Vestida de Nelson

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a partir da obra teatral de nelson rodrigues vestida de nelson adaptação e mixagem Antonio Mello

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Texto teatral criado por Antonio Mello (do Blog do Mello), a partir das mulheres de peças de Nelson Rodrigues

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a partir da obra teatral de nelson rodrigues

vestida de

nelson

adaptação e mixagem Antonio Mello

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Duas irmãs: LÚCIA e ALAÍDE. Elas entram em cena, uma de cada vez (Lúcia primeiro e Alaíde quando indicada), com um vestido que poderia ser de baile, ou de noiva, ou um daqueles românticos, de época. Mas preto. Com uma aparência de que esteve guardado durante muito tempo num baú. Ou num caixão.

LÚCIA (estranhando)

- Estou aqui parada há tanto tempo e ninguém fala nada... Há alguém aí?... Alguém que ouça a minha voz... alguém me escutando? (assusta-se, como se alguém houvesse feito

alguma coisa ao lado dela) Ahn?...

(confusa, atordoada, atropelando as palavras)

- Alguém gritou? Não? Gritou sim. Foi, não foi?

(mais calma) - Um grito. Um grito parecido com um que eu conheço. Não, besteira. Não pode ser! Foi coincidência!

(noutro tom) - Engraçado... mas era tão parecido com o meu próprio grito!..

(assustada) - De novo! Um grito de novo! Alguém gritou "Pedro"! Mas quem é Pedro?

(doce) - Pedro é um nome doce, e amoroso. (sorri, como se alguém lhe houvesse falado

algo) - Se ele é meu primo? Ou quem sabe se namorado, ou noivo? Mas... Não, não, se eu tivesse namorado ou noivo, ele estaria aqui, de mãos dadas comigo.

(CONTINUA)

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(CONTINUANDO)

(satisfeita da vida) - Os noivos estão sempre de mãos dadas!... Noiva, eu? Mas, de quem?... Há uma grinalda em mim que eu não vejo, nos meus cabelos? Uma grinalda atormentando a minha fronte? Mas então eu teria de ser noiva de alguém. E se eu fosse noiva de ninguém? E se eu estivesse despida de noiva?...

(sorri) - Pedro, agora te vejo de corpo quase inteiro.

(sem jeito) - Quer dizer, quase... porque eu me lembro de tudo, sim, só não me lembro...dos teus sapatos... De que cor, de que modelo eram? Heim?

(novamente confusa) - Mas, Pedro, eu me lembro de ti e de mim e de mais nada. Porém duas pessoas não podem existir sem fatos! Você é meu noivo? Ou eu odeio você?... Não, eu não odeio Pedro! Eu disse que odiava? Não, nunca! Tudo não passou de um mal entendido! Pois se eu até gosto muito dele, tenho verdadeira adoração!

(como se estranhasse a palavra) - adoração... adoração...

(pausa) (muda bruscamente de tom, emocionada,

quase chorando) - Pai...Pai...

(como se olhasse nos olhos do pai) - Pai, afoguei a minha irmã, afoguei a filha que preferias acariciar, enquanto eu sofria na minha solidão.Afoguei, pai... Ela tirara todo meu amor que eu teria de ti, recebera as carícias que eu não tive. Ela descalçou e acariciou os teus pés, e eu não. Pai... pai...

(CONTINUA)

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Era preciso que ela deixasse este mundo, e era também preciso que não a visses morta. Eu não queria que tu fizesses quarto e que chorasses sobre o caixão, porque na hora de sair o enterro tu beijarias o rosto dela, e eu sofreria com esse beijo e com o teu gemido. Compreendes agora, compreendes por que eu a dei ao mar? Esse mar que não devolve os afogados.

(sofrendo) - Pai, agora eu sei... tenho certeza... nunca mais verei minha imagem. Não verei meu rosto. Nunca mais... Minha imagem, meu rosto.

(passando a mão no rosto) - Minha imagem, meu rosto. Ah, há quanto tempo não vejo meu rosto!

(Pausa) Pai, sei que nunca mais dormirei. Sei que vou passar todas as noites em claro e vou queimar meus olhos em febre. Sei que hei de morrer em claro e mesmo depois da morte terei insônia. Mas que importa a minha insônia? Consegui o que queria, o meu sonho. Sou agora filha única.

(novamente para o pai imaginário) - Pai, presta atenção. Escuta o que estou dizendo: Olha em torno, procura em toda a casa, nos espelhos também. Sua filha não estará em lugar nenhum. Nem viva, nem morta. Não existem nem os retratos, que eu destruí... nem as roupas... Queimei a memória dela. Sabes ainda como era? Te lembras dos olhos, dos cabelos?... Sabes pouco, saberás cada vez menos... Até que um dia nada restará dela na tua memória. Só existirei eu! Minha imagem diante de ti!

(CONTINUA)

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(CONTINUANDO)

(noutro tom) - Chora tua filha, chora... Desde menina meu sonho era ficar sozinha contigo. Queria ser a filha única, a única mulher desta casa. Agora sou tua filha única e única mulher. Estamos sozinhos, pai, na casa vazia... Entra nos quartos, nas salas, procura nos espelhos...ninguém...

(Pausa) (começa a andar, estranhando)

- Que cheiro é esse de flores?... (descobre um corpo imaginário)

- Há uma morta bem aqui... Um véu cobre o seu rosto...Mas, quem é?

(começa a ler umas faixas imaginárias) - "À inesquecível... a saudade eterna da..." "À idolatrada...o sincero adeus do primo..." "Os seus desolados vizinhos..." "Toda a saudade da..." Mas não tem nome nenhum! Até os mortos têm um nome!

(volta a ler) - "À querida prima, o eterno adeus do..." "Com a gratidão de sua afilhada..." "Homenagem do grupo escolar..."

(confusa) - É uma mulher, mas quem?... Tantas flores!... O enterro deve ter sido muito bonito. E ela própria também. Porque as mortas são uma simpatia! (caminha novamente para o local do caixão

imaginário) - Mas... quem é?... E por que usa esse véu? (faz como quem vai levantar o véu para ver o rosto da morta imaginária, mas interrompe o gesto no ar, arrependida, temerosa) - Não!...Não!...Não vou levantar o véu para ver o rosto? Não devo.

(CONTINUA)

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(CONTINUANDO)

(cai de joelhos, reza, angustiada) - Mulheres do cais, te pedimos, Senhor...

(noutro tom) - Da vida. Mulheres da vida.

(tom anterior) - Por que da vida? Quem falou em mulheres da vida?...

(nervosa) - Creio em Deus todo poderoso. Repitam: creio em Deus. - Te imploramos, Senhor, piedade para a que morreu, piedade... Recebei em Vosso céu, Senhor...

(noutro tom) - ...a alma da pecadora.

(contraditória) - Ela não era pecadora! Morreu sem culpa!

(tom anterior) - Fazei secar o sangue derramado...

(noutro tom) - ...mas recebei a alma da meretriz!

(contraditória, irritada) - Minha irmã não era meretriz!

(tempo) - Pede, reza por minha irmã, pede que ela não volte, que não entre mais nesta casa! Ela está morta!...Vamos rezar pelo eterno descanso de sua alma, para que ela fique onde está... para que ela nos dê sossego!

(contraditória) - Não, não sou irmã de uma defunta!

(grita) - Assassina!!

(levanta-se, muda de tom, quase leve) - Que besteira!...Não há uma assassina em mim. Além disso, um defunto contamina tudo com sua morte, tudo!... A mesa e a dália.

(confusa, olhando para um ponto, de onde vai começar a falar Alaíde)

- Um rosto me acompanha...e um vestido, um buquê...e também a roupa de baixo...

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Alaíde surge como se fosse uma alma deixando um corpo. Tem gestos circulares e amplos, só que lentos.

ALAÍDE (agoniada, para um homem da platéia)

- Pedro, sei que ela pensa em ti. Minha irmã. (aponta para onde está Lúcia)

- Essa que estava falando aí. É. Minha irmã. Ela pensa em ti. Fecha os olhos e se tranca no quarto para pensar em ti. Até morta pensará em ti. Ela me odeia. É minha irmã. Mas odeia. E o ódio de irmã é tão forte!... Eu tenho medo. Tenho medo de que ela me mate. E cada um morre só, não é? Tão só!... É preciso alguém para morrer conosco, alguém... Te juro que não teria medo de nada, se tu morresses comigo.

LÚCIA - Quem é você? O que você quer?

ALAÍDE - Clessi...Quero falar com Madame Clessi! Ela está?

LÚCIA - Quem é Clessi?...Ah, não, já sei, lembrei, é aquela mulher... que morreu...

ALAÍDE - Morreu?

LÚCIA - Não morreu? Morreu. Madame Clessi morreu. E quer saber? Assassinada. Agora, saia!

ALAÍDE - É mentira. Madame Clessi não morreu!

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LÚCIA - Escuta. Eu não lhe conheço. Nunca vi. Ainda me chama de mentirosa. Pois se estou lhe dizendo que morreu!... Foi enterrada de branco.

ALAÍDE - Mas ela não podia ser enterrada de branco! Não pode ser.

LÚCIA - Foi o que disseram. Ela estava bonita. Parecia uma noiva...

ALAÍDE - Noiva? Noiva, ela?

(ri) -Madame Clessi, noiva!

LÚCIA - Uma noiva.

ALAÍDE (apontando)

- Aquele homem ali, quem é?

LÚCIA - Não sei.

ALAÍDE - Tem o rosto do meu marido. A mesma cara!

LÚCIA - Você é casada?

ALAÍDE - Não sei. Me esqueci de tudo. Apenas repito um texto decorado. Não tenho memória - sou uma mulher sem memória.

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LÚCIA - Pois eu me lembro de tudo. Mas nada se encaixa.

ALAÍDE - Eu não lembro, mas todo mundo tem um passado. Eu também devo ter, ora essa!

LÚCIA - Você o que é, é louca! Louquinha!

ALAÍDE - Sou louca? Que felicidade!

LÚCIA - Pois eu não sou louca! É evidente, natural! Até pelo contrário, sempre tive medo de gente doida! Na minha família, graças a Deus! nunca houve um caso de loucura!

ALAÍDE - ...Mas Madame Clessi está demorando!

LÚCIA - Se vai esperar por Madame Clessi, senta...Que mania! Já disse que ela está morta!

ALAÍDE - Só por causa disso? E se ela não souber? Se ela não sabe que morreu, como é que ficamos?...

(para um homem da platéia) - Esse homem tem a cara do meu noivo. Os olhos, o nariz do meu noivo. Todo mundo tem a cara de Pedro.

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LÚCIA (ri, zombando)

- Não disse que está louca?!...Pedro! Pedro não é seu noivo. É meu. Já foi noivo de outra, até casou. Ela morreu atropelada na Glória. Deu manchete e tudo, você não leu?

ALAÍDE (grave)

- Isso é praga de irmã.

LÚCIA - Irmã?!

ALAÍDE - Praga de irmã. Batata!

LÚCIA - E por que uma irmã rogaria uma praga dessas?

ALAÍDE - Não sei...Mas Madame Clessi...

LÚCIA - (para platéia, com desdém)

- Fazer o quê? Isso de falar em madame Clessi já é doença...

ALAÍDE - Eu encontrei o diário de Madame Clessi.

(arrebatada) - Tão lindo ele!

LÚCIA - Você quer ser como Clessi, quer?

ALAÍDE - Quero sim. Quero. Quero muito.

LÚCIA - Ter a fama que ela teve. A vida. O dinheiro. E morrer assassinada?

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ALAÍDE

- Quero. Usar espartilho. (doce)

Acho espartilho elegante!

LÚCIA - Mas seu marido, seu pai, sua mãe e....

ALAÍDE - Não me pergunte nada. Não sei. Não me lembro.

(num lamento) - Se ao menos eu soubesse quem é Lúcia. Ela sabe por que eu matei...

LÚCIA

- Matou?!... Você matou alguém?

ALAÍDE - Matei. Matei meu noivo. Aliás, não foi meu noivo. Foi meu marido!

(histérica) - Agora me leve, me prenda - sou uma assassina!

(dá os braços para as algemas).

LÚCIA - Eu heim! Não tenho nada com isso! O marido não era seu? Aliás, eu acho: toda mulher deveria ter o direito de matar o marido - desde que fosse o dela. Nenhuma mulher deveria pertencer a homem nenhum. Nem ao marido.

(noutro tom) - Ele era ruim com você?

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ALAÍDE - Pedro? Ele era bom, muito bom. Bom a toda hora e em toda parte. Eu tinha nojo de sua bondade. Não sei, tinha nojo. Estou-me lembrando de tudo, direitinho como foi. Naquele dia eu disse: eu queria ser Madame Clessi, Pedro. Que tal? O que é que você fazia? Ele disse: matava você.

(ri) - Duvido! Nunca que você teria essa coragem! Interessante. Estou me lembrando de uma mulher, mas não consigo ver o rosto. Tem um véu. Se eu a reconhecesse!...

LÚCIA (nervosa)

- Deixa a mulher de véu! Está morta. Quero saber como foi que você matou seu marido.

ALAÍDE (atormentada)

- Estou sentindo um cheiro de flores, de muitas flores. Estou até enjoada.

LÚCIA (apontando para o cadáver imaginário)

- São da defunta ali. Mas, e o seu marido?

ALAÍDE - Como eu o matei? Nem sei direito. Estou com a cabeça tão embaralhada!

(noutro tom) - Ah, espera aí. Começo a me lembrar. Estou me lembrando de tudo... Só esqueci o motivo. Naquele dia eu estava doida. Doida de ódio. Talvez por causa da mulher de véu.

LÚCIA (grita) - Esquece a mulher de véu! Morreu, pronto.

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ALAÍDE - Ainda não sei quem ela é, mas hei de lembrar...

LÚCIA - Lembra primeiro como você matou seu marido.

ALAÍDE - Ele estava lendo, sempre lendo. Eu falei: eu também vou ler. Sabe o quê? Ele falou: o que? Eu disse: Você nem faz idéia. Um diário! O diário de uma grande mulher... Ele não sabia, mas eu estava mudada. Tão mudada. Como podia saber que era um fantasma - o fantasma de Madame Clessi - que me enlouquecia? Disse a ele: eu não gosto de você! Deixei de gostar há muito, muito tempo, desde o dia do nosso casamento.

(noutro tom, quase uma confidência para a outra)

- E sabe por quê? Na primeira noite, ele se levantou, saiu do quarto, e foi ao banheiro... lavar as mãos... Durante toda a lua de mel não fez outra coisa. Lavava as mãos como se tivesse nojo de mim. Então eu senti que mais cedo ou mais tarde havia de traí-lo. Não pude mais suportá-lo. Aquele homem lavando as mãos. Disse a ele: gosto de outro.

LÚCIA - E ele?

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ALAÍDE - Nada. Insisti, provoquei. E ele, frio. Disse que jamais me mataria.

(noutro tom) - Ah, minha filha, um homem faz mal em dizer que não mataria nunca sua mulher... Um marido que dá garantias de vida está liquidado!... Falei: Pedro, minha pulseira caiu. Quer apanhar pra mim? Quer?

(fazendo o gesto) - Eu bati aqui atrás, acho que na base do crânio. Ele deu arrancos antes de morrer, como um cachorro atropelado.

LÚCIA - Mas por que você o matou?

ALAÍDE - Por que o matei?... Boa pergunta. Não sei... Deve haver um motivo... O que sei é que há uma mulher no meio.

(confidencial) - Uma mulher de véu. Tem um véu tapando o rosto...

LÚCIA - Você fala tanto nessa tal "mulher de véu", o que você fez a ela?

ALAÍDE (ri)

- Eu?! Pois se nem sei quem é! Sei que ela tem alguma coisa a ver com a morte de Pedro, mas o que, ou por que...Ou mesmo se Pedro está morto...Mas não me lembro. Estou com a memória tão ruim!...

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LÚCIA - Escuta. Presta atenção. Pode ter sido um sonho. Você pode não ter matado seu marido, mas sonhado. Isso já aconteceu tanto comigo! Uma vez eu sonhei que havia afogado minha irmã. E acabado com todas as fotos, roupas, toda a lembrança dela.

(sarcástica) - No outro dia, eu acordei e contei pro meu pai... sabe o que ele disse? "Deixa de besteira, menina!"... É como eu falei, é normal matar alguém na fantasia...

ALAÍDE - Mas a culpa de tudo é da mulher de véu. Desde o dia do meu casamento...

LÚCIA - O dia do seu casamento...

ALAÍDE (como que fazendo um esforço de memória) - Antes de mamãe entrar...

LÚCIA (cínica)

– Quem estava com você, Alaíde?... Foi mamãe?... A "sua" mãe?

ALAÍDE (confusa)

- Não... acho que não...

LÚCIA - Não?... Pois é, Alaíde!...

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ALAÍDE (agoniada)

- Não é possível! Eu estou me lembrando. Era você. Pedi pra você apanhar a linha, uma linha branca que deixei lá no seu quarto!... Viu na cômoda?

LÚCIA - Ela me pergunta se eu vi, a cínica!

(noutro tom) - Vi. Não achei nada.

ALAÍDE - Na gaveta de baixo?

LÚCIA - Também.

(com raiva, para a platéia) - E por que ela não vai? Por que ela não procura a linha branca? Só porque é a noiva?

ALAÍDE - Nossa! Você está tão esquisita! Quer chamar mamãe um instantinho?

(tempo) (nervosa)

- Quer chamar?

LÚCIA - Não. Não chamo ninguém. Vá você!

ALAÍDE - Você tem alguma coisa!

LÚCIA - Eu? Não tenho nada... Nada, minha filha!

(vira-se, num gesto, rápida e ríspida) - Aliás, você sabe muito bem!

(violenta) - Sabe e ainda pergunta!

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ALAÍDE - Chega. Eu mesma vou chamar.

(começa a andar, mas de repente, e sem que a outra faça qualquer gesto, pára, como

se fosse impedida de prosseguir) (assombrada) –

Que é isso?! Saia da minha frente! (noutro tom)

- Olha, eu acho que você não está regulando bem!

LÚCIA (intimativa)

- Acha mesmo? Pois, olha. Sente-se aí. Você não vai chamar ninguém!

ALAÍDE - Mas eu preciso da linha branca!

LÚCIA - Primeiro vamos conversar. Linha branca...

ALAÍDE - Mas, escuta. Você vai querer discutir agora? Agora?!

LÚCIA - Então! Por que não será agora? Que é que tem de mais? Eu nunca falei, nunca disse nada, mas agora você tem que me ouvir!

ALAÍDE (gritando)

- Tem gente ouvindo! Fale baixo!

LÚCIA (excitada)

- Baixo? Por quê? Então você pensa que podia roubar o meu namorado e ficar por isso mesmo?

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ALAÍDE - Você não vai fazer nada!

LÚCIA - Ah, está com medo! Natural. Casamento até na porta da igreja se desmancha.

ALAÍDE - Mas o meu não!

LÚCIA - O seu não, coitada!... O seu sim! Você não me desafie, Alaíde, não me desafie!

ALAÍDE - Então não fale comigo nesse tom!

LÚCIA (agressiva)

- Falo, falo - e se você duvida - faço um escândalo agora mesmo. Aqui, quer ver?

(ri, irônica) - Não quer...está caladinha...tem medo... E é bom ter medo mesmo, porque se eu disser uma coisa que sei. Uma coisa que nem você sabe!

ALAÍDE - E o que é que você sabe? O que é que você sabe?

LÚCIA - Se eu disser, Alaíde, duvido, e muito, que esse casamento se realize.

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ALAÍDE (baixinho e triste)

- O que é que você sabe... (como se a palavra machucasse)

...irmã?... (tempo)

(mesmo tom) - O que foi que eu lhe fiz pra você estar assim?

LÚCIA - O que foi?!...Sua hipócrita!

ALAÍDE - Diga então o que foi!

LÚCIA - Quer dizer que não sabia que eu estava namorando Pedro?!

ALAÍDE - Aquilo, "namoro"?! Um flerte, um flerte à toa!

LÚCIA - Flerte?! Você quer dizer a mim que foi flerte?! Quer me convencer?!

ALAÍDE (infantil, birrenta)

- Foi flerte, foi flerte!

LÚCIA - É? E aquele beijo que ele me deu no jardim, também foi flerte?

ALAÍDE - Sei lá de beijo! Que beijo?

LÚCIA - Está vendo como você é? Viu tudo! Você apareceu no terraço e entrou logo. Mas viu!

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ALAÍDE - Eu não admito que você venha recordar essas coisas! Ele é meu noivo!

LÚCIA (desafiadora)

- Mas a "maninha" viu ou não viu?

ALAÍDE - Não.

LÚCIA (birrenta)

- Viu sim! Viu, viu!

ALAÍDE - É? E por que é que você não protestou antes? Por que não falou na hora?

LÚCIA - Porque não quis. Quis ver até onde você chegava. Esperei por este momento.

ALAÍDE - Olha, estão batendo na porta. É mamãe.

LÚCIA - E daí? Ela não gostou nunca de mim!

ALAÍDE - Mamãe?!

LÚCIA - É, "mamãe"!... Ela não gostou nunca de mim! Tudo era você, você! Mamãe tinha uma admiração indecente pela sua beleza. Ia assistir você tomar banho, enxugava suas costas...Quero que você me diga por que é que ela nunca se lembrou de assistir aos meus banhos!

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ALAÍDE - Mamãe está chamando! (para a porta) Já vai!...

LÚCIA (aterrorizando)

- Não abre a porta! Não anda!...Olha, Alaíde, nós temos a loucura na carne. A loucura e a morte. Passo as noites em claro pensando que andamos para a morte.

ALAÍDE - Mas, mamãe, ela está na porta!

LÚCIA - Eu falo!

(para a mãe imaginária) - Já chamamos a senhora, "mamãe"... Falta pouco... Alaíde...

(volta-se para Alaíde) (irônica)

...a sua "filhinha querida"... (novamente para a mãe imaginária)

...já está quase pronta. Falta pouco...Daqui a 5 minutos, está bem?

ALAÍDE (nervosa)

- Ela deve estar estranhando...

LÚCIA - E daí? Não faz mal! Deixa. Tem tanta coisa estranha. A vida é muito estranha! E você, se você não fosse o monstro que é!

ALAÍDE - E você, presta, talvez?

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LÚCIA - Pelo menos, nunca me casei com seus namorados! Nunca fiz o que você fez comigo! Tirar o único homem que eu amei!... Alaíde, o único!

ALAÍDE - Não tenho nada com isso! Eu não quero que me julguem pelos meus atos. Eu não tenho nada com os meus atos, nada! Ele me preferiu a você, foi só isso, pronto!

LÚCIA - Preferiu o quê! Você se aproveitou daquele mês que eu fiquei de cama, andou atrás dele, deu em cima. Uma vergonha!

ALAÍDE - Por que você não fez a mesma coisa?

LÚCIA - Eu estava doente!

ALAÍDE (zombando)

- Coitadinha!...E por que então não fez depois? Tenho nada que você não saiba conquistar ou...reconquistar um homem? Que não seja mais mulher, tenho?

LÚCIA - O que me faltou sempre foi seu impudor!

ALAÍDE - E quem é que tem pudor quando gosta?

LÚCIA - Olha, Alaíde, escuta. Você a vida toda me tirou os namorados, um por um.

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ALAÍDE (irônica) - Mania de perseguição!...

LÚCIA - Escuta! Alaíde, com Pedro você errou!

ALAÍDE (irônica)

- Vou me casar com ele daqui a uma hora, minha filha. Ou você não está vendo que isso aqui é vestido de noiva?

LÚCIA - Pois é por isso, exatamente por isso que eu estou dizendo que você errou. Porque vai casar!

ALAÍDE (sempre irônica)

- Ah, é? Não sabia!

LÚCIA - Você roubou meus namorados. Mas eu vou lhe roubar o marido. Só isso!

ALAÍDE - Vá esperando!

LÚCIA - Não acredita? Você vai ver. Aliás, nem é propriamente "roubar"...não chega a ser um "roubo"...

ALAÍDE (sempre irônica)

- Então já está melhorando!

LÚCIA - Você pode morrer, minha filha. Todo mundo não morre?

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ALAÍDE - Você quer dizer talvez que me mata?

LÚCIA - Quem sabe?... Você acha que eu não posso matar você?

ALAÍDE - Você não teria coragem. Duvido!

LÚCIA - Quem sabe?... Talvez você esteja certa, e eu não tenha coragem de matar você... talvez...

(corre em direção a uma janela imaginária) ...mas, e se eu me mato? Se me jogo aqui da janela bem no dia do seu casamento?... Não! Não dê um passo! Se der um passo eu me atiro da janela!...

(tempo) Você está pensando, eu sei: essa fracassada não se mata! Não é?...Heim?... Não! Não fala nada!...

(com toda a mágoa possível) - Você se julga a mais feliz do mundo e a mim a mais infeliz... tão infeliz que tive que me deflorar com um lápis!

(tempo) (sai da janela imaginária)

- Mas eu não vou me matar... Quem vai morrer é você!... Escuta, Alaíde, você está crente que ele é só seu, não está?... Está mais do que crente, é claro! Pois, olhe... sabe quem é esse namorado que eu arranjei?... Tantas vezes vim conversar com você sobre ele. Contar cada passagem, meu Deus!

(com ironia) - Pois, olhe: esse namorado era seu noivo. Seu noivo, apenas!

(CONTINUA)

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(CONTINUANDO)

Aliás, quer saber, não é isso que interessa. O que interessa... é que você vai morrer. Não sei como, mas vai... e eu então...me casarei com o viúvo. Só. Aliás, tipo da coisa natural, séria, uma mulher se casar com um viúvo.

ALAÍDE - Vou dizer a Pedro o que você me contou.

LÚCIA

- Se disser, vai ver o escândalo que eu faço! Experimente!

ALAÍDE (virando-se, com rancor)

- Então foi por isso que você pediu a mamãe para me vestir. E eu, boba, sem desconfiar de nada!... Mas, olha, escuta: te dou tudo, tudo, menos o meu marido!

LÚCIA (ri)

- E quem pediu teu marido?!...Não é teu? Você não tem certeza? Pois fica com ele!...

(à parte, sarcástica) - Até que a morte os separe...

ALAÍDE - Pois, ouve: você não pode pensar, ou olhar, ou tocar no meu marido... ou sorrir. A gente não sorri pra todo mundo. Você não pode sorrir pra meu marido. Escuta, você não me conhece, ele não me conhece, eu própria não me conhecia, eu me conheço agora.

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LÚCIA (cínica)

- Só agora?... Pois eu nos conheço há muito tempo. Nós somos três cínicos: eu, você e ele. Você ainda é pior, Alaíde, porque quer ser inocente até o fim.

ALAÍDE - É melhor eu calar minha boca!

LÚCIA - Você não ouviu ele falando pra mim...? Como é cínico! "Você tem namorado?" Que ideia ele faz de nós, meu Deus!

ALAÍDE (revoltada)

- Eu sei que ideia!

LÚCIA - De mim, que sou uma pervertida! De você, que é uma idiota! Em todo o caso, prefiro mil vezes ser pervertida do que idiota!

ALAÍDE - Você ainda acha preferível! Ainda diz que é!

LÚCIA - Claro, minha filha! Então não é?... Eu, pervertida. Você, idiota. E Pedro? Infame.

ALAÍDE - Assim mesmo você gosta dele!

LÚCIA - Gosto. Amo. Mas gosto sabendo o que ele é e por isso mesmo. Já você... Ah, meu Deus! Aposto que não acredita em nada do que eu contei.

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ALAÍDE - E não acredito! Não acredito mesmo! Você está é com ciúmes, e não é de Pedro, é de mim!

LÚCIA - Pois, olha, escuta, Alaíde, quer saber? não vou ao teu casamento.

(birrenta) - Não vou e não vou e não vou!

ALAÍDE (depois de um tempo)

(doce, tentando salvar a situação) - Vamos parar?... Somos irmãs!...Olha, estou te estendendo a mão. Segura a minha mão, assim... (segurando sua outra mão e não a da irmã)

- Lembra, uma vez?... Eu voltava do colégio. Você pegou na minha mão, assim com estamos agora,e disse: se você morrer um dia, eu nem sei... Eu falei: não fala bobagem. Você disse: pois não quero que você morra, nunca. Só depois de mim. Lembra? Ou então, ao mesmo tempo, juntas, eu e você enterradas no mesmo caixão.

LÚCIA (triste)

- E sabe o que você falou? No mesmo caixão não dá. Nem deixam.

ALAÍDE (ainda doce)

- Nós já fomos tão amigas!

LÚCIA (com amargura)

- Amigas, nós?! Oh, meu Deus! Como se pode ser tão cega!...

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ALAÍDE - Olha, vou dizer uma coisa. Engraçado - eu acho bonito duas irmãs amando o mesmo homem! Não sei, mas acho.

LÚCIA - E o que você acha de duas irmãs se odiando tanto?!... Heim?...Olha. Escuta, Alaíde, eu é que devia ser a noiva!

ALAÍDE (excitadíssima)

- Mentirosa! Sua mentirosa! Roubei seu namorado e agora ele é meu! Só meu!

LÚCIA (satisfeita, vitoriosa)

- Ah, confessou! Até que enfim! Pelo menos diga, berre: "Roubei o namorado de Lúcia!!!"

ALAÍDE - Não digo nada! Não quero! - Aliás, quer ouvir?

(em alto e bom som) - Roubei o namorado de Lúcia!

LÚCIA (excitada, para platéia)

- Viu? Ela disse! Não teve vergonha de dizer!

ALAÍDE - Digo quantas vezes quiser! Roubei o namorado de Lúcia! Roubei o namorado de Lúcia! Roubei o namorado de Lúcia!...

LÚCIA (chorosa)

- Por que você tirou Pedro de mim?

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ALAÍDE - Você sempre com esse negócio de tirou, tirou!... É tão bom tirar o namorado das outras!...

(irônica) - Então de uma irmã...

LÚCIA - Você continua pensando que ele é só seu!

ALAÍDE - Penso, não. É.

(feliz, para a mãe imaginária) - Ah, mamãe, até que enfim!...Foi bom você ter chegado!

LÚCIA (ri)

- Mamãe?!

ALAÍDE - Mamãe, eles estão desejando a minha morte! Quando eu morrer eles vão se casar, mamãe, tenho certeza!

LÚCIA - Você parece doida, Alaíde!

ALAÍDE - Diga agora o que você disse de mamãe!

LÚCIA - Olha, você quer é me intrigar com ela. Mas não adianta!

ALAÍDE (para a mãe imaginária)

- Ela está com medo, mamãe. Não tem coragem de repetir.

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LÚCIA - Pois então está bem. Digo, digo sim! É muito simples...

(vira-se para a mãe imaginária) - Eu disse...

ALAÍDE - Como é? Perdeu a coragem? Fala! Diz a ela!

LÚCIA (para a mãe imaginária, com certa relutância) - O que eu disse, mamãe, é que a senhora... transpira muito. Demais! Pronto!

(para Alaíde) - Viu como eu disse?

ALAÍDE (na sua cólera)

- Não foi só isso! E aquela história, "aquilo" que você disse?

LÚCIA - Aquilo o quê?

ALAÍDE - Não se lembra?

LÚCIA - Agora me lembro! Eu também falei, mamãe, que quando a senhora começa a transpirar - a senhora é minha mãe - mas eu não posso! Não está em mim. Tenho que sair de perto!

ALAÍDE - Viu, mamãe? Isso mesmo, mas tem mais! Ela disse que você sempre preferiu a mim, olhava meus banhos e não os dela.

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LÚCIA - Está bem, Alaíde. Você quer que eu diga tudo a ela?... Vou dizer.

(para a mãe imaginária) - Eu não gosto de você, mamãe. Não é uma coisa premeditada... Sei lá, nasceu comigo!... Não gosto de você... Não está em mim. Você é má. Sinto que é capaz de matar uma pessoa. Sempre tive medo de ficar sozinha com você. Medo que você me matasse. Quando eu era menina, pensava que você podia morrer. Ou então que papai podia fugir comigo.

(noutro tom) - Era uma coisa tão pura, tão bonita que sentia por papai, que ninguém nunca compreenderia. Nem você, mamãe, nem Alaíde, nem ninguém... E mesmo que papai fosse o demônio em pessoa. Mesmo assim eu gostava dele, adorava. Quando eu era menina, não gostava de estudar catecismo. Só comecei a gostar, me lembro perfeitamente, quando vi pela primeira vez um retrato de Nosso Senhor. Fiquei impressionada com a semelhança dele com papai. O rosto era igualzinho. A mesma barba, os olhos. Mas papai... Ele só gostava de meninas, só meninas, ainda sem desejos. Uma vez morreu uma, de 15 anos. O enterro passou no meio do campo de futebol, o jogo parou. Eu vi essa menina no caixão. Era tão parecida comigo. A minha cara. Papai foi até lá, chorou o corpo, passou a mão no rosto dela. Naquela hora eu desejei estar ali no lugar dela.

(CONTINUA)

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(CONTINUANDO) Eu teria eternamente 15 anos e o amor de papai. Mas eu não morri, e perdi os meus 15 anos e o amor dele. E o pior: perdi também aquele amor que eu tinha por ele... Agora o tempo passou e eu me perdi de mim. Vejo pedaços de mim por toda parte. Meu Deus, como era meu rosto, meus cabelos, cada uma de minhas feições?

(para alguém da plateia) - Minha senhora, esqueci meu rosto em algum lugar. Mas eu não saio daqui antes de saber quem sou e como sou.

(noutro tom) - Será que eu sou uma senhora gorda, que sofre dos rins, do fígado e se queixa de azia?

(nervosa, olha para os pés descalços) - Com 15 anos deixei de ser menina... Comecei a ter vergonha de tudo!

(tenta esconder os pés descalços) - Dos próprios pés. Meu coração palpitava se via meus próprios pés frios e nus, sem meias e sem sapatos. Pés despidos, meu Deus! Tem mais, tem mais! Tinha vergonha dos móveis, dos móveis da casa, descobertos, sem nenhum pano, nenhuma toalha...Móveis nus...

(para a irmã) - Enquanto você, Alaíde, sempre foi despudorada!... Sentava no colo de papai...na minha frente dava beijos nele, porque sabia que eu sofria com aquilo... E fez o mesmo com todos os meus namorados!... Mas você me paga! Dessa vez, com Pedro, você errou!

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ALAÍDE - Errei?... Errei por quê?... Olha aqui, Lúcia, você não me engana!

(ameaçadora) - Você e Pedro andam desejando a minha morte!... Vivem cochichando! Eu apareço...vocês arranjam logo um assunto diferente, muito diferente,

(sarcástica) ...ficam tão "naturais"!... Como podem?... Dia e noite desejando que eu morra! Eu sei para que é! Para se casarem depois da minha morte!... Já planejaram tudo! Todo o crime! Assassinato sem deixar vestígios!... Que dois! Planejando um crime!...E ainda por cima quer se fazer de inocente! Mas eu pego vocês dois, direitinho! Deixa estar!... E você, minha irmã, você está tão certa da minha morte que até já botou luto!

LÚCIA (cínica)

- Fico bem de preto?

ALAÍDE (patética)

- Cínica! Cínica!... (desafiadora)

- Por que não me mata? Heim?... Estamos sozinhas! Depois vocês escondem meu corpo debaixo de qualquer coisa! Um morto é sempre muito bem comportado, e fica quietinho e não reclama se o colocam em qualquer lugar!...

(ameaçadora) - Mas, olha. Escuta. Preste atenção: Nem que eu morra deixarei vocês em paz!

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LÚCIA (ri)

- Pensa que eu tenho medo de alma do outro mundo?

ALAÍDE - Não brinque, Lúcia! Se eu morrer - não sei se existe vida depois da morte - mas se existir, você vai ver!

LÚCIA (irônica)

- Vai me infernizar mesmo depois de morta?...

(ameaçadora) - Vou ver o que, minha filha?

ALAÍDE - Você não terá um minuto de paz, se casar com Pedro! Eu não deixo, você verá!

LÚCIA - Nossa! Está tão certa assim de morrer?

ALAÍDE - Não sei! Você e Pedro são capazes de tudo! Eu posso acordar morta e todo mundo pensar que foi suicídio!

LÚCIA (sempre irônica)

- Quem sabe? A vida é realmente imprevisível... muito misteriosa...

(noutro tom) - Eu mandei você tirar Pedro de mim?

ALAÍDE - Mas que foi que eu fiz, meu Deus!

LÚCIA - Naaada!!

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ALAÍDE - Fiz o que muitas fazem. Tirar um namorado! Quer dizer, uma vaidade... - Vocês não! Você e Pedro querem me matar! Isso sim é que é crime, não o que eu fiz!

LÚCIA - Mas conquistou Pedro tão mal que ele anda atrás de mim o dia todo! Como um... cachorrinho...

ALAÍDE - Nem ligo. Sabe pra onde vou agora?

LÚCIA - Não me interessa. Nem um pouco

ALAÍDE - E nem digo, minha filha! Vou ter uma aventura! Pecado. Sabe o que é isso? Vou visitar um lugar, e que lugar! Maravilhoso! Já fui lá uma vez!

LÚCIA - Imagiiino!

ALAÍDE - Na última vez que fui, tinha duas mulheres dançando. Mulheres com vestidos longos, de cetim amarelo e cor-de-rosa. Uma vitrola. Olha: querendo - não se acanhe, querida - pode dizer a Pedro. Não me incomodo. Até é bom!

LÚCIA - Mentirooosa!

ALAÍDE - Ah, sou?!

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LÚCIA (afirmativa, elevando a voz)

- É! Não foi lá nunca! Nunca! Tudo isso que você está contando - as duas mulheres, os vestidos de cetim, a vitrola - você leu num livro que está lá em cima! Quer que eu vá buscar? Quer?

ALAÍDE (dolorosa)

- Está bem, Lúcia. Não fui, menti.

LÚCIA - Mas podia ir e ficar por lá! Você fala tanto em Madame Clessi, admira tanto as prostitutas...por que não vai pra lá? Por que não fica de vez por lá?

(irônica) - Não sei não, mas acho que o ambiente tem tudo a ver com você...

ALAÍDE (ri)

- Você pensa que me ofende? Pensa que me chamando de "prostituta" está me ofendendo?...

(cruel) - Escuta, Lúcia: você não tem cadeiras, nem seios, nem nada. Uma tábua! Ser séria assim, minha filha... Quero ver ser séria bonita, desejada, com todos os homens malucos em volta! Virtude assim, sim, vale a pena!

LÚCIA - Mas do que adianta tudo isso? Nossa vida é como uma fita de cinema. No final, o bandido morre.

ALAÍDE - Quer dizer que o bandido sou eu...

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LÚCIA - Quem mais?

ALAÍDE - A mulher de véu... Afinal, ela é a morta.

(aponta para o cadáver imaginário) - Mas, quem é ela? Deve ser Clessi... Usa o véu pra esconder o corte no rosto. Ela foi morta por um colegial. Um menino de 17 anos...

LÚCIA - Coitada!...

ALAÍDE - Eu tenho pena é de quem fica. O defunto nem sabe que morreu.

LÚCIA - Seria tão bom se cada pessoa morta pudesse ver as próprias feições!

ALAÍDE - Eu queria tanto me ver morta! Como será que ficou Clessi?... Levanta o véu, vamos ver o rosto dela.

Alaíde sai de cena.

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LÚCIA (enquanto ALAÍDE sai)

- Hei, onde você vai? Fica aqui... Foi embora...

(noutro tom) - Quem será a mulher de véu?

(levantando o véu num caixão imaginário) Não!... Não é Clessi!... Não dá pra definir direito o rosto, mas não tem talho! Tinha que ter um talho!... Fizeram um pacto de morte e ele a matou. Deu em todos os jornais. Não, esse rosto não é o de Clessi. Não dá pra definir quem é, mas não tem corte nenhum, não é ela a mulher de véu!... Tinha que ter o corte da navalha, você não acha, Alaíde?

(vira-se para o lado, assusta-se) - Alaíde, onde você foi? Não faz assim! Não brinca comigo, onde você está?...

(olhando o cadáver imaginário) - A morta parece sorrir... Mas, quem é? Talvez, o jornal...

(apanha um jornal imaginário) (lê) - "Alaíde Moreira, branca, casada...fratura exposta do braço direito."

(vai se apavorando, à medida em que lê) - "Afundamento dos ossos da face... escoriações generalizadas"... "Não resistindo aos padecimentos"... Padecimentos... padecimentos... que palavra!... Alaíde!? Mas esse não pode ser o corpo de Alaíde!... Ela não morreu!...Ou morreu?...

(anda, recordando-se)(triste) - Morreu... morreu sim... Eu estou me lembrando... fui ao enterro dela, e isso faz tempo!... Eu até esperei pra me casar com Pedro!

(ri, vitoriosa) - Me casei com o viúvo...

(noutro tom) (CONTINUA)

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(CONTINUANDO) - Aliás, não foi por falta de aviso... Eu disse a ela que isso ia acontecer...

("vê" algo no chão, junto ao "cadáver", assusta-se)

- Um bouquet! (tempo)

- A morta deixou cair o bouquet!... (vai até o imaginário bouquet)

- Mas esse bouquet é meu! (tempo)

- Então... ( passa as mãos lentamente no próprio rosto,

e se surpreende) - Sou eu! A morta sou eu!

(ri, incrédula) (como que decepcionada)

–Morrer é isso?! (apanha o imaginário bouquet e vai se deitar,

na posição de morta, enquanto fala e a luz vai caindo).

(como uma locutora, impessoal) - Pedro Moreira, Gastão dos Passos Costa, senhora e filha, Carmem dos Passos, Eduardo Silva e senhora (ausentes), Otávio Guimarães e senhora, agradecem, sensibilizados, a todos os que compareceram ao sepultamento de sua inesquecível... Lúcia...

(Tudo escuro)(Rápida, noutro tom) - Foi praga de irmã. Batata!

FIM