa nova tendência propicia ainda um deslocamento da atividade do olhar
18
(teatro) para a atividade da imaginação (escrita). Uma “escrita dramática” a ser
propriamente encenada, quando lida, desapropria o drama de seu lugar de origem e
passa a entranhar as teias da representação na modalidade escrita; o que designa,
portanto, a possibilidade de dramatização da vida prática do público leitor: “trata-se do
fato de que o drama, de modo bastante novo, é construído hoje no ritmo da vida diária”
(WILLIAMS, 2014, p. 14).
Em segundo lugar, no plano físico, Williams salienta que, para além do teatro,
muitas encenações dramáticas se realizam no cinema e na televisão. Poderíamos
acrescentar, junto a estes dois, as propagandas, os palcos musicais, a rádio (com uma
importância maior para o século XX) e os eventos esportivos. Desse modo, inclusa a
mudança de panorama decorrente da naturalização da escrita, há ainda a inserção
constante de representações dramáticas na prática do cotidiano. Dramatizar torna-se um
hábito e um costume, uma atividade própria a todos os indivíduos, desde o âmbito
privado até a esfera pública. O drama carregado de uma espécie de independência,
espalhando-se entre outros veículos de comunicação e de representação, incorpora o
sujeito, sua consciência e seu inconsciente, passando a designar não só uma prática
restrita à arte, mas sobretudo um meio através do qual os indivíduos interagem com a
sociedade. Transfigura-se numa forma de olhar social, individual, coletivo ou
institucional, que significa e produz leituras, constrói e destrói narrativas, cria e derruba
símbolos nacionais, envolve o real, ficcionalizando-o.
Há um exemplo interessante na peleja entre Argentina e Inglaterra na Copa do
Mundo de 1986 no México. Suas expectativas renderam todo o tipo de comentários da
mídia argentina e mundial. Essa partida foi jogada tanto no campo de futebol, quanto no
campo de batalha. O Estádio Azteca, localizado na Cidade do México, converteu-se
durante 90 minutos no cenário da guerra das Ilhas Malvinas. O que seria apenas um
jogo de copa transformou-se em um embate histórico de proporções heroicas em defesa
do nacionalismo argentino. Uma vingança simbólica por todas as mortes de jovens
soldados, causadas pelo Exército Inglês, na disputa pelo território insular. O tempo foi
deslocado para anos antes, as sensações do povo afloraram diante da possibilidade de
vencer a Inglaterra, os jornais incitavam analogias entre a partida e a guerra injusta.
Eduardo Sacheri, em um conto chamado “Me van a tener que disculpar”, escreve:
Son emociones que no nacieron por el fútbol. Nacieron en otro lado.
Enun sitio mucho más terrible, mucho más hostil, mucho más
irrevocable. Pero a nosotros, a los de acá, no nos cabe otra que contestar
19
en una cancha, porque no tenemos otro sitio, porque somos pocos,
porque estamos solos, porque somos pobres. (2000, p. 16)
A ressignificação do espaço esportivo perpassa pelos desejos não consumados
na realidade das Malvinas, pela dificuldade no combate bélico, pelas frustrações
amargas experienciadas pelo povo desde a guerra. A dramatização da copa de 1986 para
os argentinos teve seu ponto mais alto quando o título foi conquistado; no entanto, esta
partida específica atrai mais os holofotes do que a vitória maior do campeonato. Nela
estavam desde os elementos mais enraizados no trauma histórico até as características
do universo da bola: Argentina com estilo mais fluído, demonstrando leveza e
atualidade; Inglaterra com uma formação mais rígida, presa à tradição e aos valores
conservadores de organização em campo. Todas essas matérias serviram como
ingredientes para compor o drama encenado dentro e fora de campo. Um que se traduzia
pelos dribles e pela raça de Maradona, ditando o ritmo do jogo, como aquele que
carregaria a esperança da vitória de uma nação inteira frente ao inimigo inglês; outro,
pela visão do povo, que diante da televisão ou com os ouvidos colados no rádio,
ajudaram a compor a representação ideal de uma partida que figurou como a revanche
que não foi possível nos campos de batalha. Esse evento fica registrado na história
argentina e reformula os níveis de consciência de um povo sobre ele mesmo, inaugura
novas lendas, outros mitos que compõem o imaginário social.
De maneira correlata, a crítica situacionista trouxe o conceito de “sociedade do
espetáculo” (DEBORD, 2003). A dramatização se vê atrelada à espetacularização de
seu conteúdo. A lógica mercantil penetra as mais diversas camadas sociais. Nas
produções e eventos de massa, há uma série de representações que não só mostram
mimeticamente as relações e os espaços sociais, mas que já contém o germe da
reprodução de costumes ali na situação e no objeto representado. O sujeito compromete-
se de tal modo com o espetáculo que se vê como parte dele ou, radicalmente, como o
próprio espetáculo. Nesse momento de autonomização, os sujeitos encontram-se
imersos na dinâmica do mercado, eles mesmos como parte da representação que
consomem e, dada certa limitação, como agentes, individuais e coletivizados, da vida
social, alternando gradualmente os níveis de demanda e as exigências pelas quais a
produção deve se orientar.
O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o
resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um
20
complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da
irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de
informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do
entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida
socialmente dominante. (DEBORD, 2003, p. 15, grifo do autor)
Guy Debord, em tom crítico, sinaliza a mudança de panorama no qual a
sociedade se organiza, isto é, através da representação, do espetáculo que o mundo
ganha sentido material. Não é algo tempestivo ou substituível, é o lugar onde as
representações ganham autonomia e determinam o modo sobre o qual olhamos a
realidade. É o que se coloca mais próximo ao sujeito e o interpela de todos os lados. E,
dialeticamente, essa mesma prática mantém uma tensão com os níveis de enunciação do
discurso, ora repelindo-os, ora aceitando-os. Pode-se encontrar algo correlato no futebol
feminino. Uma clara demarcação masculina ainda existe majoritariamente no universo
da bola. Ainda assim, a entrada de mulheres nos gramados e nas torcidas é cada vez
mais frequente. Ainda que sofra inúmeras resistências, elas são combatidas com ataques
que tem por objetivo a despossessão do espaço e, principalmente, a destituição da
hegemonia masculinista no jogo. Esse fenômeno é exemplo de um movimento social
maior, que permite a abertura de novos campos de atuação e de representação feminina.
A produção se altera devido aos interesses dentro de determinado consumo. A demanda
já existia; agora, maior do que antes.
No Brasil, Roberto DaMatta liga diretamente a dramatização e o futebol. Ao
apropriar-se da noção de “drama social” (1982), inspirada nas obras de Victor Turner e
Max Gluckman, ele diz que “o futebol praticado, vivido e teorizado [...] seria um modo
específico – entre outros – através do qual nossa sociedade fala, apresenta-se, revela-se,
exibe-se, deixando-se descobrir” (1986, p. 105).
O futebol permite inúmeras relações metafóricas com a sociedade. Ele é
organizado a partir de uma reunião de códigos e valores já dispostos e negociados
socialmente, mimetizando os espaços jurídicos da lei, da guerra, do nacionalismo, da
diplomacia, da comunhão coletiva. Ao internalizar elementos provenientes do campo
social, ele regulariza condutas ético-morais, estrutura um sistema de arbitragem comum,
demarca grupos/equipes por meio de uniformes, exprime rivalidades antigas e inaugura
outras. Seu desenvolvimento se deu tanto no âmbito do esporte (instituições, estilos de
jogo, esquemas táticos, formas de treinamento) quanto no âmbito da representação.
Como aparato representativo, o futebol, além de produto, passa a funcionar como uma
21
das esferas nas quais sentidos do social são gerados. Ele não se configura somente como
um entretenimento através do qual pessoas interagem entre si. Torna-se um espaço
positivo que gera a possibilidade de ascensão social para classes subalternas, uma cena
para o desenvolvimento de novas sociabilidades e relações afetivas, um lugar da paixão
e da excitação. Exprime-se, também, como um palco para conflitos territoriais, brigas de
torcidas organizadas, reprodução das desigualdades de gênero, em que a violência
surge, indiscutivelmente, surge como fator problemático. Sintetizado no pensamento de
DaMatta, o universo da bola funciona como uma das formas específicas através das
quais a sociedade se torna inteligível. Trata-se de um dos pontos de contato pelo qual
sujeitos entendem, pensam e integram a realidade.
Dessa forma, ao trabalharmos sob a hipótese de que a literatura de futebol é,
sobretudo, uma porta para o conhecimento dos expedientes normativos e costumeiros de
conjunturas comuns à vida prática e às estruturas hegemônicas, pretendemos pensar os
textos como alegorias do social.
Segundo Walter Benjamin,
Enquanto no símbolo, com a transfiguração da decadência, o rosto
transfigurado da natureza se revela fugazmente na luz da redenção, na
alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história
como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que
desde o início tem em si de extemporâneo, de sofrimento e de malogro,
ganha a expressão na imagem de um rosto – melhor, de uma caveira.
(2016, p. 176, grifo do autor)
O futebol apresenta-se muitas vezes como um campo hermético que tem como
alvo sempre a si próprio. Até mesmo quando se sinaliza uma leitura crítica para além
das quatro linhas que dividem o gramado, o olhar se vicia imediatamente pelas lentes da
bola, ressignificando todo o entorno a partir dos símbolos que fazem parte do universo
futebolístico, isto é, dar nova vida aos variados contextos nos quais o futebol é presente
– reinventar a história nacional e reintegrar a população diante de uma conquista de
Copa do Mundo, como foi o caso da Argentina em 1978 e 1986, assim como o do Brasil
em 1970, reconhecer heróis que estimulam o imaginário coletivo de uma determinada
comunidade ou constatar sobre ritualizações entusiasmadas que reformulam a percepção
das zonas onde uma torcida se concentra. As narrativas se encarregam muito bem do
levantamento destas perspectivas, esboçando sítios da linguagem e expressão de novas
subjetividades, isto é, predominam as representações simbólicas do futebol, revelando-o
22
como redentor que opera uma flutuação de sentidos nos/dos espaços sociais. Uma rua
não é mais uma rua, uma via pela qual se transitam pessoas e veículos, que serve como
lugar de comércio, moradia etc.; ela se transmuta em uma arena de batalha, onde
crianças e adolescentes, pateando a esférica, disputam a fama dentro do bairro. O
futebol atua como o mediador destas relações semânticas.
Levando isso em consideração, sem pretensões de inaugurar correntes
metodológicas, entendemos a necessidade de expor os caminhos do nosso pensamento
para que fique clara a nossa intenção. Benjamin, ao desenvolver seus estudos sobre o
Barroco (1916), tira a alegoria das sombras na literatura, legitimando-a como
modalidade literária. Nos percalços dessa tradição, constituímos nossa leitura, fazendo
alguns ajustes em decorrência das nossas necessidades, sem contrariar a lógica dos
pensadores em questão. Através de manifestações simbólicas, condensadas na forma de
contos literários, delineamos a alegorização das obras, extraindo delas a sociedade
decaída que ali está representada. É dizer, como Idelber Avelar, que a alegoria “está
sempre „datada‟, ou seja, ela exibe em sua superfície as marcas de seu tempo de
produção” (2003, p. 14). Para chegar aos nossos objetivos, vemos necessária a
realização desse duplo movimento: reconhecer as ressignificações do espaços sociais e,
ao mesmo tempo, observar os níveis de reprodução a que os sujeitos se condicionam
dentro dessas mesmas conjunturas. Não é viável hoje entender a realidade por ela
mesma, sem a representação. Para compreendê-la, é necessário ir ao encontro dos
expedientes simbólicos e, em contrapartida, retirar deles os traços típicos sobre os quais
o social se encontra na forma de resíduo – sua forma alegórica. Talvez estejamos indo
em direção ao que Benjamin sugere quando ele diz: “a crítica é a mortificação das
obras. [...] não – como queriam os românticos – o despertar da consciência nas obras
vivas, mas a implantação do saber naquelas que estão mortas” (2016, p. 194). Não
podemos analisar o corpus apenas com as lentes do jogo, independente do movimento
externo a ele. É preciso que haja um processo complexo de intercâmbios entre os dois
horizontes: sociedade e representação.
Diante das problemáticas já apresentadas no decorrer desta apresentação, uma
última mais específica torna-se imperativa para fundamentar os pontos aqui articulados.
Anteriormente, trouxemos a ideia de que a cultura de massas funciona como uma vitrine
do modelo social hegemônico (costumes, hábitos, modos de agir e de pensar).
Decorrente disso, a crítica canônica, por sua vez, tende a desconsiderar, quando
representados pela/na literatura, os potenciais emancipatórios contidos no interior dessas
23
discussões, caracterizando essas manifestações literárias como uma espécie de fruto
vulgar e de menor valor. Isso leva à constatação de que apenas na literatura de tradição
estético-formal, que dialoga com os estilos e trata dos grandes temas universais, há
validade da obra como uma obra literária. Nesse sentido, parece ter razão a crítica
quando estipula as condições para o reconhecimento de uma produção da literatura. No
entanto, esse aspecto de valor se estende ao âmbito do conhecimento, isto é, essa
literatura menor que trata de temas banalizados, cumprindo ou não os requisitos
formais, não tem nada a contribuir para a literatura, enquanto disciplina, e menos ainda
para tratar da sociedade. Nossa discordância se encontra neste exato ponto.
A cultura de massas, desde o século XX, é uma modalidade que apresenta todos
os pontos sobre os quais o social se manifesta. Lendo-a, podemos ao mesmo tempo ler a
sociedade. Associada à literatura, temos uma diversidade de novas obras que ora atuam
no âmbito da pura e simples reprodução dos valores disseminados nas esferas do
mercado, ora trazem consigo a crítica social da cultura desde a representação.
Antonio Candido, ao teorizar sobre os atributos e a função da literatura, explicita
que, além de construir-se formalmente e expressar emoções, visão de mundo dos
indivíduos, ela atua, sobretudo, como uma forma de conhecimento (2011, p. 179). A
noção pressupõe as diferenças acerca das aproximações da teoria sobre o texto literário.
Segundo o autor, a corrente estruturalista prioriza a forma e o conhecimento científico
ao se deparar com a análise textual, descartando por vezes o ponto de vista da obra em
relação à conjuntura histórico-social na qual ela é produzida, biografia do autor ou da
autora etc. A proposta do teórico é a de que se associem as três características para que
seja reconhecida na obra literária seu traço mais marcante: a capacidade de
humanização.
Em relação ao apreço formal, resumindo as posições já colocadas, é necessário
que a obra apresente marcas de desenvolvimento estético, tradicionais ou não, e que se
enquadrem no âmbito literário, mas a desqualificação de uma produção não deve se dar
exclusivamente por esse aspecto.
Quando partimos da literatura como expressão, damos enfoque principal ao
modo de percepção da realidade orientado por um viés subjetivo e, sob esta perspectiva,
a valorização do olhar sobre a realidade indica a determinação da representação sobre o
real. A objetividade do mundo se condiciona ao modo como essas relações são
percebidas pelo sujeito ou grupo. Os costumes, as crenças dão a medida para a
formulação da vida social diante deles. Ao ponderar sobre os objetos da narrativa, no
24
nosso caso, o futebol e a sociedade, deveríamos observá-la segundo os parâmetros
designados pelo personagem ou pelo autor.
Na forma de conhecimento, a literatura adquire uma signifância maior frente ao
indivíduo. Por mais que a esfera literária comporte formas de expressão e que, por
diversas vezes, atue como uma ferramenta para a manifestação das culturas através de
grupos específicos, ela tem a capacidade, sobretudo, de apresentar modos de como a
sociedade se organiza e, na representação, evidenciar referências marcantes do mundo
dos personagens que se alinha diretamente com a face da vida cotidiana. Isso significa
dizer que há um ponto objetivo sobre o qual a obra se constrói e que é fornecido pela
sociedade na qual ela se constrói:
Sem procurar decidir, limitemo-nos a registrar as três posições e admitir
que a obra literária significa um tipo de elaboração das sugestões da
personalidade e do mundo que possui autonomia de significado; mas
que esta autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração no real,
nem anula a sua capacidade de atuar sobre ele.1 (CANDIDO, s.d., p. 86)
Orientamo-nos pela interpolaridade entre a subjetividade e a objetividade
características e presentes nas obras literárias, decorrentes da expressividade subjetiva e
do conhecimento objetivo. Não nos atendo exclusivamente a nenhum dos dois
princípios, mas convergindo-os no interesse de estabelecer com clareza a situação na
qual se determina o espaço social a partir do universo do futebol, seus expedientes
simbólicos e as vías de imaginação coletiva, e, assim, contribuir para uma crítica
cultural.
A interação se dá de modo que não é suficiente para a investigação a
univocidade de um ou de outro elemento. Se pautarmos nossa leitura apenas na
percepção individual ou de grupos fechados, corremos o risco de nos esquivar dos
problemas sociais aos quais pretendemos endereçar grande parte da nossa escrita. Por
outro lado, se baseamos a crítica apenas no estatuto do conhecimento, retiramos o
potencial da obra e caímos no rechaço de qualquer singularidade. Ambos ligados
propiciam uma investida que dá a conhecer, através da exteriorização subjetiva, a
organização do mundo da bola, que traduz substantivamente a hegemonia moral e
estrutural da sociedade, ao mesmo tempo em que permite a realização de uma leitura
1Fonte: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/download/8635992/3701. Acesso
em 28/07/2017.
25
que não observa um caso contingencial, à parte, restringido a seu dominio exclusivo,
mas os pontos de interseção nos quais a realidade se orienta.
A teoria social reconhece, no futebol, processos simbólicos de grande
significado na formação cultural. A sociedade se estabelece inteligivelmente para os
indivíduos por meio de diversas práticas, eventos, espetáculos e representações
(midiáticas, literárias, cinematográficas), agrupando uma série de elementos que se
consolidam na forma de costumes, hábitos, modos de agir e de pensar. O futebol como
um desses espaços onde se constroem narrativas, personagens, ídolos e vilões não se
exclui enquanto um poderoso fator de composição social.
Enquanto forma de conhecimento, a literatura permite a análise de realidades
adequadas a modelos poéticos ou narrativos. O centro da questão pode não se colocar
diretamente sobre o fato essencial de narrar o futebol. No entanto, a literatura, através
do futebol, pode abrir uma nova porta para a discussão crítica de questões fundamentais
à cultura e à sociedade.
26
1. CAMPO ABERTO: entre a erudição e o popular
Na América Latina, o apego das massas ao futebol manifesta um forte traço
cultural, evidenciando marcas específicas de sociabilidade e sensibilidade
individual/coletiva. Em muitos casos, é difícil estabelecer um limite bem definido sobre
as dimensões da influência do futebol na vida de sujeitos sociais. Em torno dele,
atuando como um centro gravitacional, existe uma órbita de subjetividades e diferenças,
envolvendo desde os mais pobres aos mais abastados, desde os mais apaixonados até os
aparentemente desinteressados. O futebol como componente estrutural da cultura
perpassa todas as esferas da sociedade, definindo espaços e práticas de acordo com seus
sistemas simbólicos, expressando através da linguagem um universo que não se
restringe ao estádio, mas que invade a casa aos domingos, promove ritualizações e a
formação de grupos, penetra o ambiente do trabalho, cria ditados populares, instiga o
entusiasmo na vida cotidiana, disponibiliza aos indivíduos a possibilidade de um
vínculo com algo maior, mais concreto e próximo. Como esporte popular, ele se
distanciou dos espaços intelectuais da sociedade, restringindo-se, muitas das vezes, às
áreas da comunicação (radialismo e televisão) e do Estado (como elemento de coesão
do sentimento nacional). Na contramão desse pensamento, Carlos Drummond de
Andrade afirma em meio á vitória do Brasil na Copa de 1958:
Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos de
muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de
organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de
técnica. Indica valores morais e eugênicos, saúde de corpo e de espírito,
poder de adaptação e de superação. Não se trata de esconder nossas
carências, mas de mostrar como vêm sendo corrigidas, como se
temperam com virtualidades que a educação irá desvendando, e de
assinalar o avanço imenso que nossa gente vai alcançando na descoberta
de si mesma. (2014, p. 25)
Disputada na Suécia, a Copa de 1958 representou um abalo entre as perspectivas
eurocêntricas e as latino-americanas. Os europeus desenvolvidos se depararam com um
estilo de jogo mais fluído e artístico, praticado pela seleção brasileira de Pelé e
Garrincha, um futebol completamente distinto daquele marcado por altos níveis de
organização sistêmica das equipes europeias. Para Drummond, o futebol servia como
esse espaço simbólico em que se revelavam as capacidades brasileiras de vencer frente
27
aos contextos de subdesenvolvimento. Mais do que isso, o futebol fornecia ao povo uma
via inteligível para a compreensão da própria identidade brasileira. O valor simbólico da
partida se situava nas características da seleção e de seus principais jogadores, nos
domínios particulares da técnica com a bola que, no gramado, significava o controle do
jogo, mas lidos desde outras esferas sociais representava o potencial de supremacia
brasileira diante das carências sociais.
Drummond já atentava para a leitura do jogo como algo que vai para além de
seus próprios limites, um constructo social complexo que, na cultura, desempenha um
papel determinante na formação identitária de sujeitos e grupos, ressaltando-se assim a
inteligibilidade do mundo através das lentes do futebol. Para além das questões
nacionais, as sensibilidades afloradas pelo esporte atingem o dia-a-dia de indivíduos.
Hilário Franco Jr. relembra uma passagem de Vinícius de Moraes, o qual:
afirmou certa vez que, “no Rio, a formação da identidade passa,
também, pela eleição de um time de futebol”. O poeta, fiel à sua
infância, escolhe o Botafogo de Futebol e Regatas. Não frequenta os
estádios. Não lê o noticiário esportivo. Não ouve as transmissões pelo
rádio. Mas, se perguntam seu time, afirma: “Botafogo”. Não se trata de
uma paixão, mas de uma senha para a cidadania‟. (FRANCO JR.,
2007, p. 210, grifo nosso)
As identidades produzidas a partir do futebol não se constituem de modo
isolado; elas convivem com aquelas mobilizadas pela nacionalidade, pelo trabalho, pela
família, pelo consumo etc. Mesmo quando a paixão pelo futebol ou pelo clube não faz
parte da vida de uma pessoa, o reconhecimento social do indivíduo nas circunstâncias
da vida prática no contextos latino-americanos depende, em certa medida, da escolha de
um time. O futebol reúne uma diversidade de códigos e costumes aplicáveis às rotinas
sociais. A frase “não torço para nenhum time” gera, por vezes, uma espécie de barreira
empática em relação ao enunciador, aparentando não estar integrado à lógica comum do
futebol que agrega milhares de afiliados. Os signos provenientes dessas relações
orientam modos de interação intersubjetiva, construindo identidades tanto de torcedores
(contínuas e extensivas) quanto de não-torcedores (descontínuas e circunstanciais).
Nessa medida, dois grandes poetas brasileiros ajudam a subverter a concepção
despolitizada e dessocializada que orientou grande parte das leituras sobre o futebol no
século XX, isto é, aquelas em que o esporte vigora como puro entretenimeto ou como
elemento de encanto alienante das massas.
28
Os desencontros entre a esfera intelectual (crítico-acadêmica) e o futebol não são
recentes. Eduardo Galeano anota: “La mayoría de los escritores de América Latina
somos futbolistas frustrados” (1995, p. 6). A curta proposição do escritor uruguaio
sinaliza direta e indiretamente alguns pontos fundamentais relacionados à postura do
escritor e do intelectual diante de um tema que ainda está em vias de legitimação no
campo literário.
Frente ao contexto latino-americano, podemos afirmar que dificilmente as
sensibilidades individuais e coletivas conseguem evitar a interpelação das dinâmicas
que envolvem o jogo. Seja pelo mergulho radical na paixão pelo esporte ou, por outro
lado, pelo fato de qualquer indivíduo já estar imerso em um meio social no qual o
futebol atua perenemente, o poder simbólico das trocas realizadas entre os sujeitos
(torcedores e não-torcedores) exprime e, ao mesmo tempo, ajuda a estruturar costumes,
valores e rituais na vida prática. O futebol invade a vida dos indivíduos desde muito
cedo. Muitas das vezes não se trata de uma escolha, principalmente para os meninos,
nos quais o futebol funciona como um mecanismo de construção de masculinidades (Cf.
ARCHETTI, 2003) e elemento gregário na formação de grupos de amigos. Além de ser
uma atividade comum durante a infância, o futebol em diversos contextos atua como o
articulador central do contato interrelacional entre os indivíduos. Desde o gramado até
as arquibancadas, jovens, homens, mulheres, familiares interagem por intermédio de
uma partida disputada entre jogadores profissionais ou pelos próprios filhos e amigos.
Por mais que exista o estigma anacrônico de um rechaço intelectual pelo esporte
de massas, reforçado pela força de manipulação política e pela violência praticada nos
estádios, o escritor e o intelectual não estão isentos de serem interpelados pelas teias de
sentido do mundo da bola. Galeano sinaliza uma realidade muito comum na América
Latina, que demonstra a formação de sujeitos orientada por um imaginário coletivo
desenvolvido a partir do futebol. E, assim, afirma que, na América Latina, a profissão
de escritor não se separa das experiências construídas durante a vida pelo esporte. Mais
ainda, ele expande na literatura a possibilidade de criação de um novo modelo de
escritor, que irá representar outros tipos de sujeitos e, da mesma forma, irá representar-
se enquanto uma outra espécie de escritor.
A aproximação entre literatura e futebol se projetou como uma das vias de
transformação dos esquemas da tradição literária clássica. A imagem dominante do
escritor, como um ser recluso, distante observador do mundo, passa a conviver com a
ideia de um literato que transita entre as massas, que tira suas histórias do mundo
29
simples das arquibancadas ou de uma simples partida entre clubes de várzea, constrói
narrativas atravessadas pela experiência do torcedor anônimo ou pelas práticas do
jogador mais bizonho. Um escritor que não esconde a identificação com os homens
comuns, com suas paixões e valores partilhados dentro desta verdadeira família que é a
torcida.
A formação da literatura de futebol na América Latina passa por autores como o
tucumano Pablo Rojas Paz, conhecido como “El Negro de las tribunas”, que já nos anos
de 1930 já se destacava com suas crônicas esportivas; pelos uruguaios Mario Benedetti,
Horacio Quiroga e o já mencionado Eduardo Galeano; mexicanos como o narrador
contemporâneo Juan Villoro; e até mesmo por nomes hoje canônicos como Jorge Luis
Borges e Adolfo Bioy Casares. No quadro argentino, o principal avanço nas produções
se deu, a partir da década de 1970, com a investida de Roberto Fontanarrosa, Jorge
Sasturain e Osvaldo Soriano. Outros nomes dessa mesma época, como Roberto Jorge
Santoro, Mempo Giardinelli e Alejandro Dolina, darão impulso às produções
futebolísticas e também passarão a incorporar o rol de grandes escritores da literatura de
futebol argentina. A partir do século XXI, ela torna-se mais populosa, concentrando
parte significativa da produção de referências da escrita contemporânea: Eduardo
Sacheri, Alejandro Parisi, Gabriela Cabezón Cámara, Ana María Shua, Martín Kohan,
Esther Cross, Selva Almada e Mariana Henríquez são alguns nomes em meio a uma
legião e narradores que surgem do diálogo rico e complexo entre literatura e futebol.
Durante sua construção, o campo da literatura de futebol se colocou em disputa
com a tradição canônica, estabelecendo trocas simbólicas que repercutiram na tensão
entre o popular e o intelectual no âmbito da produção literária. Conforme afirma Pierre
Bourdieu:
O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura específica
da oposição – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida
intelectual e artística – que se estabelece entre, de um lado, o campo de
produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os
instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinados (ao
menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que
também produzem para produtores de bens culturais e, de outro, o
campo da indústria cultural especificamente organizado com vistas à
produção de bens culturais destinados a não-produtores de bens
culturais (“o grande público”) que podem ser recrutados tanto nas
frações não-intelectuais das classes dominantes (“O público cultivado”)
como nas demais classes sociais. (2015, p. 105)
30
Ainda hoje, podemos observar alguns conflitos na atmosfera intelectual para a
legitimação do futebol como tema próprio à literatura, ainda que suavizados pela
consolidação do campo por grandes autores. Trata-se de uma produção que está no
limiar entre os polos que demarcam a hierarquia das posições no campo intelectual, que
determinam a dignidade e o valor do tema diante da produção. A literatura de futebol
pressupõe não só o embate, mas o encontro de diferentes técnicas narrativas, desde as
crônicas desportivas e a narração das partidas até as mais sofisticadas estruturas
literárias, assim como a convergência da tradição erudita com a cultura popular. Em
grande medida, não é só o aumento da escrita de contos de futebol que o enaltece
enquanto uma das alas pelas quais a literatura transita e discute. O trabalho de escritores
e escritoras, já respaldados pela crítica e reconhecidos por suas obras, atua
significativamente para a legitimação do futebol nos meios literários da crítica e da
academia. Como diz Jacques Rancière, referindo-se à discussão benjaminiana sobre a
obra de arte e sua reprodutibilidade técnica: “para que um dado modo de fazer técnico –
um uso das palavras ou da câmera – seja qualificado como pertencendo à arte, é preciso
primeiramente que seu tema o seja” (2009, p. 48). Em outras palavras, para que a
produção vinculada à literatura de futebol seja legitimada, é necessário, primeiro, que o
futebol o seja enquanto tema literário.
1.1. O popular representado: encontro entre torcedores e a literatura
Grande parte dos relatos produzidos pela literatura de futebol no século XX se
colocava, principalmente, na posição de narrar a paixão de torcedores e as partidas em
seus mais preciosos detalhes, isto é, o futebol como sujeito da narrativa. Mais à frente,
já no século XXI, as narrativas englobariam discussões mais profundas, lidando
diretamente com diferentes problemáticas sociais – subalternidade, problemas de
gênero, xenofobia, disputas políticas nacionais e internacionais etc. –, caracterizando
um uso do futebol como mediador alegórico em tais representações.
Fica evidente na postura de certos escritores a afiliação e as homenagens à
paixão por um clube específico, como é o caso de Roberto Fontanarrosa, torcedor
fanático do Rosário Central, ou Osvaldo Soriano, que expressa seu o amor pelo San
Lorenzo de Almagro.
31
A partir deste ponto, estaremos observando em alguns contos como o encontro
entre o popular e a esfera literária se dá mediante a representação de torcedores nos
espaços da bola. Para tanto, analisaremos dois contos de Fontanarrosa e um de Mempo
Giardinelli.
Em “El ocho era Moacyr” (2005), Fontanarrosa narra um encontro de amigos no
bar “El Cairo”, até o momento em que se incomodam com a presença de um indivíduo,
aparentemente deslocado em meio á cena: “El que tiró la primera piedra fue Ricardo,
apenas después de haberse ido el tipo. – Che... ¿quién es este coso?”
(FONTANARROSA, 2005, p. 54). O termo “coso” aqui se coloca como masculino de
“cosa” (“coisa”), isto é, a princípio o indivíduo não tem um nome, é uma coisa, algo que
não carrega humanidade, é de outro “mundo”.
O conto trabalha o não reconhecimento do sujeito entre um grupo específico de
torcedores. As marcas desse indivíduo silencioso surgem à medida que a desconfiança
dos amigos reunidos no bar cresce. Pouco a pouco, constroem-no de acordo com as
diferenças estabelecidas pela vestimenta, trejeitos e gestos: “lo veo muy fino”, “muy
delicado”, “medio trolo”, “de chaleco” (colete usado em trajes a rigor), “el tipo es serio,
es educado, es un tipo correcto”, “muy fino, muy fino. Demasiado”. As características
surgem na comparação da postura grupal em detrimento da postura elegante desse
outro, formuladas ora por uma masculinidade rudimentar, ora pelo aspecto elitista,
determinando nesse primeiro momento um apelido que reflete os sintomas de
estranhamento: “Sobrecojines” – literalmente, “sobre almofadas”. Uma série de traços
não compartilhados coletivamente naquele ambiente esboçam as fraturas na composição
da imagem do sujeito pelo grupo de torcedores.
O bar apresenta características definidas coletivamente pelo grupo que o
frequenta, tornando-se um espaço de interação interpessoal e de construção de
sociabilidades voltadas para o popular, como esboça a reação irônica de Belmondo: “No
se puede ser culto acá” (FONTANARROSA, 2005, p. 56). A diferenciação entre o
grupo de amigos e “Sobrecojines” se esboça tanto pelos valores coletivos quanto pelos
sentidos do espaço em que se encontram. Decorrente da primeira má impressão, a
imagem de “Sobrecojines” é construída como contraponto da imagem grupal, alteridade
absoluta em relação aos integrantes do grupo, como um estrangeiro em meio à estética
compartilhada e à ética dos freqüentadores do bar:
32
En verdad, vestía bien, o al menos demasiado formal para el nível
medio, y participaba poco de las conversaciones. Asentía, a veces metía
algún bocadillo, sonreía a menudo, algo distante, mirando hacia la calle,
arreglándose la corbata a cada rato (era certo). Tomó notoriedade el día
que pidió un whisky. “Blenders” dijo, con pronunciación cuidada y
Moreira lo miró como si le hubiese pedido un plato asiático. “Mirá que
vale casi un palo, macho”, le había advertido el mozo, cosa que al tipo
pareció no inmutarlo. Y entre el sembradío de pocillos de café, vasos de
agua, alguna taza de te o mate y servilletitas de papel arrugadas, el
generoso vaso de whisky con hielo parecia un paquebote entrando a
puerto rodeado de remolcadores diminutos y oscuros.
(FONTANARROSA, 2005, p. 57)
O limitado contato interpessoal é ainda assim um forte gerador de desconfianças
e o motivador de um maior distanciamento, marcado por elementos que ganham
múltiplos sentidos: a escolha da bebida ou a forma como “Sobrecojines” se expressa
funcionam como um traço identitário incomum no espaço de “El Cairo”. O sujeito não é
reconhecido até que haja uma interseção de valores, gostos e afinidades com a
subcultura local. O silêncio do personagem reflete uma superfície que é significada de
um modo específico pelos amigos do grupo. Os olhares da coletividade carecem de
elementos para o reconhecimento do indivíduo enquanto sujeito, destacando-o,
individualizando-o como um corpo estranho.
Na sequência, a narração se concentra sobre o dia em que o grupo de torcedores
discute sobre futebol, relembrando escalações da equipe Rosario Central. Durante o
diálogo, surgem dúvidas sobre as posições, os números das camisas e os nomes dos
jogadores. Não chegar a concordar sobre o nome do jogador que usava a camisa 8 na
formação de um determinado ano. Nesse momento, o personagem intervém de modo
inesperado e sua fala provoca espanto entre os amigos: “– no... – corrigió
“Sobrecojines” –. Domingo Pérez es anterior, es de la época de Pepillo, el nueve ese
español que trajo River.” (FONTANARROSA, 2005, p. 60). A partir de então, trava-se
um encontro provocado por uma afinidade comum. A conversa segue e a partilha
identitária se consagra por intermédio do futebol. A paixão pela mesma equipe permite
a abertura ao diálogo e ao compartilhamento de experiências passadas. Ela opera a partir
da memória afetiva do grupo, da torcida e da equipe, provocando entusiasmo entre os
personagens, ao relembrar de uma partida marcante no estádio do rival, Newel‟s Old
Boys: “Ese partido contra el Real Madrid! – se entusiasmó el hombre [“Sobrecojines”]
–. En cancha de Ñul [Newel‟s Old Boys].” (FONTANARROSA, 2005, p. 61). O
33
entusiasmo do personagem diante da paixão pelo clube evidencia um ponto em comum
com o grupo de amigos, quebrando as barreiras impostas pelos traços elitistas que
provocaram o rechaço inicial.
Nesse sentido, o conto encerra, mostrando o reconhecimento de “Sobrecojines”
enquanto sujeito, dando-se a conhecer pelo seu nome próprio “Rodolfo”. É na partilha
da memória e da paixão torcedora que as trocas entre o grupo e o personagem
possibilitam a interação plena entre as partes e o estreitamento dos laços:
Al día siguiente, cuando llegó el Colifa, Belmondo estaba hablando con
el Zorro y también estaban el Pitufo, Pochi, Oscar, el otro Oscar, el
Negro y el Chelo.
- No vino “Sobrecojines”? – preguntó el Colifa. Alguién contestó que
no.
- Quién es “Sobrecojines”? – dijo el Chelo.
- Rodolfo. Rodolfo creo que se llama. No, no vino.
- Buen tipo esse – dijo el Pochi.
-Buen tipo. (FONTANARROSA, 2005, p. 61)
No conto “19 de diciembre de 1971” (2005), Fontanarrosa narra a história do
“Viejo Casale” e de um grupo de barra bravas (torcida organizada argentina).
Torcedores fanáticos do clube Rosário Central, o grupo organiza o sequestro do velho, a
fim de que este, na condição de amuleto, possa assegurar a vitória do Central diante de
seu maior rival, o Newell‟s Old Boys. Ambas equipes têm sede na cidade de Rosario,
protagonizando diversos embates entre torcidas organizadas na disputa territorial pelo
reconhecimento do maior campeão. Enclausurado em casa por conta de complicações
cardíacas decorrentes de um infarto em meio a uma partida de futebol, “Viejo Casale” é
proibido pelo médico e pela família de frequentar os estádios.
O relato, narrado em primeira pessoa por um dos integrantes do grupo de
sequestradores, trabalha as concepções da mística no futebol, descrita pelo termo
“cábalas”, a esfera supersticiosa que compõe parte considerável da identidade de clubes
argentinos –amuletos, gurus, heróis, vilões, rituais, símbolos. A história contada serve
ao leitor como uma justificativa para as ações do grupo e, ao final, tem como desfecho a
morte do velho Casale em pleno estádio:
Sí, yo sé que ahora hay quienes dicen que fuimos unos hijos de puta por
lo que hicimos con el viejo Casale, yo sé. Nunca falta gente así. Pero
ahora es fácil decirlo, ahora es fácil. Pero había que estar esos dias en
34
Rosario para entender el fato, mi viejo, que hablar al pedo ahora habla
cualquiera.
Yo no sé si vos te acordás lo que era Rosario en esos días anteriores al
partido. [...] Desde semanas antes ya se venía hablando del partido y la
ciudad era una caldera, porque eso era lo que era la ciudad!
(FONTANARROSA, 2005, p. 66)
Diante de elementos regulados pela paixão clubista, o narrador se coloca na
posição de traduzir o sentimento coletivo da torcida e as motivações para o sequestro.
No âmbito do futebol, as cores das bandeiras dos “canallas”, torcedores do Rosário
Central (amarelo e azul), e dos “leprosos”, torcedores do Newell‟s Old Boys (vermelho
e preto), pintam a cidade, ressignificando-a ora como espaço de conflito, ora como um
espaço harmônico de festa. A identidade torcedora muito se adequa a um modelo
autorreferencial, fechado em si mesmo, que leva ao reconhecimento dos aliados e dos
inimigos, reproduzindo a atmosfera simbólica da guerra. A cidade torna-se “una
caldera”, ressignificada pela ótica dos torcedores.
No conto, as duas equipes disputarão uma partida de semi-final de campeonato
e, nesse evento, foram depositadas todas as esperanças da torcida rosarista. Para eles,
não se tratava apenas de um jogo anterior à final; independente do clube que avançasse,
as glórias da conquista dessa partida específica já alterariam as dinâmicas no espaço da
cidade, gerando uma série de provocações entre as torcidas e a ascendência de uma
sobre a outra.
O velho Casale surge então como essa figura mística que poderia ser decisiva, o
elemento necessário para a articulação do real que garantiria as condições necessárias
para que Rosário vencesse a partida:
el viejo había dicho que él nunca, pero nunca, lo había visto perder a
Central contra Ñul [Newell‟s Old Boys]. [...] Era un privilegiado el
viejo y además, un talismán, querido, porque así como hay tipos mufa
que te hacen perder partidos adonde vayan, hay otros que si vos los
llevás es número puesto que tu equipo gana. No es joda. Y el viejo
Casale era uno de éstos, de los ojetudos” (FONTANARROSA, 2005, p.
70).
Nunca ao ter ido ao estádio, o velho presenciou uma derrota para o rival. Essa
constatação pelo grupo de torcedores levou à seguinte conclusão: “este viejo tiene que
estar en el Monumental contra Ñubel. No puede ser de otra forma. Tiene que estar”
(FONTANARROSA, 2005, p. 70). Os presságios identificados pelos amigos barra
35
bravas sinalizavam a iminente vitória da equipe. As lógicas operadas pela “razão
torcedora” funcionam através de uma mística, quase religiosa, indicando uma
supervalorização das experiências vividas nos círculos mais próximos aos sujeitos.
Como sinaliza, Michel Maffesoli:
O desenvolvimento vertiginoso das grandes metrópoles (megalópoles,
seria correto dizer), que nos anunciam os demógrafos, pode somente
favorecer essa criação de „aldeias na cidade‟, para parafrasear um título
famoso. O sonho de Alphonse Alais realizou-se. As grandes cidades
transformaram-se em campos onde os bairros, os guetos, as paróquias,
os territórios e as diversas tribos que as habitam substituíram as aldeias,
lugarejos, comunas e cantões de antigamente. Mas, como sempre, é
necessário reunir-se em torno de uma imagem tutelar. O santo patrono
venerado e celebrado será substituído pelo guru, pela celebridade local,
pela equipe de futebol ou pela seita de modestas dimensões.
(MAFFESOLI, 1998, p. 61-62)
O clube desempenha essa função tutelar da qual fala Maffesoli na medida que
reúne indivíduos que podem experienciar as mesmas sensações, o mesmo sentimento,
sentindo-se ligados uns dos outros, partilhando conquistas, valores e costumes comuns,
construindo a versão de um “nós” que permite a identificação com o próximo. A
construção da torcida significa também a construção de uma identidade que opera no
cotidiano da vida da/na cidade. A história comum à torcida atua em conjunto com a
história individual do torcedor que vai ao estádio e acompanha todos os passos do time,
participando ativamente de suas conquistas:
El Colorado nos habló de los grandes ideales, de nuestra misión frente a
la sociedade, de nuestro deber frente a las generaciones posteriores, los
pendejos. Nos dijo que si ese partido se perdía, miles y miles de
pendejos iban a sufrir lãs consecuencias. Que para nosotros, y eso era
verdad, iba a ser muy duro, pero que nosostros ya estábamos jugados,
que habíamos tenido lo nuestro y que, de últimas, teníamos experiencia
en malos ratos y fulerías. Pero los pibes, los pendejitos de Central, ésos,
iban a tener de por vida una marca en sus vidas que los iba a marcar
para siempre, como un fierro caliente. Que las cargadas que iban a
recibir esos pibes, esas criaturas, en la escuela, los iban a destrozar, lês
iban a pudrir el bocho para siempre, iban a ser una o dos generaciones
de tipos hecho bolsa, disminuidos ante los leprosos, temerosos de salir a
la calle o mostrarse en público. Y eso es verdad, hermano, porque yo
me acuerdo lo que eran las cargadas en la escuela primaria, sobre todo.
(FONTANARROSA, 2005, p. 74)
36
A radicalização da experiência do torcedor, no conto, aparece marcada por uma
preocupação que não se limita ao futebol, mas se expande ao campo social. A
problemática geracional e as provocações na escola compõem um cenário que coloca o
grupo de amigos na condição de salvadores da “pátria” rosarista. A constituição do
imaginário de torcedores se faz toda a partir dos significados simbólicos tecidos nas
tramas sentimentais do clube e de sua rede de apaixonados. Todos esses sentidos estão
presentes na vida cotidiana e potencializam a imaginação de sujeitos que se sentem
responsáveis por uma “causa” justa e coletiva. Nesse sentido, eles se veem como
agentes de um processo maior, orientados não só pela paixão, mas por todas as
repercussões que uma simples partida de futebol pode gerar no meio social. Como disse
Drummond: “O torcedor, na sua impotência, «joga» ainda mais que o jogador, e como
não tem bola alguma à sua frente, precisa socorrer-se de um esforço de imaginação de
que Paulinho [o jogador] está dispensado” (2014, p. 28).
Realizado o sequestro, todos seguem até o estádio e desfrutam da partida em sua
totalidade, expressando o entusiasmo coletivo. Durante o jogo, o estado de euforia do
velho preocupa os integrantes do grupo, temendo as consequências de seu ato. Ao final
da partida, o Rosário Central sai-se vencedor e o “Viejo Casale” tem seu fim
emblemático, representado por uma morte especial, digna de um torcedor rosarista.
Uma morte “canalla”, reforçando os traços identitários que compõem e sustentam a
mística de uma torcida: “Así, se tenía que morir, que hasta lo envidio, hermano, te juro,
lo envidio! Porque si uno pudiera elegir la manera de morir, yo elijo ésa, hermano! Yo
elijo ésa” (FONTANARROSA, 2005, p. 83).
Mempo Giardinelli, em “El hincha” (2008), conta a história de um torcedor
solitário, Amaro Fuentes, fiel à paixão pelo pequeno Club Atlético Vélez Sarsfield. Seu
amor pela camisa azul e branca constrói-se a partir da herança paterna – “Amaro estaba
seguro de haber aprendido a pronunciar esse nombre [Velez] casi simultáneamente com
la palavra «papá»” (GIARDINELLI, 2008, p. 187) e dos relacionamentos no bairro da
cidade de Ramos Mejía, que integra a Província de Buenos Aires, “cuando todo Ramos
era adicto al entonces Club Atlético Vélez Sarsfield” (GIARDINELLI, 2008, p. 187).
Ex-jogador amador do clube do coração, Amaro se vê obrigado a aposentar-se
do futebol ainda jovem, quando perde o pai, justo momento em que debutaria na
primeira divisão como jogador profissional:
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tuvo que empezar a trabajar y se enroló como grumete en los barcos de
la flota Mihanovich y dejó de jugar, con esse dolor en el alma que
nunca se le fue, aunque siempre conservó en su valija la camiseta con el
número nueve en la espalda, viajara donde viajara, por muchos años
[...]. (GIARDINELLI, 2008, p. 188)
Em uma de suas viagens, a embarcação para em Puerto Barranqueras durante a
rota Buenos Aires-Ciudad de Asunción, e Amaro, promovido a primeiro comissário de
bordo, decide instalar-se nas imediações do porto na cidade de Resistencia, localizada
na Província do Chaco, exercendo a função de carteiro no correio local: “miró
largamente esa camiseta, como despidiéndose de un muerto querido y decidió no seguir
viaje” (GIARDINELLI, 2008, p. 188).
O apelo emocional do personagem à imagem do pai e ao território de Ramos
Mejía se manifesta também no apreço pela camisa do clube. Ele não se despede do time,
mas de seu pai falecido e do bairro onde morava. O encontro de símbolos dá ao leitor as
informações sobre os elementos que constituem o quadro afetivo do personagem, que,
em outro solo, passa a experienciar a dor desde uma outra perspectiva: “desde entonces,
cada domingo implicó, para él, la obligación de seguir la campaña velezana”
(GIARDINELLI, 2008, p. 189). O reflexo da obsessão pelo clube, desde uma localidade
mais distante, postula-se quase como uma dívida pessoal que tem por objetivo manter
viva a herança deixada pelo pai, assim como sua memória. O desenraizamento
geográfico de Amaro não rompe os limites da subjetividade; ao contrário, reafirmam
ainda mais seus valores como torcedor do Vélez. Vale mencionar que Giardinelli, desde
a dedicatória, coloca em evidência a homenagem ao vínculo entre pai e filho: “A la
memoria de mi padre, que murió sin ver campeón a Vélez Sarsfield” (GIARDINELLI,
2008, p. 187).
Em Resistencia, a maioria das pessoas torciam para Boca Juniors ou pelo River
Plate, grandes campeões nacionais. Durante toda a sua vida na cidade, Amaro suportou
as provocações e brincadeiras feitas pelos amigos, acostumados a vencer: “Che, Amaro,
¿por qué no te haces hincha de Boca, eh?” (GIARDINELLI, 2008, p. 190), diz um deles
em tom de piada. Fiel á paixão, Amaro mantém sua posição e segue solitário em meio
ao ambiente repleto de torcedores de equipes vitoriosas, cultivando angústias e
insucessos seguidos.
Ainda que houvesse um cenário inóspito para um torcedor veleziano, o
companheirismo local era um fator preponderante nas relações entre as pessoas da
38
cidade, ao reunirem-se no Bar La Estrella e ao reconhecerem os infortúnios de Amaro
enquanto torcedor: “Rodríguez [chefe dos correios], hincha de Boca y hombre
acostumbrado a saborear triunfos, se condolió de Amaro y le concedió una semana de
vacaciones para que viajara a Buenos Aires a ver la final del campeonato de primera B”
(GIARDINELLI, 2008, p. 192).
Depois de anos sem pisar na capital, quando chega ao bairro de Liniers onde
nasceu, Amaro se depara com uma outra cidade, “casi desconocida, ensanchada, más
alta, más cosmopolita que nunca y casi perdida aquella forma provinciana de los años
veinte” (GIARDINELLI, 2008, p. 192). As assimetrias entre o personagem e o espaço
onde foi criado são demonstradas no desenvolvimento do aspecto urbano da cidade de
Buenos Aires, marcando um descompasso temporal com as experiências que o sujeito
traz do passado. A constante, entretanto, na relação entre o sujeito e o território
mantinha-se pela presença do clube no cotidiano dos torcedores do bairro.
Vélez ganha a partida e ascende à primeira divisão do futebol argentino. Amaro
regressa à cidade da Resistencia, emocionado com a conquista, e ganha notoriedade
entre os companheiros:
Desde entonces, cada domingo, Amaro se transportaba imaginariamente
a Buenos Aires, era un hombre más en la hinchada, revivía la tarde del
triunfo, se acordaba del pibe García y lo veia dominar la pelota, hacer
fintas y acercarse a la valla adversaria. Y todas las tardes, en La
Estrella, cada vez que se discutía sobre fútbol Amaro recordaba [...].
(GIARDINELLI, 2008, p. 194)
O deslocamento físico proporcionou uma identificação coletiva com os
velezianos de Liniers. Assim, quando Amaro regressa, a memória recente das
experiências no bairro possibilita um encontro afetivo provocado pela imaginação. Por
um breve momento, o personagem pôde se sentir novamente como uma das partes do
corpo homogêneo que constitui a torcida, trocando provocações com os amigos de
Resistencia durante os encontros posteriores no bar Estrella.
Os anos se passaram e o Vélez mantinha-se na primeira divisão, ainda que sem
um título. Aposentado, “Amaro Fuentes se convirtió en un perfecto solitário, aferrado a
una sola ilusión y como desprendido del mundo” (GIARDINELLI, 2008, p. 194). A
vida monótona e vazia tinha como elemento suplementar a paixão pelo clube. A equipe
torna-se a referência de mundo, como foi o pai e o já desfeito bairro de infância. Em
1968, Vélez se consagra campeão na primeira divisão do futebol argentino e Amaro
39
teve a oportunidade sua única de glória, ao sentir-se vitorioso como torcedor veleziano,
expressando a alegria com a conquista para todos de seu entorno em Resistencia:
Dio la tan jurada vuelta olímpica alrededor de la mesa, corrió hacia el
ropero, eligió la corbata con los colores de Vélez y su mejor traje y salió
a la calle, harto de ver todos los años, para esa época, las caravanas de
hinchas de los cuadros grandes, que recorrían la ciudad en automóviles,
cantando, tocando bocinas y agitando banderas. (GIARDINELLI, 2008,
p. 196)
Ao sair às ruas, todos os amigos aplaudem o entusiasmo de Amaro, uma partilha
maior que se experiência desde a afetividade de um grupo de amigos próximos, ainda
que torcedores de outras equipes. A rede de afetos proporciona a mescla identitária entre
torcidas. Nem Boca, nem River; Vélez sai campeão e os indivíduos partilham a vitória
do clube através da emoção do torcedor solitário: “hasta alguno gritó viva Vélez carajo
y Amaro ya no pudo contenerse y pidió al chofer que lo llevava hasta su casa”
(GIARDINELLI, 2008, p. 197-198). Logo após, o personagem de volta à casa se vê
diante da iminência de uma síncope provocada pelo entusiasmo. O reconhecimento dos
amigos e o título de campeão aguçam a emoção do personagem. Consumada a vitória, o
fim último a que o Vélez podia chegar, conforme o desejo de Amaro, consuma também
a vida do torcedor.
40
2. AS DONAS DA BOLA
[...] torcedores, termo criado, a propósito, tendo
como inspiração as fãs do Fluminense que, na
histórica, tradicional e centenária arquibancada das
Laranjeiras, retorciam freneticamente seus lenços e
luvas brancas em desesperada aflição em meio às
encruadas pelejas no estádio. Sérgio Pardellas, Isto é, 2017.
O diálogo com a realidade histórica do futebol brasileiro, proposto por Sérgio
Pardellas, traz em si uma provocação sobre a contribuição das manifestações de
diferentes sujeitos na construção do universo simbólico do jogo. Ao longo do
desenvolvimento da mística e das marcas próprias ao mundo da bola, convencionou-se
pensá-lo como um campo exclusivo do sexo masculino, edificado e consolidado por
varões habilidosos dentro dos gramados e, fora deles, por torcedores dedicados às
paixões clubistas. Segundo Leda Maria da Costa, “é grande o grau de familiaridade que
muitos homens possuem com o futebol e isso faz com que tanto seu interesse quanto seu
conhecimento acerca desse esporte sejam tomados como uma espécie de segunda
natureza masculina” (2007, p. 3).
No mundo contemporâneo, contudo, o futebol cresceu de diferentes formas. Nos
Estados Unidos da América, por exemplo, houve sempre a demarcação da esférica
como território das mulheres. A área tipicamente masculina se concentra em torno da
bola oval do futebol americano, em que saltam aos olhos as dimensões guerreiras e os
atributos da violência e da força na composição dos modos de jogo. Nos países do norte
europeu – Suécia, Noruega, Suíça, Alemanha –, a convivência no esporte entre ambos
os sexos se dá de forma integrada há gerações, podendo ambas as seleções nacionais,
masculina e feminina, provocarem apelo popular diante de suas conquistas. Em países
do Extremo Oriente como a China ou as duas Coreias, o futebol feminino reúne
milhares de torcedores e torcedoras nos estádios. Em outros como Inglaterra, Itália,
Espanha ou França, embora se tenha conservado em grande medida o futebol masculino
como referência maior, ampliaram-se consideravelmente as esferas de mercado e os
investimentos em segurança nos estádios, promovendo uma absorção não só de novos
torcedores, mas principalmente de torcedoras ao longo das décadas. Na América Latina,
de modo geral, o futebol ainda está construído sobre uma forte presença masculina. No
entanto, as mudanças decorrentes das problemáticas sociais, especialmente aquelas
41
observadas pelos estudos de gênero e poder, vêm proporcionando alterações culturais
significativas tanto nas arquibancadas quanto nos gramados. Esse novo panorama não
se limita ao plano concreto das práticas vinculadas diretamente ao esporte. Ele se
estende também aos meandros da representação e possibilita a emergência de novas
subjetividades, isto é, torcedoras e jogadoras que, como alteridade dentro de um campo
hegemonicamente masculino, fazem ouvir suas vozes, contestam as estruturas
tradicionais e engendram a reconfiguração dos sistemas simbólicos do jogo e do próprio
campo literário.
Tanto o futebol como a literatura de futebol se consagraram primeiramente
através de seus expoentes masculinos. O crescimento da presença de mulheres neste
espaço simbólico engendra uma reconfiguração do campo social e literário, que permite
a expressão de novos modos de (auto)representação. Dessa maneira, diante da
conjuntura atual, os relatos femininos de futebol assumem uma fundamental
importância para a reformulação dos modos de representar os gêneros em sociedade,
reconhecendo da mesma forma o valor das mudanças no presente e as participações
históricas que foram silenciadas ou apropriadas pelo discurso masculino no decorrer do
desenvolvimento do universo do futebol. A literatura surge como um ambiente
extremamente favorável para atentar sobre as conexões entre as quatro linhas e as
dinâmicas do campo social.
Durante anos, a discussão sobre as mulheres e o futebol foi deixada de lado,
tanto por conta da discriminação quanto pelo conformismo perante as relações objetivas
consolidadas socialmente entre ambos os gêneros. Agora, há uma produção
consideravelmente maior sobre a temática, repercutindo na academia, no campo
editorial e nos leitores das camadas populares, que se dão a ver problematizando ambos
os espaços – literatura e futebol.
2.1. Breve apresentação do quadro argentino contemporâneo
Historicamente, percebeu-se o futebol como um espaço material e simbólico
cultuado, vivido e dominado por homens. Permeando os mais diversos espaços sociais,
o poder simbólico das relações estabelecidas a partir do jogo de bola implica um lugar
de reprodução e performance dos valores atrelados a um ethos de masculinidade. Em
estádios, praças, escolas, bares, observamos, de modo geral, o futebol como um meio
através do qual se determinam socialmente posições marcadas pelo gênero,
42
estabelecendo-se quase sempre uma escala de valores que tem como referência de
superioridade a figura do “macho”.
María Graciela Rodríguez afirma: “el fútbol no es un territorio a conquistar: es
un territorio conquistado” (2005, p. 37). Ao se perguntar sobre a participação das
mulheres como torcedoras nos estádios, a teórica argentina propõe uma leitura
embasada na violência, mapeando as estruturas conservadoras sobre as quais se assenta
o futebol. As ações observadas por Rodríguez indicam um forte rechaço à presença
feminina nas arquibancadas, justificado tanto pela exposição ao perigo quanto pela
mística idealizada de uma paixão que só poderia ser compartilhada por homens. Por
outro lado, houve casos em que a resistência deu lugar à indiferença em relação ao
feminino, representado enquanto continuidade de um corpo masculino suscetível à
violência da torcida, isto é, a captura e consequente anulação da marca de gênero. No
primeiro momento, a mulher é representada como frágil, indefesa e incapaz de ter
interesses em comum com outros homens. No segundo, ocorre uma absorção de corpos
femininos pelos registros sociais que compõem o universo do futebol, reiterando ainda
mais os esquemas sobre os quais se organiza a lógica interna ao esporte. A partir de uma
série de entrevistas de torcedores e torcedoras, Rodríguez conclui:
Lo analizado hasta aquí permite inferir que tanto las representaciones
como las prácticas reproducen las gramáticas de producción [...]
pertenecientes al universo simbólico masculino, y que no aparecen
intenciones de prácticas que permitan habitar dominios culturales de la
masculinidad de otro modo que no sean los modelos definidos
culturalmente. (2005, p. 52)
As distinções sociais entre os gêneros sustentam modelos culturais, como também
viabilizam a representação de um universo lúdico estruturado a partir dos princípios
herdados do patriarcalismo, refletindo elementos característicos de um ethos masculino.
É preciso sublinhar, primeiramente, que um dos traços significativos para a
instalação do discurso das torcidas, segundo Rodríguez, é a falsa sensação da disputa do
futebol entre os gêneros:
Los propios valores masculinos que circulan al interior del campo
parecerían definir la ausencia de conflicto inter-géneros en tanto que el
eje nosotros-otros instalado en el discurso de las hinchadas se construye
no a partir del género sino a partir de la oposición del „macho‟ con
quien no posee esa condición” (2005, p. 37).
43
O homossexual e a criança agem como a alteridade que designa a figura
masculina enquanto portadora de virilidade, maturidade e autonomia. A forte presença
do que Judith Butler (1996) chamou “heterossexualidade compulsória” proporciona,
tanto na sociedade quanto no futebol, a corroboração de uma hegemonia
heteronormativa.
No primeiro momento, a mulher não representa nenhuma ameaça a esse modelo
social. Ao contrário, acentua ainda mais a posição de domínio do “macho”. Esse aspecto
não se dá de forma arbitrária ou natural. Ele está associado diretamente aos níveis de
enunciação do discurso propagado e controlado pela masculinidade. As práticas de
torcedores operam na circunscrição do corpo feminino dentro das normas estabelecidas
a partir da heteronormatividade. A separação entre sexo e gênero, nesse contexto, não
fica clara. O sexo como norma sequestra as possibilidades da diferença de gênero
(BUTLER, 1996), impossibilitando o reconhecimento de outros sujeitos que não se
alinhem a estas posições. Além da mãe e da esposa, os modo de representar a mulher,
principalmente em estádios e espaços onde grupos se reúnem para assistir aos jogos,
tendem à hipersexualização do corpo feminino, projetando-se, dessa forma, a condição
necessária para o “reconhecimento” desse elemento estrangeiro num espaço destinado
exclusivamente a um público de torcedores homens. As performances associadas ao
gênero se resumem estritamente à norma indicada pelo sexo.
Nesse sentido, podemos lembrar da contribuição de Derrida ao trabalho da
filósofa americana, demonstrando que as repetições contínuas da expressão social de um
registro masculinizado naturalizam culturalmente modos de agir fundamentados dentro
de um padrão heteronormativo. O mercado e os meios de comunicação de massa terão
uma contribuição significativa na difusão do universo construído a partir do futebol. As
circunstâncias de enfoque televisivo, durante a transmissão de um jogo de campeonato,
na maioria das vezes refletem o reforço das imagens pré-determinadas de diferenciação
e reafirmação do “macho”. A esposa/mãe com a família na arquibancada, mulheres que
se adequam ao padrão de beleza instituído pela moda; as “belas da torcida”, modelos
que servem como um tipo de “mascote” ou adorno em treinos, jogos oficiais ou em
atividades de marketing extra-campo. Podemos presumir que as relações de sentido que
se interpõem nas camadas sociais através do futebol são estruturadas, não só pela
reprodução constante destas performances heteronormativas, mas sobretudo por meio
do “enquadramento” que serve como moldura a estas imagem:
44
Quando um quadro é emoldurado, diversas maneiras de intervir ou
ampliar a imagem podem estar em jogo. Mas a moldura tende a
funcionar, mesmo de uma forma minimalista, como um embelezamento
editorial da imagem, se não como um autocomentário sobre a história
da própria moldura. [...] Uma determinada maneira de organizar e
apresentar uma ação leva a uma conclusão interpretativa acerca da
própria ação. (BUTLER, 2015, p. 23)
É curioso pensar que a postura radical de Rodríguez vigore ainda hoje, doze
anos após a publicação de seu artigo, tendo em vista as recentes mudanças na América
latina referentes à luta pela igualdade de gênero na sociedade através de coletivos nas
redes sociais e do ativismo feminista.2
Em março de 2017, uma matéria lançada pelo jornal Télam trazia como título a
declaração de Carolina García, gestora do projeto de gerenciamento de futebol feminino
pela AFA (Asociación de Fútbol Argentina): “El fútbol femenino en Argentina está en
decadencia y a punto de desaparecer”.3 Meses depois, uma outra notícia publicada pelo
jornal espanhol El País, em outubro de 2017, trazendo uma maior gama de dados e
informações sobre o mesmo assunto, apresentava um título que é o contraponto do
primeiro: “El auge silencioso del fútbol femenino en Argentina”4.
A tragicidade da primeira reportagem parece se confrontar com a promessa
emancipatória da segunda. No entanto, o denominador comum que se extrai do diálogo
entre as duas perspectivas é a possibilidade de vislumbrar as transformações inerentes
ao campo social. As duas matérias são a expressão da luta por igualdade de gênero
dentro do âmbito específico do futebol. Essa manifestação crítica quanto à
deslegitimação do futebol feminino – seja pelo registro da decadência de um fenômeno
ainda muito recente, seja pela chegada ao ápice silenciado – se reflete como o
intercâmbio de relações entre as demandas femininas dentro dos mais diversos espaços
sociais. Hoje, a luta pelo reconhecimento do futebol feminino, tanto na prática do jogo
quanto nas possibilidades de representação da mulher, é um dos níveis da luta feminista,
servindo não só como exemplo, mas como motivadora de ações coletivas. As duas
2 O fatalismo de Rodríguez encontra sua medida no modo como o futebol argentino foi articulado ao
registro hegemônico masculino. Por isso, talvez, a dificuldade de conceber em 2005, dado o contexto até
então pouco problematizado, uma via de transição no esporte que tende a desenraizá-lo de suas estruturas
do passado. Em 2017, é possível observar contingências que superam a malograda conclusão. 3Em:http://www.telam.com.ar/notas/201703/181669-el-futbol-femenino-en-argentina-esta-en-decadencia-
y-a-punto-de-desaparecer.html. Acesso em 15/01/2018. 4Em:https://elpais.com/deportes/2017/10/21/actualidad/1508539977_449618.html.Acesso em 15/01/2018.
45
reportagens combinadas demonstram que o futebol, na atualidade, não se restringe
somente ao entretenimento ou às disputas nacionalistas. Sobretudo, o futebol, na
contemporaneidade, pode ser visto, de maneira muito mais evidente do que antes,
também como um espaço político de luta social.
Mesmo que ambas as matérias tratem sobre a mesma temática – a precariedade
das condições de treino e atividades das mulheres nos gramados, os baixíssimos salários
e a desproteção das jogadoras pela via institucional –, o modo como cada uma se
enuncia instiga a pergunta: estamos diante do fim ou do auge do futebol feminino na
Argentina?
O entrosamento entre as mulheres e a esférica é maior do que nunca. Ainda
assim, para os sujeitos femininos, esta parece continuar a ser uma atividade não
legitimada no contexto argentino. A liga de futebol feminino, criada em 1991, ainda não
encontrou vias concretas para a profissionalização das jogadoras. Não há investimentos
ou respaldo institucional da AFA. Em contraposição a outros países, como EUA, China,
Noruega, Suécia, onde o futebol já encontrou saídas para a inclusão definitiva da mulher
no mundo do futebol, a Argentina ainda mantém uma marca muito forte de descaso em
relação às equipes femininas. Enquanto de um lado do mundo observam-se estádios
lotados para assistir ao desempenho feminino nos gramados, nos “pagos” portenhos não
há sequer a menor adesão do público às partidas disputadas por mulheres. Ainda assim,
podemos contar, hoje, com alguns sites e blogs especializados que escrevem sobre a
prática feminina do esporte, como www.elfemenino.com.ar ou solofutbolfemenino.com.
Nas arquibancadas, por outro lado, o rechaço à presença da mulher na torcida
diminui gradualmente, dado o aumento do número de torcedoras indo aos jogos e
partilhando os espaços da bola. Trata-se de um movimento global que cresce a cada ano
em países que mantém uma postura masculina em relação ao esporte, como, por
exemplo, Brasil, Chile, Argentina, Espanha ou Itália. Franklin Foer, em seus estudos
sobre futebol e sociedade, lê a transição do caso inglês a partir das dinâmicas de
mercado:
As novas exigências transformaram a economia do esporte. Para
financiar a reconstrução de seus estádios, os antigos proprietários, na
maioria pequenos empresários que se fizeram por conta própria,
importaram montanhas de capital novo. Grande parte dele veio de
espertos investidores urbanos que percebiam que o futebol tinha um
mercado cativo gigante e sólidas fontes de lucro inexploradas. [...] O
plano funcionou perfeitamente. Um novo tipo de torcedor, mais
46
abastado, começou a frequentar os jogos em estádios mais seguros e
confortáveis. Pela primeira vez, viam-se muitas mulheres nas
arquibancadas. (2005, p. 89)
Na Inglaterra, o futebol se associou rapidamente aos movimentos da classe
operária. Grandes clubes como Manchester United, West Ham e Arsenal cultivaram
suas tradições a partir das áreas industriais urbanas, absorvendo os valores turbulentos
dos trabalhadores manuais, ligados a elementos fortes das representações do masculino
como força, honra, entusiasmo e virilidade (FOER, 2005, p. 87-88; FRANCO JR.,
2007, p. 34). Combinados esses elementos, configura-se uma leitura convencional do
futebol como espaço da violência. De acordo com Foer, pode-se depreender que é na
decadência desse espectro de desordem, insegurança e paixões desenfreadas que o
futebol consegue conquistar novos públicos. Além disso, a produção de bens de
consumo se adequou às novas demandas femininas. Camisetas baby look, anéis com
escudos das equipes, chapéus, colares, adornos diversos tornaram-se itens acessíveis a
serem consumidos pelas torcedoras.
Na Argentina, a abertura do mercado consumidor se deu de forma semelhante,
colocando em oferta diversos itens para as mulheres torcedoras. Os estádios, por outro
lado, não sofreram tantas alterações no que se refere às manifestações de violência e à
pacificação dos conflitos pela via do lúdico. Barras bravas e torcidas organizadas ainda
ditam o ritmo da partida nas arquibancadas. Ainda assim, há uma transformação visível
de vários aspectos que caracterizavam a torcida, e um número considerável de mulheres
passa a integrá-las. Mais do que na Inglaterra, talvez, pode-se perceber, menos que uma
mudança nas perspectivas de mercado, e muito mais um câmbio cultural, motivador da
ressignificação das lógicas do espaço e das práticas a ele relacionadas. As dinâmicas da
cultura, atuantes sobre sítios masculinizados do futebol, promove gradualmente
alterações no panorama hegemônico, colocando em disputa visões de mundo
naturalizadas e outras que tendem a desconstruí-las.
2.2. Entre o público e o privado: driblando a desigualdade de gênero
As gêneses do descompasso entre o futebol e as mulheres remontam ao modo
como o esporte foi implantado e praticado socialmente no contexto latino-americano.
Fortalecido a partir de sua incorporação em um contexto no qual imperavam valores
tradicionais do estado patriarcal, o futebol se tornou rapidamente um operador de
47
representações românticas do masculino – o bravo guerreiro, o herói – e do feminino –
as donzelas idealizadas, a mulher que cuida do lar e aguarda a volta do marido.
Eduardo Archetti aponta que, na Argentina, o ludopédio cumpriu um papel
histórico fundamental ao consolidar parte do imaginário coletivo a respeito do
sentimento nacionalista, vinculando-o diretamente às representações de masculinidades
(Cf. ARCHETTI, 2003). Atentando para as disputas por hegemonia frente ao
colonialismo e ao imperialismo na Argentina, ele tenta observar como o futebol e o
desenvolvimento de um “estilo de jogo” tipicamente nacional pôde ajudar na transição
de uma masculinidade orientada pelo estigma aristocrático-burguês dos ingleses até uma
forma masculina que representasse a mestiçagem, caracterizando a pluralidade de
identidades presentes na cultura argentina:
el primer fútbol fue inglés o británico [...] y sólo después del proceso de
transformación histórica pasó a ser criollo. El fútbol argentino real, a la
manera criolla, fue hecho por italianos, españoles y la población nativa
masculina. Aun así, el período pionero es considerado positivo ya que
los valores ingleses de caballerosidad dominaron e impregnaron el
espíritu del juego. (ARCHETTI, 2003, p. 83)
Mesmo sendo um esporte com tendências da modernidade, que transforma a
Argentina em “un actor importante en la historia mundial moderna del deporte”
(ARCHETTI, 2003, p. 38), o futebol, em sua origem, consagra uma espécie de narrativa
neorromântica nacionalista que estereotipa homens e mulheres nos polos mais
antagônicos e desiguais. O código cavalheiresco atua como elemento que distingue e
determina os papéis sociais de cada gênero. As histórias construídas através do jogo, até
então concentradas nos estádios, nas rádios e, principalmente, no Estado, funcionavam
como reguladores e demonstrativos de valores sociais a serem reproduzidos
ostensivamente.5 As personalidades construídas a partir destas referências assinalavam
uma oposição entre o público, área de atuação masculina, e o privado, área de atuação
feminina. Archetti ajuda a compreender que, durante os anos de formação nacional, a
5Atualmente, o futebol não perdeu essa função, ela mantém-se presente, suavizada, sugestiva. Por vezes,
os eventos mostram, através de jogadores, exemplos a serem seguidos, como os dois maiores expoentes
da atualidade: o português Cristiano Ronaldo e o argentino Lionel Messi. Em diversas ocasiões, há a
exposição da figura desses jogadores, realizando atos filantrópicos e ações positivas dentro e fora de
campo. No entanto, hoje, a grande mudança se dá nos usos do esporte por diferentes agentes coletivos e
individuais da sociedade, ora descaracterizando o poder midiático, ora apropriando-se dele para suas
reivindicações. Podemos dizer que houve uma descentralização da força do Estado e da mídia, ainda que
mantenham, majoritariamente, sua influência na construção de narrativas.
48
mulher não foi só excluída das relações inerentes ao futebol, mas foi representada como
a figura matriarcal que dava estabilidade à célula familiar, tendo como campo de
atividade principal a esfera do lar. Baseando-se na teoria de George Mosse sobre as
relações entre nacionalismo e sexualidade na Europa Moderna, o sociólogo argentino
diz:
la maternidad pasó a ser esencial y la paternidad, menos relevante; la
virilidad, más importante que la paternidad. El Estado intentaba que las
mujeres de clase media no formaran parte de la vida activa fuera del
hogar como modo de impedir que enfrenten una época turbulenta y
peligrosa. (ARCHETTI, 2003, p. 159)
As relações sociais entre os gêneros, determinadas sob a influência das guerras
no continente europeu em princípios do século XX, encontrou uma continuidade em
solo latino-americano. A formação social argentina, orientada pela presença inglesa,
colocou em circulação nacionalmente modelos para a classe média que positivaram a
masculinidade a partir de elementos marcadamente antagônicos em relação ao feminino
e que, paradoxalmente, se integravam pelas diferenças entre as práticas comuns a cada
sexo. A representação mais romantizada do feminino era necessária ao discurso
masculino, para legitimar-se em meio aos conflitos locais e mundiais como parte
indispensável de um projeto nacional (ARCHETTI, 2003, p. 159).
Eric Hobsbawm, considerando outros parâmetros, lê o papel das mulheres na
sociedade inglesa, durante o período que anteceder à Primeira Guerra Mundial (1870-
1914), colocando ênfase na emancipação feminina na esfera pública:
Em suma, já perto do fim do século XIX registramos uma distinta
tendência na Europa e na América do Norte a tratar mulheres como
pessoas no mesmo sentido de sociedade burguesa, análogas a homens, e
portanto análogas também como realizadoras em potencial. Isso se
aplica muito a um campo significativamente simbólico como o esporte,
que naquela época começava a se desenvolver. (HOBSBAWM, 2013,
p. 124)
O aporte do historiador inglês ajuda a compreender as tensões existentes ao
longo do processo histórico de formação social nos Estados europeus e, assim, elucidar
contradições importantes que envolvem os primeiros passos da sociedade moderna em
relação aos vínculos entre os regulamentos estatais, a institucionalização do futebol e
49
seus reflexos nas diversas camadas sociais. Se nos pautarmos pelas diferenças entre as
classes operárias e as classes média e alta nos anos anteriores à Primeira Guerra,
encontraremos algumas descontinuidades referentes à divisão do espaço público entre
homens e mulheres.
Enquanto a mulher trabalhadora já botava seus pés na fábrica, a mulher de classe
média/alta encontrava-se ainda refém do estereótipo de fragilidade e subalternidade,
mantendo-se sob a proteção masculina, reclusa na casa ou em espaços específicos de
convívio e entretenimento da alta sociedade (country clubs, salões de festas, teatros
etc.), distantes das tensões, prazeres e ameaças externas. No entanto, é já nesse
momento que socialmente se experienciam mudanças mais profundas a respeito da
participação ativa de mulheres nas áreas profissionais da educação, das artes (música,
teatro, literatura, artes plásticas) e do jornalismo (HOBSBAWM, 2013, p. 130). Ainda
que houvesse uma disparidade entre as possibilidades de acesso das classes mais baixas
à universidade e à alta cultura da época,6 é fundamental notar que a qualidade da
agência feminina na esfera pública ainda estava muito presa às propriedades da
instrução, isto é, à passagem de valores familiares e à conquista de capital cultural.
De acordo com essa proposta, podemos ler o que Gayatri Spivak chamou
“heteronormatividade reprodutiva”7 (2012, tradução nossa) como o fundamento no qual
se baseia a distinção de atividades relacionadas ao gênero dispostas socialmente durante
o processo de formação nacional (2012, p. 278-279). Dessa forma, a constituição de
representações da mulher como a mãe, devota esposa e dona do lar implicaria uma
reclusão doméstica voltada para a educação dos filhos e organização da casa, frente a
uma intervenção social super ativa do homem. Em contrapartida, podemos observar
que, na passagem para a esfera pública, essas imagens estariam presentes enquanto
6 “Embora a infiltração de mulheres na esfera pública não esteja, em tese, confinada a nenhuma classe
particular, na prática estamos falando, quase exclusivamente, de mulheres de classes alta e média, sendo
exceção significativa, como sempre o campo do entretenimento. A bem dizer, todas as outras formas de
atividade, profissional ou não, nas quais as mulheres tinham probabilidade de se tornar publicamente
conhecidas, dependiam de tempo livre, recursos materiais e escolaridade, isolada ou conjuntamente. Essas
vantagens simplesmente não estavam ao alcance da maioria das mulheres das classes trabalhadoras”
(HOBSBAWM, 2013, p. 124-125). 7 No original: “reproductive heteronormativity (RHN)”. “As I was growing up, then, I realized that
nationalism was related to RHN as a source of legitimacy. As I moved to the United States and became
active around the world, I realized that the alibi for transnational agencies –backed explicitly by
exceptionalist nationalism(s) – was nationalism in the developing world. Gender was an alibi here even
for military intervention in the name of humanitarian intervention” (SPIVAK, 2012, p. 279).
50
resíduos na ação profissional feminina, reforçando um aspecto normativo da mulher
associado diretamente à difusão dos valores nacionais.
O discurso institucional, os códigos legais e as diretrizes estatais, dessa forma,
ao serem reformulados, não alteram imediatamente a cultura ou a moralidade da
população em grande escala. Se tomarmos como exemplo a luta feminista, apenas na
segunda metade do século XX, com a atmosfera crítica provocada pelas manifestações
de 1968, o mundo pôde se defrontar com movimentos sociais de grande relevância. Nos
EUA e na Europa, a luta de universitárias e da classe intelectual pela igualdade da
mulher no âmbito do trabalho, pela legalização do aborto e pelo controle do próprio
corpo, contestando o cristianismo dominante, surgiu com grande efeito de choque na
sociedade, obrigando o Estado e suas instituições a dobrarem-se diante das novas
demandas populares. No entanto, a moral carregada dos velhos valores patriarcais não
se exauriu como poderíamos imaginar. Houve duras resistências das alas conservadoras
por todos os lados, desde a população até as mais altas esferas da política nacional. O
acesso ao trabalho era marcado por um contexto em que a grande maioria das mulheres
assumia posições subalternas nas empresas, além da jornada dupla ao voltar para casa e
encarar sozinha as funções no lar. Outro fator que merece destaque nesse período mais
recente foi o alto número de feminicídios e a crescente violência de gênero, com crimes
que, embora previstos em lei, passaram impunemente diante das autoridades. Havia
ainda uma preponderante regulação das ações e do corpo feminino por meio de
determinações do discurso patriarcal e da moral cristã. O descompasso entre a
institucionalidade e a moral atrasou a plenitude de muitas conquistas, em decorrência
dos rastros sociais deixados pelo passado nas práticas e no plano simbólico do discurso.
A promulgação de leis, bem como a conquista de um lugar de mais independência
pública por parte da mulher consagraram um embate que se estenderia por gerações até
os dias de hoje. A moral patriarcal reagiu e ainda reage em diversos aspectos, mas um
dos grandes saldos da luta feminista foi instalar uma nova tendência de pensamento na
sociedade, afirmando um lugar de fala a partir do qual se promovem embates que
acabariam por desestabilizar muitas posições hegemônicas. Isso possibilitaria, tomando
como empréstimo as palavras de Jesús Martín-Barbero:
pensar o processo de dominação social já não como imposição a partir
de um exterior e sem sujeitos, [...] ela [hegemonia] se faz e desfaz, se
refaz permanentemente num “processo vivido”, feito não só de força
51
mas também de sentido, de apropriação do sentido pelo poder, de
sedução e de cumplicidade (2015, p. 112).
Quer dizer, por mais que os velhos traços da moralidade masculina continuem
presentes e ainda representem a base principal sobre a qual a sociedade se sustenta,
desponta um novo cenário no qual se afirmam novas forças hegemônicas. Outras
vertentes se instalam através da ação de agentes femininos, colocando em xeque
posturas históricas que tendem a reproduzir a desigualdade de gênero, ajustando-se
agora, conforme os novos tempos e novas agências, às lutas e conquistas das mulheres.
A desestabilização que deriva do embate pela hegemonia e os discursos
reconfiguradores da ação de novos sujeitos sociais (e sujeitas, por que não?) são
imprescindíveis para estremecer as bases das relações entre os gêneros na sociedade.
No contexto argentino, as grandes transformações sociais acerca das distinções
de gênero entre o público e o privado ocorrem em grande medida no primeiro governo
de Juan Domingo Perón. Em 1944, ainda como Secretário do Trabalho e Segurança
Social, ele já havia inaugurado a “División del Trabajo y Asistencia de la Mujer”,8 mas
foi em 1947 que a lei 13.010 outorgou às mulheres todos os direitos político-sociais,
tendo como uma figura central na luta por sua aprovação Evita Perón, esposa do futuro
presidente argentino. Popularmente aclamada, Eva Perón tornou-se uma personagem
8Atentamos para o desenvolvimento das fases de Perón, diante das novas demandas e preocupações com
os direitos das mulheres na vida político-social e na esfera do trabalho. No momento em que se instaura a
nova divisão, ele afirma: “dignificar moral y materialmente a la mujer equivale a vigorizar la familia.
Vigorizar la familia es fortalecer la Nación, puesto que ella es su propia célula. Para imponer el
verdadero orden social, ha de comenzarse por esa célula constitutiva, base cristiana y racional de toda
agrupación humana” (VÁZQUEZ, 2007, s.p., grifos nossos). No ano seguinte, em 1945, durante o seu
pronunciamento na Câmara do Deputados sobre o debate Pró-sufrágio feminino, ele diz: “Soy un
convencido de la necesidad de otorgar a la mujer los derechos políticos y apoyo con toda la fuerza de mi
convicción el propósito de hacer esto una realidad argentina. Es necesario dar a nuestra Constitución su
plena aplicación dentro de las formas democráticas que practicamos; y debemos una reparación a esa
Constitución, mutilada en lo que se refiere a la mujer…En síntesis, soy partidario de otorgar el sufragio a
la mujer, porque no hay ninguna razón que se oponga a que esto llegue a concretarse en una realidad”
(VÁZQUEZ, 2007, s.p.). Enquanto a discussão centrada no trabalho, em 1944, partia da célula familiar
como elemento motivador, o ponto político daquela exaltada em 1945 previa uma conclusão já muito
destacada dos argumentados fundadores do nacionalismo. Por fim, em 1946, já tendo sido eleito
Presidente da República Argentina, observamos Perón enaltecendo a partipação pública e popular das
mulheres em sociedade: ”La creciente intervención de la mujer en las actividades sociales, económicas,
culturales y de toda índole la han acreditado para ocupar un lugar destacado en la acción cívica y política
del país. La incorporación de la mujer a nuestra actividad política, con todos los derechos que hoy sólo se
reconocen a los varones, será un indiscutible factor de perfeccionamiento de las costumbres cívicas.
Oportunamente tendré el honor de elevar a la consideración de vuestra honorabilidad un proyecto de ley,
estableciendo el voto y demás derechos políticos de la mujer” (VÁZQUEZ, 2007, s.p.). Trechos extraídos
de: http://www.evitaperon.org/evita_peron_instituto-es.htm. Acesso em 23/01/2018.
52
icônica na história argentina, participando das lutas sociais de trabalhadores e
trabalhadoras durante o primeiro mandato de Perón, inaugurando na cena política a
participação das mulheres de origem popular e da classe trabalhadora nas lutas por
lugares de poder em distintos âmbitos da sociedade. Eva se apresentava como uma
defensora radical dos direitos dos homens e mulheres do povo, subordinando seus
interesses aos interesses das multidões que davam suporte ao peronismo. No lugar de
uma primeira dama passiva, resguardada em sua posição de adorno ao lado do marido,
ela se construiu enquanto uma agente popular que desafiava os limites entre o público e
o privado. Durante a viagem a varios países europeus que fez em 1947, ela declara:
“este siglo no pasará a la historia con el nombre de Siglo de las Guerras Mundiales...
sino con otro nombre mucho más significativo: Siglo del Feminismo Victorioso”
(VÁZQUEZ, 2007, s.p.). A preocupação com a integração das mulheres nas ações
cívicas e políticas, principalmente por meio do trabalho e do direito ao voto, atuou
como o roteiro principal de seu legado na história nacional argentina. Evita, mais do que
Perón, foi a grande responsável por instauração tanto no plano das leis quanto em
muitas práticas do poder de uma abertura do círculo público na Argentina para as
mulheres, reconfigurando o cenário junto às forças subalternas.
Um exemplo dos reflexos contemporâneos dessa reconfiguração do campo
social a médio prazo encontra-se na imagem, também extremamente popular, de
Cristina Kirchner, ex-presidenta da Argentina. Numa escalada pelo Congresso Nacional,
Cristina chega à presidência em 2007 depois do segundo mandato de seu marido, Néstor
Kirchner, contando com uma popularidade ainda maior que a do marido. Já em pleno
século XXI, podemos encontrar a persistência de certas marcas que retomam a
discussão quase em sentido anacrônico. Cristina Elisabet Fernández de Kirchner,
durante o período em que foi deputada e senadora manteve seu nome de casada
completo, incluso o “de”, que na cultura hispânica denota posse e é bastante
significativo da condição de dependência da mulher no estatuto matrimonial. Cristina
era filha de Eduardo Fernández e Ofelia Wilhelm. Tinha, portanto, como nome de
solteira uma composição dos sobrenomes das famílias do pai e da mãe: Cristina Elisabet
Fernández y Wilhelm. Ao casar-se, perde o sobrenome da mãe e carrega os sobrenomes
de dois homens (pai e marido), incorporando também a preposição “de” como marca de
posse ainda vinculada ao resíduo patriarcal daquela sociedade. Com sua ascensão no
congresso e respaldo popular, chega à presidência como sucessora de Néstor. Nesse
momento, abandona o registro nominal que denota uma posição subordinada e
53
ressignifica sua identidade, fazendo-se chamar Cristina Kirchner. As marcas da
conquista de um novo lugar na linguagem refletem e, de modo igual, ressignificam as
contingências sociais. Por mais que o sobrenome do marido permaneça, há uma
negociação política em jogo que se consuma na união familiar de ambos, no
fortalecimento das alianças partidárias e, principalmente, na ausência do signo de
dominação masculina, explicitada na preposição “de” indicando uma relação de posse.
Grandes personagens canonizados na história argentina engendraram
ressignificar o sentido de família e, consequentemente, de seus membros. Tanto Eva e
Juan Domingo Perón quanto Cristina e Néstor Kirchner reformulam o sentido familiar
não como o domínio do homem sobre a mulher, mas no exemplo da comunhão de
ambos com objetivos políticos mais amplos. Durante a ditadura militar, compreendida
entre os anos 1976-1983, pôde-se observar uma nova interpretação da palavra mãe.
Dezenas de mulheres que tiveram seus filhos presos, sequestrados, assassinados e
desaparecidos organizaram-se no movimento conhecido como “Madres de la Plaza de
Mayo”. O ingresso das mães na vida pública e política tem um sentido dramático no
cenário argentino, imbricando o rechaço à violência do Estado ditatorial até a formação
de agências adequadas aos novos cenários históricos, nos quais a mulher assume um
papel de sujeito.
Resta a impressão de que a confrontação dos códigos sociais e da cultura comum
chegou atrasada ao futebol. Diante de cenários de disputa nos quais as mulheres se
projetam desde a década de 1940, colocando em pauta as lutas por igualdade de gênero,
o futebol ainda como um dos palcos em que se encenavam as performances mais
ancestrais sobre masculinidade e feminilidade, apresenta-se por muito tempo como algo
imutável, incontornável, resistente às mudanças. O que se torna patente nas disputas
feministas e nas representações operadas por mulheres no universo da bola, na
contemporaneidade, é o potencial de leitura das situações do presente que cumprem um
papel social decisivo na ativação de novos lugares da subalternidade. Desde a
mundialização desse esporte, é comum observarmos um grande apelo ao universo
feminino durante as copas do mundo, integrando toda a nação que torce em casa e nos
estádios para a seleção nacional. A nação é convocada, recalcando-se, por um momento,
as marcações e estratificações de gênero.
Já na esfera dos clubes, os sinais que fundam as distinções de gênero
apresentam-se na própria estrutura do jogo.
54
Domingo é o dia preferencial em que a coletividade assiste às partidas dos
campeonatos nacionais. Por mais que haja partidas em outros dias da semana, o
domingo ainda é a marca principal do entretenimento futebolístico no mundo ocidental,
orientada especialmente pela herança do cristianismo. As características histórico-
sociais presentes no futebol demarcam uma microestrutura que reflete a sociedade como
um todo. Isso não significa observar no futebol contornos maiores do que ele possui,
mas indica normas sociais que estão entranhadas na lógica com a qual experienciamos o
mundo. A palavra domingo tem como origem etimológica a raiz latina domus, que
significa propriamente casa. No entanto, dessa mesma raiz derivaram outras palavras
que compõem substancialmente a coerência e as incoerências do futebol – domínio,
dominador, dominus (o Senhor), o título de Dom aplicado a senhores da nobreza, o dom
em seu sentido de qualidade natural específica de alguém e doméstico (o domínio da
casa). Toda a composição do mundo da bola se dá de acordo com as regras, o juízo, a
sensibilidade, as dinâmicas e a lógica vigente nas sociedades formadas pelo cristianismo
ainda como ideologia dominante e pelo nacionalismo do início do século XX. Domingo
não era só o dia de ir à igreja para assistir à missa e ouvir sermões sobre a paixão de
Cristo; sobretudo, domingo é o dia de ir para o estádio, para o bar, ligar a televisão,
ritualizar a paixão (já não de/por Cristo, mas por Pelé, Maradona, Romário, Riquelme,
Messi, Carlitos Tévez, Ronaldo Fenômeno), ouvir não um sermão, mas a narração de
um guru do esporte como Galvão Bueno ou Víctor Hugo Morales, locutor que
descreveu de forma emocionada os gols de Maradona contra a Inglaterra na Copa de
1986.
As marcas da religiosidade e da formação nacional sustentam de forma muito
poderosa tanto as estruturas do jogo quanto as distinções de gênero diante da marca
patriarcal do discurso masculino. No entanto, ainda que esses traços específicos
permaneçam, vemos os gramados serem pisados não só por deuses e heróis, mas por
deusas e heroínas (Marta, brasileira eleita melhor jogadora do mundo pela FIFA quatro
vezes; Carli Lloyd, jogadora estadunidense; Amandine Henry, francesa; Alexandra
Popp, alemã). Temos nas arquibancadas não só os seguidores de um clube, mas as
devotas de uma paixão. A ascensão das mulheres no futebol é uma realidade que cresce
mais a cada dia, acompanhando o desenvolvimento social da disputa pela
democratização dos mais variados espaços controlados, quase exclusivamente, pela
masculinidade, a romper os limites da norma comum e a conquistar espaço, inclusive,
no campo literário.
55
2.3.Representações na literatura: a voz das mulheres no futebol
A literatura como campo de fricção (e que absorve em suas formas e temas as
fricções do social) não se apresenta totalmente desvinculada dos interesses e paixões
associados ao esporte. Em função disso, durante o século XX na América Latina, houve
uma popularização do futebol no universo da cidade letrada, com a crescente difusão de
romances, contos e crônicas que abordaram o mundo das quatro linhas e de seus
torcedores a partir de uma perspectiva literária ou jornalística, com destaque para nomes
como Roberto Fontanarrosa e Osvaldo Soriano, na Argentina, Mario Benedetti e
Eduardo Galeano, no Uruguai, Nelson Rodrigues e Mário Filho, no Brasil. Observa-se,
porém, que o tema continua sob o domínio da enunciação masculina.
No futebol, como fora dele, as representações femininas foram
predominantemente construídas por homens e respeitavam, quase em sua totalidade, a
lógica do patriarcalismo das relações sociais reproduzidas no âmbito da família e do
jogo da bola. Lembrando o conto “El cuadro de Raulito”, de Eduardo Sacheri, publicado
no livro Esperándolo a Tito y otros cuentos, no ano 2000, temos a figura da mulher
como mãe, assumindo um papel secundário frente aos conflitos e afetos estabelecidos
entre pai e filho diante da fidelidade a um clube. Fora do foco narrativo, a mãe é uma
personagem observadora que não se envolve ou intervém diretamente na paixão
futebolística, atuando apenas na mediação das vicissitudes familiares:
Cuando su mujer salió al patio, extrañada de que su marido siguiese al
sereno en el atardecer frío del otoño, lo encontró llorando a él también,
pero unas lágrimas gordas, densas, de esas que abren surcos pegajosos
en su camino, de esas que uno llora cuando está demasiado feliz como
para sencillamente reírse.
–¿Se puede saber qué les pasa? –preguntó la mujer, confundida. El la
miró, sin preocuparse siquiera de ocultar sus lágrimas–: Hace rato que
el Raulito entró a su pieza y dio un portazo, y me dice que no quiere que
entre, y se lo escucha llorar y llorar como loco. Y ahora salgo y te veo a
vos también moqueando. ¿Me querés explicar qué cuernos pasa?
El hombre la consideró con benevolencia. ¿Qué otra cosa podía hacer?
¿Intentar explicarle? ¿Cómo? Se conformó con mirarla, mientras seguía
sintiendo el fluir del tiempo en el gotero de cristal de ese momento
indestructible.
56
–Seguro que le ganaron a River y vos lo cachaste al chico, ¿no? Seguro
que te la agarraste con el nene, ¿no? –Ella lo miraba con gesto de severo
reproche.–Semejante grandulón, ¿no te da vergüenza?
–No, Graciela, no le hice nada. Si River ganó tres a dos. Al chico no le
dije nada, te juro –respondió con calma, desde la cima de su paz
reconquistada.
–Pero entonces no entiendo nada. ¿Me decís que ganó River, y el nene
está llorando como loco encerrado en la pieza?
–Sí, Graciela. Ganó River. Pero el pibe no es de River, Graciela. – Y se
sintió reconciliado con la vida, eufórico, agradecido, emocionado;
dueño legítimo y absoluto de las palabras que iba a pronunciar. Después
se incorporó, porque cosas así se dicen de parado: – Lo que pasa es que
el Raulito es de Huracán, Graciela. ¡De Huracán! (SACHERI, 2000, p.
44-45)
O conto narra o momento em que pai e filho assistem a uma partida de futebol.
O pai torce para o Huracán e o filho para o River Plate. Convencido pelo tio, Raulito se
decide pelo time maior (River) e não sofrer com as derrotas de uma equipe que há anos
não conquista um título (Huracán). Com isso, quebra a tradição paterna da herança do
amor por um clube, que vai passando de geração em geração. O desenlace se dá durante
a partida entre as duas equipes, quando o Huracán sofre uma derrota de 3 a 2 para o
River, e o filho, ao invés de alegrar-se, vai para o quarto banhado em lágrimas. O trecho
citado é o desenlace no qual se traduz a felicidade do pai ao perceber que o vínculo
entranhável entre pai e filho passa também pelo futebol. Desse contexto a mãe é
excluída tanto por conta de seu desconhecimento do resultado do jogo quanto pelo fato
de manter-se ou ser vista como um sujeito que se mantém alheio ao universo do futebol.
Esse não pertencimento a um campo tido como tipicamente masculino se expressa na
reflexão do narrador sobre os pensamentos do marido (“¿Qué otra cosa podía hacer?
¿Intentar explicarle? ¿Cómo?”). Essa dimensão que associa futebol a um ethos de
masculinidade ainda é muito forte no imaginário que se constrói em torno dos relatos de
futebol. Na passagem citada, a percepção da mulher é antagônica a do homem no que
diz respeito ao amor pelo clube. Esse sentimento que estaria na base da identidade
masculina soa como uma tolice, como algo menor, para a mulher. Quem lê o conto pode
perceber desde as primeiras linhas a importância do sentimento de filiação ao clube
através das palavras do narrador, que explica e racionaliza até certo ponto as
57
manifestações emocionais dos personagens durante a partida e finaliza com o diálogo do
casal.
Sacheri, um apoiador e entusiasta do futebol feminino e da produção de
escritoras na literatura de futebol, retrata um universo dominante durante seus anos de
infância. Em 2014, quando lança Papeles en el viento, ele propõe uma representação
não muito comum no universo masculino da pelota. O livro, em síntese, trata do amor
pelo clube que o pai deixa para sua filha, desenvolvendo desde a infância um constructo
social da mulher desvencilhado das corriqueiras trocas estritamente masculinas no
futebol. Assim, percebemos pelo olhar de uma personagem feminina durante seus anos
de crescimento como esse esporte se fortalece afetivamente em sua memória,
possibilitando, desde a esfera ficcional, uma atmosfera de enunciação que se tornaria
visível social e literariamente ao absorver a atuação cada vez mais decisiva das
mulheres.
Na virada do século XX para o XXI, há uma renovação dos narradores que
buscam abordar o futebol através da literatura, juntamente como movimento que ficaria
conhecido como Nova Narrativa Argentina (NNA), e, com isso, a entrada de mulheres
no circuito da produção de relatos de futebol surge também como um aspecto notável de
reestruturação do campo literário. Em 1997, Roberto Fontanarrosa organizou Cuentos
de fútbol argentino, e trazia no prólogo a seguinte observação:
La editorial nos ha prometido que todos podremos lucirnos, ya que este
maravilloso grupo humano es como si fuera una gran familia. Tanto
que, vale consignarlo para evitar sorpresas, queridos aficionados al viril
deporte del balompié, Inés Fernández Moreno, Liliana Heker y Luisa
Valenzuela han sido aceptadas en el plantel siendo, como sus nombres
lo indican, mujeres. Bellas literatas que acceden a este mundillo
supuestamente de hombres cabalgando en el crecimiento del fútbol
femenino y en la innegable pasión que alberga en el corazón de toda
niña argentina. (2003, p. 12)
Três autoras com respaldo da importância já conquistada na cena literária
argentina faziam parte da seleção escalada pelo organizador da antologia. Nesse
primeiro momento, o antólogo ainda se apresenta como o mediador das relações de uma
grande família viril, ambiente masculino tão pouco frequentado por mulheres que a
presença das três exceções poderia provocar surpresa. O aviso aos “queridos aficionados
al viril deporte del balompié” sinalizava um novo panorama, uma mistura de referências
58
de gênero, trazendo consigo outras subjetividades que chegaram para dividir o território
não só do futebol, mas também da escrita literária de futebol. O convite se traduz na
intenção de desbordamento do campo literário ligado ao futebol, seguindo o percurso
inicial da onda de crescimento do interesse do público feminino pela esférica. Isso se
tornaria cada vez mais frequente com o decorrer dos anos.
Em 2008, na coletânea de contos De puntín, organizada por Diego Grillo
Trubba, dez nomes femininos aparecem no plantel de contistas da nova geração de
narradores da NNA que escrevem sobre futebol: Lucía Marroquín, Romina Doval,
Alejandra Zina, María Sol Porta, Selva Almada, Agustina Arias, María Molteno, María
Fasce, Mariela Ghenadenik e Celia Dosio.
Esse processo de conquista de espaço foi num crescendo, até que em 2014, foi
publicada pela editora El Ateneo, a antologia de contos de futebol feminino Las dueñas
de la pelota, organizada por Claudia Piñero, reunindo apenas escritoras. Os textos
reunidos têm como intuito narrar eventos relacionados ao mundo futebolístico, tratando
de assuntos que vão desde o espaço da casa, as formações familiares e o relacionamento
afetivo com o esporte, até a construção de cenários da profissionalização de jogadoras.
Muitas narradoras integram a antologia já a partir de um lugar de consagração bem
como de um vasto currículo de publicações, como é o caso da própria Claudia Piñeiro,
de Esther Cross e Ana María Shua. Outras são jovens autoras, ainda que algumas já
contem com um considerável reconhecimento no campo literário, a exemplo de
Gabriela Cabezón Cámara e Selva Almada.
Las dueñas de la pelota assinala uma espécie de resolução da passagem de
estágios da literatura de futebol. O primeiro momento puramente masculino (1970-
1990); o segundo, já na transição para o século XXI, surge marcado pela tímida
participação feminina ainda mediada por homens; e um terceiro momento no qual tanto
a organização quanto a seleção é composta exclusivamente por autoras. O prólogo de
Claudia Piñeiro reflete muito bem as relações até então dadas no seio da bola e concede
a Fontanarrosa uma menção honrosa, ainda que crítica, como forma de reconhecimento
à sua importância na transformação do marco inaugural:
Hasta ahora, todos hombres. El fútbol es territorio de hombres. Y, si una
mujer se atreve a pisar ese territorio, deberá soportar la desconfianza, la
subestimación y una cierta molestia por participar de una fiesta a la que
no fue invitada. En la recordada antología Cuentos de fútbol argentino,
publicada en el año 2003, hay dieciséis autores hombres y tres autoras
59
mujeres. Fontanarrosa lo destaca con su gracia habitual en un párrafo
del prólogo que antecede a la antología (…).
En medio de este clima inhóspito, aparecemos en la cancha nosotras,
catorce jugadoras dispuestas a embarrarnos en textos relacionados con
el fútbol, deporte que muchas veces nos apasiona, pero en el que tratan
de hacernos creer que estamos de prestado. Todas mujeres. Con un
director técnico varón, Marcos Mayer. (PIÑEIRO, 2014, p. 12-13,
grifos da autora)
Piñeiro afirma que, nos níveis discursivos do futebol, “tratan de hacernos creer
que estamos de prestado”, como se fosse um momento transitório, contingente, pouco
expressivo e efêmero, uma fase que passará rapidamente. Ela mostra que não. O
ingresso nos gramados e nas torcidas estabelece um movimento paralelo ao entrar no
campo literário futebolístico. As escritoras reformulam as representações da bola, do
feminino e de si mesmas, esboçam em contos os vínculos que possuem com o mundo da
bola, exaltam questões de gênero pertinentes à sociedade e reforçam a possibilidade de
se reconhecerem e serem reconhecidas subjetivamente dentro deste espaço inóspito.
O prólogo continua e Piñeiro revela parte de sua ligação com o esporte:
Desconozco cuál habrá sido la relación personal de cada una de las
escritoras que integran esta antología con el fútbol. La mía fue muy
estrecha. Vengo de una familia donde el fútbol tenía un lugar central.
Mi hermano, mi padre y yo éramos los tres de Independiente. A mi
hermano lo entrenaron mis tíos desde los cinco años. En el patio de
tierra que separaba mi casa de la de ellos, mis tíos lo ponían en un arco
de tamaño excesivamente grande para él y pateaban a matar. Lo hacían
tan fuerte que yo creía que lo iban a terminar lastimando, y cada tanto
me quejaba. Pero mi hermano me hacía callar, para él cualquier
pelotazo era poco, siempre pedía más. Los domingos se escuchaba
fútbol en la radio. Y si la televisión transmitía cualquier partido, del
equipo que fuera, se veía en el único televisor que había en la casa, no
importaba con qué programa compitiera. Mi hermano terminó siendo un
gran jugador aficionado de fútbol. El padre de mis hijos también lo es.
Mi pareja es fanático de Racing, pero a esta altura de la vida he asumido
que ciertos defectos del otro no pueden modificarse, y la pertenencia a
un club no puede modificarse sin el oprobio de ser considerado un
traidor. Veo poco fútbol, pero sé qué es la ley del off side, aunque me
gusta más decir orsai. Lavo las camisetas y los botines embarrados que
traen mis hijos todos los fines de semana. Y las vendas, y las medias, y
los pantalones cortos. Conservo en mi álbum de fotos una en la que
estoy con Ricardo Enrique Bochini, el Bocha. En fin, entre tanta
anécdota, seguramente hay material para escribir varias historias donde
60
aparezca el fútbol. Siempre que, además de este deporte, la historia
encierre un conflicto, personajes con carnadura, un tono singular, un
lenguaje a explorar, habrá cuento de fútbol para ser contado.
Por eso esta selección, para encontrarnos con plumas femeninas que le
den al deporte nacional un punto de vista peculiar, un sonido diferente,
palabras que lo cuenten de otro modo. (PIÑEIRO, 2014, p. 13-14, grifos
da autora)
Em tom familiar, o futebol cresceu na vida da escritora e tornou-se um elemento
presente em sua vida. No entanto, a afetividade e a importância do esporte se
desenvolveram de forma desigual em comparação ao irmão. A prática do jogo se
concentrava na figura masculina, enquanto ela de fora observava a reprodução violenta
que os tios desempenhavam ao dar chutes a gol. Enquanto ela se incomodava, o irmão
desejava aquela atmosfera, uma forma de educação que ratifica os valores da virilidade,
da força e da distinção entre os gêneros. Por mais que durante sua vida as transmissões
de futebol fossem constantes, que houvesse fotos com ídolos do Club Atlético
Independiente, ela na fase adulta assume: “veo poco fútbol”, muito pelo fato de que esse
esporte, mesmo presente nas suas memórias tenha encontrado prazo de validade logo na
infância. Por isso, é tão emblemática a referência sobre a lei do off side, que no Brasil
chama-se “impedimento”, uma forma mais clara de traduzir o descompasso entre o
futebol e as mulheres.
Diante de todo esse cenário, ela não se aparta da posição da mulher como dona
de casa, lavando as roupas dos filhos, marcando unilateralmente a responsabilidade
desse papel na casa, dissociado do marido. Entretanto, observa-se no discurso de Piñero
toda uma atmosfera gerada pelos valores praticados no esporte. Com o tom humorístico,
ela questiona a paixão de seu companheiro pelo Racing de Avellaneda (rival histórico e
territorial do Independiente): “Mi pareja es fanático de Racing, pero a esta altura de la
vida he asumido que ciertos defectos del otro no pueden modificarse”. E compreende o
alto nível de traição implicado no ato de ousar trocar de equipe.
Por fim, o último trecho é de suma importância e define de forma precisa o
potencial de alteração no discurso do futebol a partir da representação, contado por
vozes femininas, deslocadas e muitas vezes à margem em relação à condição masculina
desde a origem do esporte moderno. Novas vozes, outras visões e outros estilos de
contar o que já foi contado são os motores e os produtos desse panorama que está se
constituindo cada vez com mais força e presença nos diversos espaços sociais.
61
Vale ressaltar, que muitas das produções femininas nesse momento inicial não se
confinarão somente à reprodução do discurso futebolístico ou fugirão do estigma
patriarcal, através do qual as mulheres são representadas. Muitas histórias são escritas
como relatos de experiências vividas através do futebol, descrevendo e problematizando
as vias de construção das diferenças entre homens e mulheres na família, na sociedade e
no gramado. Ao mesmo tempo, diversos contos têm ainda como foco principal a figura
masculina, em seu valor familiar afetivo, em seu potencial opressor ou como aquele que
vive inteiramente o futebol, como Liliana Heker em “La música de los domingos”
(2003). A narradora aborda a história de seu avô, personagem amargo e carrancudo, e se
coloca na posição de leitora da situação. Diante dos acontecimentos do conto, a parcela
masculina da família atua ativamente das dinâmicas vinculadas ao futebol, enquanto as
mulheres se colocam como participantes passivas, observadoras dos eventos que
ocupam o centro da cena.
Tendo isso em vista, observaremos em três contos específicos as questões até
aqui levantadas.
Em “Matosas”, de Esther Cross, podemos analisar particularmente as questões
referentes à construção da personagem “Gorda Matosas”, símbolo histórico da torcida
do River Plate. Em “Fútbol era el de antes”, de Ana María Shua, buscamos delinear o
modo como a relação das mulheres com o futebol pode se dar a partir de outros pontos
de enunciação. Por fim, em “La guacha redonda”, de Gabriela Cabezón Cámara, temos
como enfoque principal a leitura dos dramas pessoais de uma jogadora de futebol
profissional.
O conto de Esther Cross narra o episódio em que Matosas, biograficamente
Haydée Luján Martínez, líder da torcida do River durante boa parte do século XX, se
encontra internada num hospital à beira da morte. De todos os traços da personagem
apresentados pela narradora, os que nos interessam são aqueles que permitem, de algum
modo, o reconhecimento dela por parte de um amplo grupo de torcedores: “había
bancado diecisiete años malos com River, levantando la moral de hinchas y plantel”
(CROSS, 2014, p. 28).
Relacionando elementos vinculados ao gênero masculino e feminino, Matosas se
alinhava ao discurso hegemônico do “macho”: “posaba de mocasines, medias tres
cuartos, casaca, gorrito de pescador” (CROSS, 2014, p. 25). Em um primeiro momento,
poderíamos pensar numa breve alteração dos parâmetros de determinação de gênero no
estádio, assumindo que há uma mulher no comando de uma torcida formada
62
basicamente por homens. Levando em consideração as características físicas e as
atitudes de Matosas, podemos ter uma noção melhor da maneira como ela conquistou o
respeito dos homens. Fora dos padrões de beleza e dona de um temperamento que
desafiava a tudo e a todos em nome da paixão ao clube, ela não se colocava discursiva e
performaticamente enquanto mulher no estádio. A performance masculina associada à
personagem reflete o modo como as representações no futebol requerem uma encenação
do “macho”, ainda que assumida por um sujeito feminino.
O âmbito performático não se reduz aqui somente à atuação social tempestiva.
Ao contrário, indica a presença de códigos que constroem os sentidos do espaço e, na
mesma medida, possibilitam que o lugar ganhe autonomia, a partir das inscrições
subjetivas, determinando e moldando os indivíduos que nele participam. Essas
impressões transbordam seus limites de leitura na medida em que deixam de se vincular
apenas à subjetividade e passam pela transformação objetiva da realidade nos estádios,
bares, ruas etc., isto é, pela caracterização do espaço dada pelas performances, é
possível experienciar um cenário que se entende e estrutura de acordo com traços
específicos vinculados à masculinidade e neles se assenta enquanto algo inteligível.
Assim como a performance do “macho” está diretamente ligada à área do
futebol, a encenação da “mulher vulnerável” ocorre de modo que os homens
sobressaiam frente à fragilidade feminina. Este modelo de teatralidade repetido
continuamente estabelece não só as bases para as reproduções de masculinidades no
esporte, mas salienta modos de agir que, enraizados, não cessam de entranhar-se no
tecido social. É o efeito e a condição para a perpetuação do poder hegemônico
heteronormativo que, por meio da estética, eterniza e naturaliza posições sociais,
determinando seus atores e coadjuvantes.
As apropriações do corpo se dão na medida em que não há a possibilidade de
sexualização da imagem e, consequentemente, não há a possibilidade do
reconhecimento enquanto mulher. O que era visto pelos outros em campo e na torcida
era mais um torcedor em meio aos outros. Por outro lado, podemos assumir, na mesma
linha em que colocamos acima, a figura materna que cuida dos jogares e amantes do
clube, aquela que se entrega inteiramente à maternidade. A captura do corpo reflete uma
mudança comportamental que se adequa às exigências para ser um torcedor.
O que o conto nos traz de importante se coloca imediatamente no título:
“Matosas”. Esther Cross retrata a personagem sem a intervenção do significante
“gorda”, utilizado como demarcação antagônica do padrão estético de beleza: “– es un
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ícono de la deformidade, tanto que para insultar dicen estás como la Gorda Matosas, y
en realidad no es tan gorda” (CROSS, 2014, p. 24). Não se trata de uma marcação
natural, definitiva ou imutável, sequer de uma possibilidade exclusivamente masculina;
há, sim, a evidência do “macho” no controle da enunciação do discurso proveniente do
futebol e, decorrente disso, uma tentativa de remover as marcas de significado que
mantêm Matosas num lugar que, a princípio, pode ser lido como privilegiado. Todavia,
segue como mais uma das representações que não dizem respeito à mulher enquanto
sujeito, mas à mulher como objeto capturável e reconhecível.
O nome dado pela torcida diz respeito a um registro que marca a ausência do
padrão de beleza com o adjetivo “gorda”, para legitimar a participação de um corpo que
ali não se inscreve como feminino. Ao remover as marcas de gênero da mulher
desejável, frágil e indefesa, a torcida inclui Matosas no discurso hegemônico, não como
diferença, mas como mais um agente de reprodução discursiva. A autora sublinha isso
muito bem, desde o início, com a retirada do adjetivo, enfatizando que a proposta do
conto é reconhecer a personagem enquanto mulher que participou ativamente de uma
torcida organizada. Com essa medida na contra mão da narrativa hegemônica, a autora
procura restabelecer uma subjetividade que, mesmo no encontro de elementos de gênero
variados, representa-se como uma figura feminina. Nesse sentido, o registro do
nome/apelido atua como fator fundamental para designar o lugar de enunciação e para
determinar como a personagem é representada na intermitência entre os discursos:
El verdadero nombre de la diosa espiritual y física de la hinchada
millonaria había quedado oculto, todo ese tiempo, por su alias, Gorda
Matosas, que con los años se había convertido en su auténtica identidad.
La Gorda había absorbido el nombre de un famoso jugador de los
sesenta, que le había regalado su casaca para darle el gusto. De tanto
verla con el 6 y el nombre Matosas en la espalda, terminaron por
llamarla Gorda Matosas. Estaba ingresada en el hospital como Haydée
Martínez, su nombre en los documentos, pero respondía al nombre de
Gorda Matosas. (CROSS, 2014, p. 22)
Esse mesmo apelido, por outro lado, surge como a própria identidade. Ela
mesma não se reconhece propriamente no prenome e sobrenome que aparecem nos
documentos e, possivelmente, na forma como os próprios familiares a chamam:
Haydée. Sua família, enfim, é o River Plate. Simbolicamente, Matosas se envolveu de
tal modo com o futebol que passou a confundir a própria vida com a vida do clube, ela
64
atuava como um elemento de coesão e entusiasmo entre os jogadores e os torcedores. O
sentido de pertencimento à torcida do River foi construído acompanhando uma série de
eventos e partidas em que ela acabou por destacar-se como a heroína, desafiando os
rivais de outros clubes. Suas ações implacáveis despertaram respeito entre os
aficionados, como relata a fala de um motorista ao longo do conto:
– y la gordita se lo baja al rival. Les hace señas de pito corto – dijo el
remisero, haciendo la mímica –. Cuando le cantaban “La Gorda, la
Gorda, la Gorda adonde está/la busca San Lorenzo para cogérsela”, no
llamaba a la policía ni a Defensa de la Víctima, como harían esas
huecas, se paraba en el borde de la tribuna, y se cacheteaba las nalgas,
desafiante. Qué Maestra. Durante años fue la encargada de largar los
canchos en el césped, cuando jugábamos con los ídem. Es una gran tipa,
una gran hincha y una gran gorda. (CROSS, 2014, p. 27)
Esther Cross, ao homenagear a histórica torcedora do River Plate, retira da
invisibilidade o potencial de contribuição das mulheres no futebol, desarticulando em
certos graus a lógica hegemônica masculina através da narrativa. Por mais que, Matosas
tenha sido um símbolo capturado pelo discurso do “macho”, ela surge como uma lenda
feminina entre os apaixonados pelo River Plate e, através da narração da autora, torna-
se viável a representação dessa personagem, sinalizando as características do estigma
masculinizado do futebol, assim como os caminhos que tendem a desviar-se dele.
O conto de Ana María Shua, narrado em primeira pessoa, se baseia num
intercolegial de futsal disputado por jovens alunas. Ao tratar de um cenário mais
familiar que desportivo, ganha importância a participação da mãe em detrimento do pai
no acompanhamento da filha aos eventos de sua formação escolar. Na torcida, os
homens ganham destaque em destaque na figura de um pai que desempenha o papel do
torcedor violento, ao xingar a filha que, segundo ele, vem jogando mal.
Destacamos de início dois pontos de afirmação de enunciadoras femininas: 1) a
própria narração da mãe de Florcita, juíza da disputa, marcada pelo registro feminino
desinteressado que vê o futebol como algo incompreensível; 2) e a fala de “Rubia” que
“miraba el partido com una paz que me hacía pensar en mi profe de tai-chi” (SHUA,
2014, p. 36). Mãe de uma das jovens que integravam um dos times, esta dedica-se a
explicar à narradora as regras e os processos relacionados à dinâmica futebolística.
A conversa entre as duas personagens flui no sentido de instruir a narradora
acerca das regras e do ambiente do esporte. A marca do conhecimento sobre o jogo não
65
passa pela figura masculina em nenhum momento, sendo “Rubia” um ponto de
enunciação que expõe racionalmente alguns dos elementos que tornam o futebol
compreensível. A narradora, desentendida do assunto, ouve atentamente e opina sobre
os lances da partida. É nesse breve momento em que há uma reformulação das relações
entre futebol e mulheres no sentido em que o olhar técnico e afetivo não depende da
figura masculina:
-Miré el partido con toda concentración, tratando de entender y de no
perderme nada. En una de esas mi hija toca el silbato y le saca dos
tarjetas a una piba que hizo faul, que ahora se dice “falta”. Yo hasta
tarjeta amarilla sabía y tarjeta roja también, pero ¿las dos juntas?
-Tarjeta azul.
- ¿Tarjeta azul? – Para mí, rojo con amarillo daba anaranjado.
- La echan, pero el equipo no se queda con cuatro, puede poner una
reemplazante.
La rubia me explico también, con mucha paciencia, qué significaba
tocar una vez el silbato, cuándo se tocaban dos y cuándo tres.
En eso dos chicas chocaron y uno de los padres se puso a gritarle a mi
Florcita.
- Falta Juez! Es faaaaaaalta, cobrala, cobrá la falta!
-No es falta – me explico mi nueva amiga-. Se chocaron los hombros
sin querer y las dos iban mirando para el mismo lado. Y al juez no se le
grita. Ni desde la hinchada. (SHUA, 2014, p. 37-38)
O desconhecimento sobre o jogo é potencializado pela mudança de modalidade
do futebol de campo para o de quadra. “Rubia” sela um companheirismo imediato com
a narradora, que se dispunha fazê-la a compreender pouco a pouco o que se passava na
partida e a função de sua filha, a juíza. A função de mãe que acompanha a filha ou os
filhos aos jogos aparece como marca principal. A experiência da narração perpassa os
estágios mais comuns e naturalizados da prática feminina ante o futebol ao mesmo
tempo que os ressignifica. Duas mulheres conversando sobre o jogo: uma é detentora de
informação e a outra uma neófita no mundo do futebol. As oposições entre os pais e as
mães ficam a cargo do entusiasmo e da exaltação incontida diante das pequenas
66
jogadoras de 9 e 10 anos. A transposição dos valores comuns ao esporte profissional
para uma partida joga por crianças ocorre de modo desproporcional, quando alguns pais
tendem a gritar com a juíza e com as filhas jogadoras durante toda a partida.
Embebida de um contexto que denuncia os benefícios de homens em relação às
mulheres no futebol, a narrativa enaltece os reflexos sociais e familiares decorrentes das
práticas entre pai e filha. Há uma história secundária contada pela “Rubia”, que ascende
à condição de história principal por conta de seu conteúdo dramático e alegórico
relacionado à situação de gênero no futebol. Antonella, personagem da segunda história
e amiga dos tempos em que a “Rubia” jogava seu próprio torneio interclasses na escola,
sofre com as exigências do pai, desejoso de que um dia ela viesse a se tornar jogadora
profissional: “el padre no le tenía ningún respeto al fútbol cinco [futsal], decía que era
para minas y maricones, él queria que su hija jugara fútbol de verdad” (SHUA, 2014, p.
40). Ainda que haja o interesse na participação da filha no universo do futebol, a marca
deixada pelo pai fomenta ainda mais o discurso heteronormativo. Novamente,
encontramo-nos em um espaço que reproduz todas as disfunções e descompassos entre
um poder hegemônico e as dimensões subalternas.
Não obstante, a história se desenvolve no campo dos traumas gerados pela
presença incisiva do pai, o que acaba por constranger a filha. “Rubia” dá a entender que
para o pai era uma insatisfação constante o fato de ter uma filha mulher e que todos os
seus esforços dedicados à educação de Antonella se voltavam para a masculinização das
relações entre ambos. O afeto entre os dois convergia no amor por um clube: “el fútbol
le encantaba, eran hinchas de River” (SHUA, 2014, p. 39). O que se postula numa dupla
medida é como, nesse caso, o futebol desempenha uma mediação que fornece os
códigos para demonstrar as instabilidades familiares relacionadas à disparidade entre os
gêneros. O futebol mantém o aparente vínculo afetivo e, contraditoriamente, os
impasses entre pai e filha. Ao participar de um teste para fazer parte das categorias de
base do River, Antonella fracassa e vê o desapontamento de seu pai:
Imaginate que después del fracaso no le habló a la chica durante varias
semanas. Decía que había jugado mal a propósito para darle un
disgusto. Ella estaba destruida, andaba llorando por los rincones. Para
hacerla corta, cuando Antonella cumplió dieciocho años, decidió
operarse. Quería ser varón. (SHUA, 2014, p. 42)
67
As ações praticadas pelo pai tem como efeito a mudança de sexo da filha. A
crítica central do conto se baseia especificamente no poder que opera o discurso do
“macho” sobre os corpos das mulheres. “Rubia”, nessa passagem, deixa claro que
Antonella não se viu numa situação de escolha. O traço subjetivo da personagem é
sublimado pelos desejos do pai, em busca da cumplicidade de um igual. A cena não diz
respeito à vontade individual e ao autorreconhecimento da personagem enquanto
homem, mas ao problema familiar que pressupõe a estabilidade das relações definidas
exclusivamente nos termos da masculinidade:
-¿Pero ya tiraba para ese lado? Digo... no sé... ¿le gustaban las mujeres?
-Y, algo de eso había. La madre no estaba de acuerdo, trató de
impedirlo por todos los medios. Decía que la pobrecita quería ser
hombre porque la única manera de conquistar el amor de su padre era
convertirse en el hijo varón que él siempre había deseado. [...] El padre
estuvo de acuerdo y la ayudó a viajar a los Estados unidos. Volvió
hecha un muchacho con toda la barba. Antonio en vez de Antonella.
(SHUA, 2014, p. 43)
Para ser reconhecida pelo pai, Antonella se vê na obrigação de converter-se em
homem.
-¿y cómo le fue? – le pregunté a la rubia.
-Peor que nunca. Imaginate, si como mujer no era muy buena jugando
al fútbol, cuando empezó a jugar con otros hombres resultó un desastre.
Pero en cambio, como hijo, tenés que ver. No existió sobre la tierra un
hijo tan amoroso y dedicado. Cuando su papá se enfermó, estuvo día y
noche al lado de él hasta que le cerró los ojos. Y te aseguro que el
energúmeno no se lo merecía. (SHUA, 2014, p. 44)
Shúa parte das trocas simbólicas para uma representação da performance que
indica materialmente a dominação masculina sobre os corpos femininos. A
radicalização da performance se traduz no momento em que não é mais necessário atuar
como um homem; é preciso ser um homem.
Em “La guacha redonda”, de Gabriela Cabezón Cámara, a narração se concentra
em contar a ascensão e o declínio de Selena, personagem ficcional que atua como a
melhor jogadora argentina de todos os tempos: “La Maradona del Ceamse” (CABEZÓN
68
CÁMARA, 2014, p. 89). O conto inicia colocando o acento sobre a construção mítica
da personagem:
Era una guacha redonda: ella no fue dada a luz, sino escupida en el
barro y rebotó un par de veces antes del primer berrido; así aprendió a
proferir sus famosos alaridos y empezó a considerar el mundo como un
espacio en el que sobrevivir era cuestión de rodar sin despegarse del
piso y en el piso no había más que la basura más pobre, la otra la
levantaban, la comían, la tejían, la cosían para vestirse, la vendían en
sus carros, la usaban para vasitos o para darse calor cuando había helada
en la villa. El mundo era barro hediondo, un pantano nauseabundo
donde, si pisabas fuerte, saltaba fuego de abajo; ella nació dada a tierra
en unos lotes tomados al basural del Ceamse en los bordes bonaerenses.
(CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 85-86)
O começo da história é muito emblemático. Ressalta os aspectos de
subalternidade da personagem Selena, vivendo em uma região industrial nas margens de
Buenos Aires. Filha de mãe prostituta e de pai desconhecido, ela vive com quatro
irmãos em um cômodo minúsculo. A construção da personagem estruturada pela autora
demonstra uma relação metafórica entre o sujeito e o espaço onde vive. A comparação
do mundo de Selena com “un pantano nauseabundo” traduz a dura realidade na qual ela
vive e, da mesma forma, o modo como sua mentalidade se desenvolve diante da vida. A
acepção do termo “redonda” indica expressivamente uma metáfora com uma bola de
futebol e com o globo terrestre, a bola como tradução do mundo, isto é, a vida para ela
viria a se tornar o próprio futebol: “Y la guachita rodaba, aprendió a sobrevivir con
dinámica de esfera, a avanzar sin apoyar nunca más que un solo punto aprovechando
muy bien las subidas y bajadas del terreno que pisaba” (CABEZÓN CÁMARA, 2014,
p. 86). Perto de casa, havia um campinho onde jogavam os meninos do bairro e foi
então que teve seu primeiro contato com a bola: “como la luna y la tierra, se le armó con
el balón relación gravitatoria; la atrajo el cuerpo redondo y ella se satelizó” (CABEZÓN
CÁMARA, 2014, p. 87). A íntima relação reflete um universo em que o futebol não se
dissocia da formação subjetiva de Selena, naturalizando os sentidos do jogo e a
percepção do sujeito. O significado de mundo se conecta com os sentidos desenvolvidos
desde o futebol, Selena como alegoria da situação de jogadores e jogadoras subalternos
que veem no esporte a possibilidade de ascensão social (a exemplo do próprio Diego
Armando Maradona) e, principalmente, do mundo organizado sobre a mística do
futebol.
69
As referências temporais do conto situam a narrativa em uma Argentina que
encara os primeiros anos do Peronismo, período marcado por um desenvolvimento
sócio-econômico dos grupos menos privilegiados, o que se refletiria na situação precária
da família de Selena e na vida do conurbano de modo geral: “La cosa mejoró un poco
cuando llegó el peronismo y entonces, por cada uno de sus [da mãe da personagem]
cinco hijos menores, era menor ella misma [Selena], la madre recibió plata para
comprarles arroz y de vez en cuando bofe” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 88).
Assim, Selena pode participar de seu primeiro torneio: “a los siete años ya era goleadora
de su escuela. A los ocho se ganó una medalla dorada en el Campeonato Evita. A los
nueve su mamá, que ya tenía veintitrés, la iba a ver jugar de diez” (CABEZÓN
CÁMARA, 2014, p. 88). De poco a poco, a trajetória da personagem ganha destaque,
desenvolvendo sentidos de pertencimento maior no seio da família e gerando o respeito
dos amigos da comunidade: “los pibes la visitaban y le llevaban ofrendas y ella se tatuó
sus nombres en la pancita de nena y mostraba los tatuajes cada vez que gritaba gol”
(CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 89). A personagem é representada como uma pequena
deusa, crescendo em meio às conquistas e à expressão de sua sensibilidade durante as
partidas. Seu aspecto, por outro lado, se assemelhava ao de um menino:
[...] la empezó a decir la prensa que reparó en su figura de nenito con
rulitos: resistirse a ser mujer en la forma en que lo eran su abuela, tías y
madre era parte de su ser blindada como una esfera, quién iba a elegir el
sino de ser la paria de la paria. Selena no. Progresaba y con ella su
mamá y también sus hermanitos que iban todos a la escuela [...].
(CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 89-90)
Selena surgia como uma nova subjetividade em meio à cena do conurbano, não
aceitando a subalternidade que definia as outras mulheres da tribo. Diante do sofrimento
dessas mulheres, resiste ao suposto destino e luta para melhorar a situação familiar,
atuando como uma figura exemplar. A emancipação através do esporte possibilita a
ascensão social e os reflexos da diferenciação entre Selena e suas familiares não se dão
tão somente na leitura do domínio da masculinidade, mas sobretudo na chance de alterar
os padrões que ali estão dados. Selena cresce e se diferencia daqueles e daquelas que
estão a sua volta. Ela é o motor, o dínamo e a possibilidade de transformação em
direção a esse novo mundo desenhado esfericamente de acordo com a ressignificação do
universo da bola pelo feminino.
70
A transição de atmosfera no conto se dá no momento em que a “guachita”
recebe um convite para estudar e jogar futebol nos EUA, onde “gol se gritaba igual que
en la cancha de la villa” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 92), ressaltando o apego
territorial de suas raízes com os afetos deixados na Argentina. Instalada em Dallas, ela
passou a receber um salário maior que permite melhorar o padrão de vida da família no
conurbano, possibilitando inclusive a mãe reforme o apartamento e abra seu próprio
salão de beleza. Uma reviravolta instala um evento traumático na vida de Selena. Uma
das fábricas de armamentos militares da região explode e no acidente é destruída toda a
região onde ela morava. Mãe, avó, tias, irmãos e amigos, todos morrem em decorrência
da fatalidade. Nesse momento, ela entra em uma espiral de sofrimento, desejando nada
mais do que a vingança contra aqueles (industriais e governantes) que a levaram a
perder todos os vínculos afetivos. É importante lembrar que se Selena constituía o
mundo sobre o qual a família e a comunidade se espelhavam, isto é, viviam suas
derrotas, suas vitórias e suas mudanças juntamente à personagem, o contrário acabará
por ser verdade. Para Selena, o mundo não se sustenta sem as partes que nele/nela
faziam sentido. Tudo rui ao passo que o território e todos os elementos que o formaram,
enquanto espaço afetivo, se desmontam. Sua pátria era um pedaço de terra em Ceamse,
juntamente com sua família e seus amigos. Sua pátria já não mais existia. O que
vinculava o país e a pátria ao sujeito era a localidade na qual tinha vivido e que ainda
era cultivada em sua memória afetiva. A Argentina havia se tornado “ese lugar siniestro
donde los pobres volaban” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 95-96). Posteriormente, a
personagem se afilia a um grupo radical conservador norteamericano e desenvolve seu
plano de vingança com vistas a praticá-lo durante as Olimpíadas, a ser realizada em
Buenos Aires.
Selena deixa de ser a jogadora apaixonada, para quem o futebol era algo natural,
para se tornar um “genial Robocop”, que “avanzaba por la cancha como avanza por Irak
un regimento marine” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p. 95). Durante a partida, estavam
presentes nas arquibancadas todos os políticos mais influentes da nação, uma guarda
militar e a polícia. Ela entra em campo com o corpo repleto de bombas por baixo do
uniforme. Marca três gols e quando vê todos no estádio gritando, emocionados com a
vitória, aperta o botão que aciona os explosivos: “volaron todos, subieron más alto que
el obelisco y llovieron sus cenizas sobre Madero y la Boca. Selena se disgregó en una
esfera perfecta en el cielo bonaerense y el viento se la llevó hasta ser nada de nada o
hasta orbitar para siempre sobre el río de la Plata” (CABEZÓN CÁMARA, 2014, p.
71
96). A vingança se concretiza com o fim de dois mundos: um representado pelas elites e
forças policiais do país; outro mais particular, mais concreto, próximo àqueles que
viveram junto a Selena, ela mesma a maior expressão dessa rede de significados
formadores do território de Ceamse e do conurbano. A orfandade referida no título e
durante todo o conto se resume no momento em que ela perde tudo e a todos. há dois
níveis de subalternidade em jogo: ter nascido pobre e ser mulher. Os conflitos do conto
refletem ao mesmo tempo as elites industriais, tidas por Selena como responsáveis pela
explosão de Ceamse, e a lógica hegemônica masculina, retratada pelo futebol e pelas
figurações das familiares submetidas a uma posição inferior. Relatando de forma épica a
trajetória de uma personagem inserida em dinâmicas complexas na sociedade, Gabriela
Cabezón Cámara surge como um dos grandes exemplos na produção literária
contemporânea que representa a mulher no futebol na condição de mito, ascendente e
caído.
72
3. AS TRIBOS DA BOLA: descompassos entre o território e o Estado-Nação
Durante grande parte do século XX, o Estado-Nação foi o principal produtor de
narrativas do futebol. Por mais que muitas delas tenham sido geradas através de outros
operadores – mídia, torcedores e cronistas –, a unidade representada pelas seleções
dentro dos gramados age como um poderoso simulacro nacional, estimulando a
comunhão do povo. O panorama contemporâneo, ao seguir uma tendência de
diversificação dos produtores de discursos, inclusive aqueles que, no campo intelectual
e artístico, integram especificamente a literatura sobre futebol, reflete um cenário de
pluralidades em que a nação ora é questionada, ora é acionada em toda sua força
agregadora.
Richard Giulianotti, em Sociologia do futebol (2010), aponta que, após as
décadas de 1970 e 1980, o futebol mundial sofre uma série de alterações na sua
estrutura socioeconômica, caracterizando um momento de pós-modernização do
esporte:
A desindustrialização fraturou o elo das classes operárias com clubes de
subúrbios. A televisão passou a dominar as finanças e a administração
das ligas de futebol e de seus clubes membros. As maiores nações
beneficiaram-se, importando jogadores de todo mundo, enquanto as
menores tornaram-se dependentes das transferências externas. A
circulação global do trabalho e das ideias começou a solapar as
“tradições”, aumentando a mistura dos estilos de jogos.
(GIULIANOTTI, 2010, p. 52)
Tais mudanças no cenário das metrópoles projetaram não só um novo panorama
no futebol, mas engendraram modificações em grande parte das dinâmicas
socioculturais implicadas. Tendo como base o cenário inglês, Giulianotti assinala certas
rupturas com a tradição moderna do jogo. Os vínculos classistas e territoriais passaram
por disjunções na medida em que os investimentos em escala global avançavam. A
ampliação das redes de transmissão dos jogos, o crescimento do mercado da propaganda
e a maior quantidade de acionistas dos clubes dilataram a rede afetiva do futebol nas
esferas sociais. Rapidamente, as equipes ganharam um destaque tão marcante quanto as
seleções nacionais e potencializaram seus níveis de identificação com o público. Clubes
como Juventus e Milan, na Itália, Real Madrid e Barcelona, na Espanha, e Manchester
United, na Inglaterra, superam os limites das fronteiras nacionais e agregam uma gama
73
de torcedores e torcedoras por todo o mundo. Talvez o lema “más que un club” (“Mais
que um clube”), associado à equipe catalã do Barcelona, seja a expressão maior do
modo como um time pode mobilizar uma ampla rede de domínio representativo. Muitos
desses times não se restringem a sua condição local e extrapolam seus sentidos,
figurando, por vezes, como ativos representantes de suas próprias nações em
competições internacionais e, em outras, como seleções independentes da sua origem,
aglomerando jogadores de inúmeras nacionalidades diferentes.
As problemáticas provenientes da reformulação do futebol no final do século
XX demonstram o surgimento de subjetividades híbridas, torcedores que se afiliam
emocionalmente a um clube de cada país, vendo campeonatos nacionais e
internacionais. Se afunilarmos ainda mais a leitura, podemos encontrar dentro de um
contexto nacional, torcedores que possuem um clube de afiliação local e, ainda assim,
optam simultaneamente pela escolha de uma equipe maior, que trará mais resultados
positivos e, consequentemente, mais alegrias. Na Argentina, por exemplo, há casos de
torcidas pequenas, como as do Sportivo Belgrano e Atlético Tucumán, que mantém sua
fidelidade ao clube; no entanto, muitos dos aficionados por futebol, escolhem torcer
para alguma equipe de representação no território nacional, como o Boca Juniors ou o
River Plate.
Muitas dessas manifestações se colocam no universo de impasses onde se
tensionam os limites do nacional e do microterritório. Ainda que a tendência, hoje, seja
a do futebol global, em espaços como a Argentina os torcedores mantêm inúmeros
vínculos locais de afetividade, negociando e alternando sentimentos entre a nação e o
clube.
Nesse sentido, com a emergência de novas formas de sujeitos torcedores e as
relações fragmentárias decorrentes do proceso de globalização, como entender o diálogo
entre narrativas de futebol e a ideia de nação? Em que ponto se elaboram novos
sentidos do nacional a partir de relatos locais? Segundo Homi Bhabha: “os embates de
fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais
quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade”
(1998, p. 21). O objetivo deste capítulo é a de investigar essas possíveis confusões e,
por consequência, ressemantizações das quais o teórico indiano fala.
Diante de contextos globais em que os deslocamentos e a fragmentação social
indica, ao mesmo tempo, uma fragmentação identitária, a unidade de pertencimento
pretendida pelo Estado-nação moderno se dilui frente à emergência de grupos de
74
sujeitos estruturados a partir de traços muito particulares ancorados no microterritório.
Segundo Stuart Hall, “as identidades modernas estão sendo „descentradas‟, isto é,
deslocadas ou fragmentadas” (2006, p. 8). O sociólogo jamaicano projeta, por
intermédio dessa rápida citação, um quadro que envolve não só fatores constituintes de
uma pós-modernidade que avança, mas retoma dialética e muito sutilmente a tradição
moderna para marcar as diferenças que se acentuam entre as duas perspectivas. Ao
ressaltar a condição fragmentária das identidades, ele expõe estruturas que, na
Modernidade, são tomadas por um universalismo que procura assimilar política e
ideologicamente as inúmeras partes que a compõem.
No processo de transição de uma era para outra, a característica da
universalidade se reveste de uma nova roupagem conceitual dada pela pluralidade que
reflete um cenário de fragmentação do sujeito e cisão entre espaço e tempo que redefine
formas de se lidar com a sociedade, determinando os estágios evolutivos do processo de
globalização. Novos modos de se relacionar, muito marcados pela negociação de
elementos culturais descolados da localidade de sua origem, reformulam as condições
do sentido de “estar-no-mundo”, sendo necessário realizar, além da análise materialista
associada aos contatos “face-a-face”, um apuramento do campo simbólico ao qual se
associam os intercâmbios identitários provenientes do distanciamento entre espaço e
tempo: “as relações que antes se faziam „aqui e agora‟, conjugadas num mesmo tempo-
espaço, podem ser espacialmente dissociadas, „desencaixadas‟, para se „reencaixarem‟
em outra configuração e/ou escala espacial” (HAESBAERT, 2014, p. 160). Valendo-
nos desse argumento, não pretendemos ler os contrastes entre uma Modernidade e uma
Pós-Modernidade cronologicamente marcadas por um antes e um depois bem definidos.
Ao contrário, pretendemos ver como elementos presentes em manifestações de
subjetividades já inseridas no âmbito pós-moderno podem emergir no interior de uma
Modernidade radicalizada, na tentativa de não sugerir a sobreposição espaço-temporal
de uma em relação à outra, mas analisar a coexistência de valores que promovem
embates e tensões na esfera social, além de sinalizarem o processo de transformação de
um modelo sólido em líquido:
En la actualidad, las pautas y configuraciones ya no están
“determinadas”, y no resultan “autoevidentes” de ningún modo; hay
demasiadas, chocan entre sí y sus mandatos se contradicen, de manera
que cada una de esas pautas y configuraciones ha sido despojada de su
poder coercitivo o estimulante. Y, además, su naturaleza ha cambiado,
75
por lo cual han sido reclasificadas en consecuencia: como ítem del
inventario de tareas individuales. En vez de preceder a la política de
vida y de encuadrar su curso futuro, deben seguirla (derivar de ella), y
reformarse y remodelarse según los cambios y giros que esa política de
vida experimente. El poder de licuefacción se ha desplazado del
“sistema” a la “sociedad”, de la “política” a las “políticas de vida”...o ha
descendido del “macronivel” al “micronivel” de la cohabitación social.
(BAUMAN, 2004, p. 13)
O trecho de Zygmunt Bauman citado acima expõe um panorama fluidificado nas
tensões entre individual e coletivo, macro e microníveis, Estado e sociedade, permitindo
observar uma mudança nas concepções fundamentalmente difundidas por uma
Modernidade sólida. O que ocorre é uma problematização de questões a partir de
sintomas sociais que figuram um outro registro político, histórico e identitário, um
modo através do qual grupos de sujeitos agem e se reconhecem na contramão de
padrões convencionados. A pluralização das relações e das estruturas sociais refletem
identidades fragmentadas, “não evidentes” e “não determinadas”, enquadrando-se no
modelo “neotribal” de Michel Maffesoli: “É neste quadro que se exprime a paixão, que
as crenças comuns são elaboradas, ou, simplesmente, que se procura a companhia
„daqueles que pensam e que sentem como nós‟” (MAFFESOLI, 1998, p. 18-19).
Elementos materiais, simbólicos e afetivos compartilhados promovem o sentido de
pertencimento a uma comunidade na qual sujeitos se identificam, compondo grupos
sociais que se destacam da concepção de sociedade identitariamente homogênea. Nesse
sentido, não caberia aqui pensar a partir do unitarismo, mas sim desde as diferenças que
expressam culturalmente uma descontinuidade dentro destes cenários de torcedores
onde o clube ocupa o primeiro lugar.
3.1. Micronações de torcedores: futebol, nação e imaginário coletivo
Ao falarmos de futebol e literatura na Argentina, colocamos em pauta uma
discussão sobre os relatos nacionais. Ramón Llopis Goig (2009) entende o futebol,
assim como alguns outros esportes, como um dos grandes mecanismos que ajudaram na
formação do Estado-Nação enquanto “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008). O
desenvolvimento da identificação atrelada à nação estaria fortemente ligado às
representações de equipes que a simbolizam: “como espectáculo de masas, se constituyó
76
en una esfera pública ritualizada, en la que se generaban representaciones acerca de lo
nacional” (LLOPIS GOIG, 2009, p. 8, grifo do autor).
Gayatri Spivak, propondo uma alternativa, vinculará à imaginação um poder
particular de alternar as esferas de significado que envolvem a formação do nacional.
Ancorada numa proposta que tem como objetivo a “destranscendentalização do
nacionalismo” (2012, p. 291), Spivak procura rever os mecanismos de Estado que
atuam na construção de uma identidade e de um sentido de pertencimento associados ao
território da nação. Para ela, o processo estaria invertido, isto é, a identificação
territorial derivaria do discurso nacionalista. Haveria uma naturalização do ser nacional
que antecederia qualquer outra conexão particular entre sujeito e território. Os afetos
territoriais, as amizades, a união do povo são constituídos no plano discursivo da nação
para que depois seja possível observar na prática social os reflexos da integração
comunitária. A crítica reside exatamente no ponto em que os vínculos de pertencimento
entre sujeito e território seriam formados anteriormente à ação de coesão nacionalista.
Os nacionalismos, ao se apropriarem das relações de afeto partilhadas por sujeitos em
um mesmo solo, “privativas não-derivadas”, segundo Spivak, naturalizam a identidade
nacional e desconsideram as diversidades culturais dentro do espaço do Estado-Nação.
Ao falar de uma “destrancendentalização do nacionalismo”, o que se pretende é destituir
o Estado-Nação de seu mecanismo homogeneizante, tal como ele se manifesta na
construção de alteridades, na tentativa de devolver aos sujeitos a possibilidade de reler,
revisar e redefinir a nação a partir das diferenças expressas através das microlocalidades
e microlocalizações, isto é, a Nação como algo que reúne diferenças ao invés de apagá-
las.
No decorrer do século XX na América Latina, com a emergência dos meios
massificados, a instauração de um modelo nacional como projeto associado ao Estado
reiterava uma unidade que hoje já não se mantém com a mesma força. Pensando o
cenário argentino, Pablo Alabarces (2009) ressalta que, durante o peronismo, houve
uma gama de relatos nacionalistas ligados a uma pluralidade de vozes que reforçavam o
papel do Estado como narrador e, ao mesmo tempo, explicitavam o desbordamento
dessas narrativas que escoavam através do jornalismo e do cinema de massas. Em
síntese, esses dois fatores se associavam, mas não se sobrepunham; agiam
cooperativamente.
Os processos que construíam a identificação com o nacional se davam através do
poder de reunião implementado pelo Estado e paralelamente por meio dos veículos que
77
dispunham do acesso aos instrumentos de produção de narrativas nos meios de
comunicação, “la idea de construir una nación que incluye antes que expulsa”
(ALABARCES, 2009, p. 143). A mudança de panorama, com as ditaduras e seus
censores, reverberou uma desapropriação da autonomia narrativa dos meios de
comunicação massas, provocada pela submissão coercitiva à ideologia do Estado, como
o grande produtor do relato nacional. O que observamos hoje, no século XXI, com a
fragmentação das relações em cenários globalizados, é a diluição dessa ideia de nação,
uma vez que se encontra, em parte, desassociada de seu principal operador: o Estado;
além de não abarcar, dentre todas as manifestações intersubjetivas, o potencial para
reunir as diferenças culturais e transformá-las em sentimento de coletividade, servindo à
pátria. Vale ressaltar que a perspectiva de Llopis Goig e Alabarces mescladas ao
“neotribalismo” de Michel Maffesoli, possibilita enxergar contextos sociais compostos
por indivíduos que partilham valores, códigos e uma memória grupal desvinculada de
características fundamentalmente ligadas e veiculadas pelo Estado-nação. No âmbito do
futebol, a paixão por um clube, os ritos particulares praticados por grupos de torcedores,
rotinas de bar, encontros na esquina ou no estádio, reuniões de amigos de pelada
superam o fator meramente descritivo das atividades e assinalam dinâmicas de interação
e espaços de convívio e pertencimento, como o bairro, a localidade que pressupõem
maneiras de organização específicas destes determinados microcosmos ou, como
poderíamos chamá-los, destas determinadas micronações.
3.2. Territorialidades: mapas simbólicos de torcidas no contexto argentino
A conexão entre as comunidades de indivíduos que se identificam a partir do
futebol e o território do bairro é uma característica muito presente no contexto social
argentino. Alejandro Fabbri sinaliza: “El amor a un club llega de pequeño, por
gravitación familiar, de los amigos o de la zona donde uno vive” (2006, p. 13 apud
PIMENTEL, 2014, p. 34). As relações desenvolvidas no âmbito local e doméstico entre
familiares e amigos estruturam esse primeiro momento de territorialização do afeto e
construção identitária do indivíduo (PIMENTEL, 2014). Embora a questão do território
esteja, não raro, relacionada ao Estado-Nação, às suas fronteiras e a seus níveis de poder
e influência, a territorialidade desses grupos atua na dimensão posta por Marcelo Lopes
de Souza, como “algo gerador de raízes e identidade: um grupo não pode mais ser
compreendido sem o seu território, no sentido de que a identidade sócio-cultural das
78
pessoas estaria inarredavelmente ligada aos atributos do espaço concreto (natureza,
patrimônio arquitetônico, „paisagem‟)” (2001, p. 84). Diante de traços sociais bem
marcados pelo território, a produção do discurso nacionalista, “como um mosaico
orgânico e harmônico de „regiões‟ singulares” (2001, p. 84), torna evidente a proposta
de unidade ideológica do Estado-Nação, veiculada por uma carga simbólica que vincula
a materialidade do território à ideia de nação. Em outras palavras, território atuaria na
maioria das vezes como sinônimo de “território nacional”:
A ideologia [de Estado] não é ideologia, ou seja, um conjunto de ideia e
valores relativos conforme a classe ou o grupo. É cultura nacional, amor
à pátria etc., e a identificação se daria entre todo um “povo” (visto como
se não houvessem classes, grupos e contradições internas) e “seu”
Estado. A territorialidade do Estado-Nação, tão densa de história, onde
afetividade e identificação (reais ou hiperbolizadas ideologicamente)
possuem enorme dimensão telúrica – paisagem, “regiões de um país”,
belezas e recursos naturais da “pátria” -, é naturalizada [...]. (SOUZA,
2001, p. 86, grifo do autor)
Assim, o que se apresenta, em detrimento do nacionalismo de Estado, é o
sentido de pertencimento compartilhado dentro de um mesmo (micro)território, que
desempenha um papel primário na construção da identidade e do imaginário de grupos.
Nas narrativas de futebol na Argentina, o cenário não é diferente. Há um forte vínculo
com o bairro, com o campinho, com a esquina, que atuam como elementos de
identificação entre os sujeitos representados. Nesse sentido, ao avaliarmos o potencial
contido no território como fator identitário, são válidas algumas considerações sobre as
formas de organização afetiva de indivíduos no contexto social.
É importante deixar clara a proposta de leitura não isolada destas manifestações
identitárias, isto é, mesmo se tratando de grupos autorreferenciais, voltados de si para si,
não é nosso objetivo observá-los de maneira excludente, mas, ao contrário, reforçar o
cuidado das tensões que existem entre os níveis micro e macrossocial. Esses grupos
partilham valores e códigos em comum que se colocam em contato direto com a
sociedade, não sendo possível ignorar as referências externas com as quais dialogam. As
dinâmicas internas a essas pequenas nações se fundam sob o selo de um imaginário
comum e compartilhado, uma memória estabelecida através de práticas da tribo que se
expressa culturalmente na medida em que se imagina e se reconhece transcendendo a
ideia nacionalista: “mi equipo es más importante que cualquier selección”
79
(ALABARCES, 2009, p. 141). A imaginação tem uma forte presença na constituição
coletiva de grupos, demonstrando outras possibilidades de identificação social
paralelamente à instaurada pelo Estado-Nação. O antropólogo Arjun Appadurai reforça
essa ideia que entende “la imaginación como práctica social” (2001, p. 44-45):
Ya no estaríamos hablando ni de mera fantasía (opio de las masas cuyo trabajo
real se hallaría en otra parte) ni de un simple escape (de un mundo definido,
sobre todo, por propósitos y estructuras más concretas) ni de un pasatiempo de
elite (irrelevante en relación con la vida de la gente común) ni de mera
contemplación (irrelevante en relación con las nuevas formas del deseo y la
subjetividad). La imaginación se volvió un campo organizado de prácticas
sociales, una forma de trabajo (tanto en el sentido de realizar una tarea
productiva, transformadora, como en el hecho de ser una práctica culturalmente
organizada) […]. (2001, p. 45)
Esquecendo as conotações negativas ligadas ao termo imaginário – “irreal”,
“falso”, “fantasioso”, “supérfluo” –, podemos traçar um viés de abordagem que salienta
os reflexos da prática do cotidiano de indivíduos atrelada à forte relação imaginada
estabelecida coletivamente. É comum observar, pelos bairros de Buenos Aires, sujeitos
realizando tarefas rotineiras com as camisetas de seus times do coração. Isso representa
não só uma ligação entre o sujeito e um time de futebol, mas um traço social que
evidencia uma demarcação territorial dada pela presença da quantidade de camisas do
mesmo time em uma mesma região. A área que envolve os bairros de Boedo, Almagro,
Parque Chacabuco e Bajo Flores tem a marca do Club Atlético San Lorenzo de
Almagro (CASLA), em Avellaneda dominam o Racing Club e o Independiente, na
cidade de Rosário (Santa Fe), o Rosário Central e o Newell‟s Old Boys. Os exemplos
são inúmeros. Todas essas áreas guardam imaginários que envolvem o pertencimento
destas torcidas. Cada um desses grupos tem, em seu cotidiano, uma grande presença do
futebol na constituição de suas práticas sociais e no processo de reconhecimento
identitário, levando a definir quem faz e quem não faz parte do bairro, da comunidade,
bem como quem é estrangeiro àquela micronação.
Bauman irá descrever dois estágios através dos quais o Estado fundava suas
fronteiras a partir do mapeamento cartográfico do território: “anteriormente, era o mapa
que refletia e registrava as formas do território” (1999, p. 42). Em um primeiro
momento, o desenho geográfico, segundo a perspectiva da tradição moderna, dado de
forma mimetizada em relação à realidade, representava os limites territoriais a que
80
estava circunscrito o Estado-Nação. As fronteiras concretas eram transferidas
graficamente para o mapa, que exercia uma função espelhada do espaço para ajudar a
compreender sua própria inexatidão. Em um segundo momento, destaca Bauman, com a
radicalização do processo, as esferas de controle do Estado anteviram uma opção na
qual o território não se colocava mais como um elemento do qual dependia a
cartografia. O que antes se formulava através da realidade concreta, agora se
remodelava a partir do mapa. O mapa serviria como referência para a reestruturação dos
espaços que, imperfeitos, deveriam se adequar cada vez mais precisamente às
representações cartográficas: “agora, era a vez do território se tornar um reflexo do
mapa, ser elevado ao nível da ordenada transparência que os mapas se esforçavam por
atingir. Era o próprio espaço que devia ser remodelado ou modelado a partir do nada à
semelhança do mapa e de acordo com as decisões dos cartógrafos” (BAUMAN, 1999,
p. 42). Esse movimento de controle cria espaços na mesma medida em que exclui
outros, segmenta o território em partes estratégicas e supérfluas e pode desapropriar
sujeitos da relação identitária que mantém com o solo, a exemplo de remoções e
desapropriações de lares nos processos de reestruturação urbana. A inversão de posições
que mostra a construção da realidade espacial através da representação, quando
articulada pelo Estado neste grande processo de unidade nacionalista indiferente à
diversidade cultural que os espaços abrigam, pode assumir um caráter de extrema
perversidade, principalmente, por não reconhecer, dentro das características do
território, marcas que sujeitos ajudaram a construir e com as quais se identificam.
Quando se observa no contexto argentino, a forte conexão estabelecida entre
moradores de um determinado bairro e a influência de um clube, não se considera
apenas a presença de uma torcida concentrada, majoritariamente, num dado espaço. Não
seria apenas dizer: “estamos em Boedo, área característica do Club Atlético San
Lorenzo”. Não se trata somente de identificar a torcida através do território. Uma área já
demarcada que contempla inúmeros torcedores do mesmo time, uma área determinada
pelo Estado como bairro que tem suas fronteiras anteriormente prescritas, um lugar no
qual estes torcedores foram se reunindo. Pensar a formação territorial do bairro na
Argentina pode se dar na mesma medida em que se fundam os times de futebol. Um
time se estabelece num bairro específico, constrói sua história, um nível de
pertencimento entre sujeitos, ganha títulos, se enraíza cada vez mais àquele lugar até
chegar ao ponto em que a camisa atua como componente de construção do território. A
referência territorial passa a atuar juntamente com a referência do clube. O território é
81
modelado a partir do imaginário compartilhado pelos indivíduos que ali moram, atuam
socialmente e partilham a mesma filiação a um clube. O que se observa é um mapa
formado pelas cores de times de futebol, uma cartografia imaginada:
existe otra historia, más sencilla, menos heroica, que tiene que ver con
los hechos de todos los días, con las ilusiones y esperanzas de cambiar
algo para mejor. […] Eso fueron los cientos de clubes de fútbol que
nacieron a finales del siglo XIX, a principios del siglo XX o inclusive
más cerca de nuestro tiempo. Eso fueron las miles de manos que se
levantaron para imaginar nombres y apodos, para construir canchas y
generar amistades y enemigos para siempre. […] ¿Qué sería de
Avellaneda sin Racing e Independiente? ¿Y de La Boca sin su club
emblemático? ¿Parque Patricios sin Huracán o Boedo sin San Lorenzo?
¿Rosario sin Central ni Newell's? Seguro, pero seguro, que tendrían
menos color, menos alegría, menos magia. (FABBRI, 2006, p. 12)
As aparentes características da associação entre território e clube se salientam
pelos torcedores que ocupam o espaço, assim como pelo espaço que carrega traços
marcantes das torcidas, gerando raízes formadas a partir do afeto, da paixão e da história
do clube ligado ao bairro. Com a globalização, essa relação tende a perder parte da sua
força, embora se mantenha ainda muito imbricada no cenário argentino. Dessa maneira,
o mapeamento do território e as práticas sociais de sujeitos que pertencem a essas
localidades se agrupam para dar forma a comunidades afetivas.
3.3. Torcedores em deslocamento: pertencimento, melancolia e performance
No ano 2000, Eduardo Sacheri, em sua primeira edição de contos de futebol,
publica “Esperándolo a Tito”. O conto mostra, de maneira geral, as relações de afeto
entre memória, amizade e território, ao narrar a história de uma partida disputada por
um grupo de amigos que aguarda com todas as esperanças a volta de um dos integrantes
que foi jogar profissionalmente na Europa.
A narração, mediada em primeira pessoa por Carlos, um dos integrantes do
grupo em foco, apresenta os momentos anteriores ao início da partida entre dois times
amadores que guardam o hábito de disputar peladas desde a infância. Torna-se visível,
já no título e nas primeiras linhas, a angústia da espera por Tito, jogador de futebol
profissional contratado ainda muito jovem por um clube europeu: “yo lo miré a José,
que estaba subido al techo del camión de Gonzalito. Pobre, tenía la desilusión pintada
en el rostro, mientras en puntas de pie trataba de ver más allá del portón y de la ruta.
82
Pero nada: solamente el camino de tierra, y al fondo, el ruido de los camiones”
(SACHERI, 2000, p. 7, grifo nosso). O sentimento de apreensão não é em vão. Desde a
despedida de Tito, considerado o melhor jogador do grupo, não conquistaram uma
vitória sequer: “no quiero que este año vuelvan a humillarnos como los últimos nueve
años” (SACHERI, 2000, p. 7). “La rabia y la impotencia” são grandes entre os amigos
que, durante a espera, escutam todo tipo de provocação do time adversário. A tribo aqui
representada pelo grupo de Carlos encontra-se fragilizada pela ausência de um laço que
os une: Tito, que os torna completos, praticamente invencíveis. O próprio narrador irá
ressaltar, em dado momento, que a aceitação do desafio ocorreu depois de muitas
negociações, pois havia uma descontinuidade em relação aos elementos que davam o
sentido de união a estes sujeitos: “que profesionales no sirven, que solamente con los
que viven en el barrio. Según vos, ni yo [Carlos] que me mudé al Centro podría haber
jugado” (SACHERI, 2000, p. 8). Neste trecho, fica clara a importância do território nas
relações de pertencimento desta micronação. A memória afetiva dos amigos do bairro
ao mesmo tempo em que relativiza o deslocamento de Carlos e de Tito, permite que os
laços sejam refeitos a partir do contato face-a-face promovido pelo desafio que estão
prestes a enfrentar juntos. Até então, a esperança de que Tito volte é mesclada com uma
forte dose de ceticismo frente à longa viagem da Europa para a Argentina: “en serio
pensaste que nos íbamos a tragar que el punto ése iba a venirse desde Europa para jugar
al desafio?” (SACHERI, 2000, p. 8), diz Bebé, um dos amigos, a Carlos. Trata-se aqui da
interseção entre o poder simbólico das relações entre os amigos, dado pela memória dos
momentos compartilhados, dos gostos em comum, e também da necessidade material a
que está atrelada a construção do imaginário do grupo pelo território. Há uma
demarcação clara, a partir dos trechos já referidos, do lugar dos personagens no que diz
respeito às dinâmicas sócio-espaciais nas quais se inserem. Aprofundando a análise do
deslocamento que envolve o personagem de Tito, lidamos com duas questões
importantes: territorialização e desterritorialização.
No que tange à questão do Estado-Nação, Rogério Haesbaert irá definir muito
bem o papel estatal na territorialização dos sujeitos que vivem num mesmo solo
nacional: “O Estado nação surge para promover tanto uma territorialidade, no sentido de
controle do acesso, quanto no sentido de classificar e mesmo nomear as pessoas
conforme seu lugar de nascimento” (2014, p. 89).
Deleuze e Guatarri, com os quais Haesbaert dialoga, já sinalizam outra
característica predominante na ação do Estado direcionada ao espaço: “longe de ver no
83
Estado o princípio de uma territorialização que inscreve as pessoas segundo sua
residência, devemos ver no princípio de residência o efeito de um movimento de
desterritorialização que divide a terra como um objeto e submete os homens à nova
inscrição imperial, ao novo corpo pleno, ao novo socius” (1976, p. 247). Tomando
como princípio que não há desterritorialização, sem que haja posteriormente um
movimento de reterritorialização (HAESBAERT, 2014), as comunidades de sujeitos,
ainda que sobre a pressão e o controle do Estado, ao serem redefinidas e realocadas
espacialmente, passariam por uma readaptação ao novo solo, onde seriam construídas
novas relações de pertencimento com o espaço.
Dessa forma, estabelecendo ambos os processos, territorialização e
desterritorialização, como movimentos característicos ao Estado, pode-se compreender
que o território se funda de acordo com as açõese dos poderes simbólicos associados à
divisão espacial. A forte relação que sujeitos estabelecem com o espaço, ao se
reterritorializarem, promove uma identificação localizada na própria comunidade. No
conto, a angústia que acomete cada um dos integrantes do grupo que espera por Tito,
aquele que completa o grupo e pode fazer a diferença na partida, reflete a grande carga
de importância associada ao comprometimento com a tribo. O que importa é que ele
cumpra aquilo que prometeu a Carlos quando disse que apareceria para quebrar o jejum
de nove anos sem vitórias. A promessa feita à tribo é fundamental e o rompimento do
acordado pode acarretar na ruptura completa do vínculo estabelecido com aquela
microssociedade estruturada em torno do futebol: “esa noche decidí que, si después me
llamaba para decirme que el partido de allá era demasiado importante y que por eso no
había podido cumplir, yo le iba a decir que no se hiciera problema. Pero lo tenía
decidido: chau Tito, moríte em paz” (SACHERI, 2000, p. 10, grifo nosso), diz Carlos ao
refletir sobre uma partida na qual Tito deveria jogar pelo clube que representa, o que
impediria de realizar a viagem a Buenos Aires para jogar com os amigos do bairro onde
cresceu. Tendo sido apresentada a problemática que envolve territorialização e
desterritorialização, tratemos agora especificamente da situação do personagem Tito
como elemento mediador através do qual a globalização afeta a pequena comunidade de
amigos.
Em decorrência das dinâmicas pertinentes ao avanço das linhas do mercado
internacional, o esporte (no caso, o futebol em particular) adquire uma participação
fundamental nos movimentos orientados pelos investimentos transnacionais. William
Mendoza Gil irá expor que “sin duda, el deporte profesional se ha convertido en la
84
nueva economía, en el modelo perfecto de globalización, se trata de la implantación de
un único patrón deportivo impuesto, cuyo basamento fundamental, objetivo y
denominador común es la rentabilidad” (2016, p. 93). A globalização, ao fomentar a
projeção de novas subjetividades e formas de compreensão de mundo, também
reproduz, pelo viés econômico, uma fragmentação dos investimentos e do mercado que
desvincula o Estado-nação de seu papel interventor. Além disso, David Harvey sinaliza:
Desde mediados de la década de 1980 la política urbana neoliberal (aplicada,
por ejemplo, en toda la Unión Europea) concluyó que la redistribución de la
riqueza a las barriadas, ciudades y regiones menos aventajadas era inútil, y que
los recursos debían canalizarse por el contrario hacia los polos de crecimiento
«empresariales» más dinámicos. Una versión espacial del «goteo» se encargaría
de resolver, en el proverbial largo plazo (que nunca llega) esas latosas
desigualdades regionales, espaciales y urbanas. (HARVEY, 2013, p. 54)
O espaço do bairro no conto é apresentado sob a forma de um lugar precarizado,
marcado pela saída de alguns e permanência de outros. Enquanto a saída de Carlos e
Tito se dá num movimento de ascensão da margem para o centro, a situação dos outros,
podemos dizer, se mantém estagnadas, distantes dos processos mais dinâmicos da
globalização. Os fluxos de capital globalizado, decorrentes da abertura de mercado e do
rompimento das fronteiras mercantis, atuam num caráter desterritorializador, econômica
ou culturalmente falando: “a desterritorialização seria da própria „natureza e essência‟
da acumulação do capital, sem ligação com uma „pátria‟” (HAESBAERT, 2014, p.
150). A desterritorialização do capital, como se constata nas inúmeras negociações entre
clubes e jogadores, indica ao mesmo tempo um sujeito deslocado de seu lugar de
origem, a exemplo de Lionel Messi, Carlitos Tevez e Gonzalo Higuaín. Eduardo
Sacheri possui, em um de seus artigos para a revista El Gráfico, uma passagem que
muito ajuda a exemplificar este aspecto:
nuestros jugadores se fueron. Masivamente, se fueron. Cada vez más chicos, se
fueron. Y generaron un extrañísimo fenómeno, que a los viejos nos asombra,
casi diría que nos confunde. Emigraron masivamente y se juntaron con otro
montón de brasileños, nigerianos, camerunenses, colombianos… Mixturados
con los europeos, que también empezaron a mezclarse, hicieron nacer esta
especie de selecciones multinacionales en las que se han convertido algunos
clubes españoles, italianos, ingleses, alemanes, franceses (2014, s. p.)
85
O ponto aqui não é estabelecer um juízo de valor sobre os interesses de
jogadores que viajam para o exterior na busca de maiores salários, reconhecimento
internacional e grandes títulos. O intuito é analisar como as relações estabelecidas a
partir da globalização provocam o fenômeno que Haesbaert chamará de
“multiterritorialidade” (2014). A situação do personagem de Tito e dos incontáveis
jogadores que deixam a América Latina para jogar na Europa ou em outras partes do
mundo implica um processo de reterritorialização do sujeito que vive em terras
estrangeiras. Ainda que o deslocamento se dê de maneira necessária, partindo do
princípio que o sujeito estabelece vínculos identitários e de significação com o espaço, o
personagem estrutura suas bases, ao viver no exterior, na mesma medida em que grupos
“constroem seus (multi)territórios integrando, de alguma forma, num mesmo conjunto,
sua experiência cultural, econômica e política em relação ao espaço” (HAESBAERT,
2014, p. 341).
No entanto, mesmo do outro lado do oceano Atlântico, Tito se mantém fiel aos
valores do grupo com o qual partilhou diversas experiências na infância, assegurando
aos seus integrantes que regressaria para jogar essa partida que tem como objetivo a
recomposição grupal para interromper uma sequência de derrotas. Para a tribo, o valor
estabelecido através do companheirismo gera um sentido de pertencimento que não se
relaciona com as obrigações contratuais, referentes a um clube internacional.
Como os jogadores vendidos para clubes europeus ainda meninos, como os
casos referidos por Sacheri, Tito vai embora muito cedo e deixa a comunidade de
amigos: “cuando le hicieron el primer contrato profesional, a los 18, y lo acostaron con
los premios, lo acompañé yo a ver a un abogado de Agremiados y ya no lo madrugaron
más, y cuando lo vendieron afuera yo todavía no estaba recibido, pero me banqué a pie
firme la pelea con los gallegos que se lo vinieron a llevar, y siempre sin pedirle un
mango” (SACHERI, 2000, p. 11, grifo nosso). Em oposição ao cenário global, marcado
pelas transações e lógicas de mercado, na microlocalidade do campinho, as relações da
tribo representada no conto aparecem marcadas pelo afeto e pela amizade, como se pode
constatar através de diferentes momentos do relato. Os laços correspondem a valores
que não envolvem transações econômicas ou qualquer benefício material:
y siempre sin pedirle un mango. […] Nunca lo hicimos por nada, nos bastó el
orgullo de saberlo del barrio, de saberlo amigo, de ver de vez en cuando un gol
suyo, de encontrarnos para las fiestas. Lo hicimos por ser amigos, y cuando él,
medio emocionado, nos decía «muchachos, como cuernos se los puedo pagar»,
86
nosotros que no, que dejá de hinchar, que para qué somos amigos, y el único
que se animaba a pedirle algo era Josesito, que lo miraba serio y le decía «mirá,
Tito, vos sabes que sos mi hermano, pero jamás de los jamases se te ocurra
jugar en San Lorenzo, por más guita que te pongan no vayas [...]. (SACHERI,
2000, p. 11, grifo nosso)
Ainda que o relato se estruture a partir do processo global no qual Tito se insere,
os traços de identificação do grupo de amigos se mantêm porque foram construídos a
partir de códigos da infância, enraizados através do território e da memória
compartilhada. O que vale destacar é exatamente o poder vinculado pelo afeto, pelo
sentido de estar-no-mundo coletivamente com toda a tribo reunida.
Ao passo em que a angústia dos personagens aumenta, a esperança se converte
aos poucos em decepção. Impossibilitados de esperar ainda mais pela chegada do
companheiro, com o início da partida já atrasado, decidem que é hora de dar o ponta-pé
inicial, sabendo que dali não sairia nada muito positivo. Enquanto Bebé cumprimentava
o árbitro: “siempre había tenido la teoría de que olfear a los jueces le permitía luego
hacerse perdonar un par de infracciones” (SACHERI, 2000, p. 12), eis que, no mais
otimista dos finais, Tito surge à sombra do caminhão de Gonzalito parado à entrada do
campo:
Pero justo ahí, justo en ese momento, [...] me di cuenta de que pasaba algo. [...]
Aunque lo tenía [a Ricardo, goleiro do time adversário] lejos, lo vi pálido, con
la boca entreabierta, y empecé a sentir una especie de tumulto en los intestinos
[...] que no fuese verdad que el Bebé estuviera dándose vuelta hacia Ricardo,
como pidiendo ayuda; que no fuera cierto que el otro siguiera con la vista
clavada en un punto todavía lejano, todavía a la altura del portón de la ruta,
todavía adivinando sin ver del todo a ese tipo lanzado a la carrera con un bolsito
sobre el hombro gritando aguanten, aguanten que ya llego, aguanten que ya
vine, y como en un sueño el Tanito gritando de la alegría, y llamándolo a
Josesito, que vamos que acá llegó, carajo, que quién dijo que no venía […] y yo
[…] aún indeciso entre cruzarle la cara de un bife por los nervios y abrazarlo
contento, y Tito por fin saliendo del tumulto de los abrazos postergados […]”.
(SACHERI, 2000, p. 12)
Depois de uma série de desculpas e afagos, Tito, Carlos e os outros que
compõem a comunidade seguem para uma revanche que reivindica uma vitória depois
de nove anos. O êxtase é tão grande entre os amigos que se perdem na atemporalidade
da memória compartilhada, esquecendo o “aperto” pelo qual passaram há pouco tempo:
“el cosmos desde el caos, los amigos cumpliendo, cerrando círculos abiertos en la
87
eternidad, cuando uno tiene catorze y dice „tá bien, te acompañamos, así no te dá
miedo”. Nos moldes do que dirá o historiador Ernest Renan em sua conferência “Que é
uma nação?” (“Qu'est-ce qu'une nation?”), retomada por Benedict Anderson ao escrever
Comunidades imaginadas (2008): “Ora, a essência de uma nação está em que todos os
indivíduos tenham muito em comum, e também que todos tenham esquecido muitas
coisas.” [“Maintenant, l'essence d'une nation est que tous les individus ont beaucoup de
choses en commun, et aussi que tous ont oublié beaucoup de choses.”] (RENAN, 1997,
p. 162).
No livro Lo raro empezó después, Eduardo Sacheri publica seu conto “El golpe
del Hormiga”. Escrito nas bases de uma narrativa lacunar, o conto não entrega seu
conteúdo até que seja dado o apito final da última linha. No texto, o autor faz duas
homenagens: uma ao Club Atlético San Lorenzo de Almagro e outra a Osvaldo Soriano,
um dos grandes escritores argentinos que produziram com maestria relatos de futebol,
além de uma das maiores referências da torcida azulgrana.9 O relato explora os
diferentes níveis de pertencimento a que está ligado um grupo de amigos, torcedores do
San Lorenzo, e ressalta o poder da territorialidade associada ao bairro e ao histórico
estádio desta equipe de futebol.
Através de uma narrativa que expõe a loucura a que sujeitos torcedores podem
cometer em nome do time do coração, um grupo de amigos planeja um golpe que tem
por objetivo trazer de volta a glória dos tempos passados ao clube. “Veinte años, carajo!
Veinte años! Qué me decís a eso? Querés que me quede así, sin hacer nada?”
(SACHERI, 2008, p. 63), são as palavras de Hormiga, personagem principal, que abrem
o conto. A princípio, o leitor desavisado não se dá conta do que motiva a reclamação de
Hormiga logo em suas primeiras palavras. “Veinte años” é o período (1974-1994) que o
San Lorenzo passou sem ganhar um título sequer em campeonatos nacionais ou
internacionais. A informação simplória pode não significar absolutamente nada para
aqueles que não compartilham a paixão pelo clube; no entanto, para os torcedores, essa
espera tem um valor muito mais importante do que se imagina e, como o personagem
9 Azul e vermelho são as cores da camiseta do San Lorenzo, equipe também conhecida popularmente
como El Ciclón. Com esse binômio, “Azul Grana”, um torcedor do Ciclón batizou a sua filha,
demonstrando que o amor pelo clube não tem limites: “Que la pasión por el fútbol no entiende de
racionalidad ni de límites no es algo nuevo por estas tierras. Pero lo que hizo Rubén Darío Álvarez puede
ver considerado una verdadera prueba de amor hacia el club de sus amores. El hombre, fanático de San
Lorenzo de Almagro, tuvo una hija y no se le ocurrió mejor idea que homenajear su pasión bautizándola
como Azul Grana, en homenaje a los colores del Ciclón. Así lo publicó la cuenta oficial del club en
Twitter, que subió una imagen del carnet de la beba, con el nº de socia 167336-0.‟ Diario Uno,
25/02/2015.
88
demonstra, não é possível aceitar passivamente essa agonia, que por trás esconde parte
da história político-social argentina.
Envolto por um clima sombrio, numa “reunión de desquiciados”, o grupo escuta
a proposta de Hormiga que tem como base invadir um estabelecimento privado para
roubar algo de valor: “Toda la situación es ridícula. Y ellos son ocho boludos. Eso es lo
que son. Los ocho reunidos en esa habitación oscura, con la lámpara sobre la mesa
como si fuera un garito o un aguantadero de película mala, y ellos una banda de chorros
planeando al asalto del siglo” (SACHERI, 2008, p. 64, grifo nosso), diz o narrador a
partir das impressões de Bogado, personagem que mais se opõe ao “proyecto de locos”
do Hormiga.
Num primeiro momento, o foco recai sobre o embate entre Hormiga e Bogado,
enquanto os outros seis amigos assistem de forma passiva sem se dispor a investir
efetivamente no plano. A argumentação do Hormiga, estruturada a partir dos sacrifícios
que ele próprio vem fazendo para crias as condições de execução do plano, reforça a
ideia de dedicação motivada pela paixão clubista, uma paixão que não o envolve
isoladamente, mas que envolve a todos os integrantes do grupo:
primero: lo vengo estudiando desde hace dos años. Dos años. […]
Segundo: conseguí ese laburo de vigilancia nada más que para eso […].
Tercero: me parlé cincuenta veces al supervisor para que me mandase a
controlar el sector ese, porque si me mandaban al depósito o al
estacionamiento me cagaban, y se iba todo el asunto a la mierda.
(SACHERI, 2008, p. 64)
Bogado, ainda consciente de que nada daquilo poderia dar certo, explicita mais
adiante: “no es el único trabajo que el Hormiga puede hacer, ni el mejor pago. […]
Hormiga, además de todo, es derecho como una estaca. Pero contestó que no, que no
podía dejar „aquello‟ sin terminar” (SACHERI, 2008, p. 67). O nível de loucura
associado à paixão pode mover indivíduos a realizarem as coisas mais incomuns, pode
motivar um indivíduo “derecho como una estaca” a colocar em prática um plano que
pode, muito bem, levar todos eles à prisão. No entanto, tampouco Bogado, o mais
racional e o mais bem sucedido de todo o grupo, podia “dejar „aquello‟ sin terminar” em
nome do sentido de pertencimento à nação de torcedores. Conforme assinala Juan
Villoro:
89
Una vez elegido el club que determina el pulso de la sangre, no hay
camino de regreso. Aunque se mencionan ejemplos en los que el
raciocinio ha intervenido para mudar de entusiasmos, el fanático de raza
no recusa a los suyos, así reciban golizas de escándalo. Es posible que
el fútbol represente la última frontera legítima de la intransigencia
emocional […]. (2014, p. 18)
Villoro descreve traços muito marcantes na composição de uma torcida,
formulados a partir do sangue e da emoção (como veremos mais à frente, a terra
também fará parte dessa articulação). A tribo anda paralelamente à relação imaginada
que tem em relação à sociedade. Suas práticas refletem códigos ético-morais que
destoam do âmbito macrossocial e se envolvem cada vez mais profundamente no
sentido que determinado grupo funda. A esfera de pertencimento suprime qualquer tipo
de respeito às normas legais. Hormiga não se preocupa em ser preso por invadir e
depredar um patrimônio privado. A reconfiguração desses valores se dá através do
âmbito localizado: no círculo de amigos e na torcida, eles ganham novo sentido, sendo
muito mais valioso para os integrantes desse grupo qualquer coisa que tenha a ver com a
história e a memória do San Lorenzo. É uma mística que tem sentido para a nação
torcedora. O narrador expressa o modo como esse afeto se dá entre os personagens,
ressaltando mais uma vez o ponto de vista de Bogado:
Bancarse un laburo mal pago, con jefes hijos de puta, con unos francos
rotativos de porquería, para darle de comer a la familia, Bogado lo hace
sin dudar un instante y lo mismo cualquiera de los que están reunidos
alrededor de la mesa. Pero acá no se trata de alimentar a la familia, sino
de algo distinto. El Hormiga hace eso por un amor diferente, que la
mayoría seguro que no entiende. Pero Bogado sí, y los otros también, la
puta madre. Y por eso Bogado intuye que al Hormiga no hay con qué
darle, y mientras intenta pincharle el globo se siente un sicario indigno
y un traidor. (SACHERI, 2008, p. 68)
A polaridade entre Hormiga e Bogado reproduz a dicotomia “loucura x razão”.
Bogado, ao tentar traduzir em termos compreensíveis as ações do Hormiga, faz um
esforço vão de impor a razão em um terreno controlado pela paixão, elemento central
que forma a comunidade imaginada em questão, motivo pelo qual se sente um traidor.
Trair o afeto compartilhado significa trair a micronação a que pertence, quer dizer não
só comprometer plano, mas fragilizar o sentimento que mantém a unidade do grupo. A
impropriedade da dimensão racional a qual Villoro faz menção pode ser exemplificada
90
através dessa passagem. A escolha de um clube não se explica pelo potencial de
angariar vitórias, por ter os melhores jogadores, por ter maior poder econômico, por ter
a maior torcida. Não se explica por qualquer fim objetivo e racional que anteceda ao
vínculo passional. Algo semelhante propõe Maffesoli (1998) quando pensa as relações
da tribo que não se dão no âmbito teleológico. A paixão partilhada independe de
qualquer justificativa. Quando Bogado tenta impor-se através da lógica ao plano de
loucos do Hormiga, compromete-se não o indivíduo, mas o coletivo da torcida que está
presente na fala e no projeto do Hormiga.
Nesse sentido, embora haja uma grande dificuldade de convencer os integrantes
do grupo a realizarem o golpe, em um dado momento todos sucumbem ao dever que
têm perante a comunidade: “veinte horas después están todos, excepto el Hormiga, en
un baño de hombres, embutidos en dos retretes contiguos” (SACHERI, 2008, p. 70).
Agora, num segundo momento do conto, todos, já persuadidos, se encontram no interior
do estabelecimento, à espera do sinal do Hormiga, para dar sequência ao plano.
A partir de agora, faz-se necessário estabelecermos algumas referências
históricas a partir das quais o conto se estrutura. Retomando o ponto de partida da
narrativa, os vinte anos sem títulos do San Lorenzo tem como pano de fundo a cena
ditatorial argentina. Os anos de glória que antecederam o último título nacional da
primeira divisão na temporada de 1973-1974 foram seguidos por uma má administração
da presidência do clube. Nos anos de 1974 a 1979, endividamentos e uma profunda
crise na diretoria fizeram com que o San Lorenzo fosse obrigado a vender seus terrenos
para o governo militar. A grande perda histórica foi o estádio emblemático, localizado
em Boedo, conhecido como “El Viejo Gasómetro”, que operava a ligação entre o
território e a identidade da torcida: “el Brigadier Cacciatore quiso aprovecharse de la
situación de debilidad de San Lorenzo. Los terrenos del Gasómetro eran muy golosos y
comenzó una auténtica maniobra de expropiación sin precedentes, ante la que nada
pudieron hacer los hinchas cuervos”.10
Em 1979, já há muito consolidado o golpe de
estado de 1976, o Viejo Gasómetro sediou seu último jogo: Boca Juniors e San
Lorenzo, terminando em um empate de dois a dois. Depois disso, dois anos sem uso do
estádio marcaram ainda mais a torcida dos “cuervos” que carecia de um solo. Com a
promessa de se tornar um grande centro comercial, posteriormente, em 1981, o estádio
foi vendido definitivamente à rede francesa Carrefour, para a construção de um
10
Disponível em: http://www.somoscuervos.com.ar/wiki/el_viejo_gas%C3%B3metro,_el_
canalla_cacciatore_y_carrefour. Acesso em: 15/01/2018.
91
hipermercado, um pequeno exemplo que reflete os interesses do regime em promover a
abertura de mercado na Argentina e o ingresso na globalização. Durante um período de
vinte anos, o San Lorenzo dividiu canchas com outros times, como Huracán e Velez
Sarsfield, não ganhou um título sequer e ainda foi rebaixado para a segunda divisão do
campeonato nacional, retornando à primeira em 1982. A expropriação do estádio pelo
governo ditatorial proporcionou um sentimento de grande mal-estar entre os torcedores,
jogadores e, consequentemente, moradores do bairro de Boedo e das imediações. A
nação azulgrana, desde esse fato, é marcada pelo desejo de volta a Boedo, a seu antigo
lar, imbuída de um tom muito saudosista e melancólico. A identificação com o território
se perdeu num processo desterritorializador operado pelo Estado, nos moldes de
Deleuze e Guatarri, já mencionados anteriormente.
O conto de Sacheri, ambientado no ano de 1994, cria uma alegoria com o
objetivo de revisar a história não só de um clube, mas também a história da Argentina,
seus caminhos e descaminhos a partir da ditadura de 1976. O golpe articulado por
Hormiga representa uma reação ao amargor da derrota histórica sofrida pelo clube, uma
tentativa de recuperação de algo precioso que ficou encoberto por camadas de história.
O grupo de amigos não invade um lugar qualquer. O alvo do bando é o hipermercado
Carrefour, construído sobre o Viejo Gasómetro, outrora reconhecido como o “Wembley
Porteño”. A característica alegórica da construção narrativa de Sacheri evidencia a luta
de uma torcida representada por um grupo de amigos que travam um embate simbólico
com a história. A materialidade da inscrição narrativa se dá na mesma medida em que se
encara a representação do conto como esse resíduo histórico do mal-estar que se
arrastou durante vinte anos na memória de toda nação de torcedores.
Com o plano já em curso, dentro do hipermercado, a narração irá expor um traço
fundamental da relação de Bogado com o território. Ao seguirem para o local designado
por Hormiga, Bogado percebe onde se encontram e, nesse exato momento, entende a
grandiosidade da ação que estão prestes a concretizar:
Es entonces cuando reemprenden la marcha y Bogado ve unas cuantas
baldosas del piso frente a sí que, como si una llamarada súbita lo
hubiese incinerado en el fuego de la revelación, toma conciencia del
sitio en que se encuentra. No ha vuelto ahí en todos esos años, tan
grandes son el dolor y la nostalgia. Otros sí han vuelto. Se lo han
dicho. Pero él nunca fue capaz. No ha querido siquiera pasar por la
calle ni por el barrio. Y ahora está ahí. Ahí metido. (SACHERI, 2008,
p. 73, grifo nosso)
92
A revelação de Bogado se dá ao mesmo passo em que reconhece a entrada não
no Carrefour, mas no espaço mais importante para os cuervos, el Viejo Gasómetro. A
invasão do hipermercado pressupõe uma volta ao antigo lar, ao território que guarda
ainda todas as marcas do passado glorioso do Club Atlético San Lorenzo de Almagro.
Essa tensão reforça a sobreposição da imagem do hipermercado à do estádio. Aqui e nos
momentos que se seguem, Bogado não tem mais dúvida alguma sobre a legitimidade e
pertinência do plano. A representação alegórica, que permite a leitura do drama social
pelo qual passa esse grupo de amigos, demonstra o vínculo territorial associado à paixão
pelo clube. A experiência do personagem ao reconhecer o solo implica um mal-estar
que se apresenta no modo de narrar e na atuação expropriadora do Estado. Essa
dinâmica, na qual se insere Bogado, pode expressar o incômodo de diversos outros
torcedores. A mudança de domicílio para outro bairro, a tentativa de evitar o contato
com o território ao qual se vincula a micronação, agora afetado diretamente pela ação
do governo militar, como resíduos de outro tempo. O deslocamento do estádio de
Futebol da zona de Boedo para os arredores da favela (villa) 1-11-14, como resultado de
um movimento desterritorializador do Estado-Nação, pode indicar uma experiência que
muito se assemelha ao exílio. A angústia de torcedores que, muitas das vezes, podem
guardar a mesma nostalgia de Bogado (“No ha vuelto ahí en todos esos años, tan
grandes son el dolor y la nostalgia”) remetem aos processos de controle social e
reordenamento do espaço urbano agenciados pelas ditaduras na América Latina,
manifestados concretamente através da venda do Velho Gasômetro a uma rede de
supermercados global.
O relato de Eduardo Sacheri, marcado por uma melancolia profunda, permite
uma leitura através deste personagem que pode se estender até outros torcedores e pode
remeter a outro contexto de exílio: “Otros si han vuelto. Se lo han dicho. Pero él
[Bogado] nunca fue capaz. No ha querido siquiera pasar por la calle ni por el barrio”.
Enquanto para outros a dor se deu de forma diferente, em Bogado há uma melancolia e
uma resistência marcadas pelo distanciamento espacial que preserva, nostalgicamente, a
memória associada ao Velho Gasômetro, às lembranças afetivas relacionadas aos rituais
da torcida e ao grupo de amigos. Considerando que há uma inscrição territorial na qual
se insere o imaginário da micronação de torcedores, é possível ler, através da figura de
Bogado, os efeitos da ação de expropriação do estádio como uma dinâmica social que
promoveu a saída de torcedores do bairro, da mesma forma que inviabilizou o
93
permanência de milhares de argentinos no seu país, por não conseguirem lidar
diretamente com o fato de não terem mais o solo político-social com o qual se
identificassem e no qual se arraigasse sua existência cotidiana. Acabaram expandindo as
suas redes para outros lugares. A construção do segundo estádio marcará a história do
clube. O Novo Gasômetro será inaugurado em 1993, na área de Bajo Flores. Embora a
construção de um novo estádio, recomponha em parte a perda, a torcida jamais se
esquecerá do antigo espaço, alimentando por décadas o sonho de “volver a Boedo”. Em
frente ao Carrefour da Avenida La Plata um grande grafite diz “Ya hicimos dos
canchas. Vamos a hacer la tercera”. Do outro lado da rua, letras azuias e vermelhas
reivindicam: “Para Boedo lo que es de Boedo”. Em Dezembro de 2015, finalmente é
firmado com a rede Carrefour um acordo multimilionário que recupera a área, levando
os torcedores ao delírio. O Natal desse ano foi uma festa há muito adiada.
Em 1994, o San Lorenzo conquista o título nacional, depois de vinte anos. O
conto reconstrói a longa espera de toda a torcida através do grupo de amigos que
protagoniza a ação e planeja roubar do Carrefour algo que lhe foi tirado: “ahora sí,
muchachos. Ahora van a ver. Ahora se nos da. Es cuestión de sacar de acá y poner allá,
en el Bajo. Se acabó la malaria, van a ver, se los juro” (SACHERI, 2008, p. 75), diz
Hormiga exaltando a conquista que se aproxima. “Y Bogado siente, mientras golpea
frenético el cemento, que es verdad, que es cierto, que esta vez se corta el maleficio, y
que son ellos los ángeles custodios del milagro” (SACHERI, 2008, p. 75). Abrindo um
buraco no piso do supermercado e quebrando o cimento que se colocava entre eles e o
objetivo do plano, Hormiga aponta a lanterna para o buraco:
Una masa cenicienta y blanda yace bajo los restos de los escombros. No
pueden controlarse. Se lanzan al unísono a escarbar con las manos
desnudas, unos sobre otros. Dan las cuatro, pero no lo notan. Rubén, de
repente, pide casi a gritos que se iluminen la mano. Ocho pares de ojos
se clavan en su puño. Tiene la piel arañada, las uñas rotas, el anillo de
casamiento opaco y cruzado de raspones. Y bien aferrado, como si fuera
un tesoro de cuento, un puñado de tierra negra que asoma entre sus
dedos crispados. Bogado trata de contener las lágrimas, pero cuando
escucha los sollozos de Carucha, y cuando ve que Sergio se hinca de
rodillas y se tapa la cara para que nadie lo vea, se lanza a moquear sin
vergüenza. (SACHERI, 2008, p. 75-76, grifo nosso)
Agrupados, com os olhos voltados para a mão de Rubén, observam o “tesoro de
cuento”, a terra do antigo estádio, o Velho Gasômetro. Essa terra seria passada de um
94
estádio a outro, num rito supersticioso, para que, no Novo Gasômetro, os tempos de
glória pudessem ser revividos. O plano do Hormiga, envolto por uma atmosfera de
suspense e organizado nos moldes do relato policial de “aguantadero de mala película”,
tem como fim a recuperação da “terra” que representa a territorialidade associada ao
Velho Gasômetro, ao time e à torcida do bairro de Boedo.
O processo de reterritorialização que aciona a identificação possível entre os
dois estádios e entre passado e presente é trabalhado na dependência com a raiz
territorial do clube em seu bairro de origem. Aí, nesse bairro de operários, no pátio de
uma igreja, incentivados por um padre, surge o San Lorenzo, que se deslocará pela
cidade juntamente com sua torcida. A emoção coletiva exemplifica a força do
imaginário compartilhado pelo grupo no momento em que os integrantes choram e
ratificam o poder do território na construção social de uma comunidade imaginada. Na
descrição de Rubén pelo narrador, as mãos e as unhas sujas, o anel de noivado com
riscos causados pela retirada do cimento remetem à negação de elementos constitutivos
de um padrão social que envolve higiene, polidez e o cuidado da relação matrimonial,
fatores que, muitas das vezes, se sobrepõem ao clube e à relação com os amigos. Aqui,
eles surgem em um segundo plano, dando visibilidade à importância dos valores e
códigos compartilhados pela tribo, ao objetivo fundamental do projeto que se relaciona
diretamente com os interesses coletivos da micronação em foco. Assim, uma vez
concluído o plano, os oito “desquiciados” batem em retirada:
En la cabina de control de cámaras, un guardia frunce el entrecejo. Otro
le pregunta qué le pasa. El guardia piensa antes de responder. Esos
monitores color son muy lindos, pero todavía no se acostumbra. Igual
contesta que no pasa nada. Teme que su compañero piense que está loco
si le dice que creyó ver, a la altura de la góndola de los fideos, pasar
corriendo a unos tipos vestidos con camiseta de San Lorenzo.
(SACHERI, p. 76, grifo nosso)
“Hinchada hay una sola”, do argentino Alejandro Parisi, publicado na antologia
de contos de futebol De puntín (2008), explora a questão da migração, da diásporas pós-
modernas e as novas dinâmicas identitárias provenientes deste cenário transnacional. No
campinho dentro de uma “antigua fábrica textil convertida en Escuela Industrial”,
emigrantes latino-americanos se reúnem para disputar peladas, “más por uma necesidad
terapéutica que futebolística” (PARISI, 2008, p. 153). Diante do rechaço social da vida
em Barcelona, estes sujeitos tomam o futebol como elemento de união, tornando
95
possível a criação de um grupo que emerge enquanto uma micronação de estrangeiros
em solo espanhol. Constituída, majoritariamente, por sulamericanos, esta comunidade
integra sujeitos das mais diversas nacionalidades: Argentina, Uruguai, Chile, México,
Equador, Venezuela. Dentre eles, há ainda a presença de um marroquino. Todos
vivenciam da mesma maneira uma situação de desenraizamento, sendo ligados,
portanto, pela dificuldade de serem reconhecidos como parte de uma sociedade que os
recebe e rechaça em um solo estrangeiro distante de suas pátrias. As profissões
exercidas por esses imigrantes são as mais diversas possíveis. Há atores, médicos,
operadores de telemarketing, garçons, estudantes de pós-graduação. O panorama
desterritorializado constituído por estes sujeitos encontra uma possibilidade de
reterritorialização a partir do encontro de diferenças no espaço do campinho onde jogam
futebol todas as semanas. Sentir-se parte de um lugar se associa diretamente à
readaptação territorial e à construção de novas raízes que, agora, não se referem à
padronização social subordinada ao Estado, mas às conexões entre subjetividades
deslocadas que procuram identificar-se, reconhecer-se num ponto comum e trans-local
nessa nova terra por meio da interação sócio-espacial: “de alguna manera, la falta de un
grupo fijo para jugar al fútbol era un espejo exacto de mi situación general de
emigrado” (PARISI, 2008, p. 154). Arjun Appadurai comenta esse fenômeno que, de
modo geral, pode ser observado em distintas partes da ideia pós-nacional:
A produção da localidade […], como uma dimensão da vida social, uma
estrutura de sentimentos e em sua expressão material de vivência da
“co-presença” [...], enfrenta dois desafios numa ordem pós-nacional.
Por um lado, desafia a ordem e a ordenação do Estado-Nação. Por
outro, o movimento humano no contexto de crise do Estado-Nação
reforça a emergência de translocalidades. (1997, p. 34, grifo do autor)
Os deslocamentos e as migrações assumem uma enorme importância para
pensarmos as reformulações do espaço e as reconfigurações identitárias. Pensando a
localidade no sentido proposto por Appadurai, faz-se necessário reconhecer que a
produção do local está vinculada de modo muito forte com as inscrições das
subjetividades que nele interagem. Um espaço, além de conter seus traços geográficos
particulares, é também marcado por registros sociais e de sociabilidade derivados dos
sujeitos que o ocupam. Na condição de estrangeiros, os personagens, ao encontrarem
96
dificuldades para se instalar socialmente entre os cidadãos de Barcelona, experienciam
ao mesmo tempo a não identificação territorial:
As políticas dos Estados-Nações, em particular com relação à população
considerada potencialmente subversiva, criam uma máquina em moto
contínuo, em que os refugiados de uma nação mudam-se para outra
criando ali novas instabilidades, que causam mais agitação social e
portanto maior êxodo [...]. Consequentemente, a necessidade de um
Estado-Nação de produzir “pessoas” [...] pode significar para seus
vizinhos agitação social e étnica, provocando ciclos infindáveis de
limpeza étnica, migração forçada, xenofobia, paranoia estatal e portanto
ainda mais limpeza étnica. (APPADURAI, 1997, p. 35)
Ao mesmo tempo que observamos uma diluição político-econômica do Estado-
Nação, a partir das narrativas pós-nacionais operadas por outros agentes, podemos ver
ainda, em contextos globais, que há uma reafirmação do papel do Estado como produtor
do relato identitário nacional no que diz respeito à produção de “pessoas” ou de
“cidadãos nacionais”, feitos sob medida para mostrar aos “invasores” a situação
desfavorável em que se encontram. A polaridade entre os sujeitos “nacionais” e os
estrangeiros se acirra nos cenários de migrações transnacionais, gerando, quase sempre,
problemas àqueles que buscam estabelecer-se em outra terra. O que fica marcado é a
promoção de agentes que impedem a chance de reterritorialização de emigrantes. No
conto, a possibilidade de criar vínculos ocorre com a interação coletiva entre
estrangeiros durante as peladas. A reconstituição identitária dos personagens através do
futebol se processa através de uma conexão imaginária e em rede de territórios distantes
que passam a contribuir para a formação de um novo território imaginado, o qual se
sobrepõe ao território real onde ios imigrantes constroem suas vidas. Nesse processo
reterritorializador, os sujeitos ressemantizam o espaço projetando novas maneiras de
pertencer ao território. Trata-se de fazer parte, enquanto uma micronação, de um
território que será marcado pela interculturalidade e pela negociação de diferentes
elementos culturais. Essa relação, mediada pelo imaginário de grupos culturais vários,
terá um papel de reestruturação identitária e na reconexão espacial de cada indivíduo
porque, em primeiro lugar, “representam e instituem o social” e, em segundo, atualizam
“em imagens aquilo que nossa sociedade experimenta em relação a outras” (GARCÍA
CANCLINI, 2007, p. 57). Nesse sentido, refletir sobre a translocalidade relacionada a
sujeitos deslocados ou em deslocamento aponta para a vastidão das diferenças culturais
97
que um mesmo solo pode conter, em tensão com o poder coesivo em torno da
mesmidade manifestado pelos relatos do Estado-Nação. A partir dessa ótica, voltando
ao conto, observa-se não só que os movimentos intersubjetivos referentes aos
personagens apresentam um potencial de redefinir aspectos que apontam para o pós-
nacional, como também que os relatos de futebol e os sentimentos relacionados às
nações de torcedores propiciam uma imbricação de processos de desterritorialização e
reterritorialização: “o futebol adquiriu novas dimensões que o convertem em um
fenômeno local e supranacional” (PIMENTEL, 2014, p. 41):
A medida que llegaban los demás, cada uno con la camiseta de su
equipo, comentamos los resultados del ColoColo chileno, de Boca,
River y Racing, de los Pumas de México, del Emelec, del Gremio de
Porto Alegre… Sin embargo todos teníamos algo del Barza: un par de
medias, un llavero, un gorro, miles de modelos distintos de la camiseta
azulgrana que levábamos para sentirnos parte de algo más cercano con
el F. C. Barcelona, un equipo ajeno, pero tan poderoso como para
comprar a los mejores jugadores de todos nuestros países y ponerlos en
el mismo campo de juego. (PARISI, 2008, p. 155-6)
Este trecho do conto “Hinchada hay una sola” apresenta elementos portadores de
uma forte carga simbólica supranacional e pós-nacoional, a qual pode ser vista na
imagen do time do Barcelona. O processo de identificação é orientado pela localidade
do bairro, onde se situa o campinho, no caso da integração coletivizada da micronação,
ou da cidade no que diz respeito à negociação entre características ligadas às raízes dos
personagens (camisetas dos clubes relacionados aos seus países de origem) e outras
associadas ao F. C. Barcelona (meias, gorros, camisas). O registro pós-nacional,
refletido na aproximação com o clube catalão, indica o valor simbólico que possibilita
uma certa mescla com os limites identitários associados à América Latina. Ao trocar
informações sobre os resultados e transferências, podemos fazer a observação de que o
acesso às narrativas vinculadas aos seus respectivos clubes latino-americanos chega por
diversos modos através dos meios de comunicação. Jornais, revistas, televisão, TV a
cabo, internet servirão para recuperar o contato com o universo de origem destes
sujeitos. No entanto, a lembrança dos elementos ligados ao passado não se dá de
maneira nostálgica.
Encontramos uma boa comparação com um contexto anterior através da litura de
um texto do chileno Antonio Skármeta. Ao tratar das trajetórias no exílio decorrente da
98
ditadura chilena, o escritor assinala que: “despojados do seu ambiente natural,
desprovidos de suas utopias, minuciosamente derrotados, os emigrantes latino-
americanos começaram uma militância em guetos de melancolia que muitas vezes os
impediu de assumir as paixões cotidianas dos países que lhes ofereciam refúgio” (1997,
p. 9). No ambiente das ditaduras da América Latina, a situação dos emigrantes
refugiados era marcada por um forte apego à nação, dada à resistência dos indivíduos a
se estabelecerem em terras estrangeiras e a verem sua permanência nos países
receptores como algo passageiro. A nostalgia e a melancolia, nesses casos, estão
diretamente associadas ao desejo de retorno ao país, ao reencontro com amigos e com a
vivência de experiências culturais enraizadas. No cenário de deslocamentos globais em
que se movem os personagens do conto, embora ainda haja uma forma de narrar
melancólica, já não é mais possível encontrar refúgio nos “guetos de melancolia” de que
fala Skármeta porque quase não existe perspectiva de regresso. Enquanto, num primeiro
momento, a experiência dos refugiados, descritos por Skármeta, se mantinha num
contexto de dura desterritorialização, alimentado-se o projeto de volta à pátria, no
segundo momento, os emigrantes do conto parecem ter a melancolia atrelada ao desejo
da precária reterritorialização. Trata-se aqui, principalmente, da chance de estabelecer
vínculo de identificação com um novo território. As inúmeras tentativas de interação
dos personagens com indivíduos locais de Barcelona refletem a falta de sentido de
pertencimento com o território, ainda associada às diferenças culturais: “había intentado
sumarme a varios grupos pero duré poco en todos lados: no soportaba jugar con gente
que paraba un contraataque porque alguien se caía al suelo (el fair play europeo no tenía
límites)” (PARISI, 2008, p. 154). Ainda assim, há o fator que se diferencia pelo desejo
de se manter e se identificar num solo estrangeiro (a exemplo dos níveis de
pertencimento atrelados ao clube do Barcelona) que, constantemente, é relembrado pelo
Estado catalão como inacessível a quem vem de fora. Nesse sentido, a promoção da
coletividade orientada pelo futebol oferece a possibilidade de uma nova nação, uma
micronação localizada e translocal que surge como um terceiro elemento entre o
binarismo nação x estrangeiros.
Na sequência do conto, Kavieres, o personagem equatoriano, convida a todos
para comparecerem ao estádio onde haverá um amistoso entre a seleção catalã e a
seleção do Equador. A princípio, ninguém aceita o convite. No dia do jogo, porém,
todos comparecem ao estádio Camp Nou para se reunir com o amigo. Formando parte
99
da torcida equatoriana, o grupo de estrangeiros assume um novo registro identitário que
reforça os elos firmados pelo sentimento comum de estrangeiros em Barcelona:
-Mira a los catalanes, están todos sentados.– dijo Kavieres señalando la
tribuna de enfrente.
- Son unos amargos- dijo Marcelo, y comenzó a cantar –: El que no
salta es un europeo, el que no salta es un europeo…
Y todos, hasta los que estábamos tramitando la nacionalidad española,
todos empezamos a saltar. (PARISI, 2008, p. 166)
A condição de não pertencimento ao território abre um arco identitário que
reflete a pluralidade das formas como esses sujeitos podem se manifestar. Sendo
interpelados pela torcida equatoriana, não só vestem a camisa, mas reforçam o caráter
negocial e transitório de identidades híbridas. Há um deslocamento do âmbito da
produção para o âmbito da experiência proporcionada pelo futebol e que através dele é
contada. As práticas relacionadas ao evento futebolístico – ir ao estádio para assistir a
uma partida entre dois clubes, torcer na arquibancada por um time e configurar-se junto
à grande massa de torcedores como o décimo segundo jogador que compõe o elenco, a
exemplo da torcida do Boca Juniors intitulada “La 12”, cantar hinos e canções que
demonstram a paixão e o conjunto de valores formadores do imaginário de sujeitos
apaixonados por seus respectivos clubes – ganham um destaque que sugere um olhar
sobre o futebol, pelo espetáculo que ele representa, a partir da performance: “las
performances operan como actos vitales de transferencia, transmitiendo el saber social,
la memoria y el sentido de identidad a partir de acciones reiteradas” (TAYLOR, 2015,
p. 22).
Assim, vale ressaltar que a performance, como apresentada no conto de Parisi,
promove uma abertura de sentido, tirando o espectador de seu caráter passivo: “espect-
actors”11
, como propõe Diana Taylor ao utilizar o termo de Augusto Boal: “de todas
11
Augusto Boal, durante as discussões sobre o teatro do oprimido, procura rever a participação de
espectadores em meio às dramatizações teatrais. O envolvimento daqueles que assistiam a uma
encenação, para ele, era tão importante quanto a própria atividade dos atores da representação. Assim, a
reformulação do termo espectador, retirado da sua passividade como aquele que simplesmente observa,
objetiva inscrever a qualidade de agente no público, tornando-se parte fundamental na construção da
cena: “Espectador, que palavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem e é necessário re-
humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de ação em toda sua plenitude. Ele deve ser também o sujeito,
um ator, em igualdade de condições com os atores, que devam por sua vez ser também espectadores.
Todas essas experiências de teatro popular perseguem o mesmo objetivo: a libertação do espectador,
sobre quem o teatro se habituou a impor visões acabadas do mundo. E considerando que quem faz teatro,
100
formas, tanto los actores (sociales) como los espectadores siguen las reglas implícitas
del evento” (2015, p. 18). O futebol como lugar de enunciação das narrativas reúne
todos aqueles que compõem sua esfera e lhes permite ter experiências que constroem
relações interpessoais, baseadas em códigos e na memória afetiva partilhada pelos
sujeitos. Então, podemos observar que, enquanto expressão cultural, o futebol assume
uma função que se materializa na mediação assumida pelas subjetividades ligadas a ele,
espectadores ativos que não se encerram no ato da performance, carregando os valores e
traços pertencentes àquele meio que dialogam e podem gerar novas maneiras de
sociabilidade no contexto social.
Os valores e códigos partilhados entre os amigos sofrem um processo de
ritualização através do futebol e por ele encontram um meio de se identificarem para
além do Estado e de suas raízes. A transitoriedade das identidades aqui em jogo
expressa as tesões entre os níveis de pertencimentos de sujeitos transnacionais. Os
fluxos globais, que também abarcam as dinâmicas da cultura, permitem observar a
emergência de sujeitos de fronteira, já não determináveis pela rigidez identitária.
Nesse sentido, a experiência compartilhada pelo grupo de estrangeiros, no conto
“Hinchada hay una sola”, por um lado, explicita os laços estabelecidos por estrangeiros
em uma situação de dezenraizamento e o modo como sujeitos podem imaginar a
sociedade e se imaginar através do futebol; por outro, há uma radicalização da
experiência no contato direto com a torcida equatoriana, promovendo o fortalecimento
da coletividade e dos afetos que os tornam parte de uma mesma unidade de grupo,
forjada desde a partilha de uma identidade que gira em torno da porosa condição latino-
americana. Assim, o processo de reterritorialização se dá na medida em que o
imaginário desse grupo constitui uma prática social que vai influenciar o modo como os
personagens interagem e se reconhecem dentro de um mesmo território estrangeiro.
em geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes dominantes, é lógico que essas imagens
acabadas sejam as imagens da classe dominante. O espectador do teatro popular (o povo) não pode
continuar sendo vítima passiva dessas imagens. O mundo é dado como conhecido, perfeito ou a caminho
da perfeição, e todos os seus valores são impostos aos espectadores. Estes passivamente delegam poderes
aos personagens para que atuem e pensem em seu lugar. Ao fazê-lo, os espectadores se purificam de sua
falha trágica – isto é, de algo capaz de transformar a sociedade. Produz-se a catarse do ímpeto
revolucionário! A ação dramática substitui a ação real. O mundo se revela transformável e a
transformação começa no teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao personagem para que
pense em seu lugar, embora continue delegando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiência é
reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao nível da ação. Ação dramática esclarece ação
real. O espetáculo é uma preparação para a ação” (BOAL, 1973, p. 236-237)
101
CONCLUSÃO
Ricardo Piglia, em “Tres propuestas para el próximo milênio (y cinco
dificultades)” (2009), ao pensar sobre as características que constituem uma literatura
nacional argentina e os novos caminhos aos quais a escrita do século XXI se destina,
assinala uma tendência nas produções literárias que se direcionam à representação das
esferas populares. Tomando como ponto de partida o conto “Esa mujer” de Rodolfo
Walsh, publicado em 1963 e escolhido melhor conto argentino do século XX por uma
comissão de escritores e críticos, Piglia analisa as condições para o desenvolvimento de
uma literatura que se orienta pelos desafios de figurar o “outro”, as esferas da população
que se colocam na oposição do intelectual: “El intelectual, el letrado, no solamiente
siente el mundo bárbaro y popular como adverso y antagónico, sino también como un
destino, como un lugar de fuga, como un punto de llegada” (Piglia, 2009, p. 84).
Passando por cima de grandes escritores como Borges, Cortázar e Silvina
Ocampo, Walsh desperta a curiosidade de Piglia a respeito da eleição e instiga uma
reflexão que se projeta no futuro, o por-vir literário, uma literatura que não estranha o
popular, mas que vai a seu encontro. Textos que não se limitam a trabalhar essa
alteridade apenas a partir do estranhamento, como objeto visto desde um observador
intelectual, distanciado, analítico; mas que, na posição de sujeito, esse “outro” possa se
representar desde e no campo literário, fazendo emergir no meio intelectual novas
subjetividades de escritores e de personagens na história.
A literatura de futebol reúne essa série de tensões que se problematizam tanto na
formação dos autores quanto na construção representacional de sujeitos torcedores.
Nesse sentido, esta pesquisa, que se estende por dois anos, procurou estudar algumas
das particularidades sobre esse campo literário, que cada vez mais agrega produções de
grandes autorias e se enriquece de abordagens críticas na contemporaneidade.
A expansão dos horizontes temáticos da literatura possibilita vislumbrar uma
gama de outros olhares que atentam direta ou indiretamente para o social. Se há uma
ampliação dos registros populares e da cultura de massas permeando o círculo de
narrativas literárias, resta-nos desenvolver meios através dos quais essas obras possam
servir à crítica tanto para o reconhecimento da expressão de novas subjetividades,
quanto para a compreensão dos valores, costumes e modos de pensar inscritos na
sociedade e na cultura através dos indivíduos.
102
Com nossos interesses voltados para a discussão de problemáticas sociais que
repercutem nos espaços da teoria crítica – disputas entre o popular e o intelectual,
gênero e sexualidade, território e nação –, pensamos através dos contos de futebol
argentinos as maneiras pelas quais a sociedade pode se revelar na representação dos
cenários da bola, tão presentes na vida cotidiana, onde se concentram, ao mesmo tempo,
as esferas da reprodução social e a possibilidade da inovação que mira reestruturar as
práticas e o discurso.
O futebol como um assunto “banal”, assim como tantos outros na sociedade,
oferece uma gama de informações sobre os expedientes rotineiros de indivíduos, assim
como serve para a observação de estruturas de poder que regulam a construção de
mundo e dos imaginários coletivos. Compreender o popular através da literatura
significa lançar-se a ele ou, ao menos, abrir as vias e construir as condições necessárias
para sua expressão nos diferentes contextos de produção da escrita.
Para a crítica literária, é fundamental a importância das discussões
metodológicas que levam à leitura de tais textos. Tendo em vista que um método
comporta todos os vícios que dele mesmo nasceram – o que, em certa medida, não se
apresenta de forma negativa –, torna-se necessário rever as medidas pelas quais
transitaremos em meio a narrativas que tendem, numa escala crescente, à adoção de
temas corriqueiros e próximos aos indivíduos intelectuais e não-intelectuais. Esse
trabalho pensa uma dessas formas, ler um campo temático, marcado, em muito, pelo
irracionalismo, pela violência, pelo domínio sobre os corpos, pela masculinidade e pelo
discurso nacionalista, através de uma perspectiva alegórica que vai em direção à
contribuição para uma crítica sócio-cultural.
Algo como Ricardo Piglia, mais uma vez, pensou: “un cuento siempre cuenta
dos historias” (2000, p. 105): aquela própria ao conto e uma outra, cifrada, alegórica,
que bifurca a percepção e a leva para novos lugares. Enquanto produto social, o texto
literário não se desassocia das lógicas imanentes sobre as quais ele foi construído. Ele é
carregado de marcas pessoais e impessoais, do escritor, dos personagens e da temática
escolhida (estilo, perspectivas da posição social ou do lugar de fala, dinâmicas e códigos
pertinentes à escolha do universo a ser representado etc.). Como ler um conto de futebol
sem repetir o desapreço comum à crítica? Como reconstituir um cenário favorável no
qual contos de futebol possam dizer algo que vá além de um olhar torcedor? Como ir ao
encontro de uma cultura popular muito específica e abrangente sem recair nos
banalismos convencionais? Essas foram perguntas que este estudo tentou responder na
103
medida em que a leitura dos contos nos proporcionou vislumbrar a sociedade desde a
representação de um de seus interstícios, do ambiente específico do futebol, que
aglomera uma enormidade de sujeitos das mais distintas origens.
A constatação, em uma mesma medida, de práticas e demandas populares, que
desde o lugar da escrita podem ser problematizadas, denunciadas, reivindicadas ou
elogiadas. Pensamos tanto através do olhar intelectual, quanto do olhar em que se
confundem o escritor e o popular, um híbrido que a cada geração torna-se mais visível
na literatura. É dizer: operou-se uma permuta. Não só o intelectual frente ao torcedor;
mas o torcedor frente ao intelectual, a partir de uma fronteira, na qual o escritor e a
escritora dificilmente conseguem esconder seus traços de formação pela cultura popular.
Ao contrário, deixam-nos mais evidentes e, assim, constituem um campo literário que,
já na sua formação, indica uma teia de narrativas orientada tanto pela imaginação
literária quanto pela experiência concreta de sujeitos.
104
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