Valor40-Partidos e política ideológica

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Partidos e política ideológica Fábio Wanderley Reis Mencionei, em meu último artigo, a adesão difundida ao modelo da “política ideológica”, a que recorreram mais ou menos explicitamente vários ministros do STF na sessão sobre a fidelidade partidária. Vimos também na sessão o recurso a uma forma de idealização do processo político que remete ao próprio “povo” a escolher soberanamente os seus representantes, numa perspectiva que não só prescinde dos partidos, mas costuma ser mesmo hostil a eles. Neste último caso, o componente de “ideologia” está provavelmente presente na acepção “nobre” da expressão, envolvendo a idéia do eleitor capaz de ponderar judiciosamente as circunstâncias em que realiza as escolhas. Mas a forma dominante do ideal de política ideológica não apenas supõe os partidos: ela é, de fato, mais afim à concepção correspondente aos chamados “partidos de massas”, caracterizados, segundo a experiência original dos partidos socialistas europeus, pelo proselitismo ideológico dirigido a setores específicos do eleitorado (os trabalhadores), a atividade contínua de membros filiados e formatos organizacionais mais rígidos e complexos, em contraste com os “partidos 1

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Partidos e política ideológica

Fábio Wanderley Reis

Mencionei, em meu último artigo, a adesão difundida ao modelo da “política ideológica”, a que recorreram mais ou menos explicitamente vários ministros do STF na sessão sobre a fidelidade partidária. Vimos também na sessão o recurso a uma forma de idealização do processo político que remete ao próprio “povo” a escolher soberanamente os seus representantes, numa perspectiva que não só prescinde dos partidos, mas costuma ser mesmo hostil a eles. Neste último caso, o componente de “ideologia” está provavelmente presente na acepção “nobre” da expressão, envolvendo a idéia do eleitor capaz de ponderar judiciosamente as circunstâncias em que realiza as escolhas. Mas a forma dominante do ideal de política ideológica não apenas supõe os partidos: ela é, de fato, mais afim à concepção correspondente aos chamados “partidos de massas”, caracterizados, segundo a experiência original dos partidos socialistas europeus, pelo proselitismo ideológico dirigido a setores específicos do eleitorado (os trabalhadores), a atividade contínua de membros filiados e formatos organizacionais mais rígidos e complexos, em contraste com os “partidos de quadros”, baseados em “notáveis” e distinguidos pela organização frouxa e o pragmatismo eleitoral.

Na visão de Maurice Duverger, que elaborou classicamente a distinção, os partidos de massas representariam o futuro e seriam o tipo destinado a prevalecer. Certamente ocorreu, nos enfrentamentos político-eleitorais, a “massificação”, em alguns aspectos, dos partidos de quadros. No entanto, sem falar dos velhos partidos de quadros dos Estados Unidos, fortes em seus próprios termos, o que se observa de mais relevante, nos países europeus, é antes o oposto: a adesão pragmática dos partidos de massas às exigências do jogo eleitoral e a diluição da mensagem inicial de modo a torná-la atraente para o eleitorado como um todo. Daí que designações como “partidos-ônibus” ou “partidos pega-tudo”, que costumamos usar para xingar nossas experiências partidárias, sejam há muito utilizadas na literatura de ciência política para indicar os resultados da trajetória de partidos que com frequência

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foram, originalmente, os partidos “ideológicos” por excelência. Naturalmente, as condições do mundo atual da globalização e da nova dinâmica econômica não fazem senão contribuir para intensificar os mesmos efeitos.

Há um sentido bem claro em que essa evolução parece contrária àquilo que se deveria almejar no processo político-eleitoral, ou seja, a condição em que o eleitor informado e racional deliberaria entre opções eleitorais efetivas que se distinguiriam com nitidez. Apesar de certa visão da interferência supostamente negativa dos partidos com as escolhas do “povo”, não há alternativa real à mediação que os partidos realizam, justamente por serem capazes não apenas de dar voz a interesses diversos, mas especialmente de agregar interesses variados e assim viabilizar, eventualmente, sua influência nas decisões de governo. A contrapartida à nota de realismo ou pragmatismo destacada no parágrafo anterior é o fato de que, bem ou mal, a “marca” ideológica foi um componente relevante do processo em que partidos socialmente sensíveis e capazes de eficácia governativa se constituiram com base em identificações estáveis de parcelas significativas dos eleitores. Como consequência, décadas de políticas de orientação socialdemocrática, embora de feições nacionais variáveis, puderam criar melhores condições até para as perspectivas de resposta de alguma eficácia às dificuldades e aos desafios novos da atualidade. E o avanço assim obtido acabou por ensejar, apesar de vicissitudes várias e embates dramáticos e por vezes trágicos, uma aparelhagem institucional geral capaz de enquadrar com eficiência o processo democrático e lhe assegurar continuidade.

De nosso lado, embora tenhamos arcado com pesados custos institucionais dos enfrentamentos ideológicos ocorridos em plano mundial no século passado, não chegamos a ver a implantação efetiva e mais ampla dos fundamentos sociais da experiência de partidos ideológicos. A exceção parcial é o experimento do PT, com sua precariedade, seu fôlego ao que tudo indica curto e seu caráter, em óptica mundial, temporão. De toda maneira, não há dúvida de que os custos institucionais das deficiências do processo político-partidário brasileiro continuam conosco no presente: um Congresso às turras por temas e personagens miúdos, acossado pela opinião pública; um Executivo a girar em torno do simbolismo populista da figura de Lula e, dadas

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as relações problemáticas com o Congresso, limitado em suas condições de liderança político-administrativa eficiente; um Judiciário a cumprir atarantada e inconsistentemente funções legislativas e a ter agora de inventar os mecanismos de uma fidelidade partidária apoiada na ficção da ideologia – e a contemplar um PFL que hesita entre o “liberal” dos grotões e o “democrata” supostamente dos centros urbanos, um PSDB que escarafuncha a alma e resolve indagar o significado de uma socialdemocracia brasileira, que na verdade nunca chegou a ver com clareza, um PT “socialista”, mas que exaspera o bem-vindo aprendizado de realismo e arrisca desmanchar-se, um PMDB... bem, peemedebista.

Antes experimentar com as leis do que esperar sentado. Mas seria preciso experimentar direito.

Valor Econômico, 15/10/2007

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