Valor46-De Nietzsche Ao IPEA

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De Nietzsche ao IPEA Fábio Wanderley Reis “Além do Bem e do Mal”, de Friedrich Nietzsche, contém um aforismo notável: “Tomada a decisão, fecha os teus ouvidos mesmo ao melhor argumento contrário: sinal de um caráter forte. Assim, uma disposição ocasional à estupidez”. O elemento de rigidez e fechamento destacado por Nietzsche pode ser visto como um componente necessário à eficácia de qualquer ação de alguma complexidade. Sem o compromisso com os objetivos que resultem da decisão tomada, ou a determinação em sua busca, a ação efetiva será impossível, substituída, por exemplo, pela paralisia do intelectual a ponderar razões interminavelmente. E, apesar do contato que Nietzsche estabelece dessa determinação com a estupidez, ela pode ser incluída, na verdade, entre as condições da ação racional, se esta é definida pela busca eficiente de objetivos. Isso é claramente relevante, e mesmo crucial, na avaliação da liderança política. O líder político de estatura é aquele capaz de tomar decisões e responsabilizar-se por elas, mantendo os objetivos diante dos olhos e reafirmando com clareza, quando 1

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De Nietzsche ao IPEA

Fábio Wanderley Reis

“Além do Bem e do Mal”, de Friedrich Nietzsche, contém um aforismo notável: “Tomada a decisão, fecha os teus ouvidos mesmo ao melhor argumento contrário: sinal de um caráter forte. Assim, uma disposição ocasional à estupidez”.

O elemento de rigidez e fechamento destacado por Nietzsche pode ser visto como um componente necessário à eficácia de qualquer ação de alguma complexidade. Sem o compromisso com os objetivos que resultem da decisão tomada, ou a determinação em sua busca, a ação efetiva será impossível, substituída, por exemplo, pela paralisia do intelectual a ponderar razões interminavelmente. E, apesar do contato que Nietzsche estabelece dessa determinação com a estupidez, ela pode ser incluída, na verdade, entre as condições da ação racional, se esta é definida pela busca eficiente de objetivos.

Isso é claramente relevante, e mesmo crucial, na avaliação da liderança política. O líder político de estatura é aquele capaz de tomar decisões e responsabilizar-se por elas, mantendo os objetivos diante dos olhos e reafirmando com clareza, quando necessário, os compromissos decorrentes. Tal postura contrasta, em particular, com a frouxidão e o oportunismo que às vezes pretendem valer-se da célebre distinção de Max Weber entre uma “ética da responsabilidade”, atenta às consequências das ações, e a “ética das convicções”, marcada pelo apego mais afirmativo a princípios. Uma ponderação importante aqui, a respeito da qual o próprio Weber se confunde, é a de que não caberá falar de ética se não houver referência a princípios morais – e a ética da responsabilidade não será uma ética se as consequências das ações não forem elas próprias apreciadas do ponto de vista de convicções morais.

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Naturalmente, nada disso impede reconhecer a eventual necessidade de reexame de objetivos, compromissos ou mesmo princípios. A formulação extremada do aforismo de Nietzsche não deixa espaço ao reexame, embora mesmo aí tenhamos a alusão ao momento prévio à tomada de decisão como momento propício à ponderação de razões e argumentos, ou à ênfase nos elementos de natureza intelectual ou cognitiva salientados na idéia da ética da responsabilidade. De todo modo, ao contrário do fechamento e da afirmação de caráter que a ação nietzscheana requer, a ação destinada a obter e processar informações (a produzir conhecimento) implica abertura, disponibilidade, distanciamento – traços indispensáveis ao confronto de pontos de vista e ao intercâmbio intelectual real como condições da eventual acuidade e “objetividade” do conhecimento produzido.

Os problemas recentemente ocorridos no IPEA, com o afastamento de especialistas de perspectivas divergentes das da nova direção do Instituto (não obstante as pouco convincentes razões burocráticas alegadas), ilustram de forma exuberante as dificuldades que tais questões podem envolver no plano político. Apesar da fatal ambiguidade contida em que um órgão de estudos e pesquisas seja administrativamente dependente do governo, é inadmissível que essa dependência venha a comprometer a possibilidade de atividade plenamente autônoma de seus especialistas e pesquisadores no terreno intelectual, onde reside o cerne dos objetivos que o distinguem. Também as universidades públicas são dependentes de recursos que provêm do Estado; mas imagine-se a situação em que reitores nomeados pelo governo se pusessem a escolher ou afastar professores ou pesquisadores com base na afinidade com suas próprias idéias (talvez como representantes do governo?) nesta ou naquela área.

Em consonância com o que se disse acima sobre o papel da liderança política, é incontestável a legitimidade, especialmente numa sociedade democrática, do caráter político da definição de certos fins, eventualmente mesmo em áreas que envolvem complexos conhecimentos científicos e tecnológicos. O reconhecimento disso se opõe à disposição “tecnocrática” encontrada com frequência entre cientistas e pesquisadores, caracterizada pela suposição de que os fins são dados e não-problemáticos e que as questões a

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serem objeto de decisão são questões “técnicas”, relativas aos meios a serem empregados, e competiriam, assim, aos peritos. A complexidade técnica de temas relativos ao uso da energia nuclear, por exemplo, não é razão para que se excluam os cidadãos (ou seus representantes) das decisões a respeito: se necessário, que os peritos se expliquem.

Da mesma forma, o governo pode (ou deve) ter preferências quanto a políticas nos campos econômico e social, e pode até, eventualmente, entender que há razões para mudar tais preferências. A escolha governamental dos dirigentes de órgãos como o BNDES ou o Banco Central (afinal, não temos leis que imponham a autonomia deste último) será a expressão de tais preferências. Em grau modesto, algo análogo se poderia dizer até com relação ao IPEA, entre cujos objetivos se encontra o de “desenvolver sistemas de avaliação de políticas públicas com ênfase nos processos de inclusão social e de redução das desigualdades”: um governo petista pode talvez entender que um presidente petista no IPEA zelará melhor pelas preocupações contidas nessa ênfase... Mas se isso redundar em que se restrinja o espaço intelectual onde se movem os trabalhos do órgão como tal, e em que não se ventilem os argumentos contrários, seus objetivos maiores estarão sendo traídos.

Resta a possibilidade de que Márcio Pochmann, que afinal tem ele mesmo criticado aspectos da política econômica do governo, não seja mais que um trapalhão por conta própria, municiando a oposição e prejudicando até as composições para prorrogar a CPMF, o que suscita a pergunta de se terá cacife real para bancar a trapalhada. E cadê o ministro chefe do Ministério Extraordinário de Assuntos Estragégicos, a que o IPEA se vincula? Terá algo a dizer sobre o assunto?

Valor Econômico, 26/11/2007

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