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VIOLÊNCIA, AUTORITARISMO, FASCISMO E IMPERIALISMO NO CAPITALISMO DO SÉCULO XXI: desafios da esquerda. Ementa: A mesa temática VIOLÊNCIA, AUTORITARISMO, FASCISMO E IMPERIALISMO NO CAPITALISMO DO SÉCULO XXI: desafios da esquerda, aborda o momento atual da luta de classe expressa na conjuntura nacional, latina americana e internacional a luz da presença dominante de forças políticas com caráter autoritário, fascista, sionista e imperialista. Essas forças políticas que aumentaram o seu poder nas primeiras décadas do século XXI têm no ódio e na violência a principal forma de imposição de suas concepções e os governos que as representam implementam uma agenda ultraneoliberal que atinge os direitos sociais e políticos dos grupos tradicionalmente marginalizados. Nesse cenário de violência, patrocinado pelo grande capital, as classes trabalhadoras têm o desafio de organizar e massificar a resistência, caso contrário não restará horizonte para a democracia e para a vida. Composição: Título: O BRASIL DE VOLTA AO PASSADO: notas e expressões do Estado pós- eleições 2018 - Coordenadora: Ilse Gomes Silva Universidade Federal do Maranhão. [email protected] Título: A PARALAXE DO ÓDIO: desamparo, violência e fascismo - Saulo Pinto Universidade Federal do Maranhão. [email protected] Título: CRISE DO CAPITAL E AVANÇO DO FASCISMO: uma análise sobre a atual conjuntura latino-americana - Daniel Araújo Valença - Universidade Federal Rural do Semiárido. [email protected] Título: SIONISMO, IMPERALISMO E REALAÇÕES INTERNACIONAIS: a questão Palestina e os desafios da esquerda - Marcelo Buzetto - Professor Doutor do Instituto Federal São Paulo São Roque e do Centro Universitário Fundação Santo André, membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS-PUC/SP) e do Conselho Acadêmico do Instituto Brasil-Palestina (IBRASPAL). [email protected]

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VIOLÊNCIA, AUTORITARISMO, FASCISMO E IMPERIALISMO NO CAPITALISMO DO

SÉCULO XXI: desafios da esquerda.

Ementa:

A mesa temática VIOLÊNCIA, AUTORITARISMO, FASCISMO E IMPERIALISMO NO

CAPITALISMO DO SÉCULO XXI: desafios da esquerda, aborda o momento atual da luta

de classe expressa na conjuntura nacional, latina americana e internacional a luz da

presença dominante de forças políticas com caráter autoritário, fascista, sionista e

imperialista. Essas forças políticas que aumentaram o seu poder nas primeiras décadas

do século XXI têm no ódio e na violência a principal forma de imposição de suas

concepções e os governos que as representam implementam uma agenda ultraneoliberal

que atinge os direitos sociais e políticos dos grupos tradicionalmente marginalizados.

Nesse cenário de violência, patrocinado pelo grande capital, as classes trabalhadoras

têm o desafio de organizar e massificar a resistência, caso contrário não restará horizonte

para a democracia e para a vida.

Composição:

Título: O BRASIL DE VOLTA AO PASSADO: notas e expressões do Estado pós-

eleições 2018 - Coordenadora: Ilse Gomes Silva – Universidade Federal do

Maranhão. [email protected]

Título: A PARALAXE DO ÓDIO: desamparo, violência e fascismo - Saulo Pinto –

Universidade Federal do Maranhão. [email protected]

Título: CRISE DO CAPITAL E AVANÇO DO FASCISMO: uma análise sobre a

atual conjuntura latino-americana - Daniel Araújo Valença - Universidade Federal

Rural do Semiárido. [email protected]

Título: SIONISMO, IMPERALISMO E REALAÇÕES INTERNACIONAIS: a questão

Palestina e os desafios da esquerda - Marcelo Buzetto - Professor Doutor do

Instituto Federal São Paulo – São Roque e do Centro Universitário Fundação

Santo André, membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais

(NEILS-PUC/SP) e do Conselho Acadêmico do Instituto Brasil-Palestina

(IBRASPAL). [email protected]

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A PARALAXE DO ÓDIO: desamparo, violência e fascismo

Saulo Pinto1

RESUMO: Pretende-se aqui elaborar a paralaxe do ódio, tentando alterar nossa percepção social em torno de um afeto político paradoxal. Para isso, tentamos romper a vulgarização da violência reduzida à sua dimensão meramente subjetiva, para que o ódio despolitizado possa ser substituído pelo ódio político organizado. Conclui-se que precisamos de ódio filosófico e ódio no coração emancipatório contra a generalização do ódio despolitizado na luta pela emancipação humana. Palavras-chave: Paralaxe. Ódio. Emancipação. ABSTRACT: The aim here is to elaborate the parallax of hatred, trying to change our social perception around a paradoxical political affection. To this end, we have tried to break the vulgarization of violence to its merely subjective dimension, so that depoliticized hatred can be replaced by organized political hatred. We conclude that we need philosophical hatred and hatred in the emancipatory heart against the generalization of depoliticized hatred in the struggle for human emancipation. Keywords: Parallax. Hate. Emancipation.

1.INTRODUÇÃO: ainda podemos sentir ódio?

É possível pensar a política contemporânea como um paradoxo que envolve a

constituição do “circuito dos afetos” e uma reclamação particular por reconhecimento.

Assim, o processo de subjetivação é marcado pelo modo como os sujeitos são afetados e

como os afetos são traduzidos diretamente em ação política ampla. É por isso que não

podemos tornar absoluta a fórmula de Lukács, para quem a crítica da “consciência

reificada” (LUKÁCS, 2012: 211) expressa a própria estrutura da subjetividade do homem

imerso nas relações reificadas mercantis, que são costuradas pela dominação social do

capital global sobre a própria formação da consciência. Essa fórmula é um tipo de

enquadramento relativo – que insistimos na sua não-absolutização, pois aqui deve ser

pensada numa dialética mais complexa entre as partes constitutivas e o todo totalizado –,

pois a capacidade ativa das formas de consciência não é bloqueada absolutamente pela

1 Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão. [email protected]

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reificação. O curioso é que a fórmula de Lukács encontra o seu efeito reverso, isto é, de

fazer “desaparecer toda subjetividade” (SARTRE, 2015: 30). O ódio funciona hoje, nesse

sentido, como um afeto político poderoso capaz de delinear o problema do antagonismo

político decisivo na forma de um paradoxo de toda subjetividade política existente: que

transforma a afetação particular em ação política regressiva ou é capaz de mobilizar os

corpos políticos na direção de uma ação política autêntica. O antagonismo posto produz

uma certa paralaxe do ódio e da violência desdobrada como termos “condenados” a

priori. Aqui insistimos numa certa modificação do debate sobre o ódio e a violência que,

numa perspectiva oniabrangente do conflito, promove uma luta de classes dos

significantes – possibilitando nossos significados sociais e uma nova escritura dos seus

termos –, pois se trata de “uma luta incessante dos acentos em cada área semântica da

existência” (BAKHTIN, 2012: 141), ou conforme salienta Rancière, potencializando a luta

de classes das palavras e dos significados, há “desentendimento” quando “a disputa

sobre o que quer dizer falar constitui a própria racionalidade da situação de fala”

(RANCIÈRE, 2018: 11). Isso significa que o ódio como palavra obscena teria um

significado comum possível e seu excesso constitutivo, a saber, ela (a palavra) poderia

esconder uma verdade perturbadora sobre o axioma básico do antagonismo social

existente para além de qualquer rejeição ideológica/semântica a priori. O ódio em si seria

um afeto político apenas violento e absolutamente repugnante? Ou estamos diante da

possibilidade de um significado do ódio que traduza um autêntico processo

emancipatório?

Badiou já havia dito que “a história da política não é a história das palavras, mas

sim a história dos novos significados que podem ter as palavras”, e que não deveríamos

ser tentados pela fixação das palavras, aliás, “uma palavra não é mais inocente do que a

outra, afinal é preventivo, para uma ontologia materialista, que “não lutemos pela

inocência das palavras” (BADIOU, 2012: 4). Talvez estejamos diante de uma situação

similar. Não podemos permitir que o ódio seja monopolizado por uma falsa universalidade

constitutiva de classe – que não tem outro interesse distinto do que a manutenção e

reprodução das posições sociais fixadas na forma de desigualitarismo global –, que reduz

o ódio à particularidade expressiva da violência subjetiva. Aqui não há nada além do que

a mera banalidade da violência brutal. É necessário não apenas o controle social da

revolta, mas igualmente o controle “violento” do significado abrangente das palavras

como controle social ideológico. O ódio como afeto político poderoso não pode ser

reduzido à sua máxima irracional inconsequente. É assim que temos um

“desentendimento” em torno do significado do ódio e da violência. As palavras não

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transmitem uma cultura valorativa imanente, mas elas são o próprio “objeto” da disputa

ideológica, que traduzem semanticamente as contradições do poder pressuposto. Por

detrás de toda palavra reificada há a existência da contrapalavra resistente que

desmascara o poder dominante da opressão, ao mesmo tempo que atua na profanação

da filosofia política do futuro. Todavia, há um outro desdobramento ideológico

fundamental: a equivalência do ódio como banalização da violência subjetiva funciona de

maneira a excluir qualquer responsabilidade do poder do capital global sobre suas

consequências –particularizando uma situação que é abrangente –, ao mesmo tempo

que promove a subtração do potencial afirmativo/positivo dos afetos denegados. Raoul

Vaneigem salienta que “todo o ser humano tem direito à cólera”, pois:

O sentido humano substitui a cólera que traduz as frustrações e as insolências da vontade de poder pelo furor suscitado pela exasperação da vida, contrariada na sua exuberância. Assim restituída à vontade de viver, a ira faz parte da energia criadora que se insinua no cerne dos seres e das coisas para os tornar mais humanos (VENEIGEM, 2003: 188).

Isso posto, é necessário estabelecer diferenças no âmago da constituição da

violência, que não pode ser traduzida apenas na forma de sua particularização reativa

como fúria raivosa, inconsequente, acidental, avessa ao mínimo de racionalidade

positiva. Para que o “ódio” e a “cólera” possam assumir seu lugar como “parte da energia

criadora” de um novo tempo do mundo, temos que diferenciar a violência que é autêntica

de suas falsificações, e assim, arrancar, através de uma separação decisiva, o ódio

reativo da potência política contida no ódio radical emancipatório. Segundo Žižek,

“devemos focar os curtos-circuitos entre diferentes níveis”, que estabeleça uma conexão

verdadeira “entre o poder e a violência social: uma crise econômica que leva à

devastação é experimentada como um poder incontrolável quase natural, enquanto deve

ser experimentada como violência” (ŽIŽEK, 2014: 7-8, grifos do autor). Então, a hipótese

da “crítica da economia política” deve ser pensada diretamente como violência, mas um

tipo de violência concreta – e que produz consequências reais

desumanizadoras/degradantes –, no entanto, empiricamente impossível de ser

plenamente decodificada. Temos aqui um paradoxo estranho: é possível dizer que a

violência praticada pela economia capitalista não assusta, quando não, sequer é

percebida como “violência”, mas as pessoas comuns experimentam a vida econômica de

maneira antissistêmica, não associando seus problemas como derivação política do

modo de funcionamento da economia e do capitalismo globais. Žižek defende um “passo

para trás” se quisermos realmente perceber a potência da violência para além de seu

paradoxo subjacente:

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Os sinais mais evidentes de violência que nos vêm à mente são atos de crime e terror, confrontos civis, conflitos internacionais. Mas devemos aprender a dar um passo para trás, a desembaraçar-nos do engodo fascinante desta violência “subjetiva” diretamente visível, exercida por um agente claramente identificável. Precisamos ser capazes de perceber os contornos dos cenários que engendram essas explosões. O passo para trás nos permite identificar uma violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam combater a violência e promover a tolerância (ŽIŽEK, 2014: 17).

Assim, Žižek estabelece dois níveis mais gerais de violência que se entrecruzam

dialeticamente: violência subjetiva e violência objetiva. A “violência subjetiva” é

justamente “a parte mais visível” do espectro da violência, enquanto a “violência objetiva”

se subdivide em violência “simbólica” – “encarnada na linguagem” e voltada “à imposição

de um certo universo de sentido” – e violência “sistêmica” – “que consiste nas

consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas

econômico e político” (ŽIŽEK, 2014: 17). Nesse sentido, é possível elaborar uma

similitude entre a ideia estruturada da violência em Žižek e posição de Bourdieu. Para

Bourdieu, a estrutura da dominação se vale de uma certa conexão entre um “poder

invisível” existente e a “cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão

sujeito ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2003: 7-8). Não seria essa a posição de

Žižek quando diz que a “violência simbólica” significaria “à imposição de um certo

universo de sentido” capaz de produzir algum tipo de reconhecimento alienado? Esse

universo de sentido não seria o anverso da “violência sistêmica” como fluxo regular do

funcionamento “normal” do capitalismo realmente existente?

A questão é que as violências subjetiva e objetiva não podem ser percebidas do mesmo ponto de vista: a violência subjetiva é experimentada enquanto tal contra o pando de fundo de um grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas “normal” e pacífico. Contudo, a violência objetiva é precisamente aquela inerente a esse estado “normal” das coisas. A violência objetiva é uma violência invisível, uma vez que é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo como a célebre “matéria escura” da física, a contrapartida de uma violência subjetiva (demasiado) visível. Pode ser invisível, mas é preciso levá-la em consideração se quisermos elucidar o que parecerá de outra forma explosões “irracionais” de violência subjetiva (ŽIŽEK, 2014: 17-18).

O segredo da paralaxe do ódio não estaria escondido no curto-circuito da equação

explosiva entre a “violência subjetiva” e o estado pacífico “normal” da “violência objetiva”

permanente? Talvez tenhamos que desmascarar o elemento “puro” do “grau zero de não

violência” inerente ao funcionamento “normal” do sistema, se quisermos romper com o

universo abrangente da “violência simbólica” como “dominação de uma classe sobre

outra” (BOURDIEU, 2003: 11). A paralaxe do ódio poderá permitir que possamos

transcender a própria circularidade do ódio-violência sempre reativa para que o ódio

possa ser descarregado de todo significado negativo e, em consequência, tomado pela

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função criativa de elaboração do futuro. Ao contrário da ideia lugar-comum que trata o

“desamparo” como uma paralisia do sujeito que se recusa a agir, pois não pode agir,

precisamos pensá-lo como a total ausência de identificação com o mundo, que o nega,

mas que produz uma afetação repulsiva dele para com o próprio mundo. Hobbes

estabeleceu o “medo” como afeto político constituinte de respeito à ordem. Temos que

modificar essa interpretação para, a partir de Freud, insistir na ideia na “afirmação do

desamparo” como o afeto constitutivo da “emancipação” (SAFATLE, 2016: 18). As

consequências são inevitáveis e imprevisíveis para a subjetividade/subjetivação política:

“ressentimento”, “raiva” e “ódio” são afetos políticos derivados da forma como a

objetivação do ser e a apropriação do ser objetivado se materializam efetivamente. Não é

possível tratá-los a partir de uma escala estritamente subjetiva, pessoal, acidental, mas

seria mais adequado procedermos “uma retotalização em todas as circunstâncias”, “ao

mesmo tempo presente em toda parte e presença de toda parte nela” (SARTRE, 2015:

45). Não podemos chegar aqui sem uma reversão dialética do problema pressuposto: e

se pensássemos o ódio como um afeto mediador “violento” diante de uma situação-limite

de desamparo?

2. A PARALAXE DO ÓDIO, O ÓDIO EM PARALAXE

Há uma certa confusão ontológica quando da definição do significado do ódio: o

ódio é sempre considerado um ato excessivo e inautêntico diante da vida democrática

mínima. Mas, e se estivermos diante de uma noção tapa-buraco? Em vez de abrir nossa

capacidade de pensar os antagonismos reais, forçando nosso pensamento a uma cisão

decisiva na realidade existente, ela servir ao obscurecimento do que de fato vemos,

desobrigando-nos a pensar? É aqui que a paralaxe do ódio se mostra importante. O ódio

nunca se expressa – pelo que de fato realmente é – imediatamente no interior da coesão

dominante como explosão da fúria e da violência subjetivas: temos aqui apenas uma

falsa noção ambígua, pois o ódio nunca é diretamente o mesmo que terror,

desumanidade, barbarização do espírito. Sartre diz, contraditando Lukács, que a

transcendência do “homem total” no mundo se dá mediada por uma “realidade que não é

ele”, na forma de uma “explosão de si mesmo para”: “a um além, ao que está fora dele e

diante dele (SARTRE, 2015: 31). Então, o ódio é produzido por uma interiorização da

relação do homem com o mundo, resultado de uma transcendência do si interior para um

“fora” de si, ao mesmo tempo funcionando como exteriorização e reexteriorização de

suas necessidades contínuas. Nesse caso, o ódio é sempre resultado do sistema de

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interiorização do estar no mundo, que no complexo dominante atual caracteriza-se como

exploração e dominação sistêmicas – e que produz uma situação-limite de desamparo –,

mas que tem na universalidade da anomia social destrutiva do capital a sua causa não-

evidente. Assim, o ódio como afeto político se expressa mediante o fenômeno da

violência subjetiva pura, o mundo aparente que não é coincidente ao que esconde,

silencia. Por isso ela é sempre tratada como forma expressiva do recalque, desprovida de

qualquer relacionamento sistêmico com a transcendência do homem total com o mundo.

Sobre o recalque, Bloch diz que:

No processo de recalque, os desejos não realizados, ou até mesmo anulados pelo silêncio, simplesmente submergem num inconsciente mais ou menos completo. Ali eles apodrecem, formando tensões e complexos neuróticos, sem que aquele que sofre possa reconhecer as causas de seu sofrimento (BLOCH, 2005: 57-58, grifos do autor).

Temos, então, a violência sistêmica que afeta o antagonista subordinado

fundamental através da produção do desamparo – na forma de privação e abandono dos

tipos constitutivos “normais” de identificação social – e do ressentimento – que funciona

como reação subjetiva cega às ofensas sofridas. O indivíduo encontra-se desamparado

diante de um mundo circundante estranho, hostil, castrador de suas necessidades e que

recalca suas pulsões mais fundamentais. Ernest Bloch diz que são das “pulsões não

exteriorizadas, experiências inconclusas, feridas e decepções” que provêm a

“sensibilidade aparentemente infundada, a reação exagerada, a ação neurótica

compulsiva”, fazendo com que tenhamos “afetos que se tornaram absurdamente

independentes” (BLOCH, 2005: 58). Com a redução do ódio e da violência à sua escala

subjetiva pura, o recalque oblitera todo ressentimento legítimo, traduzindo-se como

expressão da subjetividade particular danificada. O desdobramento é a formação de um

apelo interno subjetivo poderoso, que é traduzido como defesa intransigente da tolerância

capaz de contraditar a legitimação do ódio e da violência. O paradoxo é que a tolerância

atua como categoria política da ideologia democrático-liberal – o que significa transformar

todo o antagonismo de classes em diferenças indiferentes, que devem ser toleradas e

seu litígio reduzido em torno do consenso democrático –, mas o significado de

“tolerância” aqui funciona, na verdade, como violência sistemática externa contra àqueles

que não parte no corpo social. Mészáros diz que há um limite absoluto à tolerância

democrático-liberal, isto é, “até o ponto para além do qual o protesto começa a se tornar

efetivo e a se transformar num verdadeiro desafio à perpetuação da sociedade de

tolerância repressiva” (MÉSZÁROS, 2011: 999). O que a paralaxe do ódio desmascara é

que o ódio produzido aparece sempre de maneira reativa e é um ódio particular

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ideológico de classe, como um afeto político despolitizado, como uma loucura totalitária

sem sentido, pois a ideologia democrático-liberal não pode tolerar a fúria intolerante dos

dominados: a tolerância repressiva classifica e reclassifica sempre o ponto de vista da

intolerância como o antagonista intolerável a ser eliminado. O ódio despolitizado jamais

pode ser transformado em ódio político organizado e é apenas a expressão sintomática

do ressentimento recalcado. O problema é que o ódio político aparece justamente

naquele que está destituído da vida ordinária mínima, predicado necessário do tipo de

opressão social que temos sob o capitalismo hoje. É por isso que o ódio aqui é

desprovido de qualquer capacidade de universalidade autêntica, pois sua fúria é

mobilizada como violência subjetiva contra uma “causa” deslocada, constrangendo

qualquer reclamação legítima e distorcendo a verdade do dano. O ódio de classe interno

à classe particular dominante é transformado numa profusão de ódio como afeto político

preponderante, mas na forma de um afeto político subjetivo inautêntico. O ódio aqui é o

equivalente imediato da raiva: reativo, violento e despolitizado.

Não seria contraproducente dizer que a imposição de uma certa distorção do

significado do ódio funcionaria como uma mínima medida, impactando a subjetividade

coletiva pela manipulação das expectativas. É necessário que o ódio funcione como

violência subjetiva pura, recalcando toda “antecipação concreta” de futuro. É aqui que o

fascismo exerce sua poderosa influência regenerativa ao sistema como um todo,

evitando que as energias excessivas sejam mobilizadas contra as coordenadas básicas

de funcionamento do capitalismo e aprofundando a distância entre o corpo alienado da

vida política e a vida ordinária dos indivíduos. É assim que o desamparo é mobilizado na

forma de um ressentimento reativo contra uma “causa” distorcida. O ódio despolitizado é

ideologicamente manipulado para que a subjetividade como “perpétua projeção”

(SARTRE, 2015: 55) seja anulada, denegada, fraudada. O ódio e a raiva despolitizados

voltam-se contra si, negando toda projeção possível:

Pouco importa como são os judeus realmente; sua imagem, na medida em que é a imagem do que já foi superado, exibe os traços aos quais a dominação totalitária só pode ser hostil: os traços da felicidade sem poder, da remuneração sem trabalho, da pátria sem fronteira, da religião sem mito. Esses traços são condenados pela dominação porque são a aspiração secreta dos dominados. A dominação só pode perdurar na medida em que os próprios dominados transformarem suas aspirações em algo de odioso. Eles fazem isso graças à projeção patológica, pois também o ódio leva à união com o objeto – na destruição. O ódio é o negativo da reconciliação (ADORNO; HORKHEIMER, 2006: 164).

Os “judeus” não são apenas os judeus, mas todo “objeto” de expiação ao núcleo

alusivo da exploração e dominação, àqueles que têm em relação ao seu predicado

substancial à hostilidade dos poderosos. O ódio contra pobres, mulheres, negros ou

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homossexuais não é apenas um ódio ao seus conteúdos imanentes, mas propriamente

ao para-si que essas existências destituídas de significado podem alcançar num

autêntico processo de universalização política. Enquanto o dano for tratado como uma

pequena rasura, inominável, seu núcleo particular sempre produzirá – e se de fato vier a

produzir algo em algum momento – um tipo de reação reativa, uma violência irracional

ressentida, mas incapaz de traduzir-se na forma de uma universalização política que

estabeleça vasos comunicantes entre si. Um ódio particular não pode ser respondido com

uma tolerância particular ou, de uma forma distinta, através da “politização” de um ódio

particular. São respostas falsas, que particularizam o dano e o problema em si, e tornam

real a impossibilidade de comunicação e reclamação autênticas, impedindo o

estabelecimento de vasos comunicantes entre os litígios particulares e indefinindo

politicamente o inimigo em comum. Diz Žižek:

E, de novo, a questão-chave é que essa renaturalização oniabrangente é estritamente correlata à reflexivização global de nossa vida cotidiana. Por essa razão, quando confrontados com o ódio e a violência étnicos, devemos rejeitar completamente a ideia multiculturalista de que, contra a intolerância étnica, temos de aprender a respeitar a Alteridade do Outro e a conviver com ela, a desenvolver tolerância por diferentes estilos de vida etc. O ódio étnico não será combatido efetivamente por seu equivalente imediato, a tolerância étnica; ao contrário, precisamos de mais ódio ainda, mas de um ódio propriamente político: o ódio voltado contra o inimigo político comum (ŽIŽEK, 2015: 34, grifos do autor).

Para transcendermos toda confusão ontológica propriamente dita, temos que

pensar que a violência subjetiva é, na verdade, apenas a imagem de uma ilusão. Deleuze

e Guattari dizem que as “pessoas individuais não são inicialmente pessoas sociais”

(DELEUZE; GIATARRI, 2004: 275), pois são apenas a derivação abstrata de relações

sociais estranhas e que as dominam. Isso significa que, no processo de hegemonização,

a exploração e dominação capitalistas não apenas distorcem o conteúdo substancial dos

problemas fundamentais, mas criam imagens capazes de alteração da percepção

particular. É como se tivéssemos a “imagem” da imagem problemática da coisa em si.

Debord fala que a divisão especializada das imagens “do mundo se realiza no mundo da

realidade autonomizada”, e que “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma

representação” (DEBORD, 1997: 13). É aqui que o problema do ódio se complexifica,

pois não seria razoável supor que o ódio hoje não passaria de uma imagem idealizada

completamente desprovida de validação real? Que a tipologia do ódio não seria apenas

uma imagem distorcida, pois odiamos justamente aquilo que deveríamos ter uma relação

substantiva de cumplicidade em razão do compartilhamento de determinadas relações

comuns? O ódio é um afeto político e o ódio como ato é uma exteriorização que se

materializa através das diversas formas de violência. Se o “objeto” do ódio é uma imagem

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distorcida, a violência motivada por uma imagem manipulada é absolutamente real, ela

existe. Então, o problema desse tipo de violência é que ela incide sobre um “simulacro” e

não diretamente à substância da coisa em si:

O capitalista como capital personificado, isto é, como função derivada do fluxo de capital, o trabalhador como força de trabalho personificada, função derivada do fluxo de trabalho. E assim o capitalismo preenche o seu campo de imanência com imagens: até a miséria, o desemprego, a revolta e, por outro lado, a violência e a opressão do capital, se tornam imagens de miséria, de desespero, de revolta, de violência e de opressão. Mas a partir das figuras não figurativas ou cortes-fluxos que as produzem, estas imagens só serão figurantes e reprodutivas se informarem um material humano cuja forma específica de reprodução cai fora do campo social que, no entanto, a determina. As pessoas privadas são pois imagens de segunda ordem, imagem de imagens, isto é, simulacros, que

recebem assim a capacidade de representar a imagem de primeira ordem das pessoas sociais (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 275-276, grifos do autor).

Todavia, é preciso que façamos a passage à l’acte ao ato em si. Para Žižek, a

violência generalizada, que se tornou norma da ação política do “estado de situação”, não

poderia significar puramente que a luta pela emancipação estaria derrotada ou que o

primado da dignidade humana se encontraria num ponto-limite intransponível de

fracasso. É preciso insistir aqui no contrário: o ódio traduzido na ação violenta é o

sintoma da possibilidade concreta do ato revolucionário, é como se ódio dissesse que há

um “mais além” do que a simples brutalidade reativa do ato em si. Estamos diante de

uma situação limite em que a única alternativa ao “estado de situação” foi a limitação da

energia excessiva da política ao seu núcleo apenas reativo. É justamente na

incapacidade da política em ir “mais além” do presente e das contrações incorrigíveis do

poder desmedido global do capital, que o ódio se banaliza na violência subjetiva pura

como resolução do conflito político em questão:

Em outras palavras, o próprio ódio dos pogroms antissemitas é a prova, a contrário, da possibilidade da revolução proletária autêntica: sua energia excessiva só pode ser interpretada como uma reação à consciência (“inconsciente”) da oportunidade revolucionária perdida. E não seria a causa maior da Ostalgie (nostalgia do passado comunista) entre muitos intelectuais (e

mesmo “pessoas comuns”) da defunta República Democrática da Alemanha também uma saudade não tanto do passado comunista, pelo que realmente acontecia no comunismo, mas pelo que poderia ter acontecido lá, pela

oportunidade perdida de outra Alemanha? Não seriam as explosões de violência neonazista após o fim do comunismo também prova negativa da presença dessas oportunidades emancipatórias, uma explosão sintomática de raiva demonstrando a consciência das oportunidades perdidas? Não devemos ter medo de fazer uma comparação com a vida psíquica individual: assim como a consciência de oportunidade “privada” perdida (digamos, a chance de se engajar numa relação amorosa enriquecedora) quase sempre deixa marcas na forma de ansiedade “irracionais”, dores de cabeça e acessos de raiva, o vazio da oportunidade revolucionária perdida pode explodir na forma de ataques “irracionais” de ódio destrutivo (ŽIŽEK, 2005: 275-276, grifos do autor).

Mas há um outro nexo importante aqui. Badiou diz que existem várias maneiras

de um processo emancipatório fracassar. Qualquer oportunidade de mudança radical dos

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parâmetros “normais” do regime de exploração e dominação precisa se desvencilhar do

vazio do niilismo subjacente a toda energia revolucionária típica. Ele considera:

Que uma revolução nunca é mais do que um entremeio do Estado. Daí a tentação sacrifical do nada. O inimigo mais temível da política de emancipação não é a repressão pela ordem estabelecida. É a interioridade do niilismo, e a crueldade sem limites que pode acompanhar seu vazio (BADIOU, 2012: 22).

Aqui, temos que combater a ideia falsa que busca elaborar uma similitude entre a

generalização da violência subjetiva à posição revolucionária. Trata-se de uma falsidade

concentrada, cujo objetivo é impor uma certa ressignificação do ódio à brutalidade

irracional da violência ilegítima. A distorção está em subjetivar a violência, desfigurando

seu significado da “crítica da economia política” e do Estado político em si mesmo, para

que o problema da violência seja tratado em termos de um excesso subjetivo acidental,

ou uma irracionalidade absurda, na forma de uma “violência subjetiva” incompreensível.

A paralaxe do ódio opera uma determinada suspensão da negatividade do conceito de

ódio, para que ele seja pensando como afeto político disjuntivo, em disputa e numa

dimensão conflitiva que não pode ser reduzida ao universo simbólico-subjetivo. O ódio

não é um problema apenas de conceito ou patológico, mas é como os antagonismos são

resolvidos pelas classes em disputa, mediados que são pelos complexos ideológicos

rivais. Mais ódio, por favor!

3. CONCLUSÃO: ódio no coração, ódio filosófico?

Parafraseando Marx, o ódio é uma ira voltada para fora. E nesse caso, é uma

ruptura com o recalque subjacente ao disciplinamento dos corpos e das linguagens

operado pelo poder desmedido da dominação do capital global sobre as pessoas e sobre

os corpos sociais mais abrangentes. Assim, a politização do ódio, ou o tratamento da

política como ódio político organizado, tem como significado mais abrangente a

constituição de uma fronteira tênue, delicada, entre o ódio no coração necessário e o ódio

filosófico consequente. Quando temos explosões de raiva e ódio isso não significa nada

além do que a dominância dos resíduos típicos da desumanização em um tempo de

decadência consumada. Do ponto de vista da consciência reificada, o ódio atua como

uma denegação do ideal democrático pleno. A questão que se apresenta é emblemática:

como é possível o ódio agir contra a democracia, se é a democracia resultado de um ódio

constitutivo? Essa ambiguidade expressa toda contradição do impasse interno vivido pelo

ódio como afeto político preponderante. Não é possível que o ódio político seja destituído

de seu conteúdo substancial, pois o ódio não atua no nada. Talvez seja mais preciso

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dizer que o ódio no coração – que aciona uma politização do pequeno sentimento

intransponível – e o ódio filosófico – que subverte as noções despolitizadas do ódio

subjetivo puro – são a substância da ideia de política como ódio político organizado. É

assim que o ódio no coração, ao contrário de sua distorção ideológica, age como

equivalente ao processo mais abrangente de emancipação. Emancipação de si,

emancipação do outro, emancipação de todos.

A politização do ódio tem um outro sentido na ressignificação do seu conteúdo e

da abrangência ideológica alcançada. O ódio politizado, orientado para uma mudança

autêntica e duradoura, no âmago do núcleo da perpetuação das relações de opressão

existentes, funciona desorganizando o modus operandi do consenso da parapolítica

democrática, que reduz à democracia a uma polarização autorizada entre o partido da

ordem e sua oposição autorizada em torno de um programa mínimo comum de

despolitização do antagonismo conflitivo subjacente à ordem do capital global, isto é, a

uma sempre renovada e contínua normalização das relações econômicas estabelecidas.

Uma das funções decisivas das ideologias em disputa pela hegemonização dominante é

justamente impedir que todo ressentimento contra o núcleo alusivo do sistema dominante

seja atacado pelos acessos coletivos de raiva e ódio, na forma de violência política direta.

Impera aqui uma necessidade decisiva de domesticação dos corpos políticos, para que

todo corpo político não apenas permaneça imobilizado, mas que exista permanentemente

como corpo político alienado – no sentido duplo: de submetimento ao Estado político

como corpo político separado e como sabotagem de sua potência política como corpo

político alternativo à democracia alienada. A lógica policial não é outra senão a tentativa

de destituição do componente autêntico do ódio. É necessário ao poder estatal policial

subtrair as energias excessivas do protesto, manipular o sentimento popular autêntico em

relação à “política”, estabelecendo o que Rancière chamou acertadamente e

abrangentemente de “ódio à democracia”, traduzindo toda forma de protesto radical

contra o poder instituído como uma perversão às “regras do jogo” democrático,

reprimindo violentamente através da violência legítima consensual estatal todo choque à

ordem existente e suas instituições parasitárias funcionais à perpetuação do poder

dominante. O paradoxo aqui é que o ódio coletivo é condenado, deslegitimado, para que

o ódio subjetivo prevaleça, mas apenas como um problema subjetivo que deve ser

combatido com força pela legalidade existente, isto é, a tolerância à violência subjetiva

exerce a função de fazer desaparecer a própria existência simbólico-subjetiva da

violência coletiva como uma forma de protesto legítimo ao litígio comum. Pois, o poder

dominante percebeu que é mais simples operar com precisão parapolítica o

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ressentimento subjetivo do que o ódio coletivo abrangente. A violência estatal contra o

protesto coletivo tem um preço demasiado custoso, e afinal de contas poderia voltar-se

contra si, enquanto a repressão estabelecida contra o excesso das energias subjetivo-

individuais poderia ser canalizada para o niilismo do consumo paranoico mercantil, para o

niilismo transcendental da clínica ou para o niilismo metafísico do fetichismo religioso:

mercado, clínica ou religião.

Para a dialética materialista, “nunca devemos esquecer é que o ódio popular é

flutuante e pode ser redirecionado” (ŽIŽEK, 2019: 313), não existindo nenhuma

imanência anterior ao próprio conflito antagônico inscrito. É assim que Frédéric Gros

evoca a necessidade do “ódio político do povo contra os ricos” (GROS, 2018: 13). Aqui

não temos a preponderância do recalque que silencia os afetos interiorizados legítimos,

que faz com que o sujeito tenha sua ação reduzida à dimensão da compulsão neurótica.

Em analogia à Bloch, poderíamos dizer que é possível descer conscientemente ao porão

do que foi recalcado, tornar conscientes os pressupostos inconscientes dos sintomas do

ódio subjetivo puro, para que o ódio particular se transforme em objeto da consciência

reflexiva e seja socialmente superado. É aqui que encontramos a passagem do ódio

subjetivo puro como expressão dos antagonismos políticos subjacentes à realidade para

uma “noção da política como ódio organizado (ŽIŽEK, 2017: 170). Em vez de negar o

ódio político, temos que afirmar todo o seu potencial radical emancipatório. Por isso que o

ódio político jamais pode ser um ódio político particular, que se rebate com uma

dimensão subjetiva específica, mas deve atuar como ódio coletivo capaz de assumir a

tarefa da mudança radical do mundo. Redefinindo os termos de Sartre, todo ódio

particular é uma subjetividade, como sujeito percebendo um objeto particular que é

específico, e o ódio particular como reflexão percebendo a si mesmo como objeto

particular, mostra que o conhecimento do subjetivo tem de fato algo de destruidor para o

próprio subjetivo e para a subjetividade. Não se trata de destruir o ser odioso, mas de

confrontar o ódio particular como problema, como subjetividade danificada que precisa

ser eliminada, extinta.

O ódio político é, por excelência, antitético ao ódio fascista. Podemos dizer que a

diferença fundamental está precisamente no fato de que o fascismo se utiliza do ódio

como justificativa para eliminação do “outro”, que é sempre tratado como um “intruso” que

vem de fora para desestabilizar as relações internas do mundo social estabelecido. O

ódio político emancipatório, todavia, busca eliminar a subjetividade danificada do “outro”.

Não se trata da eliminação física do antagonista, mas da extinção do sujeito político

degenerado e do próprio antagonismo como condição de possiblidade da barbarização

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subjetiva pura. Por isso que a ação esquerdista baseada no “grabuge” como “violência

anárquica” é equivocada. Ou seja, Sartre diz que a tática do “grabuge” tem como objetivo

acionar a função do “escândalo” como ato político individual, posto “que qualquer

escândalo valia para desmontar a consciência burguesa” (SARTRE, 2015: 48):

Ora, o ato surrealista mais simples, como dizia Breton, é o grabuge. No fundo, pega-se um revólver e atira-se a esmo: é um ato escandaloso, mas também estritamente individual, tão destruidor de si como do outro (SARTRE, 2015: 49).

Para Sartre, a dimensão não-radical da função do “escândalo” está justamente na

sua incapacidade de enfrentar o problema da violência estrutural produzida pelo capital

global. Provocações subjetivas à ordem dos costumes comuns, da moralidade imperativa

etc., não atacam o núcleo elusivo do axioma da opressão. É um tipo de “escândalo” que

tem pouca eficácia política duradoura em termos de transcendência positiva da

consciência reificada. O ódio aos valores dominantes são legítimos e faz parte do ódio à

ontologia constitutiva do mundo atual. Trata-se de uma luta necessária, mas insuficiente.

Lutar contra a totalidade do mundo atual significa lutar contra o seu complexo de valores

subjacentes. A violência do “escândalo” tem que ser pensada como uma não-violência, e

talvez seja apenas uma irritação lateral subjetiva sem qualquer possiblidade de

universalização concreta. Temos que lembrar aqui da notável ponderação feita por

Hannah Arendt: “só que uma rebelião, para nem falarmos na revolução, é muito mais do

que uma histeria coletiva” (ARENDT, 2011: 54). Sartre sentencia:

Destruir ao máximo a realidade burguesa por meio de um escândalo e, ao mesmo tempo, deixar-se destruir. Ou seja, destruiu em si mesmo a burguesia na medida em que tenta destruí-la no outro, sempre por um ato de violência autodestruidor e até suicida. Na palavra grabuge existe isso. Para nós, alguém que procura o grabuge é, por exemplo, um americano, desses que existem em

Nova York e não sabem o que fazer à noite, e que entre num bar com a única intenção de brigar com alguém. Que ele quebre a cara do outro ou que o outro quebre a cara dele, tanto faz: ele volta para casa satisfeito. O que houve foi essa autodestruição, a destruição da vida, a negação dessa vida pela violência (SARTRE, 2005: 50, grifos do autor).

Não, não é possível ou tolerável “a volta para casa satisfeito”. Estamos diante de

uma situação que exige a politização do ódio orientado em direção à emancipação

humana da opressão insuportável existente. E é necessário que tenhamos nossa

subjetividade como motim, para que não sejamos tragados para o ódio de si – das

nossas aspirações coletivas e desejos pessoais –, ou que sejamos confundidos por uma

mobilização falsa baseada no “escândalo”. Aliás, o autêntico da “violência revolucionária”

é justamente “a transformação da vítima oprimida em agente ativo” (ŽIŽEK, 2005: 274).

Esse é o significado da politização do ódio: quando há uma afetação substancial que

transforma o ressentimento pessoal em potência política mobilizadora coletiva. A

esperança do mundo aparece aqui como uma combinação explosiva entre ódio no

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coração e ódio filosófico. Ou imaginamos um futuro que seja tolerante com a

desumanização do presente? A resposta é aqui negativa. O ódio é assunto sério demais

para ser monopolizado pelo poder policial estatal ou pela violência clínica. É assim que

há uma indissociabilidade entre ódio no coração e ódio filosófico: o primeiro, como

poética da sensibilidade autêntica: o segundo, como uma radicalidade da disposição do

espírito.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. ARENDT, HANNAH. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2012. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. BLOCH, Ernest. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, V1. BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. GROS, Frédéric. Desobedecer. São Paulo: Ubu Editora, 2008. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. MÉSZÁROS, István. A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. São Paulo: Boitempo, 2015. MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. SARTRE, Jean-Paul. O que é subjetividade? Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2015. VANEIGEM, Raoul. Declaração Universal dos Direitos do Ser Humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem. Lisboa: Edições Antígona, 2003. ŽIŽEK, Slavoj. A coragem da desesperança: crônicas de um ano que agimos perigosamente. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. ŽIŽEK, Slavoj. Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. ŽIŽEK, Slavoj. As portas da revolução: escritos de Lenin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005. ŽIŽEK, Slavoj. O absoluto frágil: ou Por que vale a pena lutar pelo legado cristão? São Paulo: Boitempo, 2015. ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.

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SIONISMO, IMPERIALISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a Questão Palestina e

os desafios da esquerda2

Marcelo Buzetto*

O texto pretende informar e estimular a discussão sobre a realidade do povo palestino em sua luta pelo reconhecimento de sua independência e libertação nacional. Infelizmente, neste início de século XXI, ainda somos obrigados a nos defrontar com essa situação injustificável, que é a negação dos direitos nacionais a um povo que vive há séculos naquela região. Palavras chaves: sionismo, imperialismo, palestina ABSTRACT The text aims to inform and stimulate the discussion about the reality of the Palestinian people in their struggle for recognition of their independence and national liberation. Unfortunately, at the beginning of the twenty-first century, we are still forced to face this unjustifiable situation, which is the denial of national rights to a people who have lived for centuries in that region. Key words: Zionism, Imperialism, Palestine

1. INTRODUÇÃO

Desde o início dos anos oitenta tem crescido em nosso país um movimento de

solidariedade com a causa palestina que atravessa as barreiras ideológicas, políticas,

partidárias e religiosas. Desde os anos oitenta a Organização para a Libertação da

Palestina (OLP) possui escritório de representação diplomática em Brasília, que hoje já

tem status de Embaixada e na Cisjordância foi aberta uma Embaixada brasileira.

Também percebemos a existência de vários Comitês de Solidariedade à Luta do Povo

Palestino, em vários Estados do Brasil com uma composição que envolve partidos,

movimento sindical, popular e estudantil, além de intelectuais e diversas lideranças. Entre

os movimentos de trabalhadores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST) e a Via Campesina (movimento internacional de trabalhadores rurais e

camponeses) tem enviado delegações em missões humanitárias na Palestina ocupada.

Os meios de comunicação de massa (ou de desinformação em massa) costumam

tratar a Questão Palestina como um conflito entre “judeus e muçulmanos” ou entre

“árabes e israelenses. Quais são os verdadeiros motivos que fazem com que a Palestina,

2 Esta é uma versão reduzida do texto que se encontra no livro A Questão Palestina: guerra, política e

relações internacionais, de Marcelo Buzetto (Expressão Popular, 2016). * Professor do Instituto Federal São Paulo – São Roque e do Centro Universitário Fundação Santo André,

membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS-PUC/SP) e do Conselho Acadêmico do Instituto Brasil-Palestina (IBRASPAL). [email protected]

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região onde nasceram as três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo,

islamismo), seja palco de uma guerra onde as vítimas são crianças, idosos e demais

membros da população civil que enfrentam todos os dias as agressões de um exército

invasor que desrespeita os direitos humanos e as resoluções da ONU desde 1948?

A Questão Palestina também sempre despertou o interesse de intelectuais e

organizações de orientação marxista, pois a luta entre as potências capitalistas europeias

e o Império Turco-Otomano pelo controle desse território ocorre num período de

expansão do capital industrial e financeiro para o chamado “Oriente Médio” e para a Ásia.

Expansionismo, militarismo e guerras de conquista são características típicas da fase

imperialista do capitalismo, que produz uma desigualdade entre as nações e impõe uma

desigual Divisão Internacional do Trabalho. Longe de promover uma situação homogênea

no campo das relações internacionais, o processo de internacionalização do capital e do

capitalismo tem como resultado a produção de inúmeros conflitos regionais cujo centro

da disputa é a definição das fronteiras nacionais, o estabelecimento de novas nações que

atendam interesses de nacionalidades oprimidas ou a luta pela independência e

soberania. Portanto, diversas lutas nacionais, nacionalistas, anticolonialistas e

antiimperialistas se desenvolvem, surgem e se multiplicam durante os séculos XIX e XX.

E é nesse contexto que a Palestina, por vários motivos, adquire importância estratégica

para os projetos políticos da classe dominante da Europa e do Mundo Árabe.

A análise marxista da situação concreta da Palestina sempre exigiu a combinação

de alguns elementos fundamentais: 1. Reconhecer que a libertação nacional aparece

como reivindicação prioritária nas lutas desse povo; 2. Realizar um esforço para

identificar os interesses de classe presentes no dia-a-dia do intenso movimento da

resistência nacional palestina; 3. Tentar compreender quais são e como pensam e atuam

as organizações marxistas e de esquerda no interior do movimento da resistência

nacional palestina, suas ideias principais, seu programa, suas táticas, etc.

2. AS ORIGENS DO CONFLITO ATUAL: sionismo e imperialismo invadem a Palestina

A Palestina é um território de 27.000 km2 que se localiza entre o Egito, Líbano,

Síria e Jordânia, tendo um vasto litoral com saída para o Mar Mediterrâneo. Pelo sul da

Palestina chega-se ao Golfo de Ácaba, que levará qualquer navegante ao Mar Vermelho,

Golfo de Áden, Mar da Arábia, golfo de Omã e Oceano Índico. Do ponto de vista

econômico, político e militar, sua localização é estratégica. A Palestina fica no centro do

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mundo, na divisa entre a África e a Ásia, e bem próxima da Europa. Por isso tal território

sempre foi alvo de invasões ao longo de sua história.

Durante o final do século XIX a Palestina estava sob o domínio do Império Turco-

Otomano. Na Europa e na Rússia cresce o número e a força de grupos que perseguiam

os judeus (“pogroms”). Também nesse período surge um movimento nacionalista judaico

chamado Sionismo, que adota esse nome em referência a uma colina de Jerusalém

(Sion) onde havia sido construído o Templo de Salomão.

Um dos fundadores do movimento sionista foi Theodor Herzl (1869-1904). Herzl

nasceu em Budapeste e estudou em Viena, duas cidades importantes do então Império

Austro-Húngaro. Vinha de uma família de banqueiros, e elaborou sua concepção

nacionalista judaica num livro chamado O Estado Judeu, publicado em 1896. Em 1897,

Herzl e outros adeptos do Sionismo se reúnem no I Congresso Sionista, em Basiléia, na

Suíça. A resolução final do Congresso falava da criação de um “lar nacional para os

judeus”, algo que já estava presente no livro de Herzl, apontando a Argentina ou a

Palestina como os locais mais favoráveis para a realização de tal empreendimento.

A partir daí os sionistas correram o mundo para angariar recursos financeiros e

apoio político para sua proposta. Herzl e seus seguidores vão estabelecer contatos com

os governos da Inglaterra, da Alemanha, com o Império Turco-Otomano, com banqueiros,

industriais e comerciantes judeus e não-judeus, visando fortalecer a idéia da necessidade

de um Estado Judeu. A comunidade judaica européia se divide, e nem todos apóiam a

idéia sionista, mas esse movimento consegue o apoio da burguesia judaica e de setores

importantes da burguesia não-judaica européia.

Em seu livro Herzl já afirmava sua preferência pela Palestina, que chamava de

“pátria histórica” dos judeus, e dizia que o Estado Judeu seria, “para a Europa, um

pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a

barbárie” (O Estado Judeu, p.66). Tal afirmação comprova o vínculo entre sionismo e

imperialismo, pois o objetivo de Herzl era obter o apoio das potências imperialistas que

dominavam o mundo, e em especial o Oriente Médio, para que a Palestina fosse

entregue à burguesia judaica, para que a mesma transformasse esse território numa

fortaleza militar contra o avanço do nacionalismo árabe e de possíveis movimentos

antiimperialistas que cresciam no Oriente Médio do período pós-Primeira Guerra Mundial.

Com a derrota do Império Turco-Otomano na Primeira Guerra Mundial (1914-

1918), França e Inglaterra invadem o Oriente Médio e dividem entre si a região, ficando a

Palestina sob o domínio britânico de 1918 a 1948. Nesse período o movimento sionista

está consolidado, e sua ambição de construir um “lar nacional para os judeus” na

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Palestina ganha ainda mais apoio, devido ao massacre de judeus pelos nazistas na

Europa da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Criam-se, então, as condições

favoráveis para a realização da profecia que Herzl e seus seguidores elaboraram em

1897: criar o “Estado Judeu” em cinqüenta anos.

Durante vários séculos os judeus haviam passado por um processo de

assimilação, ou seja, haviam se integrado na comunidade nacional de vários países.

Trabalhavam, estudavam, participavam da vida política, econômica, social e cultural de

onde viviam, e muitos também se envolviam nas lutas por justiça, democracia, igualdade

e em defesa dos trabalhadores contra a exploração do capital e do capitalismo.

O movimento Sionista divide a comunidade judaica e vai iniciar uma propaganda

em defesa de um nacionalismo burguês conservador e com um conteúdo racista e

antidemocrático. Basta ver a proposta de organização política do Estado Judeu defendida

por Herzl. Diz ele:

Considero a monarquia democrática e a república aristocrática como as mais belas instituições políticas (...) Sou amigo convencido das instituições monárquicas porque elas tornam possível uma política permanente e representam o interesse ligado a conservação do Estado de uma família historicamente ilustre, nascida e educada para reinar (HERZL, 1998, p.111 e 112).

Sua posição elitista e anti-democrática considera “o referendum como absurdo,

pois, em política, não há questões simples que possamos resolver por um sim ou por um

não. Aliás, as massas são ainda piores do que os parlamentos (grifo nosso) (...)

Diante de um povo reunido, não podemos fazer nem política exterior nem política interior

(...) A política deve ser feita do alto” (Idem, p.112).

Essa ideologia conservadora serviu de base para a instauração do Estado de

Israel. Compreender o conteúdo racista e conservador do sionismo é fundamental para

que possamos explicar a posição atual do governo de Israel em relação ao povo

palestino. Três idéias foram fundamentais para convencer milhares de judeus a emigrar

para a Palestina: 1) que a Palestina era uma “terra sem povo” e os judeus eram um “povo

sem terra”; 2) que a Palestina é a “pátria histórica” dos judeus; 3) que os judeus são o

“povo eleito” por Deus. Essas idéias fizeram com que banqueiros e grandes empresários

judeus contribuíssem para a criação da Companhia Judaica, empresa de colonização

com o objetivo de comprar terras para instalar colônias judaicas na Palestina. Durante os

anos 20 e 30 do século XX o crescimento dessas colônias deu início a uma série de

conflitos entre judeus sionistas e árabes-palestinos. Nos anos 40 o movimento sionista

começa a organizar grupos terroristas como o Irgun, Stern e Haganah, que fazem ações

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armadas e atentados contra a população árabe-palestina, com a intenção de intimidá-los

através da violência, fazer com que abandonem seus lares, suas propriedades e suas

aldeias.

O Sionismo se organiza de três maneiras: 1) politicamente: através de várias

organizações nacionais e internacionais que visam buscar apoio político de governos

para seu projeto colonialista; 2) economicamente: buscando recursos financeiros de

empresários e banqueiros judeus e não-judeus para a instalação de colônias na

Palestina; 3) militarmente: organizando grupos terroristas/paramilitares para espalhar o

pânico entre a população árabe-palestina, grupos que, depois de 1948, se transformam

nas Forças Armadas de Israel; 4) culturalmente: através da difusão, pela indústria

cultural, de idéias que buscam justificar a dominação territorial da Palestina e o direito

“histórico e sagrado dos judeus” de ocupar aquela região3.

Em 1947, como resultado de uma articulação política internacional dirigida por

representantes das potências imperialistas (EUA, Inglaterra e França) e do sionismo

internacional, e com o apoio da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e

das recém-criadas “repúblicas socialistas” do Leste Europeu, a Organização das Nações

Unidas (ONU) aprova a Partilha da Palestina, que deveria criar naquela região dois

Estados, um Judeu e um Palestino. O Estado Judeu ficaria com 56,4% do território, o

Estado Palestino ficaria com 42,9%, e 0,7%, correspondente à cidade de Jerusalém,

seria administrado pela ONU, por ser local sagrado para cristãos, judeus e muçulmanos.

Além de receber a maior parte do território palestino, o Estado Judeu ficou com as terras

mais férteis. No ano da partilha (1947), a população árabe-palestina era maioria absoluta

em 15 dos 16 subdistritos existentes. Somente em Jaffá a maioria da população era

formada por judeus. Eram 1.310.000 de árabes-palestinos-muçulmanos e 630.000

judeus. Quem coordenou a votação na Assembléia Geral da ONU foi o diplomata

brasileiro Oswaldo Aranha, ex-Ministro das Relações Exteriores. Orientado pelo governo

brasileiro para acompanhar o voto dos EUA, Aranha adiou por dois dias a votação, para

que o lobby sionista e estadunidense pudessem convencer outros países sobre a

necessidade da criação do Estado Judeu. No dia 29 de novembro de 1947 a votação foi a

seguinte: Favoráveis: África do Sul, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bielo-Rússia,

Canadá, Costa Rica, Checoslováquia, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas,

França, Guatemala, Haiti, Holanda, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nicarágua, Noruega,

3 Um livro interessante sobre a influência do sionismo na cultura e nas idéias é “A indústria do Holocausto –

Reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus”, do intelectual de origem judaica Norman Finkelstein (Editora Record).

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Nova Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, República Dominicana, Suécia,

Ucrânia, União Soviética, Uruguai e Venezuela. Contra: Afeganistão, Arábia Saudita,

Cuba, Egito, Grécia, Iêmen, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Síria e Turquia.

Abstenções: Argentina, Chile, China, Colômbia, El Salvador, Etiópia, Honduras,

Iugoslávia, México, Reino Unido. (GATTAZ, 2002, p. 94 e 95).

Em 14 de maio de 1948 os britânicos deixam a Palestina e é fundado o Estado de

Israel. Desde os primeiros dias de sua existência, o governo sionista impediu a criação do

Estado Palestino, desrespeitando com isso a resolução 181 da ONU, que previa a

constituição de dois Estados. Tem início a Guerra da Palestina, onde de um lado está o

Exército Sionista-Colonialista de Israel e, de outro, a população palestina, que desde esta

época luta pela sua libertação, pela criação de um Estado Laico e Democrático, onde

possam viver em paz judeus, cristãos e muçulmanos, onde seja garantido aos indivíduos

o direito de decidir e manifestar livremente suas posições políticas e/ou religiosas.

Portanto, desde 1948 o povo palestino vive uma tragédia: foram expulsos de suas

terras e de suas casas, e tiveram suas propriedades roubadas ou destruídas pelo

chamado Exército de Defesa de Israel. Vilas e cidades palestinas vêm sendo

constantemente destruídas durante os 67 anos da Nakba (“A tragédia”). Milhares de

pessoas seguiram o caminho do exílio e os refugiados palestinos já chegam a 5 milhões.

E, ainda assim, milhares seguem resistindo dentro dos territórios ocupados por Israel.

Em 1967, o expansionismo israelense se intensifica. Novas colônias e

assentamentos judeus-sionistas são criados em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém, agora

tomada militarmente pelo exército colonialista, em mais um desrespeito às resoluções da

ONU sobre a questão palestina. Além disso, Israel ocupa militarmente as colinas de

Golan, que são da Síria, e a Península do Sinai, do Egito. A única resolução da ONU que

Israel respeitou até o momento foi a da sua própria criação.

Israel segue hoje como o único país do Oriente Médio com armas nucleares, ou

seja, armas de destruição em massa. Fala-se de 200 ogivas. Mordehai Vanunu, físico

nuclear israelense, que denunciou o programa nuclear de Israel, comprovando sua

finalidade bélica, ficou 18 anos na prisão, sendo 16 na solitária, depois foi para a prisão

domiciliar, com proibição de se comunicar com qualquer estrangeiro por quaisquer meios.

Em 2010 voltou para a cadeia, acusado de tentar fazer contato com membros do

Movimento pelo Fim das Armas Nucleares no Oriente Médio.

Muitos líderes históricos do Estado de Israel já manifestaram no passado o

objetivo do movimento sionista em conquistar todo o território da Palestina. Alguns

pronunciamentos confirmam esta finalidade:

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“Jerusalém é o berço do judaísmo e a legítima capital de Israel (...) A partir de

hoje, Tel Aviv deixa de ser nossa capital. Jerusalém será sede de nossa nação” – Ben

Gurion (foi Primeiro Ministro e Ministro da Defesa de Israel), criticando a Resolução da

ONU de 07 de dezembro de 1949, que reafirmava que Jerusalém deveria estar sob o

controle desta organização internacional, como previa o Plano de Partilha de 1947

(NIMITZ, 1974, p. 110).

“Eu sou a favor da partilha do país porque quando nós nos tornarmos uma grande

potência, depois do estabelecimento do Estado, iremos abolir a partilha e nos espalhar

pela Palestina” – Ben Gurion (Gattaz, 2002, p. 104).

“Tal como existe atualmente, Israel é apenas uma parte do ‘Grande Israel’ (Eretz

Israel), e a missão sionista permanece incompleta até que Israel recomponha suas

‘fronteiras históricas’ (...) O mapa de Israel precisa ser modificado. Cabe a vocês lutarem

sem trégua a fim de estabelecer, por invasão ou diplomacia, o Império de Israel” – Ben

Gurion, em discurso para estudantes da Universidade Hebraica (ALENCASTRE, 1968, p.

149 e 150).

“Entre o Mediterrâneo e as fronteiras do Iraque, no que foi outrora a Palestina,

existem agora dois países, um judeu e um árabe, e não há espaço para um terceiro. Os

palestinos devem encontrar a solução para seu problema junto com aquele país árabe,

Jordânia, porque um Estado Palestino entre nós e a Jordânia só pode se tornar uma base

da qual será ainda mais conveniente atacar e destruir Israel” – Golda Meir (foi

embaixadora de Israel na URSS, Ministra do Trabalho, Ministra das Relações Exteriores

e Primeira-Ministra de Israel), demonstrando sua completa oposição à criação de

qualquer “Estado Palestino”, inclusive o sugerido pela ONU (MEIR, 1982, p. 299).

Tais declarações de figuras bastante influentes do movimento sionista

demonstram as intenções dos sucessivos governos do Estado de Israel. Orientados por

idéias colonialistas e racistas, que acreditam num suposto “povo eleito” para governar

toda a Palestina histórica, não fazem concessões quando o tema diz respeito ao direito

do retorno dos refugiados palestinos expulsos em 1948 e 1967, ou quando se exige o fim

de novos assentamentos judeus em território palestino, ou ainda a desocupação e

desmonte de assentamentos que estão em situação irregular e ilegal de acordo com a

Resolução 181 da ONU (Plano de Partilha de 1947).

2.1 A semelhança entre sionismo e nazifascismo

O sionismo é um movimento político nacionalista judaico, antidemocrático,

conservador, colonialista e racista, e queria a expulsão dos árabes da Palestina. O

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nazismo foi um movimento político nacionalista alemão, antidemocrático, conservador,

neocolonialista/imperialista e rascista, e queria a expulsão dos judeus da Alemanha.

Entre 1897 e 1947 grupos armados sionistas se organizam no interior da Palestina. Os

sionistas constróem destacamentos de segurança pública e de defesa, montam um

exército com inúmeras organizações político-militares, que praticam o terrorismo contra a

população civil palestina. Desses grupos terroristas sionistas alguns simpatizavam

abertamente com o fascismo de Benito Mussollini, como o Irgun e o Stern, e continuaram

rendendo homenagens ao governo italiano mesmo depois da aproximação deste com

Adolf Hitler.

No interior do sionismo sempre existiram diferentes correntes políticas e

ideológicas, até mesmo um socialismo étnico-utópico judeu, mas sempre a posição

dominante e hegemônica estimulou e defendeu uma política de apartheid, de limpeza

étnica e de genocídio contra a população árabe-palestina. Existem pessoas e grupos que

hoje se autodenominam “sionistas de esquerda”, mas suas ações, em verdade, revelam

que não passam, em sua esmagadora maioria, da face simpática do sionismo. Tais

indivíduos e movimentos são cúmplices do colonialismo israelense, não tomam nenhuma

iniciativa contra o encarceramento de quase 7 mil palestinos, presos políticos, não se

pronunciam contra o crescente assassinato de civis palestinos, inclusive crianças. A

ideologia do sionismo o aproxima do nazifascismo, e é isso que explica a semelhança

entre as ações nazistas contra os judeus no Gueto de Varsóvia, na Polônia, e as ações

israelenses contra os palestinos no Gueto de Gaza, inclusive com soldados que, em

treinamento, estudaram os manuais do exército alemão sobre o Gueto de Varsóvia.

3. A QUESTÃO PALESTINA E O FIM DA URSS e DO BLOCO SOCIALISTA: início de

um período de defensiva

O fim da URSS e do chamado “Bloco Socialista” tem um profundo impacto nas

relações internacionais e no movimento nacional de resistência palestina. A força da

esquerda no interior da OLP advinha também das relações e do apoio que esse setor

tinha com o “mundo socialista”, e da intervenção conjunta desses países nos diversos

organismos da ONU. Além disso, os palestinos tinham, até 1991, dois grandes aliados de

sua causa no Conselho de Segurança da ONU: URSS e China. As condições eram muito

mais favoráveis para aqueles que defendiam a imediata construção do Estado Palestino.

Com o argumento de que precisa adquirir maior credibilidade e dar mais uma

demonstração de que está disposta a fazer concessões em seu programa original se

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isso, de fato, for contribuir para o avanço do processo de paz, a OLP altera seu estatuto

em 1988, e reconhece o direito do Estado de Israel existir, ao lado de um Estado

Palestino, conforme a Resolução 181, de 1947. Ou seja, a OLP reconhece pela primeira

vez a legitimidade do Plano de Partilha da Palestina, antes apresentado pela organização

como sendo um instrumento da aliança do sionismo com o imperialismo para ampliar sua

influência e exercer a dominação territorial de uma parte estratégica do Oriente Médio.

Esta posição da OLP encontrou resistência entre os próprios palestinos, mas as forças

que se opuseram a tal mudança de posição se encontravam em situação de minoria, e

não conseguiram impedir a vitória dessa proposta, que parte de Yasser Arafat e da

direção majoritária de seu partido, o Fatah.

Os “acordos de paz” firmados com Israel em 1993/1994 alimentaram ilusões e

ignoraram a natureza expansionista/imperialista deste Estado, que negocia e, ao mesmo

tempo, faz crescer o número de colônias sionistas nos territórios palestinos ocupados em

1948 e 1967. Além disso, Israel aplica até hoje uma política de assassinatos seletivos de

lideranças políticas palestinas, e de perseguição e prisão em massa. Um resultado dessa

política de repressão intensa e permanente são os 6 mil presos políticos palestinos,

alguns vivendo nos cárceres israelenses há pelo menos 20 anos. Desses, mais de 700

estão condenados a prisão perpétua. Entre 1993 e 2005, apesar de inúmeras reuniões,

conferências e acordos firmados entre a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e o

governo do Estado de Israel, e apesar das expectativas de uma paz duradoura

apresentadas pelo presidente palestino eleito em 1996 com 87% dos votos, Yasser

Arafat, o que se viu foi uma continuada violação dos direitos humanos e dos direitos

fundamentais do povo palestino, assim como a negação do direito nacional à

independência e à soberania, deixando ainda mais distante o sonho do Estado Palestino

Laico e Democrático.

Os dois signatários dos acordos de Oslo de 1993 morreram. Yitzhak Rabin, pelo

lado israelense, assassinado por fundamentalistas judeus-sionistas em 1995 e Yasser

Arafat, pelo lado palestino, morre em 2004 resultante de problemas de saúde Esses

acordos livraram os palestinos do controle militar israelense em algumas cidades e

vilarejos de Gaza e Cisjordânia, criando para a população uma situação melhor do que a

anterior, com melhores condições para se desenvolver o comércio, a indústria, a

agricultura, educação, a saúde, a cultura e o esporte, enfim, para que seja possível

construir/reconstruir uma vida cotidiana com um mínimo de dignidade, mas essa nova

situação não resolve plenamente grande parte dos problemas econômicos, sociais e

políticos da ampla maioria do povo palestino.

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Os resultados pífios dos acordos e o não cumprimento da quase totalidade dos

termos dos mesmos por Israel levam a uma nova situação de impasse que coloca em

xeque as posições da direção da OLP e da agora chamada Autoridade Palestina (AP). O

não cumprimento de diversas cláusulas dos acordos, entre elas a suspensão da

construção de novos assentamentos sionistas e da demolição de casas palestinas

ajudam a diminuir a credibilidade que parcela do povo palestino depositava no Fatah,

ainda mais com as constantes denúncias – que muitas vezes são comprovadas – de

corrupção de líderes e membros desta organização.

É nessa conjuntura complexa que ganha projeção como uma alternativa política o

partido Hamas. A crise política, ideológica e organizativa dificulta a ascensão da

esquerda palestina (FPLP, FDLP,PPP e outros) como força majoritária no movimento de

libertação nacional. As denúncias de corrupção e de enriquecimento de muitos dos

dirigentes demonstram um processo de degeneração em setores importantes do Fatah.

As eleições de 2006 contribuem para acirrar as disputas internas no movimento da

resistência palestina, com Hamas vitorioso em Gaza e Fatah na Cisjordânia. A esquerda

palestina tem procurado convocar todas as forças progressistas, populares, democráticas

e socialistas a se unir num grande movimento nacional de resistência para desencadear

novamente uma ofensiva contra as medidas do governo de Israel que visam a acelerar o

processo de expropriação de terras do povo palestino, mas parece que todo esse esforço

ainda tem sido insuficiente para alterar a correlação de forças dentro e fora da OLP.

Quando do ataque militar israelense a Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de

2009, essa ideia de unidade nacional das forças da resistência palestina adquiriu grande

importância, mas até agora parece que existem muitos fatores que ainda impedem que

tal proposta volte a ser transformada em realidade. A impressão é que uma unidade

política e programática mínima, em torno de alguns pontos de consenso amplamente

discutidos com o povo palestino, seria fundamental para tentar se desencadear uma nova

ofensiva política, popular e de massas contra o Estado de Israel. A ação unitária de

forças como o Fatah, FPLP, FDLP, PPP, Hamas, Jihad Islâmica e demais organizações e

partidos políticos palestinos poderia fazer ressurgir nas amplas massas populares do

mundo árabe – e no interior de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém – a esperança e a

disposição necessárias para uma nova retomada da ofensiva deste que é, sem dúvida,

um dos mais importantes movimentos de libertação nacional deste início de século XXI.

O que temos certeza para afirmar é que, por mais justo, combativo, corajoso e coerente

que seja um partido ou uma organização da resistência palestina, de maneira isolada não

terá capacidade para impor nenhuma derrota contra o sionismo israelense. Talvez essa

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unidade entre as três correntes políticas da resistência nacional palestina (nacionalismo

laico, nacionalismo islâmico e socialistas/comunistas) possa construir uma frente

antisionista/antiimperialista que obrigue o Estado de Israel a ir para uma mesa de

negociação numa outra correlação de forças, fazendo surgir daí as condições mais

favoráveis para se apresentar propostas mais ousadas que as atuais, que privilegiam o

debate de dois Estados. É possível perceber que sobre este tema existem pelo menos

três posições:

1. Os que defendem a criação imediata de um Estado Palestino Laico e

Democrático na chamada Palestina Histórica (em todo o território considerado

Palestina antes do Plano de Partilha de 1947): nossa impressão é que tal opinião

desconsidera a atual correlação de forças no interior do movimento nacional palestino e

entre os palestinos e o Estado de Israel, fazendo de tal proposta mais um instrumento de

agitação e propaganda do que uma possibilidade real no momento. E os palestinos

sabem que agitação e propaganda são insuficientes para fazer com que triunfem

posições que possam levar a profundas transformações econômicas, sociais e políticas

naquela região. Organizações nacionalistas islâmicas também defendem tal proposta,

com a ressalva de que não se utilizam da expressão Estado Laico, mas simplesmente

Estado Palestino.

2. Os que defendem a posição de dois estados existindo um ao lado do

outro, ou seja, o cumprimento do Plano de Partilha da Palestina elaborado pela

ONU em 1947 (Resolução 181). Essa opinião defende que o Estado de Israel já se

consolidou, e agora, portanto, é necessário construir o Estado Palestino. Tal posição

abandona o programa original da OLP e os princípios que orientaram a resistência

palestina de 1947 a 1988. Entre 1993 e 2005 esta tem sido a proposta do Fatah e outras

organizações palestinas. É o abandono da estratégia e da Carta de fundação da OLP

que, segundo Arafat, tornou-se um documento sem validade, ficou no passado,

“caducou”;

3. Os que defendem que é preciso acumular forças no atual período da

luta nacional palestina. Para estes é necessário se organizar melhor para defender e

fazer avançar as conquistas já obtidas como resultado das lutas e mobilizações sociais e

populares, tentando fortalecer tudo aquilo que tem de positivo nos acordos firmados até

agora, criticar e denunciar aquilo que não é de interesse do povo palestino e, ao mesmo

tempo, tentar consolidar o controle palestino sobre todo o território de Gaza e da

Cisjordânia. Nesse sentido seria importante intensificar as lutas: pela libertação dos

presos políticos, pelo direito ao retorno dos refugiados, pela destruição do “Muro da

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Vergonha”, pelo cumprimento das Resoluções da ONU sobre a Questão Palestina, em

especial sobre o estatuto de Jerusalém, pelo direito dos palestinos de resistir à ocupação

militar israelense por todos os meios de que dispõem, para barrar as construções de

novos assentamentos sionistas, para impedir as demolições de casas de palestinos, etc.

Essa posição política procura fazer destas, e outras, lutas parte de um processo de

acúmulo de forças que vai construindo no cotidiano as condições mais favoráveis para

colocar o movimento nacional palestino na direção do rumo estratégico indicado: um

Estado Palestino Laico e Democrático em toda a Palestina Histórica.

4. CONCLUSÃO

As contradições no interior da resistência e das massas populares palestinas são

tão intensas que é possível identificar adeptos e simpatizantes das três posições dentro

de uma mesma organização política e social. Por exemplo: apesar da maioria da direção

política do Fatah e da OLP defender hoje a construção de um Estado Palestino em Gaza,

Cisjordânia e Jerusalém Oriental, aceitando a ideia de dois Estados, é possível encontrar

dirigentes destas organizações, assim como militantes e setores importantes de sua base

social defendendo a retomada de todo o território palestino, as terras ocupadas em 1948,

em 1967 e as que foram ocupadas após os Acordos de Oslo (1993/1994). Mesmo dentro

do Hamas, que historicamente defendeu a posição de um único Estado Palestino, já

existem lideranças anunciando o reconhecimento do Estado de Israel e sugerindo uma

adaptação e aproximação com a posição majoritária no interior da OLP.

É óbvio que a intensificação da repressão israelense contra os palestinos nos

últimos anos tem criado condições mais favoráveis para a defesa da proposta de

continuar a luta pela construção de um Estado em toda a Palestina histórica. Essa é a

posição hegemônica, por exemplo, entre dirigentes, militantes e simpatizantes da Frente

Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), que nunca abandonou esta orientação

estratégica. É bom lembrar que para amplos setores das massas populares palestinas o

debate sobre a questão de um ou dois Estados é algo completamente secundário, tema

que se concentra mais entre os dirigentes e intelectuais do que uma ideia presente no

cotidiano popular, pois a situação objetiva empurra os palestinos para dedicarem mais

tempo às preocupações mais concretas, como a luta contra a ocupação israelense em

todas as suas formas (econômica, política, social, cultural, financeira, militar). Após

algumas viagens realizadas à Palestina, podemos concluir que as massas estão

distantes desse debate de um ou dois Estados, mas que, quando esclarecidas sobre as

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propostas existentes, tendem a apoiar a construção de um Estado da Palestina em toda a

Palestina histórica, pois só assim terão seus direitos plenamente restituídos, sejam os

que vivem hoje na pátria ocupada, sejam os que vivem na condição de refugiados.

5. BIBLIOGRAFIA

ALENCASTRE, Amílcar (1968). O desafio de Israel, Rio de Janeiro, Editora Leitura. ARAFAT, Yasser (s/d). Porque lutam os palestinos?. Rio de Janeiro: Paralelo. ARAFAT, Yasser e outros (2007). Soberania e Autodeterminação – A luta na ONU: discursos históricos. São Paulo: Expressão Popular. BUZETTO, Marcelo (2016). A Questão Palestina: guerra, política e relações internacionais. São Paulo, Expressão Popular.

GATTAZ, André (2002). A Guerra da Palestina – Da criação do Estado de Israel à Nova Intifada, São Paulo, Usina do Livro. HERZL, Theodor (1998). O Estado Judeu, Rio de Janeiro, Garamond. NIMITZ, Oscar (1974). Ben Gurion, Rio de Janeiro, Editora Três. SAID, Edward (2003). Cultura e Política. São Paulo: Boitempo Editorial. SALEM, Helena (1977). Palestinos: os novos judeus. Rio de Janeiro: Eldorado.

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CRISE DO CAPITAL E AVANÇO DO FASCISMO: Uma análise sobre a atual conjuntura

latino-americana

Daniel Araújo Valença4

RESUMO: No presente trabalho, busco analisar o atual cenário político da América Latina, especialmente no tocante aos países que vivenciaram governos considerados “progressistas” ou “de esquerda”. Partindo do método materialista histórico-dialético, resgato a formação social latino-americana para, a partir daí, vislumbrar os elementos da atual conjuntura no continente e as especificidades do avanço fascista na região. Como instrumentos metodológicos, amparo-me no levantamento bibliográfico. Concluo que houve um avanço de setores de extrema direita em consequência da atual crise estrutural do capitalismo e como contradição intrínseca aos “governos progressistas” ou de “esquerda”.

Palavras-chave: Fascismo, América Latina, capitalismo

ABSTRACT: In the present work, I try to analyze the current

political scenario in Latin America, especially in countries that have experienced "progressive" or "leftist" governments. Starting from the materialist historical-dialectical method, I will recover the Latin American social formation, from there, to glimpse the elements of the current conjuncture in the continent and the specificities of the fascist advance in the region. As methodological instruments, I rely on the bibliographical survey. There has been an advance of sectors of the extreme right, directly linked to the current structural crisis of capitalism and as internal contradiction arising from progressive or democratic-popular governments.

Keywords: Fascism, Latin America, capitalism

1 INTRODUÇÃO

O mundo tem assistido à expansão de manifestações e práticas de cunho fascista

neste princípio de século XXI. Celebrações nazi-fascistas, marchas, perseguições a

imigrantes, leis que atentam contra os direitos humanos e violam direitos de refugiados e

à liberdade de credo. Nesse contexto internacional, a América Latina se destaca por ter

vivenciado a eleição de um presidente da República que, abertamente, reivindica as

4 Professor Doutor da Universidade Rural do Semiárido. [email protected]

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ditaduras militares ocorridas no continente, a tortura como prática legítima de agentes do

Estado e o combate a opositores, especialmente os situados no campo da esquerda.

Para além do Brasil, em outros países também aconteceram episódios de tendências

fascistas, como, dentre outros, na Bolívia, na ação de separatistas do Oriente contra

indígenas vinculados ao MAS-IPSP (Movimiento al Socialismo – Instrumento por la

Soberanía de los Pueblos)5.

No presente trabalho, parto da perspectiva de que o fascismo está diretamente

vinculado à luta de classes e à necessidade de reprodução do capital. Ele não advém,

portanto, nem de uma “histeria coletiva” nem da “perda de referenciais morais” da

sociedade, mas do reflexo das condições materiais de existência ante aos padrões de

sociabilidade de determinado tempo histórico. Dessa maneira, amparo-me no

materialismo histórico-dialético para, ao resgatar a formação social latino-americana,

compreender a especificidade do avanço da extrema-direita no continente.

Como recorte de investigação, debruço-me sobre a América Latina,

especialmente aqueles países que vivenciaram o que se denominou de “governos

progressistas” ou “de esquerda”6, num determinado período, no limiar do século XXI, que

aparentava ser, pela primeira vez, o momento em que as classes trabalhadoras

alcançavam o poder e poderiam reescrever a história.

2 QUAL OLHAR SOBRE A AMÉRICA LATINA?

O continente latino-americano revela particularidades, decorrentes de sua

específica formação social. Ao aqui chegar, espanhóis e portugueses encontraram uma

infinidade de povos, alguns dos quais organizados em sociedade complexas e altamente

acostumadas às particularidades locais. Estavam, contudo, sendo tragados para dentro

de um movimento que, em poucos séculos – considerando, especialmente, o largo tempo

5 Conhecido como “Masacre de Porvenir”, camponeses indígenas vinculados ao MAS-IPSP, partido do

presidente Evo Morales, foram encurralados em uma emboscada e, desarmados, foram torturados e, ao menos quinze, assassinados. Dentre outros materiais disponíveis na internet, recomenda-se o vídeo “La Matanza de Porvenir, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c3yzZtdeM6I>. 6 Enquadro em “governos progressistas” ou “de esquerda” aqueles que se constituíram em respostas

populares às políticas neoliberais da década anterior. Há debates sobre a conveniência de separá-los em “progressistas” (ou, menos comprometidos com o intento de profundas transformações em seu país) e de “esquerda” (aqueles que conduziram processos mais radicalizados, como os da Venezuela e Bolívia) – para tanto, ver Pomar (2014), Stédile (2016) e Katz (2016), porém, os considero dentro do mesmo processo. A diferença de intensidade em seus processos de transformação, contudo, levará a diferenças em suas conjunturas internas atuais.

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histórico da humanidade – iria alterar toda a dinâmica do globo. É com o capitalismo que,

finalmente, o mundo pode vir a ser chamado “mundo”. Por ser de sua natureza a

expansividade ilimitada (MARX, 2013), o capitalismo levou os diversos povos e nações a

se inserirem em um movimento mundial puxado, por óbvio, pelas potências que, à época,

estavam liderando a consolidação deste modo de produção.

Desta maneira, o continente latino-americano estaria condenado a inserir-se neste

sistema de maneira a fornecer matérias-primas e possibilitar o desenvolvimento do

capitalismo comercial. Para tanto, o caminho seria a superexploração do trabalho,

indígena e negro, conformando uma sociedade fundada na desigualdade, racismo e

patriarcado, bem como de ausência democrática e inserção dependente no capitalismo

internacional.

Sendo assim, se os valores liberais traduziam na Europa do século XIX as

mudanças concretas em suas relações sociais de produção, no continente latino-

americano a superação do período colonial não veio acompanhada da transformação de

suas relações sociais de produção.

Se bem é verdade que as lutas pela libertação (1808-1825) inspiravam-se em

valores republicanos e liberais, o que se sucedeu no continente foi a tomada do poder

político por oligarquias locais que provocaram não apenas a dissolução do império

espanhol em mais de uma dezena de países, mas também assegurou que as condições

concretas de reprodução social das pessoas não se alterassem. O assalariamento,

relação social própria ao capitalismo, não se universalizou, e a pongueaje e outros

métodos semi-feudais de exploração do trabalho permaneceram como prática comum.

Já no século XX, enquanto na Europa as classes burguesas passaram a exercer

seu domínio não mais através da coercitividade, e sim, pela hegemonia, como percebera

Gramsci (2006), na América Latina, com frequência, suas oligarquias não buscaram

alcançar o consentimento das demais camadas da população.

No mesmo sentido, voltando-se a essa realidade, mas ainda mais intensa pela

especificidade boliviana, Zavaleta-Mercado (2013) cunhou o termo “Estado Aparente”

para referir-se a um Estado que não pretende tornar os interesses de suas classes

dominantes em universais. Para ele, o Estado boliviano existia apenas naquelas

territorialidades onde seria possível reproduzir o capital, não sendo necessário sua

existência, presença e domínio em todo o território. Não à toa, as pessoas

desenvolveram métodos autônomos auto-organizativos – como, por exemplo, através dos

sindicatos –, bem como demandas separatistas. Desta maneira, ao não consentir ante

aos interesses e valores dos grupos dirigentes, as classes subalternas destes países –

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em geral, também indígenas – contribuíram para fossem erguidas frágeis ordens estatais,

em que revoluções e golpes de Estado foram a regra7.

É a partir desta formação social que a América Latina vivenciaria ciclos ao longo

do século XX. Influenciada pela crise internacional do capitalismo de 1929, o continente

entrou em um ciclo populista entre as décadas de 1940 e 1960. É neste momento que há

um princípio de modernização – e aqui utilizo o termo como adaptação às condições

modernas de produção, tal como o assalariamento e a previsão de direitos trabalhistas –

de alguns dos países do continente. Ocorre que as burguesias do período não estavam

dispostas a se afirmarem enquanto classes dirigentes e a apostar numa inserção não

dependente em âmbito de capitalismo global, assim como outrora não estiveram

dispostas as oligarquias locais.

Por outro lado, a combinação inserção dependente no capitalismo internacional e

ampliação de direitos das classes trabalhadores, perfaz um somatório irrealizável. A

tendência à queda da taxa de lucro e a necessidade permanente de sua reversão, leva

ao aguçamento da contradição entre capital e trabalho, contradição não superável em

cenário de manutenção da inserção dependente do capitalismo internacional.

Dessa maneira, o ciclo que se seguiu, o das ditaduras militares entre as décadas

de 1960 e 1980, representou um novo momento de expansão da superexploração da

força do trabalho, reafirmando a inserção dependente de tais países no capitalismo

internacional. A depreciação das condições materiais de reprodução social levou à perda

de apoio político por parte dos regimes ditatoriais, que tampouco foram sucedidos por

alternativas populares. As esquerdas, fragilizadas com os processos de

desmantelamento, torturas e assassinatos promovidos pelas ditaduras militares, não

conseguiu viabilizar-se como alternativa política em nenhum dos países que saía do

longo ciclo de violência estatal.

O continente, então, entrou no neoliberalismo. Aqui, já não foi a subsunção real ao

capital (GARCÍA-LINERA, 2009) que promoveu a obtenção de altas taxas de lucros, mas

um processo de privatizações, financeirização da economia e expansão do capital para

novas áreas, processo denominado por David Harvey como “acumulação por

despossessão” (HARVEY, 2011).

7 Rivera-Santiváñez (2008) fala sobre algo como 200 golpes de Estados em toda a história republicana

boliviana. Hobsmawm (2017) aponta o fenômeno da La Violencia, uma guerra civil que ocorreu na Colômbia,

após o assassinato de um líder liberal reformador, bem como das mais de vinte experiências de guerrilhas no continente e outros fatos históricos que apontam para a inexistência de hegemonia por parte das classes dirigentes no continente em amplos períodos de suas histórias republicanas.

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O neoliberalismo iria intensificar o processo de depreciação das condições de vida

no continente e, após um período de reorganização popular, a quase cem anos após o

início do ciclo populista, ocorreria a ascensão das classes subalternas, seja apresentando

projetos políticos autônomos das classes trabalhadoras, como na Bolívia (VALENÇA,

2018), seja mediante unidade com setores da burguesia local (como no Brasil). Por outro

lado, as contradições intrínsecas a tal período possibilitariam a ascensão de ações

políticas de caráter fascista, como abordarei na próxima seção.

3 AMÉRICA LATINA: GOVERNOS POPULARES E A RESPOSTA FASCISTA

Apontei como elementos da formação social latino-americana a superexploração

da força de trabalho, a inserção dependente no capitalismo internacional e a ausência

democrática. Tal superexploração teve um recorte racial, característica distintiva da

exploração do trabalho no novo continente, bem como uma perspectiva patriarcal. Tais

fatores perpassaram as várias épocas do continente e permaneceram presentes em

pleno século XXI.

Ocorre que, com a ascensão de governos progressistas e de esquerda, houve

uma redistribuição de excedentes inédita na história deste continente. Criaram-se,

também, instrumentos de sopesamento dessa dependência ante as potências mundiais e

fortalecimento das relações sul-sul – como a “Unasur” e o “Banco do Sul”, ou a auditoria

da dívida no Equador. Estas e outras medidas8 implicavam na construção de alternativas

à inserção dependente no capitalismo internacional, especialmente no tocante à

influência norte-americana9.

Quanto a reprodução da força de trabalho e redistribuição de excedentes, houve

políticas de valorização dos salários mínimos locais, políticas de transferência de renda,

bem como políticas públicas de acesso à educação, saúde dentre outros direitos10.

Por outro lado, em 2008, o capitalismo passou por outra potente crise cíclica,

requerendo novo avanço do capital sobre o trabalho. Se a década de 2000 se

8 Para leituras de estudos detalhados sobre a realidade latino-americana em termos socioeconômicos, ver as

publicações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL, disponíveis em: < https://www.cepal.org/pt-br/cepal-0>. 9 Sobre o imperialismo norte-americano na região, intensificado no século XX, ver HOBSBAWM, Eric. Viva la

Revolución: a era das utopias na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 10

Políticas de transferência de renda e reajustes dos salários mínimos locais ocorreram em todos os governos considerados como progressistas ou de esquerda. Se, no Brasil, o 36 milhões de pessoas saíram da pobreza em doze anos de Bolsa-família, é na Bolívia onde a redistribuição mostrou-se mais sólida, a partir de mecanismos de compensação de trocas entre produtores diretos e mercado realizados por “empresas sociais”, empresas estatais criadas para impulsionar a economia comunitária (VALENÇA, 2018).

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caracterizou pela ascensão de governos vinculados às classes subalternas e por

medidas que iam na contramão do modelo neoliberal, a década seguinte se notabilizaria

pelo movimento oposto.

Em verdade, o avanço na redistribuição dos excedentes se, de um lado,

aumentou mercados internos de consumo, de outro, reduziu a taxa de lucro; se

representou expansão para alguns setores do capital produtivo – tais como construção

civil, indústria naval, agroindústria – mostrava-se desinteressante ao capital financeiro e

às multinacionais.

A reação do capital, então, veio de maneiras diversas em todo o continente.

Honduras vivenciou um golpe de Estado de caráter militar; Brasil e Paraguai, golpes de

Estado de caráter judicial-parlamentar. Venezuela, Bolívia e Nicarágua foram alvo de

tentativas de golpe de Estado, mas, cuja essência estava na deslegitimação da

institucionalidade constituída. Neles, forças armadas e sistemas de justiça permaneceram

fiéis à ordem constitucional. Seja nestes países, seja no Brasil, país de Estado ampliado,

em que, para além do aparato repressivo estatal há diversas camadas no interior da

sociedade civil que inviabilizam uma tomada violenta do poder, mostrou-se necessário

mobilizar amplas massas para deslegitimar os processos políticos em curso.

Com as melhorias nos padrões de reprodução social, angariar essa massa para

mobilizar-se parecia, inicialmente, uma causa perdida. Ocorre que, aqueles elementos

fundantes da sociedade latino-americana, os ranços coloniais, mostraram-se como

alternativas para a cooptação de setores, especialmente urbanos, por mais que se

verbalizassem ao redor de outras pautas. Dessa maneira, apesar de focada no tema

“corrupção”, foi com o “kit gay” no Brasil e com a lei de identidade de gênero na Bolívia

que se mobilizou amplos setores ao redor de uma pauta conservadora. Na Venezuela,

com a recusa das forças armadas de abraçarem a proposta de ruptura, foram criados

grupos civis que praticaram inúmeros atentados ao longo dos últimos anos. Partindo do

princípio de que o chavismo é em si corrupto e deve ser eliminado, simpatizantes do

governo ou mesmo trabalhadores ou lumpens foram incendiados em diversas ocasiões.

Na Bolívia, durante a tentativa de golpe de Estado em 2008, no massacre contra

camponeses indígenas em Porvenir, índios eram torturados ao som de “masistas tem de

morrer”.

Tais experiências da atualidade recuperam alguns dos elementos principais do

fascismo. A propaganda pela eliminação do adversário político, a perseguição fundada na

cor da pele, orientação sexual, orientação política de esquerda, classe social; a

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disseminação de grupos violentos ou armados paralelas às forças coercitivas estatais e,

frenquentemente, contando com sua aquiescência.

Em verdade, em nenhum destes países pode-se dizer que esteja em curso uma

experiencia fascista. Porém, é perceptível um avanço do capital sobre o trabalho11, a

partir de táticas distintas e específicas a cada realidade nacional. E, justamente a partir

deste elemento, é possível retornar à essência do fascismo, quando do seu

desenvolvimento em princípios da década de 1920. À época, as classes dirigentes

italianas perderam as condições objetivas de superar a crise estrutural do capital. Sendo

assim, ante ao avanço das classes trabalhadoras, dos conselhos de fábrica e da

possibilidade de a classe ir além de reformar o sistema e agir politicamente para

suplantar o sistema, o fascismo se mostrou como única alternativa viável para a

manutenção da relação capital x trabalho. Além disto, ao não existir a possibilidade de

superação da crise a partir de rearranjos dentre as classes dirigentes, o fascismo

distingue-se também por outro caractere: seu núcleo dirigente ascende do próprio interior

das classes subalternas. As elites dirigentes não mais conseguem dirigir, mas as classes

subalternas tampouco conseguem impor seu projeto político autônomo. O fascismo não

apenas se imiscui nas massas, mas eleva lideranças dessas massas a posições políticas

no interior do Estado, ou seja, os grupos dirigentes agora, saem do próprio interior das

classes trabalhadoras, porém não mais defendendo um projeto de emancipação das

mesmas.

Nos países sob governos que não realizaram profundas reformas no Estado e

disputa de hegemonia na sociedade civil, como no Brasil, a extrema direita mostrou-se

fundamental para a execração e deslegitimação das esquerdas. Inicialmente, as diversas

frações das classes proprietárias não visavam coloca-la no governo. A partir do momento

em que as antigas elites dirigentes mostraram-se inviáveis, ocorreu a adesão àquela. Já

na Venezuela, ações fascistas são ainda a esperança das classes proprietárias na

possibilidade de desestabilização interna, assim como a intervenção militar externa.

4.CONCLUSÕES

11

A similaridade das reformas trabalhistas brasileira e argentina (em tramitação no legislativo) apontam para isto; a tentativa de converter o sistema de repartição, da seguridade social brasileira, em um modelo de capitalização, semelhante ao chileno, também indicam este caminho.

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O crescimento de manifestações fascistas na América Latina tem ensejado

debates dos mais diversos sobre suas origens e causas. No presente trabalho, resgatei a

formação social do continente – ou seja, aquelas características fundantes de

determinada sociabilidade, que expressam não apenas uma determinada época, mas os

seus pilares – para, a partir daí, analisar a realidade atual.

Como apontei, a América Latina se caracteriza por uma superexploração do

trabalho, decorrente na necessidade do capitalismo mercantil de expandir-se pelo globo.

Tal fato se deu com as especificidades de uma singular colonização, a partir da

subjugação de povos indígenas e africanos, além de estruturar-se ao redor do

patriarcado. Tais elementos, que formaram colônias estratificadas, hierarquizadas e de

desigualdade ímpar, permaneceram, mesmo após o período colonial. As formas políticas

alteraram-se, as relações sociais reais não.

As manifestações fascistas no continente recuperam esses tipos constitutivos de

nossa sociabilidade e, a partir deles, consegue movimentar massas, inclusive de setores

das classes subalternas. Mas, por outro lado, a batalha não é apenas cultural ou

simbólica; ela responde a uma necessidade de avanço do capital sobre o trabalho.

Impossível seria materializar esta ofensiva negando direitos e conquistas; mais fácil

mostrou-se reviver antigos fantasmas que ainda rondam o continente. Não para

transformá-lo e, sim, para conserva-lo nos moldes de uma sociedade colonial.

O avanço dos setores de extrema direita responde à atual crise estrutural do

capitalismo e como contradição intrínseca aos processos políticos de transformação

vivenciados no continente. Naqueles países onde buscou-se transformar os pilares da

sociedade, esta extrema direita encontrou barreiras até agora não superáveis. Em outros,

como no Brasil, ao optar-se por não disputar hegemonia, abriu-se as alamedas para a

passagem dos aspirantes ao fascismo.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GARCÍA-LINERA, Álvaro. Forma valor y forma comunidad: aproximación teórica-

abstracta a los fundamentos civilizatorios que preceden al Ayllu Universal. Muela del

Diablo editores/Clacso/Comuna: La Paz, 2009.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume I. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2006.

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HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo,

2011.

KATZ, Claudio. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo. São Paulo:

Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016.

LA MATANZA DE PORVENIR. Produção: Futurovídeo, 2009. Documentário, 27 min.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c3yzZtdeM6I>. Acesso em 16 de abril

de 2019.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do

Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

POMAR, Valter. A Estrela na janela: ensaio sobre o PT e a situação internacional. São

Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014.

VALENÇA, Daniel Araújo. De Costas para o Império: o estado plurinacional da

Bolívia e a luta pelo socialismo comunitário. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2018.

RIVERA-SANTIVÁÑEZ, Jose Antonio. La evolución politíco-institucional en Bolivia entre

1975 a 2005. Revista Estudios constitucionales, Talca, año 6, n. 8, p. 173-210, 2008.

STÉDILE, João Pedro. Uma interpretação necessária sobre a luta de classes em nosso

continente In: KATZ, Claudio. Neoliberalismo, neodesenvolvimentismo, socialismo.

São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016.

ZAVALETA-MERCADO, René. Obra completa: Tomo I, Ensayos 1957-1974. La Paz,

Plural Editores, 2013.

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O BRASIL DE VOLTA AO PASSADO: notas e expressões do Estado pós-eleições 2018

Ilse Gomes Silva12

Resumo O artigo analisa as transformações do Estado brasileiro pós-eleições 2018 que resultaram em um grande retrocesso político e social que atinge diretamente o regime político democrático e as condições de sobrevivência da maioria da população brasileira. A intenção é apresentar algumas medidas do governo do presidente Jair Bolsonaro que consideramos representativas da estratégia de desmontar o arcabouço jurídico-político de liberdade de organização política conquistado pelas lutas sociais dos trabalhadores a partir de meados da década de 1980 e que indicam que a cada momento avançam as medidas de exceção. Palavras Chaves: autoritarismo, governo, democracia Brazil Back in the Past: Notes and expressions of the post-election state 2018

The article analyzes the transformations of the Brazilian state after the 2018 elections that resulted in a great political and social regression that directly affects the democratic political regime and the survival conditions of the majority of the Brazilian population. The intention is to present some measures of the government of President Jair Bolsonaro that we consider representative of the strategy to dismantle the juridical-political framework of freedom of political organization conquered by the social struggles of the workers from the middle of the decade of the 1980 and that indicate that at every moment the measures of exception advance. Keywords – authoritarianism, government, democracy

INTRODUÇÃO

Com a força de destruição de uma barragem de rejeitos da VALE como a de

Brumadinho e Mariana13 a classe dominante brasileira se empenha em destruir todo o

12

Ilse Gomes Silva, professora titular da Universidade Federal do Maranhão da área de Ciência Política, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. [email protected] 13

O rompimento das barragens de Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019 é o mais cruel exemplo da ganância do capital. A mineradora VALE do Rio Doce não se importou com o meio ambiente tão pouco com as vidas das pessoas que morreram pelo rompimento dessas barragens de rejeitos da mineração do ferro. Os danos são irreparáveis: em Mariana morreram 19 pessoas e mais 200 famílias foram afetadas além da

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legado das lutas democráticas dos anos 1980 e, mais recentemente, dos governos do

Partido dos Trabalhadores nos anos de 2002 a 2015. O ensaio desse processo foi

iniciado nas manifestações de 2013, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em

2016 foi a encenação do Golpe de Estado atualizado para as configurações do século

XXI e o governo ilegítimo de Michel Temer foi a preparação para dimensionar a força da

classe dominante em radicalizar as reformas neoliberais e conservadoras. Nesse

processo, a fração de extrema direita, representada pela candidatura de Jair Bolsonaro,

ampliou seu poder popular e garantiu a hegemonia de sua agenda sob as outras frações

da classe dominante e demais classes sociais.

A vitória do candidato do PSL à presidência da república inaugura uma nova

etapa de dominação de classe, aprofundamento das reformas neoliberais ao nível mais

perverso do capitalismo, novos e desafiadores enfrentamentos da classe trabalhadora. O

que está em jogo é o legado da civilização, mas o que se apresenta no horizonte é a

barbárie. As regras do jogo foram usurpadas pela extrema direita que tripudia das frágeis

instituições democráticas construídas recentemente pela histórica luta dos trabalhadores

em defesa da humanidade, do meio ambiente e dos direitos sociais e humanos.

Parte do eleitorado que garantiu a vitória de Bolsonaro foi às ruas, amparados

pelo regime democrático, clamar pela volta dos militares ao governo federal e pela

“intervenção militar já”. Os traços desse cenário foram desenhados desde 2013, quando

o Brasil vivenciou as várias manifestações de rua em todo o território nacional, que no

início apresentou um leque de palavras de ordem amplo, mas que se afunilou na

bandeira de combate a corrupção.

As manifestações de 201314 deram muitos frutos, uma boa parte amargo para os

setores de esquerda e respectivos movimentos sociais tanto sindical quanto popular.

Desses frutos amargos podemos destacar a emergência de movimentos sociais de direita

como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Movimento Vem Prá Rua, o Movimento S.O.S

Forças Armadas e a ascensão de lideranças partidárias que, a despeito de proclamarem

não serem políticos tradicionais, se elegeram com uma plataforma de campanha

ancorada na tradição dos costumes e da família, em princípios religiosos

neopentecostais, em propostas de reformas econômicas e sociais de regressão dos

direitos trabalhistas e sociais. O que se percebe é a reprodução de uma prática da velha

política tradicional ocultada por um discurso que ressalta o “novo” sendo que o “velho”

morte do rio Doce. Em Brumadinho o número de mortes cresceu, até o momento são cerca de 157 pessoas

e mais de 182 desaparecidos além da morte do rio Paraopeba. 14 Sobre as manifestações de 2013 vários artigos foram publicados destaco o dossiê da revista Lutas Sociais

n. 31 e o site marxismo21

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permanece na origem dos candidatos, representantes de famílias tradicionais na política

e de partidos políticos que apenas trocaram de sigla15.

Conforme tenho escrito, a estratégia da classe dominante tem sido vitoriosa e

audaciosa apesar da resistência dos movimentos sociais e partidos de esquerda.

Consistiu em articular seus representantes no interior do aparelho de Estado no

executivo, legislativo e judiciário e nos aparelhos ideológicos de Estado, como a grande

mídia e instituições patronais como a FIESP para uma ação conjunta de intervenção nas

esferas políticas de modo a impor as reformas econômicas e sociais conservadoras,

retirar do governo federal o Partido dos Trabalhadores e derrotá-lo nas demais unidades

da federação.

A agenda conservadora é ampla e reconfigura a relação de forças entre capital/trabalho ao impor, por um lado, à classe trabalhadora um retrocesso às conquistas mais elementares de proteção social à ação predatória do capital. Por outro lado, o capital através dos seus representantes no Congresso Nacional e no Judiciário, garante o marco legal necessário para ampliar seus domínios e sua lucratividade. (SILVA, 2018: 505).

O cenário do Brasil pós-eleições de 2018 se aproxima do enredo de um filme de

volta ao passado. O presidente eleito em 2018, Jair Bolsonaro, nunca escondeu sua

admiração por figuras que estão no panteão da tortura do período da ditadura civil-

militar16 do mesmo modo que não poupa elogios aos regimes militares do Brasil e em

outros países da América Latina. Seu entusiasmo pelo legado da ditatura civil militar só

fica eclipsado diante da admiração submissa aos Estados Unidos da América. Os

exemplos das situações de exceções são grandes. Em todos os ministérios encontramos

os retrocessos às conquistas expressas na Constituição Federal de 1988, em uma clara

identificação com os interesses de ruralistas, da indústria das armas, do capital bancário,

de grupos religiosos, homofóbicos e racistas.

15 Alguns partidos políticos usaram como marketing para burlarem o desgaste com os eleitores a estratégia

de mudaram de nome ou retirarem a palavra “ partido” para legitimar o discurso de uma nova política, mascarando que seus membros e seu programa permanecem originários dos partidos de prática tradicional. Podemos listar, dentre eles, o Partido da Frente Liberal (PFL) que hoje chama-se Democratas (DEM); o Partido Trabalhista do Brasil (PTdoB) transformou-se em Avante; o Partido Trabalhista Nacional (PTN), com 72 anos de existência, agora chama-se Podemos. Tenha mais informações emhttps://www.cartacapital.com.br/politica/por-que-os-partidos-politicos-querem-mudar-de-nome/. Consultado em 03/03/2019. 16

Em 2016, o então deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e seu filho Eduardo Bolsonaro (PSC/SP) votaram pelo encaminhamento do processo de impeachment de Dilma Rousseff ao senado, na ocasião dedicaram seu voto aos militares de 1964 e ao Coronel Carlos Alberto Ustra, conhecido torturador no período da ditadura civil militar que foi responsável pelas sessões de tortura da ex-presidente. “Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, o meu voto é sim”. https://exame.abril.com.br/brasil/eduardo-bolsonaro-celebra-impeachment-agradecendo-torturador/

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Nesse artigo, vamos nos dedicar em algumas medidas do governo de Bolsonaro

que consideramos representativos da estratégia de desmontar o arcabouço institucional

de liberdade de organização política e que indicam que a cada momento avançam as

medidas de exceção.

2. GOVERNO BOLSONARO: liberdades políticas e direitos humanos ultrajados.

O presidente eleito em 2018 executa a agenda conservadora de campanha sem

muitos retoques e aprimora as medidas de desmonte dos direitos políticos e sociais

iniciada na gestão de Michel Temer, quando assumiu a presidência da república após o

golpe de 2016. A falta de legitimidade de Temer e a resistência popular que pressionou

os parlamentares em ano eleitoral, não permitiram que a agenda conservadora fosse

implementada em sua totalidade. Entretanto a vitória nas urnas conferiu a Jair Bolsonaro

a legitimidade necessária para tomar nas primeiras horas de seu governo as medidas

essenciais para acelerar a implementação da agenda conservadora.

O governo Bolsonaro tem um perfil militarizado, fascista, racista, homofóbico e

ultraliberal. Esse perfil está expresso na presença de militares em cargos estratégicos do

primeiro, segundo e terceiro escalão, na militarização e criminalização da questão social

e dos movimentos sociais e na política econômica e agenda conservadora de reformas.

Para Iasi (2019) a aparência burlesca e imbecilizada do governo constitui uma eficiente

estratégia para mascarar os interesses do capital que miram as áreas lucrativas que

ainda estão sob a responsabilidade do Estado. Nesse bloco no poder estão empresários

da área da saúde e da educação, indústria farmacêutica, banqueiros, ruralistas e

industriais que se beneficiam com as reformas neoliberais como a reforma trabalhista e

da previdência dentre outras medidas do governo.

Do ponto de vista da presença dos militares pode-se afirmar que este é o governo

de maior presença de generais em pontos estratégicos e gerenciando altos orçamentos

desde a redemocratização. A concepção militarizada e conservadora da sociedade

orienta a política do governo federal e para ser efetivada necessita do controle militar de

diversas áreas como comunicação, hidrelétricas, gestão hospitalar, Correios, Caixa

Econômica e a FUNAI, dentre outras. Estão presentes em 8 ministérios dos 22 definidos,

e naqueles que são comandados por civis, os militares estão em cargos importantes de

comando como por exemplo o Ministério da Educação que tem como assessor especial o

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coronel do exército Robson Santos da Silva. Merece destaque não apenas a presença

dos militares em posto de comando do governo mas também o alinhamento com as

políticas ultraliberais de privatização de empresas estratégicas que estão sob o seu

comando, a exemplo da Petrobras e Eletrobrás.

Os tentáculos da presença dos militares se estendem para as demais unidades da

federação e para amplos setores da sociedade civil, principalmente para a área da

educação. O governo tem elogiado e priorizado as escolas militares na mesma medida

que critica as universidades e o ensino público ao extinguir pastas importantes de

projetos de alfabetização e diversidade de conteúdo e impulsionar o projeto da Escola

sem Partido. O Ministro da Educação exigiu que professores, alunos e funcionários

ficassem perfilados diante da bandeira brasileira, cantassem o hino nacional e

reproduzissem o slogam de campanha de Jair Bolsonaro17 nas escolas públicas e

privadas, no mesmo momento que anunciava uma Lava Jato da Educação com a

justificativa de haver indícios de corrupção na área da educação, principalmente nos

programas das gestões do PT como o Programa Universidade para Todos (ProUni),

Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Empego (Pronatec), dentre outros.

Essa força tarefa contra o ensino público, a autonomia das universidades e censura aos

professores foi subscrita pelos ministros Sérgio Moro, da Justiça, Wagner Rosário da

Controladoria Geral da União, por André Mendonça, Advogado-geral da União.

A face racista e homofóbica foi exposta na longa trajetória parlamentar de

Bolsonaro, reforçada na campanha e consolidada na atual política governamental,

principalmente a direcionada para os direitos humanos e para a educação. Uma das

primeiras medidas de Bolsonaro foi modificar o Ministério dos Direitos retirando o seu

conteúdo ao transformá-lo em Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos18 com

indicações antifeministas e religiosas enquanto esvaziava pastas e programas de apoio e

proteção aos grupos LGBTI. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares

Alves, pastora ligada ao ex-senador Magno Malta (PR/ES) tem sido alvo de muitas

críticas pelas suas declarações conservadoras, preconceituosas e questionadoras sobre

as principais conquistas do movimento de mulheres. A forma como tem tratado o

aumento de casos de violência contra a mulher reforçando comportamentos arcaicos de

17

MEC envia slogan de campanha de Bolsonaro para ser lido em todas as escolas https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/25/politica/1551131887_454015.html. Consultado em 08/03/2019. Kroton e Estácio caem mais de 5% na Bolsa após Bolsonaro anunciar 'Lava Jato da Educação' https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/02/kroton-e-estacio-caem-6-na-bolsa-apos-bolsonaro-anunciar-

lava-jato-da-educacao.shtml. Consultado em 08/03/2019 18

Para um quadro do ataque do governo Bolsonaro aos direitos humanos pode-se consultar Os ataques aos direitos humanos no 1º mês do governo Bolsonaro. https://vladimirherzog.org/os-ataques-aos-direitos-humanos-no-1o-mes-do-governo-bolsonaro/. Consultado em 09/03/2019.

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que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” não combate as bases culturais que

alicerçam a violência contra as mulheres.

A ministra também é consignatária da campanha contra a chamada ideologia de

gênero que estaria presente nas escolas públicas através do ensino de gênero no

conteúdo das escolas do ensino médio. Na compreensão da ministra “enquanto meninos

acharem que são iguais a meninas, como se pregou no passado algumas ideologias, ‘já

que a menina é igual, ela aguenta apanhar’. O Ministério também foi notificado pela

Procuradoria Federal do Direito do Cidadão e pelo Conselho Nacional de Direitos

Humanos para dar explicação sobre a paralização de alguns conselhos como Conselho

Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Comitê Nacional de

Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR) , Comitê Nacional de Respeito à Diversidade

Religiosa (CNRDR), Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o

Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI)19

A cruzada religiosa e política contra o grupo LGBT tem em Jair Bolsonaro o

principal militante. Desde a campanha à presidência que Bolsonaro postava nas redes

sociais ou não disfarçava sua homofobia e transfobia. Em fevereiro 2019, por ocasião do

julgamento do STF das ações movidas pelo Partido Popular Socialista (PPS) e pela

Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT)20 que solicitavam a

criminalização da homofobia, Bolsonaro reafirmou sua posição ao reproduzir no twitter

um trecho da defesa do advogado-geral da União, André Luiz de Almeida Mendonça

quando sustentava que “Não há na Constituição a obrigação de que o Poder Legislativo

criminalize a "homofobia" e, dessa forma, não é possível citar mora legislativa para

justificar o uso da ferramenta do mandado de injunção”21 Enquanto isso o Brasil figura

como um dos países mais perigosos para esses grupo. Segundo dados da ONG

Transgender Europe (TGEU), de 1 de janeiro a 30 de setembro de 2018, foram

assassinadas 271 pessoas transgênero em 72 países, sendo o Brasil com o maior

número de casos com 125 pessoas22.

A política de controle e criminalização da atuação política dos movimentos das

classes trabalhadores está contida no pacote anti-crime do ministro da Justiça, Sérgio

19

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,procuradora-pede-esclarecimentos-a-damares-por-paralisacao-de-conselhos,70002748458. Consultado em 09/03/2019 20

Para Bolsonaro, homofobia não precisa ser crime no país que mais mata LGBT. https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/383783/Para-governo-Bolsonaro-homofobia-n%C3%A3o-precisa-ser-crime.htm. Consultado em 13 de fevereiro de 2019 21

Para AGU, cabe ao Congresso decidir se criminaliza homofobia.

www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/721821. Consultado em 13 de fevereiro de 2019.

22 http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-11/de-janeiro-setembro-271-transgeneros-

foram-mortos-em-72-paises. Consultado em 21 de março de 2019

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Moro, e no monitoramento dos militares sobre setores como a Igreja Católica e entidades

de apoio aos indígenas e quilombolas. Por ocasião da preparação do Sínodo sobre a

Amazônia, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) na figura do Ministro General

Augusto Heleno, afirmou que a Igreja Católica não estava sendo investigada pela

Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) mas manifestou uma “preocupação funcional”

com os pontos de pauta do evento que entre outras coisas discutirá sobre a situação dos

povos indígenas e quilombolas23. O governo enxerga como ameaça a segurança

nacional a organização política das comunidades indígenas e aponta a Igreja Católica

como responsável por esse processo, principalmente pela atuação do CIMI – Conselho

Indigenista Missionário.

O pacote Anticrime24 objetiva endurecer a ação governamental no combate à

corrupção, ao crime organizado e a crimes violentos e tem recebido muitas críticas de

juristas e de militantes da esquerda. Os pontos que nos interessa comentar são os que

dizem respeito ao controle das entidades populares pela criminalização das

manifestações de oposição ao governo e a liberalização da violência policial por meio do

alargamento do artifício da legítima defesa em situação de “medo, surpresa ou violenta

pressão”25

O controle das entidades sindicais e populares ocorre principalmente pela

intervenção articulada do Ministério da Justiça no enquadramento das lideranças na

concepção de organização criminosa e no modo de financiamento dos sindicatos. O

conceito de organização criminosa da Lei nº 12.850/2013 desde a sua promulgação tem

sido utilizado para criminalizar militantes e organizações que fazem manifestações de

resistência ao governo. Martins at all em matéria do Brasil de Fato o pacote do Ministro

Sérgio Moro “é um demonstrativo do aguçamento de conflitos e dos mecanismos

existentes para enquadrar lutas sociais como crimes, de transformar conflitos políticos em

casos de polícia” de modo a “impor uma (já alta) pena mínima de 6 anos e uma

escandalosa pena máxima de 30 anos de reclusão à hipótese em que, da resistência,

23

O Sínodo da Amazônia acontecerá em outubro de 2019, em Roma e tem como objetivo discutir a Pan-Amazônica em seus aspectos de preservação das florestas e proteção das comunidades indígenas. No Brasil a responsabilidade pela discussão da pauta do Sínodo é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. O governo Bolsonaro já manifestou preocupação com a presença da Igreja Católica junto à comunidades indígenas. https://oglobo.globo.com/brasil/gsi-admite-preocupacao-mas-nega-acao-contra-igreja-catolica-sobre-amazonia-23444343. Consultado em 21 de março de 2019. 24

O pacote Anticrime foi enviado pelo ministro Sérgio Moro ao Congresso Nacional em dia 04 de fevereiro de 2019 25

Projeto de Lei Anticrime: veja a íntegra da proposta de Sérgio Moro. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/04/projeto-de-lei-anticrime-veja-a-integra-da-proposta-de-sergio-moro.ghtml. Consultado em 22 de março de 2019

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resultar morte ou mesmo risco de morte a funcionário público ou outra

pessoa”. (MARTINS at all, 2019)

O artifício do alargamento do conceito de legitima defesa legitima e protege o

policial que praticar os chamados excessos em situação de “comprimento do dever legal”

e desprotege o cidadão que se torna vítima desses excessos. As denúncias de violência

e de envolvimento em chacinas, os altos índices de assassinatos praticados por policiais

em serviço, a formação das milícias e dos esquadrões de morte, o aumento de

assassinatos de lideranças políticas são dados representativos do perfil violento e

ameaçador do policial brasileiro que nutre o preconceito contra os membros das classes

populares apesar da maioria da corporação, dos escalões mais baixos, serem oriundos

dessas mesmas classes. A ação violenta da polícia brasileira, como estratégia para o

enfrentamento da criminalidade e da resistência política e o projeto de ampliação do porte

de armas encontram apoio em parte significativa da população e tem rendido votos a

vários candidatos26 ligados as forças armadas ou as polícias.

Em nota, o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS

denuncia e alerta a população dos riscos aos direitos humanos inclusos no pacote do

Ministro da Justiça. Considera que:

A proposta também apresenta um reforço às técnicas arbitrárias comumente utilizadas pelos agentes de segurança pública contra movimentos sociais e populações vulneráveis (negros/negras, LGBTs, indígenas, quilombolas), como os “autos de resistência”, através de subterfúgios legais como a legítima defesa específica para agentes policiais, ou mesmo a possibilidade de isenção de pena por “excesso doloso por escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Amplia, ainda, o conceito de organizações criminosas, junto da inserção de meios de obtenção de provas flagrantemente inconstitucionais. (IPDMS, 2019)

O projeto anticrime do governo federal mira na classe popular seu arsenal militar

de modo a mantê-la sob controle tanto do ponto de vista político quanto do controle

espacial e dos corpos. Aumentar a população de encarcerados não preocupa o governo

uma vez que a maior parte é oriunda das classes populares, moradora dos bairros de

periferia ou de favelas. Essa é a política para esses segmentos, ao criminalizar a pobreza

e os movimentos sociais o governo deixa claro que não tem um projeto de ampliação de

postos de trabalho, moradia popular e de melhoria da educação e saúde.

26

Nas eleições de 2018 o TSE registrou 1137 candidatos que autodeclararam serem militares ou policiais, sendo 73 eleitos. Dos eleitos, 58% pertencem ao partido PSL do presidente Jair Bolsonaro. No Congresso Nacional 14 estão na Câmara dos Deputados e 03 no Senado. Esses dados chamam atenção tanto pelo crescimento do número de candidatos e do número de eleitos, quanto penetração do discurso militarizado no tratamento das questões sociais do Brasil nas camadas populares. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-policiais-e-militares-no-legislativo-e-quatro-vezes-maior-do-que-o-de-2014.ghtml. Consultado em 22 de março de 2019

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O projeto político do governo Jair Bolsonaro inclui ainda a apologia à ditadura

militar e empreende uma jornada de reescrever a história do golpe militar de 1964. Por

ocasião da data oficial indicativa da tomada de poder dos militares no governo federal,

dia 31 de março de 1964, dois fatos provocaram uma série de movimentos de protestos

em todo o país. O primeiro se refere a determinação do presidente Jair Bolsonaro ao

Ministério da Defesa de comemorar27 os 55 anos do golpe militar e o segundo foi

protagonizado pelo Ministro da Educação, Velez Rodrigues, ao declarar que pretende

fazer uma revisão dos livros didáticos sobre o golpe militar de 1964, uma vez que

considera que não ocorreu uma ditadura militar no Brasil.

A intenção do governo federal de comemorar o golpe militar de 1964 provocou

reações no interior do próprio governo, com o militares recomendando cautela nesse

processo considerando que desde o governo Dilma Rousseff essa data foi retirada do

calendário das atividades do Exército. No campo jurídico o governo foi interpelado pelo

Ministério Público Federal28 que considerou crime de responsabilidade essa

determinação do presidente. Na sociedade civil diversas atividades e atos denunciando

as atrocidades da ditadura militar foram organizados em várias cidades do país, em

muitos deles ocorreu confrontos com apoiadores do presidente que também realizavam

atos em defesa da ditadura militar. Do mesmo modo que historiadores e intelectuais

repudiaram a declaração do Ministro da Educação29 de construir uma nova narrativa

sobre o golpe militar, desconsiderando os fatos históricos e todo o material produzido

sobre esse período.

3 INCONCLUSÕES

27

Essa decisão de comemorar o regime militar no dia 31 de março foi afirmada pelo porta-voz da presidência

da república, general Otávio Rêgo Barros, no dia 25 de março, por Jair Bolsonaro considerar que os militares conseguiram “recuperar e recolocar o nosso país num rumo que salvo melhor juízo, se tudo isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém". https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-determinou-comemoracoes-devidas-do-golpe-de-1964-diz-porta-voz.shtml. Consultado em 04 de abril de 2019 28

O Ministério Público Federal foi representado pela Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão (DFPC) e por meio de nota declarou que "O apoio de um presidente da República ou altas autoridades seria, também, crime de responsabilidade (artigo 85 da Constituição, e Lei n° 1.079, de 1950). As alegadas motivações do golpe – de acirrada disputa narrativa – são absolutamente irrelevantes para justificar o movimento de derrubada inconstitucional de um governo democrático, em qualquer hipótese e contexto" https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/03/26/interna_politica,745525/mpf-fala-em-crime-de-responsabilidade-de-bolsonaro-ao-exaltar-golpe-de.shtml. Consultado em 05 de abril de 2019 29

Segundo o Ministro da Educação as mudanças na narrativa sobre o golpe de 1964 serão progressivas de modo a garantir que “as crianças possam ter a ideia verídica, real, do que foi a sua história” https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/04/ministro-da-educacao-diz-que-pretende-revisar-livros-didaticos-sobre-o-golpe-de-1964-e-a-ditadura-militar.ghtml. Consultado em 06 de abril de 2019.

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A caracterização do perfil do governo Bolsonaro e da base de apoio parlamentar e

de massa que sustentam o seu governo ainda é motivo de controvérsias. Como definir o

regime político do Brasil quando o governo federal determina a comemoração de uma

ditatura militar que torturou, matou, desapareceu com milhares de pessoas, que fechou o

Congresso Nacional, estabeleceu a censura na imprensa e nas artes e proibiu qualquer

manifestação de protesto? Qual a perspectiva do regime político quando se empreende

uma série de reformas do arcabouço jurídico político que apontam a destruição de todo o

legado das lutas sociais desde a década de 1988? Até onde chegará o retrocesso

civilizatório desencadeado pela política de incentivo ao ódio aos direitos humanos, sociais

e políticos das classes trabalhadoras?

O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível constatar. (BRUM, 2019)

Os 100 primeiros dias do governo do presidente do PSL foram marcados por

desencontros de declarações entre o presidente e seus ministros, por crises políticas

provocadas pelos filhos do presidente, pelo crescimento da presença militar em seu

governo, pelo crescimento do desemprego e da pobreza, por completo despreparo

político e econômico do presidente em eventos internacionais e uma política externa

submissa aos interesses dos EUA.

No plano econômico, a agenda conservadora de reformas depende dos velhos

acordos políticos entre os partidos da base de apoio do governo. Uma das principais

ações do governo é a reforma na previdência social, a partir da qual o governo tem

colocado todas as suas energias para a aprovação, em uma campanha que condiciona o

crescimento econômico do país às mudanças na previdência, na desvinculação de

receitas e despesas do orçamento público e o mais grave é retirar do Estado a

obrigatoriedade dos gastos públicos com setores essenciais como a saúde e a educação.

Entretanto, apesar da política conservadora do governo se confrontar com

qualquer proposta civilizatória construída ao longo das últimas décadas no Brasil, ela

encontrou um forte apoio nas camadas populares, tem sido violentamente imposta à

população e alimenta o aumento dos índices de assassinatos de mulheres,

homossexuais, lideranças indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais. A resistência ao

governo de Bolsonaro ainda é tímida diante da gravidade da situação e não provocou

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mudanças de rota, além de algumas questões pontuais de tática política. O grande

capital, que tem patrocinado a agenda de regressão de direitos, encontra no autoritarismo

do governo Bolsonaro a condição necessária para garantir a realização dos seus os

interesses de exploração, humilhação e dominação dos trabalhadores. Portanto, cabe às

classes trabalhadoras avançar na organização e na resistência caso contrário não restará

horizonte para a vida.

4 BIBLIOGRAFIA

BRUM, Eliane. Bolsonaro manda festejar o crime. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/27/opinion/1553688411_058227.html. Consultado em 06 de abril de 2019. IASI, Mauro. fetichismo e as formas políticas: o Estado burguês na forma burlesca.

https://blogdaboitempo.com.br/2019/02/14/o-fetichismo-e-as-formas-politicas-o-estado-

burgues-na-forma-burlesca/ Consultado em 03/03/2019

Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS. Nota do IPDMS sobre o

“PL anti-crime” do Ministro Sérgio Moro. http://www.ipdms.org.br/2019/02/06/nota-do-

ipdms-sobre-o-pl-anti-crime-do-ministro-sergio-moro/. Consultado em 22 de março de

2019

MARTINS, Carla Benetez, RIBEIRO, Homero Bezerra, SERRA, Marco Alexandre de

Souza e BUDÓ, Marília de Nardin. Como o pacote de Moro pode impactar nas lutas dos

movimentos sociais? https://www.brasildefato.com.br/2019/03/14/como-o-pacote-de-

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SILVA, Ilse Gomes. ESTADO E LUTAS SOCIAIS NO BRASIL NO GOLPE DE 2016: o

Estado de exceção avança. Revista de Políticas Públicas, v. 22, Número Especial da VIII

JOINPP – 1917-2917, 2018.