VIOLÊNCIA, AUTORITARISMO, FASCISMO E IMPERIALISMO NO CAPITALISMO … · 2019-12-04 · violência...
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VIOLÊNCIA, AUTORITARISMO, FASCISMO E IMPERIALISMO NO CAPITALISMO DO
SÉCULO XXI: desafios da esquerda.
Ementa:
A mesa temática VIOLÊNCIA, AUTORITARISMO, FASCISMO E IMPERIALISMO NO
CAPITALISMO DO SÉCULO XXI: desafios da esquerda, aborda o momento atual da luta
de classe expressa na conjuntura nacional, latina americana e internacional a luz da
presença dominante de forças políticas com caráter autoritário, fascista, sionista e
imperialista. Essas forças políticas que aumentaram o seu poder nas primeiras décadas
do século XXI têm no ódio e na violência a principal forma de imposição de suas
concepções e os governos que as representam implementam uma agenda ultraneoliberal
que atinge os direitos sociais e políticos dos grupos tradicionalmente marginalizados.
Nesse cenário de violência, patrocinado pelo grande capital, as classes trabalhadoras
têm o desafio de organizar e massificar a resistência, caso contrário não restará horizonte
para a democracia e para a vida.
Composição:
Título: O BRASIL DE VOLTA AO PASSADO: notas e expressões do Estado pós-
eleições 2018 - Coordenadora: Ilse Gomes Silva – Universidade Federal do
Maranhão. [email protected]
Título: A PARALAXE DO ÓDIO: desamparo, violência e fascismo - Saulo Pinto –
Universidade Federal do Maranhão. [email protected]
Título: CRISE DO CAPITAL E AVANÇO DO FASCISMO: uma análise sobre a
atual conjuntura latino-americana - Daniel Araújo Valença - Universidade Federal
Rural do Semiárido. [email protected]
Título: SIONISMO, IMPERALISMO E REALAÇÕES INTERNACIONAIS: a questão
Palestina e os desafios da esquerda - Marcelo Buzetto - Professor Doutor do
Instituto Federal São Paulo – São Roque e do Centro Universitário Fundação
Santo André, membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais
(NEILS-PUC/SP) e do Conselho Acadêmico do Instituto Brasil-Palestina
(IBRASPAL). [email protected]
A PARALAXE DO ÓDIO: desamparo, violência e fascismo
Saulo Pinto1
RESUMO: Pretende-se aqui elaborar a paralaxe do ódio, tentando alterar nossa percepção social em torno de um afeto político paradoxal. Para isso, tentamos romper a vulgarização da violência reduzida à sua dimensão meramente subjetiva, para que o ódio despolitizado possa ser substituído pelo ódio político organizado. Conclui-se que precisamos de ódio filosófico e ódio no coração emancipatório contra a generalização do ódio despolitizado na luta pela emancipação humana. Palavras-chave: Paralaxe. Ódio. Emancipação. ABSTRACT: The aim here is to elaborate the parallax of hatred, trying to change our social perception around a paradoxical political affection. To this end, we have tried to break the vulgarization of violence to its merely subjective dimension, so that depoliticized hatred can be replaced by organized political hatred. We conclude that we need philosophical hatred and hatred in the emancipatory heart against the generalization of depoliticized hatred in the struggle for human emancipation. Keywords: Parallax. Hate. Emancipation.
1.INTRODUÇÃO: ainda podemos sentir ódio?
É possível pensar a política contemporânea como um paradoxo que envolve a
constituição do “circuito dos afetos” e uma reclamação particular por reconhecimento.
Assim, o processo de subjetivação é marcado pelo modo como os sujeitos são afetados e
como os afetos são traduzidos diretamente em ação política ampla. É por isso que não
podemos tornar absoluta a fórmula de Lukács, para quem a crítica da “consciência
reificada” (LUKÁCS, 2012: 211) expressa a própria estrutura da subjetividade do homem
imerso nas relações reificadas mercantis, que são costuradas pela dominação social do
capital global sobre a própria formação da consciência. Essa fórmula é um tipo de
enquadramento relativo – que insistimos na sua não-absolutização, pois aqui deve ser
pensada numa dialética mais complexa entre as partes constitutivas e o todo totalizado –,
pois a capacidade ativa das formas de consciência não é bloqueada absolutamente pela
1 Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Maranhão. [email protected]
reificação. O curioso é que a fórmula de Lukács encontra o seu efeito reverso, isto é, de
fazer “desaparecer toda subjetividade” (SARTRE, 2015: 30). O ódio funciona hoje, nesse
sentido, como um afeto político poderoso capaz de delinear o problema do antagonismo
político decisivo na forma de um paradoxo de toda subjetividade política existente: que
transforma a afetação particular em ação política regressiva ou é capaz de mobilizar os
corpos políticos na direção de uma ação política autêntica. O antagonismo posto produz
uma certa paralaxe do ódio e da violência desdobrada como termos “condenados” a
priori. Aqui insistimos numa certa modificação do debate sobre o ódio e a violência que,
numa perspectiva oniabrangente do conflito, promove uma luta de classes dos
significantes – possibilitando nossos significados sociais e uma nova escritura dos seus
termos –, pois se trata de “uma luta incessante dos acentos em cada área semântica da
existência” (BAKHTIN, 2012: 141), ou conforme salienta Rancière, potencializando a luta
de classes das palavras e dos significados, há “desentendimento” quando “a disputa
sobre o que quer dizer falar constitui a própria racionalidade da situação de fala”
(RANCIÈRE, 2018: 11). Isso significa que o ódio como palavra obscena teria um
significado comum possível e seu excesso constitutivo, a saber, ela (a palavra) poderia
esconder uma verdade perturbadora sobre o axioma básico do antagonismo social
existente para além de qualquer rejeição ideológica/semântica a priori. O ódio em si seria
um afeto político apenas violento e absolutamente repugnante? Ou estamos diante da
possibilidade de um significado do ódio que traduza um autêntico processo
emancipatório?
Badiou já havia dito que “a história da política não é a história das palavras, mas
sim a história dos novos significados que podem ter as palavras”, e que não deveríamos
ser tentados pela fixação das palavras, aliás, “uma palavra não é mais inocente do que a
outra, afinal é preventivo, para uma ontologia materialista, que “não lutemos pela
inocência das palavras” (BADIOU, 2012: 4). Talvez estejamos diante de uma situação
similar. Não podemos permitir que o ódio seja monopolizado por uma falsa universalidade
constitutiva de classe – que não tem outro interesse distinto do que a manutenção e
reprodução das posições sociais fixadas na forma de desigualitarismo global –, que reduz
o ódio à particularidade expressiva da violência subjetiva. Aqui não há nada além do que
a mera banalidade da violência brutal. É necessário não apenas o controle social da
revolta, mas igualmente o controle “violento” do significado abrangente das palavras
como controle social ideológico. O ódio como afeto político poderoso não pode ser
reduzido à sua máxima irracional inconsequente. É assim que temos um
“desentendimento” em torno do significado do ódio e da violência. As palavras não
transmitem uma cultura valorativa imanente, mas elas são o próprio “objeto” da disputa
ideológica, que traduzem semanticamente as contradições do poder pressuposto. Por
detrás de toda palavra reificada há a existência da contrapalavra resistente que
desmascara o poder dominante da opressão, ao mesmo tempo que atua na profanação
da filosofia política do futuro. Todavia, há um outro desdobramento ideológico
fundamental: a equivalência do ódio como banalização da violência subjetiva funciona de
maneira a excluir qualquer responsabilidade do poder do capital global sobre suas
consequências –particularizando uma situação que é abrangente –, ao mesmo tempo
que promove a subtração do potencial afirmativo/positivo dos afetos denegados. Raoul
Vaneigem salienta que “todo o ser humano tem direito à cólera”, pois:
O sentido humano substitui a cólera que traduz as frustrações e as insolências da vontade de poder pelo furor suscitado pela exasperação da vida, contrariada na sua exuberância. Assim restituída à vontade de viver, a ira faz parte da energia criadora que se insinua no cerne dos seres e das coisas para os tornar mais humanos (VENEIGEM, 2003: 188).
Isso posto, é necessário estabelecer diferenças no âmago da constituição da
violência, que não pode ser traduzida apenas na forma de sua particularização reativa
como fúria raivosa, inconsequente, acidental, avessa ao mínimo de racionalidade
positiva. Para que o “ódio” e a “cólera” possam assumir seu lugar como “parte da energia
criadora” de um novo tempo do mundo, temos que diferenciar a violência que é autêntica
de suas falsificações, e assim, arrancar, através de uma separação decisiva, o ódio
reativo da potência política contida no ódio radical emancipatório. Segundo Žižek,
“devemos focar os curtos-circuitos entre diferentes níveis”, que estabeleça uma conexão
verdadeira “entre o poder e a violência social: uma crise econômica que leva à
devastação é experimentada como um poder incontrolável quase natural, enquanto deve
ser experimentada como violência” (ŽIŽEK, 2014: 7-8, grifos do autor). Então, a hipótese
da “crítica da economia política” deve ser pensada diretamente como violência, mas um
tipo de violência concreta – e que produz consequências reais
desumanizadoras/degradantes –, no entanto, empiricamente impossível de ser
plenamente decodificada. Temos aqui um paradoxo estranho: é possível dizer que a
violência praticada pela economia capitalista não assusta, quando não, sequer é
percebida como “violência”, mas as pessoas comuns experimentam a vida econômica de
maneira antissistêmica, não associando seus problemas como derivação política do
modo de funcionamento da economia e do capitalismo globais. Žižek defende um “passo
para trás” se quisermos realmente perceber a potência da violência para além de seu
paradoxo subjacente:
Os sinais mais evidentes de violência que nos vêm à mente são atos de crime e terror, confrontos civis, conflitos internacionais. Mas devemos aprender a dar um passo para trás, a desembaraçar-nos do engodo fascinante desta violência “subjetiva” diretamente visível, exercida por um agente claramente identificável. Precisamos ser capazes de perceber os contornos dos cenários que engendram essas explosões. O passo para trás nos permite identificar uma violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam combater a violência e promover a tolerância (ŽIŽEK, 2014: 17).
Assim, Žižek estabelece dois níveis mais gerais de violência que se entrecruzam
dialeticamente: violência subjetiva e violência objetiva. A “violência subjetiva” é
justamente “a parte mais visível” do espectro da violência, enquanto a “violência objetiva”
se subdivide em violência “simbólica” – “encarnada na linguagem” e voltada “à imposição
de um certo universo de sentido” – e violência “sistêmica” – “que consiste nas
consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas
econômico e político” (ŽIŽEK, 2014: 17). Nesse sentido, é possível elaborar uma
similitude entre a ideia estruturada da violência em Žižek e posição de Bourdieu. Para
Bourdieu, a estrutura da dominação se vale de uma certa conexão entre um “poder
invisível” existente e a “cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão
sujeito ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2003: 7-8). Não seria essa a posição de
Žižek quando diz que a “violência simbólica” significaria “à imposição de um certo
universo de sentido” capaz de produzir algum tipo de reconhecimento alienado? Esse
universo de sentido não seria o anverso da “violência sistêmica” como fluxo regular do
funcionamento “normal” do capitalismo realmente existente?
A questão é que as violências subjetiva e objetiva não podem ser percebidas do mesmo ponto de vista: a violência subjetiva é experimentada enquanto tal contra o pando de fundo de um grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas “normal” e pacífico. Contudo, a violência objetiva é precisamente aquela inerente a esse estado “normal” das coisas. A violência objetiva é uma violência invisível, uma vez que é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo como a célebre “matéria escura” da física, a contrapartida de uma violência subjetiva (demasiado) visível. Pode ser invisível, mas é preciso levá-la em consideração se quisermos elucidar o que parecerá de outra forma explosões “irracionais” de violência subjetiva (ŽIŽEK, 2014: 17-18).
O segredo da paralaxe do ódio não estaria escondido no curto-circuito da equação
explosiva entre a “violência subjetiva” e o estado pacífico “normal” da “violência objetiva”
permanente? Talvez tenhamos que desmascarar o elemento “puro” do “grau zero de não
violência” inerente ao funcionamento “normal” do sistema, se quisermos romper com o
universo abrangente da “violência simbólica” como “dominação de uma classe sobre
outra” (BOURDIEU, 2003: 11). A paralaxe do ódio poderá permitir que possamos
transcender a própria circularidade do ódio-violência sempre reativa para que o ódio
possa ser descarregado de todo significado negativo e, em consequência, tomado pela
função criativa de elaboração do futuro. Ao contrário da ideia lugar-comum que trata o
“desamparo” como uma paralisia do sujeito que se recusa a agir, pois não pode agir,
precisamos pensá-lo como a total ausência de identificação com o mundo, que o nega,
mas que produz uma afetação repulsiva dele para com o próprio mundo. Hobbes
estabeleceu o “medo” como afeto político constituinte de respeito à ordem. Temos que
modificar essa interpretação para, a partir de Freud, insistir na ideia na “afirmação do
desamparo” como o afeto constitutivo da “emancipação” (SAFATLE, 2016: 18). As
consequências são inevitáveis e imprevisíveis para a subjetividade/subjetivação política:
“ressentimento”, “raiva” e “ódio” são afetos políticos derivados da forma como a
objetivação do ser e a apropriação do ser objetivado se materializam efetivamente. Não é
possível tratá-los a partir de uma escala estritamente subjetiva, pessoal, acidental, mas
seria mais adequado procedermos “uma retotalização em todas as circunstâncias”, “ao
mesmo tempo presente em toda parte e presença de toda parte nela” (SARTRE, 2015:
45). Não podemos chegar aqui sem uma reversão dialética do problema pressuposto: e
se pensássemos o ódio como um afeto mediador “violento” diante de uma situação-limite
de desamparo?
2. A PARALAXE DO ÓDIO, O ÓDIO EM PARALAXE
Há uma certa confusão ontológica quando da definição do significado do ódio: o
ódio é sempre considerado um ato excessivo e inautêntico diante da vida democrática
mínima. Mas, e se estivermos diante de uma noção tapa-buraco? Em vez de abrir nossa
capacidade de pensar os antagonismos reais, forçando nosso pensamento a uma cisão
decisiva na realidade existente, ela servir ao obscurecimento do que de fato vemos,
desobrigando-nos a pensar? É aqui que a paralaxe do ódio se mostra importante. O ódio
nunca se expressa – pelo que de fato realmente é – imediatamente no interior da coesão
dominante como explosão da fúria e da violência subjetivas: temos aqui apenas uma
falsa noção ambígua, pois o ódio nunca é diretamente o mesmo que terror,
desumanidade, barbarização do espírito. Sartre diz, contraditando Lukács, que a
transcendência do “homem total” no mundo se dá mediada por uma “realidade que não é
ele”, na forma de uma “explosão de si mesmo para”: “a um além, ao que está fora dele e
diante dele (SARTRE, 2015: 31). Então, o ódio é produzido por uma interiorização da
relação do homem com o mundo, resultado de uma transcendência do si interior para um
“fora” de si, ao mesmo tempo funcionando como exteriorização e reexteriorização de
suas necessidades contínuas. Nesse caso, o ódio é sempre resultado do sistema de
interiorização do estar no mundo, que no complexo dominante atual caracteriza-se como
exploração e dominação sistêmicas – e que produz uma situação-limite de desamparo –,
mas que tem na universalidade da anomia social destrutiva do capital a sua causa não-
evidente. Assim, o ódio como afeto político se expressa mediante o fenômeno da
violência subjetiva pura, o mundo aparente que não é coincidente ao que esconde,
silencia. Por isso ela é sempre tratada como forma expressiva do recalque, desprovida de
qualquer relacionamento sistêmico com a transcendência do homem total com o mundo.
Sobre o recalque, Bloch diz que:
No processo de recalque, os desejos não realizados, ou até mesmo anulados pelo silêncio, simplesmente submergem num inconsciente mais ou menos completo. Ali eles apodrecem, formando tensões e complexos neuróticos, sem que aquele que sofre possa reconhecer as causas de seu sofrimento (BLOCH, 2005: 57-58, grifos do autor).
Temos, então, a violência sistêmica que afeta o antagonista subordinado
fundamental através da produção do desamparo – na forma de privação e abandono dos
tipos constitutivos “normais” de identificação social – e do ressentimento – que funciona
como reação subjetiva cega às ofensas sofridas. O indivíduo encontra-se desamparado
diante de um mundo circundante estranho, hostil, castrador de suas necessidades e que
recalca suas pulsões mais fundamentais. Ernest Bloch diz que são das “pulsões não
exteriorizadas, experiências inconclusas, feridas e decepções” que provêm a
“sensibilidade aparentemente infundada, a reação exagerada, a ação neurótica
compulsiva”, fazendo com que tenhamos “afetos que se tornaram absurdamente
independentes” (BLOCH, 2005: 58). Com a redução do ódio e da violência à sua escala
subjetiva pura, o recalque oblitera todo ressentimento legítimo, traduzindo-se como
expressão da subjetividade particular danificada. O desdobramento é a formação de um
apelo interno subjetivo poderoso, que é traduzido como defesa intransigente da tolerância
capaz de contraditar a legitimação do ódio e da violência. O paradoxo é que a tolerância
atua como categoria política da ideologia democrático-liberal – o que significa transformar
todo o antagonismo de classes em diferenças indiferentes, que devem ser toleradas e
seu litígio reduzido em torno do consenso democrático –, mas o significado de
“tolerância” aqui funciona, na verdade, como violência sistemática externa contra àqueles
que não parte no corpo social. Mészáros diz que há um limite absoluto à tolerância
democrático-liberal, isto é, “até o ponto para além do qual o protesto começa a se tornar
efetivo e a se transformar num verdadeiro desafio à perpetuação da sociedade de
tolerância repressiva” (MÉSZÁROS, 2011: 999). O que a paralaxe do ódio desmascara é
que o ódio produzido aparece sempre de maneira reativa e é um ódio particular
ideológico de classe, como um afeto político despolitizado, como uma loucura totalitária
sem sentido, pois a ideologia democrático-liberal não pode tolerar a fúria intolerante dos
dominados: a tolerância repressiva classifica e reclassifica sempre o ponto de vista da
intolerância como o antagonista intolerável a ser eliminado. O ódio despolitizado jamais
pode ser transformado em ódio político organizado e é apenas a expressão sintomática
do ressentimento recalcado. O problema é que o ódio político aparece justamente
naquele que está destituído da vida ordinária mínima, predicado necessário do tipo de
opressão social que temos sob o capitalismo hoje. É por isso que o ódio aqui é
desprovido de qualquer capacidade de universalidade autêntica, pois sua fúria é
mobilizada como violência subjetiva contra uma “causa” deslocada, constrangendo
qualquer reclamação legítima e distorcendo a verdade do dano. O ódio de classe interno
à classe particular dominante é transformado numa profusão de ódio como afeto político
preponderante, mas na forma de um afeto político subjetivo inautêntico. O ódio aqui é o
equivalente imediato da raiva: reativo, violento e despolitizado.
Não seria contraproducente dizer que a imposição de uma certa distorção do
significado do ódio funcionaria como uma mínima medida, impactando a subjetividade
coletiva pela manipulação das expectativas. É necessário que o ódio funcione como
violência subjetiva pura, recalcando toda “antecipação concreta” de futuro. É aqui que o
fascismo exerce sua poderosa influência regenerativa ao sistema como um todo,
evitando que as energias excessivas sejam mobilizadas contra as coordenadas básicas
de funcionamento do capitalismo e aprofundando a distância entre o corpo alienado da
vida política e a vida ordinária dos indivíduos. É assim que o desamparo é mobilizado na
forma de um ressentimento reativo contra uma “causa” distorcida. O ódio despolitizado é
ideologicamente manipulado para que a subjetividade como “perpétua projeção”
(SARTRE, 2015: 55) seja anulada, denegada, fraudada. O ódio e a raiva despolitizados
voltam-se contra si, negando toda projeção possível:
Pouco importa como são os judeus realmente; sua imagem, na medida em que é a imagem do que já foi superado, exibe os traços aos quais a dominação totalitária só pode ser hostil: os traços da felicidade sem poder, da remuneração sem trabalho, da pátria sem fronteira, da religião sem mito. Esses traços são condenados pela dominação porque são a aspiração secreta dos dominados. A dominação só pode perdurar na medida em que os próprios dominados transformarem suas aspirações em algo de odioso. Eles fazem isso graças à projeção patológica, pois também o ódio leva à união com o objeto – na destruição. O ódio é o negativo da reconciliação (ADORNO; HORKHEIMER, 2006: 164).
Os “judeus” não são apenas os judeus, mas todo “objeto” de expiação ao núcleo
alusivo da exploração e dominação, àqueles que têm em relação ao seu predicado
substancial à hostilidade dos poderosos. O ódio contra pobres, mulheres, negros ou
homossexuais não é apenas um ódio ao seus conteúdos imanentes, mas propriamente
ao para-si que essas existências destituídas de significado podem alcançar num
autêntico processo de universalização política. Enquanto o dano for tratado como uma
pequena rasura, inominável, seu núcleo particular sempre produzirá – e se de fato vier a
produzir algo em algum momento – um tipo de reação reativa, uma violência irracional
ressentida, mas incapaz de traduzir-se na forma de uma universalização política que
estabeleça vasos comunicantes entre si. Um ódio particular não pode ser respondido com
uma tolerância particular ou, de uma forma distinta, através da “politização” de um ódio
particular. São respostas falsas, que particularizam o dano e o problema em si, e tornam
real a impossibilidade de comunicação e reclamação autênticas, impedindo o
estabelecimento de vasos comunicantes entre os litígios particulares e indefinindo
politicamente o inimigo em comum. Diz Žižek:
E, de novo, a questão-chave é que essa renaturalização oniabrangente é estritamente correlata à reflexivização global de nossa vida cotidiana. Por essa razão, quando confrontados com o ódio e a violência étnicos, devemos rejeitar completamente a ideia multiculturalista de que, contra a intolerância étnica, temos de aprender a respeitar a Alteridade do Outro e a conviver com ela, a desenvolver tolerância por diferentes estilos de vida etc. O ódio étnico não será combatido efetivamente por seu equivalente imediato, a tolerância étnica; ao contrário, precisamos de mais ódio ainda, mas de um ódio propriamente político: o ódio voltado contra o inimigo político comum (ŽIŽEK, 2015: 34, grifos do autor).
Para transcendermos toda confusão ontológica propriamente dita, temos que
pensar que a violência subjetiva é, na verdade, apenas a imagem de uma ilusão. Deleuze
e Guattari dizem que as “pessoas individuais não são inicialmente pessoas sociais”
(DELEUZE; GIATARRI, 2004: 275), pois são apenas a derivação abstrata de relações
sociais estranhas e que as dominam. Isso significa que, no processo de hegemonização,
a exploração e dominação capitalistas não apenas distorcem o conteúdo substancial dos
problemas fundamentais, mas criam imagens capazes de alteração da percepção
particular. É como se tivéssemos a “imagem” da imagem problemática da coisa em si.
Debord fala que a divisão especializada das imagens “do mundo se realiza no mundo da
realidade autonomizada”, e que “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma
representação” (DEBORD, 1997: 13). É aqui que o problema do ódio se complexifica,
pois não seria razoável supor que o ódio hoje não passaria de uma imagem idealizada
completamente desprovida de validação real? Que a tipologia do ódio não seria apenas
uma imagem distorcida, pois odiamos justamente aquilo que deveríamos ter uma relação
substantiva de cumplicidade em razão do compartilhamento de determinadas relações
comuns? O ódio é um afeto político e o ódio como ato é uma exteriorização que se
materializa através das diversas formas de violência. Se o “objeto” do ódio é uma imagem
distorcida, a violência motivada por uma imagem manipulada é absolutamente real, ela
existe. Então, o problema desse tipo de violência é que ela incide sobre um “simulacro” e
não diretamente à substância da coisa em si:
O capitalista como capital personificado, isto é, como função derivada do fluxo de capital, o trabalhador como força de trabalho personificada, função derivada do fluxo de trabalho. E assim o capitalismo preenche o seu campo de imanência com imagens: até a miséria, o desemprego, a revolta e, por outro lado, a violência e a opressão do capital, se tornam imagens de miséria, de desespero, de revolta, de violência e de opressão. Mas a partir das figuras não figurativas ou cortes-fluxos que as produzem, estas imagens só serão figurantes e reprodutivas se informarem um material humano cuja forma específica de reprodução cai fora do campo social que, no entanto, a determina. As pessoas privadas são pois imagens de segunda ordem, imagem de imagens, isto é, simulacros, que
recebem assim a capacidade de representar a imagem de primeira ordem das pessoas sociais (DELEUZE; GUATTARI, 2004: 275-276, grifos do autor).
Todavia, é preciso que façamos a passage à l’acte ao ato em si. Para Žižek, a
violência generalizada, que se tornou norma da ação política do “estado de situação”, não
poderia significar puramente que a luta pela emancipação estaria derrotada ou que o
primado da dignidade humana se encontraria num ponto-limite intransponível de
fracasso. É preciso insistir aqui no contrário: o ódio traduzido na ação violenta é o
sintoma da possibilidade concreta do ato revolucionário, é como se ódio dissesse que há
um “mais além” do que a simples brutalidade reativa do ato em si. Estamos diante de
uma situação limite em que a única alternativa ao “estado de situação” foi a limitação da
energia excessiva da política ao seu núcleo apenas reativo. É justamente na
incapacidade da política em ir “mais além” do presente e das contrações incorrigíveis do
poder desmedido global do capital, que o ódio se banaliza na violência subjetiva pura
como resolução do conflito político em questão:
Em outras palavras, o próprio ódio dos pogroms antissemitas é a prova, a contrário, da possibilidade da revolução proletária autêntica: sua energia excessiva só pode ser interpretada como uma reação à consciência (“inconsciente”) da oportunidade revolucionária perdida. E não seria a causa maior da Ostalgie (nostalgia do passado comunista) entre muitos intelectuais (e
mesmo “pessoas comuns”) da defunta República Democrática da Alemanha também uma saudade não tanto do passado comunista, pelo que realmente acontecia no comunismo, mas pelo que poderia ter acontecido lá, pela
oportunidade perdida de outra Alemanha? Não seriam as explosões de violência neonazista após o fim do comunismo também prova negativa da presença dessas oportunidades emancipatórias, uma explosão sintomática de raiva demonstrando a consciência das oportunidades perdidas? Não devemos ter medo de fazer uma comparação com a vida psíquica individual: assim como a consciência de oportunidade “privada” perdida (digamos, a chance de se engajar numa relação amorosa enriquecedora) quase sempre deixa marcas na forma de ansiedade “irracionais”, dores de cabeça e acessos de raiva, o vazio da oportunidade revolucionária perdida pode explodir na forma de ataques “irracionais” de ódio destrutivo (ŽIŽEK, 2005: 275-276, grifos do autor).
Mas há um outro nexo importante aqui. Badiou diz que existem várias maneiras
de um processo emancipatório fracassar. Qualquer oportunidade de mudança radical dos
parâmetros “normais” do regime de exploração e dominação precisa se desvencilhar do
vazio do niilismo subjacente a toda energia revolucionária típica. Ele considera:
Que uma revolução nunca é mais do que um entremeio do Estado. Daí a tentação sacrifical do nada. O inimigo mais temível da política de emancipação não é a repressão pela ordem estabelecida. É a interioridade do niilismo, e a crueldade sem limites que pode acompanhar seu vazio (BADIOU, 2012: 22).
Aqui, temos que combater a ideia falsa que busca elaborar uma similitude entre a
generalização da violência subjetiva à posição revolucionária. Trata-se de uma falsidade
concentrada, cujo objetivo é impor uma certa ressignificação do ódio à brutalidade
irracional da violência ilegítima. A distorção está em subjetivar a violência, desfigurando
seu significado da “crítica da economia política” e do Estado político em si mesmo, para
que o problema da violência seja tratado em termos de um excesso subjetivo acidental,
ou uma irracionalidade absurda, na forma de uma “violência subjetiva” incompreensível.
A paralaxe do ódio opera uma determinada suspensão da negatividade do conceito de
ódio, para que ele seja pensando como afeto político disjuntivo, em disputa e numa
dimensão conflitiva que não pode ser reduzida ao universo simbólico-subjetivo. O ódio
não é um problema apenas de conceito ou patológico, mas é como os antagonismos são
resolvidos pelas classes em disputa, mediados que são pelos complexos ideológicos
rivais. Mais ódio, por favor!
3. CONCLUSÃO: ódio no coração, ódio filosófico?
Parafraseando Marx, o ódio é uma ira voltada para fora. E nesse caso, é uma
ruptura com o recalque subjacente ao disciplinamento dos corpos e das linguagens
operado pelo poder desmedido da dominação do capital global sobre as pessoas e sobre
os corpos sociais mais abrangentes. Assim, a politização do ódio, ou o tratamento da
política como ódio político organizado, tem como significado mais abrangente a
constituição de uma fronteira tênue, delicada, entre o ódio no coração necessário e o ódio
filosófico consequente. Quando temos explosões de raiva e ódio isso não significa nada
além do que a dominância dos resíduos típicos da desumanização em um tempo de
decadência consumada. Do ponto de vista da consciência reificada, o ódio atua como
uma denegação do ideal democrático pleno. A questão que se apresenta é emblemática:
como é possível o ódio agir contra a democracia, se é a democracia resultado de um ódio
constitutivo? Essa ambiguidade expressa toda contradição do impasse interno vivido pelo
ódio como afeto político preponderante. Não é possível que o ódio político seja destituído
de seu conteúdo substancial, pois o ódio não atua no nada. Talvez seja mais preciso
dizer que o ódio no coração – que aciona uma politização do pequeno sentimento
intransponível – e o ódio filosófico – que subverte as noções despolitizadas do ódio
subjetivo puro – são a substância da ideia de política como ódio político organizado. É
assim que o ódio no coração, ao contrário de sua distorção ideológica, age como
equivalente ao processo mais abrangente de emancipação. Emancipação de si,
emancipação do outro, emancipação de todos.
A politização do ódio tem um outro sentido na ressignificação do seu conteúdo e
da abrangência ideológica alcançada. O ódio politizado, orientado para uma mudança
autêntica e duradoura, no âmago do núcleo da perpetuação das relações de opressão
existentes, funciona desorganizando o modus operandi do consenso da parapolítica
democrática, que reduz à democracia a uma polarização autorizada entre o partido da
ordem e sua oposição autorizada em torno de um programa mínimo comum de
despolitização do antagonismo conflitivo subjacente à ordem do capital global, isto é, a
uma sempre renovada e contínua normalização das relações econômicas estabelecidas.
Uma das funções decisivas das ideologias em disputa pela hegemonização dominante é
justamente impedir que todo ressentimento contra o núcleo alusivo do sistema dominante
seja atacado pelos acessos coletivos de raiva e ódio, na forma de violência política direta.
Impera aqui uma necessidade decisiva de domesticação dos corpos políticos, para que
todo corpo político não apenas permaneça imobilizado, mas que exista permanentemente
como corpo político alienado – no sentido duplo: de submetimento ao Estado político
como corpo político separado e como sabotagem de sua potência política como corpo
político alternativo à democracia alienada. A lógica policial não é outra senão a tentativa
de destituição do componente autêntico do ódio. É necessário ao poder estatal policial
subtrair as energias excessivas do protesto, manipular o sentimento popular autêntico em
relação à “política”, estabelecendo o que Rancière chamou acertadamente e
abrangentemente de “ódio à democracia”, traduzindo toda forma de protesto radical
contra o poder instituído como uma perversão às “regras do jogo” democrático,
reprimindo violentamente através da violência legítima consensual estatal todo choque à
ordem existente e suas instituições parasitárias funcionais à perpetuação do poder
dominante. O paradoxo aqui é que o ódio coletivo é condenado, deslegitimado, para que
o ódio subjetivo prevaleça, mas apenas como um problema subjetivo que deve ser
combatido com força pela legalidade existente, isto é, a tolerância à violência subjetiva
exerce a função de fazer desaparecer a própria existência simbólico-subjetiva da
violência coletiva como uma forma de protesto legítimo ao litígio comum. Pois, o poder
dominante percebeu que é mais simples operar com precisão parapolítica o
ressentimento subjetivo do que o ódio coletivo abrangente. A violência estatal contra o
protesto coletivo tem um preço demasiado custoso, e afinal de contas poderia voltar-se
contra si, enquanto a repressão estabelecida contra o excesso das energias subjetivo-
individuais poderia ser canalizada para o niilismo do consumo paranoico mercantil, para o
niilismo transcendental da clínica ou para o niilismo metafísico do fetichismo religioso:
mercado, clínica ou religião.
Para a dialética materialista, “nunca devemos esquecer é que o ódio popular é
flutuante e pode ser redirecionado” (ŽIŽEK, 2019: 313), não existindo nenhuma
imanência anterior ao próprio conflito antagônico inscrito. É assim que Frédéric Gros
evoca a necessidade do “ódio político do povo contra os ricos” (GROS, 2018: 13). Aqui
não temos a preponderância do recalque que silencia os afetos interiorizados legítimos,
que faz com que o sujeito tenha sua ação reduzida à dimensão da compulsão neurótica.
Em analogia à Bloch, poderíamos dizer que é possível descer conscientemente ao porão
do que foi recalcado, tornar conscientes os pressupostos inconscientes dos sintomas do
ódio subjetivo puro, para que o ódio particular se transforme em objeto da consciência
reflexiva e seja socialmente superado. É aqui que encontramos a passagem do ódio
subjetivo puro como expressão dos antagonismos políticos subjacentes à realidade para
uma “noção da política como ódio organizado (ŽIŽEK, 2017: 170). Em vez de negar o
ódio político, temos que afirmar todo o seu potencial radical emancipatório. Por isso que o
ódio político jamais pode ser um ódio político particular, que se rebate com uma
dimensão subjetiva específica, mas deve atuar como ódio coletivo capaz de assumir a
tarefa da mudança radical do mundo. Redefinindo os termos de Sartre, todo ódio
particular é uma subjetividade, como sujeito percebendo um objeto particular que é
específico, e o ódio particular como reflexão percebendo a si mesmo como objeto
particular, mostra que o conhecimento do subjetivo tem de fato algo de destruidor para o
próprio subjetivo e para a subjetividade. Não se trata de destruir o ser odioso, mas de
confrontar o ódio particular como problema, como subjetividade danificada que precisa
ser eliminada, extinta.
O ódio político é, por excelência, antitético ao ódio fascista. Podemos dizer que a
diferença fundamental está precisamente no fato de que o fascismo se utiliza do ódio
como justificativa para eliminação do “outro”, que é sempre tratado como um “intruso” que
vem de fora para desestabilizar as relações internas do mundo social estabelecido. O
ódio político emancipatório, todavia, busca eliminar a subjetividade danificada do “outro”.
Não se trata da eliminação física do antagonista, mas da extinção do sujeito político
degenerado e do próprio antagonismo como condição de possiblidade da barbarização
subjetiva pura. Por isso que a ação esquerdista baseada no “grabuge” como “violência
anárquica” é equivocada. Ou seja, Sartre diz que a tática do “grabuge” tem como objetivo
acionar a função do “escândalo” como ato político individual, posto “que qualquer
escândalo valia para desmontar a consciência burguesa” (SARTRE, 2015: 48):
Ora, o ato surrealista mais simples, como dizia Breton, é o grabuge. No fundo, pega-se um revólver e atira-se a esmo: é um ato escandaloso, mas também estritamente individual, tão destruidor de si como do outro (SARTRE, 2015: 49).
Para Sartre, a dimensão não-radical da função do “escândalo” está justamente na
sua incapacidade de enfrentar o problema da violência estrutural produzida pelo capital
global. Provocações subjetivas à ordem dos costumes comuns, da moralidade imperativa
etc., não atacam o núcleo elusivo do axioma da opressão. É um tipo de “escândalo” que
tem pouca eficácia política duradoura em termos de transcendência positiva da
consciência reificada. O ódio aos valores dominantes são legítimos e faz parte do ódio à
ontologia constitutiva do mundo atual. Trata-se de uma luta necessária, mas insuficiente.
Lutar contra a totalidade do mundo atual significa lutar contra o seu complexo de valores
subjacentes. A violência do “escândalo” tem que ser pensada como uma não-violência, e
talvez seja apenas uma irritação lateral subjetiva sem qualquer possiblidade de
universalização concreta. Temos que lembrar aqui da notável ponderação feita por
Hannah Arendt: “só que uma rebelião, para nem falarmos na revolução, é muito mais do
que uma histeria coletiva” (ARENDT, 2011: 54). Sartre sentencia:
Destruir ao máximo a realidade burguesa por meio de um escândalo e, ao mesmo tempo, deixar-se destruir. Ou seja, destruiu em si mesmo a burguesia na medida em que tenta destruí-la no outro, sempre por um ato de violência autodestruidor e até suicida. Na palavra grabuge existe isso. Para nós, alguém que procura o grabuge é, por exemplo, um americano, desses que existem em
Nova York e não sabem o que fazer à noite, e que entre num bar com a única intenção de brigar com alguém. Que ele quebre a cara do outro ou que o outro quebre a cara dele, tanto faz: ele volta para casa satisfeito. O que houve foi essa autodestruição, a destruição da vida, a negação dessa vida pela violência (SARTRE, 2005: 50, grifos do autor).
Não, não é possível ou tolerável “a volta para casa satisfeito”. Estamos diante de
uma situação que exige a politização do ódio orientado em direção à emancipação
humana da opressão insuportável existente. E é necessário que tenhamos nossa
subjetividade como motim, para que não sejamos tragados para o ódio de si – das
nossas aspirações coletivas e desejos pessoais –, ou que sejamos confundidos por uma
mobilização falsa baseada no “escândalo”. Aliás, o autêntico da “violência revolucionária”
é justamente “a transformação da vítima oprimida em agente ativo” (ŽIŽEK, 2005: 274).
Esse é o significado da politização do ódio: quando há uma afetação substancial que
transforma o ressentimento pessoal em potência política mobilizadora coletiva. A
esperança do mundo aparece aqui como uma combinação explosiva entre ódio no
coração e ódio filosófico. Ou imaginamos um futuro que seja tolerante com a
desumanização do presente? A resposta é aqui negativa. O ódio é assunto sério demais
para ser monopolizado pelo poder policial estatal ou pela violência clínica. É assim que
há uma indissociabilidade entre ódio no coração e ódio filosófico: o primeiro, como
poética da sensibilidade autêntica: o segundo, como uma radicalidade da disposição do
espírito.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. ARENDT, HANNAH. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo: Boitempo, 2012. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. BLOCH, Ernest. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, V1. BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. GROS, Frédéric. Desobedecer. São Paulo: Ubu Editora, 2008. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. MÉSZÁROS, István. A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. São Paulo: Boitempo, 2015. MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. SARTRE, Jean-Paul. O que é subjetividade? Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2015. VANEIGEM, Raoul. Declaração Universal dos Direitos do Ser Humano: da soberania da vida como superação dos direitos do homem. Lisboa: Edições Antígona, 2003. ŽIŽEK, Slavoj. A coragem da desesperança: crônicas de um ano que agimos perigosamente. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. ŽIŽEK, Slavoj. Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. ŽIŽEK, Slavoj. As portas da revolução: escritos de Lenin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005. ŽIŽEK, Slavoj. O absoluto frágil: ou Por que vale a pena lutar pelo legado cristão? São Paulo: Boitempo, 2015. ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.
SIONISMO, IMPERIALISMO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS: a Questão Palestina e
os desafios da esquerda2
Marcelo Buzetto*
O texto pretende informar e estimular a discussão sobre a realidade do povo palestino em sua luta pelo reconhecimento de sua independência e libertação nacional. Infelizmente, neste início de século XXI, ainda somos obrigados a nos defrontar com essa situação injustificável, que é a negação dos direitos nacionais a um povo que vive há séculos naquela região. Palavras chaves: sionismo, imperialismo, palestina ABSTRACT The text aims to inform and stimulate the discussion about the reality of the Palestinian people in their struggle for recognition of their independence and national liberation. Unfortunately, at the beginning of the twenty-first century, we are still forced to face this unjustifiable situation, which is the denial of national rights to a people who have lived for centuries in that region. Key words: Zionism, Imperialism, Palestine
1. INTRODUÇÃO
Desde o início dos anos oitenta tem crescido em nosso país um movimento de
solidariedade com a causa palestina que atravessa as barreiras ideológicas, políticas,
partidárias e religiosas. Desde os anos oitenta a Organização para a Libertação da
Palestina (OLP) possui escritório de representação diplomática em Brasília, que hoje já
tem status de Embaixada e na Cisjordância foi aberta uma Embaixada brasileira.
Também percebemos a existência de vários Comitês de Solidariedade à Luta do Povo
Palestino, em vários Estados do Brasil com uma composição que envolve partidos,
movimento sindical, popular e estudantil, além de intelectuais e diversas lideranças. Entre
os movimentos de trabalhadores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) e a Via Campesina (movimento internacional de trabalhadores rurais e
camponeses) tem enviado delegações em missões humanitárias na Palestina ocupada.
Os meios de comunicação de massa (ou de desinformação em massa) costumam
tratar a Questão Palestina como um conflito entre “judeus e muçulmanos” ou entre
“árabes e israelenses. Quais são os verdadeiros motivos que fazem com que a Palestina,
2 Esta é uma versão reduzida do texto que se encontra no livro A Questão Palestina: guerra, política e
relações internacionais, de Marcelo Buzetto (Expressão Popular, 2016). * Professor do Instituto Federal São Paulo – São Roque e do Centro Universitário Fundação Santo André,
membro do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS-PUC/SP) e do Conselho Acadêmico do Instituto Brasil-Palestina (IBRASPAL). [email protected]
região onde nasceram as três grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo,
islamismo), seja palco de uma guerra onde as vítimas são crianças, idosos e demais
membros da população civil que enfrentam todos os dias as agressões de um exército
invasor que desrespeita os direitos humanos e as resoluções da ONU desde 1948?
A Questão Palestina também sempre despertou o interesse de intelectuais e
organizações de orientação marxista, pois a luta entre as potências capitalistas europeias
e o Império Turco-Otomano pelo controle desse território ocorre num período de
expansão do capital industrial e financeiro para o chamado “Oriente Médio” e para a Ásia.
Expansionismo, militarismo e guerras de conquista são características típicas da fase
imperialista do capitalismo, que produz uma desigualdade entre as nações e impõe uma
desigual Divisão Internacional do Trabalho. Longe de promover uma situação homogênea
no campo das relações internacionais, o processo de internacionalização do capital e do
capitalismo tem como resultado a produção de inúmeros conflitos regionais cujo centro
da disputa é a definição das fronteiras nacionais, o estabelecimento de novas nações que
atendam interesses de nacionalidades oprimidas ou a luta pela independência e
soberania. Portanto, diversas lutas nacionais, nacionalistas, anticolonialistas e
antiimperialistas se desenvolvem, surgem e se multiplicam durante os séculos XIX e XX.
E é nesse contexto que a Palestina, por vários motivos, adquire importância estratégica
para os projetos políticos da classe dominante da Europa e do Mundo Árabe.
A análise marxista da situação concreta da Palestina sempre exigiu a combinação
de alguns elementos fundamentais: 1. Reconhecer que a libertação nacional aparece
como reivindicação prioritária nas lutas desse povo; 2. Realizar um esforço para
identificar os interesses de classe presentes no dia-a-dia do intenso movimento da
resistência nacional palestina; 3. Tentar compreender quais são e como pensam e atuam
as organizações marxistas e de esquerda no interior do movimento da resistência
nacional palestina, suas ideias principais, seu programa, suas táticas, etc.
2. AS ORIGENS DO CONFLITO ATUAL: sionismo e imperialismo invadem a Palestina
A Palestina é um território de 27.000 km2 que se localiza entre o Egito, Líbano,
Síria e Jordânia, tendo um vasto litoral com saída para o Mar Mediterrâneo. Pelo sul da
Palestina chega-se ao Golfo de Ácaba, que levará qualquer navegante ao Mar Vermelho,
Golfo de Áden, Mar da Arábia, golfo de Omã e Oceano Índico. Do ponto de vista
econômico, político e militar, sua localização é estratégica. A Palestina fica no centro do
mundo, na divisa entre a África e a Ásia, e bem próxima da Europa. Por isso tal território
sempre foi alvo de invasões ao longo de sua história.
Durante o final do século XIX a Palestina estava sob o domínio do Império Turco-
Otomano. Na Europa e na Rússia cresce o número e a força de grupos que perseguiam
os judeus (“pogroms”). Também nesse período surge um movimento nacionalista judaico
chamado Sionismo, que adota esse nome em referência a uma colina de Jerusalém
(Sion) onde havia sido construído o Templo de Salomão.
Um dos fundadores do movimento sionista foi Theodor Herzl (1869-1904). Herzl
nasceu em Budapeste e estudou em Viena, duas cidades importantes do então Império
Austro-Húngaro. Vinha de uma família de banqueiros, e elaborou sua concepção
nacionalista judaica num livro chamado O Estado Judeu, publicado em 1896. Em 1897,
Herzl e outros adeptos do Sionismo se reúnem no I Congresso Sionista, em Basiléia, na
Suíça. A resolução final do Congresso falava da criação de um “lar nacional para os
judeus”, algo que já estava presente no livro de Herzl, apontando a Argentina ou a
Palestina como os locais mais favoráveis para a realização de tal empreendimento.
A partir daí os sionistas correram o mundo para angariar recursos financeiros e
apoio político para sua proposta. Herzl e seus seguidores vão estabelecer contatos com
os governos da Inglaterra, da Alemanha, com o Império Turco-Otomano, com banqueiros,
industriais e comerciantes judeus e não-judeus, visando fortalecer a idéia da necessidade
de um Estado Judeu. A comunidade judaica européia se divide, e nem todos apóiam a
idéia sionista, mas esse movimento consegue o apoio da burguesia judaica e de setores
importantes da burguesia não-judaica européia.
Em seu livro Herzl já afirmava sua preferência pela Palestina, que chamava de
“pátria histórica” dos judeus, e dizia que o Estado Judeu seria, “para a Europa, um
pedaço de fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a
barbárie” (O Estado Judeu, p.66). Tal afirmação comprova o vínculo entre sionismo e
imperialismo, pois o objetivo de Herzl era obter o apoio das potências imperialistas que
dominavam o mundo, e em especial o Oriente Médio, para que a Palestina fosse
entregue à burguesia judaica, para que a mesma transformasse esse território numa
fortaleza militar contra o avanço do nacionalismo árabe e de possíveis movimentos
antiimperialistas que cresciam no Oriente Médio do período pós-Primeira Guerra Mundial.
Com a derrota do Império Turco-Otomano na Primeira Guerra Mundial (1914-
1918), França e Inglaterra invadem o Oriente Médio e dividem entre si a região, ficando a
Palestina sob o domínio britânico de 1918 a 1948. Nesse período o movimento sionista
está consolidado, e sua ambição de construir um “lar nacional para os judeus” na
Palestina ganha ainda mais apoio, devido ao massacre de judeus pelos nazistas na
Europa da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Criam-se, então, as condições
favoráveis para a realização da profecia que Herzl e seus seguidores elaboraram em
1897: criar o “Estado Judeu” em cinqüenta anos.
Durante vários séculos os judeus haviam passado por um processo de
assimilação, ou seja, haviam se integrado na comunidade nacional de vários países.
Trabalhavam, estudavam, participavam da vida política, econômica, social e cultural de
onde viviam, e muitos também se envolviam nas lutas por justiça, democracia, igualdade
e em defesa dos trabalhadores contra a exploração do capital e do capitalismo.
O movimento Sionista divide a comunidade judaica e vai iniciar uma propaganda
em defesa de um nacionalismo burguês conservador e com um conteúdo racista e
antidemocrático. Basta ver a proposta de organização política do Estado Judeu defendida
por Herzl. Diz ele:
Considero a monarquia democrática e a república aristocrática como as mais belas instituições políticas (...) Sou amigo convencido das instituições monárquicas porque elas tornam possível uma política permanente e representam o interesse ligado a conservação do Estado de uma família historicamente ilustre, nascida e educada para reinar (HERZL, 1998, p.111 e 112).
Sua posição elitista e anti-democrática considera “o referendum como absurdo,
pois, em política, não há questões simples que possamos resolver por um sim ou por um
não. Aliás, as massas são ainda piores do que os parlamentos (grifo nosso) (...)
Diante de um povo reunido, não podemos fazer nem política exterior nem política interior
(...) A política deve ser feita do alto” (Idem, p.112).
Essa ideologia conservadora serviu de base para a instauração do Estado de
Israel. Compreender o conteúdo racista e conservador do sionismo é fundamental para
que possamos explicar a posição atual do governo de Israel em relação ao povo
palestino. Três idéias foram fundamentais para convencer milhares de judeus a emigrar
para a Palestina: 1) que a Palestina era uma “terra sem povo” e os judeus eram um “povo
sem terra”; 2) que a Palestina é a “pátria histórica” dos judeus; 3) que os judeus são o
“povo eleito” por Deus. Essas idéias fizeram com que banqueiros e grandes empresários
judeus contribuíssem para a criação da Companhia Judaica, empresa de colonização
com o objetivo de comprar terras para instalar colônias judaicas na Palestina. Durante os
anos 20 e 30 do século XX o crescimento dessas colônias deu início a uma série de
conflitos entre judeus sionistas e árabes-palestinos. Nos anos 40 o movimento sionista
começa a organizar grupos terroristas como o Irgun, Stern e Haganah, que fazem ações
armadas e atentados contra a população árabe-palestina, com a intenção de intimidá-los
através da violência, fazer com que abandonem seus lares, suas propriedades e suas
aldeias.
O Sionismo se organiza de três maneiras: 1) politicamente: através de várias
organizações nacionais e internacionais que visam buscar apoio político de governos
para seu projeto colonialista; 2) economicamente: buscando recursos financeiros de
empresários e banqueiros judeus e não-judeus para a instalação de colônias na
Palestina; 3) militarmente: organizando grupos terroristas/paramilitares para espalhar o
pânico entre a população árabe-palestina, grupos que, depois de 1948, se transformam
nas Forças Armadas de Israel; 4) culturalmente: através da difusão, pela indústria
cultural, de idéias que buscam justificar a dominação territorial da Palestina e o direito
“histórico e sagrado dos judeus” de ocupar aquela região3.
Em 1947, como resultado de uma articulação política internacional dirigida por
representantes das potências imperialistas (EUA, Inglaterra e França) e do sionismo
internacional, e com o apoio da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e
das recém-criadas “repúblicas socialistas” do Leste Europeu, a Organização das Nações
Unidas (ONU) aprova a Partilha da Palestina, que deveria criar naquela região dois
Estados, um Judeu e um Palestino. O Estado Judeu ficaria com 56,4% do território, o
Estado Palestino ficaria com 42,9%, e 0,7%, correspondente à cidade de Jerusalém,
seria administrado pela ONU, por ser local sagrado para cristãos, judeus e muçulmanos.
Além de receber a maior parte do território palestino, o Estado Judeu ficou com as terras
mais férteis. No ano da partilha (1947), a população árabe-palestina era maioria absoluta
em 15 dos 16 subdistritos existentes. Somente em Jaffá a maioria da população era
formada por judeus. Eram 1.310.000 de árabes-palestinos-muçulmanos e 630.000
judeus. Quem coordenou a votação na Assembléia Geral da ONU foi o diplomata
brasileiro Oswaldo Aranha, ex-Ministro das Relações Exteriores. Orientado pelo governo
brasileiro para acompanhar o voto dos EUA, Aranha adiou por dois dias a votação, para
que o lobby sionista e estadunidense pudessem convencer outros países sobre a
necessidade da criação do Estado Judeu. No dia 29 de novembro de 1947 a votação foi a
seguinte: Favoráveis: África do Sul, Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bielo-Rússia,
Canadá, Costa Rica, Checoslováquia, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas,
França, Guatemala, Haiti, Holanda, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nicarágua, Noruega,
3 Um livro interessante sobre a influência do sionismo na cultura e nas idéias é “A indústria do Holocausto –
Reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus”, do intelectual de origem judaica Norman Finkelstein (Editora Record).
Nova Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, República Dominicana, Suécia,
Ucrânia, União Soviética, Uruguai e Venezuela. Contra: Afeganistão, Arábia Saudita,
Cuba, Egito, Grécia, Iêmen, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Síria e Turquia.
Abstenções: Argentina, Chile, China, Colômbia, El Salvador, Etiópia, Honduras,
Iugoslávia, México, Reino Unido. (GATTAZ, 2002, p. 94 e 95).
Em 14 de maio de 1948 os britânicos deixam a Palestina e é fundado o Estado de
Israel. Desde os primeiros dias de sua existência, o governo sionista impediu a criação do
Estado Palestino, desrespeitando com isso a resolução 181 da ONU, que previa a
constituição de dois Estados. Tem início a Guerra da Palestina, onde de um lado está o
Exército Sionista-Colonialista de Israel e, de outro, a população palestina, que desde esta
época luta pela sua libertação, pela criação de um Estado Laico e Democrático, onde
possam viver em paz judeus, cristãos e muçulmanos, onde seja garantido aos indivíduos
o direito de decidir e manifestar livremente suas posições políticas e/ou religiosas.
Portanto, desde 1948 o povo palestino vive uma tragédia: foram expulsos de suas
terras e de suas casas, e tiveram suas propriedades roubadas ou destruídas pelo
chamado Exército de Defesa de Israel. Vilas e cidades palestinas vêm sendo
constantemente destruídas durante os 67 anos da Nakba (“A tragédia”). Milhares de
pessoas seguiram o caminho do exílio e os refugiados palestinos já chegam a 5 milhões.
E, ainda assim, milhares seguem resistindo dentro dos territórios ocupados por Israel.
Em 1967, o expansionismo israelense se intensifica. Novas colônias e
assentamentos judeus-sionistas são criados em Gaza, Cisjordânia e Jerusalém, agora
tomada militarmente pelo exército colonialista, em mais um desrespeito às resoluções da
ONU sobre a questão palestina. Além disso, Israel ocupa militarmente as colinas de
Golan, que são da Síria, e a Península do Sinai, do Egito. A única resolução da ONU que
Israel respeitou até o momento foi a da sua própria criação.
Israel segue hoje como o único país do Oriente Médio com armas nucleares, ou
seja, armas de destruição em massa. Fala-se de 200 ogivas. Mordehai Vanunu, físico
nuclear israelense, que denunciou o programa nuclear de Israel, comprovando sua
finalidade bélica, ficou 18 anos na prisão, sendo 16 na solitária, depois foi para a prisão
domiciliar, com proibição de se comunicar com qualquer estrangeiro por quaisquer meios.
Em 2010 voltou para a cadeia, acusado de tentar fazer contato com membros do
Movimento pelo Fim das Armas Nucleares no Oriente Médio.
Muitos líderes históricos do Estado de Israel já manifestaram no passado o
objetivo do movimento sionista em conquistar todo o território da Palestina. Alguns
pronunciamentos confirmam esta finalidade:
“Jerusalém é o berço do judaísmo e a legítima capital de Israel (...) A partir de
hoje, Tel Aviv deixa de ser nossa capital. Jerusalém será sede de nossa nação” – Ben
Gurion (foi Primeiro Ministro e Ministro da Defesa de Israel), criticando a Resolução da
ONU de 07 de dezembro de 1949, que reafirmava que Jerusalém deveria estar sob o
controle desta organização internacional, como previa o Plano de Partilha de 1947
(NIMITZ, 1974, p. 110).
“Eu sou a favor da partilha do país porque quando nós nos tornarmos uma grande
potência, depois do estabelecimento do Estado, iremos abolir a partilha e nos espalhar
pela Palestina” – Ben Gurion (Gattaz, 2002, p. 104).
“Tal como existe atualmente, Israel é apenas uma parte do ‘Grande Israel’ (Eretz
Israel), e a missão sionista permanece incompleta até que Israel recomponha suas
‘fronteiras históricas’ (...) O mapa de Israel precisa ser modificado. Cabe a vocês lutarem
sem trégua a fim de estabelecer, por invasão ou diplomacia, o Império de Israel” – Ben
Gurion, em discurso para estudantes da Universidade Hebraica (ALENCASTRE, 1968, p.
149 e 150).
“Entre o Mediterrâneo e as fronteiras do Iraque, no que foi outrora a Palestina,
existem agora dois países, um judeu e um árabe, e não há espaço para um terceiro. Os
palestinos devem encontrar a solução para seu problema junto com aquele país árabe,
Jordânia, porque um Estado Palestino entre nós e a Jordânia só pode se tornar uma base
da qual será ainda mais conveniente atacar e destruir Israel” – Golda Meir (foi
embaixadora de Israel na URSS, Ministra do Trabalho, Ministra das Relações Exteriores
e Primeira-Ministra de Israel), demonstrando sua completa oposição à criação de
qualquer “Estado Palestino”, inclusive o sugerido pela ONU (MEIR, 1982, p. 299).
Tais declarações de figuras bastante influentes do movimento sionista
demonstram as intenções dos sucessivos governos do Estado de Israel. Orientados por
idéias colonialistas e racistas, que acreditam num suposto “povo eleito” para governar
toda a Palestina histórica, não fazem concessões quando o tema diz respeito ao direito
do retorno dos refugiados palestinos expulsos em 1948 e 1967, ou quando se exige o fim
de novos assentamentos judeus em território palestino, ou ainda a desocupação e
desmonte de assentamentos que estão em situação irregular e ilegal de acordo com a
Resolução 181 da ONU (Plano de Partilha de 1947).
2.1 A semelhança entre sionismo e nazifascismo
O sionismo é um movimento político nacionalista judaico, antidemocrático,
conservador, colonialista e racista, e queria a expulsão dos árabes da Palestina. O
nazismo foi um movimento político nacionalista alemão, antidemocrático, conservador,
neocolonialista/imperialista e rascista, e queria a expulsão dos judeus da Alemanha.
Entre 1897 e 1947 grupos armados sionistas se organizam no interior da Palestina. Os
sionistas constróem destacamentos de segurança pública e de defesa, montam um
exército com inúmeras organizações político-militares, que praticam o terrorismo contra a
população civil palestina. Desses grupos terroristas sionistas alguns simpatizavam
abertamente com o fascismo de Benito Mussollini, como o Irgun e o Stern, e continuaram
rendendo homenagens ao governo italiano mesmo depois da aproximação deste com
Adolf Hitler.
No interior do sionismo sempre existiram diferentes correntes políticas e
ideológicas, até mesmo um socialismo étnico-utópico judeu, mas sempre a posição
dominante e hegemônica estimulou e defendeu uma política de apartheid, de limpeza
étnica e de genocídio contra a população árabe-palestina. Existem pessoas e grupos que
hoje se autodenominam “sionistas de esquerda”, mas suas ações, em verdade, revelam
que não passam, em sua esmagadora maioria, da face simpática do sionismo. Tais
indivíduos e movimentos são cúmplices do colonialismo israelense, não tomam nenhuma
iniciativa contra o encarceramento de quase 7 mil palestinos, presos políticos, não se
pronunciam contra o crescente assassinato de civis palestinos, inclusive crianças. A
ideologia do sionismo o aproxima do nazifascismo, e é isso que explica a semelhança
entre as ações nazistas contra os judeus no Gueto de Varsóvia, na Polônia, e as ações
israelenses contra os palestinos no Gueto de Gaza, inclusive com soldados que, em
treinamento, estudaram os manuais do exército alemão sobre o Gueto de Varsóvia.
3. A QUESTÃO PALESTINA E O FIM DA URSS e DO BLOCO SOCIALISTA: início de
um período de defensiva
O fim da URSS e do chamado “Bloco Socialista” tem um profundo impacto nas
relações internacionais e no movimento nacional de resistência palestina. A força da
esquerda no interior da OLP advinha também das relações e do apoio que esse setor
tinha com o “mundo socialista”, e da intervenção conjunta desses países nos diversos
organismos da ONU. Além disso, os palestinos tinham, até 1991, dois grandes aliados de
sua causa no Conselho de Segurança da ONU: URSS e China. As condições eram muito
mais favoráveis para aqueles que defendiam a imediata construção do Estado Palestino.
Com o argumento de que precisa adquirir maior credibilidade e dar mais uma
demonstração de que está disposta a fazer concessões em seu programa original se
isso, de fato, for contribuir para o avanço do processo de paz, a OLP altera seu estatuto
em 1988, e reconhece o direito do Estado de Israel existir, ao lado de um Estado
Palestino, conforme a Resolução 181, de 1947. Ou seja, a OLP reconhece pela primeira
vez a legitimidade do Plano de Partilha da Palestina, antes apresentado pela organização
como sendo um instrumento da aliança do sionismo com o imperialismo para ampliar sua
influência e exercer a dominação territorial de uma parte estratégica do Oriente Médio.
Esta posição da OLP encontrou resistência entre os próprios palestinos, mas as forças
que se opuseram a tal mudança de posição se encontravam em situação de minoria, e
não conseguiram impedir a vitória dessa proposta, que parte de Yasser Arafat e da
direção majoritária de seu partido, o Fatah.
Os “acordos de paz” firmados com Israel em 1993/1994 alimentaram ilusões e
ignoraram a natureza expansionista/imperialista deste Estado, que negocia e, ao mesmo
tempo, faz crescer o número de colônias sionistas nos territórios palestinos ocupados em
1948 e 1967. Além disso, Israel aplica até hoje uma política de assassinatos seletivos de
lideranças políticas palestinas, e de perseguição e prisão em massa. Um resultado dessa
política de repressão intensa e permanente são os 6 mil presos políticos palestinos,
alguns vivendo nos cárceres israelenses há pelo menos 20 anos. Desses, mais de 700
estão condenados a prisão perpétua. Entre 1993 e 2005, apesar de inúmeras reuniões,
conferências e acordos firmados entre a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e o
governo do Estado de Israel, e apesar das expectativas de uma paz duradoura
apresentadas pelo presidente palestino eleito em 1996 com 87% dos votos, Yasser
Arafat, o que se viu foi uma continuada violação dos direitos humanos e dos direitos
fundamentais do povo palestino, assim como a negação do direito nacional à
independência e à soberania, deixando ainda mais distante o sonho do Estado Palestino
Laico e Democrático.
Os dois signatários dos acordos de Oslo de 1993 morreram. Yitzhak Rabin, pelo
lado israelense, assassinado por fundamentalistas judeus-sionistas em 1995 e Yasser
Arafat, pelo lado palestino, morre em 2004 resultante de problemas de saúde Esses
acordos livraram os palestinos do controle militar israelense em algumas cidades e
vilarejos de Gaza e Cisjordânia, criando para a população uma situação melhor do que a
anterior, com melhores condições para se desenvolver o comércio, a indústria, a
agricultura, educação, a saúde, a cultura e o esporte, enfim, para que seja possível
construir/reconstruir uma vida cotidiana com um mínimo de dignidade, mas essa nova
situação não resolve plenamente grande parte dos problemas econômicos, sociais e
políticos da ampla maioria do povo palestino.
Os resultados pífios dos acordos e o não cumprimento da quase totalidade dos
termos dos mesmos por Israel levam a uma nova situação de impasse que coloca em
xeque as posições da direção da OLP e da agora chamada Autoridade Palestina (AP). O
não cumprimento de diversas cláusulas dos acordos, entre elas a suspensão da
construção de novos assentamentos sionistas e da demolição de casas palestinas
ajudam a diminuir a credibilidade que parcela do povo palestino depositava no Fatah,
ainda mais com as constantes denúncias – que muitas vezes são comprovadas – de
corrupção de líderes e membros desta organização.
É nessa conjuntura complexa que ganha projeção como uma alternativa política o
partido Hamas. A crise política, ideológica e organizativa dificulta a ascensão da
esquerda palestina (FPLP, FDLP,PPP e outros) como força majoritária no movimento de
libertação nacional. As denúncias de corrupção e de enriquecimento de muitos dos
dirigentes demonstram um processo de degeneração em setores importantes do Fatah.
As eleições de 2006 contribuem para acirrar as disputas internas no movimento da
resistência palestina, com Hamas vitorioso em Gaza e Fatah na Cisjordânia. A esquerda
palestina tem procurado convocar todas as forças progressistas, populares, democráticas
e socialistas a se unir num grande movimento nacional de resistência para desencadear
novamente uma ofensiva contra as medidas do governo de Israel que visam a acelerar o
processo de expropriação de terras do povo palestino, mas parece que todo esse esforço
ainda tem sido insuficiente para alterar a correlação de forças dentro e fora da OLP.
Quando do ataque militar israelense a Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de
2009, essa ideia de unidade nacional das forças da resistência palestina adquiriu grande
importância, mas até agora parece que existem muitos fatores que ainda impedem que
tal proposta volte a ser transformada em realidade. A impressão é que uma unidade
política e programática mínima, em torno de alguns pontos de consenso amplamente
discutidos com o povo palestino, seria fundamental para tentar se desencadear uma nova
ofensiva política, popular e de massas contra o Estado de Israel. A ação unitária de
forças como o Fatah, FPLP, FDLP, PPP, Hamas, Jihad Islâmica e demais organizações e
partidos políticos palestinos poderia fazer ressurgir nas amplas massas populares do
mundo árabe – e no interior de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém – a esperança e a
disposição necessárias para uma nova retomada da ofensiva deste que é, sem dúvida,
um dos mais importantes movimentos de libertação nacional deste início de século XXI.
O que temos certeza para afirmar é que, por mais justo, combativo, corajoso e coerente
que seja um partido ou uma organização da resistência palestina, de maneira isolada não
terá capacidade para impor nenhuma derrota contra o sionismo israelense. Talvez essa
unidade entre as três correntes políticas da resistência nacional palestina (nacionalismo
laico, nacionalismo islâmico e socialistas/comunistas) possa construir uma frente
antisionista/antiimperialista que obrigue o Estado de Israel a ir para uma mesa de
negociação numa outra correlação de forças, fazendo surgir daí as condições mais
favoráveis para se apresentar propostas mais ousadas que as atuais, que privilegiam o
debate de dois Estados. É possível perceber que sobre este tema existem pelo menos
três posições:
1. Os que defendem a criação imediata de um Estado Palestino Laico e
Democrático na chamada Palestina Histórica (em todo o território considerado
Palestina antes do Plano de Partilha de 1947): nossa impressão é que tal opinião
desconsidera a atual correlação de forças no interior do movimento nacional palestino e
entre os palestinos e o Estado de Israel, fazendo de tal proposta mais um instrumento de
agitação e propaganda do que uma possibilidade real no momento. E os palestinos
sabem que agitação e propaganda são insuficientes para fazer com que triunfem
posições que possam levar a profundas transformações econômicas, sociais e políticas
naquela região. Organizações nacionalistas islâmicas também defendem tal proposta,
com a ressalva de que não se utilizam da expressão Estado Laico, mas simplesmente
Estado Palestino.
2. Os que defendem a posição de dois estados existindo um ao lado do
outro, ou seja, o cumprimento do Plano de Partilha da Palestina elaborado pela
ONU em 1947 (Resolução 181). Essa opinião defende que o Estado de Israel já se
consolidou, e agora, portanto, é necessário construir o Estado Palestino. Tal posição
abandona o programa original da OLP e os princípios que orientaram a resistência
palestina de 1947 a 1988. Entre 1993 e 2005 esta tem sido a proposta do Fatah e outras
organizações palestinas. É o abandono da estratégia e da Carta de fundação da OLP
que, segundo Arafat, tornou-se um documento sem validade, ficou no passado,
“caducou”;
3. Os que defendem que é preciso acumular forças no atual período da
luta nacional palestina. Para estes é necessário se organizar melhor para defender e
fazer avançar as conquistas já obtidas como resultado das lutas e mobilizações sociais e
populares, tentando fortalecer tudo aquilo que tem de positivo nos acordos firmados até
agora, criticar e denunciar aquilo que não é de interesse do povo palestino e, ao mesmo
tempo, tentar consolidar o controle palestino sobre todo o território de Gaza e da
Cisjordânia. Nesse sentido seria importante intensificar as lutas: pela libertação dos
presos políticos, pelo direito ao retorno dos refugiados, pela destruição do “Muro da
Vergonha”, pelo cumprimento das Resoluções da ONU sobre a Questão Palestina, em
especial sobre o estatuto de Jerusalém, pelo direito dos palestinos de resistir à ocupação
militar israelense por todos os meios de que dispõem, para barrar as construções de
novos assentamentos sionistas, para impedir as demolições de casas de palestinos, etc.
Essa posição política procura fazer destas, e outras, lutas parte de um processo de
acúmulo de forças que vai construindo no cotidiano as condições mais favoráveis para
colocar o movimento nacional palestino na direção do rumo estratégico indicado: um
Estado Palestino Laico e Democrático em toda a Palestina Histórica.
4. CONCLUSÃO
As contradições no interior da resistência e das massas populares palestinas são
tão intensas que é possível identificar adeptos e simpatizantes das três posições dentro
de uma mesma organização política e social. Por exemplo: apesar da maioria da direção
política do Fatah e da OLP defender hoje a construção de um Estado Palestino em Gaza,
Cisjordânia e Jerusalém Oriental, aceitando a ideia de dois Estados, é possível encontrar
dirigentes destas organizações, assim como militantes e setores importantes de sua base
social defendendo a retomada de todo o território palestino, as terras ocupadas em 1948,
em 1967 e as que foram ocupadas após os Acordos de Oslo (1993/1994). Mesmo dentro
do Hamas, que historicamente defendeu a posição de um único Estado Palestino, já
existem lideranças anunciando o reconhecimento do Estado de Israel e sugerindo uma
adaptação e aproximação com a posição majoritária no interior da OLP.
É óbvio que a intensificação da repressão israelense contra os palestinos nos
últimos anos tem criado condições mais favoráveis para a defesa da proposta de
continuar a luta pela construção de um Estado em toda a Palestina histórica. Essa é a
posição hegemônica, por exemplo, entre dirigentes, militantes e simpatizantes da Frente
Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), que nunca abandonou esta orientação
estratégica. É bom lembrar que para amplos setores das massas populares palestinas o
debate sobre a questão de um ou dois Estados é algo completamente secundário, tema
que se concentra mais entre os dirigentes e intelectuais do que uma ideia presente no
cotidiano popular, pois a situação objetiva empurra os palestinos para dedicarem mais
tempo às preocupações mais concretas, como a luta contra a ocupação israelense em
todas as suas formas (econômica, política, social, cultural, financeira, militar). Após
algumas viagens realizadas à Palestina, podemos concluir que as massas estão
distantes desse debate de um ou dois Estados, mas que, quando esclarecidas sobre as
propostas existentes, tendem a apoiar a construção de um Estado da Palestina em toda a
Palestina histórica, pois só assim terão seus direitos plenamente restituídos, sejam os
que vivem hoje na pátria ocupada, sejam os que vivem na condição de refugiados.
5. BIBLIOGRAFIA
ALENCASTRE, Amílcar (1968). O desafio de Israel, Rio de Janeiro, Editora Leitura. ARAFAT, Yasser (s/d). Porque lutam os palestinos?. Rio de Janeiro: Paralelo. ARAFAT, Yasser e outros (2007). Soberania e Autodeterminação – A luta na ONU: discursos históricos. São Paulo: Expressão Popular. BUZETTO, Marcelo (2016). A Questão Palestina: guerra, política e relações internacionais. São Paulo, Expressão Popular.
GATTAZ, André (2002). A Guerra da Palestina – Da criação do Estado de Israel à Nova Intifada, São Paulo, Usina do Livro. HERZL, Theodor (1998). O Estado Judeu, Rio de Janeiro, Garamond. NIMITZ, Oscar (1974). Ben Gurion, Rio de Janeiro, Editora Três. SAID, Edward (2003). Cultura e Política. São Paulo: Boitempo Editorial. SALEM, Helena (1977). Palestinos: os novos judeus. Rio de Janeiro: Eldorado.
CRISE DO CAPITAL E AVANÇO DO FASCISMO: Uma análise sobre a atual conjuntura
latino-americana
Daniel Araújo Valença4
RESUMO: No presente trabalho, busco analisar o atual cenário político da América Latina, especialmente no tocante aos países que vivenciaram governos considerados “progressistas” ou “de esquerda”. Partindo do método materialista histórico-dialético, resgato a formação social latino-americana para, a partir daí, vislumbrar os elementos da atual conjuntura no continente e as especificidades do avanço fascista na região. Como instrumentos metodológicos, amparo-me no levantamento bibliográfico. Concluo que houve um avanço de setores de extrema direita em consequência da atual crise estrutural do capitalismo e como contradição intrínseca aos “governos progressistas” ou de “esquerda”.
Palavras-chave: Fascismo, América Latina, capitalismo
ABSTRACT: In the present work, I try to analyze the current
political scenario in Latin America, especially in countries that have experienced "progressive" or "leftist" governments. Starting from the materialist historical-dialectical method, I will recover the Latin American social formation, from there, to glimpse the elements of the current conjuncture in the continent and the specificities of the fascist advance in the region. As methodological instruments, I rely on the bibliographical survey. There has been an advance of sectors of the extreme right, directly linked to the current structural crisis of capitalism and as internal contradiction arising from progressive or democratic-popular governments.
Keywords: Fascism, Latin America, capitalism
1 INTRODUÇÃO
O mundo tem assistido à expansão de manifestações e práticas de cunho fascista
neste princípio de século XXI. Celebrações nazi-fascistas, marchas, perseguições a
imigrantes, leis que atentam contra os direitos humanos e violam direitos de refugiados e
à liberdade de credo. Nesse contexto internacional, a América Latina se destaca por ter
vivenciado a eleição de um presidente da República que, abertamente, reivindica as
4 Professor Doutor da Universidade Rural do Semiárido. [email protected]
ditaduras militares ocorridas no continente, a tortura como prática legítima de agentes do
Estado e o combate a opositores, especialmente os situados no campo da esquerda.
Para além do Brasil, em outros países também aconteceram episódios de tendências
fascistas, como, dentre outros, na Bolívia, na ação de separatistas do Oriente contra
indígenas vinculados ao MAS-IPSP (Movimiento al Socialismo – Instrumento por la
Soberanía de los Pueblos)5.
No presente trabalho, parto da perspectiva de que o fascismo está diretamente
vinculado à luta de classes e à necessidade de reprodução do capital. Ele não advém,
portanto, nem de uma “histeria coletiva” nem da “perda de referenciais morais” da
sociedade, mas do reflexo das condições materiais de existência ante aos padrões de
sociabilidade de determinado tempo histórico. Dessa maneira, amparo-me no
materialismo histórico-dialético para, ao resgatar a formação social latino-americana,
compreender a especificidade do avanço da extrema-direita no continente.
Como recorte de investigação, debruço-me sobre a América Latina,
especialmente aqueles países que vivenciaram o que se denominou de “governos
progressistas” ou “de esquerda”6, num determinado período, no limiar do século XXI, que
aparentava ser, pela primeira vez, o momento em que as classes trabalhadoras
alcançavam o poder e poderiam reescrever a história.
2 QUAL OLHAR SOBRE A AMÉRICA LATINA?
O continente latino-americano revela particularidades, decorrentes de sua
específica formação social. Ao aqui chegar, espanhóis e portugueses encontraram uma
infinidade de povos, alguns dos quais organizados em sociedade complexas e altamente
acostumadas às particularidades locais. Estavam, contudo, sendo tragados para dentro
de um movimento que, em poucos séculos – considerando, especialmente, o largo tempo
5 Conhecido como “Masacre de Porvenir”, camponeses indígenas vinculados ao MAS-IPSP, partido do
presidente Evo Morales, foram encurralados em uma emboscada e, desarmados, foram torturados e, ao menos quinze, assassinados. Dentre outros materiais disponíveis na internet, recomenda-se o vídeo “La Matanza de Porvenir, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c3yzZtdeM6I>. 6 Enquadro em “governos progressistas” ou “de esquerda” aqueles que se constituíram em respostas
populares às políticas neoliberais da década anterior. Há debates sobre a conveniência de separá-los em “progressistas” (ou, menos comprometidos com o intento de profundas transformações em seu país) e de “esquerda” (aqueles que conduziram processos mais radicalizados, como os da Venezuela e Bolívia) – para tanto, ver Pomar (2014), Stédile (2016) e Katz (2016), porém, os considero dentro do mesmo processo. A diferença de intensidade em seus processos de transformação, contudo, levará a diferenças em suas conjunturas internas atuais.
histórico da humanidade – iria alterar toda a dinâmica do globo. É com o capitalismo que,
finalmente, o mundo pode vir a ser chamado “mundo”. Por ser de sua natureza a
expansividade ilimitada (MARX, 2013), o capitalismo levou os diversos povos e nações a
se inserirem em um movimento mundial puxado, por óbvio, pelas potências que, à época,
estavam liderando a consolidação deste modo de produção.
Desta maneira, o continente latino-americano estaria condenado a inserir-se neste
sistema de maneira a fornecer matérias-primas e possibilitar o desenvolvimento do
capitalismo comercial. Para tanto, o caminho seria a superexploração do trabalho,
indígena e negro, conformando uma sociedade fundada na desigualdade, racismo e
patriarcado, bem como de ausência democrática e inserção dependente no capitalismo
internacional.
Sendo assim, se os valores liberais traduziam na Europa do século XIX as
mudanças concretas em suas relações sociais de produção, no continente latino-
americano a superação do período colonial não veio acompanhada da transformação de
suas relações sociais de produção.
Se bem é verdade que as lutas pela libertação (1808-1825) inspiravam-se em
valores republicanos e liberais, o que se sucedeu no continente foi a tomada do poder
político por oligarquias locais que provocaram não apenas a dissolução do império
espanhol em mais de uma dezena de países, mas também assegurou que as condições
concretas de reprodução social das pessoas não se alterassem. O assalariamento,
relação social própria ao capitalismo, não se universalizou, e a pongueaje e outros
métodos semi-feudais de exploração do trabalho permaneceram como prática comum.
Já no século XX, enquanto na Europa as classes burguesas passaram a exercer
seu domínio não mais através da coercitividade, e sim, pela hegemonia, como percebera
Gramsci (2006), na América Latina, com frequência, suas oligarquias não buscaram
alcançar o consentimento das demais camadas da população.
No mesmo sentido, voltando-se a essa realidade, mas ainda mais intensa pela
especificidade boliviana, Zavaleta-Mercado (2013) cunhou o termo “Estado Aparente”
para referir-se a um Estado que não pretende tornar os interesses de suas classes
dominantes em universais. Para ele, o Estado boliviano existia apenas naquelas
territorialidades onde seria possível reproduzir o capital, não sendo necessário sua
existência, presença e domínio em todo o território. Não à toa, as pessoas
desenvolveram métodos autônomos auto-organizativos – como, por exemplo, através dos
sindicatos –, bem como demandas separatistas. Desta maneira, ao não consentir ante
aos interesses e valores dos grupos dirigentes, as classes subalternas destes países –
em geral, também indígenas – contribuíram para fossem erguidas frágeis ordens estatais,
em que revoluções e golpes de Estado foram a regra7.
É a partir desta formação social que a América Latina vivenciaria ciclos ao longo
do século XX. Influenciada pela crise internacional do capitalismo de 1929, o continente
entrou em um ciclo populista entre as décadas de 1940 e 1960. É neste momento que há
um princípio de modernização – e aqui utilizo o termo como adaptação às condições
modernas de produção, tal como o assalariamento e a previsão de direitos trabalhistas –
de alguns dos países do continente. Ocorre que as burguesias do período não estavam
dispostas a se afirmarem enquanto classes dirigentes e a apostar numa inserção não
dependente em âmbito de capitalismo global, assim como outrora não estiveram
dispostas as oligarquias locais.
Por outro lado, a combinação inserção dependente no capitalismo internacional e
ampliação de direitos das classes trabalhadores, perfaz um somatório irrealizável. A
tendência à queda da taxa de lucro e a necessidade permanente de sua reversão, leva
ao aguçamento da contradição entre capital e trabalho, contradição não superável em
cenário de manutenção da inserção dependente do capitalismo internacional.
Dessa maneira, o ciclo que se seguiu, o das ditaduras militares entre as décadas
de 1960 e 1980, representou um novo momento de expansão da superexploração da
força do trabalho, reafirmando a inserção dependente de tais países no capitalismo
internacional. A depreciação das condições materiais de reprodução social levou à perda
de apoio político por parte dos regimes ditatoriais, que tampouco foram sucedidos por
alternativas populares. As esquerdas, fragilizadas com os processos de
desmantelamento, torturas e assassinatos promovidos pelas ditaduras militares, não
conseguiu viabilizar-se como alternativa política em nenhum dos países que saía do
longo ciclo de violência estatal.
O continente, então, entrou no neoliberalismo. Aqui, já não foi a subsunção real ao
capital (GARCÍA-LINERA, 2009) que promoveu a obtenção de altas taxas de lucros, mas
um processo de privatizações, financeirização da economia e expansão do capital para
novas áreas, processo denominado por David Harvey como “acumulação por
despossessão” (HARVEY, 2011).
7 Rivera-Santiváñez (2008) fala sobre algo como 200 golpes de Estados em toda a história republicana
boliviana. Hobsmawm (2017) aponta o fenômeno da La Violencia, uma guerra civil que ocorreu na Colômbia,
após o assassinato de um líder liberal reformador, bem como das mais de vinte experiências de guerrilhas no continente e outros fatos históricos que apontam para a inexistência de hegemonia por parte das classes dirigentes no continente em amplos períodos de suas histórias republicanas.
O neoliberalismo iria intensificar o processo de depreciação das condições de vida
no continente e, após um período de reorganização popular, a quase cem anos após o
início do ciclo populista, ocorreria a ascensão das classes subalternas, seja apresentando
projetos políticos autônomos das classes trabalhadoras, como na Bolívia (VALENÇA,
2018), seja mediante unidade com setores da burguesia local (como no Brasil). Por outro
lado, as contradições intrínsecas a tal período possibilitariam a ascensão de ações
políticas de caráter fascista, como abordarei na próxima seção.
3 AMÉRICA LATINA: GOVERNOS POPULARES E A RESPOSTA FASCISTA
Apontei como elementos da formação social latino-americana a superexploração
da força de trabalho, a inserção dependente no capitalismo internacional e a ausência
democrática. Tal superexploração teve um recorte racial, característica distintiva da
exploração do trabalho no novo continente, bem como uma perspectiva patriarcal. Tais
fatores perpassaram as várias épocas do continente e permaneceram presentes em
pleno século XXI.
Ocorre que, com a ascensão de governos progressistas e de esquerda, houve
uma redistribuição de excedentes inédita na história deste continente. Criaram-se,
também, instrumentos de sopesamento dessa dependência ante as potências mundiais e
fortalecimento das relações sul-sul – como a “Unasur” e o “Banco do Sul”, ou a auditoria
da dívida no Equador. Estas e outras medidas8 implicavam na construção de alternativas
à inserção dependente no capitalismo internacional, especialmente no tocante à
influência norte-americana9.
Quanto a reprodução da força de trabalho e redistribuição de excedentes, houve
políticas de valorização dos salários mínimos locais, políticas de transferência de renda,
bem como políticas públicas de acesso à educação, saúde dentre outros direitos10.
Por outro lado, em 2008, o capitalismo passou por outra potente crise cíclica,
requerendo novo avanço do capital sobre o trabalho. Se a década de 2000 se
8 Para leituras de estudos detalhados sobre a realidade latino-americana em termos socioeconômicos, ver as
publicações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - CEPAL, disponíveis em: < https://www.cepal.org/pt-br/cepal-0>. 9 Sobre o imperialismo norte-americano na região, intensificado no século XX, ver HOBSBAWM, Eric. Viva la
Revolución: a era das utopias na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 10
Políticas de transferência de renda e reajustes dos salários mínimos locais ocorreram em todos os governos considerados como progressistas ou de esquerda. Se, no Brasil, o 36 milhões de pessoas saíram da pobreza em doze anos de Bolsa-família, é na Bolívia onde a redistribuição mostrou-se mais sólida, a partir de mecanismos de compensação de trocas entre produtores diretos e mercado realizados por “empresas sociais”, empresas estatais criadas para impulsionar a economia comunitária (VALENÇA, 2018).
caracterizou pela ascensão de governos vinculados às classes subalternas e por
medidas que iam na contramão do modelo neoliberal, a década seguinte se notabilizaria
pelo movimento oposto.
Em verdade, o avanço na redistribuição dos excedentes se, de um lado,
aumentou mercados internos de consumo, de outro, reduziu a taxa de lucro; se
representou expansão para alguns setores do capital produtivo – tais como construção
civil, indústria naval, agroindústria – mostrava-se desinteressante ao capital financeiro e
às multinacionais.
A reação do capital, então, veio de maneiras diversas em todo o continente.
Honduras vivenciou um golpe de Estado de caráter militar; Brasil e Paraguai, golpes de
Estado de caráter judicial-parlamentar. Venezuela, Bolívia e Nicarágua foram alvo de
tentativas de golpe de Estado, mas, cuja essência estava na deslegitimação da
institucionalidade constituída. Neles, forças armadas e sistemas de justiça permaneceram
fiéis à ordem constitucional. Seja nestes países, seja no Brasil, país de Estado ampliado,
em que, para além do aparato repressivo estatal há diversas camadas no interior da
sociedade civil que inviabilizam uma tomada violenta do poder, mostrou-se necessário
mobilizar amplas massas para deslegitimar os processos políticos em curso.
Com as melhorias nos padrões de reprodução social, angariar essa massa para
mobilizar-se parecia, inicialmente, uma causa perdida. Ocorre que, aqueles elementos
fundantes da sociedade latino-americana, os ranços coloniais, mostraram-se como
alternativas para a cooptação de setores, especialmente urbanos, por mais que se
verbalizassem ao redor de outras pautas. Dessa maneira, apesar de focada no tema
“corrupção”, foi com o “kit gay” no Brasil e com a lei de identidade de gênero na Bolívia
que se mobilizou amplos setores ao redor de uma pauta conservadora. Na Venezuela,
com a recusa das forças armadas de abraçarem a proposta de ruptura, foram criados
grupos civis que praticaram inúmeros atentados ao longo dos últimos anos. Partindo do
princípio de que o chavismo é em si corrupto e deve ser eliminado, simpatizantes do
governo ou mesmo trabalhadores ou lumpens foram incendiados em diversas ocasiões.
Na Bolívia, durante a tentativa de golpe de Estado em 2008, no massacre contra
camponeses indígenas em Porvenir, índios eram torturados ao som de “masistas tem de
morrer”.
Tais experiências da atualidade recuperam alguns dos elementos principais do
fascismo. A propaganda pela eliminação do adversário político, a perseguição fundada na
cor da pele, orientação sexual, orientação política de esquerda, classe social; a
disseminação de grupos violentos ou armados paralelas às forças coercitivas estatais e,
frenquentemente, contando com sua aquiescência.
Em verdade, em nenhum destes países pode-se dizer que esteja em curso uma
experiencia fascista. Porém, é perceptível um avanço do capital sobre o trabalho11, a
partir de táticas distintas e específicas a cada realidade nacional. E, justamente a partir
deste elemento, é possível retornar à essência do fascismo, quando do seu
desenvolvimento em princípios da década de 1920. À época, as classes dirigentes
italianas perderam as condições objetivas de superar a crise estrutural do capital. Sendo
assim, ante ao avanço das classes trabalhadoras, dos conselhos de fábrica e da
possibilidade de a classe ir além de reformar o sistema e agir politicamente para
suplantar o sistema, o fascismo se mostrou como única alternativa viável para a
manutenção da relação capital x trabalho. Além disto, ao não existir a possibilidade de
superação da crise a partir de rearranjos dentre as classes dirigentes, o fascismo
distingue-se também por outro caractere: seu núcleo dirigente ascende do próprio interior
das classes subalternas. As elites dirigentes não mais conseguem dirigir, mas as classes
subalternas tampouco conseguem impor seu projeto político autônomo. O fascismo não
apenas se imiscui nas massas, mas eleva lideranças dessas massas a posições políticas
no interior do Estado, ou seja, os grupos dirigentes agora, saem do próprio interior das
classes trabalhadoras, porém não mais defendendo um projeto de emancipação das
mesmas.
Nos países sob governos que não realizaram profundas reformas no Estado e
disputa de hegemonia na sociedade civil, como no Brasil, a extrema direita mostrou-se
fundamental para a execração e deslegitimação das esquerdas. Inicialmente, as diversas
frações das classes proprietárias não visavam coloca-la no governo. A partir do momento
em que as antigas elites dirigentes mostraram-se inviáveis, ocorreu a adesão àquela. Já
na Venezuela, ações fascistas são ainda a esperança das classes proprietárias na
possibilidade de desestabilização interna, assim como a intervenção militar externa.
4.CONCLUSÕES
11
A similaridade das reformas trabalhistas brasileira e argentina (em tramitação no legislativo) apontam para isto; a tentativa de converter o sistema de repartição, da seguridade social brasileira, em um modelo de capitalização, semelhante ao chileno, também indicam este caminho.
O crescimento de manifestações fascistas na América Latina tem ensejado
debates dos mais diversos sobre suas origens e causas. No presente trabalho, resgatei a
formação social do continente – ou seja, aquelas características fundantes de
determinada sociabilidade, que expressam não apenas uma determinada época, mas os
seus pilares – para, a partir daí, analisar a realidade atual.
Como apontei, a América Latina se caracteriza por uma superexploração do
trabalho, decorrente na necessidade do capitalismo mercantil de expandir-se pelo globo.
Tal fato se deu com as especificidades de uma singular colonização, a partir da
subjugação de povos indígenas e africanos, além de estruturar-se ao redor do
patriarcado. Tais elementos, que formaram colônias estratificadas, hierarquizadas e de
desigualdade ímpar, permaneceram, mesmo após o período colonial. As formas políticas
alteraram-se, as relações sociais reais não.
As manifestações fascistas no continente recuperam esses tipos constitutivos de
nossa sociabilidade e, a partir deles, consegue movimentar massas, inclusive de setores
das classes subalternas. Mas, por outro lado, a batalha não é apenas cultural ou
simbólica; ela responde a uma necessidade de avanço do capital sobre o trabalho.
Impossível seria materializar esta ofensiva negando direitos e conquistas; mais fácil
mostrou-se reviver antigos fantasmas que ainda rondam o continente. Não para
transformá-lo e, sim, para conserva-lo nos moldes de uma sociedade colonial.
O avanço dos setores de extrema direita responde à atual crise estrutural do
capitalismo e como contradição intrínseca aos processos políticos de transformação
vivenciados no continente. Naqueles países onde buscou-se transformar os pilares da
sociedade, esta extrema direita encontrou barreiras até agora não superáveis. Em outros,
como no Brasil, ao optar-se por não disputar hegemonia, abriu-se as alamedas para a
passagem dos aspirantes ao fascismo.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O BRASIL DE VOLTA AO PASSADO: notas e expressões do Estado pós-eleições 2018
Ilse Gomes Silva12
Resumo O artigo analisa as transformações do Estado brasileiro pós-eleições 2018 que resultaram em um grande retrocesso político e social que atinge diretamente o regime político democrático e as condições de sobrevivência da maioria da população brasileira. A intenção é apresentar algumas medidas do governo do presidente Jair Bolsonaro que consideramos representativas da estratégia de desmontar o arcabouço jurídico-político de liberdade de organização política conquistado pelas lutas sociais dos trabalhadores a partir de meados da década de 1980 e que indicam que a cada momento avançam as medidas de exceção. Palavras Chaves: autoritarismo, governo, democracia Brazil Back in the Past: Notes and expressions of the post-election state 2018
The article analyzes the transformations of the Brazilian state after the 2018 elections that resulted in a great political and social regression that directly affects the democratic political regime and the survival conditions of the majority of the Brazilian population. The intention is to present some measures of the government of President Jair Bolsonaro that we consider representative of the strategy to dismantle the juridical-political framework of freedom of political organization conquered by the social struggles of the workers from the middle of the decade of the 1980 and that indicate that at every moment the measures of exception advance. Keywords – authoritarianism, government, democracy
INTRODUÇÃO
Com a força de destruição de uma barragem de rejeitos da VALE como a de
Brumadinho e Mariana13 a classe dominante brasileira se empenha em destruir todo o
12
Ilse Gomes Silva, professora titular da Universidade Federal do Maranhão da área de Ciência Política, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. [email protected] 13
O rompimento das barragens de Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019 é o mais cruel exemplo da ganância do capital. A mineradora VALE do Rio Doce não se importou com o meio ambiente tão pouco com as vidas das pessoas que morreram pelo rompimento dessas barragens de rejeitos da mineração do ferro. Os danos são irreparáveis: em Mariana morreram 19 pessoas e mais 200 famílias foram afetadas além da
legado das lutas democráticas dos anos 1980 e, mais recentemente, dos governos do
Partido dos Trabalhadores nos anos de 2002 a 2015. O ensaio desse processo foi
iniciado nas manifestações de 2013, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em
2016 foi a encenação do Golpe de Estado atualizado para as configurações do século
XXI e o governo ilegítimo de Michel Temer foi a preparação para dimensionar a força da
classe dominante em radicalizar as reformas neoliberais e conservadoras. Nesse
processo, a fração de extrema direita, representada pela candidatura de Jair Bolsonaro,
ampliou seu poder popular e garantiu a hegemonia de sua agenda sob as outras frações
da classe dominante e demais classes sociais.
A vitória do candidato do PSL à presidência da república inaugura uma nova
etapa de dominação de classe, aprofundamento das reformas neoliberais ao nível mais
perverso do capitalismo, novos e desafiadores enfrentamentos da classe trabalhadora. O
que está em jogo é o legado da civilização, mas o que se apresenta no horizonte é a
barbárie. As regras do jogo foram usurpadas pela extrema direita que tripudia das frágeis
instituições democráticas construídas recentemente pela histórica luta dos trabalhadores
em defesa da humanidade, do meio ambiente e dos direitos sociais e humanos.
Parte do eleitorado que garantiu a vitória de Bolsonaro foi às ruas, amparados
pelo regime democrático, clamar pela volta dos militares ao governo federal e pela
“intervenção militar já”. Os traços desse cenário foram desenhados desde 2013, quando
o Brasil vivenciou as várias manifestações de rua em todo o território nacional, que no
início apresentou um leque de palavras de ordem amplo, mas que se afunilou na
bandeira de combate a corrupção.
As manifestações de 201314 deram muitos frutos, uma boa parte amargo para os
setores de esquerda e respectivos movimentos sociais tanto sindical quanto popular.
Desses frutos amargos podemos destacar a emergência de movimentos sociais de direita
como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Movimento Vem Prá Rua, o Movimento S.O.S
Forças Armadas e a ascensão de lideranças partidárias que, a despeito de proclamarem
não serem políticos tradicionais, se elegeram com uma plataforma de campanha
ancorada na tradição dos costumes e da família, em princípios religiosos
neopentecostais, em propostas de reformas econômicas e sociais de regressão dos
direitos trabalhistas e sociais. O que se percebe é a reprodução de uma prática da velha
política tradicional ocultada por um discurso que ressalta o “novo” sendo que o “velho”
morte do rio Doce. Em Brumadinho o número de mortes cresceu, até o momento são cerca de 157 pessoas
e mais de 182 desaparecidos além da morte do rio Paraopeba. 14 Sobre as manifestações de 2013 vários artigos foram publicados destaco o dossiê da revista Lutas Sociais
n. 31 e o site marxismo21
permanece na origem dos candidatos, representantes de famílias tradicionais na política
e de partidos políticos que apenas trocaram de sigla15.
Conforme tenho escrito, a estratégia da classe dominante tem sido vitoriosa e
audaciosa apesar da resistência dos movimentos sociais e partidos de esquerda.
Consistiu em articular seus representantes no interior do aparelho de Estado no
executivo, legislativo e judiciário e nos aparelhos ideológicos de Estado, como a grande
mídia e instituições patronais como a FIESP para uma ação conjunta de intervenção nas
esferas políticas de modo a impor as reformas econômicas e sociais conservadoras,
retirar do governo federal o Partido dos Trabalhadores e derrotá-lo nas demais unidades
da federação.
A agenda conservadora é ampla e reconfigura a relação de forças entre capital/trabalho ao impor, por um lado, à classe trabalhadora um retrocesso às conquistas mais elementares de proteção social à ação predatória do capital. Por outro lado, o capital através dos seus representantes no Congresso Nacional e no Judiciário, garante o marco legal necessário para ampliar seus domínios e sua lucratividade. (SILVA, 2018: 505).
O cenário do Brasil pós-eleições de 2018 se aproxima do enredo de um filme de
volta ao passado. O presidente eleito em 2018, Jair Bolsonaro, nunca escondeu sua
admiração por figuras que estão no panteão da tortura do período da ditadura civil-
militar16 do mesmo modo que não poupa elogios aos regimes militares do Brasil e em
outros países da América Latina. Seu entusiasmo pelo legado da ditatura civil militar só
fica eclipsado diante da admiração submissa aos Estados Unidos da América. Os
exemplos das situações de exceções são grandes. Em todos os ministérios encontramos
os retrocessos às conquistas expressas na Constituição Federal de 1988, em uma clara
identificação com os interesses de ruralistas, da indústria das armas, do capital bancário,
de grupos religiosos, homofóbicos e racistas.
15 Alguns partidos políticos usaram como marketing para burlarem o desgaste com os eleitores a estratégia
de mudaram de nome ou retirarem a palavra “ partido” para legitimar o discurso de uma nova política, mascarando que seus membros e seu programa permanecem originários dos partidos de prática tradicional. Podemos listar, dentre eles, o Partido da Frente Liberal (PFL) que hoje chama-se Democratas (DEM); o Partido Trabalhista do Brasil (PTdoB) transformou-se em Avante; o Partido Trabalhista Nacional (PTN), com 72 anos de existência, agora chama-se Podemos. Tenha mais informações emhttps://www.cartacapital.com.br/politica/por-que-os-partidos-politicos-querem-mudar-de-nome/. Consultado em 03/03/2019. 16
Em 2016, o então deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e seu filho Eduardo Bolsonaro (PSC/SP) votaram pelo encaminhamento do processo de impeachment de Dilma Rousseff ao senado, na ocasião dedicaram seu voto aos militares de 1964 e ao Coronel Carlos Alberto Ustra, conhecido torturador no período da ditadura civil militar que foi responsável pelas sessões de tortura da ex-presidente. “Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, o meu voto é sim”. https://exame.abril.com.br/brasil/eduardo-bolsonaro-celebra-impeachment-agradecendo-torturador/
Nesse artigo, vamos nos dedicar em algumas medidas do governo de Bolsonaro
que consideramos representativos da estratégia de desmontar o arcabouço institucional
de liberdade de organização política e que indicam que a cada momento avançam as
medidas de exceção.
2. GOVERNO BOLSONARO: liberdades políticas e direitos humanos ultrajados.
O presidente eleito em 2018 executa a agenda conservadora de campanha sem
muitos retoques e aprimora as medidas de desmonte dos direitos políticos e sociais
iniciada na gestão de Michel Temer, quando assumiu a presidência da república após o
golpe de 2016. A falta de legitimidade de Temer e a resistência popular que pressionou
os parlamentares em ano eleitoral, não permitiram que a agenda conservadora fosse
implementada em sua totalidade. Entretanto a vitória nas urnas conferiu a Jair Bolsonaro
a legitimidade necessária para tomar nas primeiras horas de seu governo as medidas
essenciais para acelerar a implementação da agenda conservadora.
O governo Bolsonaro tem um perfil militarizado, fascista, racista, homofóbico e
ultraliberal. Esse perfil está expresso na presença de militares em cargos estratégicos do
primeiro, segundo e terceiro escalão, na militarização e criminalização da questão social
e dos movimentos sociais e na política econômica e agenda conservadora de reformas.
Para Iasi (2019) a aparência burlesca e imbecilizada do governo constitui uma eficiente
estratégia para mascarar os interesses do capital que miram as áreas lucrativas que
ainda estão sob a responsabilidade do Estado. Nesse bloco no poder estão empresários
da área da saúde e da educação, indústria farmacêutica, banqueiros, ruralistas e
industriais que se beneficiam com as reformas neoliberais como a reforma trabalhista e
da previdência dentre outras medidas do governo.
Do ponto de vista da presença dos militares pode-se afirmar que este é o governo
de maior presença de generais em pontos estratégicos e gerenciando altos orçamentos
desde a redemocratização. A concepção militarizada e conservadora da sociedade
orienta a política do governo federal e para ser efetivada necessita do controle militar de
diversas áreas como comunicação, hidrelétricas, gestão hospitalar, Correios, Caixa
Econômica e a FUNAI, dentre outras. Estão presentes em 8 ministérios dos 22 definidos,
e naqueles que são comandados por civis, os militares estão em cargos importantes de
comando como por exemplo o Ministério da Educação que tem como assessor especial o
coronel do exército Robson Santos da Silva. Merece destaque não apenas a presença
dos militares em posto de comando do governo mas também o alinhamento com as
políticas ultraliberais de privatização de empresas estratégicas que estão sob o seu
comando, a exemplo da Petrobras e Eletrobrás.
Os tentáculos da presença dos militares se estendem para as demais unidades da
federação e para amplos setores da sociedade civil, principalmente para a área da
educação. O governo tem elogiado e priorizado as escolas militares na mesma medida
que critica as universidades e o ensino público ao extinguir pastas importantes de
projetos de alfabetização e diversidade de conteúdo e impulsionar o projeto da Escola
sem Partido. O Ministro da Educação exigiu que professores, alunos e funcionários
ficassem perfilados diante da bandeira brasileira, cantassem o hino nacional e
reproduzissem o slogam de campanha de Jair Bolsonaro17 nas escolas públicas e
privadas, no mesmo momento que anunciava uma Lava Jato da Educação com a
justificativa de haver indícios de corrupção na área da educação, principalmente nos
programas das gestões do PT como o Programa Universidade para Todos (ProUni),
Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Empego (Pronatec), dentre outros.
Essa força tarefa contra o ensino público, a autonomia das universidades e censura aos
professores foi subscrita pelos ministros Sérgio Moro, da Justiça, Wagner Rosário da
Controladoria Geral da União, por André Mendonça, Advogado-geral da União.
A face racista e homofóbica foi exposta na longa trajetória parlamentar de
Bolsonaro, reforçada na campanha e consolidada na atual política governamental,
principalmente a direcionada para os direitos humanos e para a educação. Uma das
primeiras medidas de Bolsonaro foi modificar o Ministério dos Direitos retirando o seu
conteúdo ao transformá-lo em Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos18 com
indicações antifeministas e religiosas enquanto esvaziava pastas e programas de apoio e
proteção aos grupos LGBTI. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares
Alves, pastora ligada ao ex-senador Magno Malta (PR/ES) tem sido alvo de muitas
críticas pelas suas declarações conservadoras, preconceituosas e questionadoras sobre
as principais conquistas do movimento de mulheres. A forma como tem tratado o
aumento de casos de violência contra a mulher reforçando comportamentos arcaicos de
17
MEC envia slogan de campanha de Bolsonaro para ser lido em todas as escolas https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/25/politica/1551131887_454015.html. Consultado em 08/03/2019. Kroton e Estácio caem mais de 5% na Bolsa após Bolsonaro anunciar 'Lava Jato da Educação' https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/02/kroton-e-estacio-caem-6-na-bolsa-apos-bolsonaro-anunciar-
lava-jato-da-educacao.shtml. Consultado em 08/03/2019 18
Para um quadro do ataque do governo Bolsonaro aos direitos humanos pode-se consultar Os ataques aos direitos humanos no 1º mês do governo Bolsonaro. https://vladimirherzog.org/os-ataques-aos-direitos-humanos-no-1o-mes-do-governo-bolsonaro/. Consultado em 09/03/2019.
que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” não combate as bases culturais que
alicerçam a violência contra as mulheres.
A ministra também é consignatária da campanha contra a chamada ideologia de
gênero que estaria presente nas escolas públicas através do ensino de gênero no
conteúdo das escolas do ensino médio. Na compreensão da ministra “enquanto meninos
acharem que são iguais a meninas, como se pregou no passado algumas ideologias, ‘já
que a menina é igual, ela aguenta apanhar’. O Ministério também foi notificado pela
Procuradoria Federal do Direito do Cidadão e pelo Conselho Nacional de Direitos
Humanos para dar explicação sobre a paralização de alguns conselhos como Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Comitê Nacional de
Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR) , Comitê Nacional de Respeito à Diversidade
Religiosa (CNRDR), Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o
Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI)19
A cruzada religiosa e política contra o grupo LGBT tem em Jair Bolsonaro o
principal militante. Desde a campanha à presidência que Bolsonaro postava nas redes
sociais ou não disfarçava sua homofobia e transfobia. Em fevereiro 2019, por ocasião do
julgamento do STF das ações movidas pelo Partido Popular Socialista (PPS) e pela
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT)20 que solicitavam a
criminalização da homofobia, Bolsonaro reafirmou sua posição ao reproduzir no twitter
um trecho da defesa do advogado-geral da União, André Luiz de Almeida Mendonça
quando sustentava que “Não há na Constituição a obrigação de que o Poder Legislativo
criminalize a "homofobia" e, dessa forma, não é possível citar mora legislativa para
justificar o uso da ferramenta do mandado de injunção”21 Enquanto isso o Brasil figura
como um dos países mais perigosos para esses grupo. Segundo dados da ONG
Transgender Europe (TGEU), de 1 de janeiro a 30 de setembro de 2018, foram
assassinadas 271 pessoas transgênero em 72 países, sendo o Brasil com o maior
número de casos com 125 pessoas22.
A política de controle e criminalização da atuação política dos movimentos das
classes trabalhadores está contida no pacote anti-crime do ministro da Justiça, Sérgio
19
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,procuradora-pede-esclarecimentos-a-damares-por-paralisacao-de-conselhos,70002748458. Consultado em 09/03/2019 20
Para Bolsonaro, homofobia não precisa ser crime no país que mais mata LGBT. https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/383783/Para-governo-Bolsonaro-homofobia-n%C3%A3o-precisa-ser-crime.htm. Consultado em 13 de fevereiro de 2019 21
Para AGU, cabe ao Congresso decidir se criminaliza homofobia.
www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/721821. Consultado em 13 de fevereiro de 2019.
22 http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-11/de-janeiro-setembro-271-transgeneros-
foram-mortos-em-72-paises. Consultado em 21 de março de 2019
Moro, e no monitoramento dos militares sobre setores como a Igreja Católica e entidades
de apoio aos indígenas e quilombolas. Por ocasião da preparação do Sínodo sobre a
Amazônia, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) na figura do Ministro General
Augusto Heleno, afirmou que a Igreja Católica não estava sendo investigada pela
Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) mas manifestou uma “preocupação funcional”
com os pontos de pauta do evento que entre outras coisas discutirá sobre a situação dos
povos indígenas e quilombolas23. O governo enxerga como ameaça a segurança
nacional a organização política das comunidades indígenas e aponta a Igreja Católica
como responsável por esse processo, principalmente pela atuação do CIMI – Conselho
Indigenista Missionário.
O pacote Anticrime24 objetiva endurecer a ação governamental no combate à
corrupção, ao crime organizado e a crimes violentos e tem recebido muitas críticas de
juristas e de militantes da esquerda. Os pontos que nos interessa comentar são os que
dizem respeito ao controle das entidades populares pela criminalização das
manifestações de oposição ao governo e a liberalização da violência policial por meio do
alargamento do artifício da legítima defesa em situação de “medo, surpresa ou violenta
pressão”25
O controle das entidades sindicais e populares ocorre principalmente pela
intervenção articulada do Ministério da Justiça no enquadramento das lideranças na
concepção de organização criminosa e no modo de financiamento dos sindicatos. O
conceito de organização criminosa da Lei nº 12.850/2013 desde a sua promulgação tem
sido utilizado para criminalizar militantes e organizações que fazem manifestações de
resistência ao governo. Martins at all em matéria do Brasil de Fato o pacote do Ministro
Sérgio Moro “é um demonstrativo do aguçamento de conflitos e dos mecanismos
existentes para enquadrar lutas sociais como crimes, de transformar conflitos políticos em
casos de polícia” de modo a “impor uma (já alta) pena mínima de 6 anos e uma
escandalosa pena máxima de 30 anos de reclusão à hipótese em que, da resistência,
23
O Sínodo da Amazônia acontecerá em outubro de 2019, em Roma e tem como objetivo discutir a Pan-Amazônica em seus aspectos de preservação das florestas e proteção das comunidades indígenas. No Brasil a responsabilidade pela discussão da pauta do Sínodo é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. O governo Bolsonaro já manifestou preocupação com a presença da Igreja Católica junto à comunidades indígenas. https://oglobo.globo.com/brasil/gsi-admite-preocupacao-mas-nega-acao-contra-igreja-catolica-sobre-amazonia-23444343. Consultado em 21 de março de 2019. 24
O pacote Anticrime foi enviado pelo ministro Sérgio Moro ao Congresso Nacional em dia 04 de fevereiro de 2019 25
Projeto de Lei Anticrime: veja a íntegra da proposta de Sérgio Moro. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/04/projeto-de-lei-anticrime-veja-a-integra-da-proposta-de-sergio-moro.ghtml. Consultado em 22 de março de 2019
resultar morte ou mesmo risco de morte a funcionário público ou outra
pessoa”. (MARTINS at all, 2019)
O artifício do alargamento do conceito de legitima defesa legitima e protege o
policial que praticar os chamados excessos em situação de “comprimento do dever legal”
e desprotege o cidadão que se torna vítima desses excessos. As denúncias de violência
e de envolvimento em chacinas, os altos índices de assassinatos praticados por policiais
em serviço, a formação das milícias e dos esquadrões de morte, o aumento de
assassinatos de lideranças políticas são dados representativos do perfil violento e
ameaçador do policial brasileiro que nutre o preconceito contra os membros das classes
populares apesar da maioria da corporação, dos escalões mais baixos, serem oriundos
dessas mesmas classes. A ação violenta da polícia brasileira, como estratégia para o
enfrentamento da criminalidade e da resistência política e o projeto de ampliação do porte
de armas encontram apoio em parte significativa da população e tem rendido votos a
vários candidatos26 ligados as forças armadas ou as polícias.
Em nota, o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS
denuncia e alerta a população dos riscos aos direitos humanos inclusos no pacote do
Ministro da Justiça. Considera que:
A proposta também apresenta um reforço às técnicas arbitrárias comumente utilizadas pelos agentes de segurança pública contra movimentos sociais e populações vulneráveis (negros/negras, LGBTs, indígenas, quilombolas), como os “autos de resistência”, através de subterfúgios legais como a legítima defesa específica para agentes policiais, ou mesmo a possibilidade de isenção de pena por “excesso doloso por escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Amplia, ainda, o conceito de organizações criminosas, junto da inserção de meios de obtenção de provas flagrantemente inconstitucionais. (IPDMS, 2019)
O projeto anticrime do governo federal mira na classe popular seu arsenal militar
de modo a mantê-la sob controle tanto do ponto de vista político quanto do controle
espacial e dos corpos. Aumentar a população de encarcerados não preocupa o governo
uma vez que a maior parte é oriunda das classes populares, moradora dos bairros de
periferia ou de favelas. Essa é a política para esses segmentos, ao criminalizar a pobreza
e os movimentos sociais o governo deixa claro que não tem um projeto de ampliação de
postos de trabalho, moradia popular e de melhoria da educação e saúde.
26
Nas eleições de 2018 o TSE registrou 1137 candidatos que autodeclararam serem militares ou policiais, sendo 73 eleitos. Dos eleitos, 58% pertencem ao partido PSL do presidente Jair Bolsonaro. No Congresso Nacional 14 estão na Câmara dos Deputados e 03 no Senado. Esses dados chamam atenção tanto pelo crescimento do número de candidatos e do número de eleitos, quanto penetração do discurso militarizado no tratamento das questões sociais do Brasil nas camadas populares. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-policiais-e-militares-no-legislativo-e-quatro-vezes-maior-do-que-o-de-2014.ghtml. Consultado em 22 de março de 2019
O projeto político do governo Jair Bolsonaro inclui ainda a apologia à ditadura
militar e empreende uma jornada de reescrever a história do golpe militar de 1964. Por
ocasião da data oficial indicativa da tomada de poder dos militares no governo federal,
dia 31 de março de 1964, dois fatos provocaram uma série de movimentos de protestos
em todo o país. O primeiro se refere a determinação do presidente Jair Bolsonaro ao
Ministério da Defesa de comemorar27 os 55 anos do golpe militar e o segundo foi
protagonizado pelo Ministro da Educação, Velez Rodrigues, ao declarar que pretende
fazer uma revisão dos livros didáticos sobre o golpe militar de 1964, uma vez que
considera que não ocorreu uma ditadura militar no Brasil.
A intenção do governo federal de comemorar o golpe militar de 1964 provocou
reações no interior do próprio governo, com o militares recomendando cautela nesse
processo considerando que desde o governo Dilma Rousseff essa data foi retirada do
calendário das atividades do Exército. No campo jurídico o governo foi interpelado pelo
Ministério Público Federal28 que considerou crime de responsabilidade essa
determinação do presidente. Na sociedade civil diversas atividades e atos denunciando
as atrocidades da ditadura militar foram organizados em várias cidades do país, em
muitos deles ocorreu confrontos com apoiadores do presidente que também realizavam
atos em defesa da ditadura militar. Do mesmo modo que historiadores e intelectuais
repudiaram a declaração do Ministro da Educação29 de construir uma nova narrativa
sobre o golpe militar, desconsiderando os fatos históricos e todo o material produzido
sobre esse período.
3 INCONCLUSÕES
27
Essa decisão de comemorar o regime militar no dia 31 de março foi afirmada pelo porta-voz da presidência
da república, general Otávio Rêgo Barros, no dia 25 de março, por Jair Bolsonaro considerar que os militares conseguiram “recuperar e recolocar o nosso país num rumo que salvo melhor juízo, se tudo isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém". https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/bolsonaro-determinou-comemoracoes-devidas-do-golpe-de-1964-diz-porta-voz.shtml. Consultado em 04 de abril de 2019 28
O Ministério Público Federal foi representado pela Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão (DFPC) e por meio de nota declarou que "O apoio de um presidente da República ou altas autoridades seria, também, crime de responsabilidade (artigo 85 da Constituição, e Lei n° 1.079, de 1950). As alegadas motivações do golpe – de acirrada disputa narrativa – são absolutamente irrelevantes para justificar o movimento de derrubada inconstitucional de um governo democrático, em qualquer hipótese e contexto" https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/03/26/interna_politica,745525/mpf-fala-em-crime-de-responsabilidade-de-bolsonaro-ao-exaltar-golpe-de.shtml. Consultado em 05 de abril de 2019 29
Segundo o Ministro da Educação as mudanças na narrativa sobre o golpe de 1964 serão progressivas de modo a garantir que “as crianças possam ter a ideia verídica, real, do que foi a sua história” https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/04/ministro-da-educacao-diz-que-pretende-revisar-livros-didaticos-sobre-o-golpe-de-1964-e-a-ditadura-militar.ghtml. Consultado em 06 de abril de 2019.
A caracterização do perfil do governo Bolsonaro e da base de apoio parlamentar e
de massa que sustentam o seu governo ainda é motivo de controvérsias. Como definir o
regime político do Brasil quando o governo federal determina a comemoração de uma
ditatura militar que torturou, matou, desapareceu com milhares de pessoas, que fechou o
Congresso Nacional, estabeleceu a censura na imprensa e nas artes e proibiu qualquer
manifestação de protesto? Qual a perspectiva do regime político quando se empreende
uma série de reformas do arcabouço jurídico político que apontam a destruição de todo o
legado das lutas sociais desde a década de 1988? Até onde chegará o retrocesso
civilizatório desencadeado pela política de incentivo ao ódio aos direitos humanos, sociais
e políticos das classes trabalhadoras?
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível constatar. (BRUM, 2019)
Os 100 primeiros dias do governo do presidente do PSL foram marcados por
desencontros de declarações entre o presidente e seus ministros, por crises políticas
provocadas pelos filhos do presidente, pelo crescimento da presença militar em seu
governo, pelo crescimento do desemprego e da pobreza, por completo despreparo
político e econômico do presidente em eventos internacionais e uma política externa
submissa aos interesses dos EUA.
No plano econômico, a agenda conservadora de reformas depende dos velhos
acordos políticos entre os partidos da base de apoio do governo. Uma das principais
ações do governo é a reforma na previdência social, a partir da qual o governo tem
colocado todas as suas energias para a aprovação, em uma campanha que condiciona o
crescimento econômico do país às mudanças na previdência, na desvinculação de
receitas e despesas do orçamento público e o mais grave é retirar do Estado a
obrigatoriedade dos gastos públicos com setores essenciais como a saúde e a educação.
Entretanto, apesar da política conservadora do governo se confrontar com
qualquer proposta civilizatória construída ao longo das últimas décadas no Brasil, ela
encontrou um forte apoio nas camadas populares, tem sido violentamente imposta à
população e alimenta o aumento dos índices de assassinatos de mulheres,
homossexuais, lideranças indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais. A resistência ao
governo de Bolsonaro ainda é tímida diante da gravidade da situação e não provocou
mudanças de rota, além de algumas questões pontuais de tática política. O grande
capital, que tem patrocinado a agenda de regressão de direitos, encontra no autoritarismo
do governo Bolsonaro a condição necessária para garantir a realização dos seus os
interesses de exploração, humilhação e dominação dos trabalhadores. Portanto, cabe às
classes trabalhadoras avançar na organização e na resistência caso contrário não restará
horizonte para a vida.
4 BIBLIOGRAFIA
BRUM, Eliane. Bolsonaro manda festejar o crime. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/27/opinion/1553688411_058227.html. Consultado em 06 de abril de 2019. IASI, Mauro. fetichismo e as formas políticas: o Estado burguês na forma burlesca.
https://blogdaboitempo.com.br/2019/02/14/o-fetichismo-e-as-formas-politicas-o-estado-
burgues-na-forma-burlesca/ Consultado em 03/03/2019
Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS. Nota do IPDMS sobre o
“PL anti-crime” do Ministro Sérgio Moro. http://www.ipdms.org.br/2019/02/06/nota-do-
ipdms-sobre-o-pl-anti-crime-do-ministro-sergio-moro/. Consultado em 22 de março de
2019
MARTINS, Carla Benetez, RIBEIRO, Homero Bezerra, SERRA, Marco Alexandre de
Souza e BUDÓ, Marília de Nardin. Como o pacote de Moro pode impactar nas lutas dos
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moro-impactaria-as-lutas-dos-movimentos-populares/. Consultado em 22 de março de
2019.
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Estado de exceção avança. Revista de Políticas Públicas, v. 22, Número Especial da VIII
JOINPP – 1917-2917, 2018.