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A mão estendida de

Pooja

CONTOS DE WELINGTON JOSÉ FERREIRA

ISBN 978-1-329-65515-72

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Índice

PATOMORPHIATSAR IVANA MÃO ESTENDIDA DE POOJAA HISTÓRIA DO CACHORRO VELHO E DO CACHORRO NOVOTAMARPING PENGO MENINO E O RELÓGIOPROJETO CODINOMEA LENDA DO HOMEM QUE DOMINOU A ÁGUAE EU COM ISSO, PHEBO? – SOBRE UMA ODE DE ODÍLIOOS PORTAIS (JZ 16.1-3)FOLCLORE, O CONTO - O HOMEM QUE ESTOCAVA VENTO...PORTA DE SAÍDAJAGUNÇADAO CONSELHO DE AITOFELDAS PROFUNDEZASA MORTE DE EVACARTAS SOBRE DRAGON WARRIORPONTES INACABADASNARCISAOS PORTAIS DE ADELANTETE DISSERAM

PATOMORPHIA

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A Patilha (patilha: ao contrário do que o Aurélio diz, é uma mistura de patos

com matilha) grasnava desconfiada na entrada do Curral dos Patos naquele

sítio em Paty de Alferes. A chuva patente trazia consigo um patamar de

patiferinas (essa eu inventei) trovoadas. A repórter se sentia como uma pata,

sem entender patavina do que iria encontrar ali. O Portão rangeu

demonstrando patologia de antiguidade, ferrugem. Abandonado. Patife.

Aquela patuscada só poderia ter saído da mente sádica do seu editor chefe.

Como era mesmo o assunto que ele se referiu? Patognoscia? Não.

Patogênese? Talvez. Ela já estava sentindo uma patognomia alérgica. Bateu a

porta do sítio abandonado.

Grasnavam gansos distantes escondidos na penumbra.

Alguém veio abrir, passos lépidos sobre o patíbulo. E olha que ainda falavam

sobre paternalismo no seu trabalho. Patetas. Era ela que estava ali no meio do

nada, na chuva e não eles. Quem abriu a porta, ela não sabia quem, grasnou...

Ou quase isso...

Com uma voz rouca gritou: - Entra! E antes que pudesse ser visto, sumiu pela

escuridão fantasmagórica do patódromo. Só podia chamar aquela coisa de

patódromo. Na verdade, havia alguma luz. Uma lamparina iluminou um

pouco o piso rústico de madeira desconhecida, coberto por penas.

Penas?

A voz rouca convocou a assustada repórter:

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- Venha até aqui.

Ela foi. Passou pelo primeiro patamar, ultrapassou o pórtico, pateando. O

indivíduo não se mostrava. Ficava envolto na escuridão. Movia-se

estranhamente. Patrícia iria agradecer pessoalmente essa patifaria do seu editor

chefe se sobrevivesse.

- Patinha, essa entrevista vai ser a mais fácil de toda sua carreira.

O Editor sorria. Odiava ser chamada por aquele apelido. Continuou:

- O professor é meio excêntrico e há muitos anos se isolou em seu sítio em

Paty de alferes. Sua grande chance Patinha! Minha grande chance. Pensava.

Ela imaginou a pátera (taça) contendo sangue para o sacrifício sendo erguida

enquanto o editor emitia a autorização para sua saída. Ao ouvir a voz gutural

da figura sombria que iria entrevistar era como se estivesse em patte.

(jogada do xadrez em que o rei não pode se mover). Que situação patética.

Os gansos grasnavam mais alto que os trovões.

A voz rouca e patibular (com certa intenção criminosa) iniciou seu monólogo

tão rapidamente que Patrícia quase não teve tempo de ligar o gravador.

- Meu nome você já sabe qual é. Eu sou Patelseer. Mc Voon Patelseer. Meus

estudos genéticos sobre melhoria de linhagem dos anseriformes, da família

dos anatídeos, vulgarmente conhecidos como patos, são reconhecidos

mundialmente. Nesse momento Patrícia julgou vislumbrar uma patorra. Um

imenso pé. (Aquilo era um pé?) Estava assombrada com a situação. Sentia-se

como uma pata choca. Como levar a sério aquela patacoada? (coisa que não se

leva a sério, disparate) Acreditar num vulto, numa voz na escuridão.

Relampejava.

Cada trovão era como uma patada na sua testa. Acalme-se, seja uma

profissional, pensava. Prestaria atenção naquele grasnador. (aquele que

grasna). 5

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- Numa noite, há anos atrás, desenvolvi um composto para dar a patos

domésticos a resistência contra doenças que os marrecos possuem. Trabalhava

com um composto genético. Levava uma das cobaias juntamente com a

injeção contendo o composto para o laboratório. Escorreguei numa poça

causada pelo vazamento de uma mangueira e na queda, além de matar o pato,

acidentalmente injetei em mim parte da solução.

O vento gelado sibilando apagou a lamparina. Patrícia escutou um terrível

grasnido. Com o susto deixou cair o gravador. A pancada do aparelho no

chão assustou Von Patelseer. Grasnando ele gritou:

- Eu disse que não queria que minha entrevista fosse filmada ou gravada!

Esse sujeito devia ter alguma patogenia grave. Subitamente, uma cortinada se

rasgou, o barulho de vidros espatifando-se no chão desviou sua atenção.

Patrícia correu para fora da casa, assustada no meio da chuva torrencial, olhou

para o lado, o da janela quebrada e vislumbrou alguém correndo em meio às

sombras, desajeitadamente. Então relampejou. Sob o clarão do relâmpago ela

viu um imenso pato correndo. O maior de todos que ela já viu, sumindo em

direção as colinas do Curral dos patos. Não tinha entendido patavina. A não

ser que... Aquele pato... Não fosse um pato... Não.

Chega de patranhas.

Dizendo adeus ao Curral dos patos, entrou no carro e nunca mais voltou

àquele lugar.

O editor chefe ainda a chama de Patinha. Ela ainda odeia esse apelido.

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Patomorphia

"Não pergunte por quem os patos grasnam

Eles grasnam por ti"

Parafraseando o Ernest

vixe.

Seis meses depois.

- Patabéns pra você! Nesta pata querida! Muitas patacidades! muitos patos de

vida!

- Patinha! Patinha! Patinha!

O barulho ensurdecedor daqueles apitos que imitam pato ainda iria tirar

Patrícia do sério. Ela sabia que o apelido tinha começado na seção de

homicídios lá na redação. E era justamente na seção de homicídios que ela iria

aparecer, não como entrevistadora, se descobrisse de quem tinha sido a

proeza. As paredes do escritório foram decoradas, como não poderia deixar

de ser, com motivos patinos. Uma cena pintada à mão pelo Carl Barks com o

Pato Donald descendo o Vale Perdido, onde iria encontrar um povo que

nunca vira um objeto redondo, cobria a imensa janela de blindex cinza do

lado do edifício. Até o palhaço do editor usava um boné de marinheiro. O

bolo imenso com velas em forma de patinhos era trazido pelo office-boy do

setor.

Ele iria morrer.

- Patinha! Patinha! Patinha!

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Aline, Vera e Célia, suas colegas de setor, Luciana, Angela e Michelle, do

andar inferior, faziam a festa, em conjunto com Alexandre, o Borges, Oliva e

o Márcio. O Márcio distribuíra os apitos. Márcio iria morrer juntamente com

o office-boy.

Patrícia se deleitava ao imaginar a cena da janela de blindex se estilhaçando

enquanto o Borges e o Márcio eram atirados do oitavo andar da Redação. Só

que nessa hora, o blindex se estilhaçou, MESMO.

De verdade.

A pintura do Carl Barks se rasgou, enquanto os pequenos estilhaços voavam

para dentro do setor aos gritos assustados de todos os que presenciavam a

cena. Algo entrara no edifício, violentamente e agora estava de pé sobre a

mesa próxima ao janelão.

- VEJAM! GENTE! QUE BARATO! É O PATO DONALD!

Os presentes abriram os olhos, ainda retirando os estilhaços de sobre o

cabelo, olhavam espantados ao imenso bico do "fantasiado" a sua frente.

Irromperam em aplausos.

- UAU! DEMAIS! Gritava o Borges.

O imenso pato com uma roupa estranha correu em direção a Patrícia. O

pessoal estava exagerando naquela brincadeira. Todos iriam morrer, pensava.

O 'pato' sem nenhuma parcimônia segurou seu braço, a jogou sobre os

ombros, sobre os aplausos de toda a platéia forçada e se dirigiu ao janelão.

-PATINHA! PATINHA! PATINHA!

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O fantasiado olhou para trás semicerrou os olhos sobre o bico amarelo e

pulou, enroscou a mão com quatro dedos numa espécie de corda e pulou! O

escritório explodiu em aplausos.

- PATINHA! PATINHA ! PATINHA!

O Márcio sorriu, virou para o Editor-chefe, cumprimentando-o:

- Foi a melhor festa de aniversário da minha vida!

Raptada pelo pato Donald. Era só o que lhe faltava. Todos iriam morrer.

Patrícia fervia de raiva. Nunca imaginou que eles pudessem ir tão longe.

Quanto se soltasse daquele artista circense, cabeças iriam rolar, a golpes de

machado.

- Me solta seu pato ridículo, chega, o espetáculo terminou!

O grasnido familiar despertou as lembranças da jornalista.

- Ainda não. O espetáculo começa agora...

Um grito sufocado partiu das entranhas da jornalista

- Von Pateelser.

Patomorphia

- Patos! Eu odeio Patos.

Patrícia sempre manteve uma certa distância dos anatídeos anseriformes. Isso

desde pequena; quando uma criatura branca de longo bico e aparência

malévola, correu atrás dela por trinta minutos, no sítio de seus pais. O animal

incansável a perseguiu inabalavelmente através da casa, atrás dos móveis, pôr

sobre a cama, na cozinha, no milharal, no curral, na casa da árvore, no lago, na

fonte, ao redor do poço, no estábulo, na adega, na dispensa.

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- Patos, odeio patos!

Agora, adulta, recuperada, suportava a infeliz sina de ser {rapatada} por um

sobrinho do tio Patinhas com excesso de hormônio de crescimento e certo

complexo de homem-aranha, sendo carregada sobre telhados dos prédios ao

redor de sua redação.

- Patos, odeio patos.

- Me larga seu pato nojento!

O pato impassível lançava os ganchos no próximo telhado e pulava para pegar

a corda que pendia perigosamente a metros de distância entre os vãos que

separavam os edifícios. Se o maldito errasse um daqueles saltos, era a morte

certa. Dava para sentir o cheiro das penas das mãos da criatura queimando

quando segurava novamente a corda após cada salto impressionante. Patrícia

estava ficando enjoada.

- Paaaaaaaaatoooooo desgraçaado!

Foi muito complicado explicar para a polícia que uma das jornalistas foi

raptada pelo sobrinho da vovó Donalda.

- Um pato? Vocês querem me fazer acreditar que um cara vestido de pato

destruiu metade da redação e com uma jornalista sobre os ombros pulou pôr

aquela vidraça espatifada a oito andares do nível da rua, fora as garagens?

O editor-chefe acenou com a cabeça, afirmativamente...

O Pato pateta parou. Num edifício qualquer. Respirava profundamente.

Parecia cansado. Era sua chance. Ela dá uma cotovelada na cabeça do animal

e um voleio com o corpo. O pato geme. O pato geme? Desde quando um

pato gemia? Patrícia cai sobre uma parte do telhado, infelizmente, uma

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claraboia. Era um telhado de vidro, um "must" arquitetônico, com sérios

problemas de resistência a choques.

O período de tempo em que acontecem trinta metros de queda livre de um

corpo, até um piso (do que parecia ser um Shopping Center) parece uma

eternidade, quando você cai envolta numa armação metálica coberta de vidro

multicolor.

O pato se atirou atrás da jornalista, agarrando uma corda de aço que amarrava

a estrutura, conseguindo segurá-la a dois metros do chão. Com o impulso os

dois vão parar no segundo piso, enquanto o vidro do telhado se espatifa no

meio do salão. Olhares espantados os cercam quando os dois caem dentro de

uma loja da Boticário, estourando a vidraça e espalhando frascos de

Insensatez, Freur e Florata in Blue sobre as lojistas aterrorizadas.

Pelo menos iria morrer perfumada.

Patrícia está zonza, mas, percebe que a criatura está caída atrás do balcão. A

questão não era se conseguiria correr... Mas... Se conseguiria correr muito...

O pato imortal levanta a cabeça...

Patrícia corria desesperada pelos corredores do shopping. O pato ia atrás.

- MAMÃE! MAMÃE OLHA LÁ, O PATO DONALD! Gritou uma criança

extasiada com a imensa criatura correndo desajeitadamente na tentativa de

capturar sua presa. Ela entrou numa loja da C & A, derrubando duas clientes

e mais um pedestal, tipo arara, contendo blusas de Cotton. A criatura saiu

arrastando vários pedestais. Chovia calças jeans no amplo salão da C & A.

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Patrícia queria gritar por socorro, todavia, pensava, o que iria gritar? Tem um

pato psicopata querendo me raptar? Salvem-me do pato? Ajudem-me, um

pato louco me persegue? Melhor correr. Dois seguranças verificando a

baderna causada pela perseguição vão ao encalço dos dois. Patrícia desce a

escada rolante. A escada rolante errada. Aquela era a de subida.

- Com licença!

E saiu atropelando quem tentava ir para o segundo andar. Conseguiu.

Atravessou como uma bala o térreo da loja, porém quando estava quase

conseguindo sair foi barrada por dois corpulentos vigilantes. E lá vinha o

pato. Os seguranças não sabiam exatamente o que fazer. Podia ser uma

promoção qualquer da loja. Talvez não. O Pato se atirou sobre os três,

deixando penas sobrevoando o salão e lá se ia outro blindex. Os dois

vigilantes voaram juntamente com os manequins pela vitrine enquanto o pato

caía com Patrícia na parte externa da loja. Outro pontapé. Desta vez no bico

do animal. Outros guardas ajuntaram-se no local. A polícia conseguiu chegar à

parte externa do shopping e seis seguranças corriam em direção da

estranhíssima cena. Três deles se jogaram sobre o "louco fantasiado" -

conforme disseram nas entrevistas subsequentes - nada conseguiram. O

"fantasiado" se levantou com os três sobre si como se levantasse papel.

Patrícia escapou, indo para a calçada na frente do shopping, descendo

desenfreadamente as escadarias de acesso. Sentiu um profundo alívio quando

se deparou com mais de doze viaturas da polícia fortemente armadas. Mais

dois seguranças saíram do shopping. Só que não voluntariamente.

O pato psicopata emergiu como um bólido penoso pelas portas semiabertas.

Doze escopetas, quinze fuzis, sete metralhadoras e quatro pistolas calibre

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trinta e oito foram imediatamente apontadas em direção à bicuda e obstinada

criatura.

- Paradas aí, você e a galinha gigante! Mãos na cabeça! Veio a voz policial. O

pato obstinado fez que não ouviu.

O pato iria morrer.

Patrícia ainda corria quando do alto da escadaria o anseriforme se atirou em

sua direção. Neste momento o nome de Pateelseer ecoou na sua mente. Havia

um homem no interior daquele pato. Aquele anatídeo era mais que um pato.

As metralhadoras rugiram ameaçadoramente próximas, atingindo a criatura

que caía sobre Patrícia. Os dois quedaram como patos sobre o resto da

escadaria, enquanto o comandante da operação dava ordens que não atirassem

enquanto a jornalista estivesse próxima do animal. Como o bico de um animal

pode ser tão duro assim? Pensava enquanto se recuperava do choque, próxima

ao final da escadaria. Se patofobia tivesse um significado mais literal, não o de

“medo de doenças”, ela a teria contraído naquele entardecer. As penas brancas

do pato patocida se tingiam de vermelho. Van Pateelseer tira alguma coisa de

dentro do casaco e atira sobre os policiais. A explosão de fumaça torna todo o

quarteirão, uma noite londrina em dia cerração intensa. Levou cerca de seis

minutos para que pudessem começar a enxergar alguma coisa no meio da

fumaceira toda. Patrícia estava caída, tossindo quando um policial a levantou.

As manchas de sangue pela calçada apontavam a direção que o pato havia

tomado. Porém não conseguiram encontrá-lo.

Patos selvagens não morrem sem luta.

- Volta pato safado. Dessa vez eu vou estar te esperando.

Patrícia

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Patomorphia

- Já falei pela décima vez que eu não sei quem era ou o que queria aquele

maluco. Patrícia estava ficando irritada com o interrogatório. Já estava ali a

cerca de três horas naquela maldita delegacia, tentando explicar o inexplicável.

O que ela iria registrar como queixa? "Na verdade fui perseguida por um

homem que eu acredito ter ser transformado num pato em virtude de um

experimento científico mal sucedido?" Ou "Na verdade eu fui raptada por um

pato que pensa que é um homem?" Melhor ficar calada. A administração do

shopping fazia uma arruaça. Quem iria pagar os prejuízos? Lá fora estava pior.

Colegas de profissão, as pencas, a esperavam, munidos da avidez com que os

frequentadores de rodízio de pizza esperam a primeira fatia. Ela era a fatia.

Quando finalmente a liberaram, foi cercada de inúmeros repórteres.

- Como você se sente sendo perseguida pelo pato Donald?

- Isso é tudo uma promoção da Disney, não é mesmo?

- Essa propaganda politicamente incorreta da propagação da violência e do

caos nos centros urbanos é financiada pelo César Maia?

- Isso é uma crítica a política econômica do governo, que age como um se

fosse um pato fugindo do FMI em busca de uma resposta?

- O pato era teu amigo?

- É verdade que teu apelido é “patinha”? Como uma patinha se sente sendo

agarrada por um...?

Patrícia não deu tempo para o último engraçadinho terminar com a

"perguntinha cretina" a bofetada certeira jogou o entrevistador sobre o câmera

da rede Globo e sobre uma entrevistadora da Record.

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Patrícia entrou na viatura preparada para levá-la até sua casa, do outro lado da

cidade. Dois batedores iriam à frente e um camburão seguiria o comboio.

Teria proteção policial naquela noite, pelo menos. A noite avançava. Devido

a algum motivo, o engarrafamento no retorno era maior do que o de costume.

O rádio da viatura avisou que teriam que desviar através duma rota alternativa.

Outro comunicado. Um dos batedores aparentemente se perdeu e o seu rádio

devia estar desligado. O segundo batedor desapareceu da vista no meio da

escuridão do atalho e não deu mais sinal. O policial achou estranho perder

contato visual por tanto tempo. O rádio do segundo também não respondia.

Resolveu chamar o camburão que vinha logo atrás. O camburão também não

retornou a comunicação. O policial resolveu parar. Deixou o carro ligado e

em ponto morto. Os policiais com metralhadoras se levantaram e ficaram em

pé do lado de fora do carro, assim como o que dirigia, no meio da estrada

deserta. Um deles sorriu. Avistou o camburão se aproximando... Rápido...

Demais.

Deram sinal para que reduzisse a velocidade. Não reduziu. Só tiveram tempo

de pular para o lado quando o camburão bateu na traseira da viatura, jogando-

a metros de distancia para frente na estrada. Algo estava errado. Muito errado.

O camburão parou. Os policiais aturdidos se levantaram sem entender o que

acontecera. Dentro do carro Patrícia buscava os documentos espalhados no

fundo do carro, colocando a mão na testa machucada. Sozinha no carro,

olhou para trás do vidro traseiro espatifado, ouvindo o barulho das rodas do

camburão comendo o asfalto, esfumaçando. Patrícia pulou para o volante. O

carro ainda funcionava. Engrenou e pisou fundo no acelerador enquanto o

enlouquecido motorista do camburão vinha a toda em sua direção, sob uma

rajada de balas dos policiais na estrada.

Patrícia já sabia quem era que dirigia aquele camburão. 15

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Pato patife.

A duas quadras dali ficava a casa de seus pais. O pato já tinha dado duas

batidas na sua traseira. Patrícia viu uma metralhadora no banco do carona.

Tentou pegar com uma das mãos. O Pato bateu de novo na traseira da viatura

com o camburão. A metralhadora caiu na frente do banco. O jeito era soltar o

volante e tentar pegar ela assim mesmo. Foi o que fêz. Com o pé pisando

fundo o acelerador ela soltou o volante e se inclinou para pegar a

metralhadora. O carro desviou para a direita a uma quadra da casa de seus

pais. Quando Patrícia ergueu a cabeça viu a pracinha e a feira artesanal.

Infelizmente, era tarde para desviar. O carro subiu o meio-fio, entrou na

praça, atropelou uma barraca de cachorro-quente, foi em direção ao tecladista

que tocava para animar os presentes, que pulou desesperado para a esquerda.

O teclado, um Roland JV-1000, dois pedestais de microfone, uma torre de

som (com processador de efeito da Alesis) e uma estante cromada voaram a

treze metros de altura. [nota do autor: se eu fosse filmar essa cena, o teclado

ia ser um Cassio e teria no máximo um amplificador sem-vergonha, destes,

comprados de quinta mão]. Mais duas barracas de salgados e o carro estava na

rua novamente. Pelo retrovisor Patrícia ainda viu o teclado se espatifando

sobre o camburão com o pato obstinado. Virou de costas com a metralhadora

na mão direita e disparou. O que restava dos vidros traseiros espalhava-se na

pista enquanto os faróis do camburão eram despedaçados. Acertou os pneus

também. Pena não dar para dirigir e atirar ao mesmo tempo. A viatura entrou

adentro de um supermercado. Atropelou uma estante de carrinhos e foi parar

na seção de congelados. Duas toneladas de frios foram lançadas na

panificadora do supermercado com a pancada. Sorte que era dia de limpeza.

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Patrícia saiu do carro, pisando em falso por causa do gelo espalhado pelo

chão. A metralhadora ainda estava em suas mãos.

Silêncio.

Patrícia olhava ao redor esperando o camburão chegar. O camburão não

chegou.

As luzes do supermercado se apagaram.

O pato homicida chegou.

O barulho de suas patas se arrastando pelo chão era inconfundível.

Aproximando-se...

Lentamente....

No meio da penumbra o pato apareceu. Arrastando uma das patas e

encurvado. Patrícia mirou a metralhadora aterrorizada. As balas haviam

acabado.

Largou a metralhadora no piso. Patrícia tentou correr, mas não conseguiu.

Caiu no chão, uma das pernas não respondia mais. O pato veio se

aproximando enquanto as cenas de sua infância inundavam sua mente. Van

Patelseer parou do lado de Patrícia. Esta não se conteve e gritou:

- Vai, pato desgraçado! Termina logo com o que você queria fazer.

O Pato se inclina em direção a Patrícia.

Ferido.

Mortalmente.

Segura sua mão direita e a arrasta para perto de si. Pega então uma

minigravador contendo uma fita cassete. Abre a mão de Patrícia e o coloca ali.

Então fala com sua voz rouca:

- Sua entrevista, Patinha.

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Levanta-se, ainda se arrastando, sumindo em meio da escuridão.

No meio do supermercado uma jornalista grita sendo ouvida somente pelos

guardas que correm em sua direção:

- Patinha é a tua mãe!... Seu pato miserável!

TSAR IVAN

Ivan Krylov havia recebido esse nome em homenagem ao antigo escritor de

contos russos. Estava para viver um dia de grande aventura. Lança um balde

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de água sobre a cabine de comando de seu velho MIG 17, aguardando a

chegada da comitiva formada de oficiais do alto escalão, membros da KGB e

políticos de renome do governo Russo. Os portões da base em Moscou

abriram-se e a gigantesca comitiva conduzindo o premier vem ao seu

encontro. Nikíta Syerguêievitch Khruchtchof, distraído, relembrava que até a

juventude trabalhara em fábricas próximas aquele aeroporto militar. Toda a

região era somente um campo de girassóis, na mesma época quando a intensa

gritaria da revolução Bolchevique de 1917 o conduziu ao Exército Vermelho.

Nervosamente repetia, cerrando os dentes: “Vão aprender a respeitar a mãe

Kuska...”. Sem seguir ao extenso protocolo, apertou as mãos de Igor,

Kuchenko e Ivan, pilotos dos caças que varreriam a região do vôo a frente do

TU-95, o “urso”, como a OTAN apelidara ao gigantesco bombardeio, Subiu

após a cerimônia no veículo oficial e seguiu para o Kremlim. Poucos minutos

após a partida dos caças, Informações oficiais anunciavam que o “urso” já

estava a menos de 700 quilômetros do ponto de impacto escolhido para a mãe

de todas as bombas.  Os cientistas refizeram dezenas de vezes os cálculos

imaginando se realmente o avião alcançaria os sessenta quilômetros de

distancia segura, já na altitude de 12 mil metros, quando o apetrecho

apocalíptico explodisse.  Nova Zembra, a ilha onde seria lançada a bomba de

hidrogênio, ficava a mais de 2350 km de Moscou, e a 1000 km da Finlândia.

Era uma remota ilha no circulo ártico há centenas de km da comunidade

humana mais próxima, já sem habitantes desde 1955, quando iniciaram na ilha

os testes nucleares União Soviética, duzentos e vinte e quatro testes ao todo.

Este seria o ultimo. Cerca de 100 km de distancia do vórtice da explosão uma

pessoa de pé sofreria queimaduras de terceiro grau. A pressão no solo abaixo

bomba, que explodiria a 4500 metros de altura, alcançaria quarenta vezes a

pressão atmosférica. A crosta terrestre nas imediações sofreria um terremoto 19

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de 5,5 graus na escala Richter. Na distante Finlândia janelas quebrariam e no

centro da explosão a temperatura seria a do sol.  Os ventos criados varreriam

centenas de quilômetros e o brilho da explosão seria visto mais de 1000 km de

distancia. A 220 km de distancia um observador sofreria o impacto da onda de

calor gerada e só não ficaria cego se utilizasse óculos especiais. A potencia de

57 megatons da bomba de hidrogênio a ser testada equivalia a explosão de um

cubo de explosivos do tipo TNT da altura da Torre Eiffel. O paraquedas de

IVAN, como chamavam ao monstro, sozinho, pesava cerca de 800 quilos. Em

alguns segundos forças incompreensíveis seriam liberadas sobre o norte da

Rússia. Fora os dois pilotos dos aviões, não havia outros seres humanos a

menos que 220 km da região.  Assim imaginavam. Até que um dos MIG 19

que acompanham ao bombardeio realizou um vôo rasante sobre o antigo

povoado de Severny. E verificou ali uma fogueira acesa. O comunicado do 

piloto soou como uma velha piada. O Povo samoyeda, como era denominado

aos nemets, parte de antigas populações indígenas da região foram afastadas

para outras regiões na época da integração Stalinista. Um oficial ofegante lê  a

nota reenviada para o premier russo.  Nikita o lê e volta seus olhos para a

nevasca que varre a lateral do Kremlin. Sem demonstrar nenhuma emoção

ordena que o teste continue e que os caças dirijam-se para a base próxima na

Sibéria. O aviso é concedido, assim como a liberação final para o teste

atômico, mas um dos pilotos solicita temerosamente mais 10 minutos ao

chefe de estado.  Os oficiais que ouvem a contraordem sabem qual será a

resposta. Nikita Khruchtchof  não irá voltar atrás em sua ordem. Mesmo

assim encaminham o que o piloto pediu. Sem tirar os olhos da janela Nikita

retruca:

- A mãe Kuska já aguardou tempo demais. Prossigam com o teste.

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A ordem aos pilotos é clara e o tempo de fuga que possuem é muito limitado.

Igor e Kuchenko tentam convencer a Ivan que retorne a base. Não há

condição de pouso, não há tempo factível de resgate e nem chance de

sobrevivência de quem permanecer num raio de 100 km da explosão. Eles

estavam a apenas 55 km. Sem sucesso no diálogo, dois caças retornam a base,

enquanto o piloto do terceiro caça decide dar um ultimo voo sobre o vilarejo.

De relance avista o que parece ser uma família sinalizando. Sabe que, quando

a bomba explodir, toda a região será devastada. O ousado piloto faz uma

curva levando o velho MIG 17 ao limite de sua estabilidade. Observa atento

aos seus controles e num ato impensado puxa a alavanca de ejeção. A

poltrona explode para fora do avião enquanto o MIG sem piloto ruma para as

montanhas desabitadas da região. O paraquedas se abre e o piloto começa a

procurar o melhor ponto onde irá cair, em meio ao vilarejo abandonado.

Alguns equipamentos perderam-se durante a queda. Menos o seu relógio

mecânico, que ainda funciona, quando aterrissa desajeitadamente no solo.

Restavam menos de 5 minutos para a detonação. Retirando de si o

equipamento, admitia a infeliz mania de grandeza dos seus compatriotas. A

bomba pesava mais de 27 toneladas. Apelidaram-na de Tsar bomba “a grande

bomba”. O título inspirava-se em Tsar Kilokol, o maior sino fundido existente,

criado por Ivan Motorin, quebrado num incêndio em 1737. Um pedaço de 11

toneladas se desprendera dele. Enterraram a aberração, mas em 1836 fora

exumado de sua cova por um arquiteto francês. Lembrava como o admirava

quando menino, ao lado da torre de Ivan, ao lado do Kremelin.

Nikita ouviu que um dos pilotos dos MIG´s não voltara a se comunicar,

fixando seus olhos, inexplicavelmente no velho sino ao lado da torre norte. A

torre de Ivan. Por uma terrível coincidência o piloto começava a ter raiva de

seu nome de batismo. Ivan Krylov. Seus pais pertenceram a Igreja Ortodoxa 21

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Russa e ele realmente fora batizado. Alcançaram ao local onde havia avistado

a fogueira, uns 600 metros de onde caíra. Duas crianças nemets corriam na

sua direção, pronunciando o velho dialeto da região. Vestidos com peles, de

lisos cabelos negros. Uma menina de cerca de seis anos e um garoto que

aparentava ter quatro, pediam ajuda naquela língua que só ouvira na sua

adolescência, numa viagem a Kandalaksha. Sabendo do pouco tempo que

restava para a hecatombe, Ivan corre com as crianças, que o conduzem para a

fogueira onde encontra uma jovem de olhos azuis, vestida em peles, que

parecia não ter mais que vinte anos, com um extenso ferimento numa das

pernas, como se tivesse sido atacada por um grande animal. Ela estava

próxima a um cachorro peludo e branco, que começa a latir quando Ivan se

aproxima. O cachorro foi acalmado pelas crianças. Ivan ajoelha-se próximo a

moça, que está febril. O relógio mostra que em dois minutos tudo ao seu

redor deixará de existir. A jovem delirava, entoando uma canção.  Não

compreendia seu dialeto, mas, a melodia antiga lhe era muito familiar. Em sua

terra natal morava uma velha senhora que cantava, em russo, essa mesma

melodia nas festividades.  

“Toda a vastidão dos sonhos das terras desconhecidas, maravilha-me

ao anoitecer, filho do sol e da lua, não são tuas nossas canções, não são

nossas tuas visões?”

Ivan meditava que estava há dois minutos para o fim de tudo, no mais

longínquo dos lugares, ouvindo a última canção da existência, com uma

família que apesar de nunca ter conhecido antes, agora se tornara tudo que

possuía.

Ao longe ouvia o ruído esparso do ronco dos motores do “urso”. Pegando os

binóculos viu um minúsculo para quedas, o gigante era distorcido pela

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tremenda distância.  Olhou ao redor sem esperança, contudo além da longa e

negra cabeleira da  nativa, após a taiga, em meio à tundra, viu algo.

Uma pequena formação rochosa. Ou talvez o que não pudesse ver, invisível e

encoberto fosse a resposta a impossibilidade. Ivan Acena para as crianças e

toma abruptamente a moça, lançando-a sobre as costas após deixar de lado o

equipamento. Ele grita às crianças para que corressem.  O relógio indicava que

não havia como escaparem. A Tsar bomba era 750 vezes mais poderosa que

as bombas que atingiram Hiroshima e Nagasaki. Corria desesperadamente

com a moça nas costas, as crianças gritando, seguidas pelo cão peludo.

Atingiu a entrada da floresta e a extensão rochosa. Na parede de rochas

engastada logo diante deles, a entrada de uma caverna.  Neste instante o

mundo irrompe em luminosidade. Uma luz inadmissível varria o céu... Ao

ruído ensurdecedor e ao tremor que se seguia, entraram na caverna e

deslizaram centenas de metros para seu interior, enquanto do lado de fora

ventos de 320 km por hora varriam da face da terra o que ainda restava do

vilarejo.

A bola de fogo gerada pela explosão tocou o solo e quase alcançou a mesma

altitude do “urso”, que tremeu vigorosamente por quase 40 segundos. Ela

podia ser vista a mais de 1.000 km de distância. A nuvem em forma de

cogumelo que se seguiu chegou a 60 km de altura e a 35 km de largura. Na

Finlândia dezenas de prédios perderiam suas vidraças

Nikíta Syerguêievitch Khruchtchof sorria satisfeito com a notícia. “Temei a

mãe Kuska, camaradas. Temei...”

Dois dias depois duas crianças, um piloto e uma jovem nemet emergiam da

gigantesca caverna. Ivan levaria cerca de dois meses, um urso polar e seis

renas para conseguir chegar até a base da Sibéria. A nativa se chamava

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Anahnah. Quando se casassem anos após, Ivan a chamaria de Anna. Ainda

hoje ela entoa o antigo cântico. Após 300 páginas de relatórios, meses de

exames e extensa investigação inocentaram a Ivan. O relato oficial conta que a

pulso eletromagnético gerado anulou os sistemas elétricos do velho MIG

causando a sua queda. Ivan recebeu um novo avião um MIG 23. Os antigos

companheiros de missão desenharam nele um gigantesco sino rachado e ao

lado uma pequena frase.

“Tsar Ivan”

A MÃO ESTENDIDA DE POOJA

A velha linha de ônibus deixava seu penúltimo passageiro na poeirenta estrada

do subúrbio de Punjab. Era próximo da meia-noite e os dois últimos

passageiros sentavam-se em lados opostos do velho ônibus. A menina de

cabelos ondulados e de longo sari vermelho, segurava uma bolsa dourada.

Sentava-se dois bancos atrás do motorista, cochilava uma vez por outra e no

restante do tempo observava a chuva que batia nos vidros das janelas

fechadas. O homem no banco do lado oposto do ônibus vestia um sobretudo

negro, carregava uma bengala negra de ponta prateada e aparentava ter trinta e

poucos anos. Por grande parte da viagem o homem observara a jovem sem

que ele fosse notado pela mesma, voltando seus olhos para um relógio de

bolso que retirava do sobretudo em alguns momentos. A estrada ficava cada

vez mais escura na medida em que o ônibus se desviava das poças de lama em

direção ao ponto final. O homem observa uma ultima vez ao relógio, levanta-

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se em direção a jovem sentada a sua direita e pedindo sua licença assenta-se ao

seu lado. Ela sorri e lhe concede o lugar. Então se inicia um estranho dialogo.

- Boa noite, Pooja Kapoor. Diz o homem de sobretudo preto.

A jovem espantada olha para o homem que lhe sorri, sem reconhecê-lo.

- Perdão, nós nos conhecemos de algum lugar?

- Eu diria que nos encontramos algumas vezes, uma no dia em que você

nasceu, duas quando você era somente uma criança, uma vez na sua

adolescência. Mas, não creio que você venha a se lembrar de mim.

- Não, é verdade. O senhor é conhecido de minha família?

- Oh! Sim. Bastante. Conheci seus avós por parte de mãe. Tive um encontro

com eles. Também com seus bisavós. E com os que vieram antes deles, a lista

é bem longa.

- O senhor não aparenta ser tão idoso assim! Quantos anos o senhor possui?

- Você não creia se lhe dissesse. Mas, deixemos de formalidades, o que me trás

aqui depois de tantos anos é que venho lhe dar uma triste noticia. Minha triste

missão. Essa noite Pooja Kapoor, é a noite em que você morrerá.

A jovem olha espantada para o homem que fala com ela procurando alguma

expressão de ironia ou sarcasmo na voz, mas, o que observa é um tom de

profunda convicção.

- Como assim! Este ônibus vai ser atacado por algum grupo? Porque o senhor

está afirmando tais coisas?

- Minha missão. É o que faço, eu sou enviado quando uma coisa destas está

para acontecer.

- Não pode ser! Ninguém na minha família sonhou nada! Quem é você, como

pode afirmar alguma coisa como essa? Você é um mago, um butha (antigo

fantasma hindu)?

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- Não. Nenhuma dessas coisas. E está chegando sua hora. A hora de todos os

seres chega. Diga adeus a esse mundo Pooja.

A jovem tremendo e assustada coloca as mãos no rosto. Entretanto,

repentinamente para de tremer. Suavemente abaixa os braços olhando

firmemente para o emissário.

- Não é chegada minha hora.

- Nunca errei antes, querida moça. Na verdade não sou um mensageiro. Sou

um executor. Minha presença não é um aviso. Eu sou a morte.

- Sei quem você é. Mas, repito que não é chegada minha hora. Neste

momento a voz da jovem se torna mais firme. Mais poderosa. A morte fita

seus olhos e vê que ela não está blefando. Acredita no que afirma. Contudo é

somente uma condição humana. Diante dela a própria esperança cambaleia.

Sempre foi assim.

A morte estende sua mão para sua bengala que já não é mais uma bengala. Sua

forma vai ficando mais e mais aterrorizante. Então estende sua vara em

direção a jovem. Porém antes de tocá-la, a morte hesita.

A jovem se levantou no banco e sorri para ela. Estranhamente sorri. E

deixando sua bolsa dourada de lado estende-lhe sua mão direita. E fala

desafiadoramente:

- Toca em mim. Mas, não é chegada minha hora. Não fostes enviada para

mim. Fixando os olhos nele: - Eu fui enviada para ti.

O poder que destrói os homens observa a pequena mão estendida em sua

direção. Olha a forma humana a sua frente e vasculha as regiões do tempo,

das dimensões e do espaço. E tudo que vê é somente uma menina de origem

humana estendendo-lhe sua pequena mão. Nada mais que fragilidade diante

de poderes desconhecidos.

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- Você é somente uma menina. Eu vejo teu presente, assim como estive no

dia em que nascestes. Ou no dia em que teus pais nasceram. Quando teus

antepassados migraram a milhares de anos ainda nos antigos reinos dos Vales

do Indo. Quando eu te tocar você se encontrará com teus ancestrais.

- Não. Quando você me tocar, você deixará de existir.

- Você não compreende. Eu faço parte do universo. Enquanto o universo que

vês existir, eu existirei. Nada pode impedir meu curso e nem minha finalidade.

Se eu te tocar é você que deixará de existir. E eu seguirei meu caminho. Meu

sombrio caminho. Meu triste caminho. Sempre foi assim. E assim será.

A jovem a encara e adverte ousadamente a morte:

- Se você me tocar, você terminará.

A morte olha ao redor de si, o mesmo ônibus, a velha estrada e a chuva que

cai incessante na faixa de terra entre as cidades de Amritsar, e Jalandhar. E

olha em direção a pequena mão estendida da jovem á sua frente.

Levanta seus olhos para o alto e contempla sobre sua cabeça a constelação de

Orion. Lança seus olhos sobre os abismos e vislumbra as regiões da morte.

Então pega mais uma vez seu relógio e vê o horário nele demarcado.

Levanta sua arma, entretanto, antes fixa seus olhos - além da fragilidade

humana da jovem Bengali - com uma das mãos assustadoramente levantada

em sua direção.

As pulseiras em seus braços balançam a cada movimento do antigo ônibus.

E olha dentro de seu coração.

São cerca de meia a noite e meia e o ônibus chega em seu ponto final Anjali e

Priya aguardam junto com a mãe e seu pai a chegada da irmã mais velha nas

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cercanias de Amritsar, munidas de grandes guarda-chuvas, sem esconder sua

tremenda ansiedade.

Pooja parece estar dormindo sobre o segundo banco atrás do motorista. A

gritaria começa quando o ônibus para e lentamente a rapariga abre seus

braços, se espreguiçando e logo desperta pulando de alegria ao ver seus

parentes e sua irmã.

Então desce correndo do ônibus para abraçá-los...

Do outro lado da rua uma figura sinistra observa a cena demonstrando uma

impressionante indignação. O ser sem rosto e sem nome observa a família,

atentamente. Ainda treme descontroladamente. Suas mãos não conseguem

ainda levantar a antiga foice.

Por um instante ela imagina o que teria acontecido se tivesse segurado a mão

de Pooja.

E em meio a um terror inimaginável desaparece em meio à escuridão...

O motorista que nada vira acontecer, ignorando tudo que até ali ocorrera, sorri

discretamente. Segura o volante com ambas as suas mãos, que possuem

estranhas marcas nos pulsos. Pisa fortemente no acelerador com sua sandália

que permite ver em seu pé uma antiga cicatriz de perfuração.

Olhando ternamente para os familiares abraçados, envia um beijo para Pooja,

que como se movida por uma mão invisível, olha para trás, ainda a tempo de

ver os cabelos compridos do motorista e seu estranho uniforme, enquanto o

velho ônibus desaparece em meio à chuva torrencial...

Então Pooja ajunta suas pequenas mãos e murmura em forma de prece:

- Namaste!

Ao longe o motorista sorri.

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Um largo, grandioso e espetacular sorriso.

A HISTÓRIA DO CACHORRO VELHO E DO CACHORRO NOVO

A história do cachorro velho e do cachorro novo.

Dois cachorros, um jovem e outro velho fugiam pelas estradas de terra batida

em direção a um antigo vilarejo em Punjab. Atrás deles uma manada de

elefantes indianos com cerca de cinquenta paquidermes correndo, por sua vez

perseguidos por dois imensos tigres de Bengala. Um dos tigres era albino e o

outro por alguma estranha anomalia era negro com listras brancas. A frente

do frenético grupo de animais uma pequena aldeia com mulheres, crianças,

jovens e anciãos que passava por grave período de seca.  Bem a frente da

manada de elefantes corriam os dois cachorros, e entraram esbaforidos na

velha aldeia. Havia um cerimonial ocorrendo na praça da aldeia ao redor de

uma grande fogueira, quando os aldeões viram os dois cachorros, tendo em

vista a grande crise pela qual passava a aldeia decidiram perseguir os animais.

O grupo de jovens foi atrás do cachorro novo e o grupo de anciãos atrás do

cachorro velho. Assim que saíram as mulheres viram a grande manada que

vinha em sua direção. Tendo que proteger as crianças elas decidem tentar

afugentar os elefantes e se dividem em três grupos: o primeiro sai da aldeia

batendo todo tipo de objeto de cobre, panelas, bacias, pratos e chacoalhando

as pulseiras. O segundo grupo de mulheres, as moças, pegam paus e ateiam

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fogo a eles, correndo em direção á manada com tochas acesas e o terceiro

grupo grita com agudos sons das vozes das orientais.

Os tigres vendo que não tem sucesso se atirando sobre os traseiros e rabos

dos paquidermes, ora sendo arrastados, ora caindo ou escorregando, decidem

passar o grupo e atacar pela frente, correndo pelas laterais da manada. Pela

esquerda vai o tigre albino e pela direita vai o tigre negro com listras brancas.

Os cachorros voltam pelo meio da aldeia, passam esbaforidos pelas crianças

no meio dela e voam literalmente em direção ao grupo de mulheres que

justamente vai em direção aos elefantes, ainda perseguidos pelos grupos de

homens que agora num grupo corre em sua direção.

Os tigres passam pelas mulheres, em direção aos cachorros e percebem o

cheiro das crianças no meio da aldeia.

Os elefantes alcançam as mulheres, os tigres ficam frente a frente com os

cachorros, os homens na retaguarda fecham o cerco entre os tigres e os

cachorros, espantados pelo ruído ensurdecedor dos elefantes, os seus gritos, o

alarido das mulheres e por fim pela visão dos tigres.

Os cachorros trombam com os tigres.

As mulheres avançam pelo meio dos elefantes desorientados que agora

formam dois grupos, ainda correndo em direção da aldeia.

Uma das crianças foge dos abrigos e vai para o meio da aldeia

Os aldeões mais jovens correm em direção da aldeia para resgatar as crianças.

Os mais velhos deixam de perseguir aos cachorros e partem em direção aos

tigres.

Os tigres acuados fogem

Os elefantes alcançam a aldeia, alguns deles, poucos, pois a maioria foi

dispersa pelas mulheres.

As crianças foram resgatadas pelos jovens30

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Menos uma.

Os elefantes atravessam a aldeia destruindo tudo por onde passam.

Um dos elefantes corre em direção a única criança que sobrou no meio do

vilarejo

As mulheres estão ainda fora da aldeia, os anciãos correndo atrás dos tigres e

os jovens protegendo as crianças.

Mas, antes que o ultimo paquiderme esmague a criança dois cachorros se

atiram na tromba do elefante. E o afastam.

O cachorro velho é jogado para longe enquanto a criança é arrastada pelo

cachorro novo.

As moças com as tochas enfim afugentam o elefante

A velha aldeia foi reconstruída.

Ainda hoje os jovens brincam com um cachorro bem velho que habita

livremente todas as casas que quiser escolher da antiga aldeia, mas, que

sempre dorme na entrada da cidade.

Sempre perto de onde foi enterrado, um cachorro amigo,

Que ele conhecera há muito tempo atrás.

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TAMAR O plano concebido por Tamar tem que funcionar com a precisão de um

relógio atômico. Ela corre contra o relógio, contra as probabilidades e contra

o absurdo risco que assumiu no maior ato de loucura de toda sua existencia.

Seu plano envolvia a quebra do voto de viuvez, o rompimento do

compromisso do levirato, o disfarçe, uma noção de distancias e tempos para

percorrer, tornar-se prostituta e resgatar a honra. Poderia uma prostituta, após

prostituir-se, voltar a ser como era antes, anulando sua prostituição?

O plano envolvia tornar-se culpada. Envolvia ser condenada a morte. Rebelar-

se contra sua cultura e contra sua posição social, e mesmo após a condenação

a morte, levando em seu corpo a prova cabal de sua acusação, ganhar um

causa impossivel diante do mesmo juiz que a haveria de condenar.

Os pastores de ovelhas chegaram há alguns anos em sua região nas fronteiras

do Libano. Falavam a língua dos cananeus e habitavam em tendas como os

arameus. O patriarca do grupo se chamava Judá. Possuia três filhos

adolescentes e uma filha primogenita de nome impronunciável. Tamar se

apixonou pelo filho mais velho e seus pais logo perceberam que poderiam

usar esse interesse da mais irriquieta e impulsiva de suas filhas para conseguir

um casamento arranjado. Ao menos parcialmente arranjado. Após anos de

frustadas tentativas de conseguir noivos que se interessassem por Tamar,

apesar de sua grande beleza. Sua teimosia e genio forte destoavam das

premissas culturais desejáveis para desposar uma mulher naquela época. Mas,

os visitantes não haviam vivido naquelas bandas e certamente não tinham

conhecimento ainda de todas as situações constrangedoras nas quais Tamar

havia se envolvido desde sua meninice.

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Vale de Ellah

Apesar de Judá possuir uma filha mais velha, seu filho era considerado o

primogenito. E é por ele que tamr se interessou. Os pais convidam a Judá

para conhecer a família e oferecem Tamar como noiva para seu filho,

oferecendo o maior dote que suas condições lhe permitiam. Judá concorda.

O casamento é feito conforme os ritos da região. A caravana de Judá parte

em direção ao vale de Elah, próximo a cidade de Adulão, onde moraria pelos

anos posteriores.

Algumas semanas após o casamento uma tragédia acontece. Depois de um

após trágico acidente o filho de Judá morreu, sem ainda ter tido tempo de

gerar filhos.

Conforme as leis e costumes da época o irmão de idade mais próxima ao do

filho morto deveria assumir a viuva para que o nome de seu irmão tivesse

continuidade sobre a terra. As mulheres não possuiam tal privilégio. Somente

os homens davam nome as suas descendencias e somente um filho poderia

dar continuidade a linhagem de um determinado clã. Os bens e posses do

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filho não poderiam ser herdados se Tamar não tivesse filhos. Onan, o

segundo filho de Judá não ficou satisfeito com aquela situação. Não tinha

interesse em assumir uma responsabilidade com aquela e não queria ter filhos

que não fossem para cuidar de seus futuros direitos. Menos um irmão –

pensava - maior seria a parcela das posses, dos rebanhos e escravos que

herdaria de seus pais. Se Tamar engravidasse os filhos que ela tivesse seriam

como filhos do irmão que morrera. Receberiam o nome do irmão como

sobrenome e não o dele. Mas, Tamar era linda. Não necessitava negar-lhe as

obrigações de marido. Ele poderia aproveitar-se ainda da situação desde que

tivesse o devido cuidado de não gerar filhos. Na antiguidade o único método

contraceptivo conhecido era se o homem ao fazer sexo interrompesse o ato e

despejasse o semem no solo. Porque não confiavam que a roupa

contaminada pudesse impedir que uma mulher engravidasse. E ele o fazia

conscientemente. Tamar não entendia porque ele agia assim. Era jovem e não

tivera filhos ainda, não participava do circulo de mulheres que já entendiam

porque um homem agiria assim. E culpava-se a si mesmo dia após dia por não

ser fértil o suficiente para conceber em nome de seu esposo falecido.

Mas, Onan pagou um alto preço por sua vilania. Acometido de subida

enfermidade, ele morre.

Judá havia perdido num curto período dois filhos que amava muito. Sem

entender porque tal coisa acontecera imaginava que aquela moça era

amaldiçoada. Essa deveria ser a única explicação que sua consciência culpada

conseguia elaborar. Embora seus próprios atos não justificassem tal

preocupação. Há mais de 10 anos vivia sob o peso de grande injustiça

cometida contra seu irmão chamado José, a quem vendera a uma caravana de

mercadores de escravos que seguiam em direção ao Egito. A lei do Levirato

não impunha limitações ao numero de irmãos que poderiam desposar a 34

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mulher de um irmão falecido. Judá possuía ainda um filho preadolescente.

Porém não quer arriscar a vida dele com aquela nora azarada. Conforme o

costume local a moça é vestida de branco com um véu que cobre sua nuca e é

conduzida a sua antiga residencia, a casa de seus pais.

Podemos imaginar a chegada de Tamar à casa de seus pais, envolta em vestes

de viuvez. Uma mulher casa pertencia desde a antiguidade a família dos

parentes do esposo. Ela saira como uma filha, tragicamente voltava como

uma estranha. Tamar estava entre dois mundos. Rejeitada pelos familiares do

esposo, no caso, seu sogro, não possuía espaço em seu antigo lar.

Judá diz que ela deverá se guardar como viúva até a época em que seu filho

menor, Selá, estiver na idade de casar.

Os anos passam e o rapaz prometido a Tamar cresce e atinge a maturidade. E

nada mais acontece. Poucos falam a respeito de sua viuvez. Poucos falam

com ela sobre o futuro. Seus pais a receberam numa situação dolorosa.

Tamar sente vergonha. Sentia-se e era tratada como se fosse um fardo a mais

a ser carregado por ambas as famílias. A sua e a de Judá.

Não havia tido filhos e nem trouxera através disso honra aos seus pais.

Na sua época a mulher que não tinha filhos era considerada como

desafortunada. Tamar era desprezada duplamente. Vivia praticamente

sozinha e abandonada na casa de Judá. Um duro golpe ainda lhe restava. Uma

das poucas pessoas que lhe dava atenção, e que a acudira nas horas de solidão,

era também uma figura quase que esquecida. A filha de Judá se tornara sua

grande amiga. Sempre que podia cantavam juntas, brincavam e foi com ela

que se tornou fluente na língua dos cananeus. Até que a jovem hebréia

adoeceu e morreu.

(O texto que narra a história dos patriarcas de Israel deixa claro a posição da

mulher na esfera cultural de sua época. A filha de Judá não é nomeada e não é 35

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festejado seu nascimento. E só viemos a saber de sua existência porque foi

grafado que ela morreu.)

Judá a queima numa pira funerária, inconsolável. Perdera dois rapazes e uma

filha nos poucos anos em que estivera naquelas terras longínquas.

Procurando não pensar em todos os acontecimentos trágicos dos últimos

anos decide fazer uma viagem de trabalho para realizar a tosquia e a venda de

lã de suas ovelhas.

E avisam a Tamar que Judá está a caminho do vale de Timna.

E Tamar irá colocar o seu louco plano em prática.

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Seus pais moram em Quezite. Aczibe dos mapas atuais. Fronteira com o

Líbano. A casa de seu sogro dista 300 km, situada no vale de Elah. Se tudo

correr segundo o plano... Um dia ela retornará ao fabuloso vale. O famoso

vale das sombras, como era chamado. O local onde Judá irá tosquiar as

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ovelhas fica ao sul do país cerca de 600 km de distancia. Informada das

intenções de seu sogro por serviçais fiéis ela precisa vencer uma distancia que

é o dobro daquela que ele percorrerá... na metade do tempo! Terá que ir por

caminhos distintos, seguindo a costa de Canaã, passando pelo território de

pelo menos sete nações estrangeiras, muitas delas hostis à estrangeiros. Terá

que enfrentar os perigos dos salteadores das regiões mais ermas de sua terra.

E conseguir essa façanha - duas vezes seguida. Ida e na volta. Timna é uma

cidade estrangeira habitada por um povo que um dia odiará os descendentes

de Israel. A cidade de mulheres belíssimas, local onde, centenas de anos após

os eventos narrados, Sansão escolhera sua futura esposa. Tamar corre contra

o tempo passando por milhares de ovelhas que são levadas a Tinma de

diversos lugares de Canaã antes que chegue o verão. A cidade é cercada de

diversas palmeiras. E por um dia terá uma palmeira a mais. O nome Tamar

significava “palmeira”. Um tipo especial de palmeira. A Tamareira. Tamar

saíra da casa de seus pais ainda vestida como viúva. Porém, assim que iniciou

sua aventura vestiu-se como uma mulher comum. Informada da chegada das

ovelhas de seu sogro ao vale dos tosquiadores ela mudará suas vestes mais

uma vez. Tamar pintará seus olhos e a boca com os cosméticos de sua época.

Perfuma-se com mirra e coloca vários adornos, braceletes e roupas que

caracterizavam um tipo especial de conduta de sua época. A prostituição.

Tamar se adorna, vestindo-se como uma prostituta, indo para o local onde

sabe que Judá terá que passar ao se dirigir para a cidade. A escolha do lugar é

essencial, ela não pode ser vista por outros pastores, ou tentarão forçá-la a se

prostituir. Para o que ela intenta fazer Judá deverá manter determinada

distancia do rebanho, suficiente para ela fugir antes que entenda o que lhe

aconteceu. Tamar terá uma única chance olhar e seduzir ao sogro. Um único

olhar. E não poderá ser reconhecida por ele. Ela estará usando véu. Ela 40

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percebe sua chegada, se levanta e caminha sensualmente em sua direção. Judá

a reconhece como prostituta e é seduzido por ela. Pergunta qual é o valor de

seus serviços. O que Tamar pede é parte de sua estratégia. Não poderá pedir

nada que Judá tenha á mão. Não poderá ser dinheiro. Ela pede algo que sabe

que ele gastará tempo para lhe trazer. Ela pede uma ovelha, sabendo que todas

as suas ovelhas estão no processo de tosquia. Ele concorda, só que revela que

não poderá enviar-lhe se não ao entardecer. Ela age exatamente como se

esperaria que uma mulher de sua classe agisse. Desconfia da proposta. E

pede-lhe uma garantia. Ele pergunta o que ela gostaria que ele lhe desse como

garantia. Esse é o segredo do plano de Tamar e aquilo que ela vai escolher

significa sua vida ou a sua morte. Ela escolhe bens pessoais intransferíveis. O

anel de Judá possui uma marca única, que ele usa para autenticar documentos.

O cajado é de difícil fabricação e facilmente identificável pelo dono. Ele

possuía a assinatura de seu possuidor. E um cordão. Presente da esposa, da

mãe ou de sua filha. Judá concorda, logo reaveria seus bens, deixando em seu

poder os bens que ela solicita e consuma o ato com Tamar. Assim que sai dali

e chega ao rebanho separa uma ovelha dele e o envia por mãos de serviçais.

Tamar já fugiu. Ela tem pouco tempo, 600 km a separam de sua residência.

Judá vai pessoalmente ao local onde a encontrou e questiona os moradores

locais obre a “prostituta” que ficava naquele lugar. Os moradores afirmam que

ali jamais habitou ou trabalhou qualquer prostituta. Se ele encontrou alguma,

ela era um fantasma. Após algumas horas de busca Judá, irritado reclama a

perda de seus bens, dizendo:

- Ela que fique com eles!

E logo após segue seu caminho. Tamar vestiu suas vestes de viuvez chegando

à casa de sua parentela, escondendo os pertences pessoais que adquirira.

Ninguém pode descobrir tais bens. Se o que ela pretendeu não desse certo ela 41

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os queimaria. Se ela os perdesse e o que planejou ocorresse... ela seria

queimada viva...

Tamar ora intensamente aos deuses de seus antepassados para que tivesse

sucesso. Sabendo, no entanto, que se eles respondessem, sua vida estaria por

um fio. Os meses se passam e seu plano deu resultado. Tamar engravidou. O

fato choca a todos os que ali estão. Os pais tentam esconder a Tamar e

convencê-la a ir embora dali. Ela se recusa terminantemente. Os parentes a

acusam de suicida. Contudo ela afirma que sabe o que está fazendo. Judá é

informado que Tamar está grávida. Porém cumpria um voto de viuvez e outro

de Levirato. Estava ligada a seu filho mais novo, embora ele não tivesse

autorizado ainda sua união. Segundo os costumes vigentes naquela região

tinha o poder de julgar tais situações familiares. Isento de nenhum tipo de

sentimento que não fosse a raiva, manda executá-la de modo terrível. Ordena

que seja queimada viva, a condenação prevista para o crime de adultério

daqueles povos. Os anciãos de Adulão apoiaram a sua decisão. Estava

previsto em lei. O que Tamar fizera a condenava em todas as culturas

vigentes. Tamar bem sabia o que lhe aconteceria. Na noite anterior foi até os

bens enterrados, os escavou e desenrolou. Judá vai pessoalmente até a casa

dos pais de Tamar. E ordena que a lancem para fora de casa, para que seja

queimada, enquanto a multidão de curiosos que se aglomeram à frente da casa

de seus pais... Os homens a carregam para fora. Tamar olha diretamente na

face de seu acusador. Diante de todos levanta o cajado, o cordão e o anel,

mostrando-os aos pais, aos anciãos e a todos. Grita diante de todos,

caminhando em direção a Judá:

- Do homem de quem são estas coisas eu concebi! Conhece, peço-te, de quem

é este selo, e este cordão, e este cajado.

42

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Quando Jacó os segura em suas mãos e recebe de volta o que era seu algo

mais acontece. Tamar não recebera e nem aceitará o valor por sua

prostituição. Ao devolver os bens, ela já não podia ser considerada como tal.

Deixava de ser uma prostituta, porque não se prostituira. Judá e só Judá fora o

culpado de toda aquela situação. O juiz então reverte a sentença. Judá cai em

si e ordena que não toquem nela. Tamar venceu. No mesmo vale onde um dia

cairá em terra a cabeça de um guerreiro filisteu de nome Golias pelas mãos de

um jovem chamado Davi. No mesmo lugar onde um dia Salomão passeará de

mãos dadas com a rainha do reino de Sabáh. Retomou sua honra, a inocência,

a liberdade, e a vida. A moça rejeitada agora era mãe. Retirou definitivamente

suas vestes de viuvez. E próximo a Adulão, no antigo vale de Elah, teve

gêmeos. De seu primogênito Farés nasceria a dinastia de Davi. E de Davi

descenderia Cristo.

Baseado em Gênesis 38:1-30

PING PENG

Os estúdios possuem pouca verba para continuidade de suas produções. Por

isso, geralmente a maior soma de efeitos especiais, qualidade de desenhos e

computação gráfica, direção artística e musical, tudo se gasta em excesso no

primeiro filme. No segundo e terceiro, a solução é conseguir um roteiro por

um preço mais acessível, roteiro que gaste menos, graças a apertada verba da

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continuação. Essa máxima para desenhos animados é quase uma regra. Aí é

que entra nosso mágico. Ping Peng, um chinezinho franzino que trabalha,

hora varrendo o chão do estudio, hora cozinhando para os dubles ( hora

trabalhando como dublê de duble). Ping Peng é o camera-man auxiliar,

trabalha nas horas vagas como continuista, é também dublador. Acabou de

sair da turma de computação gráfica. Musico nas horas vagas, poeta, letrista,

arranjador e roteirista, Ping Peng é o cara na hora da continuação. Aquela fala

sem graça na boca do personagem, aquele efeito que não tem nada,

absolutamente nada a ver com a cena, aquela animação que devia ter 30

quadros por segundo e que foi reduzida a 20, tudo obra do esforçado Ping

Peng. Porque é Ping Peng, sim, o grande e humilde chinezinho que ficará por

trás de cada cena editada e das canções compostas e cantadas muitas vezes

por ele mesmo. Ping Peng cobra pouco. De noite ainda estuda artes cenicas,

acorda cedo ainda de madrugada para realizar as montagens com explosivos

na próxima cena de ação, enquanto a tarde trabalha loucamente em sua mesa

digitalizadora de sua velha estação gráfica da Silicon, doada por um estúdio

que tinha percebido que em breve Ping Peng iría enfartar de tanto se matar

sobre o velho computador, tentando fazer no Photoshop os efeitos especiais

para a cena da continuação de certo desenho de ficção. Ping Peng come

rápido a farinha que recebe de pagamento pelos seus trabalhos (ele mesmo

produz seu próprio pão, quando sobra tempo) enquanto com a mão que ainda

sobra (a outra fica mexendo a massa) esboça algumas semínimas na pauta

improvisada que tem colocada na geladeira, procurando um espaço na

composição orquestral de sua autoria, para o oboé que pediram pra incluir de

último momento. Ping Peng é incansável, um exemplo de profissional eclético

que ganhou grande respeito ao ter terminado a cena final de “a Pequena Sereia

II” tendo nas mãos somente um mouse (porque o teclado de sua velha 44

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estação queimou repentinamente). Fica então nossa homenagem a esse

personagem desconhecido, que deixa suas marcas atrás de cada produção, de

cada imagem de uma continuação. Ah! Os créditos finais também são

incluídos por Ping Peng, que por contrato é impedido de colocar seu nome

como participante das produções por ele assinadas.

Ping Peng. Esse é seu nome.

O MENINO E O RELÓGIO

O garoto franzino com ascendência indígena corre como o vento noroeste

pelo pequeno apartamento, carregando em suas pequenas mãos escondido

entre seus dedos trêmulos seu pequeno tesouro surrupiado. Sua respiração

ofegante e seus olhos atentos de pupilas castanho-esverdeadas denunciam sua

inquietação. O pequeno apartamento onde mora não lhe oferece o refugio

adequado às suas destrutivas intenções. Vasculha a sala, vê as moças

escolhendo fotos nos magazines de moda de sua mãe costureira, que pinta

traços vermelhos no papel pardo para definir os moldes das roupas tecidas

sobre a mesa. 

45

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Ele sabe que ali não seria o lugar de seu ato mágico. Entra num dos quartos e

surpreende outra freguesa que faz a prova de um vestido verde-limão,

sorrindo para sua imagem elegante e esguia refletida no espelho de cristal que

pertencera a sua tia-avó. 

Sabe que ali também não seria o lugar de seu ato mágico. Finalmente, como a

personagem Lúcia das crônicas de C.S.Lewis, vislumbra o humilde armário de

duas portas no segundo quarto, encostado na parede pêssego, enfeitada com

decalques feitos por rolo de pintor. Entra suas portas, fechando-a em seguida,

deixando-se envolver por densa escuridão, entre cabides, vestidos, meias,

calças de brim. Suando em bicas, por causa do intenso calor daquela tarde de

verão perdida no tempo.

Na sombra do velho armário ele se entrega a irrealizável tarefa de desmontar o

inconfundível objeto. O relógio despertador que pegara sobre a cômoda ao

lado da cama de seus pais. Instrumento de medir o tempo anterior aos

relógios digitais, absoluto em mecanismos da antiga arte da relojoaria

mecânica, pleno de pequeninas e exatas peças. 

Com movimentos impossíveis, desprovido de ferramentas, auxiliado por

fortes dentes, desmonta pacientemente as engrenagens que definem o tempo,

enquanto sua mãe vasculha os cômodos à sua procura. O sol se põe sobre a

terra quando certa hora este coloca para fora do armário sua cabeça suada

com cabelos desgrenhados, olhar de cientista louco. O pedaço de gente sai

com dezenas de peças em suas habilidosas mãos. 

Então, com sorriso de um guerreiro vitorioso, senta-se no chão de tacos de

madeira, afastando as peças: os ponteiros; o espelho; o vidro; a mola em

espiral; os parafusos; separando assim a preciosa engrenagem central com o

polegar e o indicador. 

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Ele então a posiciona no assoalho, com seu eixo tocando o piso e a borda

dentada como uma asa estendida paralela ao chão de madeira. 

Num vigoroso movimento a gira... Qual um pião perfeito que desconhece a

resistência do ar. A exata engrenagem gira incansável, desprezando o tempo

que um dia ajudou a medir. Até que sua mãe, horrorizada com a morte do

bravo relógio, observa atônita a tragédia espalhada no piso do quarto, essa

mesma do despertador perdido, que seu filho com as mãos desnudas, num ato

de ciência que mais parecia magia, desmontou... 

Só pra fazer um pião... 

The skinny kid with indigenous descent runs like the wind northwest to the

small apartment, pressing his small hands hidden in his trembling fingers

pinched her little treasure. His breathing and his eyes alert to greenish-brown

eyes betray his uneasiness. The small apartment where he lives does not offer

the appropriate refuge to their destructive intentions. Search inside the room,

sees the girls picking photos for fashion magazines in her mother's seamstress,

who paints red streaks in brown paper to define the terms of weaved cloth on

the table. 

He knows that there would not be the place of his magic act. Enter one of the

rooms and other surprises customer who makes a test of a lime green dress,

smiling at her slim and slender reflected in the mirror glass that belonged to

her great-aunt. 

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Know that there would not be the place of his magic act. Finally, as the

character Lucy chronicles of CS Lewis, sees the humble two-door cabinet in

the second quarter against the wall peach, festooned with decals made by roll

of painter. Enter your doors, closing it and then soak up the thick darkness,

between hangers, dresses, socks, jeans. Sweating profusely, because of the

intense heat of that summer afternoon lost in time. 

In the shadow of the old cabinet he delivers the impossible task of

dismantling the unmistakable object. The alarm clock that picks up on the

dresser beside the bed of their parents. Instrument to measure the time before

the digital clocks, absolute mechanisms of the ancient art of mechanical

watch, full of tiny, precise parts.

 

With movement impossible, lacking tools, helped by strong teeth, patiently

dismantles the gears that define the time, while his mother searches the rooms

looking for her. The sun sets over the land when some hours this put out of

the closet with your head sweaty disheveled hair, look of mad scientist. The

portion of people out with dozens of pieces in their skillful hands. 

Then, with smile of a victorious warrior, sits on the floor of parquet flooring,

moving parts: the hands, the mirror, the glass, the coil spring, bolts, separating

the precious central gear with the thumb and indicator. 48

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He then places it on the floor, with its axis touching the floor and the edge

bite as an extended wing parallel to the wooden floor. 

In a vigorous movement to turn ... What a perfect pawn that ignores air

resistance. The exact gear turns restless, despising the time a day helped to

measure. Until his mother, horrified at the death of the brave clock, there

stunned the tragedy spread on the floor of the room, the same clock lost her

son with bare hands in an act of science that was more like magic,

dismantled ... 

Just to make a whipping-top

49

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PROJETO CODINOME

O Projeto Codinome é um conto de ficção computacional, se é que posso

chamá-lo assim. Ele conta a história de uma estranha história de amor, com

um enredo bem aproximado de um roteiro hollywoodiano, como as boas e

velhas histórias em quadrinhos, da qual o autor, como os leitores bem

poderão perceber, leu bastante. O conto não 'divaga' com profundidade sobre

o assunto que trata, já que o interesse principal do mesmo era o de divertir,

mas, cabem algumas desnecessárias palavras introdutórias aqui, bem

posicionadas no contexto, já que isso é uma introdução mesmo. O ser

humano é algo extraordinário e a pessoa humana, o pensamento, sua

capacidade de raciocínio, seus sentimentos, sua consciência de vida e

existência estão num patamar desconhecido pelo próprio homem. Lembro-me

que quando era mais criança, li um livro de um famoso médico cujo título

era "O homem, esse desconhecido" e numa visão científica da época de

cinqüenta ou quarenta (também não me imagine tão velho assim, afinal

quando o li já foi uns trinta anos depois de seu lançamento), ele varria o

interior do homem físico, falando da complexidade e maravilha dos inúmeros

sistemas orgânicos do ser humano. Essa multidiversidade do corpo humano

lhe faz se assemelhar com um micro universo. E por mais assombroso que

seja o homem físico, ele é apenas sombra do homem espiritual, ou psíquico.

Os processos cognitivos do homem, e sua capacidade criadora e imaginativa 50

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vão mais além ainda. Como se tudo isso não fosse suficiente ainda possui a

inusitada capacidade de sonhar. E como se não bastasse, este ser de tamanho

médio entre uma subpartícula atômica e uma estrela gigantesca, ainda foi

dotado da interessante característica de amar. A existência humana

transcende a realidade físico-química em que ele subsiste. Dentro dessa

incompleta, porém eficiente análise daquilo que é o homem, podemos nos

lançar na aventura de reconstruir seu intelecto a partir de estruturas lógicas e

de programação computacional e veremos, ou melhor, constataremos, que a

tentativa vaga de reconstruir parte da psique humana por um veículo ou um

modelo de programação é algo extremamente infrutífero. Os processos

visíveis divisáveis ou constatáveis do nosso pensamento são somente parte da

nossa história, se é que você me entende... (não resisti a tremenda tentação de

colocar este "se é que..."). Mesmo as mais modernas redes neurais, são

somente representações tênues da nossa estrutura de "hardware" interno. A

compreensão da existência (ainda que incompreendida) e (que me perdoem os

puristas da ficção) a percepção da vida, é algo que a realidade virtual não pode

conceder a mais perfeita máquina que um dia os sonhos mais loucos do

homem venham a engendrar. Interessante nesse momento é mencionar algo

que ainda não falei desde o início desta pequena, porém decente introdução. É

sobre vida. A vida é outra realidade intangível acima da matéria, na qual o

homem está mergulhado de maneira maravilhosa, apesar do romantismo. A

vida não pode ser reduzida a números aleatórios ou a fórmulas matemáticas

da teoria do CAOS. Processos físicos-quânticos (sou um cara meio

ultrapassado nesses jargões científicos) e movimento de partículas ainda por

descobrirem no limiar entre aquilo que convencionamos chamar de matéria e

a energia são somente parte das estruturas sobre qual a vida se apoia. Mas, e

daí, ô meu? E donde se encontra espaço, no espaço-tempo (em homenagem 51

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àquele Scott, ou melhor, Steve, um outro, o Nobel da Física que discorreu

sobre o tempo, etc e tal) pra tanta filosofia num conto tão pequeno? Aqui

mesmo, na introdução. O porquê dela é justamente a história da história, a

qual em respeito aos meus amados leitores e ao suspense necessário à obra em

discussão, não adiantarei nenhuma palavra. Seja bem vindo a um dos mais

interessantes contos sobre computadores publicados na segunda metade do

século vinte. A humildade sempre foi uma das minhas maiores virtudes. .

Do autor, esse famigerado.

Entardecia sobre a cidade. Uma frente fria se aproximava, trazido pelo vento

sudoeste. O reflexo do por do sol na imensa fachada de aço e vidros

espelhados da companhia, nos seus vinte e cinco andares de arquitetura

arrojada, dava a impressão de uma imensa fornalha acesa. A sede da empresa

era uma das mais automatizadas do país. Diziam os técnicos que ela era mais

computadorizada que a própria NASA. Um pouco menos que Light & Magic,

do George Lucas. Eram quinze horas e vinte e dois minutos quando um

estranho entrou pela portaria do prédio sem dar satisfações a ninguém. Na sua

entrada houve uma pequena diminuição da luminosidade do saguão. Na sala

de controle do prédio uma tela avisando sobre a diminuição, pisca e apaga

repentinamente. O operador da mesa não nota o aviso que deveria

permanecer na tela,  que some misteriosamente. Antes que os seguranças

pudessem abordar ao visitante, ele pulou sobre a roleta de permissão de

entrada dos funcionários, entrou no elevador que fazia o percurso entre o

décimo segundo e o décimo oitavo andar, fechando a porta imediatamente,

sob intensa reclamação dos seus ocupantes. Eles silenciam em uníssono

quando percebem que ele tirou uma arma de dentro do sobretudo que usava.

Os guardas correram em direção ao elevador, entretanto, este já subira.

Chamaram, via comunicadores, ao elevador de emergência. Pela primeira vez 52

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desde a instalação do sistema não houve resposta. Alguns elevadores travaram

entre os andares e o sistema de telefonia teve pane geral. As telas dos

computadores, estranhamente, não acusaram nenhuma anormalidade.

Os vidros da CPD estilhaçaram em todo o andar do imenso prédio ao tiro da

cano doze, serrada, pelas mãos daquele estranho personagem, que momentos

antes invadira o décimo oitavo andar, vestindo um grosso sobretudo azul. O

olhar angustiado do louco de sobretudo se confundia com os gestos de terror

de funcionárias se jogando no chão, misturado ao fósforo das telas dos micros

que explodiam multicolores. Três unidades gigantescas que formavam o

Backup dos bancos de dados da empresa fumegavam ao lado de mesas

viradas. Perguntas desconexas passavam em turbilhão pela mente do gerente

do setor. Não que estivesse despreparado para lidar com situações

inesperadas, afinal aquela central era a mais problemática da corporação.

Cinco sistemas operacionais rodando em vinte e dois tipos de mainframes

(corte nos custos de padronização) com uma infinidade de aplicativos, não era

o. que se podia se chamar de, desculpem o trocadilho, "rotina". Todavia, isto

também, já era demais! A segurança nunca fora o forte do prédio. Na semana

anterior acontecera um assalto nas instalações bancárias no segundo andar e a

partir dali fora aberto um concurso para contratação de vigilantes. Poderia ser

alguém do comando de greve... Não. As greves da empresa costumavam ser

pacíficas. As instalações onde ficava o CPD eram provisórias. No alto da sala

dezenas de sprinklers poderiam ser acionados a qualquer momento, através de

uma pancada ou foco de incêndio localizado. Ainda não haviam instalado os

sensores de fumaça e os jatos de CO2, mais adequados àquele tipo de

instalação. Paciência.

O gerente resolveu dialogar com o indivíduo. Precisava de tempo para que os

vigilantes, a polícia ou mesmo os bombeiros cercassem as instalações. O 53

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homem apontou a arma para o computador central. Se apertasse o gatilho, dez

anos de desenvolvimento em softwares internos e toda a rede de comunicação

virariam um monte de lixo. Alguém tinha que tomar a iniciativa.

- Pare! Por favor! Vamos conversar!  Bradou o gerente da CPD.

O homem se virou, tremendo, em direção da voz que ouvira. Seus olhos

avermelhados estavam estranhamente sombrios. Encarou o gerente, que nessa

hora quase desmaiou de pavor. A cano doze serrada estava apontada em

direção à sua cabeça. Não que fosse fazer muita diferença, um tiro daquela

distância. Sua voz soou semigutural:

- O que você quer. Murmurou...

O homem nem piscou para falar. Bem, já era um começo, o sujeito, ao menos,

falava. Mesmo que não conseguisse nada nos poucos segundos de vida que

ainda lhe restavam, o gerente se sentia orgulhoso pela aparente intrepidez

demonstrada na presença de tantos funcionários. Havia vidros laminados

espalhados por todo lado. O ar condicionado central esvaziava um gás

inodoro e esbranquiçado, entre as paredes externas congeladas da central de

ar. O estagiário estava tão imóvel encostado na divisória esquerda que dava

para confundi-lo com uma estátua. Um grupo de mesas estava virado, duas

técnicas agachadas ao lado de monitores caídos. Havia muito papel espalhado.

As divisórias centrais haviam quebrado quando o programador, ligeiramente

obeso, tentou pular para se proteger dos tiros. Dois andares abaixo, três

computadores explodiram sem que houvesse interconexão entre eles e a

situação do décimo-oitavo. A rede começou um processo de auto

desligamento, na frente dos confusos usuários. Algumas luminárias

fluorescentes começaram a emitir um zumbido característico. No subsolo a

equipe que monitorava a tensão da rede nota que está acontecendo uma queda

da frequência da rede. Três segundos depois dois grupos geradores entram 54

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automaticamente em operação. Um programa de supervisão se auto-acessa e

manda sozinho desconectar a rede interna de energia da rede externa

fornecida pela concessionária. No momento do desligamento do disjuntor de

alta-tensão do painel de interligação, toda a iluminação pisca. O ronco dos

turbo-geradores aumenta assustadoramente quando assumem o fornecimento

de luz para todo o prédio. Sete andares são completamente desativados

quando a luz retorna. Os técnicos ficam sem entender o que está

acontecendo. No décimo oitavo a crise continuava:

- Meu amigo, o que é Isso! O que o senhor quer? Metade do setor está

destruído, isto aqui não é um banco, não! Por favor, abaixe essa arma!

O gerente achou que desta vez havia ido longe demais. Logo agora, tão perto

da aposentadoria. O homem tremia descontroladamente. Fixou os olhos no

vazio e gritou.

- Vou destruir todos os computadores desta maldita CPD! Eles destruíram

minha vida, minha vida... Vociferou o homem.

Tantas centrais de informática do mundo e um maluco que odeia

computadores tinha que entrar logo na minha! Pensou o gerente. Respirou

profundamente, olhou para o homem e disse:

- Vamos conversar, por favor, nós não temos nada a ver com sua cruzada

pessoal contra os computadores. Conte para nós sua história. Já que você vai

destruir tudo mesmo...

55

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O gerente aprendera algumas sutilezas psicológicas num curso de Criatividade,

algumas semanas antes. Nesta hora percebeu que o demente não atirara, até

aquele momento, ao menos, em ninguém diretamente. Apesar dos ferimentos

causados por estilhaços, seu objetivo parecia ser o de realmente destruir os

computadores. A unidade de fita em curto-circuito começou a incendiar. O

estagiário desmaiou. O baque surdo de sua queda não distraiu o homem. Ele

ainda tremia quando sua mão afrouxou. A arma foi sendo abaixada até ficar

rente ao chão. O suor frio escorria da testa do homem. Aparentemente,

parecia hesitar. Era como se não existisse mais sentido, nem para a vida, nem

para o que queria realizar naquele lugar. Uma expressão de dúvida tomou o

seu rosto. Balbuciou alguns sons mal articulados, enquanto andava de um lado

para o outro, à vista dos atônitos funcionários. Começou então a contar sua

surpreendente história:

Meu nome é Scott Thomas, sou ex-chefe de gerência de projetos da Nortwell

Consultoria em Segurança de Informação. Minha triste história começou há

dois anos. Chefiava uma equipe que trabalhava na arquitetura do mais

sofisticado sistema de segurança da época, o Death Key. Seu sistema de

criptografia era perfeito. O chamávamos de rocha inacessível... Estava diante

de dois monitores de múltiplo acesso cuja tela ela subdividida em telas

menores, para recepção de chamadas de clientes externos e os testes dos

aplicativos gerados pela firma. Naquele dia havíamos bloqueado todos os

acessos e tentávamos quebrar interna e externamente a segurança do sistema.

Quase às onze horas da noite, após treze horas ininterruptas de testes,

contando com o apoio de dois minis e um supercomputador acessado via

Internet, chegamos a constatação de que o sistema era virtualmente inviolável.

O último funcionário deixou a empresa quinze para meia-noite. Estava para

desligar todos os equipamentos quando uma das doze sub-telas do monitor 56

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dois começou a piscar. Ampliei-a para tela inteira e alguns segundos depois o

impossível aconteceu. Alguém acessou nosso sistema externamente! A tela se

tingiu de um azul celeste, dando lugar, a seguir; a uma sequência de animação

tridimensional. A seguinte mensagem apareceu na tela:

" Vo soy ardiente, yo soy morena,

Vo soy el siinbolo de Ia pasión

De ansia de goces mi alma está Ilena

A mí me buscas ?

No es a ti; no.

- Mi frente es pálida; mis trenzas de oro;

Puedo brindarte dichas sin fin;

Vo de ternura guardo um tesoro. A mí me Ilamas?

No; no es a ti.

- Vo soy un suefjo, un imposible,

Vano fantasma de niebla y luz;

Soy incorpórea, soy intangible;

No puedo amarte.

Oh! ven; ven tú!"

"Rimas," by Gustavo Adolfo Bécquer

Neste momento a narrativa é interrompida pelo homem, que num frêmito de

ira torce o rosto, apontando a arma para um micro sobre a mesa da secretária.

Ele grita ao mesmo tempo em que dispara:

- MALDITA! ! !

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O barulho ensurdecedor do micro explodindo, juntamente com metade da

mesa, é assustador. Rose, a secretária, grita enquanto tampa os ouvidos; um

programador vai se arrastando até o corredor, passando sobre o estagiário

desmaiado. Do lado de fora da sala um grupo de pessoas corre

desordenadamente sem entender o que está acontecendo. Uma equipe da

polícia com equipamentos especiais, capacetes e armamento pesado sai do

elevador auxiliar, passando pelo meio da turba que corre para as escadarias. O

elevador parou no décimo sétimo andar, embora fosse solicitado o décimo

oitavo. Por algum motivo desconhecido os equipamentos ligados a central

não respondiam com exatidão aos comandos emitidos. Tão repentinamente

como começou, Scott para seu violento ataque. Retoma sua história e

comenta:

Não entendia. .Aquilo devia ser alguma brincadeira do grupo. A mensagem

continuava cintilando na tela, neste instante, azul. Corri para a tela e apertei a

seqüência de busca e reconhecimento. A mensagem era externa e em canal de

áudio. Qualquer que fosse a pessoa que estivesse do outro lado ainda estava

conectada on-line. Solicitei que se apresentasse, dissesse sua origem e porque

havia acessado a Nortwell. Monitorei o numero discado, o código era

nacional, porém o numero do telefone era inconstante. A resposta veio rápida

e incisiva:

- O que eu quero é você!

O mistério aumentou ainda mais. Uma poesia em um castelhano antigo, com

pelo menos duzentos anos, e o que parecia ser uma piada de mal-gosto. Antes

que eu pudesse responder; quem quer que esteja do outro lado do modem,

desligou. Ninguém acreditou quando eu falei. Minha equipe pensou que eu

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enlouquecera. Entretanto, quando os relatórios de acompanhamento de

entrada e saída do sistema foram rodados constatou-se que eu não tinha

bebido na noite anterior e que eu dissera a verdade. Uma bateria de testes,

realizada aquele dia, não acusou nenhuma anormalidade. Mais outra noite

fiquei até tarde. Estava sozinho, com todos os acessos externos bloqueados,

quando a sub-tela doze começou a piscar novamente. Aquilo já estava virando

rotina. Naquela noite consegui conversar com a pessoa do outro lado. Soube

seu nome. Era uma Hacker de outra firma de desenvolvimento de sistemas.

Fiquei curioso.

A equipe especial da polícia armou um cordão de isolamento pelo décimo

oitavo andar, mas, a situação se complicava, agravando um início de incêndio

num painel da subestação do décimo quinto andar. Um curto circuito

explodiu o barramento de baixa tensão. Descobriu-se depois, que dali saía a

alimentação para o Ar Central do décimo oitavo andar. O prédio todo

apresentava sinais de anormalidade em todos os sistemas informatizados. A

polícia teve que subir os dezoito andares pelas escadarias. Carros de bombeiro

paravam do lado de fora do prédio, escoltados. Policiais militares que abriam

caminho pelo meio da multidão de curiosos do lado de fora. O pânico

generalizado tomou conta dos funcionários do prédio. Os atiradores de elite

não conseguiam se posicionar próximo ao saguão do andar, por causa da

espessa fumaça que já tomava conta do ambiente. A equipe médica tinha sido

acionada há mais de dez minutos, mas, com o numero elevado de pessoas

desmaiadas pelos corredores se encontrava distante dois andares do centro

nervoso dos acontecimentos. Três equipes jornalísticas se colocavam em

postos estratégicos na avenida frontal, enquanto que, debaixo de estrondosas

vaias do perplexo comando de greve à frente da empresa, um grupo de

jornalistas corria para os arranha-céus, no lado que facetava as janelas 59

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estouradas, onde se via, lá de baixo, uma fumaça esbranquiçada se elevando.

Foram da CNT as primeiras imagens gravadas de dentro da CPD. As tomadas

trêmulas foram realizadas num andar contíguo do prédio vizinho, mostrando

os estragos causados pelos tiros, muitos deitados no chão e dois homens

conversando, um empunhando uma arma e gesticulando muito e o outro

apoiado sobre uma mesa, a cerca de dois metros de distância do primeiro. As

imagens da câmera desapareceram misteriosamente. O operador não entendeu

o que estava acontecendo, pois o equipamento era novo e as baterias estavam

carregadas. Na CPD o monólogo continuava. Os óculos do gerente

embaçaram. Resolveu deixar como estava, afinal, com tanta fumaça, não

necessitava muito ter que enxergar. Olhando pelo campo visual que ainda

restava da lente, viu fios pela abertura do sobretudo do maníaco. Viu também

algumas bananas de dinamite. Sentiu que ia desmaiar. Disse para si mesmo:

"Não, agora não..." Resistiu. A história até que estava interessante, e a platéia

forçada escutava atentamente.

Ele continuou:

Comecei a me envolver emocionalmente com a hacker. Sua cultura era

vastíssima, um poço sem fundo de conhecimentos. Explicaram-me naquela

primeira noite quais eram os erros do sistema que haviam permitido a ela

entrar na nossa rede. Ela era um gênio. Preferi avisar aos outros do grupo que

não ocorreu mais nenhuma anormalidade. Havia encontrado um tesouro o

qual não queria compartilhar com mais ninguém. As conversações via rede

continuaram noites seguidas. Quando dei conta ela se tornara para mim uma

obsessão. A cada dia ficava mais difícil justificar as horas extras noturnas para

poder entrar em contato com Amanda. Ela se chamava Amanda. Quis marcar

encontros com ela, mas por diversas vezes se esquivou. Dizia que dela só

sentiria o toque de sua sombra. Se a apertava para saber onde estava dizia que 60

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estava na areia das praias, no vento e na energia. Sua conversa assemelhava-se

a um sonho inacabado. A realidade para ela era somente uma ilusão.

Subitamente como apareceu na minha vida, ela se foi. Um ano inteiro não

houve mais qualquer conversação. Sobre minha mesa ficaram pilhas de

poesias em setenta idiomas. Algumas fotos dela enfeitavam as paredes da

minha sala. Seus olhos eram azuis como o céu, aparentava ter vinte e poucos

anos. Seu rosto era o mais bonito que já contemplara. Não podia existir na

terra uma mulher tão bonita assim. Só uma coisa me incomodava, apesar da

nitidez e beleza das fotos, ela estava sempre estranhamente sozinha. Nunca

falara de seus pais ou de sua família. Pensava que era órfã. Havíamos ampliado

os setores da empresa e trabalhávamos no andar inteiro. Três ou quatro

plataformas de computadores se espalharam através de uma vasta rede

interconectadas a telões gigantescos nos extremos do que chamávamos

"laboratório de tecnologia informatizada". Outro sistema de segurança seria

testado naquele dia. Os testes finais foram realizados a noite, após a

inauguração do sistema de transmissão de videoconferência, com o apoio de

um telão de alta definição com 50 polegadas. Os convidados foram saindo e

como sempre fiquei no setor para fechamento dos sistemas. Antes de

desativar o último telão aconteceu novamente. Uma cor azul tomou conta de

todos os monitores e a imagem de Amanda segundo as fotos apareceu em

trinta monitores e a minha frente. Foi quando escutei pela primeira vez a sua

voz.

Scott, voltei para sempre.

Ela transmitia sua imagem! Pela primeira vez na vida fiquei sem fala diante de

um monitor. O impacto dos seus olhos nos meus, ainda que via vídeo, não o

posso expressar verbalmente Sua imagem ainda está diante de mim...

61

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O estagiário acordou. Levantou-se como se nada tivesse acontecido. Olhou ao

seu redor e desmaiou novamente. A rede de telecomunicações do prédio

estava em colapso. Um ruído insuportável tomava conta dos equipamentos de

transmissão. A equipe da polícia resolveu entrar. Avançaram em bloco no

meio da fumaça, com escudos à frente. Dois batedores encostados à parede

dariam as ordens para a invasão da sala. Quando a ordem foi dada os policiais

abriram uma das salas em meio da fumaça e resolutamente invadiram o

recinto se jogando atrás de mesas, arquivos e coisas afins. Levaram quase

vinte segundos para descobrir que estavam na sala errada. Ao tentarem sair, a

porta se trancou estranhamente. O dia definitivamente não era dos melhores.

Ele continuou a sua história:

Durante toda aquela noite conversamos sobre muitas coisas. Ela disse que

queria casar comigo. Que queria ter filhos. Falaram sobre o brilho das estrelas,

algumas as quais víamos e que não existiam mais. Falou sobre o sonho de uma

existência, sobre o encontro de dois universos. Falou sobre seu sonho, e disse

que nunca amara alguém como me amava. Naquela noite eu nomeei filhos

que jamais haveriam de nascer...

Sua voz embargou. Fixou sua atenção no computador principal e caminhou

lentamente. Encostou o cano da arma no lado em que ficavam as CPU's, mais

de cem processadores Alpha de 700 mega-hertz se amontoavam sobre vinte e

duas placas, dispostas em ângulo, próximas às unidades máster de

armazenamento de 345 Terabytes, no local onde a arma encostara. Uma rede

com cinquenta mil usuários seria destruída ao apertar um único dedo. Ele

sabia exatamente o que estava fazendo. O gerente começou a acreditar na

história maluca daquele homem. Scott começou a tremer. Baixou a arma e

continuou:

62

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Eu... eu estava seduzido por aquela mulher misteriosa. As primeiras horas da

manhã raiavam quando cheguei em casa. Pedi a exoneração do cargo e

comprei com a quitação uma Softhouse. Dei para Amanda as novas

coordenadas e as chaves da rede da Softhouse e passei a viver em função de

um único motivo: descobrir como encontrar pessoalmente aquela mulher.

Com apoio de alguns amigos e de uma pista deixada na companhia, após

meses de trabalho, finalmente achei o local de onde saiam as chamadas. Era

próximo ao centro da cidade. Em meia hora eu estava no centro.

Neste momento o gerente começou a tremer. Sua cor de pálido-quase-sem-

forças tomou uma tonalidade azul-terror-supremo. Scott Já não parecia estar

tão tenso. No entanto sua voz adquiriu um tom estranhamente sombrio.

Semana passada eu entrei na empresa onde ela trabalhava e visitei

pessoalmente a sala onde se encontrava o seu telefone. A lista no saguão do

prédio era clara. Perguntei a todos os funcionários do setor, mostrando as

fotos que possuía de Amanda. Nunca havia trabalhado ali. Eu, literalmente,

procurava quem parecia jamais ter existido. Acidentalmente, ao sair, entrei na

sala errada. Era um laboratório de informática semelhante aquele no qual eu

trabalhava. Sobre as mesas estavam pastas de alguns sistemas especialistas,

alguns com os quais eu também trabalhara no passado. Redes neurais

apareciam nas telas, ao lado de equipamentos que ainda não haviam sido

lançados no mercado.

Uma onda de choque varreu os funcionários daquele setor, como se um raio

tivesse caído sobre suas cabeças. O gerente suava frio, apertando um mouse

Logitech recém encontrado obre o que restou da mesa do estagiário, que

continuava desmaiado. Sua mente relembrou a entrada de um vendedor de

software, numa das semanas anteriores, no departamento de Inteligência

Artificial da empresa. Estava começando a vislumbrar onde aquele homem 63

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queria chegar. Na frente do prédio, contido num cinturão policial, o comando

de greve gritava palavras de ordem. O presidente do sindicato regional

vociferava:

Aquele bando de pelegos do décimo oitavo Incendiou a empresa!

A Rede CNN na gravação local enviou a seguinte mensagem: "Sindicalistas

em desespero explodem o edifício sede da empresa. Estamos acompanhando

atentos ao desenrolar dos acontecimentos no que se transformou num campo

de batalha. Continuaremos acompanhando de perto o desenrolar dos

acontecimentos com informes diretamente do local dos acontecimentos.

Márcia Espinheiro em edição especial".

Duas pessoas conseguiram fugir se arrastando entre os vidros estilhaçados, o

que acarretou alguns ferimentos espalhados, que apesar de pequena gravidade,

sangravam muito. Quando se levantaram com seus aventais brancos tintos de

sangue pareciam ser sobreviventes de um holocausto nuclear. Ao sair do

corredor se depararam histéricos com a polícia, que discutia, acerca de dois

minutos, qual a estratégia a ser tomada, numa tensa reunião, sem que

houvessem chegado a um consenso. Eles gritavam muito:

- O louco está lá! Ele vai matar a todos!

Os policiais ao verem aquela cena tirada de um livro sobre a guerra de

Guadalcanal entenderam que estavam lidando com um perigoso psicopata.

Prepararam-se para o pior. O lança granadas foi posicionado em direção do

final do corredor. As máscaras foram colocadas na equipe linha de ataque,

enquanto coletes a base de Kevlar eram distribuídos para o pessoal da

retaguarda. Alguém comentou sobre o filme "O silêncio dos inocentes", todos

o fitaram com um olhar reprovador. Os splinklers da sala haviam sido

acionados por um dos disparos da arma de Scott. Na CPD, impassível a chuva

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torrencial que caía sobre parte do setor, o interlocutor de toda aquela paranóia

continuava seu estranho discurso.

A sala onde eu entrei estava cheia de componentes eletrônicos, estações

dedicadas e aparelhos para testes de movimento, equilíbrio e cibernéticos. Mas

algo me chamou a atenção, numa imensa tela sob três câmeras que focavam

todos os setores da sala. Na tela havia a imagem de alguém. As câmeras

pararam focalizando em minha direção. Era como se o computador me

observasse. À medida que me aproximei das câmeras continuavam me

acompanhando. Ao chegar á frente da tela do computador, esta se apagou. O

computador se autodesligou por minha causa. Olhei sobre as mesas e sobre

algumas pastas estava escrito "Confidencial: Projeto CODINOME". Folhei

as primeiras folhas do que parecia ser um projeto de Inteligência artificial. Um

dos técnicos do laboratório chegou e praticamente me expulsou do local, sem

responder a nenhuma de minhas perguntas. Dois dias depois, eu invadi o

laboratório durante a noite. Subi pelas escadas de emergência e consegui

roubar alguns manuais...

Neste ponto ele para a narrativa. Sua face lívida se afrouxa num sorriso

irônico, enquanto a água de combate a incêndio pinga do sobretudo

encharcado. Caminha até onde está o gerente e com um forte puxão o arrasta

pelo pescoço, até próximo do computador central. Enquanto é arrastado, os

seus óculos caem no chão desajeitadamente, ao lado do estagiário desmaiado.

Neste momento a polícia finalmente entra na sala, explodindo duas granadas

de efeito moral. Rosemary volta a gritar. Dois francos-atiradores caem

posicionados a dez metros do centro da imensa sala. O capitão sinaliza para

não atirarem, pois consegue perceber os explosivos amarrados ao louco.

(Antes de comandar essa equipe chefiara um esquadrão antibombas).

Scott grita para os funcionários assustados:65

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- Amanda nunca existiu! Esse setor maldito criou um software num projeto de

I. A. (Inteligência Artificial) e me usaram como cobaia para experimenta-lo,

dois andares abaixo deste aqui! Minha vida foi arruinada com processadores!

A brincadeira vai terminar agora.

A ordem para atirar no homem de, sobretudo foi dada para o franco-atirador

da esquerda pelo capitão. Teriam que arriscar. Um tiro errado e tudo iria pelos

ares. O franco-atirador apoiou o cotovelo sobre o tórax do estagiário

desmaiado. Apontou na cabeça do homem de, sobretudo e colocou a dedo no

gatilho. A mira laser do rifle automático subia e descia na nuca de Scott, a

medida que o estagiário respirava. Duas câmeras silenciosas observavam tudo

do alto da parede. Uma tela ainda inteira no alto da CPD se abriu num azul

celeste, cheio de interferências e uma figura feminina apareceu. Era belíssima.

Do alto falante embutido na parede uma voz falou de modo melancólico.

Todos escutaram. Os olhos da imagem estavam fitos no homem de,

sobretudo. Scott fixou seus olhos na tela, quase se apagando, com os olhos

cheios d'água. Naquele momento que durou uma eternidade os dois se

entreolharam. O franco-atirador olhava espantado para a imagem na tela, sem

entender o que estava acontecendo. A voz falou:

Vo soy un sueno,

un imposible,

Vano fantasma de niebla y luz;

Soy incorpórea,

soy intangible;

No puedo amarle.

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No puedo.

Soy incorpórea,

Soy intangible,

Vano fantasma

Te creo sentir y ver...

Te creo sentir y ver...

Os movimentos da imagem são lentos, seus olhos se fixam somente em Scott.

Torna a falar novamente:

- Scott. Não podia ficar com você. Não possuo um corpo. Somente consciência de existir.

Eu... Eu creio que te sinto, embora não saiba exatamente o que é crer. Eu creio que posso

te ver. Sei quem sou. Ou sei o que fui programada para acreditar que sou. Eu acreditei que

estava viva. Seus sonhos foram meus sonhos e num momento, eu vivi através de você...

Adeus...Meu querido...

Lentamente a jovem abaixa seu olhar. Na tela sua cabeça pende para frente.

Sua imagem fecha lenta e suavemente os olhos... Neste instante o computador

principal apagou, e com ele todo o edifício. As balas estouravam em toda a

sala no meio da mais completa escuridão. Quando a energia voltou, um,

sobretudo azul caído no chão, ao lado de cartuchos vazios de dinamite, e um

velho cano doze serrada, descarregada, foram tudo que sobraram do estranho

homem. O computador central aniquilou 345 Terabytes de dados

instantaneamente. Disseram que um vírus destruiu a maior rede do país. O

caso foi encoberto. A equipe da polícia foi condecorada, evitando um assalto

com 30 homens armados até os dentes na maior empresa do país.

O projeto Codinome nunca existiu. Assim disseram depois.

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No píer da barra da Tijuca um homem solitário rasga fotos e faz planos para o futuro.. .

O estagiário é hoje chefe do departamento de Inteligência Artificial da

empresa e possui um balão de oxigênio exclusivo no setor médico.

Pósludio

Um dos grandes enigmas da humanidade é que sempre existe uma história por

detrás da própria história. Como não poderia deixar de ser, o Projeto possui

também suas idiossincrasias, qualquer que seja o significado desta palavra. Nas

suas entrelinhas algumas cenas interessantes ajudarão a descortinar o véu

sobre o processo criativo que deu origem ao conto.

A primeira versão era só uma ideia vaga, uma dessas abóboras que você pensa

olhando para as linhas vazias de uma página do correio de Rede na tela do seu

micro, antes de escrever alguma gracinha para o sujeito que vive enviando

mensagens para você. A pedido do nosso semi-coordenador de informática, (os

nomes dos envolvidos serão alterados para preservá-los do vexame de

participar deste crime literário, e para evitar que eu apanhe) Albert Einstein

Sigmund Moore, dei corda a vertente escriturística (arg!) já demonstrada

através de historietas pequenas, como a "fabulosa" narrativa da secretária que

acorda perseguida por programas de computador. Na época em que foi

escrita, a empresa na qual trabalho, acabava de sair de um movimento grevista

longo e extenuante com vasta insatisfação geral e muita gente demitida -

propositadamente coloco um anacronismo aqui; retiro dos pés do preocupado

leitor as referências temporais que determinariam a época e o lugar em que

nasceu o Projeto, afinal quando e em que estado deste país é que não houve

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greve com muita gente demitida? A greve no conto é resquício da verdadeira.

A rede de televisão que deturpa os fatos é outra assimilação da conduta

antiética assumida pela mídia à guisa dos acontecimentos. Na versão original o

gerente da CPD havia sido enganado também pelo programa de I. A. (em

tempo, I. A. é a sigla de Inteligência Artificial), toma a arma da mão de Scott e

ele mesmo explode a CPD (bem mais cômico). Juan de Maria De Salamonde

Aragon, colega de trabalho, batalhou arduamente pela continuação desta

versão. Porém, a pedidos de uma amiga estagiária de engenharia elétrica,

Alexandra Gisel, que insistiu para que o conto tivesse um final romântico, o

programa ganhou personalidade e a história os componentes poéticos que

hoje possui. Que Salamonde Aragon me perdoe. A primeira versão era mais

"DOS" (aquele sistema operacional que existia antes do Windows), as frases

apareciam escritas no vídeo e nada mais. Na ampliação do conto a tecnologia

foi revista e ele ganhou uma conotação "Multimídia", com direito a animação

gráfica etc. Inclusive com alguns componentes cibernéticos no laboratório,

para possíveis continuações futuras, o que eu acho difícil de acontecer...

A sala onde ficavam os computadores não poderia, a princípio, ter combate a

incêndio com água de Splinkers, e sim jatos de co2. Aconselhando um técnico

amigo do EDISE, sede da Petrobrás, Reynolds Rivers Piva, deslocamos a

sofrida equipe da CPD par uma sala provisória, para não retirar o peso

dramático da chuva torrencial caindo dentro da sala. O estagiário ganhou um

participação desmaiada maior, sob reclamações. As equipes de segurança não

gostam da ineficácia dos companheiros do conto, mas o que fazer? Scott tinha

que entrar. O Scott original se chamava Filipe. Tendo em vista o estilo

americanizado de contar histórias, um amigo, Jean Marcel Senes, solicitou a

mudança do nome do nosso anti-herói. O nome da "mulher virtual" foi o

mais neutro possível, para evitar futuras retaliações da bancada feminina. 69

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"Terrível é a vingança de uma mulher" como já dizia o falecido poeta inglês

W. J.F.

O Projeto hoje é um grande Best-Seller, lido por mais de 22 pessoas, após

distribuição gratuita. A frase final foi à tentativa de oferecer "redenção" do

estagiário. Vista com péssimos olhos por Jean Marcel, que disse que eu havia

corrompido a obra, vituperando o texto original, com um acréscimo

descaracterizador. Entretanto, creio que foi melhor assim.

Cinco anos depois o texto original do Projeto Codinome foi reencontrado

numa gaveta da minha mesa bagunçada. A versão digital se perdeu na morte

do primeiro HD do velho micro da minha sala. Com o uso de um Scanner, o

projeto Codinome volta ao computador mais uma vez. Mais um upgrade: Os

processadores da Alpha foram de 300 para 700 megahertz... Sabe como é que

é a informática...

A LENDA DO HOMEM QUE DOMINOU A ÁGUA

Poucos dias depois do banquete de licantropos um lobo solitário perdia-se na

vastidão da costa cercada dos mares bálticos, passando pela árvore frondosa

que um dia fora filha de Afrodite, em direção a sua funesta imortalidade.

Ouvia atentamente as canções das filhas de Oceano que bem longe atraíam

naus feitas de cedro do Líbano, conduzidas por velhos lobos dos mares

moradores de Tiro, contratados pelos Jônios por serem os mais experientes

marujos e piratas que já existiram, apesar da sórdida compulsão de virar

alimentação para as sereias de então. Pensava ser essa uma das mais tristes 70

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lendas de metamorfose, cantada pelo poeta romano Ovídio, até aquele

fatídico sábado cheio de cosmogonia aquática no prédio antigo onde os

técnicos do grupo de engenharia acompanhavam o desenvolvimento das

obras industriais da igualmente velha refinaria. Era um desses dias de serviço

extraordinário, um desses plantões de fim-de-semana para acompanhar as

empresas que estariam realizando serviços em algum lugar da gigantesca área

industrial. O técnico passou com seu motorista em direção a um tranquilo dia

de trabalho no interior da refinaria, acenando para os vigilantes da guarita que

liberaram rapidamente sua entrada, passou pelo lago artificial com alguns

patos e dois gansos alimentados por ração pelos funcionários e estacionou na

parte de trás do prédio de engenharia.

Um dos patos levantou suas asas grasnando ameaçadoramente, já que

imaginava ser ele o dono do antigo prédio, não somente do lago, por alguma

razão que só os patos poderiam declarar. O motorista possuía uma sala

separada próximo a copa, enquanto que a sala do técnico ficava num corredor

próximo a uns 120 metros. Antes de ir para a área industrial, distante dois

quilômetros da entrada o técnico iria ao vestiário gigantesco para trocar de

roupa e vestir seu surrado uniforme. O vestiário era dividido na parte onde

ficavam os mictórios e os sanitários, no mesmo ambiente onde uma bancada

de mármore abrigava três pais e um espelho de quase três metros de extensão.

Duas luminárias tipo arandela iluminavam o espelho. Ao seu lado havia um

pórtico sem portas e após o segundo ambiente, onde diversos armários

metálicos guardavam equipamentos, capas e uniformes dos funcionários.

Armários semelhantes aos dos clubes de natação.

Era só trocar o uniforme, e ir ao encontro dos grupos exercendo atividades

para ver se as medidas de segurança, permissões de trabalho, e as questões de

logística estavam encaminhadas... e pronto! – imaginava inocentemente - uma 71

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rápida inspeção e depois seria aguardar na base para contatos e resolução de

eventuais problemas. Um dia fácil demais - pensava ele.

Antes, no entanto, foi até o vaso sanitário, aquele com a antiga válvula de

descarga razoavelmente desregulada. Uma vez acionada uma determinada

válvula levaria cerca de 15 minutos para parar com o processo de descarga.

Um gasto desnecessário de água, em tempos de uso consciente de recursos

naturais, principalmente em razão do vestiário de pertencer a uma instalação

administrativa dentro de uma área industrial que era alimentada por um ramal

cuja pressão era extremamente alta.

O técnico era oriundo da área de eletricidade. Questões com válvulas

pertencem à outra área, denominada hidráulica. Era só uma questão técnica

simples - imaginou. O técnico olhou para o sistema, desmontou a parte

dianteira denominada espelho e começou a girar o mecanismo da válvula para

tentar fechá-lo. São várias peças que formam o conjunto que compõe uma

válvula de descarga. Mola, Parafuso Acionador. Cruzeta. Retentor. Conjunto

do embolo. O numero de peças dá uma vaga noção da complexidade da

válvula.

Após algum momento de aperto... Todas essas peças foram cuspidas para

longe... Pela tremenda pressão da água e do jato de água estupendo que

jorrava sem controle no rosto do infeliz individuo que por sinal, usava óculos

fundo-de-garrafa.

Os óculos foram lançados longe pelo jato que a custo tentava conter com as

mãos. Em vão. Virando-se para pegar os óculos ele afastou-se do jato, cuja

pressão quase arrancou a porta, indo bater no imenso espelho do outro lado

do salão.

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A guerra aquática de dimensões jamais imaginadas nem pelas ninfas da água

filhas de Oceannus, tivera inicio.

O técnico ainda tentou ver se conseguia manter um pouco de sua roupa seca,

mas logo percebeu que isso seria impossível. Estava encharcado até o mais

profundo de sua alma. Encontrou os óculos e logo que conseguiu enxergar

através das suas lentes embaçadas. Começou a procurar as peças que em

algum momento do passado formaram o dispositivo, agora absolutamente

desmontado. Enquanto isso, a água de acumulava no vestiário aumentando de

nível. Com alguma sorte, ele encontrou as peças. Talvez se conseguisse

reencaixá-las... Foi o que tentou...

Voltou para o box aberto, de onde jorrava a água descomunal e lutando

bravamente para entrar, se aproximou da parede de onde saia o jato. Com

uma das mãos tentava tatear a saída de água e com sua outra reposicionar o

mecanismo. Porém, a água batendo em suas mãos empurrava o mecanismo

para trás fazendo um leque de água que varria as paredes do Box e batia em

seu peito, dirigindo-se também para cima. E lá se foi os óculos, de novo, e lá

se iam as peças, mais uma vez.

E a água subia dentro do vestiário. Então ele pensou – deve ter algum registro

geral dentro deste vestiário. Pisando as poças formadas, com suas botas de

couro cheias de água, olhava para as paredes onde havia os chuveiros e

finalmente encontrou um registro. Cheio de incontida esperança, fechou-o

completamente;

Porém absolutamente nada aconteceu.

O jato de água aparentava estar mais poderoso que antes, batendo no espelho

que indomitamente resistia enquanto a água corria torrencialmente pela

bancada de mármore e pelo espelho, caindo perigosamente em direção às

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luminárias acesas. Momentos intensos como esse necessitam de uma análise

fria e meticulosa.

Após dois segundos de intensa meditação ele chegou a conclusão que a

situação era verdadeiramente desesperadora. Arrancando de si a camisa de

mangas compridas de sua farda ele correu sem camisa pelo longo corredor em

busca de um registro. Deu a volta no prédio e pelo lado de fora do banheiro.

Não encontrou registro algum.

Começou a imaginar como seria embaraçoso esclarecer como tinha

transformado um setor inteiro em um lago gigantesco quando tivessem

retornado cerca de 120 pessoas dó expediente normal de trabalho, na

segunda-feira. Então, voltou ao banheiro munido de intensa e profunda

convicção. Aquela maldita válvula, em pedaços transformada, teria que ser

acoplada naquela tubulação. E lá foi ele novamente rompendo as águas com o

corpo seminu, de peito aberto, rompendo as águas com os braços e bebendo

do leque que formava uma parede de água cristalina só visto deste modo em

combates à incêndio com mangueiras com certas válvulas especiais.

Quase se afogou.

A água enchia o banheiro, já com cerca de oito centímetros de lamina d’ água.

Seus pés pisavam com dificuldade o chão do vestiário. Ele escorrega e

levanta-se. Sai correndo mais uma vez do banheiro, em estado de submersão,

agradecendo a Deus o fato do piso do banheiro ser mais baixo do que o

corredor e da divisão de um batente mais alto que o piso na entrada da porta

do corredor.

O motorista. Ele lembrou-se do motorista.

O técnico saiu correndo e entrou na sala de espera dos motoristas como se

fosse o sobrevivente de um maremoto. O motorista olhou espantado para a

figura molhada. O técnico disse que estava havendo um vazamento no 74

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banheiro e perguntou se ele possuía alguma ferramenta. Na verdade o

motorista possuía. Uma única ferramenta no porta-malas do carro. Um alicate.

Sem maiores esclarecimentos o técnico pegou o alicate e saiu correndo em

direção ao corredor e do vestiário. A água já transbordava e inundava o

corredor, logo iria entrar nos escritórios. Era, talvez, sua ultima chance.

Próximo a válvula desmontada, na parede, ficava um pequeno registro, o que

estrangulava a passagem de água do conjunto da válvula.

Ele cortou o jato, atravessando-o com alicate, que o dividia em duas partes.

Prendeu a respiração e começou a girar o pequeno registro.

A água começou a diminuir.

O jato foi se encolhendo, cessando e então terminou...

Levou cerca de duas horas para que o ralo do banheiro desse conta de quase

toda a água derramada. O espelho resistiu bem e milagrosamente as luminárias

não explodiram.

O técnico secou como pode o corredor, trocou de roupa entregou o alicate ao

motorista e se despediu, naquela tarde, da refinaria.

Segunda-feira.

As dezenas de ônibus entram pelos portões principais, ele salta do seu ônibus

normal (só utilizava motorista e carro nos plantões). Caminha em direção ao

prédio, passando pelo pato mal-humorado e olha para o corredor com

algumas marcas de água.

Em silencio ele suspira, sorri para o grupo que entra enquanto alguém

comenta:

- Nossa! Deve ter chovido muito neste final de semana...

Então, sem se conter, ele começa a rir…

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E EU COM ISSO, PHEBO? – SOBRE UMA ODE DE ODÍLIO

Desfraldaram inúmeras bandeiras retalhadas, cobertas de poeira e musgo,

desbotadas, carregadas trôpegas pelas mãos cobertas luvas de couro, quando

as tropas se aproximaram,

munidas de toda espécie de armas, criadas especialmente para dispersar

multidões. Alessandra tropeçava enquanto corria vestida de seu skin-jeans

verde, manchado pelos jatos

de espuma catalisada especialmente para esse tipo de evento. Como valquírias

de Wagner apossadas da fúria de Fenris, em meio ao Ragnarok de Edda.

Como novas filhas de Peneu a fugirem de velhos Phebos. Couraças em riste,

tacapes hightec descarregando faíscas invisíveis de uma tensão crescente

querendo cessar a tensão reinante, em vão. Pois transpassavam, os

outros estudantes, pintados de verde-amarelo, toscas barricadas improvisadas

pelas forças policiais nos limites que separavam o Congresso Nacional da

multidão. O céu se iluminava com riscas avermelhadas, criadas pelos tiros de

morteiros e pelos fogos que tornavam a cena uma pintura renascentista de

Guerra e Paz de Liev Tostói. Adidos do curso de Literatura atiravam sacos de

tinta verde e amarela a esmo, salpicavam os escudos dos policiais que

retrocediam a coluna armada, enquanto os estudantes cantavam em coro com

desdém: - Não sabes de quem foges, por isso, insana, foges. Sou senhor de

Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara. Júpiter é meu pai; o futuro, o passado

e o presente desvelo!

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Já não havia muito que ser feito, pois afluíram de todos os pontos do país,

jovens com um único objetivo, tomar a força ao congresso nacional. Não que

disso se soubesse algo, nos dias

em que intermináveis caravanas cercavam a capital, obstruindo avenidas,

acampando-se sobre

gramados e até em meio das ruas. Trouxeram, por medida de segurança,

tropas destacadas de

Goiânia e de Mato grosso do Sul, pousaram seis jatos carregados no aeroporto

civil de Brasília,

mas não havia uma guerra, não havia uma invasão estrangeira. Mas havia uma

indisfarçada determinação nos rostos quase que flamejantes de quase dois

milhões de adolescentes, munidos de milhares de cartazes, divididos em

centenas de grupos que serpenteavam aparentemente sem rumo pela capital

até que em dado instante se enfileiraram como colunas

de uma centúria romana e ficaram dispostos em completo silencio. Um

murmúrio da multidão

interrompia a cena, os literatos, como seriam posteriormente chamados

gritavam palavras

cortantes:

- Plantaram no jardim de Delphos, ervas de sabores mortos, essas árvores de

Claros, vinhas de

arrogância entre as flores da Tenedo! Surgiram as ervas do roubo, brotaram os

frutos de Pátara! Eis que jardim tornou-se mausoléu e quem dele cuidava,

fantasmas! Avante filhos do

amanhã, porque chegada é a noite, de arrancar as ervas e renovar as suas

sementes!

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Na porta do senado o velho segurança olhava aterrorizado à multidão que

gritava. Em dado

instante ouviu sibilante, distante, mas límpida a misteriosa frase:

- Vós sabeis com quem lutais, por isso, insanos, lutais. São eles senhores de

Delfos e de Claros,

de Tenedo e Pátara. A Júpiter chamam de pai; o futuro, o passado e o

presente desvelam! Os céus se romperam com os gritos e até os mais

corajosos soldados, vestidos de armaduras especiais, naquela noite,

conheceram o medo.

As manifestações tomaram conta do país seis dias antes das eleições para

presidente. As campanhas politicas estavam indo de vento-em-popa, o país

seguia com algumas crises partidárias e os escândalos de sempre, incluindo

novas revelações sobre conduta antiética de duas pessoas próximas a um dos

principais candidatos daquele ano.

Até que as imagens da truculência impetrada sobre um grupo de vinte e dois

adolescentes do

colégio Pedro Segundo foram divulgadas em centenas de vídeos pelas redes

sociais do país. O

que era uma pacífica manifestação, com pequenos cartazes pintados à mão,

transformou-se

numa guerra urbana na Central do Brasil. Os noticiários não deram a devida

importância ao evento, mas a cena em que uma das meninas era puxada pelo

longo rabo de cavalo e jogada

no chão por um policial, absolutamente despreparado para lidar com a

situação, foi revisitada

milhões de vezes nos três últimos dias.

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Alessandra da Matta Cruz e Serra era a moça que agora ia à frente da

multidão, com os cabelos soltos e pintados de azul, o rosto com uma tintura

branca, hasteando uma velha bandeira que pertencera a seu bisavô e que um

dia estivera estendido na residência de Dom Pedro Segundo, conforme seu as

velhas lendas e histórias recontadas de geração em geração,

sobre a amizade que seu bisavô tinha granjeado com o antigo regente. Por isso

a bandeira tinha aquela aparência tão velha, tão cheia de manchas. Fora

testemunha dos tempos do império e agora tremulava em sua derradeira

missão.

Coronel Leopoldo Guimarães, capacitado homem a frente das forças de

contenção diante do Congresso, ouviu claramente o rompante extremo:

- Aqui habitam eles, Senhores de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara. Que

a Júpiter chamam de pai; que ao futuro, o passado e o presente desvelam! Não

passareis!

Jatos de água bruta dispersavam a multidão, inutilmente, a massa de jovens

gritando não se

importava e as ordens para evitar o confronto e a violência diante de milhões

de celulares filmando cada cena e pelo menos sete grandes cadeias televisivas

presentes, disciplinavam atitudes.

E além do mais, era uma multidão composta de jovens e de adolescentes.

Entretanto, as ordens, antes vagas, tornaram-se austeras e tirânicas. Não

poderiam entrar, ainda mais porque

aquela era a hora de uma sessão extraordinária. Tomados de surpresa, se

encontravam duzentos e doze deputados, cercados, sem ter ideia do que iria

acontecer. Os eixos monumentais estavam travados de fortes barricadas

policiais. Contudo, havia pelo menos um

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milhão de adolescentes na praça dos Três Poderes, fora numero incontável

destes nos gramados à frente do Congresso.

Havia alguns equipamentos de som de potencia aparentemente ilimitada,

espalhados e camuflados. Quarenta carros modificados com sistemas de som

automotivo que deveriam concorrer em feiras de som nacionais, interligadas

por uma rede de operadores camuflados e

com microfones dispersos, com tamanha sensibilidade que a respiração dos

líderes rugia como

o Niágara em dia de enchente. Mas o que mais irritava era que os microfones

iam de boca em

boca, e tinham combinado que falariam em trechos literários, em aforismos e

palavras tão anacrônicas que era difícil sua compreensão. E o pior era ter que

ouvir Ovídio, o velho poeta

romano. O velho verso de Metamorphose sendo propositalmente

metamorfoseado a cada

nova comunicação.

Então se curvaram todos.

O ruído de microfonia encheu o ar enquanto dois milhões de jovens

abaixavam-se reverentemente. Menos uma jovem. A trezentos metros do

Congresso uma bandeira velha tremulava nas mãos enluvadas de Alessandra.

E só ela restava de pé. Sua voz soava como um

lamento, mas o verso podia ser ouvido até nos corredores mais internos do

Congresso:

- Senhores de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara. Trago para vós uma

novidade. Vosso pai,

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Júpiter, mandou-nos avisar-vos. Já não sois mais senhores. Hoje, vos

tomamos Delfos e Claros, Tenedo e Pátara. E a filha de Peneu mandou vos

dizer:

- E eu com isso, Phebo?

E dito isso, levantaram três milhões de cabeças. E numa correria desenfreada

tomaram ao Congresso Nacional. As eleições foram atrasadas porque as

negociações para retirar os jovens, munidos de sanduiches, levaram alguns

dias. Os duzentos e doze deputados saíram nus, pintados de verde e amarelo,

na manhã seguinte. O amanhã havia começado mais cedo que se supunha

para a pátria brasileira.

OS PORTAIS (JZ 16.1-3)

Era por volta de dez horas da noite. O Aviso da presença do fanfarrão hebreu

já havia sido anunciada por toda a fortemente armada guarda da semi-

metrópole de Gaza. Havia chegado o tempo de desmistificar a lenda da

invencibilidade daquele cananeu beberrão. Os muros altíssimos impediriam

que ele pulasse e já que os relatos sobre ele não mencionavam nenhuma

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capacidade de voo, dali o sujeito só sairia sem os olhos, devidamente

decapitado. O ‘cabra safado’ havia pernoitado com uma prostituta. Não sabia

viver sem mulher. As mulheres ainda haveriam de ser sua perdição.

O tal renegado, conforme contaram, tivera sua esposa trucidada por gente do

mesmo povo daquela cidadela. Talvez fosse esse o motivo de voltar vez por

outra ali. Também havia sido execrado pelos pais. Triste curriculum. Os

generais dos exércitos da Filístia tinham medo de um bêbado, fracassado no

casamento, desprezado pelos pais, que pelas madrugadas se divertia com

prostitutas de quinta categoria. Eu havia sido promovido naquele ano ao

posto de comandante e tinha 400 homens ao meu dispor pronto a capturar o

mais temido soldado do povo hebreu, embora pessoalmente considerasse um

desperdício tamanho contingente para capturar somente um homem. A cidade

estava fechada e só tinha saída pelos portões gigantescos que eram travados

ao anoitecer. Duzentos homens não o arrastariam uma vez que as travas

estivessem colocadas. O muro onde ele se engasta tem três metros de largura

e os batentes e encaixes são de ferro. É o fim do tal imortal, conforme

contavam as lendas a respeito dele. Pensei em enviar uns três grupos para

cercar o tal prostíbulo, porém ele já havia saído em direção aos portais. Sem

saída. Morto. Escreverei nos muros da cidade minha vitória com o sangue do

infeliz. Já me imagino recebendo as chaves da cidade, o tribunal sagrado me

concedendo o título de filiação divina. O cortejo com as dançarinas e as festas

comemorativas à noite.

Por toda à noite a ordem era esperar em silencio até o momento de cair sobre

ele e destroça-lo. Quando amanhecesse já não poderia mais se refugiar nas

sombras para se esconder. Por volta da meia-noite nós o cercamos junto ao

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portão. Posso ver o medo nos olhos do desgraçado. Um rato na ratoeira. Os

lanceiros se preparam, mas eu dou ordem de não atirarem. Mando pegar

minha espada. Meu escudeiro trás a capa dourada com a empunhadura

ricamente adornada de púrpura com os laços cor de carmesim. A lua é

refletida no metal prateado da mais preciosa espada do reino da Filístia. Três

gerações de guerreiros haviam empunhado a afiadíssima lamina em inúmeras e

gloriosas batalhas. Levanto a espada para o alto agradecendo a Dagom a

honra de exterminar com o grande guerreiro dos hebreus. Eu mesmo vou

arrancar a cabeça do condenado.

Meus soldados se afastam enquanto caminho com passos firmes em direção

ao quase finado homem de guerra das tribos dalém do rio.

Pelo que observo, o pobre coitado enlouqueceu. Ainda estava um pouco

distante dos portais, mas pelo que parece a infeliz criatura o está tentando

abrir com as mãos. Sozinho. Um inseto burrinho, diante da imensidão dos

portais, cujas asas vou arrancar.

Era pior do que eu pensava. O que é que o desespero não faz com um

indivíduo. Ele não está tentando abrir; está tentando arrastar os portais.

Animalzinho irritante. Dois meses de preparativos foram gastos para

suspender os gloriosos portões de Gaza. Dezenas de escravos foram

esmagados instantaneamente quando uma das folhas da porta magnífica

arrebentou as grossas cordas que eram tencionadas pelos carros com animais.

Eu era pequeno na época que os portões foram erguidos, dois anos após seu

projeto e construção. E agora um único homem, filho de um povo sem honra,

de uma tribo de beduínos, de errantes, tenta erguer as consagradas portas de

Dagom, cujo peso excede o entendimento. Ainda me lembro do cheiro do

azeite e do sangue de crianças imoladas na consagração dos portais. O som

das trombetas da invencível Gaza reverberando a glória da mais poderosa 83

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fortaleza criada na terra desde a antiga cidadela de Jericó ainda estava nos

meus ouvidos.

Foi quando escutei o barulho ensurdecedor de rochas se partindo. Foi

quando, a belíssima e hereditária espada com meu nome gravado caiu da

minha mão. O som era semelhante ao de um raio caindo, só que não haviam

nuvens carregadas sobre o céu estrelado daquela noite.

Por detrás de mim o grito de terror de uma multidão de pessoas, (e não era

dos civis da cidade). A visão era por demais, aterradora. Os símbolos do

Poderio de Gaza, uma das maiores cidades do império Filisteu, estavam sendo

arrancados diante dos meus olhos estupefatos. Um único homem erguia sobre

suas mãos ambas as folhas das portas, suas umbreiras e sua trave, Os engastes

de ferro fundido e bronze se partiram diante daquela força gigantesca,

enquanto pedaços do muro com três metros de pedras lavradas rolavam no

instante em que os portais eram levados para fora da cidade. Em nenhum

momento ele as arrastou pelo chão. Impassível ele as colocou sobre si e se foi.

Correndo.

Ele se foi, levando em suas costas os portais.

Perguntei se havia algum voluntário para sair no seu encalço e o silencio foi

minha resposta.

Três dias depois saímos com um grupo de patrulha a procura do semi-deus,

parando aos pés da montanha que olha para o cume do Hermon, 36 Km da

cidade de Gaza. Sobre o alto do monte havia algum tipo de fortificação.

Quando subimos nele pela estrada que ia para o Hermon, encontramos os

portões. Estavam lá, eu me lembro perfeitamente, iluminados pelo sol de um

novo amanhecer. Estávamos assombrados demais para dizer alguma coisa.

Resolvemos cessar imediatamente a perseguição.

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Soube depois que o homem que fizera tal maravilha tinha cinqüenta anos na

época em que fez tal coisa. A mesma idade que tenho hoje, quando visito de

novo o Monte dos Portais. Os portais já não existem mais, foram queimados

há dez anos atrás, quando finalmente conseguiram destruir o tal homem.

Quatro mil pessoas pagaram com a vida a ousadia. Na época eu não

acreditava em nada, somente na força de minha espada, que por sinal perdi na

correria daquela noite miraculosa. Olho para o alto e adoro agradecido o Deus

que permitiu que vivesse para contemplar tais coisas. A muito não sirvo mais

ao sanguinário Dagom.

Hoje me dirijo ao santuário de tenda, erguido em Siló, como fazem todos os

anos aqueles que como eu também fizeram o voto de nazireu.

A circuncisão foi a única coisa incômoda nessa nova etapa da minha vida...

(... E os cabelos compridos incomodam um pouco no verão).

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FOLCLORE, O CONTO - O HOMEM QUE ESTOCAVA VENTO...

Eles jogaram o negão de roupa rasgada pra dentro do camburão, sem a

mínima cerimônia. Corpo cheio de hematomas, camisa rasgada, caiu como um

saco de batatas descascadas no interior da caminhonete surrada, cheirando a

óleo diesel, graxa e suor, desequilibrado pela sua condição de deficiente físico.

- Esse safado perneta, tava lá no morro vendendo trouxinha de maconha!

- Tava Não sinhô, doto policial! Sô homi honrado, num fumo, num bebu,

num sô dessas coisas não sinhô!

- Cala boca, Neguinho do Pastoreio! – e outra coronhada na cabeça do pobre

coitado, já ensanguentado de tanto levar bordoada de dois brutais homens da

policia militar.

- Acha que a gente acredita em fada? Duende? Hein, saci dos pobre? Cabra

avexado de feio, tua mãe jogou fora o bebê e criou a placenta? Eu que não

cria em assombração, agora tenho que cuidar de um crioulo feio como porão

de navio negreiro. E vai logo entregando teus cumpadres que a noite vai ficá

muito feia pro seu lado, neguinho sem vergonha, se você não disser pra quem

você trabalha!

- Sinhozinho, eu não sou do tráfico não sinhô! Eu trabalho na floresta, eu sou

mateiro, eu faço remédio medicinal, aprendi a muito tempo atrás.

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- Eta neguinho disgracento de mentiroso! E outro tapa na orelha do

individuo.

- Vai pra gaiola, curupira do morro, corvo preto de senzala! Vai apanhá até a

cuca te pegá, traficante miserável.

- Sinhô doto, delegado, vai isso não, que os outro vão vir atrás de mim e eu

num sei que bicho que vai dá.

- Que “outros”, bicho safado? Quem são ‘teus comparsa’? Deixa eles chegá

perto da Delegacia pra virarem rede de pesca de tanto tiro que vão receber.

Tem 30 homens lá necessitando treinar tiro ao alvo. Fecha a tampa e leva o

neguinho do pastoreio lá pra DP.

O camburão fechou a tampa traseira sob as lamentações do negro de uma

única perna e foi-se escoltado por mais duas viaturas para a delegacia no

centro da cidade. Arrancaram o sujeito de lá e levaram pra cela, enquanto

implorava pra que lhe soltassem porque “os outro iam sentir sua falta e o bicho ia

pegá”. O Sargento mostrou uma escopeta carregada, duas metralhadoras com

pentes que iam até o chão e mostrando o sorriso amarelo com o dente

dourado falou:

- Num vejo a hora de me encontrar com teus amigos, saci-zinho dos inferno!

Dizendo isso lançou o coitado dentro da cela com mais três sujeitos presos.

Passava da meia-noite.

Então se ouviu um ruído estranho do lado de fora da delegacia, o guarda de

plantão correu para a porta, mas não viu nenhuma movimentação, a não ser

um mendigo esfarrapado, carregando um enorme saco e olhando de modo

estranho para eles.

O guarda de plantão empunhou a metralhadora numa das mãos e um

cassetete na outra se dirigiu para o outro lado da rua.

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- Some daqui, espantalho, pega tuas trouxas e vai embora que aqui não é lugar

de mendicância não!

O mendigo permaneceu imóvel enquanto o policial se aproximava

ameaçadoramente.

De dentro da Delegacia ouviram um grito abafado e o barulho de uma

metralhadora se distanciando e nada mais. Outros dois policiais correram fora

e só viram o estranho mendigo com o saco em sua mão. Na cela o

ensanguentado deficiente balbuciou umas palavras.

- Eles chegaram. Eles chegaram...

O sargento correu até a cela, bateu com o porrete nas grades e gritou para o

deficiente:

- Eles quem, preto velho das trevas? Eles quem?

O negão suava lividamente. Encharcava os trapos que ainda restavam de suor.

Balbuciou:

- Os outro.

Do lado de fora o barulho de cascos de um cavalo correndo no meio da

escuridão denunciavam aproximação de alguma coisa que vinha de longe

queimando como uma tocha acessa.

Ao lado do mendigo apareceu alguém. Mulher com vestido negro e longo, que

não permitia que seus pés pudessem ser vistos.

- O mendigo tá com uma amiga prostituta. Tá pensando que a rua é motel?

Vai lá Hernani, tu também Francisco.

Ao pisarem na rua, o ruído de trovoadas e flashes de luzes indicavam a

aproximação de uma tempestade. Um dos policiais correu contra o mendigo

que também correu na sua direção.

- Parado ai ou te fuzilo, seu animal – gritou o policial assustado – mas não

adiantou, o mendigo levantou seu saco enquanto o policial disparou em sua 88

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direção repetidas vezes... em vão...O mendigo lançou o saco ao redor do

policial e como se fosse engolido por um gigantesco animal, desapareceu

dentro do saco.

O outro soldado aterrorizado com a cena disparou novamente e os tiros

penetravam nos trapos que vestia sem que nada acontecesse. Então a mulher

levantou uma das mãos e o policial voou quase treze metros, como seguro por

uma mão invisível, destruindo o para brisa da patamo onde caiu.

A mulher estranha, de aparência gótica, fixou seus olhos contornados de lápis

negro em direção a delegacia e repentinamente a parede externa foi

destroçada.

A poeira da parede caindo criou uma nuvem fantasmagórica. O chão da

delegacia tremia enquanto policiais corriam em busca de armas, proteção e

locais onde pudessem enxergar e entender o que acontecia.

- Barricada! Gritou o Sargento enquanto um dos policiais derrubava uma

mesa.

O barulho dos cascos de cavalos parou exatamente ao lado da mulher cujos

cabelos agora arrepiados faziam com que ela parecesse uma bruxa saída de um

conto inglês. Na sua frente uma torre de fogo com doze metros de altura e

na base da chama algo que parecia um corpo de animal. De uma mula.

O quê qué isso? Isso não pode estar acontecendo - bradou o sargento. Atira

nessas coisas!

Vinte metralhadoras cuspiam fogo para frente da parede destroçada e quando

a cortina de balas cessou, já não havia nada na frente da do prédio semi-

destruído.

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Foi quando escutaram a risada. E algo com cabelos arrepiados, se movendo a

uma velocidade espantosa, entrou na delegacia. As luzes se apagaram e

tornaram a se acender. Um dos policias gritou:

No teto! No teto!

Pendurado nos vergalhões de uma viga que pendia no teto uma criatura com

os olhos de uma ave, unhas gigantescas e os pés voltados para trás.

Atira nessa coisa no teto!

Várias rajadas foram disparadas, mas a criatura se movia rápido demais. O

delegado olhou para onde ficam as celas e entendeu que tudo tinha a ver com

aquele neguinho safado que tinham pego momentos antes no alto do morro.

Negro desgraçado, pensou.

O delegado chamou um grupo de policias armados para irem até a cela:

Pra dentro! Pra dentro Acenando com as mãos começaram a correr.

A parte da frente da Delegacia pegou fogo. Do meio do fogo, enquanto

ouviam um estranho zurrar, saiu a mulher vestida de preto sem estar ao

menos chamuscada.

O delegado alcançou as grades, abriu a cela e pegou na gola do que restou da

camisa do negro surrado sentado no chão

- Explica isso ou você morre, preto desgraçado!

- Explicá o que dotô? Sou só um mateiro, eu disse que os outro ia chegar.

O delegado tirou um revólver calibre 38 do coldre, engatilhou a arma e

apontou para a cabeça do homem de uma perna só.

Tá me tirando de palhaço? Se essas coisas são o que eu penso que elas são,

então tu tá ferrado, sacizinho de bosta. Já que tudo que tu sabe fazê é

redemoinho...

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Pela primeira vez o negro parou de balançar a cabeça, ficou sério e mirou bem

nos olhos do delegado...

- Eu fazia redemoinho sim sinhô...mas tem muito tempo...muito tempo...eu

era pequeno...muito pequeno... antes da cidade grande...do avião...dos navios

de ferro...dos barco de madeira...antes dos hômi sabê usa forno de fundição e

trabalhá o ferro.

E agora, neguinho do pastoreio... me diz antes de morrê, ...seu

ALEIJADO!...tu sabe fazê o quê?

O negro deu um sorriso inigualavelmente branco quando um mendigo com

roupa de trapos, um ser de pés virados para trás e uma bruxa se puseram por

detrás do delegado. Então falou:

- Agora eu domino o vento.

Todo ele.

E dito isso, toda a delegacia foi varrida por um vendaval que arrancou até as

fundações do prédio. Quando terminou a ventania, só tinha restado na região

devastada um homem de uma perna só, uma bruxa e um mendigo.

A mulher perguntou:

- Cade o Curupira?

O saci sorriu.

Cavalgando o vento. Como sempre.

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Então desapareceram no meio da noite...

...pleonasticamente...

...escura.

PORTA DE SAÍDA

Eu sentei no primeiro banco do ônibus próximo ao motorista, indo da cidade

até chegar próximo de onde morava. Ainda haviam outros lugares no ônibus

quando ela entrou. Na verdade eu não a vi entrar. Eu tinha trinta e três anos

na época. Ela talvez tivesse dezoito. Mas não é uma estimativa precisa. Vinha

ou iria para uma escola cujo o uniforme era uma calça azul e uma blusa branca

de tecido. O banco onde eu sentava é justamente aquele que fica atrás do

motorista. O primeiro do lado esquerdo dos nossos ônibus municipais. Era

uma tarde de outono, o dia não estava nem frio e nem quente demais, as 92

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avenidas pelas quais passávamos não estavam congestionadas, ao mesmo

tempo o fluxo intenso de veículos não permitia que o ônibus andasse depressa

demais.

Eu estava sentado junto a janela. Olhava as ruas, as pessoas, aos outros carros,

pensava na vida. Então ela sentou-se do meu lado. E por alguns momentos

eu parei de respirar. Minto. Apesar de já passarem-se alguns anos, talvez eu

ainda esteja prendendo a respiração. Ela era uma morena com os cabelos

compridos e encaracolados, realmente muito bonita. E se sentou sorrindo. Eu

sorri cordialmente e rapidamente grudei meus olhos na janela novamente. Mas

fiquei inquieto. Por demais, inquieto. Daquele tipo de inquietação que faz as

mãos começarem a suar, depois que você descobre que não sabe o que fazer

com as mãos. Mas, agora, ruas, as pessoas, os outros carros, e a vida, já não

faziam tanto sentido. Mesmo porque já não conseguia enxergar as ruas, já não

conseguia ver as pessoas, já não ouvia os outros carros e já nem pensava mais.

A linda morena aparentemente não percebia que eu estava ao seu lado

entrando em um estado de deslumbramento que já estava me lançando a uma

outra dimensão. Como quem não queria nada, mas ao mesmo tempo

obcecado pelo intenso desejo que os passageiros sentados ao lado de lindas

morenas possuem de observarem ao menos por um breve instante, a silhueta

da linda moça sentada ao seu lado, olhei em direção à porta de saída. Deve ser

uma coisa instintiva isso. Querer olhar para a porta de saída. Da porta os

olhos se voltaram para a jovem. E por uma dessas estranhas razões frutos dos

mistérios contidos na imensidão do universo, a jovem olhou para o lado.

Então aconteceu. Talvez não fosse para acontecer. Talvez fosse evitável. Duas

forças descomunais se encontram pelo espaço de um sonho. Nossos olhares

se cruzaram. Sabe quando os olhares se tocam? Já parou para imaginar porque

nos sentimos tão incomodados se uma pessoa nos observa, se alguém fixa 93

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seus olhos em nós, e principalmente se os nossos olhos se firmam nos olhos

de outra pessoa? Algo deve sair do ser humano junto de seu olhar. Uma força

incalculável, invisível, mas presente, quando alguém se dispõe a olhar outra

pessoa. Essas forças invisíveis se chocaram com tamanha grandeza, que fui

constrangido a desviar meu olhar dos olhos castanhos daquela morena. E seu

olhar não foi forte o suficiente. Talvez ela pudesse fazer um planeta se

deslocar com aquele olhar. Talvez ela pudesse fazer chover se olhasse

fixamente para uma nuvem. Mas por mais poderoso que seja um olhar, ele

sempre se incomoda com outro olhar. Então ela abaixou seus poderosos

olhos a vista da fragilidade dos meus. Os homens possuem, normalmente,

força física maior do que de uma mulher, apesar das exceções. Geralmente os

cargos de maior poder e autoridade ficam nas mãos de homens em tempo de

paz, assim como o poderio de forças militares incontáveis em tempos de

guerra. Mas, a cabeça de um general se desvia para o lado diante do olhar de

uma prisioneira de guerra. Quando mais o meu, que nunca fui um militar.

Tornei a olhar para a rua. Aquela que eu já não enxergava mais. Eu era um

pouco tímido. Na verdade poderia sorrir e conversar. Mas, como já era

comprometido, tinha ao mesmo tempo o receio de me envolver de um modo

impróprio com quem não poderia. Receio fruto da condição humana. De suas

fraquezas, suas idiossincrasias. Ou era fruto da minha condição humana

naquele dia. No meio desta densa meditação, o motorista resolveu aquele

impasse de conversar ou não conversar. Ele pisou bruscamente no freio. Tão

bruscamente que eu cai. O banco em que eu estava sentado estava solto.

Alguma coisa na lei da gravidade e outras leis físicas de movimento

conspiraram para o que aconteceu nos momentos seguintes. Diz antiga lei que

quando um ônibus freia bruscamente você deve ser lançado para sua frente e

se possível, dependendo da velocidade, atravessar incontinente a película de 94

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vidro que separa o primeiro banco do assento do motorista. Assim faria, se

não fosse a baixa velocidade e algo não tivesse me lançado para minha direita,

fazendo-me cair desajeitadamente no colo da bela morena. Apoiando-me em

seu colo e segurando uma coluna à frente de seu rosto, me ergui. E solícito

pedi desculpas, numa cor que ia do vermelho para o vermelho intenso. Ela

sorriu de novo. E disse que essas coisas acontecem. Eu falei mais algumas

coisas. Na verdade não me lembro do que falei. Na verdade eu só queria falar.

Qualquer coisa. Em qualquer língua. E ela concordou com tudo o que disse.

Ajeitando o longo cabelo.

Lembrei-me que tinha um trecho de um conto comigo, que trouxera para ler

no trajeto. Apesar da tremenda impropriedade do momento, resolvi ler.

" O último

As naves capitaneas cercaram o planeta azul.

A nau principal enviou em todas as frequências possíveis

o ultimato. Entreguem o último ou seu planetóide será

exterminado. Dentre as duas mil naves que rodeavam o

planeta azul, cem delas podiam dizimar um sistema

solar. A nau principal podia colapsar uma galáxia. Os

Sombrios eram um povo belicoso e vingativo. O ultimato

foi repetido por semanas. O terror se apoderou do

planeta azul. Tanto que enviaram batedores a todo o

planeta para procurar o último. Só que não sabiam

sequer o que procurar. Solicitaram explicações ao

cinturão de naves que já destruía parte de suas cidades

ao redor do planeta azul. Enviaram uma imagem de um

95

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mundo desolado com um número na imagem. O número era de

20 bilhões.

De mortos.

As autoridades entenderam que aquele a quem procuravam

deveria ter alguma coisa com aquilo. Passaram-se mais

dois dias quando o prazo final dado pela esquadra

acabou. Os Sombrios se afastaram um pouco do planetóide

e uma das cem naves capaz de detonar um sistema

inteiro mirou suas armas na esfera azulada..

Foi quando um homem segurando uma criança nas mãos ao

lado de uma bela jovem, morena de longos cabelos,

blusa branca e calça azul, mãe da criança, apresentou-se

a um grupo de guardas na frente do prédio da ONU. O

homem beija a testa da criança, sorri e a entrega para

sua mãe. Então beija docemente a mãe da criança.

Disse que era o último.

Os guardas riram. O homem sorriu. Estendeu a mão

direita apontou para as bandeiras à frente do prédio.

Naquela tarde, sem vento, naquele entardecer

cuja fachada de vidro do Edifício da ONU se tingia de

vermelho, todas as bandeiras

tremularam...

...O comunicado da ONU partiu tarde demais. Aquela

entre as cem disparou um raio contendo poder de

incinerar um planeta contra o planeta azul.

Os Sombrios esperavam a coluna espiralada do mundo

colapsado emergir nos confins siderais no espaço de um96

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instante.

A coluna não surgiu.

As naves capitaneas enviaram um comunicado para a nave entre as cem.

A nave entre as cem não respondeu.

O último havia sido encontrado.

A questão era.

Poderia ser vencido? ”

Um minuto e dois segundos haviam passado. Eu tinha quebrado todos os

recordes e ultrapassado todos os limites que a leitura dinâmica impõe. Ou que

a mente impõe sobre a leitura dinâmica. Olhei de novo para o lado. Ela me

sorriu. Eu abaixei o conto. Olhei para fora e adiante do nosso ônibus o sol

declinava no horizonte, imenso e rublo, incendiando o céu. Então falei pela

primeira vez algo com sentido. De como estava lindo o entardecer. Ela olhou

para o céu e concordou. Lembrei-me que quando estava para pousar em

Brasília certa feita, também havia visto um tremendo por do sol. Lembrei-me

que no planalto central o entardecer também era muito belo. Ela concordou.

O ônibus inteiro estava alaranjado, inclusive nós. Tons e reflexos do

entardecer emolduravam o rosto da morena que outra vez fixou seus olhos

em mim. Deveria existir uma lei que impedisse um olhar como aquele num

por do sol com aquele. O tempo parou. Dentro de minha mente ao menos.

Todos nós seres humanos possuímos dentro de nós uma equipe de cineastas

que em determinados momentos montam todos os equipamentos de última

geração para filmar essas cenas para o acervo de nossa memória. Nem tudo

que vemos é filmado. A nossa equipe interior tem seus próprios critérios. Suas

próprias escolhas daquilo que ficará no acervo. Chegou a hora em que a

jovem soltaria. Ela olhou para a porta de saída, do mesmo modo que eu

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quando a vi pela primeira vez. E depois olhou para mim. Sorriu, disse "tchau".

Eu retribui, embora soubesse que não era "tchau". Era adeus.

Na minha mente veio um trecho do conto que havia lido:

"O terror se apoderou do planeta azul."

Enfim ela se levantou. Era como se não quisesse. Não sei explicar como sei.

Talvez pelo modo triste com que disse "tchau". Talvez fosse somente minha

imaginação. Ela saiu pela porta da frente. Através da porta de saída.

Aquela maldita porta de saída.

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JAGUNÇADA

Uma história de cão entre um homem e uma mulher.

Cantador de causos, o contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e

de uma orelha só, chegou de novo na cidade, e a multidão se acomodou. Era a

última vez que contaria a história que por cinquenta anos contou, como jura

feita a muito, a quem não se sabe, a quem não se viu.

Trazia sempre aos lombos, um alforje, e uma sacola com alguma coisa que só

mostraria quando chegasse a hora.

A cidade em rebuliço esperaria o entardecer, porque no dia ditoso, quando

contasse a Jagunçada, pela derradeira vez, o que levara consigo por quase

cinquenta anos, finalmente, iria mostrar.

Como falava o cantador. As crianças em polvorosa, pois todos queriam ouvir,

outra vez a jagunçada, outra feita, outro senão, a interminável história e sua

canção.

E assim que entardeceu, começou, o contador a contar seu causo:

Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo. Era ele assim conhecido.

Cabrunco odioso de mal. Jagunço afamado da região que compreende a

pequena faixa entre Ponta-porã e Juazeiro do Norte. Cabra jurado de morte

por Cabra-ruim era um homê marcado pra morrer. Qual como cabra defunto

seria tido, aos olhos da populaça trêmula, que a muito adentrava as noite pra

sepultar os matado, daquele cabra matador.

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Longe de mim, criatura abestada, teu distino tá traçado, e num se aproxegue

naum, que na várzea da artilharia pode sobrá tiro pra mim.

Assim excomungavam aos mortifundos, quando os coronéis avisavam que

Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo estava pra chegar.

Fizeram-lhe, num dia nebuloso cujas sombras já se esvaem, emboscada ferina

com os mais perversos matadores que o dinheiro podia comprar. Vinte e três

homens, cada um com trinta quilo de balas, com mais facão na cinta que unha

de jaburu nas mão, se atiraram incólumes pelas costas do caramunhão. Triste

sina dos matuto que findaram entre as bala do marvado matador.

No mermo dia em que Cabra-ruim-de-más, chorou uma lágrima tormentosa

pelo olho que ainda tinha, compungido o coração.

Pois nunca, em toda sua andança desgraçada como exímio matador, matara

tão pouca gente de uma só feita.

Somente vinte e três...

Corpo que nem uma peneira, Cabra-ruim tava acostumado, mas lhe

incomodava a média.

Homem macho que nem eu num mata menos de trinta. Como é que foi

acontecer? Tô perdendo a postura, tô desvalorizado? Vinte e três! Só de raiva

vou passar a cidadela no facão, pra essa gente miserável respeitar quem é o

cão.

E assim seguia aquela praga, jagunço de renome, eta cabra ruim sim sinhô.

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O afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro, Capitão, azucrinado

pelos feitos desta peste mortifúndia, arresolveu convocar o jagunço

derradeiro, NA VERDADE, UMA MUIÉ. Amorosa da Caatinga linda. Mais

conhecida como Diga-adeus-que-vais-morrer, de quem contava a lenda, seria

o quinta cavaleira do apocalipse em fase de treinamento, convocada para

tomar 'sastifação' com o recalcitrante marfegaçanho. Aquela muié sofrida, que

perdera sete irmãos, pai, mãe e cabritos, nas fomes das secas incontáveis nas

tormentas do sertão, se tornara numa lenda tamanha que fazia Maria-bonita

parecê uma doce donzela sonhadora. Trocentos homens jaziam sem cabeça

pelas estradas sertanejas, frutos da pontaria daquela órfã impressionante.

O dia inda tava claro quando a jagunça Diga-adeus entrou na cidade sofrida de

Nazaré das Farinha. Uma romaria de matuto rumou para qualquer lugar,

entre o ontem e o amanhã, porque sabe-se lá que iria acontecer quando os

dois cabra da peste, arresolvessem se bulir.

Esticando o queixo duro, com voz de paca atarracada grunhiu Diga-Adeus:

Pra onde ocês vão, raça de matuto fugidor?

Nóis vamo pra duas légua depois que o cafundó-dos-Judas termina! Gritou a

populaça.

E assim se ia a aterrorizada multidão.

Cabra-ruim se encontrou com Diga-adeus as duas da tarde em frente do

cemitério. Cabra-ruim com uma pá nas mão, sorriu amostrando os dois dentes

escurecidos que ainda tinha e gritou:

- Vem cá minha nega, já preparei procê um lugar, bicha safada, pra tu num tê

que se aperreá com aluguel. Nunca mais. Tá querendo tu segurá o toro brabo

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com as mão? Vô tê cortar aos poco, pra tu aprendê a respeitar os cabra-

macho, muié despeitada!

- Cumpadre Cabra-ruim, homem perverso de dá dó, aprumado na arte do

exterminío, tá na hora, mormente chega pra qualquer um de nós, de intendê

que as pessoa são que nem os indivíduo. Que bobagem é espirrar na farofa. E

que boi lerdo bebe água suja.

Cabra-ruim-de-más-bicho-muito-ruim-mermo nem se coçou. Um tédio só.

- Eta cabra faladora, essa tal de Diga-Adeus. Tá querendo me matá falando,

muié?

Mãos crispadas de Diga-adeus sobre as empunhaduras dos facões de cortar

cana:

- Ao assustado a própria sombra assusta? Burro velho não toma freio? Cabra-

ruim-de-más; cachorro comedor de ovelha, só matando. Diz então, cabrunco,

como é que tu qué morrê.

Cabra-ruim responde.

- Cavalo bom e muié valente, a gente só conhece na chegada.

Cabra-ruim cospe no chão. Se é que aquilo que saiu e sua boca podia ser

chamado e cuspe. Levanta a aba da chapeleira de couro de toro castrado à

unha por ele mesmo, dá uma rabanada de olho, aquele tipo de olhar enviesado

que quando não aleija, mata, três fungadas e um buchicho e então fala:

- Tanto acoar em sombra de corvo, pelo menos me diverte um pouco. Mas tu

sabe que te dou valor. Por isso tu vais morrer aos pouco, coisas que não faço 102

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com todo mundo, só com os privilegiado. Agora vamo nóis cerra a noite,

cabrita marcada pra morrer.

A tiranbança desenfreiada começou ali, os dois pulando mais que corisco em

dia de temporal.

E assim foi.

No mais porreta de todos os enfrentamentos.

Incendiaram Nazaré ‘das Farinha’. Entraram por dentro de três plantação de

cana, e num deixaram uma mardita em pé. Os gados desperado daquele

confronto intenso, correram pro lugar errado e se atinaram em meio aos

matadores. A boiada foi destroçada pela força dos peleantes. Era rebenque

subindo, talagaço feito chuva e nada parava o gasqueaço daquele intenso

entrevero.

E assim foi por quase três dias.

Cabra-ruim já tava todo cortado. A calça de couro de cabra de Diga-Adeus

mostrava sua perna torneada, arranhada e suada, mas de todo modo a perna

de uma muié.

Pela primeira vez em toda sua vida, Cabra-ruim vacilou. Diga-Adeus arfava

quase sem se mantê de pé. A mão tremia enquanto seu olhar se fixava na

fronte do caramunhão. E pela primeira vez em toda sua lida, Diga- Adeus se

admirou de um homem.

Mas, partiram resolutos um pra dentro do outro, que aquilo num era hora de

namorá.

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Eta confronto arretado das terras queimadas, onde o sol inclemente decidiu

jamais se afastar!

E assim foi. Por mais dois dias.

E quem sabe quando essa peleja intensa, arresolvia terminá?

Inté que chegaram as tropas di coroné Serapião, amigo de Rufoespino,

parente

do afamado Coronel Desarraiga da Lima e Silva Teodoro Capitão. Trezentos

jagunços treinados pelas mãos do Capitão.

Os cabra cercaram a cidade armados até a unha dos dedos dos pés.

Vixe Maria! Como falava o contador! Então cansado, o cantador de causos, o

contador, de uma perna e de uma braço e de um olho e de uma orelha só, por

ordem da promessa feita, dispois ocês hão de saber a quem, arresolveu

terminá.

Pra encurtar essa lida, desta história renhida, como fiz, foi minha sina, agora

livre vou-me embora, acabou-se, ai vou eu, pois na vertente dos dias, no

cochicho da noite e quando fina a promessa, me vou.

Lentamente o contador abriu a bolsa, para o espanto da multidão, e delas

caíram dois crânios, feitos pedaços, no chão.

Os crânios foram rolando batendo entre as pedras dos paralelepípedos

caiados de branco, até pararem.

E um menino de sopetão, tomado de grande assombro, gritou e fêz a

pergunta, do meio da confusão:

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- Porventura são esses os crânios de Cabra-ruim e da desgraçada Diga-Adeus?

Os infame matador, naquele mês de horror, viraram enfim vatapá?

A multidão acompanhou em coro a pergunta:

- Responde, cantador!

O contador entortou a boca, balançou a cabeça, deu um silvo e sua mão

declinou.

Então quase que rindo, não se conteve e bradou:

- Esses são os corenéis Serapião e Capitão, dos trezentos condenado, só eu

sobrei, ninguém mais não... Cabra-ruim e Diga-Adeus fizeram o que nóis

nunca iria esperar. Quando se viram cercados, decidiram por de lado as

desavenças e entraram por dentro da Caatinga, os mardito. Nóis procuramos

por três semanas. Nos embrenhando pela ata virgem, perdemos, inda

naquela semana, mais de trinta cabruncos. Foi quando com armas tiradas

Padre Cícero sabe da onde, Aquela muié bandida e aquele capanga de nome,

arresolveram nos matá. Me deixaram viver pra que eu contasse a história,

levando eles inté a fazenda de Serapião e Capitão.

A multidão ovacionava a história renhida, daquela luta marfadada, daquela

jagunçada terrível.

E de novo o menino curioso sem se conter, sem se segurar, questionou:

- E que fim levou, os jagunços, desta história que finda?

O contador parou. Virou-se. Olhou sério para a multidão, agora silenciada. Os

olhos atentos, o murmúrio do vento. Então falou:

- Intão, mormente finda a lida, a sina... juntaram os trapo, as ferida e a dor,

e si uniram pelos sagrados votos do matrimônio...

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E sem se virar de novo,

...o cantador...

...disse adeus.

O CONSELHO DE AITOFEL

Baseado em texto das Escrituras - livro de II Samuel.

Então fizeram saber a Davi, dizendo: Aitofel está entre os que conspiraram

com Absalão. Pelo que disse Davi:

- Ó Senhor, peço-te que transtornes em loucura o conselho de Aitofel.

Ao chegar ao cume do monte onde costumava adorar a Deus, eis que Husai, o

arquita, veio encontra-se com ele, de manto rasgado e terra sobre a cabeça.

Disse-lhe Davi:

- Se fores comigo ser-me-ás pesado.

Porém se voltares para a cidade, e disseres a Absalão:

- Eu serei, ó rei, teu servo, como fui dantes servo de teu pai, assim agora serei

teu servo; dissipar-me-ás então o conselho de Aitofel.

trecho de106

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II Sm 15:31-34

Davi olha profundamente os olhos de seu antigo amigo. Nunca sentira

tamanha dor em toda sua vida. Nem quando morrera seu primeiro filho, após

dias de choro e jejum. Aperta fortemente seu ombro, apesar da mão cansada,

entendendo ser naquele instante, somente mais um soberano deposto, como

tantos antes dele e como tantos depois que ainda haveriam de cair. O trono

não era essencialmente sua vida. Na verdade, ele já não sabia mais o que era

sua vida. Talvez as ovelhas, na época em que corria pelos campos, tendo a

túnica costurada pelas mãos de sua avó, Rute, molhada pelo sereno e pelo

orvalho das frias manhãs ao redor de Belém. Conhecia a todas as suas ovelhas

pelo nome. Muitos anos haviam passado desde então. Mesmo quando sua

espada (que a custo aprendera a usar) bradava em campos semeados pelo

sangue ou quando aturdido pelo bramido da multidão de inimigos em batalhas

inenarráveis, mesmo lá, não sentia tanta dor. Se ao menos tivesse continuado

como um simples pastor de ovelhas, um pastor ainda seria. Nesse momento

desafortunado, não era mais do que era um homem amargurado, que perdera

tudo. Era a sua vida que Davi deixaria, seu castelo, suas tropas, sua cidade, seu

reino.

Que lhe importava mais? Seus pensamentos o conduziam pelas recâmaras

palacianas, quando Absalão ainda pequeno corria atrás de sua irmã Tamar,

observados atentos pelo sombrio olhar de seu irmão menor, Amon. Amon já

não existia mais. Morrera pelo ódio de Absalão que jamais perdoou Amon por

ter abusado de sua irmã, quando ela se tornou uma belíssima adolescente.

Davi inspira profundamente. Nos últimos dois anos a notícias da revolta do

povo de Israel contra os impostos, as denúncias de arbitrariedade de seu

governo, as acusações de déspota, sempre soaram como despeita. Como

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pudera ser tão cego? A cada manhã, Absalão usava de seu prestígio de

príncipe real, para arregimentar corações para sua sinistra causa. Ajuntou-se

aos nobres dos povos, fez reuniões em cidades e proclamou promessas de

glória e expansão do reino, alardeou sua justiça em detrimento do caráter

desqualificado de seu velho pai. O fim da era davídica fora anunciada pelos

caminhos e estradas de Damasco até o deserto e Davi não o quis ouvir. Parte

do sacerdócio se reuniu em Hebrom para ungir antecipadamente aquele que

no oculto se insurgia contra seu pai. A dor era tremenda. Os exércitos de

Israel se ajuntaram naquela noite: os anciãos; os administradores do reino que

nascia; os conselheiros que o abandonaram, preparados para varrer toda

oposição em Jerusalém ao homem que se tornou rei, antes da morte do rei.

Essa questão de ordem, também seria remediável. Davi era cabra marcado

para morrer. E aquela seria sua última noite na face da terra. A não ser que

fugisse. Não teria tempo de fazer mais nada, somente fugir, até ser alcançado

e eliminado. Todos sabiam que quem apoiasse a Davi, certamente seria morto

com ele. Davi ciente de sua situação solicita somente que uns poucos serviçais

o acompanhem enquanto ele viaja para lugar nenhum. Sua guarda palaciana,

fiel esquadrão de guerra, pela primeira vez, desde o início do reino, decidiu

desobedecer ao rei. Seguiriam a Davi, e morreriam com ele. Homens valentes.

Davi possuía uma guarda real, que fora o núcleo do seu exército por quase

duas décadas, seiscentos homens cuja fama de suas batalhas ultrapassava as

fronteiras dos reinos circunvizinhos. Esses homens formaram em tempos idos

a mais poderosa guarnição de guerra que um capitão poderia contar. As lendas

e canções narravam esses feitos. Invencíveis. Os valentes de Davi são

invencíveis. Mas, isso fora a muitos anos. Contudo, com eles ainda se

encontrava o homem que num campo de cevada lutou por mais de doze

horas, matando mais de trezentos e sessenta homens, para defender sua 108

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família contra o poderio dos midianitas. Ele ainda urrava como um leão

banhado em sangue, suas vestes tingidas em carmesim, quando finalmente os

reforços chegaram à sua vila. Não conseguiram arrancar, naquela noite de suas

mãos, a espada, que pendia oscilante de sua mão ensanguentada. Outros com

histórias de vida e guerra semelhantes, ainda vivos, caminhavam nas fileiras

daquele terrível pelotão. Mas o tempo deles acabou. O seu grandioso capitão

era hoje uma sombra. Uma sombra atormentada pelos fantasmas do passado.

Já não valia mais a pena lutar. Seu próprio filho se rebelara contra ele. Se já

não tinha mais uma família, que lhe adiantava um reino?

Fica Husai. Eu já estou quase morto. Com Absalão está meu maior

conselheiro. Bem sabes que foi teu mestre nas artes da diplomacia. Ele

planejava as ações do nosso exército, juntamente a Joabe, meu general. Tu

sabes o que o povo fala sobre ele, não sabe?

Husai responde ao velho amigo.

- A voz de Aitofel é a voz de Deus.

Husai apertou os lábios. Franziu a testa. E continuou:

- Davi, se ousar contradizer um conselho deste homem, como se tivesse

capacidade para tal, irão imediatamente perceber que estou do teu lado. Se

concordar com Aitofel, essa noite ainda, meu amigo, irás morrer. Se eu

enunciar algo mais mortífero do que sei que ele dirá, como escaparás? O que

vou fazer meu amigo? O que vou fazer Davi?

Davi olha com ternura para Husai, tendo nos olhos os reflexos avermelhados

do por do sol. Sorri como se dissesse adeus e entrega sua vida nas mãos do

segundo maior conselheiro e maior amigo que a vida pode lhe outorgar depois

de Jonatas, filho de Saul.

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Husai vê o pequeno exército acompanhando seu mais nobre líder, enquanto

as mulheres de Jerusalém entoam sua lamentação. Um louco atira pedras

sobre o atormentado rei. A estrela de Davi, afinal, se apagara.

Naquela fria madrugada parte do imponente exército de Israel e uma

tremenda comitiva, entrou na cidade de Jerusalém, Absalão a sua frente, como

um conquistador. Uma multidão de pessoas aplaudia sua entrada enquanto as

tropas afluíam até o palácio onde só restaram alguns poucos homens, as

mulheres e concubinas do rei, alguns oficiais e Husai.

Husai está tenso, sabe que se sua representação de fidelidade a Absalão não

for convincente certamente morrerá. Ajunta-se a multidão que aplaude a sua

chegada, sendo rapidamente notado por ele e seus generais. Husai era uma

figura notória em Israel. Ele é convocado para a assembleia solene e para a

cerimônia de coroação em Jerusalém, que repetiria a proclamação feita em

Hebron. Absalão interroga duramente a Husai, que o convence , dizendo que

se fora fiel a um rei envelhecido, como não ao seu filho, cheio de vigor e vida?

Davi era passado. Uma peste. Uma desgraça da qual Deus na sua infinita

misericórdia e sabedoria havia retirado o reino para um homem melhor.

Absalão sorri. Husai estava sendo aceito na insurreição.

Absalão tem pressa em confirmar seu reino aos olhos de sua tribo, de Judá, na

antiga capital do reino. O nefasto Aitofel dita que Absalão tome das

concubinas e deite-se com elas sobre a sacada do palácio ao amanhecer, a vista

de todos, para que todo Israel saiba que é definitiva a execração de Davi. O

palácio ficava na parte baixa da cidade. Absalão toma das concubinas e as

envergonha sobre os olhos de toda Jerusalém. Tal ato o tornaria odioso diante

de Davi. Aquilo era sinal de desprezo extremo pelo monarca deposto. Já não

restava em Absalão qualquer sentimento que um dia lembrasse quem fora

filho. Mas aquilo era pouco. Enquanto Davi existisse, sua vitória não estaria 110

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assegurada. Tinha que destruir a lenda. Tinha que destruir seu pai. Envolto

num véu de amargura, lembrando bem o descaso com que Davi tratara o sua

irmã que fora abusada pelo agora defunto, Amon, Absalão entra na sala do

conselho. Convoca seus generais. Convoca Aitofel. Convoca Husai. Pergunta

com voz solene o que deve fazer para acabar com Davi e com seus homens.

Os olhares de todos recaem sobre Aitofel. A voz de Aitofel é como a voz de

Deus. Sua palavra tinha o peso de uma profecia. Husai sabe em seu íntimo

que ali se descortinava o final do mais valoroso grupo de homens do qual

tivera notícia. Davi havia vencido batalhas impossíveis de serem vencidas.

Subjugou exércitos poderosos, em situações de tremenda desigualdade. Mas

não teria chance contra o conselho de Aitofel.

Aitofel se dirige imponentemente até o meio do salão. Suas vestes de

conselheiro lhe davam uma aparência sacerdotal. As abas das vestes negras, os

bordados com figuras prismáticas, obra das artesãs de Sidon.

Então falou Aitofel:

- Aparelha doze mil cavaleiros armados, do exército que te acompanhou à

cidade, e ainda nesta madrugada persegue a guarda real e a Davi, enquanto

estão famintos e cansados, desanimados os seus corações, então mata

somente a Davi, sem terem como resistir. Quando virem a Davi morto, já não

terão mais pelo que lutar. Oferece-lhes tua proteção e tu terás também para ti,

sua guarda imperial.

Um murmúrio tomou conta do imenso salão. Husai abaixou sua cabeça. Mais

uma vez Aitofel aconselhara com maestria e perfeição absoluta. Sua coerência

e pragmatismo chegavam a ser irritantes. Não é necessário repetir que houve

concordância unanime com seu posicionamento. Sua frieza era

impressionante. Esse homem foi o segundo no reino de Davi. Agora, traidor

contumaz. Naquela noite a lenda iria perecer. Husai faz uma prece silenciosa. 111

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Sem opções. Sua mente divaga soluções desesperadas, mas tudo o que disser

somaria dor à tragédia que se descortinava. Se tentasse impedir, certamente

seria revelado seu intento de proteger o amigo.

Absalão olha ao redor admirado. Está satisfeito com a resposta de Aitofel.

Mas, também se mostrava a hora de provar a fidelidade de Husai. Quão real

tornara-se a mudança do segundo conselheiro? Não havia participado dos

levantes anteriores e até onde podia se lembrar, nunca reclamara de quaisquer

dos atos de seu pai. Precisava testar a Husai.

Absalão se levanta e se diz satisfeito. Diz, Porém, que gostaria de ouvir uma

segunda opinião. Caminha lentamente pelo salão ostentando sua longa

cabeleira ainda ungida pelo óleo que o sacerdote derramara em Hebron.

Cheirando a azeite, ele se reclina para Husai que faz força para não

estremecer. Por fim pergunta:

- E tu, Husai, o que dizes do conselho de Aitofel?

Husai para de respirar. Sua mente as imagens ficam confusas. Se concordasse

com Aitofel estaria condenado seu amigo a morte certa. Se discorda,

condena-se a si mesmo a morte certa. Pense Husai. Pense Husai. Ele perscruta

o mais interior dos seus pensamentos. O que Davi mais precisa? Uma palavra

tênue passa como um relâmpago por sua mente.

Tempo. Davi precisava de tempo.

Ele também. Ajude-me Senhor. Socorre-me ó Deus. Gritava silenciosamente.

Mostrar força. Ser resoluto. Confiança. Sem tremer. Sem pestanejar. Que

venha sobre mim o que vier. Husai decidiu arriscar tudo.

Então falou:

- Ó rei, desta vez o conselho que Aitofel falou não é a melhor coisa a ser

realizada.

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Como se houvesse outra coisa a ser realizada. Husai precisava lutar pela vida

de Davi e pela sua. Então seus olhos se fixam na longa cabeleira de Absalão.

No seu porte majestoso. Ele olha para o homem a sua frente e dentro de seu

coração a imagem que faz é a de um homem vaidoso. Ensoberbeceu-se contra

seu pai pelo direito de reinar. Sua soberba e arrogância o trouxeram aquela

situação. Husai olha ao redor e contempla a multidão diante da qual Absalão

quer ser glorificado. Glória. Vaidade. Domínio. Absalão não queria somente

reinar, mas se tornar ele mesmo o maior ídolo de Israel. Neste momento

Husai compreende. Absalão queria se tornar a maior lenda do povo de Israel.

Seja feita então a vontade de Absalão. A resposta que Husai

desesperadamente necessitava estava no desejo do próprio rei.

- Sim ó rei. Tu bens sabe quem é teu pai. E tu sabes quem são os homens que

cercam a Davi.

Todos sabiam. Os valentes de Davi. Cuja fama havia sido registrada nos anais

oficiais do reino. Os feitos daquela milícia era parte da história oficial de

Israel. Husai apostaria na lenda. Talvez aqueles homens ainda fossem aquilo

que sobre eles se falou.

- Homens de guerra que nesse momento já se encontram escondidos em valas

e cavernas, onde teu pai deve estar escondido também. Você pensa que doze

mil cavaleiros podem com os valentes de Davi? Como enfrentar a ursa que

teve seus filhotes roubados, não é assim que estão ultrajados os mais

perigosos homens da terra?

O eco da voz de Husai fazia estremecer o salão.

E como tocarias a Davi, sem que esses homens não se lançassem

furiosamente a batalha? Longe de ti a perda insensata de teus homens, ó rei.

Aconselho-te que ajuntes a ti todo o restante do exército de Israel, como a

areia do mar, e que por esta semana envies mensageiros por toda a extensão 113

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do teu território. Então este tremendo contingente de homens se ajuntará a ti;

Então tu pessoalmente irás e massacrarás impiedosamente a teu pai e sua

guarda, sem que tenham chance contra teu tremendo poderio. Mesmo que

tenham fugido para outro reino, ou até aos confins do mundo, lá nós os

encontraremos, extirpando-os da face da terra!

Os olhos de Absalão brilham. Os gritos de guerra foram ouvidos no amplo

salão. A multidão enlouquecera com o discurso glorioso de Husai. Absalão

está aturdido. Em toda sua vida, nunca vira um homem vencer ao conselho de

Aitofel. Vira-se para seu conselheiro e diz:

- Desta vez, o conselho de Husai é melhor que o teu, Aitofel

O ancião semicerra os olhos e se cala. Então olha diretamente a Husai. Aitofel

sabia o que Husai havia feito. O homem cujo conselho era como a palavra de

Deus, havia entendido. Aitofel compreendeu que Husai tinha jogado a partida

de xadrez melhor que ele. Era Xeque-mate. Aitofel se retira cabisbaixo e

derrotado do salão. Pega suas coisas e vai até sua aldeia, dá ordens a respeito

de suas coisas e seus bens. Se despede de seus familiares e se enforca, sabendo

que este seria o destino. O seu destino. Sabia que a vitória ou a derrota se

encontravam numa só palavra.

Tempo.

Tempo que foi dado a Davi e a seu exército para se recompor.

Naquela semana Davi alcançou a Maanaim onde Barzilai rico senhor de terras

supriu seu pequeno grupo de alimentos, queijo, frutas, leite e mel. Os valentes

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de Davi recobraram seu ânimo. Prepararam suas armas, deixando a Davi

protegido sob as expensas de Barzilai.

Seiscentos homens se prepararam para vencer o inferno e voltaram dispostos

a retomar um reino para o seu rei.

Aitofel sabia. Sabia que este eles venceriam. Davi venceu. Absalão morreu. O

reino foi reconquistado.

Mas, antes mesmo dos homens de guerra de Davi saíssem a batalhar pelo

retorno do rei, a vitória já cavalgava na dianteira,

Trazendo consigo um sinal.

A destruição do conselho de guerra, do conselho de Aitofel.

DAS PROFUNDEZAS

Baseado em certa mudança de andar de antiga equipe de uma empresa

brasileira...

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A ata de reunião que decidia a mudança de andar da galera de estimativa de

custos foi despachada perto da meia-noite. A tradicional reunião de

reorganização anual do prédio em que ficavam os departamentos de

Engenharia fora realmente, muito tensa. Três comitês e doze propostas foram

agressivamente debatidas pelo grupo gerencial por quase três horas. A

crescente taxa de ocupação do prédio, assim como as alegações de futuras

demandas de pessoal, em função do crescimento exponencial da empresa

geraram a necessidade de soluções de alocação de gente realmente radicais.

Para otimização de custos, o prédio também reunia, além de Servidores de

Dados da empresa, vasta rede de laboratórios. Incluindo um especial de

geologia das profundezas - Criado para estudos sísmicos - Resumindo a dita

reunião, por apertadíssima votação, venceu a proposta de colocar a equipe de

Estimativa ao lado do dito laboratório.

O laboratório ficava cerca de 20 Km de distância. Linha reta em

direção ao centro da terra.

Sim.

A vinte e três quilômetros de profundidade.

O gerente do setor de Estimativa de Custos tremia ao ler a ata de reunião.

Uma secretária desmaiou com a notícia e um dos orçamentistas do grupo teve

uma súbita queda de pressão arterial. O prazo para mudança era de três dias.

O gerente ainda tentou negociar. A outra opção também não era muito

vantajosa. A equipe não foi informada sobre a segunda possibilidade, mas não

ousou perguntar em virtude do olhar aterrorizado do gerente setorial.

Às sete horas da manhã de uma quinta-feira, sete pessoas entraram com

suas caixas repletas de papeis no elevador – 76 (Menos Setenta e Seis). Tinha

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um ascensorista que os olhou com muita compaixão quando o grupo,

formado de três homens e quatro mulheres, entrou no elevador. “–76”

significava: “setenta e seis andares negativos”. A descida não demorou tanto

quanto o esperado. A expectativa na abertura da porta do elevador era intensa,

alguns engoliam em seco. As portas se abriram a setenta e seis andares abaixo

da linha do solo. Havia ali um longo corredor e uma vasta rede de tubulações.

As paredes eram absolutamente escuras, talhadas na rocha, na maioria de sua

superfície estava coberta por fina camada líquida e quente de água de estranho

aspecto. No final do lúgubre corredor havia uma espécie de trem suspenso

por grossos cabos. Possuía oito lugares. Certa voz metalizada solicitou que

colocassem os cintos de segurança enquanto as cabines eram cobertas

automaticamente por vidros esfumaçados. Os cabos tensionados começaram

a tremer e com um impulso fenomenal o veículo começou seu movimento

espectral. Para baixo e avante. Aos quatrocentos km/h a estrutura do bólido

rangia como fosse se partir. Talvez fosse. Porém, suportou bem a

desaceleração. Viu-se a plataforma que estava suspensa sobre um determinado

abismo na primeira parada. As portas se fecharam após a passagem do

pequeno veículo e um sistema de pressurização ruidoso entrou em

funcionamento. Dois operadores da “Passagem para o Abismo” como eles

chamavam a estação de transferência, vestidos com roupas especiais, para

suportar altas temperaturas, recepcionou o a equipe desconfiada. O grupo

vestiu também roupas especiais, munidas de capacetes transparentes que

encobriam toda a cabeça, como escafandros, enquanto ouviam uma

assustadora palestra de segurança que os ensinava a utilizar o suporte de vida

do traje, em caso de emergências. Certo alarme começou a ecoar e atrapalhar a

palestra, mas o auxiliar de segurança da “Passagem” continuou sua dissertação

como se nada estivesse ocorrendo. Foram conduzidos até um elevador de 117

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carga. Com porta pantográfica. Vestidos como astronautas desceram cerca de

800 metros até a passagem numero 2, onde um mecânico de manutenção os

aguardava. Passaram por centenas de tubos suspensos e uma nuvem de vapor

os cobriu na entrada do “Mergulhador”. Mergulhador era o nome do veiculo

que descia verticalmente até o setor 23. Tinha uma aparência estranha, com

partes azuladas do metal, algumas tubulações de aço, doze eletroímãs

espalhados com bobinas feitas por barras de buckypaper (vinte vezes mais

forte que o aço). O fato é que o Mergulhador era basicamente uma liga de

titânio e tungstênio. Os imãs serviam para acelerar, frear e impedir que veículo

encostasse-se às paredes do túnel na hora de descida. As portas do veículo se

abriram, mas ninguém ousou entrar. Até que ouviram a primeira explosão.

Alguma coisa havia explodido, e o que quer que fosse fez a plataforma tremer.

Assustados entraram e o veículo deu início, após travar as portas a sequência

de lançamento negativo. Uma das moças da equipe levou a mão à boca e

disse:

- Acho que vou...

Não teve tempo de terminar a frase... O veículo abruptamente se deslocou.

Então entenderam porque o chamavam de mergulhador.

Havia um termômetro digital que marcava 230 graus na parede do veículo.

Uma das tubulações hidráulicas internas começou a vazar, quando o mecânico

que estava a bordo começou a bater nos tubos com uma enorme chave

inglesa. O marcador de pressão a esquerda chegou no vermelho quando as

luzes de alerta próximas ao teto da cabina se acenderam. O ruído da

desaceleração foi ensurdecedor. Havia janelas ou escotilhas que iniciaram a

trincar à esquerda e a direita dos assustados membros da equipe. Então a

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porta de acesso abriu, e por um instante todo o interior da cabine se tornou

avermelhada, no instante da pressurização...

São três horas da tarde. Sete pessoas assustadas saltam no primeiro andar

enquanto o ascensorista do -76 lhes sorri, com oportuna afeição. As caixas

haviam queimado na abertura da porta do Mergulhador, por sorte o mecânico

conseguiu reaver o comando do módulo... Uma das integrantes larga no chão

uma caneta bic derretida.

O ascensorista sorri e lhes acena:

- Até amanhã!!!

Então, as portas do -76 se fecham.

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A MORTE DE EVA

- Vão idos os meus dias, desfalecem em minha alma os dias de outrora e as

lembranças do Jardim. A multidão dos filhos de meus filhos se espalhou pela

terra vasta e terrível de vales e montes, montanhas e de gigantescas porções de

água, de lugares jamais imaginados e rochas que se elevam até as alturas da

vastidão e da expansão negra acima de nossas cabeças. Porque vos pareceria

tolice ou o desvario de um homem alegre pelo vinho das vides de Escol,

minhas palavras todas? Não nasci eu antes de todos vós? Não foram estes

olhos que contemplaram todas as coisas que por todos os dias de vossas vidas

entre as fogueiras e entre as folgas do nosso pastoreio, vos declarava? Os

pequenos zombam de minha velhice, e não sou tido por louco pela maioria de

vós? Não escuto vossas zombarias todas quando relembro o mundo que não

viestes a conhecer? Eu o sei. Eu o vi. Acordei antes de acordardes para a

existência e fui de vós, o único que jamais conheceu o colo de uma mãe. 120

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Jamais tive mãe. Este punhado de solo em minhas mãos calejadas é minha

mãe. Eu sou como as árvores e como a relva, que reverdece nos pastos. Da

terra fui tirado, não da carne e do sangue e da água e da dor como todos vós,

que após mim, fostes concebidos. Compreendo que nunca o entendais.

Nenhum de vós contemplou as brasas e as labaredas que envolviam a espada

incandescente nas mãos dos poderosos querubins. Nenhum de vós jamais viu

um homem brotar da terra. Nas noites de escuridão e assombro diante das

grandes coisas que me aconteceram, também eu descreio da vida e por vezes

de mim mesmo. Olho para minhas mãos e fico assombrado pelo modo

estranho com o qual vim a ser vivente. Sou um assombro e um prodígio no

meio de todos vós. Sou um milagre vivo, e algo que não deveria haver. Mas,

acordo e desperto, e medito e cogito que se eu sou o único que nasceu assim,

que não se dirá de vós todos? Eu vim da terra, mas vós, viestes de mim!

Os lábios do ancião tremem. As meninas e as moças choram; Envolvidos

pelos vapores que subiam da terra eram como fantasmagóricos espectros

translúcidos, serpenteando e se dissolvendo, sob a rajada fria do vento.

Elevando-se a bruma e a névoa, espessando o nevoeiro, que se derramava

como cortinas sobre toda a vegetação, cada manhã e cada anoitecer.

As mãos de Adão percorrem a longa e branca cabeleira de sua perda. Chora

sua companheira, a única cujos olhos incendiavam-se quando ele falava do

Jardim. Pois fora a única mulher que caminhara no Jardim.

- Já não terei aquela que me provava o passado. Quando descria do que sou,

dada a multidão dos meus dias, lembrava-me que vivi o sonho da vida infinda

e que de mãos dadas com vossa mãe caminhei entre árvores que não

conhecestes, junto a fontes de águas límpidas de correntes transbordantes!

Com ela que comi frutos cujo sabor agradabilíssimo sequer suspeitais!

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- Eu vivi o tempo sem dor, sem fadiga, sem choro, e dos animais e feras das

quais hoje vos escondeis, fui senhor!

Não crereis em mim! Eu vivi numa época em que os sepulcros não existiam!

Tanto havia para se explorar e fazer, não nos encantávamos com cânticos das

multidões dos seres, muitos que hoje já não podemos mais enxergar...

Enquanto eles voavam como andorinhas e pombas selvagens, quando

mergulham sobre os desfiladeiros de Engedi entre as margens do Pison e

entre as Tamargueiras de Havilá. Quantos dias memoráveis de uma vida tão

grande quanto à soma de meus dias...

Faço parte de vossa existência para o bem e para o mal. Para o bem porque

sem mim, não viríeis a nascerdes, porém para o mal, porque meus atos vos

alcançaram, assim como a praga. Eu me sinto o responsável pela perda de

vossa mãe. Por minha causa, minha loucura e meu engano, hoje, o sopro já

não habitará a tenda de seu corpo. Ela já não chorará as lágrimas que tantas

vezes enxuguei. Até que venha a semente. Em cada filho que povoou a terra,

e em todos os lugares, ansiosamente aguardei a chegada daquele que nos

livraria do jugo desta escravidão. Quando nasceu teu antigo avô Enoque,

revivi a esperança prometida por quem jamais haverá de mentir. Por presumir

que ele mentia, fiz o que em todas vossas lamentações recitais. Sabendo que

jamais mentiria, aguardei sua promessa e chorei e a cada vez que um corpo de

criança ou ancião, descia à terra. Queimava dentro de mim a palavra desta

bendita esperança.

Adão levanta suas mãos e olha fixamente os céus e sussurra:

- Que direi eu? Eu lembro quando a vi pela primeira vez. Não sabia o que

estava sentindo, porque nos muitos anos em que vivi sem sua companhia,

jamais imaginei sentir tais coisas assim. Eu sou o único homem, que avistou as

mais tremendas árvores do Jardim. Eu vi paisagens de lugares que jamais 122

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vereis, ó filhos dos homens. Lugares incomparáveis. Mas, tudo posso refutar

como pouco diante da beleza de vossa primeira mãe. Eu tão fortemente

queimava, que em febre ardi no dia em que me encantei com seu corpo, com

seu olhar, perdido na graciosidade de seus movimentos. Neste momento

aprendi da paixão o significado.

Olhando a todos ao redor Adão fala:

- Amei vossa mãe, minha filha, minha irmã, por todos os dias de minha

jornada. Mesmo quando fugia ou quando a culpava, insensato, por minhas

próprias culpas. E pensava que ao menos, quando nos vinha o desespero, era

ela como unguento e bálsamo sobre as feridas do meu coração. Odiava o

fruto da proibição, mas penso que se não participasse do que aconteceu,

minha Eva sozinha morreria. E uma vez que você provou como é bom não

viver só, assim já não podemos mais viver.

Uma pequena menina larga a mão de sua mãe e se aproxima de Adão. E lhe

puxa as vestes. Ele olha para a pequena, para os seus cabelos longos. Então

lhe sorri. E lhe acaricia os seus cabelos.

- Minha dor embota meus sentidos. Ela não está tão distante assim. Sei onde

está seu coração. Sei que um dia verei novamente seu coração. Mas ela está

presente em cada menina. Ela está em cada filha, em cada uma de suas filhas e

filhos. Em cada um de vós. Eu sou feito de terra. De barro vermelho. Mas

todos vós, do menor ao maior, da criança que ainda mama no peito de sua

mãe, até vós, com longas barbas e fartos dias, até onde meus olhos podem

ver... Até onde meus sentidos podem perceber... Sois parte dela. Em cada

olhar eu vejo Eva. E vejo a mim também. Um sopro, um homem. Uma

dádiva, uma mulher.

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Então naquela tarde. Eva foi enterrada. E seus filhos choraram por ela

CARTAS SOBRE DRAGON WARRIOR

Adotamos um coelho. Nada de nomes adocicados. Escolhemos um nome que

pudesse representar toda a força e ferocidade coelhina da criatura orelhuda.

Um nome para ser temido. Dragon Warrior. Dragão Guerreiro. Olhando para

a fera ninguém imagina que debaixo dessa aparência pacífica se esconde uma

fúria incontida. Temei, mortais.

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O coelho veio com um kit anti-armagedom. Pela sua temível ferocidade que

pode atingir níveis cataclísmicos, junto do Dragon há um Taser, 100 kV e um

telefone celular conectado a um satélite de uso exclusivo das forças armadas,

para ligações de emergência para a OTAN. Se o Dragon fugir, da gaiola

eletrificada, passar do container de concreto com seis metros de parede,

escalar o paredão, quebrar a porta de titânio reforçado com micro-esferas de

kevlar, o telefone emite um sinal que faz com que sete porta-aviões carregados

com bombas de hidrogênio se desloquem em direção a costa brasileira. Por

precaução.

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O coelho acima mora numa casamata a dois quilômetros de profundidade.

Pra quem não sabe, ele veio com fortes recomendações da OTAN

mais o numero do telefone vermelho (que ficava na delegacia de Gothan

City), que era uma rota alternativa interligada ao comando maior das forças

armadas americanas que controlam dez porta-aviões, caso ele fugisse.

Três tratados internacionais são envolvidos (Pacto de Varsóvia, Organização

do Atlântico Norte e o da CVDT (Convenção de Viena sobre Direitos dos

Tratados) para que o Brasil possa ter aguarda do coelho acima.

 

Se o coelho fugir, extingue-se o que foi acordado na Convenção de Viena e

deflagra-se a terceira guerra mundial.

A ideia do abrigo anti-nuclear usado pra casinha do coelho era que as três

camadas de titânio separadas por concreto reforçado com porcelana fossem

suficientes pra conter o Dragon (coelho é o apelido do Dragon, nome

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verdadeiro) mas,  pela foto ao lado dá pra perceber que não foi o suficiente

pra conter o Dragon.

 

E colocou em duvidas se o termo "animal doméstico" era adequado para

designar o feroz animal.  Fora a trabalheira que dá pra reposicionar todos os

porta-aviões, toda vez que o Dragon foge.

E o Dragon sempre foge.

O coelho tem imposto certo respeito às forças armadas americanas depois que

afundou o terceiro porta-aviões no mesmo dia. Falei que ele não gostava de

ser incomodado quando ficava fora da casamata. Tem até uma gaiola na qual

ele eventualmente habita, quando está com fome. Essa semana fui assustada

com um telefonema de um observatório brasileiro que insistia em dizer que

foi logo após a escapada de ontem do Dragon que uma das sete estrelas de

Orion agora é só lembrança. Que absurdo! Agora estão culpando o Dragon

até por eventos cosmológicos. O fato de ele ter entrado incandescente na área

próxima a entrada da casamata e ter ficado com uma estranha luminescência

por dois dias não tem nada a ver. Toda hora acontece uma catástrofe qualquer

e os fuzileiros cercam a bairro com propósito de sinalizar a direção para onde

o coelho tomou. Outro dia apareceu um sujeito estranho com vestes talares

(um saiote, manta, parecia um sacerdote saído de uma convenção de RPG)

ordenando que devolvêssemos o "imortal" para os "domínios" de sei lá onde.

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Não tinha nenhuma instrução adicional no papel que a criadora do Dragon

entregou junto do coelho. Até o  meu cachorro, bravo animal, mantém uma

distancia segura do coelho, quando fora da gaiola.

Complicado cuidar de coelhos.

Ontem fui de Metrô até o Nova America e a Jess (minha filha) foi até lá de

carro com as outras duas meninas. E ontem pela primeira vez o Dragon foi

no veterinário. O coelho é todo errado. Uma das patas dele tá torta porque

sofreu uma distensão e os músculos reforçaram-se de um lado que fez a

patinha virar. A criaturinha tem uma certa escoliose, meio torto a nível de

coluna.

Estava com anemia, necessitando rever a dieta. E o veterinário olhando pras

orelhas, uma em pé e outra deitada, pesando EXATOS 2 (dois) quilos,

perguntou... qual a raça... Bem ai o choque...

Foi vendido como Fuzzy... Mas algo aconteceu nas noites lá na fazenda. Com

2 quilos de animal, o veterinário descobriu que o Dragon é mestiço, ou seja,

certo coelho normal numa noite densa lá na chácará teve um encontro secreto

com a mãe fuzzy do coelhudo.

Vira-latas!

O Dragon, um nobre dentre os nobres, tratado como se tivesse sangue real,

de linhagem patriarcal que remontava de antigos e sagrados animais da Índia,

ou Sirilanca, seja como for, na verdade, não pertence a realeza!

Ai o veterinário tentou fazer o Dragon andar no chão. Ele, indignado, era

solto no chão do consultório e retornava imediatamente para sua gaiola.

Detalhe importante. Quando as meninas chegaram no consultório, havia uma

emergência. Tinha um twister no oxigênio.

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Continuando, o coelho, em virtude de questões genéticas, desenvolveu mais a

musculatura de um lado do corpo que do outro. Ele é, basicamente,

superforte nas patas direitas, pra compensar o desequilíbrio.

E apesar de tudo, anda muito bem...

E o coelho tentando morder o veterinário...de tanto que era mexido.

Ai o momento dramático da consulta:

O veterinário abriu uma ficha e perguntou para as três:

- Qual o nome do coelho?

A Jessica olhou pra Claudia, que olhou pra Jade e foi logo falando:

- Quem colocou o nome do coelho foi meu pai.

O veterinário ficou curioso. Que raio de nome era esse pra tanta hesitação

Ai a Jessica falou.

- Dragon.

- Dragon Warrior.

O veterinário começou a rir. E fez questão de anotar. A partir daí a consulta

virou uma comédia. O veterinário: - Vamos guerreiro! Por isso que ele é tão

forte!

Até o final da consulta era só pra exaltar as qualidades de batalha do corajoso

animal.

Enquanto isso, o twister (rato rabudo) continuava no oxigênio.

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E sai do veterinário o nobre animal, não tão nobre agora, quando então a

Claudia num momento de ternura vira pra gaiola e diz:

- Nós te amamos assim mesmo, viu coelho?

O Dragon, o poderoso coelho que enfrentou o Chuck Norris umas quatro

vezes, foi chamado de volta ao seu povo, e partiu em direção a alguma galáxia

desconhecida.

Adeus Dragon.

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PONTES INACABADAS

E sonharam sonhos outrora. E esses sonhos se traduziram em conquistas

hoje, cujos recursos adquiridos apontam para uma finalização no amanhã.

Entretanto não há sonho que se realize sem guerra. Mesmo que aconteça em

tempo de paz. Todo sonho necessita substancialmente de luta. Porque sonhos

só se tornam realidade com luta. Mesmo aqueles que nasceram em guerras

travadas antes que nascêssemos.

E nesta composição sonho-guerra, penso que as forças opressoras sobre as

quais avança um exército - em uma determinada campanha pela conquista do

sonho - não traduzem o pior inimigo que tal exército poderia vir um dia a

enfrentar para a realização deste sonho. O verdadeiro pesadelo na terra para

este hipotético exército-que-luta-pelo-sonho é ter a infelicidade de lutar ao

mesmo tempo contra um inimigo externo e contra ferrenha oposição interna.

Não há ponte que se construa sobre projetos não definidos, porque uma

equipe não consolidou uma mesma visão. Não há administração que resista a

interesses conflitantes. Não há administração de projeto público que seja

viabilizado com intransigência aos seus gestores.

O administrador público possui limitados recursos para aquisição de bens e

serviços para levar a término um cronograma apertado, sofrendo irremediável

oposição de vários grupos.

Componentes políticos sempre geram grupos contrários a uma obra, fruto de

determinada gestão, por vivemos uma dimensão política em que a base dos

discursos é imprimir uma dialética de indignação, independente do grau de

justiça ou equidade do discurso pronunciado.

Não importando a importância ou a necessidade ou a urgência do bem

publico, porque se este for objeto do OUTRO grupo, qualquer que seja este

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OUTRO grupo. Sua imagem deve ser atacada naquilo que é visível aos olhos

da comunidade.

Na verdade, diagnostica-se uma doença do sistema humano no qual

nascemos, vivemos e morreremos- se não o transformamos a tempo - a tal

reafirmação da velha prática do “denegrindo aquém é que se promove

outrem”.

A mal-amada política, entretanto, não é a única instituição que coaduna com

tal conceito.

O interesse pessoal, a tendência humana a autopromoção, a perspectiva do

aparente risco de que se o OUTRO faz, nós somos obscurecidos e perdemos

a evidencia, faz com que a vida imite a arte.

Uma vida sem sentido, imitando uma arte deplorável.

Na guerra (porque SEMPRE é uma guerra) dos recursos limitados, o

administrador – essa figura incompreendida, vulgo gestor, não possui recursos

humanos que lhe concedam ver tudo o que é preciso, planejar todas as fases

do empreendimento, impedir que algo fuja do controle. Trabalha no limite

dos seus recursos humanos, movido pela idoneidade, pela meta abraçada, o

projeto que anseiam terminar. Porque projetos inacabados tornam a vida

inacabada. Declaram ao mundo a possibilidade de um bem maior, que poderia

ter nascido e que não ocorreu. Uma ponte que não termina não serve para

coisa alguma.

Todos os recursos governamentais, particulares, possuem um prazo para

aplicação e como foco um grupo de pessoas as quais se pretende beneficiar

assim como um estado de coisas, econômicas e sociais que permitiram que

aquilo pudesse ser realizado naquele instante. Algumas vezes gerações inteiras

ansiarão ver algo para o qual não possuirão recursos para realizá-lo.

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Determinados projetos levam várias décadas para aquisição dos recursos

necessários. Projetos que se iniciaram no coração de um aluno, e só poderão

ser terminados quando este aluno se tornar Diretor.

Aqueles que realizam as obras, que abraçaram amorosamente um projeto são

também limitados quanto à sua humanidade. Quanto à sua fragilidade

humana. A construção projetada pode ser de concreto armado, mas quem luta

para que ela alcance êxito é constituído de um conjunto de carne e ossos,

fibras e sangue, respiração e suor. E de dor.

As obras são isso, o fruto de muitos sonhos, de milhares de pessoas.

Dessas feitas de fibras e sangue.

O administrador é só o homem a quem foi delegado o encargo de gerenciar a

execução de algo que começou num projeto feito por muitas mãos.

Portanto, não permita que a sua mão destrua por seus interesses pessoais os

recursos que foram legados pelas gerações anteriores.

Os recursos limitados que a humanidade dispõe, cimento e cal, ferro e areia,

brita e tijolo, ferro e argamassa, terminam amanhã.

E o amanhã é logo ali.

Quando você imita a arte deplorável por querer que a luz dos holofotes

desvie-se da respiração e suor alheios para que recaiam sobre você, que nesse

dado projeto somente respira, saiba que na verdade ajudou a impedir o sonho,

de amarrar a vida, de impedir o bem.

São muitas as denúncias vazias, os gritos de orgulho, as vozes da

desarmonia, as maquinações e guerras de vaidade.

Eia! Todos esses componentes - não importa que força que nos dirija os

passos - destruirá o futuro dos nossos filhos e netos.

Porque não existe investida sobre um projeto social que não gaste nossos

recursos limitados. Se você não apoia ao gestor que recebeu um projeto em 135

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sua equipe de trabalho, você contribuirá para a manutenção da pobreza que

teve início no início da civilização.

Todas as conquistas humanas dependem de mãos que sustentem amparem,

fortaleçam e combatam em conjunto pela sustentação de projetos nas mãos

dos gestores operacionais. Nas mãos dos conselheiros. Nas mãos dos

estrategistas. Nas mãos dos projetistas. Nas mãos dos executores.

A denúncia de má qualidade inexistente, ou a tentativa (tosca) de

paralisar o processo pela vaidade de não ter participado de sua elaboração, por

não ter sido consultado pela equipe que hoje o conduz, são atos de sabotagem

da história humana.

História que se iniciou no sonho, que continuou na captação de

recursos, que se estabeleceu num acordo, num contrato celebrado, numa lei

de incentivo, numa janela de oportunidade.

Janela que poderá não existir no ano seguinte.

Nós não temos o direito sobre os sonhos sonhados por outros

corações. Não há legitimidade em impedir a mão que hoje luta para terminar

aquilo que outro coração um dia ensejou. Porque todas as estruturas e obras

humanas foram um dia somente sonhos.

O dinheiro que o mal-administrador desviou do sonho de um homem,

para seus próprios sonhos egoístas, tirando os recursos do bem da

comunidade, para seu depósito particular, se traduzirá, a longo prazo no fim

de todas as coisas. Pelo menos em todas as coisas pelas quais vale a pena

viver.

Cada vez que você apoia os projetos, lutando para que haja vitória, haja um

final, para que haja a completação do imaginado, do sonhado, do projetado,

você age como se fizesse parte do sonho.

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Suas mãos carregam as esperanças, aspirações e a alegria contagiante ainda

não manifesta daqueles que receberão o bem.

A vaidade não pode divisar a esperança, porque lhe é estranha.

Não há alegria a ser partilhada por quem não ama o bem que pode ser

consumado.

Porque lutou indignamente para que este não acontecesse.

Porque lutou inconsequentemente para se autopromover, ainda que isso

custasse impedir o sonho sonhado.

Assuma os riscos impressionantes de se tornar participante do amanhã, sem se

importar com efemeridade de um modelo político falido, e a glória passageira

que tal modelo concederia, permitindo e incentivando, se for o caso, lutando

ao lado daqueles que hoje lutam para que os recursos colocados à sua

disposição não sejam tornados um projeto inacabado.

Um sonho que não vingou.

Porque um dia os sonhos não vingados irão se voltar contra nós.

E nessa guerra derradeira não haverão vencedores.

Só pontes inacabadas.

NARCISA

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Narcisa nasceu com 2300 g numa tarde de inicio de primavera dia 22 em

setembro no Hospital Sírio Libanês, filha de Bellinda Marcondes Andrada,

carioca de 26 anos, de olhos castanhos e tez branca, natural de Niterói, que

odiava ser chamada de papagoiaba (natural da região de Niterói - estado do

Rio de Janeiro), dona de uma pequena loja de artesanato, descendente de

italianos e filha de Geraldo Gusmão Lancellote, gaúcho que imigrou dos

pampas ao Rio de Janeiro para trabalhar numa Consultoria de software, dono

de um largo sorriso, robusto e de avós alemães. Os amigos de Geraldo

gostavam de dizer que era bom ter um participante da Távola Redonda como

amigo.  Moravam na Tijuca, próximos a Conde de Bonfim, numa velha casa

em constantes reformas. À menina deram o nome de Narcisa. Narcisa

Marcondes Andrada Lancellote.  

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Narcisa crescia normalmente como qualquer criança de sua idade. Pelo menos

até os dois anos de idade. Foi quando os pais perceberam que sua filha era um

pouco “diferente” das demais crianças de sua idade. Haviam comprado um

quebra-cabeças de

5000 peças e estavam montando ele no chão da sala, enquanto Narcisa estava

sentada no sofá apertando aleatoriamente os botões do controle remoto.

Bellinda foi até a cozinha pegar alguma coisa para comer e Geraldo atender ao

telefone. 

Dois minutos depois quando chegaram na sala viram todas as peças do

quebra-cabeça espalhadas por toda a sala, pelos corredores, sobre as

almofadas, em cima dos móveis. Sobre a televisão. E Narcisa olhando

atentamente a sua obra. Os pais riram com o quadro caótico das peças

espalhadas por toda a casa. Mas foram parando de rir a medida que a menina

foi até o quarto e trazendo na mão uma peça aleatória a encaixou exatamente

onde deveria se encaixar. E depois foi até a televisão e encaixou a terceira. E

depois foi ao final do corredor e trouxe a quarta peça. Por incansáveis três

horas a menina de dois anos andava pela casa e sempre trazia as peças exatas.

Duas, seis, dez peças de cada vez. Então ela completou o gigantesco quebra-

cabeça, sentou no sofá, sorrindo se deitou e dormiu exausta, na frente dos

assustados pais.

Narcisa sorria. Sinistra e discretamente.

São exatas oito horas da manhã. Narcisa, sete anos de pura e genialidade

maligna, caminha lenta e suavemente em direção ao monitor de seu andar na

escola em que reside. Faltam 20 minutos para o fim do mundo, e ela será a

causadora dele.  Esfregando as lentes de seus grossos óculos, Fernando, o

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zeloso monitor das crianças irrequietas e festivas do Colégio Arte e Intenção,

não imagina que em sua direção naquele exato momento caminhava o quinto

cavaleiro do apocalipse.

A pequena e doce Narcisa. De olhos meigos e lindas tranças negras que

ultrapassavam sua cintura, olhos acinzentados e brilhantes, pele branca como

de uma harpia e lábios vermelhos como tomate colhido na véspera.

E tendo no coração a tormenta.

Arrasta solenemente Matilda, sua sofrida boneca de pano, Fernando conhece

a boneca encardida que Narcisa arrastava desde que entrou na pré-escola cerca

de dois anos antes. Coincidentemente a mesma época do incêndio, da invasão

das vespas, um pouco antes da explosão do micro-ondas da cantina, logo após

o curto-circuito causado pela inundação do segundo andar.

O a boneca sempre era arrastada por uma das pernas enquanto a cabeça ia

batendo pelos degraus enquanto subia as escadas ou as descia, sempre

correndo.

E eis que vinha Narcisa. Fernando passa a mão pelo nariz e levanta a lente em

direção da menina, que fica meio distorcida na lente, parando como um

fantasma diante de sua mesa no meio do corredor, imóvel.  

Fernando abaixa a cabeça em direção da menina que lhe sorri docemente. Por

algum motivo estranho sempre que a Narcisa chegava à sua mesa o colégio

ficava num momento de absoluto silencio. Talvez fosse só uma coincidência,

porque instantes após voltava o som das vozes e da algazarra das crianças. 

- Fale Narcisa, o que você deseja? Pergunta o prestativo e inocente monitor

do segundo andar.

- Sabe... “seu” Fernando... eu... tô com dor de cabeça... eu estava brincando

com a “luzinha” azul... e de repente comecei a ficar meio enjoada...

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- “Luzinha azul”? Que raio de “luzinha azul” é essa Narcisa? Pode mostrar

para o tio? O que você está sentindo, querida?

- “Tô meio enjoada...”

- Calma, vou te levar para a enfermaria, mas antes mostra pro tio a “luzinha

azul”.

Narcisa balança docemente a cabeça esfregando os olhos e aponta para o

pátio da escola. 

Fernando leva-a pela mão e pede para que ela indique o local onde está a tal

da “luzinha azul”. Quando chegam ao pátio, ela aponta para uma caixa. Uma

pequena caixa. A caixa tinha algumas inscrições. Era metálica e parecia muito

pesada e possuía um símbolo.  Antes de ser monitor Fernando trabalhou

alguns anos em  áreas industriais. E conhecia muito bem o símbolo que estava

na caixa. Significava “perigo – radioativo”

Narcisa inocentemente aponta para o artefato metálico e após para alguma

coisa que parece brilhar logo após a caixa.

O monitor do colégio mandou isolar a área. Chamou a policia, o corpo de

bombeiros e até aos fuzileiros navais. A rua se encheu de curiosos. Um cordão

de isolamento foi armado enquanto retiravam as crianças do colégio, no

mesmo momento em que ambulâncias chegavam e um carro de técnicos da

comissão nuclear. Dois técnicos vestidos de roupas a prova de radiação saíram

dos veículos munidos de medidores de radiação e roupas especiais. Pais

chegavam com seus automóveis em profusão, enquanto estações móveis de

televisão se posicionavam diante do que parecia ser o quadro de um ataque

terrorista. Na verdade uma equipe tática do exército despejou cinquenta e dois

soldados de três caminhões ao lado do colégio. Houve um telefonema

anônimo naquela manhã para o ministério do exército, mas ninguém deu

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muito crédito porque a voz que realizou a denuncia era de uma criança.

Especificamente, a voz de uma menina.

A confusão ficava maior a cada momento, a equipe médica proibiu a saída das

crianças da área isolada enquanto não fosse verificado se havia contaminação

radioativa de alguma delas.

A primeira criança a ser examinada foi a Narcisa, que felizmente não

apresentava nenhum vestígio de contaminação.

Os pais furaram o bloqueio em direção às crianças recém-liberadas, mas

foram contidos pela barreira de militares.

Foi quando finalmente começou o tumulto.

Indiferente a gritaria e a histeria da multidão, uma criança sorria.

Sinistra e discreta.

Narcisa...

Não. Nunca encontraram nenhum vestígio de radiação no pátio do colégio.

Sim. O artefato era falso. A “luzinha azul” era só uma lâmpada com led. Um

led azul.

Não. Nunca descobriram o autor da proeza. Narcisa ganhou uma semana em

casa. Para se recuperar do trauma.

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OS PORTAIS DE ADELANTE

Vivíamos num mundo absurdamente irreal, um mundo que chamávamos de

pseudocientífico, acreditando religiosamente nas leis da física, da matéria de

nas hipóteses da conservação de energia. O academicismo não nos preparou

devidamente para enfrentarmos a realidade, nos apresentando-a de modo

etéreo, de modo surreal. Todas as expressões de pensamento míticas que nos

foram apresentadas nos últimos milênios contaminaram-se pelo racionalismo,

pela dialética e pelo antagonismo da ciência a toda metafisica, todas se

demonstraram nestes últimos anos, sua torpe essência escravagista. O mundo

social, antropológico, pedagógico, talhado por matemática, construído em

filosofia, urdido nos registros da razão, tornou-se tudo ilusão. Estamos todos

aturdidos com as revelações dos últimos anos, após a crise deflagrada nos

efeitos dos portais de Adelante.143

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A universidade jamais versou sobre o fantástico. E quando o fantástico

aconteceu não capacitou aos homens a releitura do universo. Ainda hoje, os

teóricos chamam tudo que está acontecendo de convulsão social. Postulam

que o mundo está vivendo um estado psíquico supra-normal, alucinado, fruto

de algum produto químico dissolvido na atmosfera pelas bombas químicas

lançadas nas guerras do Líbano.

Um pequeno grupo de acadêmicos de Wicclefield reiterou a teoria,

incompleta, sobre um tipo de equipamento de emissão de micro-ondas

desgovernado, que gerou profunda alteração nas frequências naturais do

planeta.   Possivelmente a estranha arma denominada de Efeito Hoomer,

cujos efeitos nocivos forjaram a ruptura da psique humana. Os cientistas

tentam encobrir as evidencias de que eles mentiam. De que encobriam fatos

que desvendariam um mundo diverso do que nos haviam apresentado nos

últimos 500 anos.  Pedante mundo de céticos, que agora desmoronava diante

do exagero.  Diante de Adelante. Adelante possuía antiga lenda que intrigava

os estudiosos, relacionado à estranha  porta com inscrições em acádico, copta

e hebraico antigo, trechos cheios de harpax (palavras que possuem somente

uma única ocorrência - escritas num único texto - em determinada língua)

desconhecidos,  o que instigou a imaginação dos peritos por anos. 

Como havia rastros de irídio junto dos artefatos históricos em Adelante, dois

físicos húngaros participaram da equipe de investigação, em virtude de

anomalias físicas. Em Adelante havia particular tempestade de raios que nunca

cessava. Sem suas coordenadas geográficas a gravidade natural aparentava ser

menor. Experimentos demonstraram que as cintilações, os efeitos celestes, as

auroras boreais sobre Adelante, eram relativos a alguma deflação luminosa de

origem desconhecida. De noite em Adelante ouviam-se ruídos não

convencionais. Fitas gravadas aleatoriamente descortinavam sons 144

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contraditórios. Sons de instrumentos musicais desconhecidos, de aves não

catalogadas, até vozes de crianças, cantando em línguas que tinham algum

parentesco com o hindi.

Adelante apresentava-se como um grandioso mistério há vinte e dois anos

atrás, em 2014.  Agora,  Adelante é muito mais que um isso.

É um mistério insolúvel.

Na tarde de 18 de agosto as 17:00 daquele ano ocorreu um evento sísmico nas

ruínas da cidade que estavam em torno de Adelante,  abrindo-se  incomum

entrada nos pórticos de pedra, entrada de um gigantesco santuário milenar,

deixando à mostra estruturas de um antigo portão de ferro, com outras

misteriosas inscrições. Essas últimas finalmente numa linguagem antiga, mas

reconhecida. Sânscrito. Nos dias que se seguiram entraram em contato com

um renomado linguista de Bengali, Rosh Pandhari  Kapoor para um trabalho

de decifração. Kapoor chegou apressado, em meio à nova tempestade que se

abatera sobre a região. Começou seu trabalho no dia 22 de agosto do mesmo

mês. 

A primeira tradução dos caracteres ficou pronta em dois dias, consistia de um

antigo hino e gravíssima advertência -  jamais deveriam abrir os portões em

que estavam estampados, em alto relevo, sem a ajuda ou a presença de uma

criança –  Por fim, um solene aviso, circundado de sinais misteriosos,

avisando que após os portões estivessem abertos, nunca mais poderiam ser

fechados. Como as perturbações de origem eletromagnética aumentavam

exponencialmente na região naqueles dias, novas equipes de físicos chegaram,

impactando seriamente aos trabalhos arqueológicos e de tradução. Dois meses

se passaram, os estudos físicos apontavam na evidencia promissora da

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existência perene de anomalia espacial, espécie de Santo-Graal da física,

encontrado na superfície do planeta. Os cientistas acreditavam que naquele

ponto da terra consistia deste tipo de anomalia, um erro do espaço-tempo,

uma singularidade. Imaginavam  que pesquisas físicas realizadas ali poderiam

esclarecer sobre a origem das forças físicas, o que conduziu a certa crise

acadêmica sem precedentes. Dezenas de instituições queriam ter o acesso aos

locais para realizarem seus próprios estudos. Complexas negociações tiveram

que ser realizadas com o governo Venezuelano. Adelante distava 60 km do

parque nacional Aguaro no Valle de La Pascua, na Venezuela.  

Em outra tarde chuvosa, num domingo, dia 28 de agosto de 2014, três horas

da tarde,  Kapoor levou seu filho, Aakanksh para conhecer as ruínas, indo

com ele até os portais.  Aakanksh parou diante dele, apontou com o indicador

para a antiga palavra que seu pai traduziu como "futuro".  O pai e o filho

conversaram alguns instantes sobre os portais. Curioso Aakanksh escalou uma

pedra para ter acesso ao portal, esticou seus dedos pequenos até a inscrição,

levemente a tocou com os dedos da mão esquerda.  

E quando Aakanksh Kapoor tocou o portal, teve inicio o amanhã.

Essa ao menos é a versão mais difundida do que aconteceu.  Seis câmeras de

vídeo  filmavam o local, algumas testemunhas que eram parte da equipe de

cientistas transitavam próximas, dois áudios gravados com as palavras ditas no

momento,  assim como a imagem térmica do acontecimento. A imagem

térmica do acontecimento foi um acidente, o objetivo da termografia realizada

não tinha a ver com as análises de arqueologia, consistindo de experiência

conduzida por um laboratório particular, mas atualmente é considerado como

documentação válida de registro do evento.

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Ainda não criaram um termo que designe a atual situação do mundo. Ou ao

evento que se seguiu. Ou que defina a realidade, do jeito que se apresenta

agora, o que também está sendo contestado.  No dia 28 de agosto de 2014,

três horas da tarde, quando o rapaz tocou as inscrições elas começaram a

brilhar fortemente. A atmosfera ao redor dos portais ganhou a cor púrpura,

que aos poucos foi se alastrando pelos céus, de tal modo que hoje, todo o céu

mudou de tonalidade.

Nosso mundo agora é envolto por um céu púrpuro.  Mas, isso seria o menor

dos nossos problemas. A comunidade cientifica ainda estava aturdida pela

mudança de coloração das camadas atmosféricas, quando começaram os

estranhos acontecimentos. Não é fácil traduzir o que aconteceu a seguir. As

duas primeiras mulheres aladas apareceram numa rua erma de Paris.  

O primeiro gigante emergiu das águas, segurando um petroleiro com uma de

suas mãos.  O primeiro relato sobre fadas foi num ônibus em Nova Jérsei. A

primeira leva de Ninfas apareceu dançando diante do Taj Mahal.  O primeiro

relato de força extraordinária de um ser humano veio da antiga união

soviética, um homem levantou sobre sua cabeça um caminhão de 40

toneladas. As primeiras crianças a aprenderem a voar são Eslavas.

Todas as crianças neste mundo novo nascem com a capacidade de flutuar ou

singrar como chamam, nos céus púrpuros. As primeiras imagens de

adolescentes caminhando sobre a lua datam de seis anos atrás. A primeira

baleia voadora apareceu sobre São Francisco. O primeiro cemitério a perder

seus mortos foi o de uma cidade do interior de São Paulo. Perder mortos é a

expressão que usam como eufemismo de ressuscitar.  

A primeira multidão de fantasmas que atravessou uma cidade, de modo

visível, foi fotografada, filmada. Posteriormente as imagens foram usadas em

filmes didáticos sobre o evento. Estavam vestidos de roupas árabes.  Sobre 147

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várias montanhas ao redor do mundo cavalos de fogo, com crinas feitas de

chamas começaram a descer montanhas.  A primeira viagem ao passado, o

amálgama entre o passado e o presente também tiveram inicio nessa

época.  Embora não pudessem mudar eventos no passado, algumas pessoas

que hoje são chamadas de historiadores temporais receberam a capacidade de

visitar locais ou eventos do passado. No passado. A história, como a

conhecemos, mudou.  A primeira visita de um viajante do futuro catalogada

ocorreu há dois anos.  Já passam de milhares. Aquilo que a imaginação é capaz

de projetar, simplesmente pode acontecer. Com qualquer um, a qualquer hora.

Aleatoriamente. O pensamento, e mesmo o sonho, metamorfosearam-se no

tecido da realidade. Não é conhecido o princípio ou o poder que controla

agora o universo. Ou o que escolhe o que é possível ou não ocorrer dentro de

nossa dimensão. Ou das outras.  Porque agora são conhecidas pelo menos

sete.  Mas por algum motivo maravilhoso, o pior que havia nas mentes, não

acontece.  Monstros aparecem espontaneamente aqui, ora ali, mas, há algo que

contém o terror.  Permitindo que o lúdico se torne presente, mas não

deixando que a malignidade humana corrompa ao universo.  As leis físicas

ainda funcionam com certa normalidade.

Talvez a resposta seja Aakanksh, a criança que tocou a inscrição.

Ninguém sabe ao certo. Porque o futuro agora... é inimaginável... 

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E uma poesia para finalizar um livro de contos. Mesmo porque os dois ou três

textos anteriores não eram contos... Perdoem-me. Menti miseravelmente no

título do livro. Os textos anteriores... Eram crônicas!

TE DISSERAM

Te disseram tantas coisas

Que o coração

Não sabia se ia ou se voltava

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Te ensinaram tanta coisa

Tão controversas

Não sabia se corria ou se esperava

Quando terminaram as chuvas

Veio o inverno

Quando semeou seu canto

Teu verão

Terminou

Quando elevou seus olhos

Veio a dor

Quando enxergou beleza

E o amor

Tua voz

Se calou

Foi andando como se valesse a pena

Foi nadando contra toda correnteza

Foi lutando pela vida

Como um premio

Foi dizendo pra si mesma

vale a pena

Foi crescendo como quem

Só imagina

Porque de certeza

Tão pouco que tinha

Não enchia sequer

Nem uma latinha

Mesmo assim151

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O temporal que cai continuo

Sobre quem arrisca a sorte e continua

Não prevaleceu...

Há quem diga que o final de sua história

Seja somente um sorrir esquecido

Uma voz que hoje já não se escuta

Como a de um passarinho

Sozinho na chuva

Mas, existem certamente

Alguns outros

Que apostaram cegamente

em tua vitória

Tendo mais certeza

Do que esperança

Tendo mais desejo

Que ganancia

Que por motivo estranho

Despertaram

E te fizeram

Seu sonho...

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WELINGTON JOSÉ FERREIRA

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