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Universidade Federal da BahiaFaculdade de Direito
Programa de pós-graduação stricto sensuMestrado em Direito Público
HERMENÊUTICA E O FATO COMPREENDIDO COMO JURÍDICO
Wálber Araujo Carneiro
Monografia apresentada como requisito de aprovação na disciplina hermenêutica ministrada pelos Profs. Saulo Casali e Paulo Roberto Lírio Pimenta.
Salvador – BaOutubro de 2004
SUMÁRIO
Introdução 3
2. Os fundamentos da ciência do direito na pós-modernidade 5
3. O paradigma epistemológico da filosofia da linguagem 12
3.1 A viragem lingüística 17
3.2 Fenomenologia hermenêutica 21
3.3 Fenômeno e círculo hermenêutico 23
4. Fato compreendido como jurídico 28
4.1 Fato hipotético, simulado e histórico 30
5. Conclusão 34
6. Bibliografia 36
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1. Introdução
A modernidade trouxe a laicização e com ela a tentativa de dominar o mundo. O
agente do domínio era o homem e o instrumento a razão. A tentativa de racionalizar o
conhecimento e os passos do homem fez com que o resultado criativo fosse também
colocado na condição de objeto e, a partir daí, iniciou-se a busca por uma
metodologia que fosse capaz de dominar essa matéria eminentemente humana.
O desenvolvimento e o sucesso das ciências naturais fizeram com que os estudiosos
do “espírito humano”, em um primeiro momento, utilizassem a metodologia daquelas
ciências para pensar as ciências humanas. Em um segundo momento, viu-se que o
transporte metodológico era inviável, mas que a busca por uma metodologia
adequada seria necessária para que as “ciências do espírito” tivessem o mesmo êxito
das ciências exatas e naturais. O papel de Kant foi fundamental para essa guinada,
contudo, a necessidade de dominar com segurança as coisas humanas e,
conseqüentemente, estabelecer as bases para uma práxis racional ainda vigorava no
projeto. Toda e qualquer metodologia passava pelo elemento segurança, o que
implicava no conhecimento mediante o binômio sujeito e objeto.
O direito, ainda que algo essencialmente humano, era visto como objeto. Ente que
deveria ser identificado e aplicado ao mundo da vida. Essa entificação possibilitava a
análise do mundo jurídico (normas jurídicas) independente do mundo dos fatos
(condutas humanas). Esses fatos para serem jurídicos deveriam ser alvo de uma
operação de subsunção que se dava fora do homem, transformando-os em jurídicos.
Tal metodologia, contudo, nunca trouxe segurança. Apenas camuflava a
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impossibilidade de dominar as coisas humanas no nível pretendido pelo projeto de
modernidade.
Essa atitude metodológica esbarra na crise dos paradigmas da modernidade. Esbarra
em uma ciência sem freios e que não atente à lógica social. O homem que já havia
abandonado Deus, começa a perceber que a ciência e sua racionalidade transcendental
não seria um substituto a altura. Entre o Deus e a ciência o homem se encontrou e
com ele, o elemento exclusivamente humano, demasiado humano: a linguagem. A
linguagem passa a ser o elemento central da metodologia das “ciências do espírito” e,
conseqüentemente, a hermenêutica adquire um papel de destaque.
A proposta do presente trabalho se situa na tentativa de análise e crítica da teoria do
fato jurídico face à superação da estrutura de conhecimento pautada no binômio
sujeito e objeto. Situa-se face a um paradigma onde o conhecimento se dá dentro de
uma cadeia comunicativa; dentro de uma teia lingüística que se confunde com a
sociedade, com a tradição e, conseqüentemente, confere à metodologia jurídica a
possibilidade de se situar entre uma metodologia pseudo-segura, desprovida de
qualquer lógica social, e um jusnaturalismo tendente à arbitrariedade. Em resumo,
pretende analisar o fato jurídico sob a ótica da fenomenologia hermenêutica, método
que impede um estudo compartimentalizado e a transformação do fato jurídico em
uma “coisa em si mesma”.
A juridicidade passa a ser vista como a compreensão do fato, transformando o fato
jurídico em um fato compreendido como jurídico.
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2. Os fundamentos da ciência do direito na pós-modernidade
A proposta de revisão da tradicional teoria do fato jurídico deve ser justificada, afinal,
caso sua superação não trouxesse nenhuma vantagem metodológica ou social, a
construção de uma nova teoria não faria sentido. Em face disto, propõe-se
inicialmente uma análise do momento de crise que vivemos para que, em seguida, o
tema central seja abordado. Cabe, então, uma análise da chamada pós-modernidade
ou transição paradigmática.
Ao contrário do que ocorreu com o projeto de modernidade, a pós-modernidade parte
de uma releitura do projeto de modernidade. A própria designação do signo
demonstra que não é possível pensar em pós-modernidade sem pensar em
modernidade, o que suscita uma dúvida: trata-se de uma transição ou de uma crise?
Crise ou transição, o fato é que o projeto encontra-se desgastado, o que possibilita a
percepção de novas aspirações da sociedade, exigindo novas respostas. O conjunto de
aspirações não pode ser encarado com as mesmas concepções científicas construídas
na modernidade, mesmo porque, foi a ciência moderna transformada em força
produtiva, fato que representou um elemento chave para a crise.
O projeto de modernidade, na visão de Boaventura de Souza Santos (2003, p.75-79),
foi concebido mediante o estabelecimento de dois grandes pilares: o da regulação e o
da emancipação. No pilar da regulação, três princípios o informam: a) o princípio do
Estado, que “consiste na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado”; b) o
princípio do mercado, que “consiste na obrigação política horizontal individualista e
antagônica entre os parceiros de mercado” e c) o princípio da comunidade, que
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“consiste na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e
associações”. O pilar da emancipação é constituído por três racionalidades: a) a
racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura; b) a racionalidade
cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e c) a racionalidade moral-prática
da ética e do direito (SANTOS: 2002, p.48).
A concepção do projeto estabelecia para o seu desenvolvimento um equilíbrio entre
os pilares, ou seja, a regulação na justa medida das práticas emancipatórias. Ocorre
que a gênese do projeto de modernidade se deu antes de o modelo de produção
capitalista assumir a sua consecução (SANTOS: 2002, p. 76-77), restando certo que
tal modelo passou a privilegiar o pilar da regulação, provocando um excesso que veio
culminar na crise paradigmática, além de provocar um desequilíbrio interno a este
pilar, face à hipertrofia do princípio do mercado.
No que toca à construção de um novo paradigma epistemológico, é importante a
compreensão do desenvolvimento da racionalidade cognitivo-instrumental e, em
especial, sua íntima relação com o princípio do mercado presente no pilar da
regulação. Dois elementos, a meu ver, desencadearam a crise e a necessidade de
ruptura dos padrões epistemológicos: a) o fundamento filosófico-cognitivo assumido
pela racionalidade cognitivo-instrumental e b) e a transformação da ciência em força
produtiva.
A modernidade foi construída sobre trevas, não ignorando, evidentemente, alguns
focos de produção de conhecimento percebidos na idade média, além da contribuição
da filosofia grega. O fato é que a compreensão do mundo pré-moderno se dava,
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basicamente, mediante dogmas religiosos e a verificação empírica de sensos comuns.
A concepção da ciência como um instrumento emancipatório, viabilizada pela
laicização, representaria a possibilidade de domínio do universo, da natureza. A
racionalidade representaria a quebra de dogmas religiosos que, presos no tempo,
importava na impossibilidade de desenvolvimento e melhoria de vida.
A postura filosófico-cognitiva utilizada para a compreensão do mundo foi um reflexo
dessa busca pela racionalidade. O mundo a ser conhecido era um mundo fora do
homem, logo, um mundo objeto. A atitude do cientista foi a de estabelecer para o
conhecimento a transformação de tudo em objeto do conhecimento humano,
esquecendo ele que nem tudo a ser conhecido era, de fato, algo que se encontrasse
fora do homem. Ao lado dos elementos naturais, estavam os elementos humanos,
“demasiado humano”. A colocação desses elementos na condição de objeto fez do
humano algo distante. Distante da cultura, distante do senso comum social, distante
da tradição.
A racionalidade científica, a purificação da ciência, a desumanização dos elementos
culturais fizeram da ciência uma prisão ou uma espécie de barco desgovernado que
levava o homem a um destino desconhecido. Nesse barco, além do domínio da
natureza, estava a pretensão de dominar a cultura, logo, o próprio homem. Só que
essa dominação fugiu ao controle e o barco desgovernado da ciência fazia com que o
homem ficasse cada dia mais distante de si mesmo.
Essa crise vem sendo apontada há algum tempo, sendo talvez a gênese dessa quebra
paradigmática. Como aqui nos interessa, em especial, a epistemologia jurídica,
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diversas escolas vêm se revezando na tentativa de capitanear o nosso barco ilusório.
A modernidade que tem como uma de suas marcas a laicização implicou, de início, na
epistemologia jurídica a transição de um jusnaturalismo teológico para um
jusnaturalismo racional. A partir do momento em que o capitalismo assumiu as rédeas
do projeto de modernidade, a despersonificação do poder foi inserida no projeto –
necessidade da burguesia capitalista – e, com ela, a necessidade de se estabelecer
métodos mais seguros. O positivismo assume o mancho de nossa nau e leva o
humano a um lugar ainda mais distante do homem, na medida em que a filosofia é
reduzida à enciclopédia das ciências e as ciências sociais assumem métodos similares
àqueles utilizados pelas ciências naturais, a exemplo da metodologia proposta pela
Escola de Exegese. Mais adiante, Hans Kelsen, Alf Ross e Herbert Hart conferem
novos contornos ao positivismo jurídico. De fato, não mais se tratava de uma
metodologia inviável, mas que ainda se encontrava distante do homem, face à
influência do pensamento metafísico.
Boaventura de Souza Santos (2002, p.64) aponta ao longo do desenvolvimento do
projeto de modernidade alguns centros de resistência, na medida em que verifica uma
vertente que reivindica um estatuto metodológico próprio para as ciências naturais.
Essas concepções representaram um sinal de crise dentro deste paradigma e acabaram
contendo alguns dos componentes verificados na transição paradigmática. No direito,
em épocas diferentes, a Escola Histórica – que tenta aproximar o conhecimento do
direito do homem, do volksgeist, do espírito do povo – o egologismo de Carlos Cóssio
e as teorias tridimensionais, como a de Miguel Reale, são exemplos dessa resistência.
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O segundo fator apontado para a crise epistemológica diz respeito à relação da ciência
com a produção, ou seja, o fato de ela própria ter se transformado em uma força
produtiva. A hipertrofia do princípio do mercado, percebida ao longo do
desenvolvimento do projeto de modernidade pelo capitalismo, proporcionou esse
fenômeno. Na sua gênese, a racionalidade cognitivo instrumental estava voltada para
o domínio do universo, da natureza, mas com um intuito: a emancipação. A qualidade
de força produtiva atraiu a ciência para as garras do mercado e, conseqüentemente,
para o pilar regulatório. É evidente que as conquistas verificadas, principalmente ao
longo do séc. XIX, também representaram ganhos para a sociedade, contudo, o
desenvolvimento desenfreado do conhecimento científico trouxe um novo elemento:
o risco.
Aliada ao mercado, a sociedade perde o controle dos rumos e objetivos da ciência,
passando esta a ter um único objetivo: a busca pelo desenvolvimento. Mas que
desenvolvimento e a que custo? O distanciamento da ciência em relação ao homem,
fez com que ela perdesse completamente uma necessária racionalidade social, tudo
em nome de uma suposta racionalidade científica, quando, na verdade, sempre foi
mercadológica. Ulrich Beck (1986) acentua esse novo cenário em sua obra “La
sociedad del riesgo”, traçando as bases dessa nova sociedade vivida no raiar do séc.
XXI. Segundo ele, o avanço tecnológico e a busca incessante pelo desenvolvimento
trouxeram a modificação da espécie de risco hoje assumida pela sociedade. Trata-se
de um risco “invisível” que funciona como uma “bomba-relógio” no coração do
planeta.
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Para Beck (1986, p.57), se antes havia miséria material, escassez e fome, hoje se
constata a ameaça e destruição das bases naturais da vida, sendo que “a luta contra a
fome e por uma autonomia conforma o escudo de proteção que escondem,
minimizam e, deste modo, potencializam os riscos não perceptíveis, os quais acabam
voltando aos países ricos industrializados através da cadeia de alimentos” (BECK:
1986, p. 45).
Sustenta (BECK: 1986, p. 89) também que:
com a destruição industrial das bases ecológicas e naturais da vida se põe em marcha uma dinâmica social e política de desenvolvimento historicamente sem precedentes e que atualmente não tem sido compreendida, a qual nos obriga a repensar a relação entre natureza e sociedade.
Haveria, portanto, que se modificar o paradigma axiológico sob o qual o
desenvolvimento se sustenta, visando, dessa forma, modificar a noção daquilo que, de
fato, representa desenvolvimento e, com isso, desviar a humanidade de uma
catástrofe.
Nessa linha, Boaventura de Souza Santos sustenta a busca por um novo senso
comum. Uma reaproximação do homem e do conhecimento.
Quando o desejável era impossível, foi entregue a Deus; quando o desejável se tornou possível, foi entregue à ciência; hoje, que muito do possível é indesejável e algum do possível é desejável temos que partir ao meio tanto Deus como a ciência. E no meio, no caroço ou no miolo, encontramo-nos, com ou sem surpresa, a nós próprios. Por essa razão, quer queiramos, quer não, tudo nos está entregue. E porque tudo nos está entregue não se compreende que estejamos cada vez mais interessados na linguagem, (daí, o segundo Wittgenstein), no poder do conhecimento e da argumentação (daí Nietzsche, Foucault e a reemergência da retórica) e finalmente na comunicação humana e na interacção (daí a descoberta do pragmatismo norte-americano pela mão de Habermas). Para cultivar estes novos interesses, imagino uma escola pragmática, a qual consistirá de
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duas classes. Na primeira, chamada consciência do excesso, aprendemos a não desejar tudo que é possível só porque é possível. Na segunda classe, chamada consciência do déficit, aprendemos a desejar também o impossível (2003, p. 106).
Com isso, vê-se que os elementos que provocam a crise exigem respostas simétricas.
A transição paradigmática exigiria, portanto, uma quebra paradigmática também no
campo epistemológico. Esse novo paradigma deve ter a capacidade de construir uma
ciência que se aproxime do homem e da sociedade; que não ignore a diversidade; que
veja no humano algo humano e que, para problemas humanos, construa soluções
humanas. Daí pode surgir uma pergunta simples: o que é exclusivamente humano? A
linguagem. E esta não pode ser reduzida a um objeto em contemplação. A linguagem
não existe fora do homem. Só existe dentro dele e só ele é capaz de percebê-la. Sua
percepção não se dá pela reprodução lógica de sua “essência” na consciência, mas
sim pela interpretação.
Diante dessa constatação, cabe uma melhor análise acerca do fenômeno lingüístico e
de sua caracterização como um novo paradigma epistemológico para o direito. A
modificação do paradigma, como será visto, trará novos contornos à teoria do fato
jurídico, revelando que não há nenhum fato essencialmente jurídico, mas fatos que
compreendemos como jurídicos. Essa compreensão não se dá fora do homem, nem
muito menos no sujeito transcendental, dá-se em um sujeito inserido na cadeia
comunicativa: a própria sociedade.
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3. O paradigma epistemológico da filosofia da linguagem
Acreditava-se – muitos ainda acreditam – que o conhecimento é fruto da apreensão
pela mente humana de uma realidade ôntica ou, ao menos, transcendental. Nesse
sentido, diversas vezes o próprio direito foi enquadrado em classificações ônticas,
uma vez que se ele não existisse de alguma forma, jamais seria captado pela mente
humana, logo, jamais seria conhecido.
Segundo Hans Kelsen (2000, pg. 81-82), “na teoria do conhecimento de Kant, a
ciência jurídica como conhecimento do Direito, assim como todo conhecimento, tem
caráter constitutivo e, por conseguinte, `produz´ o seu objeto na medida em que o
apreende como um todo com sentido.” Em seguida, afirma que as normas jurídicas
são “o material dado à ciência do Direito” e que só através do “conhecimento
ordenador da ciência jurídica se transforma num sistema unitário isento de
contradições.” A inspiração kantiana em Kelsen demonstra que para ele o objeto da
ciência do direito é uma matéria, uma “coisa em si”.
Miguel Reale (1994, pg. 122), buscando depurar o fenomenalismo transcendental de
Kant, afirma que “a palavra fenômeno (phai + noumenon) traduz aquilo que é
apresentado ou se oferece.” Para Kant, seguido por Kelsen, o direito é um fenômeno
que se apresenta à mente daquele que tenta conhecê-lo. Ou seja, o que não se oferece
não pode ser conhecido. Isso demonstra, ainda que de modo transcendental, que o
direito seria algo que existiria antes mesmo da captação da consciência humana. Essa
existência prévia permite traçar uma imagem do direito, da “coisa em si” e,
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hipoteticamente construída na mente humana, toma uma forma lógica que possibilita
o cientista, ao se deparar com um dado fenômeno, concluir se ele é ou não direito.
Noutras palavras, o direito será, necessariamente, alguma coisa: norma, na concepção
kelseniana. Se a “coisa em si” é norma, não pode ser o justo, muito menos a conduta
humana. Tais fenômenos não possuem a imagem e semelhança daquele “retrato”
lógico construído hipoteticamente na consciência do cientista, ou seja, não se
enquadram na estrutura lógico-formal reservada à norma. Esse “retrato” ou estrutura
lógico-formal contemplará as características essenciais do “ente” direito, ou seja, da
norma. Tal inspiração gnoseológica fomentou a construção da essência normativa na
tentativa de identificar o que seria essa “coisa em si”. Dessa tentativa, normalmente,
constatou-se que alguns elementos eram necessários, dentre eles a previsão de um
fato; o estabelecimento de uma prestação decorrente desse fato e a conseqüência
jurídica da não prestação: a sanção.
Ora, se o cientista do direito se deparasse com algo que não possuísse tais elementos,
de duas, uma: ou não estaria diante de uma norma, ou estaria diante de uma norma
imperfeita. Noutras palavras, uma não-norma ou uma norma ineficaz.
Daí a dificuldade de caracterizar o princípio jurídico como norma. Onde estaria a
sanção, a prestação e outros elementos que, para o jurista de inspiração kelseniana,
são essenciais a essa “coisa em si”, a esse fenômeno transcendental? Não foi por
outra razão que Kelsen chamou a norma desprovida de sanção de “imperfeita”.
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A realidade percebida na transição paradigmática exigiu novas concepções acerca dos
princípios. Percebeu-se que eles eram o elo entre uma metódica segura e burra e uma
justiça arbitrária. Essa demanda foi incorporada mediante um paradigma
epistemológico arcaico, ou seja, que estava a serviço de uma promessa da
modernidade: a segurança. Novas demandas não dependem, necessariamente, de
quebras paradigmáticas, contudo, como foi visto, estamos diante de uma demanda da
pós-modernidade, logo, uma infinidade de novas aspirações dependem de novos
paradigmas, inclusive, no plano epistemológico.
Em busca de uma nova construção paradigmática, não é possível negar que a
capacidade de nossa mente compreender as coisas é um dos elementos que interfere
no conhecimento, fato este superado desde os estudos feitos pelas teorias
racionalistas. Um daltônico não conhecerá o arco-íris com a mesma beleza e
plasticidade daquele que possui uma visão normal. Não perceberá, também, com a
mesma profundidade a poesia de Tom Jobim ao descrever o cabelo de Luiza “como
um brilhante que, partindo a luz, explode em sete cores”.
A consciência, do ponto de vista da teoria do conhecimento (CHAUI: 2002, pg. 118),
“é uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de análise, síntese e
representação”. Ou seja, de nada valerá o dado objetivo conferido pela natureza se o
homem não possuir a capacidade de captar e representar na sua mente esse objeto.
Aqui a consciência não surge como um acúmulo de pré-compreensões adquirido
mediante a inserção do ser no mundo-da-linguagem, mas como o elemento
transcendental que viabiliza a fuga do instinto e a percepção do mundo.
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Também não posso negar que o dado conferido pela natureza – aqui identificada
como o conjunto de elementos que existem independentemente da existência do
homem – integra-se ao complexo da atividade cognoscitiva, contribuindo para o
resultado. Contudo, não admitiria que esses elementos são o bastante para o
conhecimento.
A concepção de que o conhecimento representa a reconstrução do objeto em nossa
consciência transcendental marca o chamado paradigma da filosofia da consciência.
As diversas variações dessa tese correspondem a um período onde a ontologia era
confundida com a teoria do conhecimento. Assim, em linhas gerais, real era aquilo
que era reproduzido na consciência de um sujeito transcendental que apreende um
objeto através de estruturas pré-concebidas.
Miguel Reale, representante de uma corrente de resistência à purificação axiológica
do direito, estabelece uma crítica à fonomenologia de Husserl na medida em que a
intencionalidade da consciência não seria bastante para a correta captação do
fenômeno jurídico. Segundo Reale (1994, p. 370)
(...) a análise fenomenológica, em lugar de tomar o sentido da reflexão subjetivo-transcendental, como na doutrina de Husserl, atinge o plano da fenomenologia do espírito, na qual a ralidade jurídica se revela em sua universalidade, como momento da consciência histórica ou, por outras palavras, como forma de atualização da Humanitas na história.
A consciência histórica de Reale é uma feliz tentativa de aliar a consciência
intencional que capta o fenômeno à necessária historicidade do direito, construída a
partir da vivência do homem na sociedade. Para tanto, sustenta o jusfilósofo que
(1994, p. 385):
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Estudo de ordem lógica é legítimo e necessário, mas deve ser complementado com a implicação da realidade social ordenada, sem a qual a norma não tem valor de norma jurídica. Norma e conduta são, por conseguinte, termos que se exigem e se implicam, mas se reduzem um ao outro: - subsistem em implicação recíproca, segundo a que temos denominado “dialética de complementariedade”, que caracteriza e governa todo o processo cultural.
O que Reale quer demonstrar é que o fenômeno a ser captado pelo sujeito que
conhece não contém apenas elementos passíveis de percepção por uma lógica
analítica, mas que, juntamente com ele, chega o valor construído na historicidade.
Contudo, muito embora haja por parte de Reale a preocupação em viabilizar
metodologicamente um direito historicamente condicionado, o valor construído nessa
historicidade permanece como objeto, ou seja, permanece como fenômeno que vai ser
captado pelo “sujeito transcendental”. A teoria tridimensional de Reale é construída,
portanto, sobre o paradigma da filosofia da consciência, mediante a estrutura
cognoscitiva sujeito – objeto. O humano está presente no direito, mas no mesmo
plano ontológico do real, ou seja, dos fatos.
Considerando que a análise fenomenológica do direito, independentemente do
método, ou seja, das diversas formas de fenomenologia que se adote, deve levar em
consideração o elemento humano, social, há de se identificar o método mais
adequado. Noutras palavras, até por força dos paradigmas emergentes na transição
paradigmática, se a metodologia do direito deve levar em consideração o senso
comum de Boaventura de Souza Santos; a lógica social de Ulrich Beck ou a
atualização da Humanitas na história de Reale, resta saber se a estrutura cognoscitiva
sujeito – objeto pode ainda vigorar. Afinal, de duas uma, ou esse elemento humano
chega ao sujeito no fenômeno ou ele é agregado ao real no processo cognitivo. Só que
dois problemas se revelam: na primeira hipótese, resta saber como esse fenômeno se
mostra, afinal, ele não é passível de uma percepção biológica-sensitiva, enquanto que
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na segunda hipótese, restaria saber como esse elemento foi parar no sujeito do
conhecimento. A adoção de uma das hipóteses e a conseqüente solução para o
problema por ela trazido é que norteará o trabalho até que se chegue ao problema
central do fato jurídico.
3.1 A viragem lingüística
Para Heidegger (2002, p. 98) “a suposição, hoje tão corrente, do conhecimento como
uma relação sujeito objeto, [é] tão verdadeira quanto vã”. Segundo ele, “sujeito e
objeto, porém não coincidem com pre-sença e mundo.”
Já Gadamer (2003, p. 378) afirma que o objeto histórico:
Em si, não existe de modo algum. É isso que distingue as ciências do espírito das da natureza. Enquanto o objeto das ciências da natureza pode ser determinado pela idealiter como aquilo que seria conhecido num conhecimento completo da natureza, não faz sentido falarmos num conhecimento completo da história. E é por isso que, em última análise, não podemos falar em um “objeto em si” ao qual se orientaria essa investigação.
Partindo desse novo paradigma, conclui Gadamer (2003, p. 612):
O ser que pode ser compreendido é linguagem. De certo modo, o fenômeno hermenêutico devolve aqui a sua própria universalidade à constituição ontológica do compreendido, na medida em que determina, num sentido universal, como linguagem, e determina sua própria referência ao ente como interpretação. Por isso, não falamos somente de uma linguagem da arte, mas também de uma linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas exercem.
No Brasil, Lenio Streck estabelece uma forte crítica à dogmática jurídica construída
sobre o paradigma da filosofia da consciência e estabelece as bases para uma
hermenêutica jurídica filosófica.
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No paradigma da filosofia da consciência a concepção vigente é de que a linguagem é um instrumento para a designação de entidades independentes desta ou para a transmissão de pensamentos pré-lingüísticos, concebidos sem a intervenção da linguagem. Assim, somente depois de superar esse paradigma, mediante a concepção de que a linguagem tem um papel constitutivo na nossa relação com o mundo é que se pode falar em uma mudança paradigmática, representado pelo rompimento da filosofia da consciência pela filosofia da linguagem. (STRECK: 2001, p. 137)
A linguagem, portanto, será um elemento chave para a solução do nosso problema.
No entanto, não podemos conceber a linguagem como uma “coisa” que se interpõe
entre sujeito e objeto no ato do conhecimento, nem como um veículo de transmissão
de conhecimento no ato comunicativo. A linguagem é muito mais. Ela é o nosso meio
ambiente, o medium no dizer de Gadamer (2003, p. 247). A compreensão das coisas
(e tudo que é compreendido é linguagem) se dá por força de sermos entes imersos
nesse meio ambiente, imersos nesse mundo-da-linguagem. A esse ente que todos nós
somos, imersos “aí” na linguagem, na sua casa, compreendemos como um “ser-aí”,
um “sein-da”, ou seja, um “dasein” (HEIDEGGER: 2002, p. 40).
Seguindo essa linha, o elemento axiológico não possui a mesma natureza ontológica
que o elemento real, fático. A queda de um corpo é algo natural que compreendemos
como um fenômeno físico ao qual denominamos de “gravidade”. Assim, aquilo que
vemos e que faz uma maçã cair é real, está fora do homem e independe da existência
do homem para ser real, contudo, chamar aquilo de gravidade se constitui como um
dado humano conferido ao fenômeno da maçã caindo. A esse fenômeno, não se
agrega apenas esse elemento humano gravidade. Em Nova York, americanos e
turistas de todo o mundo vêem a maçã caindo e não compreendem como sendo a lei
da gravidade, mas a virada do ano. Portanto, a queda da maçã é real, mas só existe
porque compreendemos, porque a nomeamos.
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Essas considerações nos levam ao ponto de partida do pensamento de Heidegger em
Ser e Tempo: a diferença ontológica. Esta representa a distinção ontológica de ente e
ser, mas, ao mesmo tempo, confere ao binômio a qualidade de inseparável na medida
em que um ser é sempre o ser de um ente e o ente só existe para nós se a ele for dado
um ser. Contudo, vale lembrar que, muito embora o ente dependa do ser e o ser
dependa do ente, ontologicamente, são coisas distintas.
Sendo coisas distintas, o ente pode habitar um local diferente do ser. O ente habita um
mundo que vem até nós no fenômeno. Habita um mundo que se mostra, independente
da intencionalidade da consciência. O ser, por sua vez, habita um mundo da
linguagem, ou melhor, constitui um mundo de linguagem. O dasein, esse ser que
todos nós somos, habita esse mundo, afinal, ele é ser e não ente. Só que o dasein,
como qualquer ser, necessita de um ente para se mostrar. Esse ente somos nós. Essa
junção de cabeça, tronco e membro que demora por volta de noves meses na barriga
de sua genitora se formando, tomando a forma que o seu código de DNA pré
determinou. A esse ente – que todos nós somos – também costumamos dar o nome de
homem. Dependendo de quem seja, também o chamamos de pai, amigo, irmão. Além
do dasein, todos eles são formas de ser desse ente que todos nós somos. Para ser pai,
basta fecundar um óvulo que venha se desenvolver e nascer com vida. Para ser
dasein, basta compreender as coisas que estão ao nosso redor.
Desse modo, a historicidade do homem não é algo que chega a um sujeito do
conhecimento no fenômeno, no mundo que se mostra. Representam seres que são
agregados a esse mundo que se mostra. A historicidade e, portanto, o tempo,
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encontra-se na linguagem, ou seja, nos seres que compõem essa linguagem que, por
sinal, é a nossa casa. A casa do dasein. Sendo assim, sendo algo que habita a nossa
casa, temos o tempo como algo muito familiar, algo que se confunde com o ser de tal
modo que dele não pode ser dissociado. O ser é, portanto, um ser necessariamente no
mundo e no tempo. Sempre vivemos em uma casa decorada de uma determinada
forma, composta por determinados móveis. Assim é o mundo da linguagem na qual o
dasein habita, afinal, há sempre um conjunto de seres que a compõem.
Tais conclusões nos levam a algumas outras que, para os fins desse trabalho, são
fundamentais. Conhecer o mundo pressupõe compreendê-lo. Essa compreensão se dá
no momento em que agregamos um ser ao ente que se revela no fenômeno. Esse ente
que se oculta em todos nós está em todos nós porque vivemos em meio a eles
formando um único mundo, o mundo-da-linguagem. Se esse mundo-da-linguagem é
criado por uma cadeia de seres que possuem essa capacidade de compreender e
agregar algo ao mundo, a compreensão dos entes não se dá mediante uma relação
sujeito objeto, mas em uma relação sujeito – sujeito, ou seja, dasein – dasein.
Conhecer os entes que se mostram é, portanto, revelar o ser que essa cadeia
comunicativa a ele atribui. Não há fora do homem um mundo com verdades postas,
ou seja, “coisas em si” mesmas. Talvez, e aqui já se perceberia uma negação ao
pensamento de Heidegger em Ser e Tempo, bem como à universalidade da
hermenêutica gadameriana, haveria verdades no mundo da realidade, mas essa
realidade se aplicaria tão somente ao mundo que independe da existência do homem,
jamais a esse mundo que nós construímos dia-a-dia em um movimento contrário às
leis de Lavoisier. O fato de um elefante não passar pelo buraco de uma agulha pode
até ser uma verdade que independa do homem, porém, o fato de chamarmos aquele
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animal pesado de tromba de elefante e aquele instrumento de costura de agulha
constitui uma verdade que só é identificada pelo homem.
Desse modo, se a compreensão dos entes que se mostram depende de uma operação
de desvelamento do ser e agregação deste a esse ente, a metodologia do conhecimento
se dará por esse movimento. Trata-se de uma fenomenologia, contudo, uma
fenomenologia da compreensão, ou, porque não dizer, de uma fenomenologia
hermenêutica. A esse tópico passaremos agora
3.2 Fenomenologia hermenêutica
Os conceitos de fenômeno e de fenomenologia não diferem apenas por não
designarem a mesma coisa. Diferem, também, por força das diversas concepções
gnosiológicas. Ernildo Stein (2001, p. 140) enumera as cinco principais correntes do
pensamento fenomenológico, quais sejam: a) fenomenologia descritiva; b)
fenomenologia transcendental; c) fenomenologia psicológico-descritiva; d)
fenomenologia dos valores; e, finalmente, e) fenomenologia hermenêutica, onde se
situaria o pensamento e obra de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Por força
do escopo do trabalho, farei comentários apenas sobre a fenomenologia hermenêutica,
mesmo porque, outras vertentes foram indiretamente tratadas na ocasião em que se
estabeleceu a crítica ao paradigma epistemológico da filosofia da consciência.
A fenomenologia hermenêutica é um método. O curioso é que constitui um método
de compreensão que nos leva, justamente, à conclusão de que inexistem métodos para
que se compreenda o mundo-da-linguagem. Por essa razão, talvez estivesse mais
21
próxima de um processo do que propriamente de um método, afinal, o
estabelecimento de um método pressupõe outros possíveis e aceitáveis, o que é
veementemente negado pelos hermeneutas. Se não há outro, a única forma de se
estabelecer a compreensão não será um método, mas um processo inevitável.
Para Stein (2001, p. 187):
Emergindo da explicitação das tarefas da ontologia, a necessidade de uma ontologia fundamental, cujo tema é a analítica existencial do ser-aí , a ser realizada de tal modo que leve ao problema central da questão do sentido do ser, qual será o método a comandar essa empresa? Heidegger responde com o método fenomenológico concretizado na hermenêutica. A analítica do ser-aí será realizada por meio da descrição fenomenológica como explicitação. “O logos da fenomenologia do ser-aí tem o caráter de hermeneuein que anuncia à compreensão do ser, incluso no ser-aí, o sentido autêntico do ser em geral e as estruturas fundamentais de seu próprio ser”.
A fenomenologia hermenêutica se mostra, assim, como um processo (método) no
qual o ser se desvela. Esse desvelamento só é possível se algo se põe àquele que
compreende, àquele que carrega o ser velado, ou seja, quando algo se mostra ao
dasein. Esse algo que se mostra ao dasein é o ente, aquilo que será nomeado,
valorado, estigmatizado, enfim, humanizado. Esse ente, portanto, não entra no dasein,
nem tampouco é reproduzido na consciência do sujeito do conhecimento. Esse ente
apenas toca o sujeito provocando nele a compreensão, o desvelamento do ser. Vê-se,
assim, que não há uma reprodução, mas um bombardeio ôntico no dasein que
provoca uma reação no mundo da linguagem provocando compreensão.
Mas a fenomenologia hermenêutica não se reduz à diferença ontológica entre ente e
ser, mas em outros elementos que daí se desdobra. O primeiro diz respeito ao modo
como o ente se mostra. Ele nunca se mostra sozinho, isolado e descontextualizado. O
se mostrar do ente sempre vem acompanhado de um contexto, de uma situação. O
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ente, portanto, sempre se mostra em meio a um fenômeno que se abre na clareira do
ser. Junto com um ente outros entes se mostram no fenômeno e, muito embora isso
seja algo que, a princípio, dificultaria a compreensão, facilita na medida em que traz
elementos que, associados, provocam o desvelamento do ser como verdade.
Além disso, a diferença ontológica e a complexidade do fenômeno viabilizam e
exigem um ir e vir do ente revelado ao desvelamento do ser. Como essa relação não
se dá em um mesmo ponto – a consciência – mas em pontos diferentes, esse ir e vir
gera uma relação de circularidade, denominada de círculo hermenêutico. A
problemática do fato (que é) jurídico, portanto, exige a depuração desses dois
elementos constitutivos da fenomenologia hermenêutica: fenômeno e círculo
hermenêutico.
3.3 Fenômeno e círculo hermenêutico
“A regra hermenêutica, segundo a qual devemos compreender o todo a partir do
singular e o singular a partir do todo, provém da retórica antiga e foi transferido pela
hermenêutica moderna da arte de falar para a arte de compreender” (GADAMER:
2002, p. 72). Na hermenêutica romântica, a exploração da idéia da circularidade na
interpretação se deu especialmente em Friedrich Schleiemacher, diretamente
influenciado por Friedrich Ast e Friedrich Schlegel.
Para Grondin (1999, p. 120):
A idéia do “Círculo Hermenêutico”, como ela será chamada mais tarde, obtém talvez sua primeira e ao mesmo tempo universal característica: “A lei básica de toda compreensão e conhecimento é a de encontrar, no
23
particular, o espírito do todo e entender o particular através do todo.” Nesta “lei básica”, a hermenêutica posterior irá encontrar antes um problema universal, questionado, de que modo o todo pode ser obtido a partir do particular e se o pressentimento de um todo não irá antes prejudicar a concepção do particular.
A busca pelo processo – ou método – que moveu a construção da fenomenologia
hermenêutica constitui uma resposta às indagações originadas pela premissa da
circularidade. Para a outra indagação, relativa ao pressentimento equivocado de todo,
Gadamer também buscará repostas.
Em Heidegger, o círculo hermenêutico toma uma outra feição. Considerando que a
hermenêutica heideggeriana não está diretamente voltada para a compreensão de
textos, mas para a existência do dasein no mundo, o círculo hermenêutico tomará a
feição de uma hermenêutica existencial. Para ele, o círculo assume o módulo
existencial do dasein, ou seja, cada etapa de experiência vivida. A compreensão do
mundo só é possível porque o ser encontra-se velado no dasein, enquanto que o
desvelamento gera uma compreensão que se completa como um módulo existencial.
Esse módulo existencial que se fecha com a compreensão passa a integrar um mundo
de linguagem transformado e será, necessariamente, utilizado para novas
compreensões, ou seja, para a formação de outro módulo existencial e assim
sucessivamente na circularidade em espiral.
O círculo hermenêutico que estabelece a relação entre particular e todo, bem como o
círculo heideggeriano que aponta a relação da pré-compreensão e a compreensão
existencial não são, contudo, incompatíveis. Em verdade, são feições de um mesmo
círculo que tem com máxima a relação da pré-compreensão com a compreensão.
24
O todo do fenômeno auxilia a compreensão de um ente, na medida em que a simples
presença desse ente auxilia a compreensão do todo. Além disso, o resultado dessa
interação que gerará a compreensão passa a ser agregado a uma pré-compreensão que
se integrará ao mundo do ser, sendo a justa medida de sua finitude e, dentro dela,
proporcionando outras compreensões. Assim, o fechamento de um módulo
existencial, perfeito pela compreensão, só foi possível por força da relação do
particular com o todo e do todo com o particular. O círculo romântico, portanto, se
encontra inserido no círculo existencial e dele é indissociável. O espiral não será
composto por uma linha retilínea, mas por uma linha também em espiral.
Será nessa interação entre círculos que perceberemos em Heidegger a distinção entre
compreensão e interpretação.
Na compreensão, a pre-sença projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para possibilidades, constitutivo da compreensão, é um poder-ser que repercute sobre a pre-sença as possibilidades enquanto aberturas. O projetar da compreensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração. Nela, a compreensão se apropria do que compreende. Na interpretação a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa. A interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento do que compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão. (HEIDEGGER: 2002, p. 204)
A interpretação, portanto, é concebida por Heidegger como uma antecipação, ou seja,
um projeto de todo. A compreensão representa o ponto fulminante e consecução
desse projeto que visava a própria compreensão. Esse projeto de todo, no entanto, na
medida em que é um antecipar-se em busca da compreensão pode se mostrar falho
diante do desvelamento das partes ao longo do processo. É nesse sentido que
Gadamer sustenta a possibilidade de revisão do projeto.
25
Quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto. (GADAMER: 2002, p. 75)
E completa, visando resumir o pensamento heideggeriano sobre o tema:
(...) o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar-se um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unidade de sentido; que a interpretação começa por conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e interpretar. (GADAMER: 2002, p. 75)
Diante dessa interação dos círculos, é possível constatar que o fenômeno enquanto
aquilo que se mostra só poderá ser compreendido em sua complexidade se o dasein se
antecipar na compreensão de seu todo e, partindo da interpretação de elementos
particulares, ir reformulando o projeto até o ponto fulminante da compreensão. Muito
embora o círculo existencial conceba internamente esse ir e vir ao fenômeno, a
compreensão, ainda que provisória, sempre estará presente como compreensão. Não
há espaços, portanto, entre a compreensão antecipada e a compreensão, ou seja, entre
a interpretação e a compreensão, na medida em que se constituem lados de uma
mesma moeda. Quando reformulamos projetos e, conseqüentemente, construímos
outra possibilidade de compreensão, a anterior permanecerá no desain, sendo apenas
substituída. Daí Gadamer afirmar que a subtlitas intelligendi (compreensão), que a
subtilitas explicandi (interpretação) e a subtilitas applicandi (aplicação) “perfazem o
modo de realização da compreensão” (1997, p. 406).
26
Assim, não se interpreta se não for para compreender. Não se compreende sem
aplicar. Não se aplica sem compreender e não se compreende sem interpretar. Isso
explica porque Eros Roberto Grau afirma que não se interpreta o direito por
diletantismo, mas apenas para aplicá-lo ao caso concreto.
Diante dos conceitos até então trabalhados, é possível concluir que a compreensão se
dá no interprete como uma reação provocada no mundo-da-linguagem. Essa
compreensão é a compreensão de um ente que se mostra em um fenômeno. O dasein,
visando a compreensão do todo, estabelece um projeto e, a partir daí, em um ir e vir
ao fenômeno, obtém, mesmo que pela consecução de um projeto modificado no curso
do processo, a compreensão dos entes. Essa descrição representa o processo ou, como
prefere Heidegger, o método fenomenológico-hermenêutico.
Considerando a fenomenologia hermenêutica, cabe-nos a verificação de como esse
processo se dá diante de fatos que acabarão sendo compreendidos como jurídicos.
Será esse o tema do próximo tópico.
27
4. Fato compreendido como jurídico
A teoria do fato jurídico é tema corrente na Teoria Geral do Direito e no Direito Civil.
A TGD por ser responsável pela analítica geral do direito e o Direito Civil por
depender de uma estrutura dogmática voltada para a classificação dos fatos jurídicos.
Ainda que haja divergências doutrinárias sobre o conceito e, principalmente, sobre a
dogmática classificatória, em linhas gerais, o tratamento conferido ao fato jurídico se
mantém dentro de uma linha epistemológica influenciada, como todos os outros
elementos da dogmática analítica, pela filosofia da consciência.
A influência desse paradigma gera uma analítica do fato dissociada do direito, como
se fosse possível pensar no mundo dos fatos (condutas humanas), pensar no mundo
jurídico (normas jurídicas) e, numa terceira etapa, em fatos jurídicos (subsunção do
fato à norma). Essa concepção se mostra coerente dentro de sua incoerência na
medida em que o direito é entificado e, como a peça de um “lego”, pode ser
manipulado pelo homem e encaixado no fato. Ou seja, direito e fato são tidos como
peças de um mesmo jogo, presentes no mesmo plano ontológico e manipulados por
um sujeito que se coloca sozinho diante dessas peças e que, reconstruindo a realidade
em sua consciência, assume o papel do “jogador transcendental”!.
Marcos Bernardes de Melo, em difundida obra sobre o fato jurídico, chega,
visivelmente influenciado pelo pensamento de Pontes de Miranda e Lourival
Vilanova, a algumas conclusões que revelam a entificação do direito e a influência da
filosofia da consciência no direito. Para ele, a norma jurídica adjetiva os fatos do
mundo, conferindo-lhes à condição de fato jurídico (2003, p. 9); somente o fato que
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esteja regulado pela norma jurídica pode ser considerado como um fato jurídico
(2003, p. 9); o mundo jurídico resulta da incidência da norma jurídica sobre os fatos,
jurisdicizando-os (2003, p. 10). Admite que os fatos jurídicos o são pela vontade
humana, ponto de partida para a filosofia da linguagem, porém, acredita que essa
vontade gera normas jurídicas que imputa o caráter jurídico aos fatos (2003, p. 10).
Considerando a fenomenologia hermenêutica, não há o mundo jurídico sem os fatos,
na medida em que os fatos sempre serão considerandos fatos de algum mundo. Para
que o direito se revele no dasein é necessário que o fato se mostre, caso contrário não
haverá nada a ser compreendido. Se o fato se mostrar, será necessariamente
compreendido; e se o for compreendido como jurídico, teremos um fato
compreendido como jurídico. Assim como poderíamos ter um fato compreendido
como doença, como acidente, como tristeza. Não há ente sem ser, do mesmo modo
em que o ser só se revela a partir do ente. O fato pertence ao mundo dos entes.
Se a última afirmação é verdadeira, sendo o fato pertencente ao mundo dos entes, ele
se revelará, necessariamente, no fenômeno. Este se mostrará com toda a sua
complexidade e, somente a partir de um projeto de todo, será possível, dentro da
relação de circularidade, compreendê-lo como jurídico. Alguém quando mata alguém,
é sempre alguém novo, velho, marido, amigo, inimigo, matando alguém novo, velho,
amigo, inimigo. É sempre um alguém com intenção de matar ou sem intenção de
matar. A morte sempre acontece em um dado local ou em outro lugar; à noite ou de
dia; no escuro ou no claro; na frente das crianças ou isolado. Sempre se usa uma arma
ou meio capaz de provocar a morte. O passarinho pode estar cantando ou não. O
cachorro pode ter latido. O latido pode ter assustado o assassino ou não. A noite ou a
29
escuridão pode ter confundido o atirador. Os remédios podem ter provocado uma
redução na capacidade de reflexão do atirador. O vizinho sempre estará em casa ou
fora de casa. Assim, indaga-se: quais desses elementos podem ser compreendidos
como jurídicos? O que interferirá na compreensão da ilicitude ou da quantificação da
pena? Portanto, o fenômeno sempre se mostra complexo ao dasein, logo, somente na
circularidade hermenêutica é que se chegará à compreensão do ente, ou seja, do fato
que é jurídico.
Essa compreensão habita o dasein, logo, não poderá ser encontrada fora dele como a
peça de um jogo que se encontra pronta e acabada antes da aplicação. O fato (ente) é
jurídico (ser) somente porque foi compreendido como tal. Terá a justa medida da
compreensão e será constituído por elementos distintos em cada caso. Muitas vezes,
um passarinho, com seu vôo despretensioso, pode ser tido como determinante para a
redução da pena de um assassino, bastando para tanto, por exemplo, que esse vôo
despretensioso tivesse em sua rota o olho do atirador. Porém, pergunto: haveria no
código penal previsão para redução de pena quando passarinhos atrapalham um
atirador? Não há nada pronto antes do ente se revelar ao dasein no fenômeno.
Nenhuma verdade.
4.1 Fato hipotético, simulado e histórico
Por tudo que até então foi dito, cabe, para finalizar o estudo das implicações da
fenomenologia hermenêutica na teoria do fato jurídico, a diferenciação entre fato
hipotético, histórico e simulado. Se o direito só se desvela com o mostrar-se do ente
na clareira do dasein, o que se dá em meio ao fenômeno, como conceber a
30
compreensão dos textos jurídicos e a compreensão de situações que ainda não
ocorreram?
A resposta para tais indagações exige a verificação desses três conceitos muitas vezes
confundidos. A análise dos textos jurídicos não revela o direito, mas apenas provoca a
compreensão de algo que, uma vez presente na compreensão do dasein, servirá para,
já em um outro módulo existencial, compreender um fenômeno como jurídico. Isso é
possível porque o texto que compreendemos como jurídico traz consigo a descrição
de um fato que devemos compreender como jurídico. Do texto, portanto, ainda que
haja compreensão, não temos a compreensão do direito, apenas nos preparamos para
compreendê-lo. Do texto, não extraímos verdades sobre o direito. Não sabemos onde
a norma começa e onde termina. Somos como um alfaiate portando um corte de
tecido e um esboço de traje, mas sem o modelo para tirar as medidas. Temos, assim,
apenas a descrição de um fato hipotético.
Ainda assim, só conseguimos compreender o texto jurídico porque, na prática,
acabamos construindo uma situação real, ou seja, um caso concreto. Ao ler no caput
do art. 121 do código penal a expressão “matar alguém” sempre seremos levados a
uma dada imagem. Essa imagem não se mostra como “alguém” matando “alguém”,
quer dizer, não surge como uma espécie de sombra em forma de homem matando
uma outra sombra. Sempre se mostra através daquela imagem na qual acreditamos ser
o homicídio na sua forma mais simples. Normalmente, a imagem que nos vem à
cabeça é a de um homem, normalmente alto e robusto, atirando em outro homem.
Normalmente, a arma de fogo surge na imagem provocada pela expressão contida no
31
121 do CP. Ou seja, o texto jurídico tem essa função: a de criar um caso concreto
hipotético.
Outra questão poderia ser posta: para que o direito se revele no desvelamento do ser,
teremos que aguardar o fato ocorrer diante do dasein? Não. O fenômeno que provoca
a compreensão do direito não necessita ter ocorrido, basta que o próprio dasein o
simule. A simulação de um fenômeno traz a complexidade e a concretude necessárias
à revelação do ser direito. Apesar de não ter ocorrido, sugere uma situação onde a
circularidade pode se dar, onde projetos de todo podem ser estabelecidos e onde todas
as possibilidades podem ser testadas. Neste caso, somos um alfaiate com um corte de
tecido, um esboço de traje e um boneco de cera de que fornece todos as medidas do
modelo. Temos um fato simulado.
Recorremo-nos constantemente ao fato simulado sempre na tentativa de viabilizar a
compreensão jurídica e, muitas vezes, não percebemos o nosso ato. Sempre que em
uma discussão sobre a verdade jurídica a ser revelada pelo dasein nos depararmos
com uma observação do tipo: - e se a vítima estivesse desarmada? Ou também: - e se
o assassino tivesse bebido antes de cometer o crime? Sempre em situações nebulosas
nos valemos da simulação do fenômeno.
O fato histórico, por sua vez, também conterá a concretude necessária à compreensão,
visto que se mostrará como fenômeno. A diferença para o simulado é que ele, de fato,
ocorreu. Ou seja, alguém, de fato, matou alguém, por exemplo. Esse fenômeno pode
se mostrar ao dasein de duas formas: a) ou o dasein presencia o fenômeno ao vivo; b)
ou o dasein tem esse fenômeno relatado por alguém.
32
Na verdade, todas as formas de compreensão do direito passa pela idéia de fenômeno
que traz consigo um caso concreto. O dispositivo de lei, muito embora seja em si
mesmo um fenômeno, remete-nos a imagem de um caso concreto. A criação de um
fenômeno concreto em nossa mente é, também, por si só, um fenômeno a ser
compreendido. O relato sobre um determinado acontecimento é fenômeno que
viabiliza a compreensão de um outro fenômeno. Desse modo, Heidegger, diante de tal
peculiaridade, chamou os fenômenos que trazem ao dasein a descrição de outro
fenômeno de fenômeno-índice. Segundo Stein (2001, p. 164):
Heidegger procura distinguir (...) o fenômeno-índice ou o puro fenômeno. O fenômeno índice pode ter quatro sentidos. Primeiro ele é o anúncio daquilo que não se manifesta. Todos os sintomas, símbolos, indicações e apresentações possuem a estrutura fundamental formal do fenômeno-índice nesse primeiro sentido. Em segundo lugar é o anúncio enquanto ele próprio é um fenômeno – aquilo que, na sua manifestação, indica o que não se manifesta. Em terceiro lugar fenômeno-índice pode ser usado para designar o sentido autentico do fenômeno, entendido como manifestação de si. Em quarto lugar, fenômeno-índice pode ter o sentido de puro fenômeno. Isto acontece quando o anuncio fenomenal, que, na manifestação de si, indica o não-manifesto, é alguma coisa que surge ou emana do não manifesto de tal maneira que o não-manifesto é pensado enquanto aquilo que é essencialmente incapaz de manifestar-se.
Além dos dispositivos de lei e do caso concreto simulado, uma outra manifestação
clássica do fenômeno-índice na fenomenologia jurídica é o processo. O processo
enquanto processo é, em si mesmo, um fenômeno. Um fenômeno que é
compreendido e que, portanto, se mostra como ente de um ser. Contudo, o fenômeno
processo é apenas um sinal de um outro fenômeno, aquele que de fato importou para
a sociedade. A instrumentalidade do processo só pode ser concebida nessa acepção,
qual seja, a de fenômeno que uma vez compreendido nos leva à compreensão de um
outro fenômeno. Jamais pode ser compreendida como um instrumento para colar as
pecinhas do lego – o nosso jogo transcendental – como se ele não encarnasse a
33
produção de um novo direito. A atividade do intérprete, por mais banal que seja, é
sempre criativa pelo fato de sempre produzir algo novo. A criatividade que resulta na
compreensão significa a construção de uma nova norma; aquela que passará a integrar
o ordenamento jurídico, conferindo-lhe unidade; que se adequa exclusivamente ao
fato compreendido como jurídico porque, em si, é a sua compreensão.
5. Conclusão
Buscando sintetizar a releitura feita sobre a tradicional teoria do fato jurídico,
ressalta-se nesse tópico as principais conclusões sobre o chamado fato compreendido
como jurídico.
No segundo tópico, verificou-se as implicações da crise do projeto de modernidade na
metodologia das chamadas “ciências do espírito” e, até mesmo, nas ciências naturais.
A valorização do humano faz como que a linguagem se torne um elemento central da
metodologia de qualquer ciência, um vez que é ela o medium onde o homem está
imerso, além de representar a criação humana que não está sujeita às leis de
Lavoisier. Na linguagem, linguagem se cria e se transforma com a criação.
A preocupação com a linguagem representa no pensamento filosófico da
modernidade a chamada viragem lingüística. Esse paradigma passa a influenciar a
metodologia das ciências e sugere um modelo que confere ao direito a necessária
aproximação com o homem e, conseqüentemente, com a sociedade. A construção do
direito sobre o paradigma epistemológico da filosofia da linguagem foi analisada no
terceiro tópico. Nele, buscou-se a depuração do processo fenomenológico
34
hermenêutico, traçando as bases para a análise do fato que seria compreendido como
jurídico. A fenomenologia hermenêutica representa o processo da compreensão na
medida em que nela é identificado o ente que se mostra no fenômeno e o ser que se
desvela na relação de circularidade.
O círculo hermenêutico mereceu destaque, uma vez que a aproximação do ente e o
desvelamento do ser representa a superação de um módulo existencial, ou seja, um
círculo. Essa superação se dá numa intensa relação do particular com o todo: o círculo
hermenêutico romântico.
Traçadas as bases da fenomenologia hermenêutica, passou-se à análise crítica da
teoria do fato jurídico. Considerando que o fato não se mostra ao dasein isolado, mas
necessariamente no fenômeno, será a movimentação de circularidade que determinará
a sua compreensão como jurídico. O jurídico, portanto, deixa de ser um elemento
(ente) que, por uma operação de subsunção, é agregado ao fato, transformando-o em
jurídico. O jurídico representa a linguagem que se cria na compreensão de um fato.
Não há, portanto, um fato jurídico, mas um fato que é compreendido como jurídico.
Esse fato compreendido como jurídico pode se mostrar sobre três modalidades. O fato
hipotético, provocado pelo texto tido como jurídico. O fato simulado, que constitui a
criação livre do homem indo em busca da compreensão jurídica, mas que nunca
ocorreu, sendo fruto da imaginação do dasein. O fato histórico, assim como o
simulado, mostra-se dotado da concretude necessária à compreensão assim como o
simulado, porém, diferentemente deste, o fato histórico ocorreu em algum lugar no
tempo e no espaço.
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O fato histórico compreendido como jurídico pode se mostrar em meio ao próprio
fenômeno que se revela ao dasein, mas pode também se mostrar por um fenômeno
que remete o intérprete a um outro fenômeno. A este tipo de fenômeno, Heidegger
denominou de fenômeno-índice. Na fenomenologia jurídica, a manifestação mais
própria desse tipo de fenômeno é o processo. O processo é, em si mesmo, um
fenômeno, mas que remete descritivamente o dasein a um outro fenômeno. Essa
descrição não pode ser confundida com instrumentalidade no sentido de mecanismo
que viabiliza a aplicação da norma geral ao caso concreto, uma vez que o fato trazido
(descrito) no processo gera a produção de algo novo. Algo que se cria na linguagem.
Assim, constata-se que não há um fato jurídico em si mesmo. Será jurídico aquele
fato que na tradição se mostrar como jurídico. Terá interferência jurídico-
intersubjetiva aquela conduta que o homem considerar como jurídica. Essa
consideração não se dá fora do homem por força de um outro ente identificado como
norma. Dá-se dentro do intérprete, homem inserido no medium linguagem, que
compreende o fato como jurídico, aplicando o direito e proporcionando ao unidade ao
sistema.
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