Valor145-Política externa, de novo

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  • 7/29/2019 Valor145-Poltica externa, de novo

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    Poltica externa, de novo

    Fbio Wanderley Reis

    De repente, como assinalei aqui algum tempo atrs, temos a poltica

    externa como assunto relevante. As perplexidades que o assunto envolve

    me tm levado a evocar certa sequncia de um desses filmes americanos

    sobre brancos vivendo entre ndios (Um homem chamado cavalo, se no

    me engano), em que o heri e narrador, a propsito da experincia de

    participar com seus hospedeiros, em duro combate, da resistncia ao ataque

    de outra tribo, comenta, no sei mais exatamente em que termos, o

    sentimento produzido pelo fato de tratar-se de defender a famlia e a

    comunidade, no sentido mais concreto e primordial, da ameaa imediata e

    dramtica do grupo estranho o inimigo, sem ambiguidades. Essa situao

    extrema talvez o caso mais simples de poltica externa: trata-se quase

    da mera autodefesa pessoal, envolvendo em grau mnimo a dilatao ou

    expanso do amor prprio de que fala Leopardi em algum de seus escritos.

    Comunidades mais amplas e complexas, incluindo as cidades-Estado

    clssicas da Grcia antiga e a Roma republicana, transformaram esse

    sentimento na virtude cvica do cidado solidrio e disposto, no limite, a

    dar a vida pela coletividade. A j estava presente, porm, a mescla em que

    a coero difusa ou direta exercida pela coletividade se mistura com os

    sentimentos de solidariedade e patriotismo vistos como virtudes do cidado

    individual. O nacionalismo moderno exacerbou, de maneira com

    frequncia trgica, essa mescla e seus efeitos, produzindo guerras em que

    as vidas de milhes foram solidariamente, ou ao menos disciplinadamente

    diante da coero, dadas em nome de desgnios definidos como sendo os da

    coletividade nacional como tal.

    De todo modo, em livro recente sobre a Europa do ps-guerra, Tony

    Judt, como outros autores bem antes dele, aponta na expanso do welfare

    state a motivao de reparao a populaes solidrias das quais havia sido

    civicamente exigido tudo e que passam a receber e a desfrutar

    civilmente (essas no so expresses de Judt) de direitos mais e mais

    amplos. O que leva a pensar no caso do Brasil. Apesar do longo escravismoe da herana elitista, e do papel cumprido pelo Estado quanto a esses traos

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    negativos, tnue entre ns a memria (ou a ideia) de um Estado

    empenhado em cobrar o dever cvico levado ao ponto de dar a vida em

    guerras. Temos claramente o predomnio inconteste de uma concepo

    civil de cidadania, em que o cidado no seno o titular de direitos, e

    mesmo o que possa existir de senso de dever cvico no se aproxima sequer

    remotamente da ideia de morrer em guerra. Concepo que provavelmente

    tem mesmo conexo importante com a crise tica de que tanto falamos na

    atualidade brasileira, com suas manifestaes em diferentes nveis.

    Seja como for, como ver a questo da poltica externa? De repente,

    como disse, tomamos conscincia de que somos internacionalmente

    relevantes, ou assim nos contam, e preciso ter uma poltica externa. De

    que se trata, que objetivos buscar?

    Nas manifestaes desencontradas e confusas do debate a respeito,

    h quem diga, por exemplo, que preciso separar diplomacia de ideologia,

    o que redundaria em separar poltica de ideologia e reclamar tratamento

    burocrtico, presume-se, para a fixao das polticas a serem perseguidas

    em diferentes reas. Ser isso possvel ou desejvel? (Em estudo recente de

    Amaury de Souza sobre a poltica externa brasileira, a questo de decises

    democrticas a respeito dos problemas inteiramente substituda pelo

    levantamento das opinies de uma tecnocrtica comunidade brasileira de

    poltica externa amplamente composta de peritos...) O certo que a

    poltica e a ideologia irrompem inconsistentemente, como fatal, de

    diversos modos: veja-se, a respeito de Bolvia e Petrobrs, a cobrana de

    ateno realista (vale dizer, egostica) aos interesses nacionais (ou se

    trataria ento de solidariedade nacional?); que, contudo, convive com a

    cobrana idealista de ateno para os direitos humanos a propsito de

    Cuba e do Ir... Por outro lado, como acomodar a eventual postura

    afirmativa ou agressiva sobre os direitos humanos com a postura relativa a

    supostos valores como os envolvidos nas ideias de soberania e

    autodeterminao?

    Isso aponta para o miolo enovelado das dificuldades. O respeito aos

    direitos humanos, entendidos amplamente, , sem dvida, um muito bom

    motivo para que se reexaminem os princpios de soberania e

    autodeterminao, como alis vem ocorrendo incipientemente diante de

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    casos de genocdio e limpeza tnica. O reexame se ajusta, alm disso, ao

    problema geral das relaes entre autonomia coletiva e autonomia

    individual, no qual sobressai, se a autonomia um valor, o absurdo de se

    pretender assegurar a autonomia coletiva (de um pas, estado ou entidade

    coletiva qualquer) em circunstncias em que ela se torna a garantia de que

    ser possvel justamente privar os membros individuais da coletividade em

    questo (ou parte deles) da autonomia e dos direitos correspondentes. Mas

    preciso lembrar que a postura supostamente atenta aos direitos humanos

    envolve com frequncia a responsabilizao de uma entidade coletiva como

    tal pelos crimes de seus ditadores: alm do que nos lembram de forma mais

    imediatamente trgica, por exemplo, os milhares de civis iraquianos mortos

    na guerra a Saddam Hussein, a lder civil iraniana Shirin Ebadi, Prmio

    Nobel da Paz, nos advertia h pouco de que sanes mais fortes contra o Ir

    atingiriam a populao iraniana como acontece h muito no caso de

    Cuba.

    Parece claro que a autodeterminao soberana que rege o sistema

    internacional desde Westflia tem de ser qualificada e mudada. O diabo

    que isso requer que sejamos capazes de entronizar com vigor apropriado

    princpios legais transnacionais (de que a OMC talvez o exemplo recente

    de maior relevncia), o que envolve penosa construo institucional (e

    ideolgica...) mundial.

    Valor Econmico, 22/3/2010

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