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V SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
13 a 15 de junho de 2018
GT 11- GÊNERO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: AS DESIGUALDADES E OS
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
O imaginário da beleza feminina: trabalho, consumo, e contraofensiva
artística
Lariane Casagrande Universidade Estadual de Londrina
Rosane Fonseca Martins Universidade Estadual de Londrina
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V SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS GT GÊNERO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: AS DESIGUALDADES E OS
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
O imaginário da beleza feminina: trabalho, consumo, e contraofensiva
artística
Lariane Casagrande1
Rosane Fonseca Martins2
Resumo:
Neste artigo discute-se o papel do imaginário da beleza enquanto um poder específico do
feminino, instrumento de dominação do homem sobre a mulher e do mercado. Adotou-se os
referenciais teóricos de Naomi Wolf, Guilles Lypovetsky, Pierre Bourdieu, Sal Randazzo, e a
análise de obras das artistas Fernanda Magalhães, e Rosana Paulino para a avaliação crítica
dos fenômenos ligados a mulher no mercado de trabalho, a mulher para o sistema monetário,
e a contraofensiva artística do sistema normalizante que rege a aparência feminina. Pode-se
dizer que as imagens de caráter arcaico da beleza feminina, acumuladas através de mitos e
símbolos, foram ajustadas e atualizadas de acordo com as necessidades hegemônicas de cada
período. Com isso, a contraofensiva vigente é a propagação de uma série de imagens híbridas
que não tem preocupação em apresentar soluções inéditas, mas que ironizam e contradizem
estereótipos e o conceito de mística feminina.
Palavras-chaves: Imaginário Social; Beleza Feminina; Consumo; Dominação Masculina; Arte
1 Universidade Estadual de Londrina; Mestranda em comunicação visual; [email protected].
2 Universidade Estadual de Londrina; Professora doutora no departamento de design e no programa de mestrado
em comunicação; [email protected].
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Introdução
É comum que a beleza seja apresentada como um poder específico do feminino, cuja
associação tem bases conscientes e também níveis emotivos mais profundos. Por muito tempo
a beleza feminina foi assimilada à uma emboscada que atemorizava os homens, um mistério
da natureza que precisava ser domado. Ninfas dos rios ou dos bosques, sereias que seduzem
os homens e lhes sugam a vida. A própria igreja católica molda o arquétipo feminino, a partir
dessa mentalidade, na imagem de Eva. A primeira mulher fatal: pecadora, traiçoeira, sedutora,
responsável pela expulsão do paraíso, relegada as dores do parto e afazeres do lar.
Assim, o poder da beleza parece conter desdobramentos que requerem indagações. O
belo feminino equivale a uma posição social de prestígio inevitavelmente efêmera, pois está
destinada a desaparecer com a idade, além de ser subalterna, dependente do homem, e
essencial à economia. Configurando-se em instrumento de dominação do homem sobre a
mulher, dividindo mulheres de mulheres e ferindo cada mulher em si mesma.
Isso porque, naturalmente, quanto mais difundidas técnicas, conselhos, e imagens
estéticas da aparência feminina, menos as mulheres se sentem belas. Assim, mais suscetíveis a
veneração de figuras midiáticas e à compra, menos empáticas com os ―defeitos‖ de outras
mulheres, tanto menos se sentem eminentes, e tanto mais obcecadas pela perfeição estética.
Não é à toa que o Brasil lidera o ranking dos países que mais fazem cirurgia plástica3 no
mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, totalizando 2.524.115 cirurgias em 2017,
com uma maioria esmagadora de pacientes do sexo feminino.
É verdade que a valorização da beleza feminina não interfere mais nas ambições
profissionais, empresariais e políticas das mulheres, mas é igualmente verdade que essa
invariância continua a dar mais peso ao sucesso íntimo que ao sucesso organizacional. Com
isso, vale questionar porque a autoridade e os comportamentos de dominação continuam a
repercutir mais negativamente para o feminino que para o masculino? É legítimo afirmar que
a questão da beleza vai além de uma ―vaidade natural feminina‖?
3 ISAPS. Ranking dos países que mais fazem cirurgias plásticas. Disponível em: <
https://www.isaps.org/wp-content/uploads/2017/10/GlobalStatistics.PressRelease2016-1.pdf> Acesso em
fev. 2018.
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A partir das inquietações supracitadas recorre-se aos referenciais teóricos de Naomi
Wolf, Guilles Lypovetsky, Pierre Bourdieu, Sal Randazzo, e a análise de obras das artistas
Fernanda Magalhães e Rosana Paulino para a avaliação crítica dos fenômenos ligados a
mulher no mercado de trabalho, a mulher para o sistema monetário, e a contraofensiva
artística do sistema normalizante que rege a aparência feminina.
A bela profissional
A insatisfação feminina com relação a própria imagem ganha proporções assustadoras,
e indica, ao contrário do que possa parecer, que não há poder algum na beleza feminina, antes
é esta que detém total domínio sobre as mulheres. Tornando-as consumidoras assíduas,
vulneráveis e cada vez mais adeptas a penosos regimes alimentares, intensos treinos físicos,
cirurgias estéticas, e uma checklist interminável de retirada dos pelos, esmaltação das unhas,
apliques capilares, massagem modeladora, limpeza de pele, hidratação capilar, maquiagem,
entre outros. Isso sem contar o fracasso frequente dos métodos embelezadores que vem
acompanhados de distúrbios alimentares, crises nervosas, desmoralização e depressão:
Desvalorizadas na imagem de si, ansiosas e complexadas, as mulheres
se desviam da combatividade social e política, contentam-se com
empregos subalternos, aceitam salários inferiores aos dos homens,
lançam-se menos do que eles na disputa pela pirâmide social, são
pouco sindicalizadas, respeitam mais os homens que as mulheres,
estão mais preocupadas com seu físico do que com as questões
públicas. O fetichismo da beleza feminina funciona como um vetor de
reprodução de uma mão-de-obra dócil, pouco solidária, pouco
reivindicativa, no momento em que as mulheres começam a se
aproximar das esferas do poder. Meio que permite entravar a marcha
das mulheres rumo ao topo da hierarquia social, o mito da beleza
feminina, em nossas sociedades, seria antes de tudo uma contra-
ofenciva política cujo objetivo maior é a perpetuação da hegemonia
masculina e da submissão feminina (LYPOVETSKY, 2000, p.150).
Bourdieu (2007) esclarece que sentimentos como incompetência, fracasso, ou
indignidade são a chave para um tipo de reconhecimento dos valores dominantes, pois
equivale a adaptação e aceitação da posição. Para ele não existe relação hierárquica que não
tenha parte de sua legitimidade reconhecida pelos sujeitos dominados, assim ―a adaptação a
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uma posição dominada implica uma forma de aceitação da dominação‖ (BOURDIEU, 2007,
p.360).
Em sua obra A distinção crítica social do julgamento, o autor oferece reflexões a
respeito dos efeitos da dominação de classes que também podem ser aplicados a relação de
dominação do homem sobre a mulher. Em pesquisa levantada com operários, para se aferir
uma relação entre escolarização e hierarquia operária (cujo ponto de partida é de quanto
menor conhecimento maior a tendência aos postos mais baixos, e tanto maior acesso ao
conhecimento maior tendência aos postos mais altos), revela-se a inclinação da fração mais
consciente da classe operária para uma submissão ainda maior as normas e valores
dominantes que operários sem qualificação ou trabalhadores braçais. Isso porque para as
perguntas de competência cultural, os trabalhadores braçais e sem qualificação respondiam
sem pudor algum que não se interessavam por arte ou música, enquanto os operários com
qualificação, submissos à legitimidade cultural, davam respostas acompanhadas de confissões
de ignorância.
Isso ilustra que mesmo nos aspectos em que poderia residir um princípio verdadeiro
de contraponto, continuam-se a se exercer os efeitos da dominação cultural. Pode-se dizer que
para a mulher, completamente submissa à legitimidade do imperativo da beleza transvestido
de poder, há um reconhecimento de fracasso, incompetência e indignidade pessoal, ideia de
que mulheres valem menos que homens, ou que só valem o que vale sua aparência, tudo que
legitima a dominação masculina. Como em uma armadilha, quanto menos as mulheres
aderem aos métodos, valores e normas da beleza acabam menos valorizadas, no entanto,
quando adotados os valores dominantes, mais dominadas se encontram.
Igualmente impossível ignorar que a obsessão pela beleza, potencializada pela era da
visualidade, atingiu dimensões estratosféricas e não faz parte apenas das preocupações
femininas. Todavia, ao passo que a busca pelo corpo sarado, pele lisa, e cabelo sedoso e
brilhante é encarada como uma vaidade natural feminina, a mesma preocupação estética em
homens é encarada como um aspecto particular de personalidade de um determinado grupo
masculino, a saber: os metrossexuais. Assim, fica nítido que a questão da beleza ainda seja
crucial e maior geradora de ansiedade para mulheres que para homens.
De acordo com diretrizes de contratação das televisões citadas pela
jurista Suzanne Levitt, os âncoras devem fazer lembrar sua ―imagem
profissional" enquanto é sugerido às suas companheiras de trabalho
que façam lembrar a "elegância profissional". As duas medidas com
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relação à aparência são um lembrete constante de que os homens
valem mais e não precisam se esforçar tanto (WOLF, 1992, p.63).
Apesar de estar a todo vapor, propagando-se pelas revistas, blogs, redes sociais e
publicidade, o culto da beleza já não sufoca mais as aspirações de autonomia das mulheres:
―Ser bela para fazer um ‗bom‘ casamento não constitui mais o arcabouço das ambições
femininas: de agora em diante as mulheres querem ser belas e bem-sucedidas
profissionalmente‖ (LYPOVETSKY, 2000, p.151). Ou seja, as mulheres podem ser bem-
sucedidas, desde que não percam a feminilidade. É justamente essa invariância que ressalta a
necessidade de análise do mito da beleza como um instrumento de dominação dos homens
sobre as mulheres, em nível íntimo e também organizacional, na medida em que continua a
desviar as mulheres da competição por postos mais altos.
Lypovetsky (2000, p152) indica, que por estarem em desacordo com o estereotipo
feminino da graça, sedução e sensibilidade, os cargos que impõe atitudes autoritárias e
agressivas continuam a repercutir mais negativamente para o feminino que para o masculino:
―(...) em situação experimental, o líder de um grupo misto convidado a cooperar em equipe é
sempre, estatisticamente, um homem; por toda parte, nesses casos, as mulheres voltam a
empregar condutas que reproduzem a imagem da ―mulher mulher‖, ocupando posição de
inferioridade‖.
Alguns dos fatores mais curiosos e indicativos da utilização do mito da beleza como
instrumento de dominação dos homens sobre as mulheres estão contidos em sociedades
primitivas, em que o homem, apesar de ter maior força física, temia e adorava a mulher, como
nas culturas pré-helênicas, caracterizadas pelo culto a deusas e matriarcado, com a maior parte
da riqueza e do poder passados de mãe para filha (RANDAZZO, 1997).
Para Randazzo (1997), em um dado momento os aspectos da feminilidade, que ligam a
mulher a indomável natureza de sangrar em ciclos periódicos e ter comportamento ligado a
fases da lua, foi usado contra as próprias mulheres como prova de irracionalidade e
incapacidade de controle do próprio corpo e comportamento. Daí a aurora da perseguição,
condenação de mulheres à fogueira, até a substituição e multiplicação de culturas patriarcais.
Por isso, de acordo com Wolf (1992), ao ser coroada com o poder natural da mística
feminina da beleza, a mulher recebe o ônus e o bônus, podendo ser punida ou promovida,
insultada ou até estuprada de acordo com essa responsabilidade.
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Tudo isso indica que, para além do que o inconsciente coletivo, frequentemente
reatualizado, induz pensar, as mulheres não estão naturalmente presas à mística feminina e a
posição subalterna. A questão da beleza aos moldes vistos hoje se revela como um eficaz
instrumento de perpetuação da dominação masculina e de fabricação de mão de obra dócil e
pouco reivindicativa. Uma pedra no sapato da mulher em seu caminho rumo à hierarquia
social.
A bela consumidora
Como duvidar que a questão da beleza seja crucial e maior geradora de ansiedade para
as mulheres que para os homens? Mas é legítimo afirmar que ela não é apenas produto de uma
―vaidade natural feminina‖?
A imaginação social da beleza induz a noção de mulher fascinante, sedutora e fatal
enquanto uma imagem arquetípica primordial da mulher, sendo a beleza um aspecto
importante da feminilidade e fonte de poder sobre os homens. Musas, fadas e jovens virgens
da literatura são exemplos desta imagem. (RANDAZZO, 1997). Mas a medida que o poder
feminino é encarado como mérito de aspectos estéticos e sexuais, ―dados‖ pela natureza,
instaura-se uma guerra, dos homens contra as mulheres, de mulheres contra mulheres (das
mais velhas com as jovens, das gordas com as magras, brancas e negras, etc.), e de mulheres
consigo mesmas, pela encarnação da beleza enquanto único meio de obtenção completa de
sucesso e base da identidade, que fica, portanto, exposta à aprovação externa. O caos perfeito
para as conduções coercitivas aos produtos e métodos de beleza.
Ao longo da história ocidental é possível que se encontre a utilização da pintura,
poesia, música, escultura, e agora da mídia para transmitir ideias ligadas ao imaginário
popular através de símbolos e signos que chegam até as camadas mais baixas da população.
No entanto, a beleza feminina enquanto uma imagem mítica do que se vê hoje, remonta no
máximo a 1930, como defende Wolf (1992), e coincide com a aurora da capacidade
tecnológica de reproduzir imagens de como deveria ser a aparência feminina, consistindo até
hoje na disseminação de milhares de imagens do ideal em voga.
Nesse sentido, as imagens de caráter arcaico, comuns a todos os povos e tempos,
parecem se acumular através de mitos e símbolos que são ajustados e atualizados de acordo
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com as necessidades de cada grupo detentor do poder em seu tempo. Por isso, hoje o
inconsciente coletivo adquire caráter de consciente manipulação do mercado, bem como das
estruturas patriarcais. ―A economia contemporânea depende neste exato momento da
representação das mulheres dentro dos limites do mito da beleza‖ (WOLF, 1992, p.22).
Em A criação de mitos na publicidade, Randazzo (1997) admite que as mitologias
criadas pelas marcas servem para reafirmar e refletir a imagem do consumidor, através da
identificação com a imagem do tipo de pessoa apresentada usando o produto, ou com a pessoa
que o consumidor poderia se tornar. Esclarecendo que os anúncios para um gênero específico
reforçam os sentimentos de identidade masculina e feminina corroborando com a mitologia
global da marca, e, por consequência, com as condutas da vida social e com sua finalidade
última que é vender.
Por isso, uma análise crítica dos aspectos da feminilidade e da beleza contidas nas
mitologias, pode revelar que os ideais de beleza feminina hoje, ao contrário do que as imagens
contemporâneas e o sistema monetário induzem pensar, não se originam de uma única mulher
ideal platônica, ou são inevitáveis e imutáveis. Wolf (1992) contesta essa ideia citando
aspectos distintos e opostos ao padrão de beleza imposto as mulheres contemporâneas como o
povo Maori que admira uma vulva gorda, e o povo Padung, os seios caídos.
A autora também menciona a contradição entre o paradigma do homem mais velho e
rico com a mulher jovem e bela, e religiões matriarcais que dominaram o Mediterrâneo de
cerca de 25000 a.C. até cerca de 700 a.C, cuja norma era inversa e a única função masculina
era a de servir o ventre divino. Como nas histórias de Ishtar e Tammuz, Vênus e Adônis,
Cibele e Átis, Isis e Osíris. Além do paradoxo dos consagrados concursos de miss e ―os
homens do povo wodaabe que passam horas juntos em complicadas sessões de maquiagem e
competem — usando trajes e pinturas provocantes, requebrando os quadris e fazendo
expressões sedutoras — em concursos de beleza julgados por mulheres‖. (WOLF, 1992,
p.16).
Tudo indica que as releituras de antigas escrituras e mitologias clássicas foram
adaptadas de maneira muito apropriada à cultura ocidental patriarcal. Assim, ao mesmo tempo
que se considera os aspectos de força, coragem, e independência referentes aos arquétipos
masculinos, como características de um herói, a beleza e o misterioso charme feminino são
tomados como perturbadores e hipnóticos para os homens, características de uma vilã cujas
forças advém do sombrio e insondável. E mesmo as interpretações de modelos arquetípicos
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mais comprometidas com aspectos positivos do feminino, que enfatizam valores tais como
sensibilidade, carinho e criatividade, acabam sendo menos importantes que aquelas ligadas a
masculinidade (RANDAZZO, 1997).
Todas essas histórias indicam sempre ter havido um mito da beleza, mas também
indicam que o mito da beleza ao molde em que se tem acesso hoje é muito recente e tem
profunda ligação com o sistema mercadológico e o patriarcado. E nem é preciso ir tão longe,
até pouco tempo as mulheres consideradas ―respeitáveis‖ não pintavam as unhas e lábios de
vermelho, prova de que o mito da beleza não tem ligação alguma com o que se considera
belo, mas sim desejável a cada período. No fim, as qualidades de beleza são dependentes do
que o período considera adequado para as mulheres dentro de uma dada ordem, sendo o
atributo visual indicativo de determinado comportamento. A ordem em voga é criar um
exército de consumidoras insaciáveis.
Rumo a um contramito
Felizmente o senso de que a autonomia feminina, apesar das consideráveis conquistas,
ainda não é suficiente e de que algo ainda entrava o caminho da mulher rumo a hierarquia
social não está dormente. Os indícios que levam a exacerbada reprodutibilidade imagética da
aparência feminina consagram o poder da imagem e certificam uma batalha desleal, mas é
possível que se entre em contato com pontos de luz, entendendo que as imagens são tão
poderosas como abstratas. Nesse sentido, a contraofensiva vigente é a propagação de uma
série de imagens híbridas que não tem preocupação em apresentar soluções inéditas, mas que
ironizam e contradizem estereótipos e conceitos hegemônicos da beleza.
Na série, A representação da mulher gorda nua na fotografia, Fernanda Magalhães
traz à tona a representação e o lugar do corpo da mulher gorda na sociedade. Utilizando-se de
fotografia e recortes de jornais, a artista consegue trazer em uma imagem críticas referentes a
transmutação da ideia de belo para a ditadura da magreza e também da atual associação da
obesidade a ausência de desejo sexual. Na obra intitulada Gorda 9, o recorte fotográfico
central do corpo gordo feminino nu com a cabeça da escultura da Vênus de Willendorf, do
período paleolítico, arquétipo de fertilidade, em uma espécie de pedestal, caracterizado pelo
recorte de jornal com o pedido: ―Ser vista como um ser humano sexual‖, e nas extremidades,
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como em um degrau inferior, metade direita e esquerda do corpo também nu de uma mulher
magra.
Figura1: Gorda 9, da série A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia
Fonte: <http://www.pap.art.br/artista/2806> Acesso em: março 2018
Em sua obra intitulada Gorda 12, Fernanda destaca a ideia da fertilidade feminina
aludindo aos antigos padrões que relacionavam peitos fartos e corpo robusto a beleza e a
saúde, utilizando-se de recortes fotográficos, recorte de jornal, textura e inscrições orgânicas,
a artista apresenta uma mulher gorda, cabelos soltos, batom e unhas vermelhas, que posa para
foto segurando os seios com intervenções de textos nas pernas abertas. Ao lado três recortes
de seios fartos com destaque aos mamilos, inscrições ao redor dos recortes com dizeres: ―o
peito, os peitos, a primeira fonte de alimento; prazer suculento e farto; alimento, tesão e colo;
os peitos da gorda; é o leite, início da via láctea; representam saúde, fertilidade, alimento,
abundância, colo, conforto, fonte da boa vida‖. E no canto inferior esquerdo um pequeno
recorte de jornal com: “Fat So”.
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Figura1: Gorda 12, da série A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia
Fonte: <http://www.pap.art.br/artista/2806> Acesso em: março 2018
Dona de uma produção artística de diversas camadas, Rosana Paulino reflete sobre a
condição da mulher negra na sociedade frente a violência doméstica, o racismo, e os padrões
de beleza. Na série Adão e eva no paraíso brasileiro a artista explora o conceito dos negros
enquanto sombras, sem identidade, relegados a morte anônima, utilizando fotografias antigas
e gravuras da flora brasileira. A obra intitulada Filhas de Eva, traz a imagem de uma escrava
ao lado de sua sombra em meio a plantas que parecem brotar da imagem da costela de um
esqueleto humano - referência a leitura judaico-cristã de que Deus esculpe Eva a partir da
costela de Adão, e também do cemitério dos negros novos – local onde escravos recém-
chegados da África eram enterrados por não resistirem aos maus tratos.
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Figura1: As filhas de Eva, da série Adão e Eva no paraíso brasileiro
Fonte: < http://www.rosanapaulino.com.br/blog/> Acesso em: março 2018
Já na obra intitulada Eva, da mesma série, utilizando-se menos elementos, Rosana
deixa ainda mais claro o sentido que liga a interpretação da obra a crítica do arquétipo
feminino construído pela igreja católica da mulher traiçoeira, pecadora, e indigna. Na
imagem, a fotografia de uma escrava careca de costas, e a sobreposição de folhas que partem
de sua coluna e vão para além do topo da cabeça, e o desenho ampliado da coluna vertebral,
começando dos pés da imagem da negra. Ao lado em simetria, as silhuetas da imagem da
mulher.
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Figura1: Eva, da série Adão e Eva no paraíso brasileiro
Fonte: < http://www.rosanapaulino.com.br/blog/> Acesso em: março 2018
Na série intitulada Para as três graças – alusão ao quadro As três graças, do pintor
renascentista Rafael, Rosana expõe mechas de cabelo artificiais crespos em vidros circulares
com um nome feminino diferente para cada círculo. A instalação pretende discutir o ideal de
beleza eurocêntrico que classifica o cabelo crespo como ruim ou feio, e o título que faz alusão
a figura de três mulheres brancas de cabelos lisos e compridos – representação da beleza
segundo a mitologia grega, reforça a ironia e a crítica ao padrão estético que faz das mulheres
negras as excluídas dentre as excluídas, pois é a única que pode carregar consigo todos os
tipos de desmoralização da estética feminina, a saber: o corpo gordo, velho, e negro. Por isso,
é a que ganha os menores salários e é considerada inferior com relação aos homens, dentre os
negros, e dentre as mulheres.
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Figura1: Sem título, da série Para as três graças
Fonte: < https://fissuraa.wordpress.com/2012/04/08/rosana-paulino/> Acesso em: março 2018
As obras se tornam relevantes não só pela crítica as conduções coercitivas das
mulheres aos métodos embelezadores que vem acompanhados de distúrbios alimentares,
crises nervosas, desmoralização e depressão, o que já bastaria. Elas também esclarecem,
quase que de maneira didática, a profunda relação da questão da beleza feminina com o
imaginário social da vaidade natural feminina e sua respectiva construção de discursos que
procuram reatualizar a imagem da ―mulher mulher‖, tudo isso com sentido irônico e uma
estética híbrida condizente com os sentidos intertextuais que tratam as imagens.
Considerações finais
Ao contrário do que o inconsciente coletivo, frequentemente reatualizado, induz
pensar, não há poder nenhum na beleza feminina, é esta que detém total domínio sobre as
mulheres. E para além do falacioso poder investido na beleza, a própria mitologia escancara a
ideia romântica - pero no mucho, de que os ideais da beleza feminina não se originam de uma
única mulher ideal platônica, são inevitáveis e imutáveis. Isso sem contar os refutamentos
antropológicos e sociobiológicos como o fato de as mulheres competirem entre si através da
"beleza" ser o inverso da forma pela qual a seleção natural afeta outros mamíferos ou dos
órgãos sexuais cor-de-rosa e inflamados das primatas serem encarados como análogos às
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atitudes humanas relacionadas à beleza feminina, quando na verdade essa característica da
fêmea primata é não hierárquica e universal, dentre outros citados por Naomi Wolf.
O fato da mulher não ter sido sempre a representação e encarnação da beleza, é central
para que se esclareça o fenômeno enquanto histórico, mas que se utiliza de mitos e símbolos
que são ajustados e atualizados de acordo com as necessidades hegemônicas vigentes. Isso
explica porque ainda é tão crucial que a mulher esteja em acordo com os estereótipos
femininos da graça, sedução e sensibilidade mesmo alçando voos altos rumo a autonomia e
hierarquia social.
A insistência na ideia de que a mulher está presa a uma vaidade natural que a coage a
imprimir condutas de inferioridade no ambiente profissional e a induz aos mais variados
métodos e produtos embelezadores, revelam uma trama cujos beneficiários são, sem dúvida,
patriarcado e sistema mercadológico.
Como consequência, se tem contato com uma contraofensiva de propagação de
imagens intertextuais, sem preocupação com linha estética nem em apresentar soluções
inéditas, mas que ironiza e contradiz estereótipos e conceitos hegemônicos da beleza de modo
que ultrapassam o campo artístico.
Com isso, a questão da beleza parece só se equilibrar se não for encarada como base
de uma identidade exposta à aprovação externa. De qualquer maneira, a hipótese de solução
caminha para uma adesão dos homens ao sistema estético, e o consequente deslocamento da
dominação masculina sobre a feminina para a dominação total do mercado sobre homens e
mulheres.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A distinção crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre, RS: Zouk, 2007.
LYPOVETSKY, Guilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São
Paulo: Companhia da Letras, 2000.
RANDAZZO, Sal. A criação de mitos na publicidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
Rio de Janeiro: Rocco, 1992.