VERSOS E RIMAS: UMA EXPERIÊNCIA COM POESIA...
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VERSOS E RIMAS: UMA EXPERIÊNCIA COM POESIA E SARAUS NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Karina Mayara Leite VIEIRA, Prefeitura Municipal de Campinas - PMC
Eixo Temático 2: Formação continuada e desenvolvimento profissional de Professores daEducação Básica
1. Introdução
Neste texto, socializo a experiência de um projeto de poesia e organização de
saraus na Educação de Jovens e Adultos (EJA), em uma escola da rede municipal de
ensino de Campinas-SP, e suas contribuições para a minha formação como professora
de língua portuguesa. Nesta escola, trabalho há cerca de três anos com as quatro turmas
da Educação de Jovens e Adultos Anos Finais (correspondente ao Ensino Fundamental
do 6º ao 9º ano), que funcionam no período noturno da unidade. Depois de conhecer bem
a escola, os educandos e o contexto em que estão inseridos, entrei em contato com a
cena dos saraus na cidade e região e assim comecei a idealizar um trabalho com poesia
para além dos livros que habitam as bibliotecas. O projeto, em desenvolvimento, vem
sendo construído em uma parceria entre mim, meus colegas educadores, os educandos
e poetas da região. Nasceu com a intenção primeira de levar a poesia e a cultura dos
saraus aos educandos jovens, adultos e adolescentes da EJA como forma de valorizar a
produção de conhecimento que pode surgir em um evento como esse: poemas (autorais
ou não, recitados, lidos, interpretados), causos (reais ou inventados, contados ou
cantados), danças, canções.
Para a partilha dessa experiência, traço, inicialmente, o perfil dos educandos, pois
o projeto surgiu e vem se desenvolvendo considerando as características dos alunos
como faixa etária, naturalidade, ocupação, preferências, o contexto onde vivem, entre
outras. Neste item, aponto as relações entre os alunos da EJA e a poesia falada. Na
sequência, relato o início do projeto, as atividades propostas aos educandos para
chegarmos à escrita de poemas, a organização do sarau e sua realização, mostrando o
lugar que vem ocupando os saraus na escola e o trabalho com poesia na minha prática
pedagógica. Destaco, na conclusão, a importância de um projeto como este para a minha
formação como professora de língua(gem) e para a formação dos educandos.
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2. Perfil dos educandos da EJA em Campinas e suas relações com a poesia
O público da Educação de Jovens e Adultos da rede municipal de ensino de
Campinas é caracterizado por jovens, adultos e adolescentes. Segundo as Diretrizes
Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos Anos Finais, em 2012, de um total de
3836 matriculados, o público até 19 anos era de 48,8% (CAMPINAS, 2013, p. 18), dado
que confirma os estudos atuais sobre a EJA que apontam para a juvenização do
segmento. Em linhas gerais, tem-se na cidade de Campinas uma EJA composta por um
público bem diverso em termos de faixa etária.
Diverso também é esse público quanto à sua origem. Apesar de o fluxo migratório
nordeste-sudeste ter diminuído, a região metropolitana de Campinas costuma ser um
destino atrativo aos migrantes e recebeu e ainda recebe muitas pessoas vindas,
principalmente, de estados do Nordeste. Parte desses migrantes, que habita as periferias
da cidade, compõe o público da EJA, principalmente o adulto. Assim, é possível traçar o
perfil da EJA como heterogêneo quanto à faixa etária, à origem, e vale acrescentar, por
consequência, as atividades que realizam, ocupação, preferências relacionadas ao lazer,
cultura, arte.
Considerando este público, comecei a compreender que os educandos poderiam
conhecer pouco a poesia escrita, mas seria possível encontrar verdadeiros mestres em
poesia falada na EJA, fato que eu havia concluído pela relação de muitos alunos com os
estados nordestinos, seja por terem nascido em terras de Patativa do Assaré ou por
serem filhos de nordestino ou mesmo por morarem em bairros onde habitam muitas
famílias migrantes. Isso porque o Nordeste é uma região onde a poesia é muito presente
e se manifesta pela oralidade, na forma dos violeiros, seus repentes e cordéis, literatura
que é impressa em livretos e exposta em varais que colorem as cidades.
Comecei a trabalhar na EJA em meados de 2012, e fui me convencendo da
potencialidade que poderia ter um trabalho mais profundo e permanente com a poesia,
ao ouvir dos educandos muitos versos. A Dona M. enfeitava o caderno com estrofes da
cultura popular nordestina e vez ou outra cantava para eu ouvir cantigas que havia
aprendido pela voz de sua mãe. Não é raro encontrar entre os alunos da EJA de
Campinas (e diria que de outras EJAs de outras cidades, talvez de outros estados)
aqueles que sabem versos “de cor”, poesia que se gravou na memória pela voz de
homens tocando viola ou mulheres cantarolando cantigas tradicionais.
De modo diverso, também ouvi poesia na voz dos jovens e adolescentes. Em um
dos semestres de 2013 e 2014, recebi na EJA um educando que se apresentava como
rapper.1 Eu propunha a escrita de um relato, ele escrevia rimando na poética do rap,
pedia uma carta, saia um rap, e para qualquer outra proposta de escrita, ele me mostrava
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um rap. Provavelmente o educando não tinha muitas relações com a poética nordestina,
mas dominava a poesia falada presente nos grandes centros urbanos tal como
Campinas. Percebi que os jovens e adolescentes da EJA também estão muito
conectados à poesia, conexão que se dá por meio da música (sempre um fone no
ouvido...), seja pelo tão difundido funk, gênero musical cuja origem remete às favelas
cariocas e que se manifesta por meio de batidas e rimas, ou pelo rap, que na origem da
palavra significa “ritmo e poesia” (rythm and poetry). Não é difícil encontrar entre os
educandos mais novos da EJA aqueles que admiram cantores de funk ou rap e até
mesmo os que sonham em ser MC.2
Depois de completados mais de dois anos atuando na mesma escola, e tendo
compreendido essa relação entre o perfil dos educandos e a poesia, no primeiro
semestre de 2015, com a oportunidade de permanecer na mesma unidade, comecei a
idealizar um projeto que teria como objetivo levar a poesia em suas variadas formas para
as turmas de EJA. O projeto de poesia se iniciou em uma parceria entre mim, meus
colegas professores, os alunos e poetas da região.
Como idealizadora do projeto, partia dessa aproximação com o conhecimento
prévio dos alunos da EJA a respeito da poesia falada para propor um trabalho integrado
entre os professores e alunos, tomando como eixo a poesia, falada e escrita, e como fim
o sarau, com o objetivo de fazer valer na escola o protagonismo dos jovens, adultos e
adolescentes da EJA ao propor-lhes ler, escrever, recitar, cantar.
3. Da poesia que habita as bibliotecas à poesia que mora nos cantos da cidade
3.1 Leituras e primeiro contato com um sarau
Em 2014, em meados do ano, lembro que, para encerrar o semestre letivo, eu e
os professores havíamos tentando organizar um sarau sem muito sucesso. Usei uma
fórmula pronta, como se educar fosse tão fácil quanto seguir receita de bolo: fomos à
biblioteca, os alunos escolheram poemas dos livros, ensaiamos em sala a leitura em voz
alta e apresentamos as leituras no microfone em um espaço diferente da escola. Eles
não tinham ideia do que era um sarau e eu tinha uma ideia rasa: poesia, livros, leitura,
microfone. A sorte que temos, nós professores, é de haver sempre aquele aluno ou um
grupo de alunos que não se convencem facilmente das coisas. E eu tive sorte: um grupo
considerável não quis participar, não achou graça nenhuma nos poemas dos livros.
Desafiada, pensei, pesquisei, lembrei-me de um show onde o Seu Jorge recita Racionais,
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levei uns vídeos, umas músicas conhecidas de rap (com exceção de uma do Raul Seixas
para o único roqueiro da turma) e disse que poderiam lê-las, recitando como poesia. Mais
alguns poucos convencidos, mas, no geral, se houve alguma adesão foi para realizar, no
fim do semestre, a tarefa da escola.
Continuei com as pesquisas. Meses depois, na faculdade onde lecionava, a
coordenadora do curso de Letras propôs aos alunos que fizessem algum evento. Eles
montaram um sarau, ou seja, um evento em homenagem à literatura e a autores
canônicos, com pouquíssimo espaço para autoria. Eu teria que montar com a minha
turma alguma participação com algum autor que representasse a segunda geração do
Modernismo (o sarau seria dividido pela historiografia literária!). Apresentei a eles meu
poema preferido do Carlos Drummond de Andrade: “A morte do leiteiro”. Pensamos
juntos e decidimos por interpretá-lo usando alguns aspectos do teatro: uma aluna
recitaria, outro ficaria responsável por montar o cenário e outro aluno seria o leiteiro. Foi
bonita a apresentação e bem parecido com as que eu via na faculdade onde estudei.
Em novembro de 2014, fui a um sarau pela primeira vez (não estou considerando
os saraus da faculdade, onde estudei e onde lecionei, em homenagem a autores
canônicos – e o plural aqui não é meramente gramatical, pois o foco dos cursos de Letras
continua sendo autores homens). Era uma apresentação do Sarau da Cooperifa3 no Sesc
Campinas. Estava com um colega professor e alguns alunos, era véspera da Consciência
Negra e os poetas, homens e mulheres, recitavam poemas de temática social, tratando
do sofrimento do povo negro ao longo da história. Era Castro Alves. Era Racionais MC’s.
E lá eu pensei: “é isso que falta na EJA!”.
Um dia antes de ir à apresentação da Cooperifa, contei a um amigo de um amigo
sobre esse evento e ele me falou sobre a Parada Poética, disse que era o mesmo
“esquema” da Cooperifa, só que na região de Campinas, os “caras” eram de Nova
Odessa-SP, mas faziam o sarau na cidade natal e nas outras cidades próximas. Procurei
nas redes sociais, era mesmo um sarau de verdade! E teria uma edição em 08 de
dezembro de 2014, que aconteceria em um bar, em plena segunda-feira. Seria dia de
trabalho, mas como 08 de dezembro é feriado da padroeira de Campinas, eu poderia ir.
Era a minha sorte novamente.
Foi assim que, depois de conhecer a Cooperifa, conheci então a Parada Poética4,
que soube depois ser um sarau organizado pelo poeta e rapper Renan Inquérito, do
Grupo Inquérito, pelo fotógrafo Márcio Salata e amigos, e ter como foco a poesia
marginal. Em 08 de dezembro, ouvi Drummond, na voz de um jovem que recitou
entusiasmado e “decor” (de coração) “A rosa do povo”, mas ouvi principalmente muita
poesia autoral e muita poesia de autores de quem eu só tinha mesmo ouvido falar ou de
eu ouvia falar pela primeira vez. Era Drummond, Castro Alves, Cecília Meireles,
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Marcelino Freire, Sérgio Vaz, Luz Ribeiro, Michele Santos... Ficou mais claro ainda para
mim aquele “é isso que falta na EJA!”.5
Logo no início do ano letivo, propus aos colegas professores e gestores um
projeto de poesia. Não sabia, ao certo, onde iríamos chegar, mas a ideia inicial era
organizarmos um sarau na escola. Iniciamos as atividades do projeto com uma visita dos
alunos e professores à Parada Poética. O sarau, antes sem um local específico, passou a
acontecer todas as segundas segundas-feiras do mês na Estação Ferroviária de Nova
Odessa-SP, recebendo convidados da literatura marginal para lançarem seus livros no
evento e divulgarem sua poesia, com o microfone aberto para o público ler, recitar, cantar
poemas autorais ou não, fazer performances poéticas entre outras possibilidades. O
objetivo de participar de um sarau era apresentar aos alunos formas de manifestação da
poesia pela fala, pelo corpo, pela música e mostrar-lhes a cultura dos saraus, afim de que
pudéssemos levá-la para a escola.
Somente depois de ouvirmos poesia, lemos livros de poesia, como o Poucas
Palavras de Renan Inquérito e títulos de autores variados: de Drummond a Patativa do
Assaré. Também ouvimos músicas de artistas atuais do rap (como Racionais MC’s e
Emicida), apresentadas aos alunos como uma forma de manifestação da poesia.
Paralelamente, tanto nas aulas de Português, as quais são de minha responsabilidade,
como nas das outras disciplinas, discutíamos e escrevíamos sobre temas sociais para
posteriormente transformar as ideias discutidas e escritas em forma de poesia. A escolha
dos temas também buscou aproximar a realidade dos alunos do conhecimento discutido
em sala de aula, já que os educandos, sendo trabalhadores e filhos de trabalhadores,
vivenciam diariamente os problemas sociais tematizados nas aulas. E por falar em
realidade dos alunos, vale lembrar aqui que o projeto, assim como a minha prática e dos
professores da EJA, seguem os ensinamentos de Paulo Freire, principalmente quando o
educador dizer que “ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” (FREIRE, 1996,
p. 33).
Tendo promovido esse contato inicial dos alunos com a poesia falada, cantada e
escrita, estudamos algumas noções básicas como versos, rimas, linguagem figurada
entre outras, sempre usando como exemplo o rap ou a poesia nordestina. Só então,
depois de um conjunto de aulas em contato com a poesia e com temas para a escrita,
iniciamos a produção de poemas.
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3.2 A poesia escrita e as produções para o sarau
É claro que nem todos os alunos conseguiram escrever seus poemas com
facilidade, mesmo tendo participado das aulas de preparação para a produção. A solução
para aqueles que não conseguiam fazer versos e rimas era propor que escrevessem um
texto narrativo ou dissertativo sobre o que queriam dizer no poema e, depois de algumas
ideias no papel, eu ia tirando com eles alguns versos e rimas.
À turma do 1º termo (1º semestre na EJA ou 6º ano na correspondência com o
regular), por exemplo, sugeri que falassem sobre si e tentassem fazer versos contando a
história de suas vidas. Dos poemas mais emocionantes dessa turma, temos “A vida no
sertão”, de Dona M. S.:
Fui uma menina sofridaSem conhecimento da vidaNão tive o prazer de estudarMeus estudos foi trabalharMeu lápis era a enxadaNão sobrava tempo pra nadaNa roça todo diaPra ajudar a famíliaPobre não tem que estudar, meu pai diziaHoje estou aqui com o lápis na mãoLonge do sertãoTentando desenvolver minha mentalidadeDa enxada eu não tenho saudadeE digo pra vocês que nunca é tardeQuando se tem vontade.
As palavras de Dona M. S. fogem à lógica racional de uma análise. Pouco importa
aqui a métrica dos versos ou a qualidade das rimas. Como professora, conseguir com
que meus alunos deem sentidos à história de suas vidas pela poesia tem marcado
profundamente a minha formação, mais que isso, a poesia e os saraus se tornaram um
divisor de águas na minha prática, pois tenho me trans-formado em uma professora cada
vez mais sensível ao processo de produção autoral dos alunos.
A seguir, exemplo de texto de um educando a quem, não conseguindo fazer a
versificação ou rimas, sugeri que contasse algo que ele gostaria que se transformasse
em um poema:
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Figura 1: Texto do aluno M., 15 anos, 2º termo6
Fonte: Arquivo pessoal da professora-pesquisadora
Há, nas linhas acima, possibilidade de poesia? A alguns pode parecer pouco o
relato de M., e não me espantam os olhares que enxergam apenas as faltas: faltam os
versos, faltam as rimas ou outros recursos poéticos, falta pontuação, falta concordância
verbal e nominal. A mim, nada falta, e cada palavra de M. é poesia. É poesia porque é
vida, vida de um jovem que olha para o seu bairro, cuja violência o espreita diariamente.
M. escolhe o seu cotidiano como tema para um poema, para problematizar, denunciar,
indignar-se.
O caminho para se chegar a um poema formalmente dito é o do diálogo. Nessa
aula, sentei ao lado do aluno, li o que havia escrito e disse que estava muito bom, que ele
havia feito um poema, grifei algumas frases e as passei a limpo, acrescentando poucas
palavras e invertendo a ordem dos termos para fazer surgirem as rimas. A nova forma
não altera os sentidos do texto de M., pelo contrário, potencializa o que está sendo dito.
Figura 2: Reescrita do texto do aluno M., feita pela professora.
Fonte: Arquivo pessoal.
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O que mais pode ser poesia senão a vida daquele que sofre contada por ele
mesmo? Quem pode falar, por exemplo, da fome, senão quem a sente? Poeticamente,
Carolina Maria de Jesus dizia: “A fome também é professora”. Quem pode falar da
violência senão quem a sofre? M., poeticamente, nos diz: o Estado mata mais que Aids.
Alguém dirá o contrário? (JESUS, 2013, p. 29).
3.3 A poesia falada
Ouvir música, discutir temas, fazer rimas, ainda que o projeto tivesse como uma
das propostas a produção de poemas escritos, a oralidade se fez presente, tanto pelo
fato de a poesia, muito provavelmente, ter se originado antes mesmo da escrita, sendo
inevitável tratar de poesia sem recorrer à oralidade, como pela razão de as escolhas para
o trabalho com o texto poético terem privilegiado a poesia de culturas que se constroem
muito mais com base na oralidade que na escrita: a cultura do rap e a cultura popular
nordestina. Ensinar poesia rimando escrita com oralidade também se revela na escolha
por apresentar os poemas na forma de um sarau de poesia, em outras palavras: publicá-
los oralmente.
Pelo tempo que demanda a produção de um texto escrito, não foi possível
registrar em minúcias o que nos aconteceu na noite do primeiro sarau “Esquina da
Rima”7. Embora os registros mais fiéis permaneçam apenas na memória, partilho a
experiência, inicialmente declarando que cada dia como professora aprendo um pouco,
mas nessa noite descobri muitas possibilidades de educar na EJA, possibilidades que se
resumem em construir espaços de protagonismo dos alunos, espaços de ser educando,
de ser sujeito, de ser jovem, ser adulto, ser adolescente.
Recebemos na escola, na noite do dia 27 de abril de 2015, o rapper e poeta
Renan Inquérito, parceria que foi surgindo nas nossas visitas ao seu sarau (onde fomos,
alunos e professores, duas vezes). Renan apresentou um pouco do seu sarau, a Parada
Poética, e comemorou conosco o nascimento do nosso Esquina, os meus senhores e
senhoras, meus garotos e garotas recitaram seus poemas, enfrentando o microfone e
oralizando a escrita. Seo A., que em uma das aulas gostou do Drummond de “A morte do
leiteiro”, leu um poema escrito, escolhido por ele, com dificuldade e finda a tarefa da
leitura, que, ao que me parece, se sentiu na obrigação de realizar, revelou seu talento
como contador de causos fazendo a escola toda se divertir muito.8 Teve também o
educando Ap. que leu seu poema sobre a violência contra a mulher e, desinibido,
agradeceu a participação também em forma de rima. Teve a educanda C., que leu o seu
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poema “Três gerações de guerreiras”, com versos que falam dela, da sua mãe e de sua
filha. Teve aluno, dos mais jovens, criticando a violência urbana e a falta de lazer na
periferia. Teve tanta coisa que não cabe nessas linhas.
4. O fortalecimento do projeto e novas parcerias
Para a realização os saraus, temos esbarrado como sempre na falta de verbas
para a EJA, que nos impede de convidar outros poetas pagando ao menos seu
deslocamento, alimentação e estadia. Temos, assim, contato com o apoio dos poetas da
região. Além do rapper Renan Inquérito, começou a nos apoiar também o poeta e músico
Rafa Carvalho, que, todas as segundas quartas-feiras do mês, organiza no bar do seu
pai, o Seo Manoel (Bar Estrela Dalva), o Sarau da Dalva. Com ele realizamos o segundo
Esquina da rima em 16 de setembro de 2015. Rafa nos presenteou com poemas falando
de seu pai, nordestino como muitos dos alunos, de sua mãe, “mainha”, e de figuras com
as quais os alunos se identificaram. Teve também mais uma vez o Seo A. por bons
minutos no microfone, teve novamente a C., agora com um poema em homenagem à sua
mãe, teve a Dona H. com um poema contando a história de sua irmã, a E. com a história
de sua avó, a R. com a sua história e de sua mãe, empregada doméstica.
Enquanto organizávamos esse segundo sarau, estávamos também participando
de um concurso promovido pela Secretaria Municipal de Educação, em parceria com a
Associação dos Magistrados do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (AMATRA
XV). A temática do concurso era o trabalho (“Retratos da vida: o trabalho justo e
cidadão”), o estilo era livre e, como estávamos impregnados de poesia, combinamos
professores e alunos, de participarmos com poemas. Os alunos fizeram seus “retratos”
sobre o trabalho em forma de versos, que foram inicialmente apresentados na escola no
segundo sarau. Fizemos uma pré-seleção dos textos na escola e dentre as escritas
enviamos para concorrer os textos das alunas Dona H., E. e R., que tematizaram
histórias de trabalho de mulheres. Mais de cem textos de cerca de 20 escolas de EJA
concorreram também, fomos para a final e, na noite da premiação, nossas três alunas
ficaram entre os cinco premiados. Dessa vez não foi a sorte. Foi vitória de quem luta nas
esquinas da cidade. Vitória da poesia.
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5. Conclusão
Ainda não posso concluir, depois de um ano, toda a influência deste projeto para a
minha formação como professora de língua(gem) e para a formação dos educandos. Sei
de alguns sinais: minhas alunas vencendo um concurso, o aluno C. M. que sempre
trazendo consigo uma antologia do Solano Trindade, o Seo A. convidando suas netas no
sarau, o J. cantando uma canção de amor para a esposa, os garotos fechando as noites
de sarau com break9, eu indo cada vez mais a saraus, lendo mais poesia, estudando
mais e até escrevendo mais do que textos acadêmicos. Para a minha formação,
trabalhar com poesia para além dos livros tem ampliado os sentidos do que para mim é
ensinar a ler, escrever e produzir textos na EJA, do que é educar como professora de
jovens, adultos e adolescentes. Para formação dos educandos, escolher o sarau como
fim traz a possibilidade de unir escrita e oralidade: aquela, importante por ser objeto de
estudo da escola e via de acesso ao conhecimento das várias disciplinas, e esta,
igualmente importante, por ser a palavra falada mais familiar aos educandos, ampliando,
assim, as formas de produção de conhecimento. Para a comunidade escolar, em especial
os educandos, o sarau vem se tornando um espaço de protagonismo, um lugar de
humanização das relações, valorização do ser humano, respeito à diversidade e
problematização do cotidiano.
A participação de Seo A., de Ap., de C., de J. e de tantos outros no microfone
revela muito das relações dos educandos da EJA com a escrita e a oralidade. Ler e
escrever para o Seo A., por exemplo, é tarefa escolar, difícil, desafio que ele, com cerca
de 60 anos, enfrenta com coragem. Falar, contar causos, cantar, rimar é outra história,
quase uma brincadeira de garoto: “Vou ler meu poema primeiro e depois eu também vou
fazer ‘meu rep’”, assim ele disse em sua primeira apresentação, e saiu fazendo versos
em uma mistura de rap e repente. Depois que descobriu que sarau não é só leitura (e,
aliás, depois que eu, como professora e idealizadora do projeto, vendo o que surgiu no
primeiro sarau, também descobri que sarau não é só ler ou recitar poemas escritos), Seo
A. virou sensação do nosso Esquina da Rima, passando bons minutos no microfone
divertindo o público. Já não leva mais no bolso um poema escrito com palavras difíceis.
Ele é o autor. Eles são os autores. Somos os autores.
Somos a EJA J. Alves, Essa é a nossa vezDe botar a boca no trombone, No microfoneE contar para todos vocês
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Quem somos, e de onde viemosO que fazemos, e como vivemosSomos de São Paulo, de CampinasDo Pernambuco, da Bahia, de MinasDo Paraná, do Ceará, do ParáDos quatro cantos do paísA África é a nossa raizDescendentes de escravos, de índios, de imigrantesColonizados, trabalhadores, nossa luta é grande!Vivemos para ganhar a vidaNos shoppings, nas fábricas, nas oficinasNos camelôs, nas lanchonetes, nas usinasAcordar cedo é a nossa sinaNão acreditamos em mentiraNunca ganhamos na QuinaLutamos nas esquinas da cidadeÀs margens da sociedadeEssa é a nossa históriaCada dia, uma vitóriaSalve todos aqueles que nos representaCom eles a nossa voz aumentaInquérito, Racionais, FacçãoO repente, o rap, o samba, e o funk ostentaçãoSalve João Alves, Salve a EJASalve nossos orixás, que Deus esteja!10
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Elaine Nunes de (Org). Rap e educação, rap é educação. São Paulo:Summus, 1999.
FIGUEIRÓ, Inês. A poesia falada na periferia: Grupo dispensa rodas de samba e hip hoppara formar cooperativa para declamações públicas de poesia. Revista LínguaPortuguesa, Editora Segmento, Edição 116, jun. 2015. Disponível em:<http://revistalingua.com.br/textos/15/a-poesia-falada-na-periferia-248090-1.asp>.Acesso: 25 de jan. de 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 22.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 1. ed. São Paulo:Abril Educação, 2013.
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1 Rapper, aquele que escreve e canta rap, gênero do movimento do hip hop, originado nas comunidades afro-americanas, e que surgiu no Brasil nos anos 90 nas periferias paulistanas. O movimento estético-político do hip hopinclui o rap, o breakdance (dança de rua), o graffitti (grafite), além de elementos da moda e da linguagem como as gírias(ANDRADE, 1999).2 Acrônimo de “Mestre de Cerimônia”, as iniciais “MC” acompanham os nomes dos artistas do funk brasileiro e remete àorigem Hip Hop, sendo os MCs os animadores de festas que acompanhavam os DJs, interagiam com o público eimprovisavam no estilo conhecido como freestyle. Costumo brincar com os alunos que admiram os MCs para meadmirarem também, pois sou MC, “mestra de coração”.3 Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa, é um projeto que ocorre desde 2001 na zona sul de São Paulo,idealizado pelo poeta Sérgio Vaz (FIGUEIRÓ, 2012). Desse projeto, surgiu em um bar o sarau, que acontece todas asterças-feiras. Assim consta na descrição do Facebook do Cooperifaoficial: “A noite mais loka de SP. Duas horas depoesia, Bar do Zé Batidão. Rua Bartolomeu do Santos, 797. Jd Guarujá - Periferia – SP” .4 A Parada Poética tem uma página homônima no Facebook.5 Todos os artistas citados têm páginas no Facebook. 6 O 2º termo corresponde ao 7º ano ou antiga 6ª série. A opinião expressa no poema é de responsabilidade do autor,cuja identidade segue resguardada. 7 O Sarau Esquina da Rima tem uma página homônima, onde foram publicados os poemas dos alunos e professores.8 Notícia do sarau disponível no blog da escola: <http://emefjoaoalvesdossantos.blogspot.com.br/2015/04/a-parada-poetica-e-o-poeta-renan.html>9 Dança de rua do movimento hip hop.10 Poema de minha autoria que escrevi para homenagear os alunos no nosso primeiro sarau.