UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE – UNIVALE FACULDADE...
Transcript of UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE – UNIVALE FACULDADE...
UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE – UNIVALEFACULDADE DE CIÊNCIAS EDUCAÇÃO E LETRAS- FACE
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Emília Silva de Almeida
OS DESAFIOS DO NEGRO E AS CONQUISTAS LEGAIS DOS AFRO-DESCENDENTES, NO BRASIL
Governador Valadares
2
2008EMÍLIA SILVA DE ALMEIDA
OS DESAFIOS DO NEGRO E AS CONQUISTAS LEGAIS DOS AFRO-DESCENDENTES NO BRASIL
Monografia apresentada ao curso de Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio Doce como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Ciências Sociais.
Orientadora: Cristina Salles Caetano
Governador Valadares2008
3
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________Profª. Aparecida Amorim (Convidada)
_______________________________________________________________Profª. Cláudia Gonçalves Pereira (Convidada)
_______________________________________________________________Profª. Cristina Salles Caetano (Orientadora)
4
BANCA EXAMINADORA DE MONOGRAFIA
FICHA DE AVALIAÇÃO
DATA: _____/ _____/_____
CURSO: Ciências Sociais
TÍTULO DO TRABALHO: A luta dos afro-descendentes no Brasil
ALUNO (a): Emília Silva de Almeida
RESULTADO: ( ) Aprovado ( ) Reprovado NOTA FINAL: _____________________
Professor 1: ___________________________________________ NOTA: _______________Comentários:______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Professor 2: _____________________________________________NOTA: _______________Comentários:______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Professor 3: ___________________________________________ NOTA: _______________Comentários:______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus que me deu paciência para suportar todas as
provações pelas quais passei e também à minha professora Cristina Caetano por
ter, através de suas cobranças e orientações, me dado a oportunidade de aprender
um pouco mais sobre o tema pesquisado, bem como sobre escrever um trabalho
científico.
6
RESUMO
Há diversos temas que merecem atenção por parte dos nossos governantes e também por parte da sociedade em geral. Entre esses está a luta dos afros-descendentes no Brasil. Observa-se que um grande número de pessoas não tem conhecimento nem mesmo da existência de tais comunidades dentre os que têm tal conhecimento; poucos fazem alguma coisa em defesa desse povo que é inegavelmente parte da população brasileira e que merece todos os direitos atribuídos aos habitantes dessa nação. A situação dos africanos como mão-de-obra escrava, a participação desse povo na formação étnica e sócio-econômica do Brasil, enfatiza a formação dos quilombos antes da abolição e depois desta. Faz críticas à aplicação dos decretos que beneficiam as comunidades quilombolas, bem como, a forma como foram elaborados, apontando algumas falhas no uso dos vocábulos que deixam margem para mais de um entendimento sobre os direitos historicamente instituídos ao afro-descendentes no Brasil. A pesquisa apresenta opiniões de diversos autores com relação à situação atual das comunidades remanescentes de quilombos, analisa de forma crítica o artigo 68 do Ato das Disposições Contrárias e Transitórias da Constituição Federal de 1988. Da mesma forma analisa o Decreto 3.912 /2001 e discute as legislações implantadas sobre as comunidades quilombolas no decorrer do processo histórico brasileiro, de maneira especial o Decreto 4.887/2003.
Palavras-Chave: comunidade, quilombolas, direitos, necessidade, afro-
descendentes.
7
ABSTRACT
There are several themes that deserve attention on the part of our government and
also on the part of the society in general. Among those is the afro-descending’s fight
in Brazil. It is noticed that the society is, in the general, lay about this theme and that
the governments, experts of the problems faced by this people have not been doing
a lot to help them in their needs. It is observed that a great number of people doesn't
have knowledge about the existence of these communities and among that have
knowledge; few make some thing in defense of that people that is part of the
Brazilian population and that deserves all the rights attributed to the inhabitants of
that nation.
The present work approaches the slavery in Brazil, the situation of the Africans as
slave labor, the participation of that people in the ethnic and socioeconomic formation
of Brazil and emphasizes the formation of the quilombos before the abolition and
after this. It makes critics to the application of the ordinances that benefit the
communities quilombolas, as well as the form they were elaborated, pointing some
fails in the use of the words that leave margin for more than an understanding. The
research presents several authors' opinions regarding the remaining communities of
quilombos, it analyzes critically the article 687 of the Action of the Dispositions
Contrary and Transitory of the Federal constitution of 1988.
In the same way it analyzes the Ordinance 3.912 /2001 and it discusses the
legislations implanted about the communities quilombolas in elapsing of the Brazilian
historical process, in a special way the Ordinance 4.887/2003.
Key-words: Communities. Quilombolas. Rights. Needs. Afro-Descending.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................09
1- OS AFRO-DESCEDENTES ANTES E DEPOIS DA ABOLIÇÃO.....................11
1.1 RESGATANDO A HISTÓRIA DOS AFRO-DESCENDENTES....................... 11
1.2 A Formação dos Quilombos.............................................................................13
1.3 A Abolição da Escravatura e seus reflexos na Sociedade...............................15
1.4 Os Quilombos Atuais e suas dificuldades.........................................................16
2-COMUNIDADES QUILOMBOLAS E O DIREITO À TERRA ONDE VIVEM.......24
2.1 OS DIREITOS ADQUIRIDOS PELAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS.......24
2.2 O Direito à Terra................................................................................................25
2.3 Em Defesa dos Direitos das Comunidades Quilombolas..................................28
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................30
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................32
9
INTRODUÇÃO
Diante de uma sociedade cada vez mais individualista e alheia aos
problemas sociais, foca-se nessa pesquisa as conquistas legais dos afro-
descendentes no Brasil, através disso torna-se necessário, saber quais os direitos
legais que os quilombolas adquiriram, no Brasil, desde a abolição até a atualidade. É
sabido que uma grande parte da população brasileira desconhece a existência de
comunidades remanescentes de quilombos, assim como os problemas que este
povo vem enfrentando desde sua chegada como escravos em nosso país.
O presente trabalho faz um pequeno relato sobre a importância da história
de um povo, de forma específica dos afro-descendentes. Discorre como a história
contribui na compreensão da sociedade e de suas especificidades, inclusive a
influência da forma de pensar do homem em uma determinada época e o que essa
forma de pensar pode refletir em uma época posterior.
A pesquisa objetiva analisar a legislação nacional historicamente instituída
sobre as comunidades quilombolas no Brasil, por meio de reflexões fundamentadas
na pesquisa bibliográfica sobre o tema abordado, a qual reúne instrumentos teóricos
para o entendimento do objeto de estudo, permitindo delimitar as informações
obtidas e desenvolvidas, que atendem à expectativa presente no trabalho.
O primeiro capítulo resgata a situação dos negros no Brasil desde a sua
chegada às terras brasileiras, como escravo até a abolição da escravatura .
O segundo, faz um resgate histórico dos afro-descendentes na perspectiva
dos direitos desde sua vinda para o Brasil, bem como a promulgação em 1850, da
lei de terras no Brasil e a discriminação sofrida pelos negros quanto ao direito às
terras que habitavam. Aborda também as dificuldades enfrentadas pelas
comunidades remanescentes de quilombos e a luta que travam pela posse das
terras e por outros direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Ainda o segundo capítulo aborda a importância de fazer valer os decretos
para efetivamente redemocratizar o país, observando os artigos 215 e 216 da
Constituição Federal do Brasil (1988).
O fator que justifica a opção por esse tema é a situação das comunidades
quilombolas do Brasil, o que levou à construção do segundo capítulo onde o mesmo
se refere aos direitos legais que os amparam, tais como o art. 68 do Ato das
10
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Discute também o
Decreto 3.912/2001 e o 4.887/2003, abordando questões relevantes para as
comunidades quilombolas e faz críticas quanto à elaboração de tais decretos, bem
como às condições de sua aplicação.
11
1- OS AFRO-DESCEDENTES ANTES E DEPOIS DA ABOLIÇÃO
1.1 RESGATANDO A HISTÓRIA DOS AFRO-DESCENDENTES
A melhor forma de se pensar e fazer história é através da memória. Como a
eternidade da memória não é um privilégio dos seres humanos, lança-se mão de
registros e documentos que corroboram a história de um país, bem como de um
conjunto de indivíduos que conservam seus caracteres hereditários, seus hábitos e
costumes. Muitos fatos que comprovam a história de um povo estão na
descendência e na sua cultura.
É através do passado que se explica o presente e se pode compreendê-lo.
Até mesmo a forma de pensar do homem, seus conceitos e pré-conceitos estão
ligados à história destes homens.
Os afro-descendentes são indivíduos que compõem a etnia do povo
brasileiro. Assim como outros grupos, os negros tiveram um papel importante na
composição e formação deste povo. Não se trata apenas de algo lembrado como
“folclore” ou “cultura”. Cotrim (2005) afirma que muito mais que isso, os negros
possuem características e ideologias próprias e que por fazer parte da composição
étnica do nosso povo influenciou-o em suas particularidades, através dos tempos.
Mesmo aqueles que não se dedicaram a estudos a respeito da vida dos
negros no Brasil sabem, através de relatos orais, sobre a vinda dos negros para o
nosso país e sobre a escravização deste povo. Os portugueses, e mais tarde os
holandeses, traziam os negros da África para utilizá-los como mão-de-obra escrava
nos engenhos do nordeste.
Segundo Meltzer (2004) os negros eram vendidos como se fossem
mercadorias, depois de serem adquiridos de tribos africanas, de onde eram feitos
prisioneiros. Meltzer (2004) observa que os negros eram avaliados fisicamente,
observando os dentes, canelas finas e calcanhares altos, pois estes eram quesitos
qualitativos para um escravo, no momento da comercialização. Os africanos eram
transportados para o Brasil em condições desumanas. Muitos morriam antes de
chegarem à colônia e seus corpos eram lançados ao mar.
12
Eram tratados da pior maneira possível, trabalhavam muito e eram
castigados covardemente. Alimentavam-se pouco e não tinham roupas suficientes.
Eram acorrentados e passavam as noites em galpões escuros, úmidos e com pouca
higiene, chamados senzalas. A tortura aos escravos não era apenas física, mas
também psicológica. Meltzer (2004) afirma que os senhores e seus algozes
buscavam destruir os valores do negro e forçá-lo a aceitar a idéia da superioridade
da “raça branca”.
Segundo Nabuco (1988) a escravização era um regime de trabalho fundado
na coação e na alienação do escravo, o qual estava condicionado por suas próprias
características originárias. Os africanos que chegaram ao Brasil não tinham unidade
étnica, pois eram comprados em diferentes regiões da África e dispersados pelo
território brasileiro, em grupos que muitas vezes nem mesmo falavam o mesmo
dialeto.
Os negros eram submetidos a processos de socialização e controle que
lhes incutiam certa passividade. Eram inseridos em um sistema de relações sociais
baseado na autoridade, na violência e na ‘superioridade’ do senhor.
Os escravos eram induzidos a formar uma auto-representação depreciativa. Não se concebiam como sujeitos e estavam incapacitados para elaborar uma consciência crítica que os levasse à negação política da escravidão (NABUCO, 1988, p. 14).
O povo africano, escravizado pelos portugueses, era avaliado de tal forma
que sempre teve preços elevados, quando comparados com os preços das terras,
que eram abundantes no Brasil.
Segundo Florentino (2003), durante todo o período colonial brasileiro, nos
inventários de pessoas falecidas, o lote (plantel) de escravos, mesmo quando em
pequeno número, sempre era avaliado por um valor em mil reis, muito maior que o
valor atribuído às terras.
Sobre esse processo de socialização e enfrentamento das dificuldades
encontradas com o advento do trabalho livre pelos negros Florestan Fernandes diz
que:
13
A sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo (FERNANDES, 1978, p.20).
Ainda segundo Florestan, o resultado desse processo histórico de nascimento da sociedade de classes gerou para os negros a sua exclusão social, uma vez que:
[...] O negro e o mulato foram eliminados das posições que ocupavam no artesanato urbano pré-capitalista ou no comércio de miudezas e de serviços, fortalecendo-se de modo severo a tendência a confiná-los a tarefas ou ocupações brutas, mal retribuídas e degradantes [...]. O impacto da competição com o “estrangeiro” foi aniquilador para o negro e o mulato, porque eles não contavam com elementos: seja para resguardar as posições relativamente vantajosas, já adquiridas; seja para concorrer nas sucessivas redistribuições das oportunidades econômicas entre os grupos étnicos concorrentes [...] (FERNANDES, 1978, p.26).
As condições históricas da inserção do negro na sociedade brasileira são
elementos facilitadores da exclusão política. Escravos na colônia e no império,
sustentáculos do desenvolvimento econômico brasileiro durante décadas, foram
jogados no seio de uma sociedade fundada em bases secularmente racistas.
Libertos, foram preteridos do mercado formal de trabalho em nome de um projeto
elitista de branqueamento do país. Tiveram que disputar com o imigrante europeu
até mesmo as mais modestas oportunidades de trabalho livre, como a de engraxate,
jornaleiro, carregadores de sacas de café e etc. As melhores ocupações ficaram
com o seu concorrente direto.
1.2 A Formação dos Quilombos
Nabuco (1988), observa que os negros viveram um período de grande
sofrimento e devido a isso muitos deles fugiam e iam se agrupando em ‘vilas’. Esses
isolamentos grupais, chamados “quilombos”, foram as maiores reações dos
escravos contra o tratamento desumano que sofriam por parte de seus senhores e
por aqueles ordenados por estes. De acordo com Cotrim (2005), muitas reações
14
contra a escravidão ocorriam apenas no plano individual, não levando em conta a
participação da coletividade frente a escravidão.
Algumas mulheres, por exemplo, provocavam abortos para evitar ter um filho
também escravo; outros cativos praticavam suicídio e outros tantos fugiam sozinhos
ou em grupos. Os fugitivos formavam então grupos isolados da sociedade. Ao longo
dos tempos várias áreas do Brasil foram povoadas por comunidades rurais
constituídas por escravos, que a princípio fugiam das fazendas. Esses povoados
eram excluídos da economia nacional e de outros direitos.
Segundo Osório (2005), a definição de quilombo referente ao período
colonial e definido no ano de 1740 era toda habitação de negros fugidos que
passassem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tivesse ranchos
levantados e nem se achassem pilões nele. Segundo Cotrim (2005), estes
isolamentos grupais permaneceram, entretanto, à margem da sociedade escravista.
Os quilombos não ofereceram riscos mais sérios ao sistema, embora
tenham exercido inegável influência sobre a abolição. Os negros que conseguiam
fugir se refugiavam com outros em igual situação, em locais bem escondidos e
fortificados, no meio das matas.
Estes locais se tornavam comunidades, nas quais os escravos viviam de
acordo com sua cultura africana, plantando e produzindo de forma comum. Segundo
Jacob (1978) na época colonial o Brasil chegou a ter centenas destas comunidades,
espalhadas principalmente pelos atuais estados da Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato
Grosso e Alagoas.
Os escravos queriam a liberdade, a dignidade e o resgate da cultura
africana. Segundo Florentino (2003) os quilombos muitas vezes eram
surpreendentes pela capacidade de organização e resistência. Mesmo sendo
destruídos, reapareciam reorganizando a vida de seus membros e estabelecendo
novos sistemas de defesa. Não era sem motivo que os negros arriscavam suas
vidas e fugiam, e novamente se arriscavam em defesa dos quilombos. Eles viam seu
povo desaparecer a cada dia. Eles sofriam todo tipo de maus tratos e morrer lutando
pela liberdade era uma questão de honra, pois já haviam perdido a terra natal.
De acordo com Florentino (2003) o quilombo mais famoso foi o de Palmares.
Em 1670 este quilombo já abrigava em torno de cinqüenta mil escravos, os quais se
tornaram indesejados pelos habitantes da região, especialmente por pegarem
alimentos às escondidas das plantações vizinhas. Segundo este autor os
15
quilombolas dos Palmares lutaram pela liberdade por aproximadamente cinco anos,
mas foram derrotados em 1716.
1.3 A Abolição da Escravatura e seus Reflexos na Sociedade
A efetivação da abolição da escravatura poderia ter acontecido antes de 13
de maio de 1888. Entretanto, uma das causas da demora da abolição foi a
impotência política, pois os abolicionistas não tinham o apoio dos próprios escravos,
pois estes estavam acomodados diante de tal situação. A massa escrava havia se
convertido em presa dos mecanismos de cooptação e ‘favor’ engendrados pelo
sistema societário da escravização. Esses mecanismos agiam preferencialmente
sobre os negros livres ou alforriados, mas afetavam a todos, indistintamente.
[...] acabavam por decapitar eventuais lideranças, amortecer impulsos de revolta e obter a aceitação da ordem de coisas estabelecidas [...]. Em 1884 no Recife, Nabuco registrou indignado que diversos homens de cor, filhos e netos de escravos, não se atrevem a fazer causa comum com os abolicionistas e muitos são encontrados do lado contrário (NABUCO 1988, p. 15).
Observa-se que um dos primeiros direitos adquiridos pelo negro, além da
carta de alforria e a extinção do tráfico em 1850, fora a ‘lei do ventre livre’,
sancionada pelo gabinete conservador do Visconde do Rio Branco, em vinte e oito
de setembro de 1871. Quando da abolição, percebe-se que, segundo Cotrim (2005),
não houve uma preocupação com a reforma social para que os negros não fossem
inseridos em uma sociedade cheia de preconceitos e desprovidos de instituições
que os defendessem.
Segundo Barcellos (2004), a promulgação da lei de terras no Brasil, em
1850, e a pressão em torno da ‘legalização’ das posses, após o período da
escravidão, desconsideraram os direitos da população negra sobre seu território.
Nessa época, de acordo com Barcellos, os afros-descendentes viviam como
posseiros das terras e foram destituídos da legalização obrigatória de 1850, por um
instrumento jurídico.
16
Barcellos (2004), afirma que a lei de terras no Brasil legalizava as terras
somente daqueles considerados cidadãos brasileiros, portanto os afro-descendentes
não poderiam usufruir desse direito, já que não eram considerados como tal. Houve,
nesse caso, uma dissociação entre propriedades registradas em cartório e as terras
onde viviam os afro-descendentes.
Pode se observar que os quilombos são muito mais que apenas história. Os
negros enfrentaram todo tipo de discriminação e sofrimento físico e psicológico.
Formaram os quilombos como meio de resistência à escravidão. Fizeram e fazem
parte da formação do Brasil em todos os setores. Foram e são parte da sociedade
onde vivemos e estão à mercê da efetivação das leis que garantem seus direitos,
especialmente o direito à terra onde vivem.
1.4 Os Quilombos Atuais e suas Dificuldades
Osório (2005) afirma que atualmente há uma população negra urbana que
vive uma situação de exclusão social e segregação territorial. Encontram-se vivendo
em favelas, sem acesso à terra e aos serviços básicos de infra-estrutura, ou em
subúrbios afastados dos centros econômicos. Os afro-descendentes hoje têm uma
luta diferente. Lutam pela garantia de seus direitos, pois são parte da população
brasileira e são regidos pelas mesmas leis nacionais.
Hoje, os quilombos são definidos como “Tipo de organização que necessita
e luta por direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais” (MOURA, 1993, p.
11). De acordo com o Instituto de Geografia e Estatística – IBGE (2002) a palavra
‘quilombo’ significa ‘povoação’ e foram identificadas setecentos e quarenta e três
comunidades remanescentes desses quilombos, no Brasil.
Ainda de acordo com o IBGE (2002) apenas vinte e nove dessas
comunidades foram tituladas oficialmente pelo governo federal. Estas se localizam
em São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Maranhão, Bahia, Sergipe, Goiás e Amapá.
Em cinco de outubro de 1988, pela primeira vez na história brasileira, a
Constituição Federal reconheceu o direito à terra aos remanescentes das
comunidades quilombolas. Segundo Osório (2005, p. 52), “Aos remanescentes dos
17
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Estas comunidades possuem direitos culturais históricos, assegurados pelos
artigos 215 e 216 da Constituição Federal, que tratam das questões relativas à
preservação dos valores culturais da população negra. Suas terras são
consideradas Território Cultural Nacional e estima-se que dois milhões de pessoas
vivam nelas. A necessidade de garantir esses direitos a um número expressivo de
pessoas certamente é imprescindível no processo de redemocratização do país,
pois a democracia deve ser expressa pela liberdade de ser diferente em uma
sociedade, porém respeitado como qualquer outro cidadão.
Há de se fazer valer os direitos garantidos no artigo 215 e 216 da
Constituição Federal, para que se pratique a democracia. O artigo 215 da
Constituição Federal prevê que
O Estado garantirá a todos, o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. [...] o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (BRASIL, 1988, p.136).
O artigo 216 da Constituição Federal, e ao patrimônio cultural brasileiro,
afirmando que
Os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, á memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem e ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (BRASIL, 1988, p. 137).
Pode-se observar que para que os remanescentes dos quilombos possam
exercer seus direitos culturais garantidos pela Constituição Federal é necessária a
posse da terra onde vivem. De acordo com Osório (2005) a Fundação Cultural
18
Palmares é o órgão que confere às comunidades quilombolas o direito ao título de
posse da terra.
Ainda segundo Osório (2005) os habitantes remanescentes dos quilombos
preservam o meio ambiente e respeitam o local onde vivem, porém, sofre constantes
ameaças de expropriação das terras por inimigos que cobiçam as riquezas e
recursos naturais, fertilidade do solo e qualidade da madeira. Alguns quilombos
transformaram-se em localidades, como é o caso de ‘Ivaporanduva’, próximo ao rio
Ribeira de Iguape, no estado de São Paulo. Segundo Paulino e Ratts (2002) muitos
brasileiros não sabem da existência de áreas ocupadas pelos descendentes de
negros escravos que ousaram fundar as bases de uma nova sociedade.
Um dos maiores problemas enfrentados pelos quilombolas, atualmente, é a
aquisição dos documentos que atestam a posse de suas terras para que possam
produzir e comercializar legalmente seus produtos. São tratados como posseiros ou
sem terras e há ainda outras dificuldades enfrentadas pelos quilombolas com
relação à saúde, transporte e educação, além dos efeitos causados pelo progresso,
como é o que acontece no Vale do Ribeira, pois a construção de barragens no rio
pode obrigá-los a sair de suas terras, onde fixaram sua cultura e religião e onde
estão os seus mortos.
Cantarino (2000) afirma que apesar de as conquistas com relação aos
direitos das comunidades quilombolas estarem registradas legalmente, há uma
lentidão em se fazer cumprir esses direitos. Devido a isso, algumas organizações
têm sido criadas com a finalidade de corroborar esses direitos. Entre estas
organizações estão a Fundação Cultural Palmares (FCP); a Comissão Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais; o Projeto Vida de Negro do Maranhão
(PVN-M); a Associação Brasileira de Antropologia FORD do Brasil (ABA FORD); a
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDDH); o Centro de Estudos Afro-
Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO / UFBA).
De acordo com Osório (2005) os direitos fundamentais são elementos
básicos para a realização do principio da democracia, tendo sido alargada a
dimensão dos direitos e garantias pela inclusão dos direitos sociais como direitos
fundamentais da pessoa humana. Há alguns tratados internacionais assinados e
ratificados pelo Brasil que impõem obrigações que devem ser necessariamente
cumpridas pelo Estado Nacional com relação aos direitos culturais e territoriais das
19
comunidades remanescentes de quilombos, entre eles o direito à moradia
adequada, garantido pela Declaração dos Direitos do Homem.
Todos têm direito a um padrão de vida adequado de saúde e bem-estar para si e para sua família, incluindo alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e os necessários serviços sociais, e o direito à segurança no advento de desemprego, doença, incapacidade, viuvez, velhice ou falta de condições de subsistência em circunstâncias acima de seu controle. (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM, 1948 citado por OSÓRIO, 2005, p. 18).
Como fora registrado por Paulino e Ratts (2002), há diversas comunidades
remanescentes de quilombos que enfrentam vários problemas de saúde, educação
e transporte. Se realmente fizessem valer esses tratados, os quilombolas estariam
vivendo em condições melhores. Ainda segundo a Declaração dos Direitos do
Homem (1948 citado por OSÓRIO 2005, p. 9) afirma-se que:
Deverão ser respeitadas as modalidades de transmissão dos direitos sobre a terra. Os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade... Dever-se-á impedir que pessoas alheias a esses povos possam se aproveitar dos costumes dos mesmos ou do desconhecimento das leis por parte de seus membros para se arrogarem à propriedade, a posse ou o uso das terras a eles pertencentes.
Pode se notar que as comunidades quilombolas remanescentes não são
consultadas quando da alienação das terras onde vivem e não têm o direito de
herança da terra para os filhos. No artigo 25 da Declaração dos Direitos do Homem
(1948 citado por OSÓRIO 2005, p.19) podemos observar a constatação desse
direito:
Os governos deverão zelar para que sejam colocados à disposição dos povos interessados serviços de saúde adequados ou proporcionar a esses povos os meios que lhes permitam organizar e prestar tais serviços sob a sua própria responsabilidade e controle, a fim de que possam gozar do nível máximo possível de saúde física e mental.
20
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais -
PIDESC, (citado por Osório, 2005), reconhece o direito de todos a ter um adequado
padrão de vida, além de uma melhoria contínua em suas condições, e ainda que os
Estados adotem medidas adequadas para a realização deste direito.
Osório (2005) afirma que mesmo sendo criado um Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) para monitorar o cumprimento das
obrigações assumidas no PIDESC, as comunidades quilombolas não são assistidas.
Quando se refere ao direito à moradia, previsto neste pacto, compreende-se
como moradia adequada a segurança legal de posse; a disponibilidade de serviços e
de materiais de construção; facilidades e infra-estrutura; custo acessível;
habitabilidade, acessibilidade, localização e adequação cultural.
Um exemplo da luta dos quilombolas, segundo o Center On Housing Rights
And Evictions - COHRE (citado por Osório, 2005) são as comunidades
remanescentes de quilombos no município de Alcântara. A luta pela terra em
Alcântara é uma história de conflitos permanentes e o único período de paz e
descanso vivido pelas comunidades ocorreu somente antes da instalação do Centro
de Lançamentos Espaciais de Alcântara (CLA).
De acordo com a perícia antropológica realizada por Alfredo Wagner, em
2001, há territorialidades étnicas específicas em Alcântara, conformadas como
terras de Santíssima, Terra de Preto, Terra de Pobreza, Terras de Santa Tereza,
Terra de João Batista e Terras de Nossa Senhora do Livramento. Esses territórios
étnicos foram sendo socialmente construídos e auto-reconhecidos mediante
estabelecimento de formas de uso e ocupação do solo e do território. “Os usos
econômicos, sociais e culturais do território se estabelecem entre territorialidades
específicas, intercomunidades e entre comunidades” (OSORIO, 2005, p. 51).
Ainda de acordo com Osório (2005), atualmente há cerca de três mil famílias
quilombolas em Alcântara. Sua economia é baseada no sistema agrícola familiar,
no uso comum da terra e dos recursos naturais. Praticamente vivem sob condição
de pobreza e exclusão. Os acessos à água, educação e saúde são precários.
Quando da implantação do CLA, em 1982, muitas comunidades de
Alcântara foram deslocadas forçadamente de seus territórios tradicionais e ainda
permanecem sob ameaça de novos deslocamentos, devido à expansão das
21
atividades do centro de lançamentos. Além do CLA, o Maranhão tem sido objeto de
interesse para instalação de grandes projetos agropecuários e industriais.
Osório (2005) afirma que a implantação do CLA foi planejada para ser feita
em quatro fases. Até o momento duas delas (1986 e 1987) foram concretizadas,
resultando na desapropriação de 62 mil hectares e no deslocamento forçado de
1.350 pessoas. Ainda segundo a mesma autora, quando por algum motivo ocorre a
desapropriação e o reassentamento de comunidades quilombolas, a maioria das
pessoas não recebe títulos das terras onde foram reassentadas.
Osório (2005) afirma que os reassentamentos são feitos desconsiderando a
realidade sócio-cultural e ocasionando a perda da forma de subsistência da
população ali instalada. A população reassentada geralmente piora sua condição
econômica, pois perde plantações e outros bens.
De acordo com Osório (2005) os negros tiveram violados o direito à cultura,
o direito a terra, o direito à livre circulação, o direito de proteção às famílias contra
despejos violados, e ainda o direito ao trabalho, à alimentação, o direito de livre
associação e à educação e às garantias legais de proteção pelos governos. Há
outras comunidades quilombolas ameaçadas de deslocamento pela possibilidade de
expansão das atividades do centro de lançamentos e estas não têm sido
beneficiadas por políticas públicas de inclusão social e também não possuem o título
das terras que ocupam.
Segundo o Decreto 4.887/03 (citado por OSÓRIO, 2005), o governo federal
instituiu o Grupo Especial Interministerial – GEI, com o objetivo de propor e
implementar ações para o desenvolvimento sustentável de Alcântara.
Osório (2005) observa que o Movimento dos Atingidos pela Base (MABE) e
a Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão
(ACONERUQ) juntamente com o Center On Housing Rights And Evictions
(COHRE), prefeitura de Alcântara e outros órgãos compõem um grupo que luta pela
organização dos territórios.
Em março de 2005, o Governo federal apresentou às comunidades de quilombos de Alcântara um plano de ação prevendo a execução de cerca de 30 projetos e investimentos para as comunidades quilombolas na área de saúde, direitos humanos, geração de emprego e renda, regularização fundiária, habitação, ação social, educação popular, infra-estrutura e agricultura. (OSÓRIO, 2005, p. 56).
22
Além de Alcântara, outros quilombos vêm sofrendo e lutando pelos direitos e
reivindicando o reconhecimento como remanescentes de quilombos. Segundo
Osório (2005) em Porto Alegre um outro exemplo dessa luta ocorre com grupos que
se fixaram no bairro Três Figueiras, quando este bairro ainda mantinha
características de área rural.
Osório (2005) afirma que a comunidade remanescente desenvolve
atividades de plantio de subsistência e vive hoje em terreno onde há árvores
frutíferas, pés de mandioca, uma pequena horta e residências de madeiras. Esses
grupos, sentindo-se ameaçados pelo adensamento urbano que os envolviam com
uma rapidez cada vez maior e cansados de sucessivas ofertas de compra de suas
terras, buscaram conquistar um título de propriedade que garantisse o direito à
moradia no local em que vivem há várias gerações.
Tentaram consolidar legalmente sua propriedade através de ações de
usucapião que foram indeferidas. A garantia de direito à moradia e permanência em
suas terras é algo necessário para a manutenção de sua própria identidade. Osório
(2005) relata que em 25 de fevereiro de 2000 houve a primeira tentativa de retirada
de um grupo quilombola de Porto Alegre das terras em que vivem desde a década
de 1940.
Segundo o COHRE, em 2002 eles passaram a reivindicar o estatuto de
remanescente de quilombos. Em primeiro de março de 2004 foi publicada a portaria
nº 35 da Fundação Cultural Palmares, tornando público o reconhecimento da
“Comunidade da família Silva” como remanescente das comunidades dos
quilombos, sendo lavrada a Certidão de Posse da terra em 30 de abril de 2004.
Assim como outros grupos remanescentes de quilombos, essa comunidade
conseguiu se salvaguardar frente às sucessivas tentativas de despejo e consolidar o
acesso a terra pelo qual vinham lutando desde 1972, mas diversas outras famílias
vêm sendo ameaçadas de despejo, como a comunidade da Ladeira do Sacapã, no
Rio de Janeiro. Neste quilombo residem onze núcleos familiares, oito deles
administrados por mulheres, somando quarenta e uma pessoas.
Apenas seis não vivem ali desde o nascimento. Segundo informações de
Osório (2005) não há esgoto, rede elétrica segura e nem sequer banheiro com
chuveiro. Osório (2005) declara que embora tenha sido feita a certidão para a
comunidade de Porto Alegre em 2004, no dia dois de junho de 2005 foram
realizadas duas tentativas de cumprir um mandato de imissão de posse, ou seja, de
23
remoção da família Silva de suas terras e entrega das mesmas aos alegados
proprietários, que ganharam a ação na justiça.
De acordo com Osório (2005) houve resistência por parte do grupo e de
seus vizinhos, bem como de deputados, estudantes e representantes de
movimentos sociais. A FCP e o Instituto de Reforma Agrária, Ministérios Públicos
Estadual e Federal e advogados do Movimento Negro Unificado impetraram uma
série de recursos e pedidos de manutenção de posse em defesa dessa comunidade
quilombola, tendo sido o pedido acolhido pelo juiz federal de Porto Alegre, em
decisão tornada pública em onze de julho de 2005.
24
2- COMUNIDADES QUILOMBOLAS E O DIREITO À TERRA ONDE VIVEM
2.1 OS DIREITOS ADQUIRIDOS PELAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS
A situação das comunidades negras que vivem no Brasil é preocupante. Um
povo que compõe a etnia do povo brasileiro, que modelou a sociedade com seu
trabalho escravo e que, portanto, participou ativamente da formação do Brasil, bem
como do seu progresso com sua mão-de-obra até os dias atuais; que estabeleceu
relações de produção fundamentais na estrutura dessa sociedade e direcionou o tipo
de desenvolvimento subseqüente de instituições, grupos e classes, não pode ser
esquecido.
Segundo Gomes (2004) mesmo com a abolição da escravatura no Brasil,
uma série de dispositivos foi criado para manter o aprisionamento dos ex-escravos.
A priori, uma dessas imposições foi a condição de agregado, que continuava
mantendo essas pessoas presas à terra do senhor. Em contrapartida e para escapar
dessa condição de submissão os negros livres procuravam adquirir suas próprias
terras e assim foram surgindo os novos quilombos pós-abolição.
Osório (2005) observa que muitos desses novos quilombos prevalecem até
hoje e a maior luta dessas pessoas é a comprovação legal da posse das terras que
ocupam, pois a comprovação da identidade afro-descendente e a legalidade da
posse das terras onde vivem são quesitos que permitem a essas pessoas num dado
sistema social e serem localizadas por este. Osório (2005), ainda informa que a
maioria desses novos quilombos localiza-se em áreas destituídas de infra-estrutura
básica ou estão afastados dos centros econômicos.
Segundo Osório (2005) quando grupos familiares de negros conseguem
permanecer em áreas urbanas localizadas em regiões valorizadas, são
discriminados pelos vizinhos e tratados como ‘ocupantes’ e ‘invasores’, mesmo que,
curiosamente, ali esteja há décadas. De acordo com Osório (2005), as áreas
urbanas onde residem os negros são percebidas pela sociedade envolvente como
um local onde moram pessoas de origem afro-descendente e que poucas questões
são tão complexas quanto a questão da terra e dos direitos associados à posse e ao
uso vital deste recurso finito. “Aqueles sem proteção ao direito à terra enfrentam
25
insegurança, falta de acesso à renda e aos serviços básicos e sofrem uma ampla
gama de violações de seus direitos humanos” (OSÓRIO, 2005, p. 7).
Além das comunidades quilombolas urbanas há também as rurais. Cantarino
(2000) observa que muitos grupos que se definem como “remanescentes de
quilombos” vivem em territórios separados no alto curso dos rios ou em povoados
situados próximos das matas e praticam um isolamento defensivo diante da entrada
de estranhos em suas comunidades.
O fato de se comportarem dessa forma não serve de base para serem vistos
como isolados sociais ou culturais. Cantarino (2000) enfatiza que a identidade
desses grupos não é definida isoladamente, mas em um contexto integrado à
chamada modernidade e a processos considerados de globalização. Os trabalhos
de mapeamento e identificação das áreas remanescentes de quilombos contam,
para sua implementação, com subsídios governamentais da FCP e do Ministério da
Agricultura.
Cantarino (2000) afirma que a construção de uma rede de cooperação
estreita entre diferentes parceiros deve contribuir decisivamente com informações
importantes sobre as comunidades negras rurais, e que tais informações podem
constituir um banco de dados atualizável de forma constante, que permita orientar
futuras ações conjuntas, no sentido de contemplar os direitos constitucionais das
comunidades negras rurais.
2.2 O Direito à Terra
Osório (2005) enfatiza que o direito à terra é relacionado e interdependente
ao direito à moradia, à propriedade; à alimentação, de ser protegido contra despejos
e deslocamentos arbitrários, à segurança da posse, à restituição de moradia a
propriedade para refugiados ou deslocados internos e direito a um padrão de vida
adequado.
Gama (2005) observa que o direito à propriedade das terras ocupadas pelas
comunidades quilombolas está previsto no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição da República Federativa do Brasil e diz
que é reconhecida a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades
26
quilombolas que estejam ocupando suas terras além de ser dever do Estado emitir-
lhes os títulos respectivos.
Diante do exposto Gama (2005) observa que várias dúvidas surgiram com
relação a quem teria esse direito. O problema se inicia com o uso do termo
‘remanescente’, referido no artigo 68 da Constituição Federal. Segundo Gama
(2005) o mesmo deveria ser compreendido como descendente, pois remanescente
seria a sobra, e sendo este direito entendido como dos remanescentes de
comunidades quilombolas, não atingiria a todas as comunidades. Os negros vêm
sofrendo opressões desde sua chegada no Brasil na condição de escravo até os
dias de hoje.
Devido a essas opressões continuaram a formar comunidades isoladas, por
não possuírem recursos financeiros para iniciar uma nova vida. Os quilombos
formados a partir de então já não lutavam contra a escravidão e a favor da liberdade,
mas sim se defendiam contra uma sociedade impregnada de preconceitos. Dessa
forma, há dois tipos de “remanescentes”, o que demonstra ser o termo
“descendente” mais apropriado. Quando no artigo diz “(...) que estejam ocupando
suas terras (...)” (art. 68 do ADCT), há outro questionamento, haja vista que muitas
comunidades foram desfeitas devido ao crescimento urbano e à pressão econômica.
A expressão de comunidade quilombola descrita no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, mencionado por Gama (2005) remete-se
as comunidades de quilombo como sendo seus moradores ainda constituídos por
escravos fugidos no tempo da escravidão e que subsistiram após a promulgação da
Lei Áurea. Assim, como garantia de propriedade das terras ocupadas pelas
comunidades quilombolas cabe ao Estado apenas declarar a existência dessa
propriedade, que já existia. É dever do Estado atuar ativamente em favor das
comunidades quilombolas instituindo políticas públicas voltadas a essas
comunidades , no intuito de lhes garantir melhores condições de vida.
Gama (2005) observa que para regulamentar a norma prevista no artigo 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da República Federativa do
Brasil, o presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, editou o Decreto número
4.887, de 20 de novembro de 2003. Nele reza que uma certidão deve ser expedida
pela FCP, a qual é requerida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária - INCRA ou por qualquer comunidade que se auto-identifique como
27
descendente de quilombos. A comunidade será inscrita no Cadastro Geral junto à
FCP, para que possam investigar o direito de posse das terras que ocupam.
Pode-se dizer, que este decreto tornou-se um marco na história dos afro-
descendentes no Brasil, pois a Constituição Federal de 1988 torna legítimo em seu
artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) o
reconhecimento das mesmas, como mecanismos para viabilizar esses direitos.
Porém, a realidade se dá de forma divergente, no que tange à sua efetivação.
De acordo com o decreto número 4.887de 20 de novembro 2003; para a
efetivação da posse da terra faz-se um estudo antropológico e histórico-social para
se fazer um levantamento da cadeia dominial até sua origem, resultando o mesmo
em um relatório (Gama, 2005). O título de direito à terra não é dado individualmente,
sendo o quilombo uma propriedade coletiva. A delimitação do território compreende
todos os espaços utilizados para as atividades religiosas, de recreação, reprodução
física, econômica e cultural.
Ainda segundo o decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003 (citado por
GAMA, 2005) todos os quilombos poderão usufruir as terras ocupadas, porém não é
permitido à associação representante das comunidades dispor dessa propriedade,
pois está inserido na cláusula de doação a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a
impenhorabilidade, não podendo ser oferecida como garantia e nem sofrer
constrição judicial. Observa-se também que essas terras não estão sujeitas à
usucapião.
O decreto 4.887 de 20 de novembro 2003 (citado por GAMA, 2005) ressalta
que caso o local ocupado pelos quilombolas incida sobre terras de propriedade dos
Estados, Distrito Federal ou municípios, o INCRA, por meio da Superintendência
Regional, proporá a celebração de convênio para a execução dos procedimentos, e
encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação.
Caso as terras ocupadas estejam sobrepostas às unidades da conservação
constituídas, às áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras
indígenas, o INCRA, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente – IBAMA, a Secretaria
Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI
e a FCP atuarão conjuntamente, adotando medidas que visem a sustentabilidade
das comunidades, conciliando o interesse do Estado.
Segundo o decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003 (citado por GAMA,
2005) se o imóvel habitado for de domínio particular válido e eficaz, será realizada
28
vistoria e avaliação, com o objetivo de adotar os atos necessários à sua
desapropriação, para após titulá-lo em favor da comunidade. Essa desapropriação
tem amparo legal no artigo 216 da Carta Magna (BRASIL, 1988) e ainda caso a
comunidade viva no campo será considerada de interesse social, segundo o Art.2º
inciso III da lei 4.132 de 10 de setembro de 1962 e o decreto 3.912 de 10 de
setembro de 2001, citado também por Gama (2005). O presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso decretou no Art.1º do Decreto 3.912 de 10 de setembro
de 2001 que:
Compete à Fundação Cultural Palmares – FCP iniciar, dar seguimento e concluir o processo administrativo de identificação dos remanescentes das comunidades quilombolas, bem como de reconhecimento, delimitação, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas (BRASIL, 2001).
Assim como os grupos de negros que vivem em áreas urbanas, as
comunidades negras que vivem em áreas rurais também enfrentam problemas
semelhantes e da mesma forma vários órgãos lutam pelos seus direitos.
Um grande aliado nessa luta é o Projeto Quilombo, que segundo Cantarino
(2000) tem como objetivo o acompanhamento dos laudos periciais, a partir das
demandas de comunidades negras rurais que pretendem, em suas ações, a
aplicação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.
O projeto pretende levantar elementos de natureza etnográfica através de
casos considerados paradigmáticos que possibilitem definir critérios para uma
conceituação de quilombo, com o objetivo de instrumentalizar a produção de laudos
antropológicos voltados para a consolidação de direitos constitucionais.
2. 3 Em Defesa dos Direitos das Comunidades Quilombolas
São diversos os trabalhos envolvidos em defesa dos direitos das
comunidades quilombolas. Cantarino (2000) relata que no decorrer de 1997 foi
29
consolidado um canal permanente de debate com os antropólogos que realizam
pesquisas em comunidades negras rurais e desenvolveu-se uma colaboração
estreita com a Comissão Nacional de Articulação das Comunidades Remanescentes
de Quilombos.
Essa comissão tem solicitado aos órgãos governamentais, principalmente
através da FCP, o reconhecimento de dezenas de comunidades negras rurais
mobilizadas pela aplicação do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (BRASIL,1988). Cantarino (2000) ressalta que a referida comissão
elaborou as bases para a execução de um trabalho sobre o Mapeamento e
Sistematização das Áreas Remanescentes de Quilombos, a qual teve o objetivo de
contemplar as reivindicações apresentadas para o reconhecimento de comunidades
negras rurais, indicadas inicialmente em número de cinqüenta.
Segundo Cantarino (2000) a Comissão Nacional de Articulação das
Comunidades Remanescentes de Quilombos propôs, com relação à definição
operacional de quilombo, que fossem considerados o processo de produção
autônomo; a capacidade de organização político-administrativa; o critério ecológico
de preservação dos recursos; a auto-definição dos agentes e da coletividade; o grau
de conflito e antagonismo; as formas de uso comum e a combinação de domínios
privados.
Estas situações podem servir de guia para estudos que objetivem a
formação de processos administrativos para o reconhecimento e identificação das
comunidades negras rurais, de acordo com o preceito constitucional. Além destas
sugestões Cantarino (2000), relata que a comissão indicou também os antropólogos
que têm feito pesquisas e reflexões sobre esta temática para realizarem o trabalho
de Mapeamento e Identificação das Áreas Remanescentes de Quilombos.
Pode se notar que mesmo de forma lenta o governo tem feito algo em
defesa dos afro-descendentes no Brasil. Entretanto é necessária uma divulgação
melhor dessas ações, bem como dos problemas enfrentados pelas comunidades
quilombolas. É de suma importância que a sociedade tenha conhecimento deste
problema, para que haja uma sensibilização e um engajamento na luta desse povo,
num ato de solidariedade humana.
30
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das pontuações elencadas neste trabalho, foi possível entender que,
num país extenso e rico em diversidade étnica, racial e cultural como o Brasil, é um
grande desafio implementar políticas públicas para a promoção do bem-estar social
de comunidades quilombolas, boa parte delas excluídas socialmente ou envolvidas
em pressões econômicas, fundiárias e processos discriminatórios. Para não perder
suas características étnicas é preciso levar em consideração suas histórias, culturas,
saberes tradicionais, estratégias de produção, suas formas de organização social.
Nota-se que o Governo Federal brasileiro tem priorizado as ações de
desenvolvimento social para comunidades quilombolas, mas para que essas se
concretizem é necessário levar em consideração as características sócio-culturais
em respeito à diversidade e à sustentabilidade ambiental. Por isso é necessário
adequar os meios de acesso destas comunidades aos programas e garantir que as
políticas cheguem de fato às comunidades remanescentes de quilombos.
Tentei focar de forma sucinta a importância de algumas questões sobre a
trajetória dos afro-descendentes no Brasil e de forma particular as comunidades
quilombolas. Mostrei trabalhos de diversos autores e seus pontos de vista que no
geral coincidem entre si. Embasado nesses procurei abordar de forma especial a
importância do negro na sociedade brasileira e os direitos dos mesmos.
Pressupõe-se uma reflexão sobre a situação das comunidades quilombolas
atual, bem como chamar a atenção daqueles que podem de alguma forma,
colaborar com a luta dessas comunidades, além de levar ao conhecimento de quem
se interessar, da existência das comunidades remanescentes de quilombos e suas
dificuldades, especialmente com relação ao direito de posse legal das terras onde
vivem.
Deste modo, há uma grande necessidade de apoio da sociedade com
relação à luta das comunidades remanescentes quilombolas. É preciso que se
divulgue a existência dessas comunidades, bem como seus problemas, para que se
possa encontrar mais ‘simpatizantes’ desse grupo, no intuito de se sentirem
apoiados e estimulados, pois quando a luta é de uma nação e não apenas de um
grupo excluído, a certeza de vitória é uma realidade.
31
Os afro-descendentes influenciaram e ainda influenciam na cultura do povo
brasileiro. Na realidade são tão brasileiros quanto qualquer outro registrado como
tal, colaboraram para a formação do nosso país em todos os setores e diretamente
fazem parte da história do Brasil. O afro-descendente está na fisionomia da maioria
dos brasileiros, está na música, na dança, na cultura em geral da nação, na alma de
um povo que clama de diferentes formas a sua liberdade e o gozo de seus direitos
como cidadãos deste país.
Por fim, é importante enfatizar que a pesquisa pretendeu de forma geral,
conscientizar ou pelo menos sensibilizar a sociedade da importância dos afro-
descendentes na formação da sociedade brasileira e das necessidades e problemas
que as comunidades quilombolas remanescentes enfrentam. Dessa forma, esse
trabalho não se encerra por aqui devido à dinâmica da realidade, e ao fato de poder
surgir novas indagações sobre o tema proposto.
32
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANJOS, José Carlos Gomes dos, São Miguel e Rincão dos Martiminianos: Ancestrais negra e direitos territoriais, Porto Alegre. UFRGS 2004.
BARCELOS, Daisy Macedo de, Comunidade Negra de Morro Alto: Historicidade, identidade e territorialidade, Porto Alegre. UFRGS, 2004.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, Senado Federal, 1988.
BRASIL.Decreto nº. 3912 de 10, Setembro de 2001. Dispõe sobre a regulamentação das disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil-03/decreto/2001/D3912.htm> Acesso em: 04 mar. 2008.
BRASIL. Decreto nº. 4887 de 20, Novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação dasterras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4887.htm> Acesso em: 05 mar. 2008.
Comunidades quilombolas no Brasil, IBGE. Disponível em >http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/consciencianegra/quilombos.html< Acesso em: 19 de abr. 2008.
COTRIM, Gilberto – História Global Brasil e Geral,8 ed. Saraiva, São Paulo, 2005.
FLORENTINO, Manolo. Ensaios sobre a escravidão, Minas Gerais. UFMG 2003.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes, São Paulo. Ática, 1978.
GAMA, Alcides Moreira, O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos, disponível em: >http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7396>. Acesso em: 18 de Julho de 2008. JACOB, Gorender, O escravismo colonial, São Paulo. Ática, 1978.
MELTZER, Milton. História ilustrada de escravidão, São Paulo. Ediouro, 2004.
MOURA, Clovis, Quilombos-Resistência ao escravismo. Ática, São Paulo, 1993.
NABUCO, Joaquim – O abolicionismo, Recife ed. Massangana, 1988.
33
CANTARINO, Eliane, (Org.), Quilombos: Identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro, ed. FGV 2002.
OSÓRIO, Letícia Marques (org.) Direito a Moradia e Territórios Étnicos. Porto Alegre ed. Ética 2005.
PAULINO, Sandra e RATTS Alecsandro. Quilombos, disponível em: >www.portalafro.com.br/quiulombo/quilombos.htm< Acesso em: 15 de ago. 2008.