UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE MESTRADO EM …
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
MESTRADO EM LETRAS
CLÁUDIO ANTÔNIO BATISTA MARRA
O uso das expressões nominais referenciais como recurso de argumentação
em ensaios de Roberto Pompeu de Toledo
São Paulo 2014
M358u Marra, Cláudio Antônio Batista.
O uso das expressões nominais referenciais como recurso de
argumentação em ensaios de Roberto Pompeu de Toledo / Cláudio
Antônio Batista Marra. – 2014.
110 f. : il. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2014.
Referências bibliográficas: f. 96-99.
1. Expressões nominais referenciais. 2. Referenciação. 3.
Argumentação. I. Título.
CDD 070.172
CLÁUDIO ANTÔNIO BATISTA MARRA
O uso das expressões nominais referenciais como recurso de argumentação
em ensaios de Roberto Pompeu de Toledo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.
Prof. Dr. José Gaston Hilgert
São Paulo
2014
CLÁUDIO ANTÔNIO BATISTA MARRA
O uso das expressões nominais referenciais como recurso de argumentação
em ensaios de Roberto Pompeu de Toledo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________ Professor Dr. José Gaston Hilgert
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________________________ Professor Dr. Wilson do Amaral Filho
Universidade Presbiteriana Mackenzie
_______________________________________________________________ Professora Dra. Elisa Guimarães
AGRADECIMENTOS
A
Dra. Elisa Guimarães, dileta professora, que com sua requintada didática me
descortinou novos e desafiadores horizontes;
Dr. José Gaston Hilgert, lúcido orientador;
Sandra, auxiliadora, que comigo celebrou um pacto, minha esposa:
minha gratidão.
RESUMO
Esta dissertação analisa o uso de expressões nominais referenciais em dois
textos do jornalista Roberto Pompeu de Toledo, Dona Gildair e O Mercosul e a Taça
Libertadores, publicados na revista Veja – da qual o autor é Editor Especial – nos
dias 04 de abril e 11 de julho respectivamente, em 2012. A dissertação localiza-se
na área de estudo da Linguística Textual, cuja definição e desenvolvimento são
resumidos no início do trabalho para se explicitar essa localização. O objetivo geral
deste trabalho é estudar o lugar da referenciação no processo de constituição do
texto, particularmente o papel argumentativo das expressões nominais referenciais
desempenhado por elas enquanto exercem as suas funções cognitivo-discursivas. O
objetivo específico desta dissertação é analisar as expressões nominais referenciais
construídas nos textos do corpus adotado, sublinhando-se o modo como elas
servem ao propósito do dizer do autor e ao seu objetivo de argumentar para
convencer e persuadir seus leitores. Para seu embasamento teórico este trabalho se
apoia em concepções de texto e textualidade de autores contemporâneos, bem
como em suas concepções de referenciação – particularmente as de expressões
nominais referenciais – e do seu papel na construção de objetos de discurso e na
argumentação.
Nossa conclusão é que o ensaísta emprega com sucesso os recursos de
argumentação, a despeito de suas afirmações de que convencer outros da verdade
de uma determinada proposição é prática inaceitável em nossos tempos.
PALAVRAS-CHAVE: Expressões nominais referenciais, referenciação, argumentação.
ABSTRACT
This paper analyses the use of nominal referential expressions in two texts
written by journalist Roberto Pompeu de Toledo, Dona Gildair and O Mercosul e a
Taça Libertadores, published in Veja magazine – of which he is Especial Editor – on
April 4th and July 11th 2012, respectively. The dissertation pertains to the Textual
Linguistic area of studies, whose definition and development were summarized in the
beginning of the work in order to clarify such relation. The general purpose of this
paper is to study the key role of referentiation in the process of textual constitution,
particularly the argumentative role the nominal referential expressions play as they
perform their cognitive-discursive functions. The specific purpose of this dissertation
is to analyse the nominal referential expressions built in the texts of the adopted
corpus, by underlying the way they serve the author's purpose of saying and his
argumentation in the attempt to convince and persuade his readers. As its theoretical
framework the paper relies on the conception of text and textuality according to
contemporary authors, as well as their conception of referentiation – particularly of
nominal referential expressions – and its role in the constitution of discourse objects
and in the argumentation.
It is our conclusion that the author successfully uses the resources of
argumentation, though he argues that claiming the truth of a given proposition is an
unacceptable practice today.
KEY WORDS: nominal referential expressions, referentiation, argumentation
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................9
1. A LINGUÍSTICA TEXTUAL E O SEU DESENVOLVIMENTO ...................14
1.1 Linguística Textual .......................................................................14
1.2 O desenvolvimento da Linguística Textual ...................................15
1.2.1 Das análises interfrásticas ao surgimento das gramáticas
textuais e à perspectiva semântica ............................................16
1.2.2 Da abordagem sintático-semântica à pragmática.............17
1.2.3 O cognitivismo e a perspectiva sócio-cognitivo-
interacionista ............................................................................18
2. TEXTO E TEXTUALIDADE........................................................................20
2.1 O princípio da coesão ......................................................................20
2.2 O princípio da coerência ................................................................20
2.3 Os princípios centrados no usuário................................................ 22
3. REFERENCIAÇÃO .................................................................................... 24
3.1 Conceituação .................................................................................24
3.2 Instabilidade e mutabilidade no processo de referenciação.......... 26
3.3 A estabilização das categorias instáveis........................................28
3.4 Estratégias de referenciação ........................................................ 29
4. EXPRESSÕES NOMINAIS REFERENCIAIS............................................. 33
4.1 Conceituação .................................................................................33
4.2 Os movimentos referenciais das expressões nominais .................33
5. FUNÇÕES COGNITIVO-DISCURSIVAS DAS FUNÇÕES NOMINAIS
REFERENCIAIS..............................................................................................38
5.1 Ativação/reativação na memória...................................................... 38
5.2 Encapsulamento (sumarização) e rotulação.................................... 38
5.3 Recategorização de referentes ........................................................40
5.4 Introdução de informações novas ................................................... 41
5.5 Organização macroestrutural .......................................................... 42
5.6 Atualização de conhecimentos por meio de glosas realizadas pelo
uso de um hiperônimo ........................................................................... 42
5.7 Especificação por meio da sequência hiperônimo/ hipônimo .....................43
5.8 Construções de paráfrases definicionais e didáticas ........................................43
5.9 Orientação argumentativa do texto ................................................. 44
5.10 Categorização meta-enunciativa de um ato de enunciação.......... 45
6. ANÁLISE DO CORPUS ............................................................................ 47
6.1 Dona Gildair ...................................................................................47
6.1.1 Identificação das expressões nominais empregadas no
ensaio Dona Gildair, definição de sua estratégia de
referenciação e reconhecimento das funções que
desempenha.............................................................................. 50
6.1.2 Retomada da análise evidenciando de que modo o
desdobramento referencial sustenta o percurso argumentativo
do texto ..................................................................................... 63
6.2 O Mercosul e a Taça Libertadores ................................................ 70
6.2.1 Identificação das expressões nominais empregadas no
ensaio O Mercosul e a Taça Libertadores, definição de sua
estratégia de referenciação e reconhecimento das funções que
desempenha ............................................................................. 72
6.2.2 Retomada da análise evidenciando de que modo o
desdobramento referencial sustenta o percurso argumentativo
do texto ..................................................................................... 83
Considerações finais ................................................................................... 92
Referências bibliográficas ...........................................................................96
ANEXO A – FAC-SÍMILE DE ANCHIETA E NÓBREGA NA REUNIÃO DA
CNBB ......................................................................................................... .100
ANEXO B – ANCHIETA E NÓBREGA NA REUNIÃO DA CNBB..................101
ANEXO C – FAC-SÍMILE DE DONA GILDAIR..............................................104
ANEXO D – FAC-SÍMILE DE CAPA DO ALMANAQUE DO MANCHA
NEGRA E IMAGENS DA LOGOMARCA DA TORCIDA UNIFORMIZADA
MANCHA ALVI-VERDE.................................................................................105
ANEXO E – IMAGEM DE MATER DOLOROSA, DE TIZIANO
VECELLIO.....................................................................................................107
ANEXO F – IMAGEM DE PIETÁ, DE MICHELANGELO
BUONARROTI...............................................................................................108
ANEXO G – FOTOGRAFIA DE CENA DA PEÇA MÃE CORAGEM E SEUS
FILHOS E FOTOGRAFIA DE BERTOLT BRECHT ......................................109
ANEXO H – FAC-SÍMILE DE O MERCOSUL E A TAÇA
LIBERTADORES...........................................................................................110
9
INTRODUÇÃO
O estudo da referenciação como importante recurso linguístico na produção
textual despertou-me particularmente o interesse por sua relação constitutiva com a
elaboração de textos argumentativos. Ocorre que, atualmente, alguns setores da
mídia denunciam como inaceitáveis as tentativas que alguém empreenda no sentido
de convencer outros de sua verdade. Tais tentativas são rejeitadas como impróprias.
A argumentação, com os seus inerentes propósitos de convencimento e persuasão,
parece ter sido classificada nesses setores como politicamente incorreta, como
intolerável expressão de intolerância, devendo ser banida do civilizado convívio
social.
Tal rejeição da argumentação, porém, configura-se inconsistente com o
corrente entendimento de texto como "um evento sociocomunicativo, que ganha
existência dentro de um processo interacional" (KOCH & ELIAS, 2009: 13). É que,
nesse processo interacional, a argumentação se desenvolve como ato linguístico
fundamental, uma vez que, lembra Koch, "a todo e qualquer discurso subjaz uma
ideologia, na expressão mais ampla do termo" (2011: 18). A autoproclamada
objetividade e a neutralidade dos que desdenham das alegações de "verdade", são,
desse modo, apenas mitos, pois, sustenta a autora no mesmo lugar, "o discurso que
se pretende 'neutro', ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua própria
objetividade". Esse discurso pretensamente neutro contém "pelo menos uma
ideologia", poderíamos acrescentar.
Tal rejeição configura-se inconsistente também diante do corrente e
amplamente aceito emprego de recursos de convencimento e persuasão na
propaganda. Como pontua Muraro (2008: 142), o discurso publicitário existe para
convencer, persuadir, e assim precisa ser elaborado. O discurso funciona quando
faz uso de uma concepção que possa ser aceita como certa, como verdadeira.
Tal rejeição, finalmente, configura-se inconsistente diante do corrente – e
inescapável – uso da referenciação por parte da própria mídia como recurso de
argumentação. Os mesmos articulistas e ensaístas que afirmam ser inaceitável a
apresentação de ideologias ou doutrinas como verdadeiras – no que denunciam
10
como um processo de proselitismo – constroem textos marcados por argumentação
fortemente desenvolvida com os recursos da referenciação. Ocorre que, segundo
Crestani, "... todo texto tem, em última instância, o objetivo persuasivo de fazer-fazer
(fazer-crer, fazer-comprar, etc.), persuasão essa relacionada a efeitos de sentido
que se projetam no texto e implicam aceitação ou não da manipulação" (2010: 230,
grifo da autora). Entre os artigos de opinião, por excelência, se encontrarão textos
marcados por argumentação fortemente desenvolvida com os recursos da
referenciação. É que, como define Elias, o artigo de opinião é "um gênero textual no
qual um jornalista ou um colaborador do jornal expõe o seu ponto de vista, com o
intuito de influenciar o leitor e transformar os seus valores por meio de um processo
de argumentação" (2010: 54, nosso grifo).
Esta dissertação postula princípios sócio-interacionistas – isto é, assume com
Koch e Elias, conforme citação acima, que texto é "um evento sociocomunicativo,
que ganha existência dentro de um processo interacional" (2009: 13) –, e
desenvolve-se na área de estudo da Linguística Textual, ocupando-se
particularmente com a produção textual dentro dessa área.
O objetivo geral é estudar o lugar da referenciação no processo de
constituição do texto, particularmente o papel argumentativo que as expressões
nominais referenciais desempenham enquanto exercem as suas funções cognitivo-
discursivas. O objetivo específico desta dissertação é analisar as expressões
nominais referenciais empregadas na construção dos textos que compõem o corpus
adotado. Sublinharemos o modo como tais expressões nominais servem ao
propósito do dizer do seu autor, aos seus objetivos argumentativos, expondo o
contraste entre esses objetivos e sua sugestão apresentada em seu ensaio Anchieta
e Nóbrega na reunião da CNBB (Veja 1.640 – 15.03.2000, Anexo C). Naquele texto,
Roberto Pompeu de Toledo insinua que ninguém deve dedicar-se a convencer outro
de sua verdade particular, uma vez que isso "conduz ao mal-estar". Para Pompeu,
"catequizar é querer impor sua verdade ao outro", mas "os tempos atuais
recomendam respeito ao próximo e tolerância. Isso significa aceitar que o outro tem
suas razões. Vale dizer, outra verdade". Em seus ensaios, porém, particularmente
nos dois incluídos no corpus desta dissertação, Pompeu faz bom uso da
referenciação para convencer seus leitores a respeito da verdade de suas teses e
para persuadi-los a agir de acordo.
11
Constam do corpus dois textos de Roberto Pompeu de Toledo, Dona Gildair e
O Mercosul e a Taça Libertadores, ensaios publicados na revista Veja – da qual o
autor é Editor Especial – nos dias 04 de abril e 11 de julho respectivamente, em
2012. A análise se fará, num primeiro momento, mediante a identificação das
expressões nominais empregadas, seguindo-se em cada caso a definição de sua
estratégia de referenciação e o reconhecimento das funções que desempenham,
cada uma de per si. Em um segundo momento, a análise será retomada
evidenciando de que modo o desdobramento referencial sustenta o percurso
argumentativo do texto.
A razão para a escolha do estudo da referenciação foi sua relação constitutiva
com a elaboração de textos argumentativos, como dissemos acima. A escolha do
ensaio se deu por tratar-se de um artigo opinativo, gênero em que o ensaísta
elabora o seu ponto de vista precisamente com o fim de convencer e persuadir seu
leitor. Consideramos de grande importância o papel das formas nominais, que
resultam de escolhas feitas pelo produtor ao referir-se a seres, fatos, fenômenos,
eventos, atividades ou estado de coisas com o propósito de levar a cabo o seu
projeto de comunicação.
A partir dessa perspectiva, foi assumido por este trabalho que, como propõe
Charaudeau,
... comunicar, informar, tudo é escolha. Não somente escolha de
conteúdos a transmitir, não somente escolha das formas adequadas
para estar de acordo com as normas do bem falar e ter clareza, mas
escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro, isto é, no fim
das contas, escolha de estratégias discursivas (2006: 39).
Foi também adotada a hipótese de Elias, segundo a qual,
... se não há correspondência entre linguagem e mundo, haja vista a multiplicidade de formas por meio das quais os referentes podem ser constituídos e reconstituídos no quadro contextual da atividade discursiva, então as escolhas realizadas pelos sujeitos enunciadores revelam não somente do que esse sujeitos têm conhecimento (e seus interlocutores), mas também – e principalmente – como por meio das formas referenciais descrevem as coisas que existem e acontecem no mundo, deixando entrever nessa descrição um posicionamento avaliativo com propósito argumentativo (2010: 55, nosso grifo).
12
A razão para a escolha de textos de Roberto Pompeu de Toledo como objeto
de análise deveu-se à sua denúncia, em texto citado acima, de iniciativas
catequizadoras, tentativas empreendidas por quem quer que seja de convencer
outros de sua verdade, mesmo enquanto esse autor se dedica em seus ensaios a
convencer seus leitores de suas posições.
Para alcançar o objetivo geral estabelecido, a dissertação inicia com um
capítulo sobre a Linguística Textual e o seu desenvolvimento, expondo a localização
desta dissertação nessa área do conhecimento, desse modo contextualizando-a. As
apresentadas concepções de texto e textualidade de autores contemporâneos, após
a descrição do caminho percorrido pelos linguistas, assumem a dimensão sócio-
interacional da linguagem e abrem caminho para o estudo dos princípios para o
produção de sentido, aos quais remete o recurso da referenciação.
No segundo capítulo, Texto e textualidade, são apresentados os sete
princípios para a produção de sentido: a coesão, relacionada ao modo como os
elementos linguísticos presentes no texto se conectam; a coerência, responsável
pela comunicabilidade do texto; e os princípios centrados no usuário, definição,
aliás, disputada por uma visão pragmática. São esses princípios a situacionalidade,
a informatividade, a intertextualidade, a intencionalidade e a aceitabilidade.
A própria referenciação é abordada no terceiro capítulo, partindo-se de sua
conceituação e considerando-se estratégias de constituição de objetos de discurso e
suas funções. Por sua importância para a discussão de referenciação, foram
incluídos os subtemas instabilidade e mutabilidade no processo de referenciação,
estabilização das categorias instáveis e estratégias de referenciação.
As expressões nominais referenciais são particularmente discutidas no
quarto capítulo, partindo-se de sua conceituação e incluindo-se os movimentos
referenciais das expressões nominais. Essa informação é fundamental para o
trabalho que se fará na análise do corpus.
No quinto capítulo analisamos as funções cognitivo-discursivas das
expressões nominais referenciais, relevantes para a construção textual do sentido,
como se verá na análise do corpus.
13
No sexto capítulo, final, serão analisados os textos do corpus adotado,
constituído de dois ensaios de Roberto Pompeu de Toledo já mencionados acima,
seguindo-se as considerações finais e as referências bibliográficas.
14
1 A LINGUÍSTICA TEXTUAL E O SEU DESENVOLVIMENTO
Neste capítulo situaremos a Linguística Textual no âmbito dos estudos
linguísticos e faremos uma breve revisão de seu desenvolvimento. A importância
desse enfoque para esta dissertação resulta da contribuição que ele traz para a
contextualização dos estudos sobre referenciação que serão feitos adiante.
1.1 Linguística Textual
Conquanto, segundo Marcuschi, os primeiros estudos linguísticos tenham
ocorrido há mais de 2.500 anos, apenas no século 19 a Linguística estabeleceu-se
"como ciência autônoma, separando-se dos estudos históricos, da Psicologia, da
Filologia e Literatura, áreas nas quais se achava integrado o estudo das línguas"
(2008: 26). A Linguística Textual, por sua vez, surgiu a partir da segunda metade da
década de 1960, na esteira dos trabalhos linguísticos de estruturalistas e
funcionalistas, sendo ela, na definição de Koch, o "ramo da Linguística que toma o
texto como objeto de estudo" (2004: xi).
Essa disciplina surgiu em meio aos esforços envidados para se responder aos
desafios apresentados à conceituação de texto. Como se demonstra adiante neste
trabalho, iniciativas seguidas intentaram redefinir texto, numa evolução que marcou
o desenvolvimento da própria Linguística Textual, que deixou de "pesquisar a língua
como sistema autônomo", passando a estudar "seu funcionamento nos processos
comunicativos de uma sociedade concreta (KOCH, 2004: 14).
15
1.2 O desenvolvimento da Linguística Textual
Em sua Introdução à linguística textual, Koch destaca inicialmente oito
concepções de texto que fundamentaram os estudos nessa disciplina e que
esboçam a mencionada evolução que marcou o desenvolvimento da Linguística
Textual, a saber:
1. Texto como frase complexa ou signo linguístico mais alto na hierarquia do sistema linguístico (concepção de base gramatical); 2. Texto como signo complexo (concepção de base semiótica); 3. Texto como expansão tematicamente centrada de macroestruturas (concepção de base semântica); 4. Texto como ato de fala complexo (concepção de base pragmática); 5. Texto como discurso "congelado", como produto acabado de uma ação discursiva (concepção de base discursiva); 6. Texto como meio específico de realização da comunicação verbal (concepção de base comunicativa); 7. Texto como processo que mobiliza operações e processos cognitivos (concepção de base cognitivista); 8. Texto como lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos (concepção de base sociocognitiva-interacional) (2004: xii).
Como já sinalizado na introdução e como será reafirmado adiante, a última
dessas várias concepções – texto como lugar de interação entre atores sociais e de
construção interacional de sentidos – é a que fundamenta este trabalho.
Entre os temas de estudo dos linguistas a partir da década de 1960,
destacou-se a ampliação significativa no conceito de coerência, com a adoção de
uma perspectiva pragmático-enunciativa, levando em conta uma complexa rede de
fatores de ordem linguística, cognitiva, sociocultural e interacional. De igual modo,
recebeu destaque o interesse pelo processamento cognitivo do texto e sua evolução
sociocognitivista, assumindo importância, entre outros temas, a referenciação.
Segundo Koch, foi longo o caminho percorrido pela Linguística Textual até
alcançar o ponto em que se encontra. Seu estudo atual ganhou contornos
sociocognitivistas e interacionais (2004: xiii-xv) como se evidencia no histórico
que segue.
16
1.2.1 Das análises interfrásticas ao surgimento das
gramáticas textuais e à perspectiva semântica
A preocupação fundamental na primeira fase da Linguística Textual (1965 a
1975, aproximadamente) foi, antes de mais nada, ainda segundo Koch, "o estudo de
mecanismos interfrásticos que são parte do sistema gramatical da língua" (2004: 3).
O uso desses mecanismos é que "garantiria a duas ou mais sequências o estatuto
de texto". Estudos que seguiam orientações bastante heterogêneas – de cunho ora
estruturalista ou gerativista, ora funcionalista – buscavam explicar fenômenos, entre
os quais
contavam-se a correferência, a pronominalização, a seleção do artigo (definido/indefinido), a ordem das palavras, a relação tema/tópico–rema/comentário, a concordância dos tempos verbais, as relações entre enunciados não ligados por conectores explícitos, diversos fenômenos de ordem prosódica (KOCH, 2004: 3).
Ao se estudarem as relações entre enunciados na fase inicial da Linguística
Textual, relações referenciais receberam atenção especial, com destaque para os
processos correferenciais – considerados "um dos principais fatores da coesão
textual" (KOCH, 2004: 3). Esse destaque configurava uma limitação no estudo das
relações referenciais. Os "... fenômenos remissivos não correferenciais, as anáforas
associativas e indiretas, a dêixis textual" (KOCH, 2004: 4), bem como vários
atualmente importantes objetos de estudo da Linguística Textual, não eram muito
considerados naqueles começos.
Predominava, porém, uma concentração prioritária "no estudo dos recursos
de coesão textual" como a que englobava a coerência, por sua vez definida apenas
como "mera propriedade ou característica do texto" (KOCH, 2004: 5).
Na mesma primeira fase, concebendo-se o texto como a "unidade linguística
mais alta, superior à sentença", surgiu a ideia das gramáticas textuais, dedicadas a
verificar as condições de textualidade, a identificar critérios para se delimitar textos e
estabelecer diferenças entre suas várias espécies. Esse foco no texto e o postulado
da existência de uma competência textual "evidenciavam o abandono do método
ascendente – da frase para o texto", entendendo-se que, pela segmentação, chega-
17
se da unidade hierarquicamente mais alta às unidades menores, classificando-as,
então. Koch afirma que o texto foi então "considerado o signo linguístico primário,
atribuindo-se aos seus componentes o estatuto de signos parciais", constituindo-se
ele, assim, "uma entidade do sistema linguístico" (2004: 6), com estruturas
determinadas por normas de uma gramática textual. Modelos dessas gramáticas
foram fornecidos por Harald Weinrich, Janos Petöfi e Teun van Dijk (KOCH, 2004: 6).
1.2.2 Da abordagem sintático-semântica à pragmática
Assumido o texto como unidade básica de comunicação e interação humana,
a perspectiva pragmática ganhou destaque e deu aos estudos em Linguística a
dimensão não de pesquisar a língua como sistema autônomo, mas "o seu
funcionamento nos processos comunicativos de uma sociedade concreta" (KOCH
2004: 14). Para Heinemann, os textos passaram a ser considerados não mais
"produtos acabados, que devem ser analisados sintática ou semanticamente", mas
"elementos constitutivos de uma atividade complexa, como instrumentos de
realização de intenções comunicativas e sociais do falante" (1982: 14). Na década
de 1970, a língua passou a ser vista como sendo interconectada a outras atividades
humanas não linguísticas, atribuindo-se então aos textos a qualidade de formas de
ação verbal.
Diversas obras abordaram a questão da dimensão pragmática do texto e uma
delas, de Heinemann & Viehweger apresenta um resumo dos pressupostos para
essa perspectiva:
1. Usar uma língua significa realizar ações. A ação verbal constitui uma atividade social, efetuada por indivíduos sociais, com o fim de realizar tarefas comunicativas, ligadas com a troca de representações, metas e interesses. Ela é parte de processos mais amplos de ação, pelos quais é determinada. 2. A ação verbal é sempre orientada para os parceiros da comunicação, portanto, é também ação social, determinada por regras sociais. 3. A ação verbal realiza-se na forma de produção e recepção de textos. Os textos são, portanto, resultantes de ações verbais, complexos de ações verbais, estruturas ilocucionais, que estão intimamente ligadas com a estrutura proposicional dos enunciados.
18
4. A ação verbal consciente e finalisticamente orientada origina-se de um plano/estratégia de ação. Para realizar seu objetivo, o falante utiliza-se da possibilidade de operar escolhas entre os diversos meios verbais disponíveis. A partir da meta final a ser atingida, o falante estabelece objetivos parciais, bem como suas respectivas ações parciais. Estabelece-se, pois, uma hierarquia entre os atos de fala de um texto, dos mais gerais aos mais particulares. Ao interlocutor cabe, no momento da compreensão, reconstruir essa hierarquia. 5. Os textos deixam de ser examinados como estruturas acabadas (produtos), mas passam a ser considerados no processo de sua constituição, verbalização e tratamento pelos parceiros da comunicação (1991 apud Koch, 2004: 18).
Embora todos os aspectos da produção do texto considerem esses
pressupostos, destacam-se nesse viés pragmático as decisões quanto à
referenciação, devido à sua natureza pragmática e ao seu papel relevante no
desenvolvimento da argumentação, que é constitutivamente consciente e
finalisticamente orientada em relação a parceiros na comunicação. Por meio da
elaboração dos referentes, de acordo com suas escolhas léxico-semânticas –
ativando-os, reativando-os, desfocalizando-os – busca o locutor convencer o
locutário das suas posições.
1.2.3 Cognitivismo e a perspectiva sócio-cognitivo-
interacionista
A partir da virada cognitivista da década de 1980, a Linguística Textual
iniciou uma nova fase. Isso haveria de conduzir a uma nova concepção de texto
(Texto como processo que mobiliza operações e processos cognitivos), uma
mudança de rumo que, porém, em breve, incluiu o questionamento da separação
entre fenômenos mentais e sociais e o estudo da relação entre ambos por outras
áreas científicas e pela própria Linguística. Admitiu-se então que muito da cognição
acontece não somente dentro das mentes, mas também fora delas, sendo a
cognição "um fenômeno situado" (KOCH, 2004: 21,31).
O interesse pela dimensão sócio-interacional da linguagem tem a maior
importância para este trabalho, porque ela ensejou o surgimento de
19
uma série de questões pertinentes para a "agenda de estudos da linguagem", entre as quais as diversas formas de progressão textual (referenciação, progressão referencial, formas de articulação textual, progressão temática, progressão tópica), a dêixis textual, o processamento sócio-cognitivo do texto, os gêneros, inclusive da mídia eletrônica, questões ligadas ao hipertexto, à intertextualidade, entre várias outras (KOCH, 2004: 33. Nosso grifo).
A partir dessa nova concepção sócio-cognitivo-interacionista de texto, que
fundamenta este trabalho, cabe agora identificar e examinar os princípios para a
construção textual de sentido, indispensáveis no estudo que se fará adiante do
fenômeno da referenciação no corpus adotado.
20
2 TEXTO E TEXTUALIDADE
São de Beaugrande & Dressler (1981) os sete princípios de acesso à
produção de sentido. Os dois primeiros são coesão, que se manifesta na superfície
do texto, e a coerência, que subjaz em seu interior (GUIMARÃES, 2009: 15-16),
ambos, portanto, centrados no texto e sendo suas dimensões constitutivas. Os cinco
princípios restantes são: situacionalidade, informatividade, intertextualidade,
intencionalidade e aceitabilidade, esses centrados no usuário.
2.1 Coesão
Coesão implica o papel da sintaxe no processo de textualização
(GUIMARÃES, 2009: 15) e refere-se ao modo como os vários elementos linguísticos
presentes no texto se conectam, sendo classificada em coesão remissiva/referencial
(responsável pela remissão/referência a elementos anteriores no cotexto) e a
coesão sequencial, realizada de modo a garantir a continuidade de sentido. A
coesão remissiva/referencial pode ser realizada mediante o emprego de recursos de
ordem gramatical ou com o uso de meios lexicais, mas igualmente de elipses, de
anáforas associativas (quando o referente não vem expresso no texto) ou de
anáforas indiretas (em que a inferenciação é mais complexa). A coesão sequencial,
por seu turno, se obtém "pelo uso de diversos mecanismos de sequenciação
existentes na língua e, em parte, pelo que se denomina progressão tópica" (KOCH,
2004: 40).
2.2 Coerência
A concepção pragmática de coerência, segundo a qual ela resulta dos
processos cognitivos que os leitores colocam em funcionamento, é hoje
21
predominante (GUIMARÃES, 2009: 17). A "coerência é uma propriedade que tem
a ver com as possibilidades de o texto funcionar como uma peça comunicativa,
como um meio de interação verbal" (ANTUNES 2005: 176. Grifo da autora).
Pode-se observar o viés sócio-cognitivista-interacionista da definição, ficando por
conta dos interlocutores as escolhas léxico-semânticas, a partir de suas intenções
pragmáticas em dada situação e contexto.
Inevitável constatar pelas definições encontradas que coesão e coerência são
interligadas e interdependentes. "A coesão é uma decorrência da própria
continuidade exigida pelo texto, a qual, por sua vez, é exigência da unidade que dá
coerência ao texto" (ANTUNES, 2005: 177). Ambas ligam-se por sua vez a outros
princípios da textualidade, porque, caracterizando um texto bem organizado, são
elas "propriedades inerentes à intencionalidade articulada com a aceitabilidade"
(GUIMARÃES, 2009: 24). São, por assim dizer, recursos que, intencionalmente, o
produtor do texto oferece aos seus receptores para que o interesse deles seja
suscitado, para que ocorra a sua aceitação ou construção de sentido do texto e
sejam alcançados os propósitos da comunicação. Os princípios da intencionalidade
e da aceitabilidade ficam desse modo inseparavelmente conectados, relacionando-
se esse último com as reações do ouvinte ou receptor, e o primeiro com os objetivos
do produtor, o que será visto adiante.
As propostas de Beaugrande & Dressler (1981) quanto aos seus princípios
de construção textual do sentido recebem algumas críticas, das quais destaco a
que segue:
A coerência não é apenas um critério de textualidade entre os demais (e centrado no texto!), mas constitui o resultado da confluência de todos os demais fatores, aliados a mecanismos e processos de ordem cognitiva, como o conhecimento enciclopédico, o conhecimento compartilhado, o conhecimento procedural, etc. O que se tem defendido é que a coerência resulta de uma construção dos usuários do texto, numa dada situação comunicativa, para a qual contribuem, de maneira relevante, todos os fatores aqui apresentados (KOCH, 2004: 43).
Koch especifica ainda outros fatores, além dos que apresenta acima.
Segundo ela, esses outros são os fatores de contextualização, responsáveis "pela
ancoragem do texto em dada situação comunicativa"; a consistência e relevância,
que falam de não-contradição e de os enunciados serem "interpretáveis como
22
predicando algo sobre um mesmo tema"; a focalização, "que se refere à
concentração dos usuários, no momento da interação verbal, em apenas uma parte
de seu conhecimento, bem como [se refere] à perspectiva sob a qual são vistos os
componentes do mundo textual"; os conhecimentos compartilhados, "que vão
determinar, por exemplo, o balanceamento entre o que precisa ser explicitado e o
que pode ficar implícito no texto", evitando-se equívocos que minam a elaboração
da coerência (2004: 44).
Importante para o mais contemporâneo entendimento dos conceitos de
coesão e coerência será ter em mente a evolução dessas noções ao longo do
tempo. Koch recorda que "nos primeiros momentos, das análises transfrásticas, os
dois conceitos praticamente se confundiam" (2004: 46), para em seguida constatar-
se que a primeira não é "condição necessária nem suficiente" da segunda,
verificando-se em seguida o caráter independente dos dois fenômenos e a
impossibilidade de serem distinguidos de modo radical.
2.3 Os princípios centrados no usuário
Na distinção apresentada por Beaugrande & Dressler, os dois primeiros
princípios apresentados (coesão e coerência) são orientados pelo texto. Dentre os
que se seguem (os princípios centrados no usuário), diferentemente, dois são
orientados pelo aspecto sociodiscursivo (situacionalidade e intertextualidade), um
pelo aspecto computacional (informatividade) e dois pelo aspecto psicológico
(intencionalidade e aceitabilidade) (1981: 20).
Quanto à situacionalidade, em um primeiro sentido (da situação para o texto),
ela se refere ao conjunto de fatores que contribuem para a relevância de um texto
numa situação comunicativa em andamento ou que pode ser reconstruída. Em um
segundo sentido, do texto para a situação, o interlocutor interpreta o texto de acordo
com os seus objetivos, convicções e perspectivas.
A informatividade relaciona-se com o processo de distribuição de informação
no texto e relaciona-se igualmente com o seu grau de previsibilidade ou de
23
redundância. Deverá haver um equilíbrio entre a informação já fornecida e a nova,
numa combinação de retroação e progressão, de modo a não ocorrer excesso de
informação nova ou a redundância de informação já dada.
O princípio da intertextualidade refere-se à dependência que têm a produção
e a recepção de um texto em relação a outros textos. Num sentido amplo, conforme
Bakhtin,
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso de um se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele de uma interação viva, tensa (1988: 88).
Nesse âmbito dialógico e em um sentido mais rigoroso, ocorre a
intertextualidade quando se verifica no texto a inserção de outro, o que pode se dar
de modo implícito ou explícito. Nesse último caso é feita clara menção a ele pelo
locutor. No primeiro caso espera o locutor que o interlocutor possa ativá-lo em sua
memória discursiva, a menos, obviamente, que se trate de plágio. Tanto para o
produtor quanto para o receptor esse princípio se reveste da maior importância,
dado o caráter inevitável e universal da intertextualidade.
Ao produzir um texto o autor persegue seus objetivos, o que configura a
intencionalidade, princípio segundo o qual serão mobilizados os recursos adequados
a essa realização – numa demonstração de quanto o aspecto pragmático é
determinante do sintático e do semântico.
Finalmente, o princípio da aceitabilidade envolve a resposta do receptor à
intenção do produtor, não se restringindo o receptor à compreensão do texto, ao
entendimento do seu conteúdo, mas reconstruindo o objetivo do locutor, com quem
estabelece uma cooperação, esforçando-se para ver coesão e coerência no texto
produzido.
A partir desses princípios de acesso à produção de sentido, verdadeiros
recursos oferecidos pelo produtor de texto aos seus receptores buscando suscitar-
lhes o interesse, poderá esse produtor ver o sucesso de sua argumentação e desse
modo alcançar os objetivos de sua comunicação. A esses objetivos ou propósitos
remete o recurso da referenciação, que passamos a analisar no capítulo que segue.
24
3 Referenciação
3.1 Conceituação
Referenciação é a atividade discursiva que envolve o processo por meio do
qual, no texto, objetos de discurso – também denominados entidades ou referentes
– são ativados, retomados ou desfocalizados, podendo a retomada dar-se
retrospectiva (anafórica) ou prospectivamente (catafórica). Segundo Koch & Elias,
os vários modos de introdução no texto de novas entidades ou referentes são
estudados no processo denominado referenciação, ocorrendo a chamada
progressão referencial sempre que os referentes são retomados adiante, servindo
por sua vez de base para a introdução de outros referentes (2009: 132).
As autoras, porém, para quem texto é lugar de interação entre atores sociais
e de construção interacional de sentidos, entendem que quaisquer objetos de
conhecimento se constituem em objetos de discurso, não sendo esses últimos
apenas remissão linguística a entidade fora do discurso.
A "referência" tem sido historicamente apresentada como questão de
"representação do mundo, de verbalização do referente", em que há uma perfeita
correspondência entre as palavras e as coisas, devendo as escolhas lexicais e de
formas linguísticas do autor ser avaliadas quanto a sua veracidade ou falsidade,
quanto a corresponderem tais escolhas ou não ao mundo, à realidade. Para os
autores identificados com a sócio-interatividade, porém, "referenciação",
diferentemente de "referência", trata da "relação intersubjetiva e social no seio da
qual as versões de mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de
adequação às finalidades práticas e a ações em curso dos enunciadores"
(MONDADA, 2001: 9). Como explica Vanda Maria Elias,
Os referentes e as categorizações constituídas resultam de práticas sócio-histórico-culturais marcadas pela inter-subjetividade. Em outras palavras, a referência a indivíduos, fatos, eventos, ações, fenômenos, estados e coisas do mundo é feita de forma negociada, levando em conta que o sujeito que diz se empenha não somente em dizer algo, mas também, e principalmente, em fazê-lo de forma a ser
25
entendido, atividade para a qual concorrem os conhecimentos que possui sobre os interlocutores (2010: 53).
Resulta disso poder-se trabalhar, mediante o uso da língua, diversas e
diferentes visões de mundo, concretizadas nos atos de fala e promotoras de
interação mediante argumentação.
São então "objetos de discurso", não "objetos de mundo" os elaborados pelos
interlocutores. Tais objetos "não se confundem com a realidade extralinguística, mas
(re)constroem-se no próprio processo de interação", sustenta Koch, acrescentando
que "a realidade é construída, mantida e alterada não apenas pela forma como
nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente,
interagimos com ele", e que "interpretamos e construímos nossos mundos por meio
da interação com o entorno físico, social e cultural" (2004: 59-60). Para Mondada,
tais objetos de discurso são entidades concebidas não como expressões
referenciais que espelham objetos do mundo ou sua representação cognitiva, mas
"entidades que são interativamente e discursivamente produzidas pelos participantes
no fio de sua enunciação" (2001: 9).
O desenvolvimento de fala e escrita pressupõe a referência a algo, a
retomada, a focalização e a desfocalização de objetos do discurso numa dinâmica
plurilinear denominada progressão referencial que "consiste na construção e
reconstrução de objetos de discurso [...] não [...] um simples processo de elaboração
de informações, mas um processo de (re)construção do próprio real" (KOCH &
ELIAS, 2009: 133-134). Blikstein propôs na mesma linha que os referentes não
refletem o mundo real, constituindo-se apenas em rótulos para designá-lo, mas são
construídos e reconstruídos no próprio discurso e por meio dele, a partir de nossa
concepção de mundo, o que ele denomina nossos "óculos sociais" (1985). Roncarati
explica que,
Em uma concepção sociointerativa, a atividade referencial não pressupõe uma estabilidade a priori das entidades no mundo e na língua: ela se verifica através da construção de objetos cognitivos e discursivos que não estão disponíveis como uma categoria única, estável e pronta para ser empregada; ao contrário, ela conforma objetos de discurso a partir da plasticidade das denominações e categorizações sociais, cognitivas e contextuais. Dito em outros termos, a referenciação é uma construção colaborativa que emerge de práticas simbólicas e sociais: os objetos de discurso podem
26
apresentar modificações sensíveis ao contexto ou ao ponto de vista intersubjetivo, evoluindo na progressão textual à medida que lhe são conferidos novas caracterizações e atributos (2010: 43, grifo da autora).
Por isso, e como o exposto acima por Mondada e por Koch, "a expressão
referenciação é usada no lugar de referência, já que essa última tem um caráter de
relação pré-fabricada (às margens das condições de uso) entre o mundo e a
linguagem" (MARCUSCHI, 2008: 140).
Observe-se também que a referenciação remete aos propósitos do produtor
do texto. Para atingi-los o produtor escolhe e emprega os materiais a sua
disposição.
3.2 Instabilidade e mutabilidade no processo de referenciação
Pressupondo-se a referenciação como atividade discursiva, vê-se
instabilidade na relação entre as palavras e as coisas, dependendo a categorização
de nossas capacidades perceptuais e motoras, o que a torna imprecisa e mutável ou
flexível "tanto sincrônica quanto diacronicamente". Segundo Mondada & Dubois, são
"múltiplas e inconstantes... controversas" as categorias utilizadas para descrever o
mundo, seja no caso de objetos sociais ou objetos físicos (2003: 22).
Essas autoras sustentam que os
objetos sociais não são um desvio do modo "normal" de referir, mas... de modo simétrico, trata-se de considerar a referência aos objetos do mundo psíquico e natural, no âmbito de uma concepção geral do processo de categorização discursiva e cognitiva tal como eles são observáveis nas práticas situadas dos sujeitos (2003: 20).
E, continuam as autoras, "a regularidade da estrutura gradual das categorias
naturais não contradiz o fato de que as categorias comuns se configuram de modo
mais ou menos ad hoc, conduzindo a uma variabilidade das segmentações
possíveis do continuum das experiências humanas" (2003: 24). Ocorre que
27
os sistemas cognitivos humanos parecem particularmente adaptados à construção de tais categorias flexíveis, ad hoc e úteis para fins práticos, dependendo muito mais da multiplicidade de pontos de vista que os sujeitos exercem sobre o mundo do que de restrições impostas pela materialidade deste (KOCH, 2004: 55).
Sobre essa flexibilidade, Mondada & Dubois expõem a instabilidade
generalizada da categorização, sustentando que o que uma "perspectiva utópica (ou
nostálgica) de uma cartografia perfeita entre as palavras e as coisas" chama de
"negligências", "falta de precisão", "dificuldade em nomear", "erros" e "insucesso",
uma abordagem científica chama de "recursos linguísticos, discursivos e cognitivos
necessários para tratar eficazmente da referenciação", num processo de de-
categorização e re-categorização desenvolvido pelos membros dos grupos sociais.
Por essa razão essas autoras sustentam o caráter em geral variável e flexível
dessas categorias, sendo essas instabilidades inerentes aos objetos e às práticas de
discursos e sendo também "ligadas às propriedades intersubjetivamente negociadas
das denominações e das caracterizações no processo de referenciação". Essas
denominações e caracterizações "não são mais consideradas como algo que
estabiliza uma ligação direta com o mundo, mas como processos que se
desenvolvem no seio das interações individuais e sociais com o mundo e com os
outros" (2003: 21-22).
Importante observar que a adoção dessas teses não implica negar a
existência da realidade extra-mente, mas, sim, defender a necessidade de uma
ontologia não ingênua e não realista, uma vez que o "nosso cérebro não opera como
um sistema fotográfico do mundo, nem como um sistema de espelhamento, ou seja,
nossa maneira de dizer e ver o real não coincide com o real". Para receber e
entender a realidade o cérebro reelabora os dados sensoriais, o que ocorre
"essencialmente no discurso", não sendo, porém, essa reelaboração, subjetiva,
individual, mas restrita por "condições culturais, sociais, históricas e, finalmente, pelas
condições de processamento decorrentes do uso da língua" (KOCH, 2004: 57).
Por essa razão é que Koch afirma adotar as postulações de Apothéloz &
Reichler-Béguelin (1995), das quais cito:
a) A referência diz respeito, sobretudo, às operações efetuadas pelos sujeitos à medida que o discurso se desenvolve;
28
b) O discurso constrói aquilo a que faz remissão, ao mesmo tempo em que é tributário dessa construção. Isto é, todo discurso constrói uma representação que opera como uma memória compartilhada, "publicamente" alimentada pelo próprio discurso, sendo os sucessivos estágios dessa representação responsáveis, ao menos em parte, pelas seleções feitas pelos interlocutores, particularmente em se tratando de expressões referenciais (KOCH, 2004: 58).
Decorre dessas postulações que a interpretação de uma expressão anafórica,
nominal ou pronominal, envolve explorar o contexto e demonstrar uma relação com
algum tipo de informação disponível na memória discursiva. Explorar o contexto
possibilita resgatar o sentido ad hoc de uma determinada expressão, considerando-
se os interlocutores, os conhecimentos supostamente compartilhados, os objetivos
adotados, o local e o tempo da interação, os papeis sociais dos sujeitos, bem como
os aspectos histórico-culturais (KOCH, 2004: 59).
Mondada & Dubois defendem que a "necessária dependência contextual" fica
sublinhada pela indicialidade da linguagem e do discurso, bem como fica eliminada a
suposição equivocada de darem eles "uma descrição única e estável do mundo".
Essa consideração conduz ao processo de interpretação e de estabilização das
categorias, que deverão associar-se à produção das necessariamente incompletas
descrições do mundo e das flexivelmente evolutivas categorizações. Mediante esse
processo o interlocutor completa as categorias "e as ajusta ao contexto", valendo-se
das "estruturas cognitivas, notadamente memoriais" dos sujeitos, bem como de
"procedimentos sistemáticos para organizar a coconstrução dos objetos de discurso"
(2003: 40).
3.3 A estabilização das categorias instáveis
Os processos de estabilização configuram o outro lado dos processos
categoriais e envolvem, segundo Mondada & Dubois, o emprego de recursos e
meios adequados a esse fim.
Os protótipos, entendidos não como "representações estabilizadas, estocadas
na memória", mas como "construções dinâmicas", oferecem a ajuda com a qual o
29
sistema cognitivo construiria "as invariantes psicológicas que dariam uma
estabilidade às interpretações que os homens fazem do mundo". O processo inicia-
se em uma construção psicológica e individual, mas é estabilizado posteriormente
com a ajuda da lexicalização e da comunicação linguística. Tal distribuição social, ou
seja, o compartilhamento do protótipo entre várias pessoas, segundo as autoras o
faz evoluir para "uma representação coletiva chamada geralmente de estereótipo"
(2003: 41).
Do mesmo modo, continuam elas, a anáfora tem sido vista como "um modo
de estabilizar ou de focalizar uma denominação particular”, e igualmente a
"materialização das categorias cognitivas e linguísticas", que concerne
principalmente "aos meios de inscrição tais como a escrita, a imprensa, a imagem".
Na verdade, "estabilizados pelos textos e pelas inscrições visuais, os fatos
resistirão às desestabilizações possíveis da controvérsia, terminando por se impor
como sendo evidentes e por tornar-se referentes estáveis da ciência" (2003: 43).
Desse modo, com categorias estabilizadas, pode haver comunicação e mútuo
entendimento, configurando os referentes não apenas elaborações individualizadas
e exclusivamente subjetivas, mas produções sociais e interativas, fruto de práticas
sociodiscursivas em que eles são introduzidos, retomados, desfocalizados ou
modificados, segundo estratégias de referenciação.
3.4 Estratégias de referenciação
Em seu artigo "Papel e funcionamento da anáfora na dinâmica textual",
Apothéloz (2003: 64) sustenta que as estratégias de referenciação de que depende
a construção de objetos de discurso contam com recursos de referência que podem
ser denominados elementos diafóricos (elementos de recuperação do texto),
havendo elementos endofóricos (os que se encontram dentro do texto) e elementos
exofóricos (os que se encontram fora do texto). Os elementos endofóricos
configuram-se na anáfora, que agindo retrospectivamente recupera um antecedente;
30
a catáfora, que realiza a retomada mediante a prospecção; e a elipse, a referência
com conteúdo zero.
A introdução de referentes textuais pode dar-se com a ajuda de dois tipos de
processos ou construção, a saber, a ativação ancorada, caracterizada pela
introdução de um referente associado a âncoras ou elementos já encontrados no
cotexto ou no contexto sócio-cognitivo dos interlocutores; e a não-ancorada, em que
o referente é totalmente novo e depende de uma interpretação que desemboca em
uma inferência (KOCH & ELIAS, 2009: 134).
A ativação não-ancorada é também denominada construção/ativação, sendo
o objeto textual introduzido e passando a ocupar um espaço, e sendo a expressão
que o representa colocada em foco na memória operacional, tornando-o saliente. A
ativação ancorada, por sua vez, é denominada reconstrução/reativação, resultando
o processo na permanência em destaque do objeto de discurso. As chamadas
anáforas associativas e as anáforas indiretas encontram-se entre esses casos,
aquelas explorando relações metonímicas. A desfocalização ocorre quando se dá a
introdução de um novo referente, uma nova focalização. O referente desfocalizado,
porém, continua parcialmente ativado, podendo ser empregado quando necessário
(KOCH, 2004: 62).
Enquanto as anáforas diretas retomam referentes já introduzidos no texto,
estabelecendo correferência, as anáforas indiretas propiciam a ativação de novos
objetos do discurso aos quais não corresponde um antecedente (ou subsequente)
no texto, num processo de referenciação implícita. Como se verá mais
detalhadamente adiante, esse processo de referenciação implícita (as anáforas
indiretas) pode se constituir, segundo Koch & Elias, com base "em modelos
cognitivos, inferências ancoradas no mundo textual ou em relações semânticas
inscritas nos sintagmas nominais definidos, particularmente as relações metonímicas
(relações parte-todo)" (2009: 136).
As estratégias de referenciação envolvem os fenômenos sócio-cognitivos,
culturais e linguísticos que operam na categorização da realidade sob o filtro das
percepções humanas em processos interativos. Tais estratégias contribuem para a
progressão textual, introduzindo, retomando e desfocalizando os referentes do texto.
31
A progressão referencial do texto resulta das cadeias referenciais ou
coesivas. A expressão cadeia coesiva foi inicialmente empregada para caracterizar
sequências cujos componentes remetiam ao contexto precedente. Numa postulação
posterior, segundo Roncarati, os elos coesivos foram apresentados por Halliday e
Hasan como
mecanismos semânticos e léxico-gramaticais essenciais para a tessitura textual, enfatizando que a natureza que os une é essencialmente semântica: os termos se ligam através de relações de sentido que formam a base para a coesão entre as mensagens veiculadas em um texto (2010: 80).
A mesma autora sustenta que "O trabalho com as cadeias referenciais facilita
a compreensão do texto, porque, por meio delas, é possível observar como se
verifica a dinâmica dos processos de referenciação" (2010: 18-19). Tais cadeias
referenciais ou coesivas são originadas pela reconstrução, que opera a manutenção
em foco, de objetos anteriormente introduzidos, com o emprego de pronomes,
elipses, numerais, advérbios locativos, etc. (recursos de ordem gramatical), bem
como por meio de recursos lexicais (itens lexicais reiterados, sinônimos,
hiperônimos, nomes genéricos, expressões nominais, etc.). Para Roncarati, a cadeia
será linear se retomar um mesmo referente, e será multilinear ou multirreferencial se
"gerar outros referentes tematicamente associados a ele" (2010: 23).
Podem ser distinguidas três estratégias de referenciação textual: o uso de
pronomes, estratégia comumente descrita como pronominalização de elementos
contextuais; o uso de expressões nominais definidas; e o uso de expressões
nominais indefinidas.
A pronominalização de elementos contextuais, que consiste no uso de
pronomes para efetuar a referenciação, pode ser anafórica ou catafórica,
dependendo de ser retrospectivo ou prospectivo o seu movimento referencial. Essa
estratégia pode ocorrer sem um referente textual explícito, caso para o qual Koch
oferece o seguinte exemplo:
Não houve entendimento com a editora. Os direitos autorais que eles queriam pagar eram simplesmente vergonhosos (2004: 67).
32
No exemplo acima, não há um referente textual explícito, mas o pronome eles
refere-se aos funcionários representantes da editora com quem o autor de certa obra
tentou a negociação.
As expressões referenciais serão empregadas a partir de escolhas cognitivas
e linguísticas que faz o produtor do texto dentre as propriedades ou qualidades que
podem caracterizar o referente. Tais escolhas revelarão o projeto de dizer do autor,
bem como indicarão suas opiniões, crenças, ideologias, propósitos ilocutórios, além
de sinalizar propriedades marcantes dos objetos de discurso que podem revelar
informações que o autor julga não serem do conhecimento do interlocutor.
No próximo capítulo nos deteremos na definição e análise das expressões
nominais referenciais, que interessam a este trabalho, com vistas a sua localização
e estudo no corpus adotado.
33
4 EXPRESSÕES NOMINAIS REFERENCIAIS
4.1 Conceituação
Expressões nominais, segundo Koch & Elias, são "aquelas expressões que
constam de um núcleo nominal (substantivo), acompanhado ou não de
determinantes (artigos, pronomes adjetivos, numerais) e modificadores (adjetivos,
locuções adjetivas, orações adjetivas)" (2009: 147). Tais expressões constituem
importante recurso referencial para a construção de sentido enquanto
desempenham suas funções e efetuam a progressão textual.
4.2 Os movimentos referenciais das expressões nominais
As expressões nominais realizam movimentos referenciais de retrospecção e
de prospecção. Os primeiros, à esquerda, chamados anafóricos, promovem relações
coesivas, semânticas, cognitivas e avaliativas. Os últimos, à direita, chamados
catafóricos, promovem a progressão textual.
Anáfora e catáfora, embora apresentadas aqui como funções de grupos
nominais, podem também ser expressas por meio de pronomes pessoais da terceira
pessoa, substantivos possessivos, numerais, etc., como se verá em alguns
exemplos, para maior esclarecimento.
Segundo Apothéloz (2003: 71), o movimento referencial anafórico envolverá
uma anáfora fiel sempre que, de modo ancorado, um referente previamente
introduzido no texto for retomado por meio de um sintagma definido ou
demonstrativo com o mesmo nome nuclear empregado em sua introdução. Dando o
exemplo a seguir, Roncarati denomina uma "repetição de item lexical" o que
Apothéloz teria chamado de anáfora fiel. O emprego do itálico destaca a mera
repetição ou anáfora fiel:
34
O comerciante 1 fala enquanto o Escriba 1 faz marcas sobre a argila usando o pedaço de madeira, o estilo. Depois que o bloco de argila está cheio de marcas em formas de animais e cunhas, o comerciante 1 se cala (2010: 142, nosso grifo).
Trata-se, então de um caso de correferência ou protótipo da anáfora.
Por outro lado, a anáfora será chamada de infiel se o nome empregado na
retomada diferir daquele usado na introdução do referente (será mais
frequentemente um sinônimo ou hiperônimo), podendo também receber essa
designação se lhe for acrescentada uma determinação, qualquer que seja. Como no
exemplo de Roncarati:
Existe uma mulher na vida do ex-motorista de ônibus. O mineiro foi casado por 10 anos com Neide (2010: 144, nosso grifo).
O hipônimo Neide retoma o hiperônimo mulher em uma anáfora infiel.
Outro tipo de anáfora, a anáfora por nomeação, ocorre quando todo um
processo descrito em afirmação anterior é compactado em um sintagma nominal
com a retomada do conteúdo proposicional da afirmação ou do ato de fala realizado
por meio da enunciação do conteúdo. Essas nomenclatura e definição de Apothéloz
(2003: 71-72) aproximam-se do que Roncarati chama de nominalização ("operação
anafórica simultaneamente condensadora e provedora de informação" [2010: 145]) e
do que Koch & Elias (2009: 152) e Koch (2004: 70) denominam rotulações,
"resultantes de encapsulamentos operados sobre predicações antecedentes ou
subsequentes", resultando em "mudança de nível ou sumarização da informação"
(KOCH, 2004: 66). No exemplo de Apothéloz:
Os arquivos do cineasta Abel Gance [...] serão vendidos em leilão, em Drouot, nos dias 3 e 4 de março. A venda compreenderá uma centena de cenários manuscritos (2003: 72, grifo do autor).
O sintagma a venda nominaliza e rotula ou compacta por nomeação anafórica
o processo descrito na afirmação anterior Os arquivos do cineasta Abel Gance [...]
serão vendidos em leilão, em Drouot, nos dias 3 e 4 de março.
As nomeações se constituem em importante recurso argumentativo pelo fato
de efetuarem muito mais do que a pura e simples retomada de informação,
contribuindo para o projeto de dizer adotado pelo autor do discurso.
35
A silepse é figura que ocorre em um texto sempre que a concordância se dá
pelo sentido e não de acordo com a gramática. Manifestando-se nas retomadas
anafóricas pronominais, a silepse proporciona alterações com respeito ao gênero e
ao número gramatical, como no exemplo de anáfora por silepse fornecido por
Apothéloz:
Uma mulher infiel, se assim for conhecida pela pessoa interessada, é apenas infiel. Se ele a crê fiel, ela é pérfida (2003: 73, nosso grifo).
Segundo o entendimento em nossa cultura, a pessoa interessada (sintagma
nominal feminino) em uma mulher será um homem (sintagma nominal masculino),
retomado então pelo texto com o pronome masculino ele, com o emprego de uma
silepse.
Ou ainda, em outro exemplo do mesmo autor, mais apropriado a este trabalho
por envolver expressão nominal referencial:
Pego a carabina, apoio no ombro e atiro... atiro de olhos fechados, como um banqueiro que se suicida com um tiro na cabeça [...] É um ruído crescente, a multidão me olha, acham que sou um suíço; alguém me disse que, nesse país, as crianças aprendem a atirar com três anos e que, aos dez, há os que quebram avelãs a uma distância de vinte passos (2003: 74,75, grifo do autor).
Esse último exemplo aproxima-se mais, analisa Apothéloz, de um dêitico de
memória, podendo-se também ver nele uma anáfora associativa, assim designados
os sintagmas nominais definidos cujo entendimento apoia-se em conhecimentos
gerais supostamente compartilhados.
Esses sintagmas nominais definidos apresentam certa dependência
interpretativa em relação a um referente introduzido ou designado anteriormente (no
exemplo, um suíço), mas não se dá correferência em relação à expressão
empregada para designar o referente quando da sua introdução (2003: 75).
As anáforas associativas constituem um subtipo das anáforas indiretas, cujo
processo referencial pressupõe denotação implícita que pode ser inferida a partir de
elementos do contexto anterior ou do contexto sócio-cognitivo. Os casos de anáfora
associativa baseiam-se em questões semântico-pragmáticas e em relações
metonímicas de ingrediência ou de atributos. Por não possuírem então referentes
36
explícitos no texto as anáforas associativas se caracterizam pelo processo
inferencial e interpretativo de referenciação (KOCH, 2004: 65).
No exemplo de Apothéloz:
Nós chegamos a uma cidade. A igreja estava fechada (2003: 76, grifo do autor).
Pode-se verificar relação de dependência interpretativa entre uma cidade e A
igreja, não se tratando, porém, de correferência, uma vez que cidade funciona
meramente como desencadeador da anáfora associativa. Há uma relação de
continente/conteúdo ou todo/parte entre uma cidade e A igreja, portanto, no exemplo
dado acima ocorre anáfora associativa, com ativação de referente por processo
cognitivo realizado por meio de metonímia (RONCARATI, 2010: 150).
As anáforas indiretas, anteriormente mencionadas, compreendem formas
nominais referenciais sem referente explícito previamente introduzido no texto,
apenas uma âncora, elemento importante para a sua interpretação. Operam essas
anáforas a ativação de novo referente, e não a reativação de referente anteriormente
inserido, num processo de referenciação implícita cuja base são elementos textuais
e modelos mentais. As anáforas indiretas são assim dependentes
interpretativamente de elementos de base do co-texto ou do contexto em
desenvolvimento, contribuindo conhecimentos semânticos, conceituais, etc. para a
construção de sentidos referenciais, como se vê no exemplo de Koch:
Há alguns anos, as pichações que passaram a borrar casas, edifícios e monumentos de São Paulo – e de outras grandes cidades brasileiras – começaram a ganhar características novas. Pode-se questionar se políticas apenas repressivas são a melhor forma de enfrentar o problema – ainda que nesse quesito, elementar, o poder público pareça complacente, já que, conforme a reportagem, as gangues reúnem-se semanalmente com hora e local marcados. Merecem apoio iniciativas que possam, de forma positiva, atrair os pichadores para atividades menos predatórias (2004: 65, grifo da autora).
No exemplo dado, pichações ancora a interpretação de gangues e a
orientação argumentativa do texto, sem estabelecimento de correferência, numa
relação indireta firmada inferencialmente com base no conhecimento da realidade
por parte do leitor.
37
Nas exemplificações encontradas em diferentes autores torna-se evidente a
dificuldade em se distinguir anáforas associativas de anáforas indiretas.
Koch & Elias fornecem os seguintes exemplos de anáforas indiretas:
A casa era antiga, as portas sem alguns pedaços que foram corroídos pelos cupins, as janelas quebradas, as paredes pichadas davam um ar sombrio à casa.
Logo que entrei o canto parou e vi um lindo retrato na parede, era de uma jovem.
Os cabelos eram bem pretos, os olhos azuis como o oceano, a boca vermelhinha como uma cereja e a pele bem clarinha, toda delicada... Fiquei horas observando seus pequenos detalhes (grifos das autoras).
Explicando, Koch & Elias ponderam que "as expressões definidas as portas
sem alguns pedaços; as janelas quebradas; as paredes pichadas relacionam-se
com a expressão a casa, introduzida no início do texto". A expressão "casa", desse
modo, "serve de âncora para a introdução daquelas expressões referenciais, em
uma expressão assentada na relação parte-todo". Não se trata de uma retomada,
esclarecem as autoras, mas de uma relação meronímica (sic) (2009: 136-137).
Aproximando anáforas indiretas de anáforas associativas, Koch explica que
ocorre ativação ancorada de referente quando se dá a introdução de um novo
objeto-de-discurso, "sob o nome do dado, em virtude de algum tipo de associação
com elementos presentes no cotexto ou no contexto sociocognitivo, passível de ser
estabelecida por associação e/ou inferenciação". A autora inclui nesses casos as
anáforas indiretas e as anáforas associativas, mas passa a distingui-las ao afirmar
que "A anáfora associativa explora relações metonímicas, ou seja, aquela em que
entra a noção de ingrediência" (2004: 65, nosso grifo).
38
5 Funções cognitivo-discursivas das expressões nominais referenciais
As expressões nominais referenciais desempenham uma série de funções
cognitivo-discursivas muito relevantes para a construção textual do sentido, sendo
algumas delas as que seguem:
5.1 Ativação/reativação na memória
Segundo Koch, as expressões nominais referenciais possibilitam, "como
formas de remissão a elementos anteriormente citados no texto ou sugeridos pelo
co-texto precedente", a reativação deles, "ou seja, a alocação ou focalização" (2004:
70, grifo da autora). Ao operar a recategorização ou refocalização do referente, as
expressões nominais terão ao mesmo tempo função predicativa, como também a
terão ao encapsularem e rotularem informações suporte, no caso de
nominalizações. São, portanto, "formas híbridas, referenciadoras e predicativas, isto
é, veiculadoras tanto de informação dada como informação nova" (2004: 70), como
veremos adiante.
5.2 Encapsulamento (sumarização) e rotulação
As nominalizações desempenham a função de encapsulamento ou rotulação,
que é particularmente sua. Elas sumarizam as informações-suporte de segmentos
precedentes do texto (numa anáfora lexical) ou segmentos subsequentes do texto
(numa catáfora lexical). Trata-se de uma expressão nominal construída com nome
genérico ou axiológico (valorativo) que parafraseia o trecho precedente ou
subsequente, as mencionadas informações-suporte que se tornam desse modo
objeto-de-discurso. No encapsulamento anafórico, o que ocorre, porém, segundo
Conte,
39
... é mais do que a apresentação de uma paráfrase resumitiva de uma porção precedente do texto [...] Em primeiro lugar, o próprio item lexical (o núcleo do sintagma nominal) é geralmente novo na medida em que não ocorreu no texto precedente. Em segundo lugar, e mais importante ainda, estamos lidando não apenas com categorização de informação contextual dada, mas também com hipóstase. [...] O que está presente no modelo discursivo é "objetificado" ou, em outras palavras, torna-se um referente. Na base da informação velha, um novo referente discursivo é criado e se torna o argumento de predicações futuras. Assim, o encapsulamento anafórico se torna um procedimento muito interessante de introdução de referentes no texto. Esses referentes são criados na dinâmica do texto (2003: 183).
Na função do encapsulamento, as expressões não nomeiam um referente
específico, mas instâncias abstratas, com nomes-núcleo genéricos, tais como
fenômeno, evento, fato, etc. Detalhando os tipos de rotulação efetuados no
encapsulamento por expressões nominais, Koch & Elias explicam que há dois tipos,
sendo o primeiro "aquele em que a designação... recai sobre os fatos, eventos,
circunstâncias contidas no segmento textual encapsulado", e sendo o segundo tipo
aquele em que "o rótulo nomeia o tipo de ação que o produtor atribui aos
personagens presentes no segmento encapsulado, como a declaração, a pergunta,
a reflexão, a dúvida, etc.", sendo esses os que possuem função metadiscursiva
(2009: 152).
O recurso do encapsulamento estabelece coesão entre fragmentos do texto e,
no processo de sumarização de um enunciado ou enunciação, um novo objeto-de-
discurso é introduzido pelas expressões nominais, podendo ele se constituir em
tema de novas predicações – como argumenta Conte acima –, o que significa que o
encapsulamento opera com informação nova tanto quanto com informação dada.
Tais expressões nominais... em sua maior parte, introduzidas por um demonstrativo, desempenham, assim, duas funções: rotulam uma parte do contexto que as precede (x é um acontecimento, uma desgraça, uma hipótese, etc.) e estabelecem um novo referente que, por sua vez, poderá constituir um tema específico para os enunciados subsequentes. É essa a razão por que, frequentemente, aparecem em inícios de parágrafos (KOCH, 2004: 71).
O valor do recurso rotulador do encapsulamento – que, além do que
menciona Koch acima, pode também fazer referência a elemento do contexto que se
segue – é evidente para a argumentação. Ocorre na ocasião de seu emprego uma
seleção lexical por parte do produtor do texto, com a adoção de um nome-núcleo
40
axiológico e de modificadores da expressão nominal que revelam seu projeto de
dizer, seu ponto de vista acerca do referente, enfim, sua orientação argumentativa.
Trata-se de "um poderoso meio de manipulação do leitor" nas palavras de Conte
(2003: 186).
5.3 Recategorização de referentes
Muito próxima à função de encapsulamento (sumarização) e rotulação e
apresentada em Koch (2004: 76) como Introdução de informações novas (ver 5.4
abaixo) é a função que Koch & Elias denominam Recategorização de referentes
(2009: 149). Para essas autoras, "os referentes já introduzidos no texto podem ser
retomados mantendo as mesmas características e propriedades ou, como é muito
comum, com alterações e com acréscimos de outras". Quando ocorrem essas
alterações e acréscimos de características e propriedades, então, dá-se a
recategorização, a inclusão de novos referentes efetuando a progressão textual. No
exemplo fornecido pelas autoras:
[...] De algum tempo para cá nossas ruas têm sido ocupadas por caminhões de vários eixos, ônibus quase da altura de prédios e toda espécie de jamantas, além de jipes, camionetes e camburões "de passeio", mas capazes de transportar até uma lancha [...]. Confira o triunfalismo com que se arremessam por ruas estreitas, destruindo um asfalto que não foi feito para aquele peso, e a superioridade de seus motoristas, alheios ao fato de que os veículos estão ceifando as árvores sobre suas cabeças. Será impossível frear a invasão desses mamutes mecânicos impróprios para a vida urbana? Com todo o respeito pelos mamutes. Uma denúncia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é preocupante. Em Petrópolis (RJ), 17 imóveis tombados do centro histórico estão com a estrutura ameaçada. O material de que foram feitos e sua técnica de construção não previam que, um dia, teriam de conviver com a trepidação provocada pelos magatrombolhos que passam a metros de suas portas [...] (2009: 150, nosso grifo).
Recategorizando como "mamutes mecânicos" a frota de "caminhões de vários
eixos, ônibus quase da altura de prédios e toda espécie de jamantas, além de jipes,
camionetes e camburões 'de passeio', mas capazes de transportar até uma lancha",
e rotulando-os em seguida como "megatrombolhos", o autor argumenta a respeito da
41
inconveniência da circulação desses veículos em área urbana, seguidamente
recategorizando os referentes inicialmente ativados em um processo, segundo
Mondada & Dubois, "de construção de um caminho ligando diferentes denominações
aproximadas que não são excluídas pela última escolha" (2003: 30).
5.4 Introdução de informações novas
Importante para o autor em seu projeto de dizer e em sua busca de
caracterização do referente de acordo com os seus propósitos, essa estratégia lança
mão de relações de para-sinonímia ou de novas caracterizações do referente. No
primeiro caso, o emprego de um sinônimo aproximado trará informações novas
acerca do referente. No exemplo de Koch dado a seguir, o substantivo polêmica
ganha conotação de conversa inconsequente ao ser recuperado anaforicamente
pelo sintagma aquele bate-boca:
A polêmica parecia não ter fim. Pelo jeito, aquele bate-boca entraria pela noite adentro, sem perspectivas de solução (2004: 76, grifo da autora).
No segundo caso se dará nova caracterização do referente de determinado
modo, com a introdução, por meio de anáfora nominal (definida ou indefinida), de
novas informações a seu respeito, como Koch demonstra nos exemplos a seguir:
O prefeito é especialmente exigente para liberar novos empreendimentos imobiliários, principalmente quando estão localizados na franja da cidade ou em áreas rurais [...] O crescimento urbano tem de ser em direção ao centro, ocupando os vazios urbanos e aproveitando a infraestrutura, não na área rural, que deve ser preservada, repete o urbanista que entrou no PT em 1981 como militante dos movimentos populares por moradia.
Acrescente-se a essa informação que, além de ser o primeiro genoma de um patógeno vegetal sequenciado no mundo, este é também o primeiro genoma sequenciado fora do eixo Estados Unidos–Europa–Japão, realização cujo mérito deve ser creditado à ONSA, um instituto virtual formado por uma rede de 35 laboratórios conectados via Internet. E relembra-se aqui que a X.fastidiosa é responsável pela praga do amarelinho ou clorose dos citros (CVC), um problema que vem afetando um terço das plantas nos laranjais
42
paulistas, com pesadas consequências econômicas para a poderosa citricultura do Estado (2004: 76, destaques da autora).
A introdução de informações novas foi, nesses casos, importante para o
entendimento do texto, sendo, desse modo, por si só evidente o valor de tal recurso
para o convencimento e persuasão do interlocutor.
5.5 Organização macroestrutural
Enquanto no nível microestrutural as expressões nominais são importantes
para estabelecer a coesão textual, no nível macroestrutural elas são em grande
parte responsáveis pela introdução de novos referentes, que agem de modo
retroativo como um recurso de integração semântica, funcionando muito
frequentemente como um princípio organizador na estrutura discursiva. Empregado
no início de um parágrafo esse novo referente interpreta o parágrafo precedente e
ao mesmo tempo dá início ao novo (CONTE, 2003: 184), sinalizando a passagem
de um estágio na argumentação para o seguinte, encerrando o anterior que é
encapsulado em uma forma nominal. As expressões nominais nesses casos
introduzem e alteram tópicos, conectando também tópicos e subtópicos. Desse
modo, enquanto efetuam as alterações, preservam a continuidade temática, sendo
ao mesmo tempo responsáveis pela retroação e pela progressão, os dois grandes
movimentos de construção textual.
5.6 Atualização de conhecimentos por meio de glosas realizadas
pelo uso de um hiperônimo
Uma preocupação didática e de natureza comunicativa poderá levar o autor
de um texto a empregar um hiperônimo com função anafórica para glosar um termo
desconhecido. Com o emprego desse recurso o leitor ou interlocutor será informado
do sentido do termo empregado. No exemplo a seguir,
43
Duas equipes de pesquisadores dos EUA relatam hoje descobertas que podem levar à produção de drogas mais eficientes contra o antraz. Para destruir a bactéria, os potenciais novos remédios teriam um alvo específico... (KOCH, 2004: 72, grifo da autora).
No exemplo acima, o emprego do sintagma nominal definido (a bactéria)
pressupõe não haver outra bactéria no cotexto e infere-se o conhecimento da regra
lexical segundo a qual bactéria é hiperônimo de antraz, bem como infere-se o
conhecimento enciclopédico necessário para se saber que antraz é uma bactéria.
De qualquer modo, o próprio texto vem em socorro do leitor ou interlocutor com o
emprego de uma paráfrase que apresenta a necessária definição.
5.7 Especificação por meio da sequência hiperônimo/hipônimo
Quando for necessário um refinamento da categorização pode-se empregar
uma anáfora especificadora, expressão anafórica comumente introduzida pelo artigo
indefinido. Koch pondera ser esse procedimento "de certa forma condenado pela
norma (que prefere a sequência hipônimo/hiperônimo)", mas concede que "esse tipo
de anáfora permite trazer, de forma compacta, informações novas a respeito do
objeto-de-discurso" Segue-se exemplo:
Uma catástrofe ameaça uma das últimas colônias de gorilas da África. Uma epidemia de Ebola já matou mais de 300 desses grandes macacos no santuário de Lossi, no noroeste do Congo. Trata-se de uma perda devastadora, pois representa o desaparecimento de um quarto da população de gorilas da reserva (2004: 74-75, grifo da autora).
5.8 Construções de paráfrases definicionais e didáticas
Tais paráfrases são realizadas por expressões nominais, anáforas
definicionais em que o termo técnico é previamente introduzido, seguido pela
definição. Quando se dá a inversão, situando-se primeiro a definição e em seguida o
44
termo técnico ou expressão referencial, tem-se uma anáfora didática. Koch oferece
exemplos do primeiro e do segundo caso, respectivamente:
Vocês já ouviram falar dos argonautas? Pois conta-nos a lenda grega que esses tripulantes da nau mitológica Argos saíram à busca do Velocino de Ouro.
Para orientar as manobras dos aviões, os aeródromos são dotados de aparelhos que indicam a direção dos ventos de superfície. As birutas, que têm a forma de sacola cônica, são instaladas perpendicularmente à extremidade de um mastro (2004: 75,76, grifos da autora).
No primeiro exemplo, o referente argonautas é recuperado pela anáfora
definicional esses tripulantes da nau mitológica Argos. No segundo exemplo,
inversamente, a expressão introdutora aparelhos que indicam a direção dos ventos
de superfície contém a definição do termo técnico ou expressão nominal referencial
empregada a seguir como anafórica didática.
5.9 Orientação argumentativa do texto
As expressões nominais, cujas funções vimos aqui, são muito importantes
para conduzir o leitor ou ouvinte a conclusões pretendidas pelo produtor do texto,
segundo os seus propósitos. Seu trabalho será eivado de intenções, devendo estar
tanto o autor quanto o receptor atentos a esse fato inevitável. Sem tal atenção
poderá o autor desperdiçar oportunidades e recursos valiosos em seu projeto de
dizer e poderá o receptor estar desarmado para as estratégias de convencimento
adotadas pelo autor, tornando-se vítima indefesa à mercê de sua ideologia e
opiniões.
Porque o autor persegue seus objetivos ao produzir um texto, segundo o
princípio da intencionalidade, serão mobilizados nessa produção os recursos
adequados à argumentação, constituinte que é do ato linguístico fundamental.
A argumentação apoia-se na assunção acima e no consequente
entendimento de que a compreensão de um texto é idêntica à apreensão de suas
45
intenções. Tais intenções do orador serão desveladas ao se constatar o seu
emprego de técnicas ou recursos argumentativos. Interessam-nos aqui não técnicas
e recursos não linguísticos "que constituem manobra discursiva, tal como a ironia, a
sátira, a insinuação", mas os "que se inserem na própria construção do texto, em um
nível retórico presente ao nível linguístico fundamental, inscrito na própria
significação do enunciado" (GUIMARÃES, 2004: 149), particularmente os recursos
da referenciação.
5.10 Categorização meta-enunciativa de um ato de enunciação
Koch encerra sua lista de funções cognitivo-discursivas desempenhadas
pelas expressões nominais referenciais com a que denomina categorização meta-
enunciativa de um ato de enunciação (2004:78).
Segundo a autora, o emprego de expressões nominais referenciais permite
que se apresente, de modo meta-enunciativo, não a "recategorização do conteúdo
da predicação precedente, mas a categorização e/ou avaliação de um ato realizado",
como se observa nos dois exemplos a seguir fornecidos pela própria autora no
mesmo local (grifos da autora):
"O que falta é um promoter ter a iniciativa de trazer a gente para fazer uma turnê decente pelo Brasil." A bronca não é de nenhum popstar ou dinossauro do rock que ainda não pisou no país, mas do mineiro Max Cavalera, ex-vocalista do Sepultura e atual líder do Soulfly.
O ato de enunciação "O que falta é um promoter ter a iniciativa de trazer a
gente para fazer uma turnê decente pelo Brasil", foi classificado
metalinguisticamente pelo autor do texto, que o rotulou como bronca, uma
repreensão ou crítica. E ainda:
Entrevista do presidente do TSE, Nelson Jobim para a Folha de São Paulo: Folha – Houve uma leitura no meio político de que o TSE tomou a decisão [verticalização das coligações] por causa da amizade entre o sr. e Serra. A verticalização beneficiaria a candidatura dele?
46
Jobim – Em primeiro lugar, a decisão não foi monocrática [individual]. Foi tomada por 5 a 2. Esse pressuposto é equivocado. Por outro lado essa afirmação não verdadeira parte também desse paradigma político-eleitoral. Ela parte da ideia de que, como beneficia alguém, foi tomada com esse objetivo. Isso não tem sentido.
A pergunta inicial é feita a partir de um fato que, descrito, é denominado
anaforicamente pelo entrevistado como pressuposto e como afirmação não
verdadeira. A resposta do entrevistado segue toda ela elaborada de modo a
apresentar meta-enunciativamente sua categorização ou avaliação do ato de
enunciação realizado.
Desse modo descritas e exemplificadas as funções cognitivo-discursivas
desempenhadas pelas expressões nominais referenciais, cabe a seguir, neste
trabalho, proceder-se ao estudo do corpus adotado, identificando-se as
mencionadas expressões, definindo suas estratégias de referenciação,
reconhecendo suas funções cognitivo-discursivas e, em seguida, avaliando a lógica
do seu emprego pelo autor dos textos do corpus com vistas a atingir os seus
objetivos.
47
7 Análise do corpus
Como dissemos na Introdução, o objetivo desta dissertação é analisar
expressões nominais referenciais no discurso de Roberto Pompeu de Toledo,
representado nos ensaios Dona Gildair e O Mercosul e a Taça Libertadores,
publicados na revista Veja nos dias 04 de abril e 11 de julho respectivamente, em
2012.
A análise se fará de acordo com os seguintes passos: num primeiro momento
serão identificadas as expressões nominais empregadas, seguindo-se em cada caso
a definição de suas estratégias de referenciação e o reconhecimento das funções
cognitivo-discursivas que desempenham, cada uma de per si. Em um segundo
momento, a análise se completará com uma avaliação da lógica empregada pelo
autor no uso – como recurso argumentativo para provar a sua tese – das expressões
nominais referenciais que foram identificadas e tiveram sua estratégia de
referenciação definida e suas funções reconhecidas.
Seguem-se, então, o primeiro texto do corpus e sua análise.
6.1 Dona Gildair – Texto 1 (Veja, 04.04.2012)
Dona Gildair [1]
André Alves Lezo [2], 21 anos, morto num confronto entre torcidas de
futebol [3] no domingo 25 [4], em São Paulo [5], foi velado e enterrado, no dia
seguinte, vestindo um terno [6].
O traje [7], imposto pela mãe [8], Gildair Alves [9], dizia muita coisa.
Dona Gildair [10] investia-se, na ocasião, de um dos mais típicos e sagrados
papéis de mãe [11] — o que combina o sofrimento [12] com uma santa fúria
[13]. O terno [14] com que ela vestiu o cadáver do filho [15] era um grito de
48
protesto [16] e um resgate de identidade [17].
André [18] integrava a maior das torcidas uniformizadas do Palmeiras
[19], a Mancha Alvi-Verde [20]. Vinham, ele e um grupo de companheiros [21],
por uma avenida da Zona Norte de São Paulo [22] quando foram interceptados
por um grupo de corintianos [23], apontados como integrantes da torcida
Gaviões da Fiel [24].
Horas depois, ocorreria naquele dia jogo [25] entre Palmeiras [26] e
Corinthians [27]. Seguiu-se um conflito entre trezentos torcedores [28], na
maioria armados com paus, pedras e barras de ferro [29], mas alguns também
com armas de fogo [30]. André [31], atingido por um tiro na cabeça [32],
morreu na noite daquele mesmo dia; outro torcedor do Palmeiras [33],
Guilherme Vinicius Jovanelli Moreira [34], atingido por uma barra de ferro [35]
na cabeça [36], morreu dois dias depois.
Entre os presentes ao velório e ao enterro de André [37], na grande
maioria integrantes da Mancha Alvi-Verde [38], muitos vestiam a camisa do
Palmeiras [39] ou da torcida [40]. Se fosse possível computar todos os trajes
[41] que André usou em sua curta vida [42], é provável que a camisa do
Palmeiras [43] se revelasse o [44] mais frequente. Não naquele momento. Por
imposição de dona Gildair [45], André [46] não era mais um “palmeirense” [47],
a qualidade com que mais vezes foi identificado na imprensa [48], e talvez
também a qualidade com que mais vezes terá sido descrito pelos familiares
[49], pelos vizinhos [50], pelos colegas de escola [51]. Dona Gildair [52]
também proibiu bandeiras sobre o caixão [53]. André [54], de terno [55],
voltava a ser André [56], o seu menino [57].
Torcida organizada [58] é uma praga [59] que assola não só o futebol
[60], isso se sabe não é de hoje. Na semana anterior, um conflito [61] em
Campinas [62] entre torcedores [63] do Guarani [64] e da Ponte Preta [65]
também resultara em um morto [66]. O confronto do domingo entre corintianos
e palmeirenses [67] é tido pela polícia [68] como vingança de corintianos [69]
pela morte de um deles [70], no ano passado. De vendeta em vendeta [71],
segue a vida [72] e segue a morte [73]. Nas transmissões de TV [74], quando
49
nos estádios [75] eclode a colossal cantoria [76], ritmada por corpos que se
movimentam [77], as câmeras [78] se fecham nas torcidas [79], os microfones
[80] se abrem, e os locutores [81] se empolgam – “Ouçam o canto da torcida!”
[82], “Observem a coreografia” [83]. Másculas coreografias e gritos em
uníssono [84] merecem ser encarados com mais cautela [85]. Desde as
formações fascistas dos anos 1930/1940 [86] até as da comunista Coreia do
Norte de hoje [87], o objetivo é conclamar à guerra [88].
Nas notas oficiais [89] que divulgaram em sua defesa [90], a Mancha
Alvi-Verde [91] e a Gaviões da Fiel [92] coincidiram num ponto – as duas
culparam a polícia [93]. Ela deveria saber que o local [94] em que se deu o
conflito do domingo [95] — a Avenida Inajar de Souza [96] — faz parte do
trajeto [97] tanto de palmeirenses [98] como de corintianos [99] em demanda
do Estádio do Pacaembu [100]. Sendo assim, [101] deveria providenciar maior
vigilância na área [102], ou impor itinerários diferentes para cada torcida [103].
Os comunicados [104] dão por suposto que torcidas rivais [105] não podem se
encontrar em paz.
Dona Gildair [106] vivia tal realidade de intolerância [107] dentro de
casa. Seus outros dois filhos [108] também pertencem à Mancha Alvi-Verde
[109]. O [110] mais velho, Lucas [111], não é pouca coisa na entidade [112] –
ocupa o cargo de vice-presidente [113]. Num Corinthians x Palmeiras [114] do
ano passado, Lucas [115] levou um tiro na perna [116]. Não contente,
envolveu-se em outra briga [117], neste ano, e está proibido de frequentar
estádios [118]. O próprio André [119] já se envolvera em tumultos [120]
anteriormente, e fora detido duas vezes. O terceiro filho [121], Tiago [122],
gêmeo de André [123], foi detido por porte de arma [124] logo depois do
tumulto que vitimou o irmão [125].
Dona Gildair [126] é evangélica [127]. O marido [128] é policial militar
[129]. Tudo muito brasileiro [130], muito classe C [131]. Os dois filhos gêmeos
[132] estudavam engenharia civil [133] numa universidade particular [134] (no
caso do sobrevivente [135], talvez continue a estudar) – o que indica
perspectiva de ascensão social [136]. Cada lado da família [137] se ampara
numa organização [138], a mãe [139] numa igreja [140], os filhos [141] numa
50
torcida [142] – o que não impede que o perigo [143] ronde permanentemente
por perto. A pedido dos filhos [144], dona Gildair [145] vez por outra ia à sede
da Mancha Alvi-Verde [146], ajudar em trabalhos sociais [147]. Mãe é mãe. No
mais fatídico dia de sua vida [148], no entanto, mater dolorosa [149] e mãe
coragem [150] amalgamadas sob o mesmo vestido de evangélica, comprido
até o tornozelo [151], disse chega.
E mandou pôr um terno [152] no filho [153].
6.1.1 identificação das expressões nominais empregadas no
ensaio Dona Gildair seguindo-se em cada caso a definição
de sua estratégia de referenciação e o reconhecimento das
funções cognitivo-discursivas que desempenha.
Os números entre colchetes correspondem aos referentes identificados,
objetos de discurso introduzidos e retomados ao longo do ensaio. Serão indicadas
apenas as cadeias coesivas principais.
[1] Dona Gildair – Expressão nominal a modo de catáfora, empregada no
título com a função de ativar referente. Início da primeira cadeia referencial.
[2] André Alves Lezo – Expressão nominal a modo de catáfora, empregada
com a função de ativar referente. Início da segunda cadeia referencial.
[3] um confronto entre torcidas de futebol – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta, assim classificada por não haver referente explícito previamente
introduzido no texto, num processo de referenciação implícita com base em
elementos textuais e modelos mentais. É interpretativamente dependente de
elementos de base do cotexto e do contexto. Tem a função de introduzir novo
referente. Início da terceira cadeia referencial.
[4] domingo 25 – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
51
[5] São Paulo – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de introduzir novo referente.
[6] um terno – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de introduzir novo referente. Início da quarta cadeia referencial.
[7] O traje – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
hiperonímica de recategorizar referente na quarta cadeia coesiva.
[8] mãe – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função de
recategorizar referente na primeira cadeia correferencial.
[9] Gildair Alves – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a função
de manter ativado referente na primeira cadeia coesiva.
[10] Dona Gildair – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente.
[11] um dos mais típicos e sagrados papéis de mãe – Expressão nominal a
modo de catáfora, com a função de introduzir novo referente na primeira cadeia.
[12] o (papel) que combina sofrimento com uma santa fúria – Expressão
nominal a modo de anáfora infiel, apresentando, na retomada, uma definição e
esclarecimento (2009, Koch & Elias: 150) e introduzindo novo referente.
[13] sofrimento com uma santa fúria – Expressão nominal a modo de catáfora,
relacionando-se prospectivamente com as expressões "mater dolorosa" [149] e "mãe
coragem" [150].
[14] O terno – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na quarta cadeia.
[15] o cadáver do filho – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de hibridamente introduzir novo referente na primeira e na segunda
cadeias.
[16] um grito de protesto – Expressão nominal a modo de rótulo anafórico,
recategorizando referente e proporcionando ao texto organização macroestrutural.
52
[17] um resgate de identidade – Expressão nominal a modo de rótulo
anafórico, recategorizando referente e proporcionando ao texto organização
macroestrutural.
[18] André – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a função de
reativar referente na segunda cadeia.
[19] a maior das torcidas uniformizadas do Palmeiras – Expressão nominal a
modo de anáfora indireta, com a função de reativar hiponimicamente "torcidas de
futebol" e introduzir novo referente na terceira cadeia coesiva.
[20] a Mancha Alvi-Verde – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de recategorizar referente na terceira cadeia.
[21] um grupo de companheiros – Expressão nominal a modo de anáfora
associativa, processo referencial que pressupõe denotação implícita. Essa
denotação pode ser inferida a partir de elementos do cotexto anterior (torcidas e
Mancha Alvi-Verde) e do contexto sociocognitivo. Esses casos de anáfora
associativa baseiam-se em questões semântico-pragmáticas e em relações
metonímicas de ingrediência ou de atributos (KOCH, 2004: 65). Foi empregada aqui
com a função de introduzir novo referente na terceira cadeia.
[22] uma avenida da Zona Norte de São Paulo – Expressão nominal a modo
de anáfora indireta, com a função de ativar referente na quinta cadeia.
[23] um grupo de corintianos – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente na terceira cadeia.
[24] integrantes da torcida Gaviões da Fiel – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta, com a função de recategorizar referente na terceira cadeia.
[25] jogo – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função de
ativar referente.
[26] Palmeiras – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a função
de reativar referente.
53
[27] Corinthians – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[28] um conflito entre trezentos torcedores – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta, com a função de ativar referente na terceira cadeia.
[29] paus, pedras e barras de ferro – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, com a função de ativar referente.
[30] armas de fogo – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[31] André – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na segunda cadeia.
[32] um tiro na cabeça – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de ativar referente.
[33] outro torcedor do Palmeiras – Expressão nominal a modo de anáfora
infiel, com a função de reativar referente na terceira cadeia coesiva.
[34] Guilherme Vinicius Jovanelli Moreira – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta, com a função de recategorizar referente na terceira cadeia.
[35] uma barra de ferro – Expressão nominal a modo de anáfora associativa,
com a função de ativar referente.
[36] na cabeça – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a função
de reativar referente.
[37] os presentes ao velório e ao enterro de André – Expressão nominal a
modo de anáfora infiel, com a função de hibridamente reativar referente nas
segunda e terceira cadeias correferenciais.
[38] integrantes da Mancha Alvi-Verde – Expressão nominal a modo de
anáfora infiel, com a função de reativar referente na terceira cadeia.
54
[39] a camisa do Palmeiras – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
relacionada à vestimenta de André, com a função de reativar referente na quarta
cadeia.
[40] da torcida – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente na terceira cadeia.
[41] os trajes – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a função de
reativar referente na quarta cadeia coesiva.
[42] sua curta vida – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[43] a camisa do Palmeiras – Expressão nominal a modo de anáfora direta,
com a função de reativar referente na quarta cadeia.
[44] o (traje) – Expressão nominal anafórica, com a função de efetuar
retomada por elipse na quarta cadeia.
[45] dona Gildair – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente na primeira cadeia.
[46] André – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
ativar referente na segunda cadeia.
[47] um “palmeirense” – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de ativar referente.
[48] na imprensa – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[49] os familiares – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[50] os vizinhos – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[51] os colegas de escola – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente.
55
[52] Dona Gildair – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente na primeira cadeia.
[53] bandeiras sobre o caixão – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, com a função de ativar referente.
[54] André – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na primeira cadeia.
[55] terno – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na quarta cadeia.
[56] André – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na segunda cadeia coesiva.
[57] o seu menino – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de recategorizar referente na segunda cadeia.
[58] Torcida organizada – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de recategorizar "torcidas uniformizadas" [19], ativar referente na terceira
cadeia e proporcionar ao texto organização macroestrutural.
[59] uma praga – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de rotular referente na terceira cadeia, recategorizando-o.
[60] o futebol – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente.
[61] um conflito – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[62] Campinas – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[63] torcedores – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a função
de reativar referente na terceira cadeia.
[64] Guarani – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente.
56
[65] Ponte Preta – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[66] um morto – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente.
[67] o confronto do domingo entre corintianos e palmeirenses – Expressão
nominal a modo de anáfora indireta, com a função de recategorizar referente "um
conflito entre trezentos torcedores" [28] na terceira cadeia.
[68] polícia – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função de
ativar referente.
[69] vingança de corintianos – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de rotular referente da terceira cadeia correferencial, recategorizando-
o.
[70] a morte de um deles – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente na terceira cadeia.
[71] De vendeta em vendeta – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de encapsular e ativar referente.
[72] a vida – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função de
ativar referente.
[73] a morte – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente.
[74] Nas transmissões de TV – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, com a função de ativar referente.
[75] nos estádios – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[76] a colossal cantoria – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de ativar referente.
57
[77] corpos que se movimentam – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, com a função de ativar referente.
[78] as câmeras – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[79] as torcidas – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função
de reativar referente na terceira cadeia.
[80] os microfones – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[81] os locutores – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[82] o canto da torcida – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de recategorizar referente na terceira cadeia.
[83] a coreografia – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[84] Másculas coreografias e gritos em uníssono – Expressão nominal a modo
de anáfora indireta, relacionada às torcidas organizadas, com a função de ativar
referente na terceira cadeia e dar ao texto orientação argumentativa.
[85] mais cautela – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[86] as formações fascistas dos anos 1930/1940 – Expressão nominal a modo
de anáfora indireta, com a função de ativar referente.
[87] as (formações) da comunista Coreia do Norte de hoje – Expressão
nominal a modo de anáfora indireta, com a função de ativar referente.
[88] a guerra – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente.
[89] as notas oficiais – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
58
[90] sua defesa – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente na terceira cadeia.
[91] a Mancha Alvi-Verde – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com
a função de reativar referente na terceira cadeia.
[92] a Gaviões da Fiel – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente na terceira cadeia.
[93] a polícia – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente.
[94] o local – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, relacionando-se
com a expressão anterior "uma avenida da Zona Norte de São Paulo" [22], com a
função de ativar referente na quinta cadeia.
[95] o conflito do domingo – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de recategorizar referente.
[96] a Avenida Inajar de Souza – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, com a função de recategorizar referente [22] na quinta cadeia.
[97] o trajeto – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de atualizar conhecimentos por meio de glosa realizada pelo uso de um hiperônimo
e ativar referente na quinta cadeia.
[98] palmeirenses – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente.
[99] corintianos – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função
de reativar referente.
[100] Estádio do Pacaembu – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente.
[101] (a polícia) – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função
de efetuar retomada de referente por elipse, mantendo-o em foco.
59
[102] na área – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, relacionada
hiperonimicamente a [22] com a função de recategorizar referente na quinta cadeia.
[103] itinerários diferentes para cada torcida – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta, relacionada com "trajeto tanto de palmeirenses quanto de
corintianos", com a função de ativar referente na quinta cadeia.
[104] Os comunicados – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de ativar referente, recategorizando "as notas oficiais" e dando orientação
argumentativa ao texto.
[105] torcidas rivais – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a
função de ativar referente na terceira cadeia.
[106] Dona Gildair – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente na primeira cadeia.
[107] tal realidade de intolerância – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, encapsuladora, com a função de ativar referente, proporcionando ao texto
organização macroestrutural.
[108] Seus outros dois filhos – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente na primeira e na segunda cadeias.
[109] a Mancha Alvi-Verde – Expressão nominal a modo de anáfora direta,
com a função de reativar referente na terceira cadeia.
[110] O (filho) – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função
de efetuar retomada por elipse na segunda cadeia.
[111] Lucas – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente.
[112] entidade – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de recategorizar referente, ativando-o na terceira cadeia.
[113] vice-presidente – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
60
[114] Num Corinthians x Palmeiras – Expressão nominal a modo de anáfora
associativa, em que a expressão metonímica relacionada a "jogo" tem a função de
ativar referente.
[115] Lucas – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente.
[116] um tiro na perna – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de ativar referente.
[117] outra briga – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
relacionada a "um tiro na perna" [116], que atingiu Lucas em briga anterior, "num
Corinthians x Palmeiras" [114], com a função de ativar referente.
[118] estádios – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, empregada
hiperonimicamente com a função de ativar referente.
[119] André – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na segunda cadeia.
[120] tumultos – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente, recategorizando a expressão "brigas".
[121] O terceiro filho – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[122] Tiago – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função de
ativar referente.
[123] gêmeo de André – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de ativar referente, recategorizando-o.
[124] porte de arma – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[125] o tumulto que vitimou o irmão – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta, relacionada a "um conflito entre trezentos torcedores" [28]
recategorizando-o.
61
[126] Dona Gildair – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente na primeira cadeia.
[127] evangélica – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente na primeira cadeia, recategorizando-o.
[128] O marido – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[129] policial militar – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente, recategorizando-o.
[130] Tudo muito brasileiro – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com função encapsuladora e ativando referente.
[131] muito classe C – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de recategorizar referente.
[132] Os dois filhos gêmeos – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente.
[133] engenharia civil – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de ativar referente.
[134] universidade particular – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente.
[135] sobrevivente – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a
função de recategorizar e ativar referente.
[136] perspectiva de ascensão social – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, com a função de ativar referente.
[137] Cada lado da família – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a função de ativar referente.
[138] uma organização – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de especificar por meio da sequência hiperônimo/hipônimo e ativar
referente.
62
[139] a mãe – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na primeira cadeia.
[140] uma igreja – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, empregada
hiponimicamente em relação ao hiperônimo "uma organização", com a função de
ativar referente.
[141] os filhos – Expressão nominal a modo de anáfora infiel, com a função de
reativar referente.
[142] numa torcida – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
empregada hiponimicamente em relação ao hiperônimo "uma organização", com a
função de ativar referente.
[143] o perigo – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com a função
de ativar referente.
[144] os filhos – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função
de reativar referente.
[145] dona Gildair – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a
função de reativar referente na primeira cadeia.
[146] Mancha Alvi-Verde – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com
a função de reativar referente na terceira cadeia.
[147] trabalhos sociais – Expressão nominal a modo de anáfora indireta, com
a função de ativar referente.
[148] o mais fatídico dia de sua vida – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta, relacionada à expressão "domingo 25" [4], com a função de rotular
referente, ativando-o.
[149] mater dolorosa – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
relacionada à expressão de conhecimento compartilhado na cultura "Maria das
Dores" ou "Nossa Senhora das Dores", com a função de rotular referente da primeira
cadeia, reativando-o.
63
[150] mãe coragem – Expressão nominal a modo de anáfora indireta,
relacionada à expressão de conhecimento compartilhado na cultura "Mãe Coragem",
da peça teatral de Bertolt Brecht, com a função de rotular referente da primeira
cadeia, reativando-o.
[151] o mesmo vestido de evangélica, comprido até o tornozelo – Expressão
nominal a modo de anáfora indireta, relacionada a estereótipo da cultura, com a
função de ativar referente.
[152] um terno – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função
de reativar referente na quarta cadeia.
[153] o filho – Expressão nominal a modo de anáfora direta, com a função de
reativar referente na segunda cadeia.
6.1.2 Retomada da análise evidenciando de que modo o
desdobramento referencial sustenta o percurso
argumentativo do texto.
Havendo sido identificadas e classificadas as expressões nominais
referenciais apresentadas acima, e havendo sido feito o reconhecimento de suas
funções cognitivo-discursivas, analisaremos agora como o autor construiu tais
expressões e se valeu de seu desdobramento referencial como recurso
argumentativo em seu projeto de dizer para convencer os leitores de sua verdade.
Conduziremos essa análise valendo-nos de expressões nominais incluídas no
quadro anterior (6.1.1), atendo-nos àquelas que o autor emprega na estruturação de
sua tese.
A tese proposta pelo ensaísta foi que Vestindo o cadáver de seu filho com um
símbolo de ascensão social e respeitabilidade, Dona Gildair protestou contra o
status a que foi reduzida juntamente com sua família e contra a morte de seu filho
como um torcedor anônimo.
64
No desenvolvimento de sua argumentação, Pompeu exporá primeiramente a
relação entre torcidas organizadas e violência, o que identifica as torcidas
organizadas em geral, os filhos de Dona Gildair em particular e, mais
especificamente, seu menino morto. Em seguida, o ensaísta incluirá os sinais da
precariedade social em que vive a família. O brado final de protesto levantado por
Dona Gildair denuncia toda essa violência e exclusão, todo o seu sofrimento e
humilhação.
Em seu ensaio "Dona Gildair", Roberto Pompeu de Toledo lida com uma
desafiadora entidade de nossos dias, as "torcidas organizadas", estereótipo
relacionado às associações de torcedores de clubes esportivos no Brasil. Segundo a
Revista Brasil Escola, as primeiras torcidas organizadas foram vistas neste país em
Belo Horizonte e eram compostas de mulheres que compareciam aos estádios para
acompanhar os seus maridos jogadores (http://www.brasilescola.com). Após essa
iniciativa, grupos de torcedores do São Paulo Futebol Clube (foi em 1939 a primeira
torcida organizada a adotar um uniforme), do gaúcho Sport Club Internacional e do
Fluminense passaram a também comparecer aos estádios com algum tipo de
organização e identificação. A prática se espalhou pelo país na década de 1960 e,
nas seguintes, ocorreu uma escalada de violência nas manifestações dessas
torcidas, em confrontos internos e – os mais violentos – com torcidas de outras
agremiações.
O crescimento das torcidas organizadas e o aumento da violência promovida
por elas levaram alguns analistas a publicar literatura a respeito, como por exemplo,
Torcidas Organizadas de Futebol, de Luiz H. Toledo (Campinas: Autores
Associados/Anpocs, 1996); Torcidas Organizadas de Futebol: violência e
autoafirmação, de Carlos A. M. Pimenta (Taubaté: Unitau, 1997); Torcer, lutar, ao
inimigo massacrar: Raça Rubro Negra, de Rodrigo de Araújo Monteiro (Rio de
Janeiro: FGV, 2003), entre outros trabalhos. A presença do tema entre os ensaios
de Pompeu de Toledo se dá pelo mesmo motivo.
As torcidas organizadas de "Dona Gildair" são a Mancha Alvi-Verde –
composta por torcedores da paulistana Sociedade Esportiva Palmeiras – e a
Gaviões da Fiel – organizada e integrada por torcedores do Sport Club Corinthians
65
Paulista –, ambas numerosas e com rivalidade já farta e agressivamente
evidenciada em diversos e sangrentos conflitos, segundo cobertura da imprensa.
Os próprios nomes das agremiações das torcidas organizadas apoiam-se
em intertextualidade significativa quanto a sua agressividade e caráter. Pompeu de
Toledo não desenvolve um argumento em relação a essa nomenclatura,
possivelmente por ter-se equivocado ao construir o perfil de seu auditório. Os
gaviões são aves predatórias de visão aguçada e voo rápido, com bico curvado e
garras fortes e afiadas que tornam suas presas vítimas fáceis. Escolhê-lo para
identificar a sua agremiação revela o espírito e as intenções do torcedor. O nome
Mancha Verde (e depois dele a Mancha Alvi-Verde, por seu turno) dialoga com um
personagem de histórias em quadrinhos, The Phantom Blot, criado pelo artista
estadunidense Floyd Gottfredson em 1939 para os Estúdios Disney (Anexo D).
Trata-se de um ladrão e inimigo do herói Mickey Mouse. The Phantom Blot foi
chamado em português de "Mancha Negra", mas a torcida do Palmeiras parodiou o
nome, pintou de verde o personagem, manteve os traços do desenho original e fez
do bandido o seu herói e emblema. Uma das imagens do Anexo D destaca sua
expressão agressiva. Os nomes "Mancha Alvi-Verde" e "Gaviões da Fiel" alertam
de modo eloquente a sociedade a respeito da identidade dessas agremiações e
dos propósitos de seus afiliados. Em notas emitidas pelas entidades após o
confronto que vitimou André e Guilherme "as duas culparam a polícia", o que,
segundo Pompeu de Toledo, significa que, para elas, "torcidas rivais não podem se
encontrar em paz".
Inicialmente, após identificar o filho [2] de Dona Gildair [1] e as circunstâncias
de sua morte [3], Pompeu informa que André foi velado e enterrado vestindo um
terno [6]. A expressão nominal referencial, empregada a modo de anáfora indireta,
inicia cadeia coesiva de importância central no texto, pois é rotulada em seguida
como sendo "grito de protesto" e "resgate de identidade". O ensaísta informa que o
traje foi imposição da mãe. Ela o exigiu por estar na ocasião desempenhando o que,
na expressão nominal construída por Pompeu, é "um dos mais típicos e sagrados
papéis de mãe" [11]. Esse papel – define e esclarece o texto anaforicamente – é "o
(papel) que combina sofrimento com uma santa fúria" [12]. As expressões
"sofrimento" e "santa fúria" [13], por sua vez, relacionam-se prospectivamente com
as expressões nominais referenciais "mater dolorosa" [149] e "mãe coragem" [150],
66
com as quais Pompeu rotula Dona Gildair. Expressando esse sofrimento e essa
fúria, o terno foi, como registrado acima, rotulado no texto com as expressões
nominais "um grito de protesto" [16] e "um resgate de identidade" [17]. Gildair
revoltava-se contra sua situação de vítima e de oprimida.
A expressão nominal referencial “mater dolorosa” construída por Pompeu a
modo de anáfora indireta, relaciona-se à expressão de conhecimento compartilhado
na cultura "Maria das Dores" ou "Nossa Senhora das Dores" e solicita de seus
leitores que recuperem em sua memória o óleo do mesmo nome do pintor italiano
Ticiano, produzido por volta de 1550 (Anexo E). Essa obra une-se à escultura Pietá
(1498–1499), trabalho anterior de Michelangelo (Anexo F), na releitura do Evangelho
de Lucas a respeito das preditivas palavras do velho Simeão sobre o sofrimento ao
qual seria submetida a mãe de Jesus:
Simeão os abençoou e disse a Maria, mãe do menino: Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações (Lc 2.34-35, nosso grifo).
Ambas as releituras refletem o estereótipo da mãe sofredora recorrente na
religiosidade católico-romana. A expressão construída, portanto, recupera a imagem
da mãe que contempla impotente o sofrimento do filho e desse modo Pompeu rotula
Dona Gildair.
A caracterização da identidade de André é sustentada com a explicação de
que ele integrava "a maior das torcidas uniformizadas do Palmeiras" [19],
recategorizada como "Mancha Alvi-Verde" [20]. Seus amigos [21] eram outros
membros da mesma torcida. Seu companheiro de infortúnio, na ocasião, foi "outro
torcedor do Palmeiras" [33], recategorizado como "Guilherme Vinicius Jovanelli
Moreira" [34]. Os "presentes ao velório e ao enterro de André" [37] eram, segundo o
expressão nominal referencial construída por Pompeu, "na grande maioria
integrantes da Mancha Alvi-Verde" [38], todos identificados com "a camisa do
Palmeiras [39] ou da torcida" [40]. Esse foi o traje mais frequentemente usado pelo
próprio André em "sua curta vida" [42]. Por isso, "mais vezes terá sido identificado
na imprensa [48], e talvez também [...] terá sido descrito pelos familiares [49], pelos
vizinhos [50], pelos colegas de escola" [51] como "palmeirense" [47]. Essa era a
67
realidade dentro da casa de Dona Gildair. "Seus outros dois filhos [108] também
pertencem à Mancha Alvi-Verde" [109] e a identificação deles com a agremiação é
forte. "O mais velho, Lucas [...] ocupa o cargo de vice-presidente" [113]. A expressão
nominal “numa torcida” é construída no texto a modo de anáfora indireta, empregada
hiponimicamente em relação ao hiperônimo "uma organização". Pompeu acredita
que a adesão à torcida organizada é um modo de os rapazes se protegerem das
pressões e dos perigos. Para Pompeu eles se amparam na "torcida" [142].
As expressões nominais referenciais construídas pelo ensaísta deixam clara a
identidade de André: era um palmeirense [47] e membro da torcida organizada
Mancha Alvi-Verde [20]. O texto não faz essa identificação, porém, sem associar as
torcidas organizadas com a violência que vitimou o filho de Dona Gildair. O ensaísta
destaca a relação entre torcidas e violência logo na primeira linha de seu texto, ao
afirmar que André foi "morto num confronto entre torcidas de futebol" [3]. Daí o
"sofrimento" [13] da mãe. A relação entre torcidas organizadas e violência é tida
como natural pelos próprios membros dessas entidades, pelo que se depreende dos
comunicados atribuídos por Pompeu à Mancha Alvi-Verde [91] e à Gaviões da Fiel
[92] após o confronto da Inajar de Souza [96]. Segundo as notas [89] distribuídas por
essas entidades, deveriam ter sido traçados "itinerários diferentes para cada torcida"
[103]. Pompeu releu essa declaração para significar que "torcidas rivais não podem
se encontrar em paz" [105] na opinião desses grupos. A violência então já vinha
rondando a família de Dona Gildair. "... ano passado, Lucas levou um tiro na perna
[116]. [...] envolveu-se em outra briga [117] neste ano". "O terceiro filho [121], Tiago
[122], gêmeo de André [123], foi detido por porte de arma [124] logo depois do
tumulto que vitimou o irmão [125]." Tendo identificado todos os filhos como
associados à torcida organizada, agora o ensaísta os associa todos à violência.
O texto estabelece relação geral entre torcidas organizadas e violência. O
problema não se limita às torcidas de Palmeiras e Corinthians. Para substanciar seu
entendimento, Pompeu constrói a expressão nominal referencial "uma praga" [59] a
modo de anáfora indireta, com a função de rotular o referente "torcidas organizadas"
[58], recategorizando-o, organizando seu texto e imprimindo-lhe orientação
argumentativa. Ao compararmos a expressão "torcidas organizadas" construída em
relação às entidades dos torcedores, à expressão "praga", observamos que essa
última imprime grau superlativo de argumentatividade ao enunciado, fornecendo
68
uma clara indicação do posicionamento do ensaísta a respeito das mencionadas
entidades. O autor, com essa construção, atrai a atenção do leitor no processo de
construção de sentido, influenciando-o. Um conflito [61] entre torcedores [63] do
Guarani [64 e da Ponte Preta [65] é mencionado, com o resultado de "um morto"
[66]. A sequência de violências é descrita na oração "De vendeta em vendeta, segue
a vida e segue a morte", em que " De vendeta em vendeta" recupera como anáfora
associativa a prática mafiosa de vinganças sangrentas, enquanto a declaração
"segue a vida e segue a morte" aponta para o caráter tanto banal quanto trágico
desses acontecimentos. A expressão nominal referencial "a colossal cantoria,
ritmada por corpos que se movimentam" recupera em anáfora associativa as
torcidas organizadas, enquanto "locutores", também a modo de anáfora associativa,
é expressão introduzida para denunciar um equívoco na avaliação do sentido da
mencionada cantoria e sua correspondente coreografia. As expressões dos
locutores "Ouçam o canto da torcida" e "Observem a coreografia" não levam em
conta o caráter bélico desses agrupamentos, sendo elas então contraditadas pelo
texto com a expressão referencial nominal fortemente argumentativa "mais cautela",
que configura introdução de referente por nome-núcleo genérico, com função
contrastiva em relação às celebrações dos locutores: o canto das torcidas é uma
convocação para a "guerra", expressão nominal referencial que rotula e recupera a
modo de anáfora associativa os conflitos entre as torcidas.
A expressão nominal referencial “mãe coragem”, empregada a modo de rótulo
anafórico, superestima o conhecimento de seus leitores, solicitando deles que
resgatem na memória a peça teatral de 1939, Mãe Coragem e seus filhos (Mutter
Courage und ihre Kinder), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Nessa obra, a
mascate Anna Fierling é a desprendida “Mãe Coragem” que convive com a guerra,
procura mesmo tirar proveito dela, mas a vê matar todos os seus filhos. Mãe
Coragem, porém, continua sua trajetória sem despertar qualquer sentimento de
pena. No rótulo de Pompeu essa é Dona Gildair, o que configura um posicionamento
avaliativo com propósito argumentativo. O conflito em que se insere Gildair é a vida
na classe C, aliás, “muito classe C” [131], expressão construída pelo ensaísta para
recategorizar “muito brasileiro”, anáfora com que ele encapsula o relato sobre a
situação da família. O marido de Gildair é apenas um policial militar [129], seus filhos
estudam engenharia civil [133] em uma universidade particular [134], mas, no campo
69
de batalha da classe C, isso significa uma escola desclassificada no ranking das
escolas superiores do país. A perspectiva de ascensão social [136] mencionada pelo
texto soa duvidosa e cada lado da família se apoia em uma organização [138]: os
rapazes, na Mancha Alvi-Verde [142]; Dona Gildair, na igreja [140], ela é evangélica
(127). Pompeu acredita que são todas essas muletas em que se apoiam tais
pessoas, mas isso “não impede que o perigo ronde permanentemente por perto”. A
“Mãe Coragem” se desdobra pelos filhos [147], mas isso não evitou a chegada do
“mais fatídico dia de sua vida” [148], expressão nominal a modo de anáfora indireta,
com a qual Pompeu rotula "domingo 25" [4], dia da morte do filho de Dona Gildair.
Combinando seu sofrimento com sua determinação de continuar, seu protesto
com sua coragem, ela decidiu que seu filho não vestiria na morte a camisa de um
torcedor anônimo. Vestiu-o com um símbolo do status que ele não tivera na
classe C.
É significativo – e argumentativo – que Pompeu tenha construído a expressão
nominal referencial “o mesmo vestido de evangélica, comprido até o tornozelo” a
modo de anáfora indireta, relacionada a estereótipo da cultura. Desse modo ele ativa
referente com a sugestão de que, enquanto na morte André foi libertado de sua
identidade de torcedor e de sua condição social de classe C, Dona Gildair continuou
apoiada em sua muleta. A “Mãe Coragem” continua como mascate na mesma
guerra, mas a “mater dolorosa” expressou sua dor de modo eloquente.
Fica desse modo comprovada a tese de Pompeu de Toledo. Ele sustentou
que, vestindo o cadáver de seu filho com um símbolo de ascensão social e
respeitabilidade, Dona Gildair protestou contra o status a que foi reduzida
juntamente com sua família e contra a morte de seu filho como um torcedor
anônimo.
70
6.2 O Mercosul e à Taça Libertadores da América – Texto 2 (Veja,
11.07.2012)
O Mercosul [1] e a Taça Libertadores [2]
Se alguma dúvida paira ainda, depois dos últimos acontecimentos [3], sobre o
caráter e a natureza do Mercosul [4], a Copa Libertadores da América [5] está
aí para ajudar a dissipá-la. Mercosul [6] e Copa Libertadores [7] são duas
instituições da América Latina [8]. Atuam em ambientes diversos [9], cada qual
com os próprios personagens [10] e os próprios instrumentos [11], mas se
unem na essência [12]. Uma espelha e explica a outra. Na disputa da
Libertadores [13], raro é o jogo [14] em que um jogador [15] não acabe
triturando a canela do outro [16] [17]. Se um dos contendores [18] não sai do
campo [19] para o hospital [20], é porque a partida [21] se caracterizou por
incomum cavalheirismo [22]. Só teve puxões de camisa, cotoveladas e
cusparadas [23], o que, pelos padrões do continente [24], é atestado de bom
comportamento [25]. No Mercosul [26], as cusparadas e cotoveladas [27] dão
lugar a sorrisos e apertos de mão [28]. Mas, como se evidenciou nas últimas
semanas [29], para quem ainda precisava de evidências, prevalece a mesma
característica latino-americana de horror às regras e de opção preferencial
pela malandragem Cusparadas e cotoveladas e pela trapaça [30].
Os locutores [31] chamam de "espírito da Libertadores" [32] o conjunto de
eventos que caracterizam o torneio [33]. Eles dividem os times [34] entre os
que têm e os que não têm "espírito da Libertadores" [35]. Classificam as
partidas [36] mais tomadas pelo afã sanguinário dos contendores [37] como
"típicas da Libertadores" [38]. E se animam com isso. Os jogadores [39] se
estraçalham em campo, a plateia [40] ulula, e os locutores [41] entoam: “É o
es-pí-ri-to da Li-ber-ta-do-res!!!" [42]. O Mercosul [43] é uma instituição de
livre-comércio [44] que permite a seus membros [45] impedir o livre-comércio
[46] entre si por meio de medidas protecionistas [47]. Quando as medidas
71
protecionistas [48] não bastam, inventam-se papéis necessários à circulação
das mercadorias [49] e bloqueia-se a passagem dos caminhões nas fronteiras
[50]. "É o es-pí-ri-to do Mer-co-sul!!!" [51], comemoraria o locutor [52], se
locutor [53] houvesse como há no futebol [54].
O espírito do Mercosul [55] ainda não tinha se revelado de modo tão eloquente
quanto nos acontecimentos precipitados pela destituição do presidente
paraguaio Fernando Lugo [56]. Ao esquisito processo de impeachment [57]
sacramentado em menos de 48 horas sucedeu-se uma esquisita revoada de
chanceleres dos países vizinhos [58] para tentar reverter o quadro. Invadia-se
o campo para tentar alterar o resultado do jogo [59]. No ato seguinte,
denunciou-se uma mais esquisita ainda visita [60] do chanceler da Venezuela
aos comandantes militares paraguaios, para supostamente incitá-los a intervir.
Era um artifício extracampo [61], mais pesado do que a saraivada de objetos
[62] que nos jogos da Libertadores [63] costuma ser lançada sobre o goleiro
do time adversário [64], sobre o juiz [65], ou sobre o pobre coitado [66] que,
nos estádios mais acanhados [67], se prepara para bater o escanteio [68].
Tanto no caso da Libertadores [69] quanto no do Mercosul [70], inesgotáveis
são as artimanhas [71] nos respectivos repertórios [72]. No jogo [73] entre
Corinthians [74] e Boca Juniors [75], na semana passada, o atacante
corintiano Emerson [76] foi flagrado no ato de morder os dedos [77] do
zagueiro adversário [78]. A cena [79] foi mostrada em toda a sua crueza
graças ao novo recurso do zoom em câmera lenta [80] nas transmissões do
futebol [81]. O corintiano [82], meio caído, aproveitou a mão providencialmente
próxima do jogador do Boca Juniors [83] para aplicar-lhe uma dentada [84].
Um ensaio de canibalismo [85] tinha lugar no velho estádio do Pacaembu [86],
que já viu tudo, mas isso ainda não tinha visto. No Mercosul [87], pouco antes,
aproveitara-se a suspensão imposta ao Paraguai [88], em razão da destituição
de Lugo, para aprovar o ingresso da Venezuela [89] no bloco [90]. Era mais do
que marcar gol em impedimento [91]. Para aceitar novos integrantes [92], é
necessária a aprovação dos Congressos dos quatro países-membros [93], e o
Congresso do Paraguai [94] recusava-se a aceitar a Venezuela [95].
Aproveitar a ausência de um dos sócios [96] para passar-lhe a perna
72
equivale a virar a mesa para melar o campeonato, coisa que nem na
Libertadores [97] ainda se ousou fazer.
Emerson [98] marcou os dois gols da vitória corintiana [99], mas não só por
isso, como também pelas inúmeras provocações aos argentinos [100], foi
considerado o herói da partida [101]. O espírito da Libertadores [102] assim o
determina, e vamos em frente. No Mercosul [103], os dois últimos lances [104]
foram o rompimento de relações entre Paraguai e Venezuela [105], por causa
da ação do chanceler venezuelano junto aos generais paraguaios [106], e um
racha no governo uruguaio [107], por causa da tramoia [108] que possibilitou a
adesão da Venezuela ao bloco [109]. Tudo no espírito do Mercosul [110], mas
talvez com peso demasiado para seguir em frente, como se nada tivesse
acontecido.
6.2.1 identificação das expressões nominais empregadas no
ensaio O Mercosul e a Taça Libertadores seguindo-se em
cada caso a definição de sua estratégia de referenciação e o
reconhecimento das funções que desempenha.
Os números entre colchetes correspondem aos referentes identificados,
objetos de discurso introduzidos e retomados ao longo do ensaio. Serão indicadas
apenas as cadeias coesivas principais.
[1] O Mercosul – Expressão nominal a modo de catáfora, empregada no título
com a função de ativar referente que gera a primeira cadeia multirreferencial com
referentes tematicamente associados (Roncarati 2010: 23).
[2] a Taça Libertadores – Expressão nominal empregada a modo de catáfora,
empregada no título com a função de ativar referente que gera a segunda cadeia
multirreferencial do ensaio. Há um emprego híbrido da expressão porque taça, no
campo semântico em questão, é o troféu concedido à equipe campeã, mas refere-se
73
aqui ao próprio torneio, um recurso metonímico que caracteriza uma anáfora
associativa.
[3] os últimos acontecimentos – Expressão nominal empregada a modo de
rótulo prospectivo, com a função de encapsular os eventos citados a seguir na
primeira cadeia referencial, ativando, porém, um novo referente.
[4] o caráter e a natureza do Mercosul – Expressão nominal empregada a
modo de anáfora associativa (KOCH 2004: 63) que reativa a primeira cadeia e
introduz novo referente (o caráter e a natureza do Mercosul), com a função de
promover organização macroestrutural, delineando o tema do autor e preparando o
caminho para a apresentação e defesa de sua tese.
[5] a Copa Libertadores da América – Expressão nominal empregada a modo
de anáfora infiel com a função de reativar primeiro referente da segunda cadeia e
introduzir informação nova.
[6] Mercosul – Expressão nominal empregada a modo de anáfora direta com
a função de reativar na memória o primeiro referente da primeira cadeia, mantendo-
o focalizado.
[7] Copa Libertadores – Expressão nominal empregada a modo de anáfora
infiel com a função de reativar primeiro referente da segunda cadeia, mantendo-o
focalizado.
[8] duas instituições da América Latina – Expressão nominal anafórica que
gera cadeia híbrida (1 e 2) (RONCARATI 2010: 23), empregada com a função de
recategorizar os referentes Libertadores e Mercosul, rotulando-os.
[9] ambientes diversos – Expressão nominal empregada a modo de anáfora
associativa, reativando a cadeia híbrida.
[10] próprios personagens – Expressão nominal empregada a modo de
anáfora associativa, com a função de manter em foco a cadeia híbrida.
[11] e os próprios instrumentos – Expressão nominal empregada a modo de
anáfora associativa, com a função de manter em foco a cadeia híbrida.
74
[12] na essência – Expressão nominal empregada a modo de anáfora
associativa com a função de manter em foco a cadeia híbrida.
[13] disputa de Libertadores – Expressão nominal referencial empregada a
modo de anáfora infiel com a função de reativar referente da segunda cadeia
coesiva.
[14] o jogo – Expressão nominal empregada a modo de anáfora associativa,
estabelecendo-se relação metonímica com Libertadores (Taça e Copa), com as
funções de manter focalizado na segunda cadeia coesiva o objeto velho e introduzir
um novo objeto de discurso.
[15] um jogador – Expressão nominal empregada a modo de anáfora indireta,
assim classificada por não haver referente explícito previamente introduzido no
texto, num processo de referenciação implícita com base em elementos textuais e
modelos mentais. É interpretativamente dependente de elementos de base do
cotexto e do contexto. Tem a função de introduzir novo referente na segunda cadeia.
[16] a canela do outro – Expressão nominal empregada a modo de anáfora
associativa com menção metonímica de jogador adversário e com a função de
introduzir novo referente na segunda cadeia multirreferencial.
[17] outro (jogador) – Expressão nominal omitida em elipse, recuperando e
reativando referente na segunda cadeia.
[18] um dos contendores – Expressão nominal empregada a modo de anáfora
indireta com a função de manter focalizados referentes na segunda cadeia,
recategorizando-os (Jogador e outro [jogador] passam a ser contendores).
[19] campo – Expressão nominal empregada a modo de anáfora indireta com
a função de ativar novo objeto de discurso na segunda cadeia.
[20] o hospital – Expressão nominal empregada a modo de anáfora indireta,
uma vez que, como as anáforas indiretas anteriores, se baseia em associações
mentais, sem referentes explícitos no texto. Sua função cognitivo-discursiva consiste
em ativar referente e proporcionar orientação argumentativa ao texto.
75
[21] a partida – Expressão nominal empregada a modo de anáfora associativa
(é parte da Libertadores), com a função de reativar na memória objeto anteriormente
introduzido na segunda cadeia.
[22] incomum cavalheirismo – Expressão nominal empregada a modo de
rótulo prospectivo, com a função de encapsular e classificar os atos citados a seguir
(puxões de camisa, cotoveladas e cusparadas) e ativar novo referente.
[23] puxões de camisa, cotoveladas e cusparadas – Expressão nominal
empregada a modo de anáfora indireta (com emprego do recurso não linguístico da
ironia) com a função de orientar o texto de modo argumentativo e introduzir novo
referente.
[24] os padrões do continente – Expressão nominal empregada a modo de
anáfora indireta com a função de introduzir novo referente e com função
organizacional, sinalizando o progresso argumentativo do autor.
[25] atestado de bom comportamento – Expressão nominal referencial
empregada a modo de rótulo anafórico, recuperando e recategorizando incomum
cavalheirismo e puxões de camisa, cotoveladas e cusparadas e introduzindo novo
referente na segunda cadeia.
[26] Mercosul – Expressão nominal empregada a modo de anáfora direta com
a função de reativar na memória o correferente da primeira cadeia.
[27] as cusparadas e cotoveladas – Expressão nominal empregada a modo
de anáfora infiel (recupera puxões de camisa, cotoveladas e cusparadas) com
função de reativar referente.
[28] sorrisos e apertos de mão – Expressão nominal empregada a modo de
anáfora indireta com a função de ativar novo referente.
[29] as últimas semanas – Expressão nominal empregada a modo de anáfora
indireta, com a função cognitivodiscursiva de introduzir novo referente, num
processo de referenciação implícita cuja base é a menção anterior aos "últimos
acontecimentos" [3].
76
[30] a mesma característica latino-americana de horror às regras e de opção
preferencial pela malandragem e pela trapaça – Expressão nominal empregada a
modo de anáfora indireta (pressupõe no leitor o conhecimento da cultura e dos
costumes sul-americanos), com a função de recategorizar o referente padrões do
continente, com função organizacional, sinalizando o progresso argumentativo do
autor.
[31] Os locutores – Expressão nominal empregada a modo de anáfora indireta
com a função de introduzir novo referente.
[32] "espírito da Libertadores" – Expressão nominal empregada com função
de rótulo catafórico, ativando novo referente na segunda cadeia.
[33] o conjunto de eventos que caracterizam o torneio – Expressão nominal
empregada a modo de anáfora encapsuladora das descrições feitas do
comportamento dos jogadores na disputa da Libertadores, ativando novo referente
na segunda cadeia.
[34] os times – Expressão nominal referencial a modo de anáfora indireta com
a função de introduzir novo referente na segunda cadeia.
[35] "espírito da Libertadores" – Expressão nominal referencial a modo de
anáfora direta com a função de reativar referente.
[36] as partidas – Expressão nominal referencial a modo de anáfora
associativa por designação hiperonímica (as partidas são partes do torneio
Libertadores) com a função de reativar referente.
[37] o afã sanguinário dos contendores – Expressão nominal referencial a
modo de anáfora indireta com a função de encapsular o relato do comportamento
dos torcedores e introduzir novo referente na segunda cadeia.
[38] "típicas da Libertadores" – Expressão nominal referencial a modo de
anáfora infiel com a função de rotular "as partidas mais tomadas pelo afã
sanguinário dos contendores" e ativar referente.
77
[39] Jogadores – Expressão nominal referencial a modo de anáfora direta com
a função de reativar referente.
[40] plateia – Expressão nominal referencial a modo de anáfora indireta com a
função de introduzir novo referente na segunda cadeia.
[41] os locutores – Expressão nominal referencial a modo de anáfora direta
com a função de reativar referente.
[42] “É o es-pí-ri-to da Li-ber-ta-dores!!!" – Expressão nominal referencial a
modo de anáfora direta com a função de encapsular e sumarizar as informações de
segmentos precedentes.
[43] O Mercosul – Expressão nominal referencial a modo de anáfora direta
com a função de reativar referente.
[44] uma instituição de livre-comércio – Expressão nominal referencial a modo
de anáfora indireta com função definicional (Koch 2004: 75), introduzindo novo
referente com informação nova.
[45] seus membros – Expressão nominal a modo de anáfora associativa com
a função de ativar novo referente na primeira cadeia.
[46] o livre-comércio – Expressão nominal a modo de anáfora direta com a
função de reativar referente.
[47] medidas protecionistas – Expressão nominal a modo de anáfora indireta
com função de ativar novo referente na primeira cadeia.
[48] medidas protecionistas – Expressão nominal a modo de anáfora direta
com função de manter referente em foco.
[49] papéis necessários à circulação das mercadorias – Expressão nominal a
modo de anáfora indireta com função de ativar novo referente na primeira cadeia.
[50] a passagem dos caminhões nas fronteiras – Expressão nominal a modo
de anáfora indireta com função de ativar novo referente na primeira cadeia.
78
[51] "É o es-pí-ri-to do Mer-co-sul!!!" – Expressão nominal anafórica que
parodia a expressão "Espírito da Libertadores" com função de rotular os
procedimentos adotados no Mercosul, ativar novo referente na cadeia híbrida e dar
orientação argumentativa ao texto.
[52] o locutor – Expressão nominal a modo de anáfora direta com função de
reativar referente.
[53] o locutor – Expressão nominal a modo de anáfora direta com função de
reativar referente.
[54] o futebol – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com função de
ativar referente.
[55] O espírito do Mercosul – Expressão nominal a modo de anáfora direta
com função de reativar referente.
[56] os acontecimentos precipitados pela destituição do presidente paraguaio
Fernando Lugo – Expressão nominal a modo de anáfora infiel com função de ativar
referente na primeira cadeia e fornecer informações novas.
[57] o esquisito processo de impeachment – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta com função de ativar referente na primeira cadeia e fornecer
informações novas.
[58] uma esquisita revoada de chanceleres dos países vizinhos – Expressão
nominal a modo de anáfora indireta com função de ativar referente na primeira
cadeia e fornecer informações novas.
[59] resultado do jogo – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com
função de ativar referente e, retomando a cadeia híbrida, fornecer orientação
argumentativa ao texto.
[60] Uma mais esquisita ainda visita – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função de ativar referente e fornecer informações novas.
79
[61] um artifício extracampo – Expressão nominal a modo de anáfora indireta
com função de ativar referente, fornecer informações novas e, retomando a cadeia
híbrida, fornecer orientação argumentativa ao texto. rótulo
[62] a saraivada de objetos – Expressão nominal a modo de anáfora indireta
com função de ativar referente.
[63] jogos da Libertadores – Expressão nominal a modo de anáfora
associativa por designação hiperonímica (os jogos são partes do torneio
Libertadores) com função de ativar referente na segunda cadeia e fornecer
informações novas.
[64] o goleiro do time adversário – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função de ativar referente e fornecer informações novas.
[65] o juiz – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com função de
ativar referente na segunda cadeia.
[66] o pobre coitado – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com
função de ativar referente.
[67] nos estádios mais acanhados – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função de ativar novo referente na segunda cadeia.
[68] o escanteio – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com função
de ativar novo referente na segunda cadeia.
[69] a Libertadores – Expressão nominal a modo de anáfora infiel com função
de reativar referente.
[70] o Mercosul – Expressão nominal a modo de anáfora direta com função de
reativar referente.
[71] as artimanhas – Expressão nominal que, a modo de rótulo catafórico,
recupera prospectivamente os episódios da Libertadores e do Mercosul
mencionados em seguida pelo autor, proporcionando ao texto organização
macroestrutural e orientação argumentativa.
80
[72] os respectivos repertórios – Expressão nominal a modo de catáfora com
função de ativar referente na cadeia híbrida.
[73] jogo – Expressão nominal a modo de anáfora direta com função de
reativar referente.
[74] Corinthians – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com função
de ativar referente.
[75] Boca Juniors – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com
função de ativar referente.
[76] o atacante corintiano Emerson – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função de ativar referente.
[77] o ato de morder os dedos – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função de ativar referente.
[78] zagueiro adversário – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com
função de ativar referente.
[79] A cena – Expressão nominal a modo de anáfora encapsuladora com
função de ativar referente.
[80] novo recurso do zoom em câmera lenta – Expressão nominal a modo de
anáfora indireta com função de ativar referente.
[81] as transmissões do futebol – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função de ativar referente.
[82] O corintiano – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com função
de recategorizar referente.
[83] jogador do Boca Juniors – Expressão nominal a modo de anáfora indireta
com função de ativar referente.
[84] uma dentada – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com
função de ativar referente.
81
[85] Um ensaio de canibalismo – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função rotuladora, recategorizando referente.
[86] o velho estádio do Pacaembu – Expressão nominal a modo de anáfora
indireta com função de ativar referente.
[87] No Mercosul – Expressão nominal a modo de anáfora direta com função
de reativar referente.
[88] a suspensão imposta ao Paraguai, em razão da destituição de Lugo –
Expressão nominal referencial acompanhada de artigo definido a modo de anáfora
indireta com função de reativar referente e dar orientação argumentativa ao texto.
[89] o ingresso da Venezuela – Expressão nominal a modo de anáfora indireta
com função de reativar referente.
[90] no bloco – Expressão nominal a modo de anáfora indireta com função de
recategorizar referente.
[91] gol em impedimento – Expressão nominal a modo de anáfora indireta
com função de recategorizar a expressão o ingresso da Venezuela, reativando a
cadeia híbrida com orientação argumentativa.
[92] novos integrantes – Expressão nominal referencial a modo de anáfora
associativa, com a função de ativar referente e dar orientação argumentativa ao
texto.
[93] a aprovação dos Congressos dos quatro países-membros – Expressão
nominal referencial a modo de anáfora indireta com a função de introduzir
informação nova.
[94] o Congresso do Paraguai – Expressão nominal referencial a modo de
anáfora indireta com a função de introduzir novo referente na primeira cadeia.
[95] a Venezuela – Expressão nominal referencial a modo de anáfora direta
com a função de reativar referente.
82
[96] a ausência de um dos sócios – Expressão nominal referencial a modo de
anáfora indireta com a função de recategorizar referente a suspensão imposta ao
Paraguai.
[97] Libertadores – Expressão nominal referencial a modo de anáfora direta
com a função de reativar referente.
[98] Emerson – Expressão nominal referencial a modo de anáfora direta com
a função de reativar referente.
[99] vitória corintiana – Expressão nominal referencial a modo de anáfora
indireta com a função de introduzir novo referente.
[100] pelas inúmeras provocações aos argentinos – Expressão nominal
referencial a modo de anáfora indireta com a função de encapsular referentes.
[101] o herói da partida – Expressão nominal referencial a modo de anáfora
indireta com a função de rotular e recategorizar referente.
[102] O espírito da Libertadores – Expressão nominal referencial a modo de
anáfora direta com a função de reativar referente com orientação argumentativa.
[103] Mercosul – Expressão nominal referencial a modo de anáfora direta com
a função de reativar referente com orientação argumentativa.
[104] os dois últimos lances – Expressão nominal referencial a modo de
catáfora com a função de introduzir informação nova.
[105] o rompimento de relações entre Paraguai e Venezuela – Expressão
nominal referencial a modo de anáfora indireta com a função de ativar novo
referente na primeira cadeia.
[106] a ação do chanceler venezuelano junto aos generais paraguaios –
Expressão nominal referencial a modo de anáfora indireta com a função de reativar
referente.
[107] um racha no governo uruguaio – Expressão nominal referencial a modo
de anáfora indireta com a função de ativar novo referente na primeira cadeia.
83
[108] tramoia – Expressão nominal referencial rotulando predicativamente os
eventos do Mercosul a modo de anáfora.
[109] a adesão da Venezuela ao bloco – Expressão nominal referencial a
modo de anáfora indireta com a função de reativar referente.
[110] o espírito do Mercosul – Expressão nominal referencial a modo de
anáfora direta com a função de reativar argumentativamente o referente.
6.2.2 Retomada da análise evidenciando de que modo o
desdobramento referencial sustenta o percurso
argumentativo do texto
Havendo sido identificadas e classificadas as expressões nominais
referenciais apresentadas acima, e havendo sido feito o reconhecimento de suas
funções cognitivo-discursivas, analisaremos agora como o autor se valeu daquelas
expressões e de seu desdobramento referencial como recurso argumentativo em
seu projeto de dizer para convencer os leitores de sua verdade. Conduziremos essa
análise valendo-nos de expressões nominais incluídas no quadro anterior (6.2.1),
atendo-nos àquelas que o autor emprega na estruturação de sua tese.
A tese proposta pelo ensaísta é que "Mercosul e Copa Libertadores são duas
instituições da América Latina. Atuam em ambientes diversos, cada qual com os
próprios personagens e os próprios instrumentos, mas se unem na essência. Uma
espelha e explica a outra".
Com o emprego de um elemento catafórico de referenciação (o ensaísta
ainda apresentará os "últimos acontecimentos" [3] a que agora se refere
cataforicamente) e num processo de ativação ancorada em elementos que ele
pressupõe presentes no contexto sóciocognitivo dos interlocutores (as definições de
"Mercosul" [1] e de "Taça Libertadores" [2] ou "Copa Libertadores da América" [7]
não se encontram no cotexto além da afirmação de que são duas instituições da
América Latina e de que Mercosul é "uma instituição de livre-comércio" [44]),
84
Pompeu de Toledo inicia seu ensaio de 11 de julho de 2012 intitulado "O Mercosul e
a Taça Libertadores". A expressão nominal inicialmente empregada, "a natureza e o
caráter do Mercosul" [4], prepara terreno para a afirmação da tese anotada acima,
que o autor se dedicará a provar ao longo do ensaio. O próprio ensaísta deixa claro
seu propósito de convencer o leitor, mediante a comparação do Mercosul com a
Libertadores, acerca da identidade da natureza e do caráter de ambas as
instituições. O cotejo se fará a partir dos mencionados "últimos acontecimentos" [3].
O nome Mercosul refere-se à personalidade jurídica internacional criada a
26 de março de 1991, quando Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai assinaram o
Tratado de Assunção, criando o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), com o
objetivo de integrar os seus quatro membros, empregando para esse fim a livre
circulação de bens e serviços, estabelecendo uma tarifa comum externa,
compartilhando uma política comercial, políticas macroeconômicas e setoriais, bem
como também promovendo a harmonia das leis nas áreas pertinentes. Além de
seus quatro membros, são seus associados atualmente a Bolívia e o Chile (desde
1996), o Peru (desde 2003), a Colômbia e o Equador (desde 2004). Desde 2012,
numa medida controvertida denunciada neste ensaio por Pompeu de Toledo – são
"os últimos acontecimentos" a que ele se refere –, a Venezuela tornou-se também
membro.
Ocorre que há fortes desavenças entre os países participantes,
especialmente entre Brasil e Argentina, que competem pela liderança no bloco e
no continente, em áreas que vão desde o futebol até a economia, de modo que,
apesar de o Mercosul existir como uma forma de cooperação entre seus membros,
o que há de fato é competição e protecionismo nas relações comerciais, como se
constata no exemplo a seguir: por força do acordo celebrado entre os participantes,
não se cobram impostos sobre produtos adquiridos dos outros membros do bloco.
O generalizado desequilíbrio nas contas desses países, porém, os coloca
repetidamente em situações nas quais precisam urgentemente de recursos
financeiros. O que fazem, então, é barrar a entrada de produtos do Mercosul e
promover a importação de bens de outras procedências, que pagarão ao entrar
elevadas tarifas alfandegárias, configurando essa manobra um matreiro modo de
manipular as regras estabelecidas pelos próprios membros do pacto. Para agravar
as relações e minar a confiança geral no grupo, a entrada no Mercosul de seu
85
membro mais recente, a Venezuela do então presidente Hugo Chavez, ocorreu de
modo condenável. É que o Paraguai, um dos membros fundadores, estava
suspenso desde o impeachment do seu presidente Fernando Lugo no ano anterior,
não podendo o Congresso paraguaio, portanto, exercer seu direito de veto sobre a
entrada da Venezuela, o que certamente teria feito se tivesse participado do
processo.
A Copa Libertadores da América, ou simplesmente Libertadores, é uma
competição internacional de futebol que ocorre anualmente desde 1960, com a
participação de equipes dos países sul-americanos, incluindo o México, país da
América do Norte convidado desde 1998. Trata-se do torneio de maior prestígio na
América do Sul, uma vez que seu campeão tem o direito de disputar o título mundial
com vencedores de competições equivalentes realizadas em outros continentes. Por
causa da xenofobia dos sul-americanos em relação aos seus vizinhos, com
resultante e agressiva rivalidade, a Libertadores tem jogos marcados pela violência e
outras modalidades de desrespeito às regras do futebol e da civilidade.
Iniciando a comparação, Pompeu de Toledo emprega primeiro expressões
nominais referenciais cuidadosamente escolhidas para construir o que entende ser
"o caráter e a natureza" [4] da Libertadores. Após recuperar "Copa Libertadores da
América" [5] com a expressão nominal "disputa da Libertadores" [13] a modo de
anáfora infiel, ele introduz os referentes "jogo" [14] e "jogador" [15] como anáforas
associativas (recuperando "Libertadores" [13], pois baseiam-se em relações
metonímicas de ingrediência), e esse último referente, por sua vez, é recategorizado
pela anáfora indireta "contendores" [18]. Sua escolha lexical potencializa, pelo
significado virtual da expressão nominal empregada, o clima bélico de uma partida
da Libertadores, em que, segundo o ensaísta, é "raro o jogo [14] em que um jogador
[15] não acabe triturando a canela [16] do outro" [17]. O operador argumentativo
"raro" localiza-se entre a afirmação plena e a negação plena e fortalece a tese do
clima bélico. É dito a seguir que ocorrência normal é sair um jogador
(sugestivamente recategorizado como "um dos contendores" [18]) do campo para o
hospital [20]. A análise da ironia empregada pelo ensaísta foge ao escopo deste
trabalho, que se restringe aos aspectos estritamente linguísticos. Ironia, porém, é o
que emprega o autor ao construir predicativamente a expressão nominal "incomum
cavalheirismo" [22] a modo de rótulo prospectivo com a função de encapsular e
86
classificar "puxões de camisa, cotoveladas e cusparadas" [23]. Para concluir o que
pensa sobre a natureza e caráter da Libertadores, Pompeu se refere aos "padrões
do continente" [24], organizando seu arrazoado com essa anáfora indireta e, outra
vez ironicamente, recuperando e recategorizando "puxões de camisa, cotoveladas e
cusparadas" com o rótulo anafórico "atestado de bom comportamento" [25].
Numa reativação da primeira cadeia multirreferencial, o referente Mercosul
[26] é focalizado por meio de uma repetição literal, anáfora direta ou fiel e em
seguida é dito que nele "as cusparadas e cotoveladas [27] dão lugar a sorrisos e
apertos de mão". Haveria, então, diferença entre Mercosul e Libertadores em seu
caráter e natureza? A declaração final do parágrafo é particularmente interessante
do ponto de vista da argumentação: "Mas, como se evidenciou nas últimas semanas
[...] prevalece a mesma característica latino-americana de horror às regras e de
opção preferencial pela malandragem e pela trapaça". Pompeu emprega a anáfora
infiel "últimas semanas" [29] para recuperar "últimos acontecimentos" [3] e
apresentá-los como evidência de que, no Mercosul, apesar da distinção
mencionada, observa-se "a mesma característica latino-americana de horror às
regras e de opção preferencial pela malandragem e pela trapaça" [30].
Essa expressão nominal referencial – "últimas semanas" [29] – foi empregada
a modo de anáfora indireta, com a função cognitivo-discursiva de introduzir novo
referente, num processo de referenciação implícita cuja base é a menção anterior
aos "últimos acontecimentos" [3], possuindo, portanto, forte acento argumentativo,
uma vez que, na declaração do ensaísta, são esses acontecimentos que dissiparão
dúvidas ainda existentes "sobre o caráter e a natureza do Mercosul" [4].
Como visto anteriormente neste trabalho (p.24), o princípio da
intertextualidade – constitutivo de um texto – refere-se à dependência da produção
e da recepção dele em relação a outros textos. A rigor, a intertextualidade ocorre
quando se observa no texto, implícita ou explicitamente, a inserção de outro texto.
Sendo explícita a inserção é feita clara menção ao texto pelo locutor. Sendo
implícita espera o locutor que o interlocutor possa ativá-la na memória discursiva, a
menos, obviamente, que se trate de plágio.
87
A expressão nominal referencial "opção preferencial pela malandragem e pela
trapaça" [30] empregada por Pompeu dialoga com a expressão "opção preferencial
pelos pobres", popularizada pela finada Teologia da Libertação, um movimento sul-
americano sincretista não denominacional, não institucional, de caráter filosófico e
político – embora travestido de religiosidade –, com ideologia abertamente calcada
no marxismo ateu. A Teologia da Libertação era orientada por uma reinterpretação
dialética e antropocêntrica da fé cristã, para a qual a salvação consiste na libertação
de injustas condições econômicas, políticas ou sociais, de onde a "opção
preferencial pelos pobres". Ao explorar o contexto sociocultural e recuperar esse
referente intertextual presente na memória discursiva de seus leitores, Pompeu o
parodia com a expressão nominal "opção preferencial pela malandragem e pela
trapaça" [30] para destacar as características sul-americanas do Mercosul,
importantes para o ensaísta ao dar seu segundo passo em seu projeto de identificar
as instituições Mercosul e Taça Libertadores da América como dotadas do mesmo
perfil antiético latino-americano, possuidoras de idênticos caráter e natureza, unidas
em sua essência.
Com a expressão nominal "locutores" [31] o ensaísta emprega uma anáfora
indireta, propiciando a ativação de novo objeto do discurso para o qual não
corresponde um antecedente no cotexto, num processo de referenciação implícita,
constituído com base em modelos cognitivos e inferências ancoradas nos sintagmas
nominais definidos (a Copa [5], o jogo [14], a partida [21]). Tomando emprestada
expressão cunhada por eles – e dando-lhes crédito –, Pompeu reativa o referente
Libertadores e rotula como "espírito da Libertadores" [32] "o conjunto de eventos que
caracterizam o torneio" [33]. Essa última, por sua vez, é uma expressão nominal
empregada a modo de anáfora encapsuladora das descrições anteriormente feitas
do comportamento dos jogadores na disputa da Libertadores. Essas rotulação e
sumarização adquirem contornos claramente argumentativos na busca do autor pela
comprovação de quais sejam a natureza e o caráter da competição futebolística e do
Mercosul, pois recuperam anaforicamente "últimos acontecimentos" [3]. A expressão
nominal referencial "afã sanguinário dos contendores" [37] é menção anafórica do
ensaísta a sua afirmação anterior segundo a qual, "raro é o jogo em que um jogador
não acabe triturando a canela do outro" [16-17]. Pompeu apela para a avaliação dos
aludidos locutores e, numa clara demonstração de intencionalidade, recupera "as
88
partidas mais tomadas pelo afã sanguinário dos contendores" [37] com o rótulo
argumentativo "típicas da Libertadores" [38].
O referente Mercosul [43] retomado introduz cataforicamente "uma instituição
de livre comércio" [44], mas nega o ensaísta que o Mercosul o seja, dando exemplos
comprobatórios de sua proposição: "O Mercosul [42] é uma instituição de livre-
comércio [43] que permite a seus membros [44] impedir o livre-comércio [45] entre si
por meio de medidas protecionistas [46]. Quando as medidas protecionistas [47] não
bastam, inventam-se papéis necessários à circulação das mercadorias [48] e
bloqueia-se a passagem dos caminhões nas fronteiras" [50]. As medidas
protecionistas somadas aos entraves burocráticos e físicos são sarcasticamente
contrapostas à categorização "uma instituição de livre-comércio" [44].
Empregando anaforicamente o rótulo avaliativo "espírito do Mercosul" [51]
Pompeu parodia os locutores esportivos e desse modo identifica essa instituição
com a Libertadores em sua natureza e caráter, o que proporciona ao texto forte
orientação argumentativa. Com essa rotulação o texto dá sequência a ambas as
cadeias referenciais, pois focaliza o torneio de futebol e o Mercosul.
Numa cadeia linear, a anáfora direta "espírito do Mercosul" [55] retoma o
referente citado, que "ainda não tinha se revelado de modo tão eloquente". Pompeu
passa a relatar as ocorrências no âmbito do Mercosul e continua a compará-lo com
a Libertadores para comprovar a tese da identidade essencial entre ambas. A
expressão ''os acontecimentos precipitados pela destituição do presidente paraguaio
Fernando Lugo" [56], é uma anáfora infiel, recuperada por sua vez metonimicamente
pelas anáforas associativas "esquisito processo de impeachment [57] sacramentado
em menos de 48 horas" e "uma esquisita revoada de chanceleres dos países
vizinhos [58] para tentar reverter o quadro". A avaliação de Pompeu emprega
estereótipos da Libertadores para referir-se ao Mercosul e desse modo outra vez os
identifica: "Invadia-se o campo para tentar alterar o resultado do jogo", em que
"resultado do jogo" [59] é anáfora indireta relacionada ao que as manobras dos
governos do Mercosul almejavam efetuar. Outra expressão nominal a modo de
anáfora indireta, "uma mais esquisita ainda visita [60] do chanceler da Venezuela
aos comandantes militares paraguaios, para supostamente incitá-los a intervir" foi
rotulada por Pompeu como "um artifício extracampo" [61], outra maneira de
89
identificar o Mercosul com a Libertadores, a competição futebolística com a qual a
anáfora indireta "um artifício extracampo" se relaciona. Ainda comparando, o
"artifício" do chanceler venezuelano é avaliado como "mais pesado do que a
saraivada de objetos [62] que, nos jogos da Libertadores [63], costuma ser lançada
sobre o goleiro do time adversário [64], sobre o juiz [65], ou sobre o pobre coitado
[66] que, nos estádios mais acanhados [67], se prepara para bater o escanteio" [68].
Para Pompeu, o Mercosul é igual ou pior do que a Libertadores e essa sua
convicção ele continua a expor de modo argumentativo com o cuidadoso emprego
de expressões nominais referenciais para o convencimento e persuasão de seus
leitores.
O projeto do ensaísta de estabelecer a semelhança do Mercosul com a
Libertadores em seu caráter e natureza prossegue com as comparações que se
seguem. A identidade dessas instituições é reafirmada com a retomada alternada
de ambas por meio correferencial de anáforas fiéis e com a declaração em seguida
de que "inesgotáveis são as artimanhas [71] nos respectivos repertórios" [72] –
retomando a cadeia híbrida (RONCARATI, 2010: 23) por se referir tanto à
Libertadores [69] como ao Mercosul [70] (Nosso grifo). A expressão nominal
referencial "as artimanhas" [71] como rótulo catafórico, proporciona ao texto
organização macroestrutural e orientação argumentativa uma vez que, nesse
parágrafo, são dados exemplos das alegadas inesgotáveis artimanhas. Pompeu
inclui, no que concerne à Libertadores, o que rotula anaforicamente e recategoriza
como "um ensaio de canibalismo" [85] ocorrido no jogo entre Corinthians [74] e
Boca Juniors [75] da Argentina. O jogador corintiano Emerson [76] "foi flagrado no
ato de morder os dedos [77] do zagueiro adversário" [78]. No Mercosul [87], o
exemplo correspondente de "horror às regras e de opção preferencial pela
malandragem e pela trapaça" [30] foi, segundo o texto, "mais do que marcar um gol
em impedimento" [91], uma rotulação anafórica que reativa a cadeia híbrida e
categoriza argumentativamente a irregular aprovação da entrada da Venezuela
[89] no bloco [90]: para conseguir esse feito seus membros aproveitaram a
ausência do Paraguai [96], que teria vetado tal ingresso se tivesse estado
presente.
Concluindo o ensaio, Pompeu emprega a expressão nominal referencial
Emerson [98], a modo de anáfora direta com a função de dar ao texto organização
90
macroestrutural. Insistindo nos traços de caráter da Libertadores, o ensaísta
recategoriza Emerson, que teria sido eleito como "o herói da partida" [101] entre
Corinthians e Boca Juniors não só por haver marcado os dois gols da vitória
corintiana: foram importantes para essa escolha as "inúmeras provocações aos
argentinos" [100], expressão nominal referencial que recupera a modo de anáfora
indireta "os últimos acontecimentos" [3]. Isso se explica pelo "espírito da
Libertadores" [102], rótulo retomado para resumir predicativamente tais atitudes.
Pompeu emprega a expressão nominal referencial Mercosul [103], a modo de
anáfora direta com a função de dar ao texto organização macroestrutural, uma vez
que passa a informar a "artimanha" correspondente no âmbito do Mercosul. É feita
menção a "o rompimento de relações entre Paraguai e Venezuela" [105]. O
emprego do artigo definido nessa anáfora indireta pressupõe o pré-conhecimento
do leitor sobre tal informação e Pompeu acrescenta que tal rompimento resultou da
"ação do chanceler venezuelano" [106] – expressão nominal a modo de anáfora
indireta relacionada à ingerência desse diplomata nos assuntos internos do
Paraguai. Outra demonstração da natureza do Mercosul foi "um racha no governo
uruguaio, por causa da tramoia que possibilitou a adesão da Venezuela ao bloco"
[109]. Mantendo o intencional viés argumentativo do texto, Pompeu construiu a
expressão nominal referencial "tramoia" [108], rótulo que, como a expressão
anterior "as artimanhas" [71], relaciona-se como anáfora indireta com os rótulos
"espírito da Libertadores" [102], "espírito do Mercosul" [55], e com as anáforas
indiretas "afã sanguinário dos contendores" [37] e "característica latino-americana
de horror às regras e de opção preferencial pela malandragem e pela trapaça" [30].
Ao longo de seu ensaio e no desenvolvimento das cadeias referenciais
"Mercosul" e "Libertadores", com o emprego de expressões nominais referenciais
intencionalmente escolhidas, Roberto Pompeu de Toledo alcança seu objetivo de
demonstrar a identidade de caráter e de natureza entre ambas as instituições sul-
americanas, equivalendo-se então "o espírito da Libertadores" e "o espírito do
Mercosul", tanto um como outro marcados pelo "horror às regras e [...] opção
preferencial pela malandragem e pela trapaça".
Fica desse modo comprovada a sua tese, segundo a qual, "Mercosul e Copa
Libertadores são duas instituições da América Latina. Atuam em ambientes diversos,
91
cada qual com os próprios personagens e os próprios instrumentos, mas se unem
na essência. Uma espelha e explica a outra".
Como dissemos na Introdução, o objetivo específico desta dissertação foi
analisar as expressões nominais referenciais empregadas na construção dos textos
que compõem o corpus adotado. Sublinhamos o modo como tais expressões
nominais serviram ao propósito do dizer do seu autor, aos seus objetivos
argumentativos, expondo o contraste entre esses objetivos e sua sugestão
apresentada em seu ensaio Anchieta e Nóbrega na reunião da CNBB (Veja 1.640 –
15.03.2000, Anexo C). Naquele texto, Roberto Pompeu de Toledo insinua que
ninguém deve dedicar-se a convencer outro de sua verdade particular, uma vez que
isso "conduz ao mal-estar". Para Pompeu, "os tempos atuais recomendam respeito
ao próximo e tolerância. Isso significa aceitar que o outro tem suas razões. Vale
dizer, outra verdade". Em seus ensaios, porém, particularmente nos dois incluídos
no corpus desta dissertação, Pompeu faz bom uso da referenciação para convencer
seus leitores a respeito da verdade de suas teses e persuadi-los a agir de acordo.
92
Considerações finais
Reconhecemos, com Marcuschi, que "a questão referencial é central tanto na
produção textual como na compreensão" (2008: 139).
Como declarado na Introdução deste trabalho, porém, a relação constitutiva
da referenciação com a elaboração de textos argumentativos despertou
particularmente o meu interesse em seu estudo. O princípio da intencionalidade,
constitutivo do texto, relaciona-se com o fato de a argumentação estar inserida na
própria língua e ser em parte responsável pela compreensão de um texto e
apreensão do projeto de dizer de seu autor. Daí não se poder falar de texto sem
incluir consequente e inevitavelmente a argumentação e ser essa, por sua vez, a
razão por que coesão e coerência, características de um texto bem arquitetado,
são produto de uma atividade cultural intencionada, "propriedades inerentes à
intencionalidade articulada com a aceitabilidade" (GUIMARÃES, 2009: 24). É que o
autor sabe precisamente qual é o seu propósito e ao receptor propõe uma parceria
relacionada ao entendimento subjetivo de suas intenções. Tenciona suscitar o
interesse dele, mas deverá contar com o receptor para a aceitação dos recursos
apresentados com vistas ao alcance dos objetivos adotados. O texto deverá,
então, ser bem cuidado.
O fato de o ser humano possuir capacidade intelectual, disposição para
avaliar, julgar, decidir e escolher explica a inevitável presença no texto da
intencionalidade, a partir da qual se transmitem ideologias e conceitos. Ocorre que
essas capacidade e disposição apoiam-se na argumentatividade, que se observará
então em suas interações e comunicações de modo regular, dada a característica
social de nossa existência.
"A neutralidade, sustenta Koch, é apenas um mito", pois "a simples seleção
das opiniões a serem reproduzidas já implica, por si mesma, uma opção" (2011:
17). Além disso, não apenas informações podem ser veiculadas, mas "a frase pode
comportar diversas expressões ou termos que, além de seu conteúdo informativo,
servem para dar uma orientação argumentativa ao enunciado, para conduzir o
destinatário em tal ou qual direção (GUIMARÃES, 2004: 148).
93
Dentre várias expressões com o mesmo potencial argumentativo, decidimos
escolher as expressões nominais referenciais como objeto deste estudo. Com
Mondada & Dubois (2003), adotamos o entendimento de referenciação como
construção de objetos de discursos, ou ainda como "O processo que diz respeito às
diversas formas de introdução no texto de novas entidades ou referentes" (KOCH &
ELIAS, 2009: 132).
A partir de tal assunção, este trabalho desenvolveu-se na área de estudo da
Linguística Textual com o propósito geral de examinar o papel determinante da
referenciação no processo argumentativo. O objetivo específico foi o de analisar
expressões nominais referenciais no discurso de Roberto Pompeu de Toledo, tal
como encontrado em dois de seus textos, Dona Gildair e O Mercosul e a Taça
Libertadores, publicados na revista Veja respectivamente nas datas 04 de abril e 11
de julho de 2012. A análise se fez mediante o estudo da linha de coesão referencial
dos textos, a identificação do papel desempenhado pelas expressões referenciais
nominais na argumentação, sua estratégia e função.
Por ser dotado de vasto e reconhecido repertório – evidente em seus ensaios
regulares e em outros trabalhos esporádicos para a mesma revista – o autor
emprega recursos que desnudam a sua intencionalidade e propósito de convencer e
persuadir seu leitor. São eloquentes suas escolhas para referir-se a seres, fatos,
fenômenos, eventos, atividades ou estado de coisas com o propósito de levar a cabo
o seu projeto de comunicação, como se constatou na análise apresentada. Foram,
nas palavras de Charaudeau, escolhas "de efeitos de sentido para influenciar o
outro, isto é, no fim das contas, escolha de estratégias discursivas" (2006: 39) ou,
como propôs Elias, escolhas que "revelam não somente do que [Pompeu de Toledo]
têm conhecimento (e seus interlocutores), mas também – e principalmente – como
por meio das formas referenciais [ele descreve] as coisas que existem e acontecem
no mundo, deixando entrever nessa descrição um posicionamento avaliativo com
propósito argumentativo (2010: 55, nosso grifo).
O primeiro texto apresentado vem impregnado de tocante sensibilidade
humana. Foi feita nesse ensaio denúncia da violência associada ao futebol – o que
se vê também no segundo texto, “O Mercosul e a Taça Libertadores da América”.
Pompeu de Toledo sustenta que essa violência que explode em intoleráveis
94
exibições de intolerância e em inaceitáveis conflitos sangrentos – e que é camuflada
pelos locutores de futebol – descaracteriza o ser humano, devendo, porém, ser
restaurada a sua identidade e dignidade, o que dona Gildair fez em seu momento de
maior revolta e sofrimento.
No segundo texto analisado, aquele sobre "O Mercosul e a Taça
Libertadores", o propósito de Pompeu de Toledo de denunciar o caráter e a natureza
do Mercosul, identificando-o com a Libertadores, foi atingido por meio da avaliação
de episódios envolvendo cada uma das instituições mencionadas. Na avaliação,
com o emprego de expressões nominais referenciais intencionalmente escolhidas, a
identidade de caráter e de natureza entre ambas as instituições sul-americanas foi
estabelecida. O leitor terá sido convencido de que há equivalência entre "o espírito
da Libertadores" e "o espírito do Mercosul", tanto um como outro marcados pelo
"horror às regras e [...] opção preferencial pela malandragem e pela trapaça".
Sustentamos que a argumentação de Pompeu de Toledo caracteriza-se
como um ato de persuasão. Ato de persuasão, não apenas de convencimento,
porque persuadir não é apenas convencer, mas conduz à ação (Koch, 2011: 18).
Além de buscar convencer, pela adesão racional do leitor aos seus postulados,
Pompeu de Toledo busca movê-lo a agir contra o que foi denunciado.
As decisões do autor quanto à referenciação foram determinantes para seu
sucesso na argumentação em favor de suas teses, devido à natureza pragmática da
escolha dos referentes e devido ao seu papel significativo no desenvolvimento da
argumentação, que é constitutivamente consciente e finalisticamente orientada em
relação aos leitores. Pompeu tratou de convencer o locutário das suas posições,
elaborando cuidadosamente os referentes, de acordo com suas escolhas léxico-
semânticas – ativando, reativando-os, desfocalizando.
Uma análise exaustiva do emprego do recurso da referenciação nos ensaios
adotados para estudo não foi o escopo deste trabalho, pelo fato de várias das
ocorrências e casos de referenciação verificados no texto não contribuírem para
comprovação da tese principal do ensaísta.
95
Cremos, porém, que os resultados alcançados servirão de estímulo para
outros estudos na área, com grande proveito para seus autores e para os que os
pesquisarem.
Cremos, igualmente, que, a despeito da resistência dos setores
representados por Roberto Pompeu de Toledo – aqueles segmentos da sociedade
que, como o ensaísta, pretendem coibir a livre apresentação e debate de ideias
diferentes e mesmo conflitantes – o franco uso da língua continuará evidenciando
seu caráter constitutiva e intencionalmente argumentativo, com o emprego de meios
representados neste trabalho pelos refinados recursos da referenciação.
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ANEXO B – ANCHIETA E NÓBREGA NA REUNIÃO DA CNBB
Anchieta e Nóbrega na reunião da CNBB
Veja 1.640 – 15.03.2000
O projetado pedido de perdão da Igreja pelo
modo como catequizou os índios diz muito
de um mal-estar que é de hoje.
Suponha-se que os padres José de Anchieta e Manuel da Nóbrega
comparecessem à reunião que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
realizará em abril. A reunião, aproveitando o quinto centenário do Descobrimento,
debaterá um pedido de perdão pelos erros cometidos pela Igreja no processo de
colonização do Brasil, em especial com relação aos índios e aos negros. "Estão de
acordo em que houve erros?", seria perguntado aos célebres jesuítas.
"Mas certamente muito pouco fruto se teria colhido se a força e o braço
secular não tivessem acudido para domá-los (os índios) e submetê-los ao jugo da
obediência", objetaria Anchieta. Constrangimento. Sussurros na sala. Anchieta volta
à carga: "Para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara
de ferro". Exclamações de "oh", protestos. O padre Nóbrega sai em socorro do
pupilo: "Era uma espécie de gente de condição mais de feras bravias que de gente
racional".
Diante de tamanho desatino, só mudando de assunto. Um dos presentes tem
a ideia de perguntar a Nóbrega o que se poderia fazer para melhorar a situação no
colégio que fundara na Bahia. O padre faz uma pausa, depois responde: "A melhor
coisa que se podia dar a este colégio seria duas dúzias de escravos da Guiné,
machos e fêmeas, para fazerem mantimentos em abastança para a casa, enquanto
outros andariam em um barco pescando".
Era o que faltava. Escândalo. O primeiro provincial dos jesuítas no Brasil,
plantador de cidades, protagonista na fundação de São Paulo e coadjuvante nas de
Salvador e Rio de Janeiro, é convidado a retirar-se. Anchieta acompanha-o. À guisa
de consolo, vai lembrando quão ignorantes são esses interlocutores de cinco
séculos adiante. Não sabem nada. Não sabem, por exemplo, que "os índios têm por
sumo deleite comer-se uns aos outros". Anchieta revolta-se. "O sereníssimo Rei de
Portugal", murmura, "saberá mandar para aqui uma força armada e numerosos
exércitos, que deem cabo de todos os malvados que resistem à pregação do
Evangelho."
A reunião é inventada, mas as citações de Nóbrega e Anchieta são reais.
Foram extraídas da copiosa correspondência deixada por eles e transcritas apenas
com ligeiras adaptações. Ou melhor: inventada é a participação dos dois jesuítas na
reunião da CNBB, pois a reunião ocorrerá mesmo. Nela, ao fazer uma "retrospectiva
sobre esses cinco séculos de atuação evangelizadora", a CNBB "deverá pedir
perdão por atitudes ambíguas e pecaminosas de pessoas ou grupos dentro da
Igreja, por vezes decorrentes de conivências com os colonizadores, no processo de
evangelização" (artigo de dom Cláudio Hummes no jornal O Estado de S. Paulo,
8/3/2000). Tudo muito agradável às plateias atuais, muito politicamente correto, até
generoso – mas um tanto surrealista e parcial.
Surrealista porque, um pouco à moda dos diálogos inventados acima, só que
a sério, arma-se uma salada de tempos históricos diversos. Usam-se a mentalidade
e a ética de hoje para julgar os procedimentos de homens de outra mentalidade e
outra ética. Condená-los hoje, pelos critérios atuais, por pensar o que pensavam e
fazer o que faziam, é como condená-los por insistirem em viajar em caravelas em
vez de tomar logo um avião. Parcial porque, no limite, toda evangelização viola de
alguma forma a pessoa humana, e não apenas a efetuada segundo os métodos dos
séculos 16 ou 17. Evangelizar, ou catequizar, é querer impor sua verdade ao outro.
É convidar o outro, ao adotar todo um novo sistema de crenças e valores, a destruir
aquele no qual se formou, com os resultados desestabilizadores que se conhecem
em sua estrutura emocional e na vida social. Se é o caso de questionar a
evangelização, por que só a do período colonial?
O projetado pedido de perdão da CNBB fala mais do mal-estar atual que dos
erros de outrora. Uma religião em princípio considera-se detentora da única verdade.
As igrejas mais ainda. A Igreja Católica julga-se até infalível. Ora, os tempos atuais
recomendam respeito ao próximo e tolerância. Isso significa aceitar que o outro tem
suas razões. Vale dizer, outra verdade. Mas como fica a minha verdade, única e
indivisa, se aceito a verdade do outro? Eis o impasse, que conduz ao mal-estar. O
perdão da CNBB revela uma tolerância própria da mentalidade atual – mas, se a
verdade é única, como permitir que índios e negros continuassem apartados dela?
E, se era para trazê-los a seu seio, como fazê-lo fora dos quadros mentais e
comportamentais então em vigor?
"Perdão por quê, cara pálida?", perguntaria Nóbrega, não tivesse sido
bruscamente calado na reunião descrita acima. "Não fôssemos nós, quem estaria
com reunião marcada, 500 anos depois, seria outra entidade. Não a conferência dos
bispos, mas a dos pajés. E, se também eles fossem atacados por algum tipo de mal-
estar, aproveitariam para pedir perdão por terem feito churrasco daqueles padres
intrometidos que chegavam com a intenção de destronar seus deuses."
ANEXO D – FAC-SÍMILE DE CAPA DO ALMANAQUE DO MANCHA NEGRA E
IMAGENS DA LOGOMARCA DA TORCIDA UNIFORMIZADA MANCHA ALVI-
VERDE
The Phantom Blot é um personagem das histórias em quadrinhos da Walt
Disney. Trata-se de um inimigo do herói Mickey Mouse. Sua primeira aparição nas
aventuras do Mickey foi em Mickey Mouse Outwits The Phantom Blot, história do
artista Floyd Gottfredson publicada em forma de tiras de jornal de 20 de maio a 9 de
setembro de 1939.
Com a aquisição dessas histórias no Brasil pela Editora Abril em 1950, elas
passaram a ser traduzidas e publicadas em nosso país. The Phantom Blot veio junto
e recebeu o nome de Mancha Negra.
O design do Mancha Alvi-Verde segue o original de Floyd Patterson, com a
expressão feroz destacada e com a cor alterada para verde, de modo a identificá-lo
com a Sociedade Esportiva Palmeiras.
ANEXO E – IMAGEM DE MATER DOLOROSA, DE TIZIANO VECELLIO
Mater Dolorosa, de Tiziano Vecellio, 1550 (Museu do Prado, Madri)
ANEXO F – IMAGEM DE PIETÁ, DE MICHELANGELO BUONARROTI
Pietá, de Michelangelo Buonarroti, 1498 (Basílica de São Pedro, Vaticano)
ANEXO G – FOTOGRAFIA DE CENA DA PEÇA MÃE CORAGEM E SEUS FILHOS
E DE BERTOLT BRECHT
Mãe Coragem e seus filhos, de Brecht (Berlim, 1939). Cena de montagem.
Bertolt Brecht (Augsburgo, 10.02.1898 — Berlim Leste, 14.08.1956)
Cláudio Antônio Batista Marra Endereço para acessar este CV:http://lattes.cnpq.br/0019480494319075
Última atualização do currículo em 16/06/2014
Resumo informado pelo autor
Possui graduação em Comunicação Social pela Faculdade Cásper Líbero -- SP (1980), graduação
em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (1972) e Doutorado em Ministério
Pastoral - Reformed Theological Seminary MS--USA (2005). Mestrando em Letras pelo Mackenzie
(Orientador Prof. Dr. José Gaston Hilgert) participou da Atividade Programada obrigatória – XVI
Mostra de Pós-Graduação em Letras (Língua e Literatura: Letras em Debate)
(Texto informado pelo autor)
Dados pessoais
Nome Cláudio Antônio Batista Marra
Filiação Claudino Batista Marra e Antônia Bueno Marra
Nascimento 04/06/1947 - Guanhães/MG - Brasil
Carteira de Identidade 50307095 SSP - SP - 11/01/1996
CPF 129.088.008-53
Endereço residencial Rua Doutor Elisio de Castro, 354 Vila Dom Pedro I - São Paulo 04277010, SP - Brasil Telefone: 011 25893062 Celular 011 995829901
Endereço profissional Casa Editora Presbiteriana Rua Miguel Teles Jr. 394 Cambuci - São Paulo 01540040, SP - Brasil Telefone: 011 33462710
Endereço eletrônico E-mail para contato : [email protected] e-mail alternativo : [email protected]
Formação acadêmica/titulação
2001 - 2005 Doutorado em Ministério Pastoral. Reformed Theological Seminary, RTS, Estados Unidos Título: RICHARD BAXTER’S MINISTRY AND THE TRAINING OF SUNDAY SCHOOL TEACHERS IN THE LOCAL CHURCH, Ano de obtenção: 2006 Orientador: Dr. Allen Curry Bolsista do(a): Refomed Theological Seminary
1978 - 1980 Graduação em Comunicação social. Faculdade Cásper Líbero, FCL, Sao Paulo, Brasil
1969 - 1972 Graduação em Bacharel em Teologia. Faculdade Teológica Batista de São Paulo, FTBSP, Brasil
Eventos
Eventos
Participação em eventos
1. XVI Mostra de Pós-Graduação em Letras, 2012. (Exposição) Dialogismo no Discurso do Anúncio Novo Fiat Pálio 2012.
Totais de produção
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