Vicente Franz Cecim ENTREVISTA Um Anjo-Arvore Da Amazonia-libre

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38 39 LETRAS Um anjo-árvore da Amazónia Vicente Franz Cecim transfigurou a Amazónia fixando-a em Andara, semente que se tornou numa obra que tem vindo a ser criada desde 1979. Revolucionou a narrativa brasileira e acaba de lançar ‘K O escuro da semente’ Ana Marques Gastão Entrevista Vicente Franz Cecim undindo géneros – poesia, prosa, ensaio –, é na onírica Andara transfiguradora da Amazónia, espécie de “região metáfora da vida”, que Vicen- te Franz Cecim escreve todos os seus livros, obra única em diálogo com filósofos, poetas e místicos numa comu- nidade sem diferença ontológica entre seres humanos, animais ou plantas. Cinti- lante e visionária, a “escritura” do autor de K O escuro da semente, agora publica- do em Portugal, reinventa o mundo. Desde 1979, dedica-se à criação de Viagem a Andara, o livro invisível, originado na míti- ca Amazónia. Acaba de ser publicado em Portugal K O escuro da semente, prosse- guindo esse caminho. É uma espécie de Íta- ca, Andara? Aproximar-nos de Andara e da Amazónia nela transfigurada por meio de Ítaca pode ser uma das vias. Homero e os dedos róseos da aurora. Se Andara fosse Ítaca, eu seria Ulisses? Hipótese atraente, que promete os delírios do leito de Circe, o canto das sereias... Mas não é só isso que busca? Não, não é só isso o que busco e o que me busca. E não sozinho. Somos todos Ulisses tentando voltar para casa. E onde, a casa? No campo de batalha e colheita que é o cos- mos, com seus buracos negros famintos, galáxias nascendo e morrendo, enquanto florescemos e fenecemos sobre a terra. Às vezes uma ave canta para nós e os homens se mordem como feras quando perdem de vista a ternura e a infância. Suspeito que, no profundo de nós, queremos o menos que é o mais, esse mais que é o retornar- mos à origem sagrada do humano. Na sua viagem literária está sempre pre- sente o diálogo entre visível e invisível? Em Andara, somos todos transeuntes na passagem que vai do visível ao invisível e deles retorna, ascensões e quedas. Como neste K O escuro da semente, que acaba de ser publicado em Portugal. Que outros passos podemos dar no mundo de Andara? Ah, antes de penetrar mais em Andara, teremos ainda de passar pelo palácio da memória de Santo Agostinho. E isso nos dirá menos obscuramente o que é Andara, que já antecipo como lugar de sonhar e lugar de todos os lugares, que tudo absorve e se abre para tudo conter em si. Recordo uma frase que está na abertura do segundo livro escrito de Andara, de 1980, Os animais da terra. Naquele livro, já se dizia: “– Embora a ave mais bela seja aquela que se recusa a voar”. É nessa frase que se acha e se perde Andara, toda imersa em suas dobras. E essa recusa do voo remete-nos para quê? Para a contemplação, o wu wei, o não-agir do Tao, ou exige outras asas que realizem o autêntico voo adormecido em nós, homens? Não sei, tantos livros depois, ainda não sei, e ainda busco a resposta. Se há resposta. Me sinto um anjo caído, que sabe coisas que não sabe e que não pode revelar. Por isso escrevo Andara há todos esses anos, e só os livros de Andara. Para que outros, lendo, se revelem a si mesmos o que para mim continua oculto e é somen- te vislumbrado. Neste seu livroK O escuro da semente, como na restante obra, homens, mulheres, ani- mais, filósofos e poetas vivem num mesmo território de estranheza. É de uma comuni- dade que fala? Sim, de toda uma comunidade onírica de seres e coisas, sem distinções, que avança misturando as suas vozes, entoando em coro este canto: “Atravessar o que nos nega, che- gar ao Sim”. Essa é a exigência radical de Andara, a da queda? O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direi- to de adquirir asas. Será durante a sua queda que irá descobrir a leveza possível. Agarrado em seu tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na terra e ser a chuva inversa dos céus? Em Andara está tudo caindo e tudo subindo. Andara é esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando pelo homem agarrado em seu tronco e lançando sobre ele clarões e som- bras para que finalmente veja: a terra lá no alto, o céu embaixo de si. Como vê o mundo literário no contexto da sua obra? De um ponto de vista exterior, o ponto de vista do que se chama literatura, K O escu- ro da semente surge num tempo em que a literatura agoniza por toda parte, na insen- sibilidade, no cinismo, abandonada em mãos de astuciosos artesãos falsificadores de palavras e oferecida como produto a ser consumido avidamente por leitores mortos. Os livros de Andara querem a ressurreição do leitor. Que tipo de leitor quer Andara? O leitor vivo, não-passivo, co-autor. É nesse crepúsculo triste que K se recusa a cintilar passivamente, ignorando a noite próxima. K é um livro que se propõe em iconescritu- ra, falando aos olhos onde as palavras calam. Antes dele, já em plena noite da literatura, outro livro visível de Andara, Ó Serdespanto, também lançado em Portugal, em 2001, e ainda inédito no Brasil, se quis apenas escri- tura, a única via para uma possível salvação da literatura. Crê na morte da literatura? Devemos salvar a literatura de sua agonia? Ou deixar esse organismo agonizante defi- nitivamente de lado e dar espaço à flores- cência de um outro corpo de presença da palavra, vivo? O que Andara persegue? A palavra praticada como vida, a literatura praticada como ontologia. O processo de escrita destes livros tem, de algum modo, a ver com o auto-retrato ou a auto-representação? E depois das palavras? ndara começou por ser semente, depois arbusto, depois a Amazónia inteira – tecido infindável de histórias míticas e de fábulas–, depois árvore que dá frutos e se transforma em “região-metáfora da vida intei- ra”, depois floresta que quer ir do visível ao invi- sível. Andara não tem fim. Em Andara o texto é textura, de acordo com a metáfora medieval. Andara é Vicente Franz Cecim “em escritura de si mesmo”, notável escritor paraense (Belém, Brasil) que a criou enquanto “geogra- fia verbal” e lugar sagrado. Vicente Franz Cecim nasceu na Amazónia, dedicando-se,desde1979,àcriaçãodeumaúni- ca obra, Viagem a Andara, o livro invisível, um não-livrodeondenascemosoutros,osvisíveis, que o compõem, entre os quais 13 foram publi- cados no Brasil e um deles, Ó Serdespanto, em Portugal pela mão de António Cabrita (Íman, 2001), então apontado pela crítica portuguesa como um dos melhores lançamentos do ano. Entre os títulos deste longo caminho, A asa e a serpente, Terra da sombra e do não, Si- lencioso como o Paraíso. K O escuro da semente acaba de ser lançado entre nós (Ver o Verso). Prémio de Revelação de Autor da Associa- çãoPaulistadosCríticosdeArte(APCA,1980), Menção Especial no Prémio Literário Inter- nacional Plural no México, (1981), Grande Pré- mio de Crítica da APCA (1988), Vicente Franz Cecim, pertencente à linhagem de um Guima- rães Rosa, faz coabitar na sua escrita de Anda- ra filósofos e poetas, místicos e insectos, aves e serpentes, viajando por dentro das coisas com aestranhezadequemlevitacomo“umanjode- serdado” , como escreve o poeta Fabrício Car- pinejar. A “escritura” de Cecim, que convoca uma comunidadedegéneros– prosa,poesia,ensaio – é linguagem poderosa no neologismo e na metaforização e lida com as palavras em des- locação,tornando-sematériadeumidiomaou- tro – um antes da linguagem –, o do invisível (”Para onde iremos, homens, depois das pala- vras?”).Tudo circula num labirinto de frag- mentosefracturasentreluzesombra,nãoexis- tindo diferença ontológica entre seres huma- nos,animaiseplantas,animadoseinanimados. Vicente abandona a literatura para se perder no infinito, arrancando o leitor à visão funcio- nal das coisas. Escreve na sua inquietude vi- sionária, rebelde, constrói uma arquitectura sonora e ascética. Sabe que “a solidãoéumho- mem, um osso ou um animal.”C A Com o vazio que transborda. É ele que nos escreve. Fui fazendo essa descoberta à medi- da que ia criando os livros visíveis de Andara. Andara me escreve, por isso escre- vo Andara, que é a Amazónia onde nasci transfigurada através de mim. Se eu não dedicasse toda a minha vida a praticar essa alquimia de me tornar cada vez mais um ser de escritura e cada vez menos um homem escritor, Andara não existiria. Andara é um ser de espanto geográfico. A Amazónia, a geografia espantosa. É a natureza sagrada que torna possível essa impossível Andara. “Não sendo mais literatura”, como diz, a sua escrita inscreve-se no território do que é mais frágil e fulgurante? Um território em que tudo está em infusão, sim, claro-escuro, submerso na antiga alqui- mia das palavras, onde tudo cesse suas vidas separadas e se funda no uno: prosa, poesia, meditações, reflexões, texto em escritura, a iconescritura, insectos e homens, o visível e o invisível, o dito e o não dito, o silêncio e a voz, a página branca e a página escrita, o sonhado e o vivido. Andara quer a fusão total, quer a fissão que abra a fenda por onde tudo se reencontre na unidade original.. Nesse sentido, a poesia, o amor estão do lado de um não poder, no sentido da sua recusa? Andara ainda busca “a amizade das coisas pelas coisas”. Essa procura manifesta-se como emK? No céu, na terra, no silêncio da página em branco, na palavra erguida em ruí- nas, nas imagens que falam caladas. K, como os outros livros de Andara, busca em toda parte. Aboliu o acto de “contar uma his- tória”? Não, para redespertar a literatura com outras vozes não é necessário calar as histórias. A minha Amazónia, que prefiro chamar de floresta sagra- da, é um imenso labirinto de lendas, fábulas, mitos, histórias que se con- tam e são contadas sem limites nem fronteiras entre real e imaginário. E assim também é K O escuro da semen- te. Uma alegoria, uma liturgia que conta a história de K, letra que ascen- deu do alfabeto humano e nos céus pousou na mão esquerda de Ó, estan- do, para sua surpresa, a sua mão direi- ta agora vazia. A sua obra é, sobretudo, indagação, pergunta. Que procura quando escre- ve, que recebe quando o faz? A imaginação é a nossa maior boca de perguntas. Uma vez eu disse: “Em Andara, se a pedra se pergunta: Um dia serei semente, e serei árvore, e darei frutos? Se o vento se pergunta: que pulmão me emite como voz sem palavras? Se o homem se pergunta: é a minha sombra mais real que eu?” Todas as perguntas deixam de o ser no momento em que são feitas e se tornam realidades de Andara. Andara é a certeza da dúvida no ser humano? Reconhecendo a ignorância humana, Andara é terra de hipóteses. Andara é, fosse, seria, é quem sabe. Melhor assim do que a arrogância tola de um saber que ainda não temos. Mas não sou um pessimista: eu disse: um saber que ainda não temos. C F ‘Devemos salvar a literatura da sua agonia? Andara persegue a palavra praticada como vida, a literatura como ontologia’, diz Vicente Cecim Vicente Franz Cecim K O escuro da semente Ver o Verso 334 páginas

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Entrevista de um dos mais importantes poetas contemporaneos brasileiros

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    LETRAS

    Um anjo-rvoreda Amaznia

    VicenteFranzCecimtransfigurouaAmaznia

    fixando-aemAndara,sementequesetornou

    numaobraquetemvindoasercriadadesde

    1979.Revolucionouanarrativabrasileirae

    acabadelanarKOescurodasemente

    Ana Marques Gasto

    Entrevista Vicente Franz Cecim

    undindo gneros poesia,prosa, ensaio , na onricaAndara transfiguradora daAmaznia,espciederegiometforadavida,queVicen-teFranzCecimescrevetodos

    os seus livros, obra nica emdilogo comfilsofos, poetas e msticos numa comu-nidade sem diferena ontolgica entresereshumanos, animais ouplantas. Cinti-lante e visionria, a escritura do autordeK O escuro da semente, agora publica-do emPortugal, reinventa omundo.

    Desde1979,dedica-secriaodeViagemaAndara,o livro invisvel,originadonamti-ca Amaznia. Acaba de ser publicado emPortugalK O escuro da semente, prosse-guindoessecaminho.umaespciede ta-ca,Andara?Aproximar-nos de Andara e da Amaznianela transfigurada por meio de taca pode seruma das vias. Homero e os dedos rseos daaurora. Se Andara fosse taca, eu seriaUlisses? Hiptese atraente, que promete osdelrios do leito de Circe, o canto das sereias...

    Masnos issoquebusca?No, no s isso o que busco e o que mebusca. E no sozinho. Somos todos Ulissestentando voltar para casa. E onde, a casa?No campo de batalha e colheita que o cos-mos, com seus buracos negros famintos,galxias nascendo e morrendo, enquantoflorescemos e fenecemos sobre a terra. svezes uma ave canta para ns e os homensse mordem como feras quando perdem devista a ternura e a infncia. Suspeito que,no profundo de ns, queremos o menosque o mais, esse mais que o retornar-mos origem sagrada do humano.

    Na sua viagem literria est sempre pre-sente odilogoentre visvel e invisvel?Em Andara, somos todos transeuntes napassagem que vai do visvel ao invisvel edeles retorna, ascenses e quedas. Comoneste K O escuro da semente, que acaba de serpublicado em Portugal.

    Queoutros passos podemosdar nomundodeAndara?Ah, antes de penetrar mais em Andara,teremos ainda de passar pelo palcio damemria de Santo Agostinho. E isso nosdir menos obscuramente o que Andara,que j antecipo como lugar de sonhar elugar de todos os lugares, que tudo absorvee se abre para tudo conter em si. Recordouma frase que est na abertura do segundolivro escrito de Andara, de 1980, Os animaisda terra. Naquele livro, j se dizia: Embora a ave mais bela seja aquela quese recusa a voar. nessa frase que se achae se perde Andara, toda imersa em suasdobras.

    Eessarecusadovooremete-nosparaqu?Para a contemplao, o wu wei, o no-agirdo Tao, ou exige outras asas que realizemo autntico voo adormecido em ns,homens? No sei, tantos livros depois,ainda no sei, e ainda busco a resposta. Seh resposta. Me sinto um anjo cado, quesabe coisas que no sabe e que no poderevelar. Por isso escrevo Andara h todosesses anos, e s os livros de Andara. Paraque outros, lendo, se revelem a si mesmoso que para mim continua oculto e somen-te vislumbrado.

    NesteseulivroKOescurodasemente,comona restante obra, homens,mulheres, ani-mais, filsofosepoetasvivemnummesmoterritriodeestranheza.deumacomuni-dadeque fala?Sim, de toda uma comunidade onrica deseres e coisas, sem distines, que avanamisturando as suas vozes, entoando em coroeste canto: Atravessar o que nos nega, che-gar ao Sim.

    Essa a exigncia radical de Andara, a daqueda?O homem precisa se deixar cair do pontoinsustentvelondeseinstalouparaterodirei-to de adquirir asas. Ser durante a sua quedaque ir descobrir a leveza possvel. Agarradoem seu tronco, pendurado de si mesmo como

    se mantm, auto-suficiente fruta que no dfrutos, como poder cumprir a sua misso desemear-se,desemearacoisahumananaterrae ser a chuva inversa dos cus? Em Andaraesttudocaindoetudosubindo.Andaraessese cruzar no meio do caminho entre a asa e aserpente,passandopelohomemagarradoemseutroncoelanandosobreeleclaresesom-bras para que finalmente veja: a terra l noalto, o cu embaixo de si.

    Como v omundo literrio no contexto dasuaobra?De um ponto de vista exterior, o ponto devista do que se chama literatura, K O escu-ro da semente surge num tempo em que aliteratura agoniza por toda parte, na insen-sibilidade, no cinismo, abandonada emmos de astuciosos artesos falsificadoresde palavras e oferecida como produto a serconsumido avidamente por leitores mortos.Os livros de Andara querem a ressurreiodo leitor.

    Que tipode leitor querAndara?O leitor vivo, no-passivo, co-autor. nessecrepsculo triste que K se recusa a cintilarpassivamente, ignorando a noite prxima.K um livro que se prope em iconescritu-ra, falando aos olhos onde as palavras calam.Antes dele, j em plena noite da literatura,outro livro visvel de Andara, Serdespanto,tambm lanado em Portugal, em 2001, eainda indito no Brasil, se quis apenas escri-tura, a nica via para uma possvel salvaoda literatura.

    Crnamorteda literatura?Devemos salvar a literatura de sua agonia?Ou deixar esse organismo agonizante defi-nitivamente de lado e dar espao flores-cncia de um outro corpo de presenada palavra, vivo? O que Andara persegue?A palavra praticada como vida, a literaturapraticada como ontologia.

    O processo de escrita destes livros tem,de algummodo, a ver com o auto-retratoouaauto-representao?

    E depoisdas palavras?

    ndara comeou por sersemente, depois arbusto,depoisaAmazniainteiratecidoinfindveldehistriasmticasedefbulas,depoisrvore que d frutos e se

    transformaemregio-metforadavidaintei-ra,depoisflorestaquequerirdovisvelaoinvi-svel.Andaranotemfim.EmAndaraotextotextura,deacordocomametforamedieval.Andara Vicente Franz Cecim em escriturade si mesmo, notvel escritor paraense(Belm,Brasil)queacriouenquantogeogra-fia verbal e lugar sagrado.

    VicenteFranzCecimnasceunaAmaznia,dedicando-se,desde1979,criaodeumani-caobra,ViagemaAndara,olivroinvisvel, umno-livrodeondenascemosoutros,osvisveis,queocompem,entreosquais13forampubli-cadosnoBrasileumdeles,Serdespanto, emPortugalpelamodeAntnioCabrita(man,2001),entoapontadopelacrticaportuguesacomo um dos melhores lanamentos do ano.Entre os ttulos deste longo caminho,Aasaeaserpente,Terradasombraedono,Si-lencioso como o Paraso.K O escuro da sementeacabadeserlanadoentrens(VeroVerso).

    Prmio de Revelao de Autor da Associa-oPaulistadosCrticosdeArte(APCA,1980),Meno Especial no Prmio Literrio Inter-nacionalPluralnoMxico,(1981),GrandePr-miodeCrticadaAPCA(1988),VicenteFranzCecim,pertencentelinhagemdeumGuima-resRosa,fazcoabitarnasuaescritadeAnda-rafilsofosepoetas,msticoseinsectos,aveseserpentes,viajandopordentrodascoisascomaestranhezadequemlevitacomoumanjode-serdado,comoescreveopoetaFabrcioCar-pinejar.

    A escritura de Cecim, que convoca umacomunidadedegnerosprosa,poesia,ensaio linguagem poderosa no neologismo e nametaforizao e lida com as palavras em des-locao,tornando-sematriadeumidiomaou-tro um antes da linguagem , o do invisvel(Paraondeiremos,homens,depoisdaspala-vras?).Tudo circula num labirinto de frag-mentosefracturasentreluzesombra,noexis-tindo diferena ontolgica entre seres huma-nos,animaiseplantas,animadoseinanimados.Vicente abandona a literatura para se perdernoinfinito,arrancandooleitorvisofuncio-nal das coisas. Escreve na sua inquietude vi-sionria, rebelde, constri uma arquitecturasonoraeasctica.Sabequeasolidoumho-mem,umossoouumanimal.C

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    Com o vazio que transborda. ele que nosescreve. Fui fazendo essa descoberta medi-da que ia criando os livros visveis deAndara. Andara me escreve, por isso escre-vo Andara, que a Amaznia onde nascitransfigurada atravs de mim. Se eu nodedicasse toda a minha vida a praticar essaalquimia de me tornar cada vez mais um serde escritura e cada vez menos um homemescritor, Andara no existiria. Andara umser de espanto geogrfico. A Amaznia, ageografia espantosa. a natureza sagradaque torna possvel essa impossvel Andara.

    No sendomais literatura, como diz, asuaescrita inscreve-senoterritriodoquemais frgil e fulgurante?Um territrio em que tudo est em infuso,sim, claro-escuro, submerso na antiga alqui-mia das palavras, onde tudo cesse suas vidasseparadas e se funda no uno: prosa, poesia,meditaes, reflexes, texto em escritura, aiconescritura, insectos e homens, o visvel eo invisvel, o dito e o no dito, o silncio e avoz, a pgina branca e a pgina escrita, osonhado e o vivido. Andara quer a fusototal, quer a fisso que abra a fenda por ondetudo se reencontre na unidade original..Nesse sentido, a poesia, o amor esto dolado de um no poder, no sentido da suarecusa?Andara ainda busca a amizade das coisaspelas coisas.

    Essaprocuramanifesta-secomoemK?No cu, na terra, no silncio da pginaem branco, na palavra erguida em ru-nas, nas imagens que falam caladas. K,como os outros livros de Andara, buscaem toda parte.

    Aboliu o acto de contar uma his-tria?No, para redespertar a literaturacom outras vozes no necessriocalar as histrias. A minha Amaznia,que prefiro chamar de floresta sagra-da, um imenso labirinto de lendas,fbulas, mitos, histrias que se con-tam e so contadas sem limites nemfronteiras entre real e imaginrio. Eassim tambm K O escuro da semen-te. Uma alegoria, uma liturgia queconta a histria de K, letra que ascen-deu do alfabeto humano e nos cuspousou na mo esquerda de , estan-do, para sua surpresa, a sua mo direi-ta agora vazia.

    A sua obra , sobretudo, indagao,pergunta.Queprocuraquandoescre-ve, que recebequandoo faz?A imaginao a nossa maior bocade perguntas. Uma vez eu disse: EmAndara, se a pedra se pergunta: Umdia serei semente, e serei rvore, edarei frutos? Se o vento se pergunta:que pulmo me emite como voz sempalavras? Se o homem se pergunta: a minha sombra mais real que eu?Todas as perguntas deixam de o serno momento em que so feitas e setornam realidades de Andara.

    Andara a certeza da dvida no serhumano?Reconhecendo a ignorncia humana,Andara terra de hipteses. Andara ,fosse, seria, quem sabe. Melhor assimdo que a arrogncia tola de um saberque ainda no temos. Mas no sou umpessimista: eu disse: um saber queainda no temos. C

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    Devemos salvar aliteratura da suaagonia? Andarapersegue a palavrapraticada comovida, a literaturacomo ontologia,diz Vicente Cecim

    Vicente Franz Cecim

    K O escuro da semente

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    334 pginas