UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo...
Transcript of UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo...
1
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ULBRA
UMA PEDAGOGIA CULTURAL MILITANTE: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO
HALAN KARDECK FERREIRA SILVA
CANOAS-RS 2009
2
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ULBRA
UMA PEDAGOGIA CULTURAL MILITANTE: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO
HALAN KARDECK FERREIRA SILVA
CANOAS-RS 2009
3
HALAN KARDECK FERREIRA SILVA
UMA PEDAGOGIA CULTURAL MILITANTE:
REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universi-dade Luterana do Brasil do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Edgar Roberto Kirchof
CANOAS-RS 2009
4
A Deus, senhor do universo.
À minha mãe Raimunda Ferreira Lira.
Ao meu pai José Gomes da Silva (em memória).
Aos meus avós Francisco Teixeira Lira (em memória) e Olga Ferreira dos Santos.
À minha esposa Lia e meus filhos Maria Clara e David.
Aos meus irmãos Tânia Maria, Girlene Francisca e Cássio.
Aos meus sobrinhos José Levi e Olga Marina.
A H. Dobal e Marcílio Rangel (em memória).
A M. Paulo Nunes, R. N. Monteiro de Santana e Cineas Santos, amigos de fé.
A todos que se julgam meus amigos, citados ou não, com a minha gratidão.
5
AGRADECIMENTOS
Ao professor Doutor Edgar Roberto Kirchof, por sua dedicação à minha causa.
Ao Leonardo Dias, livreiro dedicado.
1
RESUMO
SILVA, Halan Kardeck Ferreira. Uma pedagogia cultural militante: representações e identidades de vaqueiro no Cinema Novo. Canoas: ULBRA, 2009. 95 fl. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009.
Esta dissertação, intitulada “Uma pedagogia cultural militante: representações e identidades de vaqueiro no Cinema Novo”, constitui-se da análise de representações de vaqueiro conforme articuladas pelo Cinema Novo brasileiro, sendo que tais representações são compreendidas como constituidoras de identidades culturais. O corpus da análise é composto por dois textos fílmicos pertencentes à primeira fase do Cinema Novo - Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Vidas Secas (1965), de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, respectivamente. O trabalho está fundamentado teoricamente nos Estudos Culturais em educação, embora também tenham sido utilizados, como suporte para as análises, alguns estudos realizados no contexto da crítica literária e da crítica de cinema. Alguns dos principais conceitos empregados são pedagogias culturais, diferença, representação e identidade cultural. No referencial teórico, constam trabalhos realizados por autores como Stuart Hall, Tomás Tadeu da Silva, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Ismail Xavier, Renato Ortiz, Randal Johnson, Shirley Steinberg, entre outros. Os principais resultados do trabalho apontam para a existência de uma identidade híbrida construída no bojo dos filmes analisados, sendo que o vaqueiro é freqüentemente representado a partir de traços comuns a outras identidades culturais já consagradas na cultura nordestina. No filme de Glauber Rocha, predominam as representações do vaqueiro como um cangaceiro e como um beato, ao passo que, no filme de Nelson Pereira dos Santos, predomina a noção naturalista de um vaqueiro animalizado, comum ao romance de Graciliano Ramos. A principal conclusão do trabalho é que tais representações são mobilizadas, no âmbito do Cinema Novo, como uma pedagogia cultural militante, destinada a motivar o espectador para uma atitude crítica frente à realidade social e econômica injusta e opressora que predomina no Nordeste e, por extensão, em todo o Brasil.
Palavras-chave: Identidades de Vaqueiro – Pedagogias culturais – representação –– diferença.
2
ABSTRACT
SILVA, Halan Kardeck Ferreira. A militant cultural pedagogy: representations and identity of herdsman in the New Movie. Canoas: ULBRA, 2009. 95 fl. Dissertation (Master Degree in Education) – Pos-Graduation Degree Program in Education. Lutheran University of Brazil, Canoas, 2009. This paper named “A militant cultural pedagogy: representations and identity of herdsman in the New Movie”, consisted of an analysis of representations of herdsman articulated by the brazilian New Movie, understanding that such representations are guidance of cultural identities. The corpus of the analysis is constituted by two film strip texts belonged to the first phase of the New Movie – Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) and Vidas Secas (1965), by Glauber Rocha and Nelson Pereira dos Santos, respectively. This study is based theoretically on Cultural Studies in Education, although some studies accomplished in the context of both literary and movie criticism have also been used as support to the analysis. Some of the main concepts used are cultural pedagogies, difference, representation and cultural identity. It also has contributions from authors´ work such as: Stuart Hall, Tomás Tadeu da Silva, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Ismail Xavier, Renato Ortiz, Randal Johnson, Shirley Steinberg, among others. The main results of this work point out to the existence of a hybrid identity developed in the core of the movies analysed, observing that the herdsman is often represented since usual traits to other cultural identities devoted in the northeast culture. In the Glauber Rocha´s movie predominates the representations of herdsman both as an outlaw and a beatified man, while in the Nelson Pereira dos Santos movie predominates the naturalist conception of an animalized herdsman, common to the novel of Graciliano Ramos. The main conclusion of this paper is that such representations are mobilized, in the New Movie scope, as a militant cultural pedagogy, addressed to motivate the audience to a critical attitude towards the economic unfair social oppressive reality that predominates in the Northeast and, by extension, in the whole Brazil. Key- words: Herdsman Identities – Cultural Pedagogies – Representation – Difference.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 09
1. O CINEMA NA PERSPECTIVA CULTURAL ............................................
1.1 Construindo um Caminho nos Estudos Culturais .........................................
1.2 Breve Histórico do Cinema ..............................................................................
1.3 Do Cinema que diverte ao Cinema que Ensina ..............................................
1.4 Metodologia .......................................................................................................
12
12
15
18
22
2. O NORDESTE NO UNIVERSO DIEGÉTICO DO CINEMA NOVO .......
2.1 Do Romance Social de Trinta ..........................................................................
2.2 Linguagem e Tradução – Do Romance ao Cinema .......................................
2.3 O Cinema Novo no Brasil – Uma Pedagogia Cultural Militante ......................
2.4 Representação e Identidade Cultural ............................................................
25
30
33
36
44
3. REPRESENTAÇÕES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO ....................
3.1 Sinopse ................................................................................................................
3.1.1 Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) ............................
3.1.2 Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) ...........................................
3.2 As Representações do Vaqueiro ......................................................................
3.2.1 O Vaqueiro Artista ...........................................................................................
3.2.2 O Vaqueiro Devoto ..........................................................................................
3.2.3 O Vaqueiro Insurreto .......................................................................................
3.2.4 O Vaqueiro Oprimido ......................................................................................
3.2.5 O Vaqueiro Animalizado .................................................................................
50
50
50
51
52
56
62
70
74
83
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 87
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 90
ANEXO (Canções) ................................................................................................... 94
9
INTRODUÇÃO
Na cultura popular do Nordeste brasileiro, especialmente nos sertões de dentro,
as identidades do vaqueiro convivem com várias outras representações e identidades
culturais populares. No Piauí, onde durante séculos, a pecuária extensiva foi a principal
atividade econômica, a presença do vaqueiro na cultura foi e continua sendo de grande
relevo. Por conta disso, ao ingressar no programa de mestrado em Educação e Estudos
Culturais da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA –, dei início a uma pesquisa
envolvendo representações e identidades culturais de vaqueiro, a partir do contato com os
Estudos Culturais, o que possibilitou um novo olhar sobre as representações e identidades
culturais populares do sertão nordestino.
Esse novo olhar caracteriza-se por uma compreensão que pretende se afastar do
estritamente histórico, do discurso laudatório ou de uma visão romântica e apaixonada das
representações e das identidades sertanejas, buscando, antes, os aspectos relacionados com
a própria construção das identidades na cultura. Em agosto de 2008, num átimo, veio-me a
idéia de trabalhar, dentro de uma perspectiva estético-pedagógica, algumas representações
que contribuem para a construção de identidades culturais em torno do vaqueiro,
nomeadamente a partir do Cinema Novo. No contexto desse momento do cinema nacional,
escolhi dois textos fílmicos de sua primeira fase que reputo como antológicos, a saber,
Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Vidas Secas (1963), de Glauber Rocha e Nelson
Pereira dos Santos, respectivamente.
O Cinema Novo, ao procurar conciliar uma visão declaradamente politizada a
uma estética inovadora, apresenta-se como uma das mais importantes vertentes
cinematográficas da contemporaneidade. Para os cinemanovistas, o cinema tem uma
função social definida, não é sinônimo de entretenimento, pois assume o lugar de um
eficaz instrumento pedagógico de atuação na transformação da sociedade brasileira e, num
contexto mais amplo, da América Latina ou, quem sabe, de todos os cenários onde atuou o
antigo colonialismo. Dentro de um amplo movimento cultural muito marcado pela
presença da juventude e da intelectualidade, o Cinema Novo aparece no momento em que
o mundo passa por mudanças substanciais em várias frentes, como na tecnologia, na
política e na cultura. Em vários continentes, estouravam movimentos de descolonização e
10
de afirmação cultural, todavia, na mesma intensidade, o processo de colonização renovava-
se, recrudescia nos termos do imperialismo cultural e econômico.
Em minha pesquisa, o cinema é apresentado como artefato cultural e como
uma instância pedagógica muito atuante na sociedade contemporânea. Por essa razão,
advirto que não tenho intenção de teorizar ou fazer crítica de cinema. Pretendo refletir
sobre o modo como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, ao construírem suas
versões cinematográficas sobre o Nordeste, cada um ao seu modo, numa perspectiva
estético-pedagógica de cunho marxista, ao mesmo tempo em que fazem uma crítica da
“realidade” brasileira, acabam mobilizando diferentes representações e identidades
culturais, algumas delas de cunho popular e já existentes no sertão.
Para atingir o fim colimado, fez-se necessário passar em revista alguns
aspectos históricos, literários e culturais que refletem diretamente na composição daqueles
dois textos fílmicos. Nesse desiderato, afora os autores já considerados clássicos no campo
dos Estudos Culturais, foram de suma importância para o desenvolvimento da presente
pesquisa também outros teóricos de áreas afins, tais como Randal Johnson – crítica do
cinema –, Gilberto Freire – sociologia –, Euclides da Cunha – literatura – e principalmente
Durval Muniz de Albuquerque Júnior – estudos foucaultianos –, com A invenção do
Nordeste. Assim, longe de querer estabelecer uma genealogia na acepção foucaultiana do
termo, ao analisar as principais representações e identidades culturais populares do sertão,
procuro argumentar que essas representações e identidades não são essências que sempre
existiram, mas que são dobraduras construídas dentro de relações históricas marcadas pelas
tensões e contradições inerentes aos jogos de poder que perpassam a própria história da
humanidade.
A presente dissertação acha-se estruturada em 3 capítulos distintos que, ao
final, encerram uma unidade de sentido. No primeiro capítulo, intitulado “O cinema na
perspectiva cultural”, faço um relato da minha trajetória acadêmica e do meu interesse pelo
tema do vaqueiro e pelo cinema; em seguida, apresento uma síntese histórica do cinema,
desde a invenção do cinematógrafo até a sua trajetória no exterior e no Brasil. Além disso,
também procuro demonstrar o lugar do cinema como uma das atuantes pedagogias
culturais em atividade na sociedade contemporânea. Por fim, nesse capítulo, eu também
apresento a metodologia adotada para o trabalho, em articulação com o campo dos Estudos
Culturais em Educação.
No segundo capítulo, “O Nordeste no universo diegético do Cinema Novo”, eu
procuro, inicialmente, explicitar os vínculos do Cinema Novo com o Modernismo
11
brasileiro. Em seguida, trato de esclarecer o processo utilizado pelos cinemanovistas para
transpor textos, originalmente produzidos em sistema de linguagem verbal, para um
sistema de linguagem audiovisual. Além disso, também realizo uma exposição do histórico
e da concepção estético-pedagógica do Cinema Novo Brasileiro e discorro sobre os
conceitos de representação e de identidade cultural articulados na pesquisa.
Por fim, no terceiro capítulo, além de levantar a ficha técnica e apresentar
brevemente o enredo dos filmes, parto para as análises das representações e identidades
culturais mobilizadas e construídas em torno do vaqueiro nordestino, encerrando a
pesquisa a partir dos elementos que ligam estética e ideologicamente os filmes de Glauber
Rocha e Nelson Pereira dos Santos, sob o pano de fundo dos preceitos apregoados pelo
Cinema Novo.
12
1 O CINEMA NA PERSPECTIVA CULTURAL
1.1 Construindo um Caminho nos Estudos Culturais
Parte considerável da minha infância, eu vivi em Campo Maior, uma
cidadezinha provinciana encravada na região centro-norte do Piauí. Como no poema
Cidadezinha Qualquer, de Carlos Drummond de Andrade, o tempo por ali passava
devagar. A inesperada chegada de um circo era mais que o suficiente para alterar a rotina
da cidade. Gente de roupas e sotaque diferentes, palhaços montados em pernas-de-pau,
anunciando, em megafones enfeitados, as atrações do espetáculo circense. Homens,
mulheres, crianças se apressavam para o local onde o circo estava armado. Ansiosos,
queriam ver os animais exóticos da longínqua selva africana: leões melancólicos, macacos
eletrizados e, excepcionalmente, um elefante solitário.
Como a maioria das cidades antigas do Piauí, Campo Maior surgiu no caminho
do gado. Por essa razão, desde a mais tenra idade, eu venho convivendo com a presença
real ou imaginária de vaqueiros encouraçados. O meu avô materno, antes de deixar o sertão
e viver na cidade, fora vaqueiro numa fazenda de gado chamada Evereste. Dele eu ouvi as
primeiras histórias de vaqueiros e de bois encantados. Fora isso, na feira popular de Campo
Maior, que rotineiramente acontecia às segundas-feiras de cada semana, eu via um pouco
mais da realidade e da vida sertaneja. Para a feira, vinham os sertanejos comprar ou vender
gêneros de primeira necessidade e produtos do campo. No burburinho da feira, havia uma
profusão de sons, de vozes fazendo pregão: vendilhões de passarinho, de folhetos de
cordel, de ervas do sertão (mezinhas), vaqueiros semi-encouraçados, cegos cantadores,
mendigos, loucos de rua e marreteiros com bancas de jogo de azar.
Para mim, nenhum dos tipos humanos que freqüentavam a feira deixou mais
fortes impressões que o vaqueiro. Tamanha era a presença dele, que as celebrações
religiosas e culturais mais aguardadas do ano relacionavam-se ao dia do vaqueiro, o
segundo sábado do mês de junho, que é o mês em que a cidade festeja Santo Antônio de
Lisboa, o santo padroeiro de Campo Maior: novena, procissão, leilões e vaquejada. A
cidade ficava alvoroçada, repleta de vaqueiros. Quem não era vaqueiro, nessa ocasião,
dava um jeito - arrumava gibão e montaria e saía por aquelas ruas de paralelepípedos quase
perfeitos.
13
Os vaqueiros com que me identifiquei na infância tinham uma imagem
marcante. Costumava vê-los encouraçados, em traje completo, quando vinham para as
homenagens a Santo Antônio. Assomavam aos magotes, todos vestidos de gibão, guarda-
peito, chapéu de couro, aguantes, mocó, esporas e, alçado numa das mãos, um rebenque de
couro cru, usado para açoitar o cavalo de campo, que não era menos composto que o
vaqueiro. As peças da montaria resumiam-se à sela campeira, que é um conjunto de peças
de couro e metal: coxim, riçafas, loros, estribos, cilhas dianteiras e traseiras, rabicho,
cabresto, cabeção, rédea, cabeçada e bainha de mata bicheira. Essa imagem de vaqueiro,
juntamente com os relatos de atos heróicos dos vaqueiros que lutaram na Batalha do
Jenipapo, as músicas de Luiz Gonzaga, de João do Vale e textos cênicos de Francisco
Pereira da Silva, diga-se de passagem, meu conterrâneo, Chapéu-de-Sebo (1966), O
Desejado e o Romance do Vilela (1973), contribuíram, decisivamente, para fortalecer a
minha identificação com a representação de vaqueiro que há pouco descrevi. O primeiro
texto é baseado na história de um vaqueiro que viveu e morreu em Campo Maior (seu
túmulo passou a ser cultuado por muitos sertanejos da região), os dois últimos são
adaptações cênicas de duas obras antológicas da literatura de cordel. As peças de Francisco
Pereira da Silva despertaram-me o interesse pela literatura popular, onde a presença do
vaqueiro é recorrente.
O meu interesse pelo cinema também veio cedo. Para minha sorte, Campo
Maior era uma das poucas cidadezinhas da região que se dava o luxo de ter um teatro e um
cinema em pleno funcionamento nos anos setenta. Porém, salvo raras exceções, os filmes a
que eu assistira na infância eram, em sua maioria, vinculados ao gênero hollywoodiano, ao
circuito industrial de cinema: Western, aventuras, artes marciais, romances açucarados e
uma velha película italiana da Paixão de Cristo, que todo ano era exibida no Cine Nazaré,
durante a Semana Santa. Os filmes de Western mexiam com minha imaginação, pois me
faziam associar o mundo dos Cowboys americanos ao mundo dos vaqueiros do sertão.
Quando passei a viver em Teresina, pude ampliar o meu gosto pelo cinema. Vi,
no Cine Royal, dois filmes, não diretamente compromissados com o cinema industrial, que
influenciaram decisivamente a minha maneira de ver filmes. Refiro-me a O Expresso da
Meia Noite (Alan Parker, 1978) e ao documentário musical Rock É Rock Mesmo (Peter
Clifton e Joe Massot, 1976), da banda de rock Led Zeppelin1. Esses dois filmes me
deixaram ao mesmo tempo perplexo e maravilhado, pois eles me fizeram reavaliar tudo o
1 Documentário que, mormente, traz imagens de um show realizado em 1973 no Madison Square Garden de New York para divulgação do LP Houses of the Holy.
14
que eu havia visto em matéria de cinema. Tempos depois, não sei bem como, fiquei
sabendo da criação de uma sala de cinema no auditório Professor Herbert Parentes Fortes.
Eu não imaginava que se tratava de um Cine Clube, pois esse termo sequer existia no meu
parco vocabulário provinciano. Passei a freqüentá-lo aos sábados para ver filmes
diferentes, coisas do cine cult, fora do gênero hollywoodiano de cinema: o expressionismo
alemão, a montagem soviética, o surrealismo, o impressionismo francês, o neo-realismo
italiano, a nouvelle vague e o Cinema Novo brasileiro. De repente, sem perceber, estava
me tornado um cinéfilo, posto que passei a adotar critérios pré-definidos sobre cinema, a
ver filmes de arte, a evitar filmes comerciais, a discutir cinema, a observar quem eram os
diretores e, sobretudo, a assistir aos filmes no circuito alternativo.
O cinema de arte reacendeu em mim algo que estava semi-adormecido desde
que passei a viver em Teresina: a simpatia pela identidade cultural do vaqueiro. No lugar
do cowboy americano, eu vi, dominando a cena, em filmes como Deus e o Diabo na Terra
do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), vaqueiros
encouraçados, beatos, cangaceiros e retirantes. Eu vi aquela gente do sertão que eu nem
imaginava que um dia fosse capaz de figurar nas telas do cinema. Portanto, esses filmes
alternativos fizeram-me olhar para o vaqueiro de um modo diferente, posto que passei a
desconstruir aquela imagem um tanto quanto mítica do vaqueiro do sertão. Esses filmes
trouxeram-me outros valores, fizeram-me ver, em lugar do heroísmo romântico, um
vaqueiro empobrecido, vítima de um sistema de poder pré-capitalista.
Superada a fase inicial do programa de Mestrado, em que me familiarizei com
os Estudos Culturais, dediquei-me a buscar um tema relacionado à minha cultura regional,
que pudesse ser trabalho na perspectiva dos Estudos Culturais e da Educação, e que, ao
mesmo tempo, fosse-me agradável. A solução encontrada estava exatamente naqueles
filmes a que assisti nos circuitos alternativos de cinema, naqueles filmes quase artesanais
que, na maioria das vezes, eram realizados em países pobres com baixo orçamento e
voltados para os temas populares. Essas condições do cinema alternativo possibilitaram-me
encontrar o que eu mais desejava no momento, um caminho que me permitisse desenvolver
uma pesquisa, envolvendo, de algum modo, representação e identidade cultural de
vaqueiro, cinema e educação.
Em síntese, a minha proposta de dissertação para o Programa de Mestrado em
Educação ofertado pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, em convênio com o
Centro Federal de Educação Tecnológica do Piauí – CEFET-PI, consiste, basicamente, em
fazer análises de dois textos fílmicos e mostrar como eles, estética e pedagogicamente,
15
através de eficientes práticas discursivas, atuaram e continuam atuando no processo de
construção de representações e identidades culturais de vaqueiro. Os textos fílmicos a
serem analisados são Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Vidas
secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963).
1.2 Breve Histórico do Cinema
Neste capítulo, apresento uma breve sinopse da invenção do cinema e do
desenvolvimento do cinema nacional, no intuito de retomar um pouco da história do
cinema no mundo e no Brasil, pois o Cinema Novo também pode ser visto como um dos
tantos capítulos da história do cinema nacional e mundial.
No final do século XIX, vários pesquisadores mobilizaram-se no sentido de
inventar um aparelho que fosse capaz de registrar imagens em movimento. Nessa
empreitada, lograram êxito o americano Thomas Edison, que, em 1893, na América do
Norte, registrou o seu Vitascópio, e os irmãos Louis e Auguste Lumière, que, em 1895, na
cidade de Paris, no subsolo do Grand Café, mostraram ao público o Cinematógrafo. O
invento de Thomas Edison não se popularizou, fora da América do Norte, tanto quanto o
cinematógrafo dos irmãos Lumière. Para Costa (2006, p.19), o sucesso do cinematógrafo
no mundo deve-se ao fato de ele ser mais leve e de ter um design mais funcional.
O primeiro cinema não apareceu com linguagem própria. Resumia-se ao
registro de cenas de dança, exibição de atletas, de animais amestrados ou mesmo à imagem
de um trem chegando à estação ferroviária ou de trabalhadores saindo de uma fábrica. O
cinema não fora concebido com a finalidade de contar histórias. Sobre esse assunto,
Aumont (1995, p.89) afirma que,
nos primeiros tempos de sua existência, o cinema não se destinava a se tornar maciçamente narrativo. Poderia ser apenas um instrumento de investigação científica, um instrumento de reportagem ou de documentário, um prolongamento da pintura e até um divertimento efêmero de feira. Fora concebido como um meio de registro, que não tinha a vocação de contar histórias por procedimentos específicos.
As formas de linguagem e expressão específicas do cinema foram,
posteriormente, desenvolvidas pelo francês George Mèliés, pelo norte-americano D.W.
Griffith e pelo russo Serguei Eisenstein. Com eles, o cinema deixou de ser um instrumento
de registro, libertou-se da narrativa do teatro, adquiriu uma linguagem própria e se tornou
uma das mais fascinantes maneiras de contar histórias já inventadas pelo ser humano.
16
Costa (2006, p. 22) informa que os filmes teriam, aos poucos, superado suas limitações
iniciais e se transformado em arte ao encontrar os princípios específicos de sua linguagem,
ligados ao manejo da montagem como elemento fundamental da narrativa. Para Carrière
(1995, p. 22) o cinema inventou a si mesmo e imediatamente se copiou, se reinventou.
Inventou até mesmo funções até então desconhecidas: operador de câmara, diretor,
montador, engenheiro de som; todos, gradualmente, desenvolveram e aperfeiçoaram seus
instrumentos de trabalho.
Leite (2005, p. 19-20) informa que o cinema no Brasil chegou, ainda que haja
controvérsias, por volta do ano de 1898, quando o italiano Afonso Segreto, em 19 de
junho, a bordo do paquete francês Brésil, realizou nossa primeira filmagem, que ficou
conhecida como Fortaleza e navios de guerra na baía de Guanabara. Portanto, pode-se
dizer que o cinema não chegou ao Brasil com atraso, pois veio pouco tempo depois de ter
sido inventado na Europa e na América do Norte.
No ano de 1906, assomou no cenário nacional, que já priorizava as produções
hollywoodianas, o primeiro filme genuinamente brasileiro de sucesso: Os estranguladores.
Cedo, o cinema nacional tomou impulso e, entre 1907-1911, desenvolveu-se aqui o que a
historiografia cinematográfica brasileira classificou como A Bela Época do cinema
nacional. Em 1912, é fundada a Companhia Cinematográfica Brasileira. Apesar do
empenho de seu diretor, Francisco Serrador, a produção cinematográfica nacional acabou
entrando em um processo de retração. Enfrentando dificuldades, o cinema nacional resistiu
bravamente e, em 1923, ganhou fôlego novo com os ciclos regionais, em que se
destacaram os ciclos de Cataguases e de Recife, que popularizaram a produção
cinematográfica nacional e levaram o cinema às mais diferentes e recônditas regiões do
país.
Em 1930, Adhemar Gonzaga cria a Cinédia, com clara intenção de implantar,
no Brasil, a produção cinematográfica nos moldes hollywoodianos, proposta que atingiu
seu apogeu com a implantação da Atlântida, em 1941, e da Companhia Cinematográfica
Vera Cruz, em 1950. Outras companhias do gênero surgiram na época, como, por exemplo,
a Companhia Cinematográfica Maristela, Multifilmes, Sacra Filmes, Kino Filmes, todavia
essas companhias menores não alcançaram a mesma dimensão e o mesmo êxito da
Atlântida e da Vera Cruz.
Fora da proposta do cinema industrial, o cineasta Nelson Pereira dos Santos
lançou, em 1955, Rio, 40 graus, filme de inspiração neo-realista que prenunciou a
tendência do cinema brasileiro dos anos cinqüenta e sessenta. Em 1963, novamente,
17
Nelson Pereira dos Santos lançou Vidas Secas, filme de impacto considerado precursor do
Cinema Novo, cuja obra mais representativa, Deus e o Diabo na Terra do Sol, só veio a
lume em 1964, ano do Golpe Militar (episódio que interferiu substancialmente no cinema
brasileiro). Além desses dois filmes citados, o Cinema Novo, em suas três fases, legou para
o cinema nacional filmes como O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Terra em Transe
(Glauber Rocha, 1967), Os Cafajestes (Ruy Guerra, 1962), Menino de Engenho (Walter
Lima Jr, 1965), A falecida (Leon Hirszman, 1965), O Padre e a Moça (Joaquim Pedro de
Andrade, 1966), A Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967) e outros.
No final dos anos sessenta e início dos anos setenta, desponta, quase
paralelamente ao Cinema Novo, o Cinema Marginal, que teve curta duração (1968-1973).
Leite (2005, p.105-106) afirma que,
se o cinema novo foi “oxigenado” ideologicamente pelo binômio nacional-popular, os diretores filiados ao Cinema Marginal, por sua vez, foram influenciados principalmente pela antropofagia, proposta pelo movimento modernista, em especial a vertente liderada por Oswald de Andrade, redescoberta pelo tropicalismo, pelas teses de Jean Luc-Godard sobre a narrativa cinematográfica, isto é, tratava-se de filmes com começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem, produções marcadas pela ampla liberdade de criação, pelos postulados defendidos por Orson Welles; e, finalmente, pelo cinema moderno norte-americano, especialmente os filmes B.
O Cinema Marginal, apesar da sua rápida passagem, destinou para a história do
cinema nacional alguns filmes importantes, como, por exemplo, O Bandido da Luz
Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) e Matou a Família e Foi ao Cinema (Júlio Bressane,
1969). Paralelamente ao Cinema Marginal, no período que vai de 1969 a 1973, aconteceu
no contexto do cinema nacional outro movimento cinematográfico, também marginal,
identificado com temas relacionados ao universo dos transgressores da ordem moral e
social (marginais, prostitutas), denominado de Cinema do Lixo. Entre os filmes
representativos dessa vertente, a título de ilustração, aponto Jardim das Espumas (Luis
Rozemberg, 1970), Gamal, o Delírio do Sexo (João Batista de Andrade, 1970), Piranhas
do Asfalto (Neville, 1970), Orgia, ou o Homem que deu Cria (João Silvério Trevisan,
1971), Perdidos e Malditos (Geraldo Veloso, 1971) e Nené Bandalho (Emílio Fontana,
1970).
A partir dos anos oitenta, com o processo de reabertura política do país, o
cinema nacional tomou fôlego, produziu uma gama de filmes não ligados a um movimento
específico de cinema e com uma temática ampla e variada. Entre esses filmes, estão
Inocência (Walter Lima Jr, 1983), Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982), Memórias do
18
Cárcere (Nelson Pereira dos Santos, 1982), Paraíba Mulher Macho (Tizuka Yamasaki,
1983), Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1980), Quilombo (Cacá Diegues,
1984), Menino do Rio (Antonio Calmon, 1981) e outros.
Dos anos noventa para cá, o cinema nacional vem seguindo o seu curso com
boas produções, também não vinculadas a uma corrente cinematográfica determinada e
com uma temática ampla e diversificada, entre as quais destaco O Quatrilho (Fábio
Barreto, 1995), Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995), Central do Brasil (Walter
Salles, 1998), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), Abril Despedaçado (Walter
Salles, 2001), Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003), Carandiru (Hector Babenco, 2002) e
O Ano em que os Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hambúrguer, 2006), Lisbela e o
Prisioneiro (Guel Arraes, 2003) e Eu Tu Eles (Andrucha Waddington, 2000). Sem parecer
cabotino, creio que essa síntese histórica do cinema nacional é capaz de dar uma idéia,
ainda que sucinta, da trajetória e da importância do cinema nacional, do início aos dias
atuais.
1.3 Do Cinema que Diverte ao Cinema que Ensina
Na atualidade, entre as funções sociais do cinema, cabe destacar a função
pedagógica. Segundo esse ponto de vista, o cinema não é vislumbrado primeiramente
como uma instância de arte e/ou entretenimento e sim, como uma instância pedagógica
capaz de promover educação além dos limites institucionais da escola. Em nossa
sociedade, a escola constitui a instância pedagógica hegemônica e, quando nela se faz uso
do cinema, geralmente este é colocado na condição de simples complemento, de recurso
suplementar para ilustrar algum saber trabalhado em disciplinas da grade curricular. Em
poucos termos, o cinema ainda não é reconhecido como uma autêntica instância
pedagógica em sentido amplo, pois, no Brasil, ainda prevalece, no âmbito da educação
institucionalizada, uma maneira muito peculiar de uso do cinema, classificado por Duarte
(2008, p. 69) como um uso instrumental. Em outro trabalho sobre cinema e educação,
Duarte (2002, p. 17) chama atenção para a importância do cinema enquanto uma instância
pedagógica no que diz respeito à formação cultural e educacional das pessoas: “Ver filmes
é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação cultural e educacional
das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais.”
As pedagogias culturais, ao mesmo tempo em que contestam a prerrogativa da
escola enquanto instância única de produção de saber, também reclamam o lugar e a
19
autonomia do cinema como uma das muitas instâncias pedagógicas dos tempos atuais.
Steinberg (2004, p.14) informa que a expressão ‘pedagogia cultural’ enquadra a educação
numa variedade de áreas sociais, incluindo, mas não se limitando à escola. E esclarece que
as áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-
se, nesses lugares, bibliotecas, TV, cinema, jornais, revistas, brinquedos, propagandas,
videogames, livros, esportes, enfim, todos os âmbitos da cultura. Nessas áreas
pedagógicas, articulam-se práticas e discursos que possibilitam o governo dos corpos, a
formação e a interpelação de sujeitos.
A função pedagógica do cinema está sempre presente, pois as pessoas, ao
mesmo tempo em que se divertem vendo filmes na televisão, no cinema ou em aparelhos
de DVD’S, também aprendem valores e modos de ser a partir das representações
veiculadas. Assim como a pedagogia tradicional possui um currículo, pode-se dizer que
também as pedagogias culturais têm seus currículos, cujo efeito é a produção e a
legitimação de conhecimentos. Sobre currículos culturais, Steinberg (2004, p.15) afirma
que “as organizações que criaram este currículo cultural não são educacionais, e sim
comerciais, que operam não para o bem social mas para o ganho individual”. Ainda
Steinberg (2004, p.15), amparada no pensamento de Henry Giroux, afirma que grande
parte das representações que atuam como pedagogia cultural, na sociedade contemporânea,
são estruturadas por dinâmicas comerciais. Portanto, não há como negar que as
organizações comerciais criaram ou se apropriaram de novas formas educacionais bastante
eficazes, sendo que, entre elas, o cinema ocupa um lugar de destaque.
No Brasil, ao longo das décadas de 20 e 30 do século XX, a intelectualidade e
o governo cogitaram a possibilidade de empregar o cinema como instrumento pedagógico
e também como instrumento a serviço da propaganda ideológica. Sobre a utilização do
cinema para o aguçamento da nacionalidade brasileira e sobre a possibilidade de seu
emprego na educação, Leite (2005, p. 35) afirma que,
de fato, a capacidade dos filmes de difundir valores agiu em tais grupos de forma diferente, pois o que mais despertou a atenção desses segmentos da intelectualidade brasileira nas décadas de 1920 e 1930 foram as possibilidades de o cinema ser empregado como instrumento pedagógico e como propaganda. Assim, no final dos anos 1920, apesar de algumas resistências e de alguns preconceitos, educadores brasileiros detectaram o enorme potencial educacional das produções cinematográficas e passaram a delinear projetos que visavam introduzir os filmes nas relações de ensino aprendizagem, abrindo um novo e fértil campo para a sobrevivência e o desenvolvimento das produções nacionais, sufocadas pela hegemonia dos filmes hollywoodianos.
20
Na azáfama da novidade do cinema, criou-se um dos mais importantes órgãos
estatais de fomento ao cinema nacional. Esse órgão era o Instituto Nacional do Cinema
Educativo – INCE. Mas o reconhecimento do potencial pedagógico do cinema não é
exclusivo da intelectualidade e do governo brasileiro. Novamente, Leite (2005, p. 36)
relata que, “nos Estados Unidos, desde a chegada do cinematógrafo, foram experimentadas
as possibilidades de aplicá-lo no ensino”. A possibilidade do uso do cinema como
instrumento pedagógico e ideológico foi mais fomentada entre os países de regimes
populista e totalitarista da América e da Europa, sejam eles de orientação capitalista ou
socialista.
O potencial pedagógico do cinema não está em sua eventual capacidade para se
transformar em um substituto imediato e sofisticado do livro didático. A questão do cinema
como instância pedagógica exige um entendimento de educação em termos mais largos, no
âmbito das pedagogias culturais, que permitem ampliar as fronteiras dos espaços de ensino
e de aprendizagem. Trata-se de reconhecer o cinema como instância pedagógica no lugar
específico do cinema, sem que ele necessariamente tenha que perder sua autenticidade
estética e se transformar num substituto imediato do livro didático. O potencial pedagógico
do cinema não está adstrito a uma vertente específica de cinema. Assim sendo, a despeito
de qual seja o modelo, se o hollywoodiano, o expressionista alemão, o neo-realista italiano,
o da montagem soviética ou o do cinema novo, o que importa é que qualquer um desses
modos de fazer cinema é capaz de construir ou naturalizar representações e,
conseqüentemente, identidades culturais com as quais os sujeitos se identificam, ou não.
Os textos fílmicos, por seu dinamismo, têm a capacidade de ampliar e
democratizar os saberes, pois, para se ter acesso a textos literários, muitas vezes, exige-se
prévio conhecimento de complexos códigos de linguagem que, dependendo do autor,
podem ser bastante herméticos. Não estou, com essa ilação, negando a importância de uma
educação do olhar para ver filmes ou, tampouco, afirmando a inexistência de filmes
herméticos, de alta complexidade estética e de difícil entendimento. Comparando com
outras formas de linguagem, pode-se dizer que a atratividade do cinema se deve, em
grande parte, à forte impressão de realidade que ele provoca nas pessoas. Esse efeito foi
objeto de reflexão, entre outros, de Metz (2007, p. 16), quando o teórico afirma que,
de todos estes problemas de filme, um dos mais importantes é o da impressão de realidade vivida pelo espectador diante do filme. Mais do que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real, como percebeu Albert Affay. Desencadeia no espectador um processo ao mesmo
21
tempo perceptivo e afetivo de “participação” (não nos entediamos quase nunca no cinema), conquista de imediato uma espécie de credibilidade – não total, é claro, mas mais forte do que em outras áreas, às vezes muito viva no absoluto -, encontra o meio de se dirigir à gente no tom da evidência, como que usando o convincente “É assim”, alcança sem dificuldade um tipo de enunciado que o lingüista qualifica de plenamente afirmativo e que, além do mais, consegue ser levado em geral a sério.
A linguagem predominantemente icônica do cinema, comparada à linguagem
verbal e simbólica da literatura, tem se mostrado bastante atrativa para o espectador
contemporâneo, entrementes já acostumado com a linguagem e com a predominância da
visualidade. Portanto, ao explorar o potencial pedagógico do cinema, dentro ou fora da sala
de aula, é produtivo buscar ultrapassar o aspecto conteudístico, ou seja, os elementos
diretamente ligados à história veiculada pelo filme. Para melhor aproveitar o potencial
pedagógico do cinema, faz-se necessário abordar os múltiplos elementos da linguagem
cinematográfica presentes em um texto fílmico: personagens, diálogos, montagem, planos,
seqüências, fotografia, figurino, cenário, trilha sonora, entre outros. Sobre o uso do
cinema na sala de aula, Napolitano (2008, p. 15) afirma que,
é preciso que a atividade escolar com o cinema vá além da experiência cotidiana, porém sem negá-la. A diferença é que a escola, tendo o professor como mediador, deve propor leituras mais ambiciosas além do puro lazer, fazendo a ponte entre emoção e razão de forma mais direcionada, incentivando o aluno a se tornar um espectador mais exigente e crítico, propondo relações de conteúdo/linguagem do filme como conteúdo escolar. Esse é o desafio.
A linguagem audiovisual dos textos fílmicos não veio para suprir o
desinteresse pela palavra escrita ou para concorrer com as outras artes, em especial a
literatura. Para Napolitano (2008, p.16), as competências e habilidades em torno da palavra
escrita é que devem ser o eixo do trabalho escolar, mesmo perpassadas por outras
linguagens fundamentais do mundo moderno, como a audiovisual, a iconográfica e a
sonora. Os textos fílmicos que selecionei como objetos de análise desta dissertação de
mestrado confirmam o diálogo permanente entre as artes, pois eles são legítimas
adaptações da linguagem escrita de textos literários para a linguagem audiovisual do
cinema2.
Na minha experiência cotidiana de sala de aula, tenho deparado com alguns
livros didáticos que, ao lado das sugestões bibliográficas e do glossário, já trazem
indicações de filmes para serem vistos com finalidades pedagógicas. Ver um filme, seja no
2 Os filmes são Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964); Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963).
22
contexto da sala de aula ou fora dele, significa, entre outras coisas, compartilhar valores,
interesses e objetivos comuns. Assistir a um filme, ou mesmo produzi-lo, é
indubitavelmente uma experiência de lazer, criação ou recriação coletiva. A capacidade do
cinema para agregar pessoas, por si só, diz algo da importância do cinema como uma
instância pedagógica geradora de sentido, articuladora de saber, de visões de mundo, de
representações e identidades culturais. Para Rosália Duarte (2002, p.38),
parece ser desse modo que determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse é o maior interesse que o cinema tem para o campo educacional – sua natureza eminentemente pedagógica.
Após essa reflexão a respeito do potencial pedagógico do cinema, pode-se
concluir que ele, a um só tempo, é um artefato cultural e uma das instâncias pedagógicas
mais atuantes na sociedade contemporânea. Está claro, portanto, que o cinema não apenas
diverte, mas que, sobretudo, ensina. O cinema está muito presente na vida das pessoas,
pois o ato de ver filmes hoje, após pouco mais de cem anos da invenção do cinematógrafo,
tornou-se uma experiência dinâmica, visto que as pessoas podem ver filmes por meios
distintos e nos mais variados lugares. A experiência de ver filmes não mais se restringe,
nos dias atuais, às nostálgicas sessões das velhas salas de projeção de filmes, com nos
tempos de outrora.
1.4 Metodologia
A minha trajetória de pesquisador bem como meu aporte nos estudos culturais
têm seu início em 2007, quando ingressei como aluno do Programa de Mestrado em
Educação da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Antes, entre os anos 1996 e
1998, havia feito uma pós-graduação “Lato Sensu” em Filosofia Contemporânea na PUC
de Minas Gerais, o que me possibilitou conhecer alguns dos principais temas do
pensamento contemporâneo. Essa experiência me tem auxiliado na construção da minha
trajetória nos Estudos Culturais. Todavia, devo dizer que a minha atividade de pesquisador
não está adstrita ao mundo acadêmico. Sou um pesquisador diletante, com duas
publicações na área de crítica literária: As formas incompletas: apontamentos para uma
biografia (2005), Cantiga de viver (2007). Esporadicamente, tenho colaborado com artigos
e poemas em periódicos de Teresina, jornais e revistas literárias.
23
Confesso que, no início, nos primeiros contatos com os Estudos Culturais,
fiquei um tanto quanto atordoado. Esse estranhamento, em parte, deve-se à minha
formação acadêmica alicerçada na perspectiva dos paradigmas de conhecimento da
tradição filosófica e jurídica, e também à versatilidade, ao engajamento político das
análises dos Estudos Culturais, que, num átimo, fez ruir todo um arcabouço de idéias
vinculadas às metanarrativas, ao essencialismo, à objetividade e à neutralidade científica,
idéias essas que me foram cristalizadas ao longo dos anos pela tradição acadêmica. Porém,
à proporção que o programa avançava, eu fui me dando conta da importância do Centro de
Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham. Aos poucos, fui assimilando os
conceitos articulados pelos Estudos Culturais, tais como o Pós-Estruturalismo, que, noutros
termos, implica o deslocamento da concepção de uma linguagem descritiva para uma
concepção de linguagem construtiva, a desnaturalização das verdades essencialistas, os
jogos de poder, a centralidade da cultura e outras bossas. A partir dessa compreensão, eu
pude dimensionar a abrangência dos trabalhos pioneiros desenvolvidos naquele centro por
pensadores como Raymond Williams, Richard Hoggart, Stuart Hall, Paul Gilroy e Ângela
McRobbie.
Para desenvolver a minha proposta de dissertação de Mestrado e,
conseqüentemente, atingir os objetivos que me propus, entendi ser necessário chegar a um
razoável entendimento acerca dos Estudos Culturais e envolver-me ou ser envolvido por
eles. Essa experiência, por analogia, tem a ver com aquele sentido de leitura trabalhado
pelo filósofo espanhol Jorge Larrosa (2002, p.133-134). Trata-se de pensar a leitura como
algo que nos forma (ou nos de-forma e nos trans-forma), como algo que nos constitui ou
nos põe em questão naquilo que somos. A leitura, portanto, não é só passatempo, um
mecanismo de evasão do mundo real e do eu real. E não se reduz, tampouco, a um meio de
se conseguir conhecimentos.
Para mim, particularmente, experiências de leitura e de escritura rompem as
fronteiras entre o interior (subjetivo) e o exterior (objetivo), entre o sujeito e o objeto. Por
não conseguir trabalhar um texto sem antes estar envolvido com ele ou por ele, eu demorei
a chegar ao tema de minha dissertação de Mestrado em Educação.
Os Estudos Culturais não se constituem como uma disciplina acabada. Eles são
multidisciplinares ou, quem sabe, pós-disciplinares, o que em nada compromete o diálogo
com disciplinas acadêmicas: 1) estudos literários; 2) sociologia; 3) estudos de mídia e
comunicação; 4) Lingüística; 5) história, entre outros. Dessa proximidade dos Estudos
culturais com as disciplinas acadêmicas retromencionadas, duas grandes vertentes de
24
trabalho são discerníveis. Primeiro, a vertente etnográfica, útil na realização de análises de
subculturas urbanas. Segundo, a vertente dos estudos literários, apropriada para a
realização de análises textuais de programas de TV, de filmes e de obras literárias
populares. Essa segunda vertente possibilitou-me chegar a um objeto de pesquisa e a um
referencial metodológico dentro do campo dos Estudos Culturais em Educação. Graças a
ela, eu pude me inserir numas das linhas de pesquisas do Programa de Mestrado da
ULBRA, a saber, a linha Currículo e pedagogias culturais, que concebe a pedagogia como
um fenômeno abrangente, que possibilita trabalhar com objetos de investigação localizados
tanto no espaço de saber-poder da escola institucional como fora dele (no espaço da mídia,
da arte, dos filmes, enfim, dos artefatos culturais).
Não pretendo, ao escolher o artefato cultural do cinema como objeto de
pesquisa, empreender crítica ou teorizar sobre cinema em sentido restrito. A minha
pretensão é analisar como, nesses dois textos fílmicos produzidos pelo Cinema Novo, os
autores articulam representações de vaqueiros e, ao mesmo tempo, empreendem rupturas
de sentido e de significação, mobilizando e construindo possíveis identidades culturais.
Esses textos fílmicos despertam-me interesse porque neles há representações de Nordeste
geradoras de identidades culturais que são capazes de interpelar, formar ou transformar
sujeitos.
As principais perguntas norteadoras da pesquisa que, na medida do possível,
pretendo cotejar, são as seguintes: Quais as representações de vaqueiro articuladas por
Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos em Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas
Secas? Quais as estratégias pedagógicas empregadas por esses autores para veicular visões
sobre o Nordeste e seus tipos regionais? Que efeitos de poder são visíveis? Que efeitos de
verdades são postos em circulação? Como se articulam as identidades culturais desses dois
filmes com a estética do Cinema Novo?
25
2 O NORDESTE NO UNIVERSO DIEGÉTICO DO CINEMA NOVO
Com certa freqüência, o cinema nacional tem tomado o espaço regional do
Nordeste como universo de suas produções fílmicas. O Nordeste, com sua paisagem, com
seu clima, com sua gente, com seus costumes e com sua cultura, desde os tempos da
Atlântida e da Vera Cruz, vem servindo de tema ou de cenário para a realização de filmes,
documentários, novelas, séries, minisséries e reportagens, todas, é bom que se diga, com
sucesso garantido de público. Entre os memoráveis textos fílmicos sobre o Nordeste, posso
apontar, a título de exemplificação, Lampião, o Rei do Cangaço (Benjamim Abrahão,
1936), O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953), Três Cabras de Lampião (Aurélio Teixeira,
1962), O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962), Lampião, o Rei do Cangaço
(Carlos Coimbra, 1964), Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Baile Perfumado
(Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996), Central do Brasil (Walter Salles, 1998), e as
minisséries da Rede Globo de Televisão O Bem Amado (1973), Morte e Vida Severina
(1981), Lampião e Maria Bonita (1982), Padre Cícero (1984), Tenda dos Milagres (1985),
o Pagador de Promessas (1988), Riacho Doce (1990), Teresa Batista (1992), Memorial de
Maria Moura (1994), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1998), O Auto da Compadecida
(1999) e Hoje é Dia de Maria (2005), entre outros.
Diante dessa gama de textos fílmicos, o que se pode inferir de imediato é que,
de certo tempo para cá, nenhuma outra região do Brasil foi tão amplamente mostrada e, ao
mesmo tempo, tão amplamente vista como a região Nordeste. As representações de
Nordeste, recorrentes nas telas do cinema nacional, mostram imagens que destoam das
imagens de outras regiões do país, sobretudo das regiões Sul e Sudeste. Curiosamente, o
Nordeste, no cinema nacional, continua sendo representado predominantemente sob a ótica
do discurso naturalista do antigo regionalismo, em que a velha região Norte, a atual região
Nordeste, era representada como um espaço regional sob o domínio de forças imperativas
de uma natureza hostil, de uma natureza agreste, geradora dos fatores do atraso sócio-
cultural do país. Na perspectiva de quem vê o Nordeste apenas por meio dessas imagens
unificadas, para não dizer estigmatizadas, ele continua sendo um grande óbice na via de
construção da nação brasileira moderna.
Para Albuquerque Júnior (2006, p.41),
26
o antigo regionalismo, inscrito no interior da formação discursiva naturalista, considerava as diferenças entre os espaços do país como um reflexo imediato da natureza, do meio e da raça. As variações de clima, de Vegetação, de composição racial da população explicavam as diferenças de costumes, de hábitos, práticas sociais e políticas. Explicavam a psicologia, enfim, dos diferentes tipos regionais.
As representações de Nordeste circulantes nos textos fílmicos nacionais, textos
com os quais os espectadores interagem, não romperam, de todo, com os paradigmas das
práticas discursivas naturalistas ou com os padrões tradicionais de sociabilidade. O Cinema
Novo é um renovador das representações naturalistas do Nordeste, cujos fundamentos
discursivos eram inicialmente de cunho bioevolucionistas. O olhar do Cinema Novo sobre
as representações de Nordeste é dialético, mas dialético no sentido da dialética dos
contrários, de Hegel e de Marx, jamais no sentido da dialética da ascensão de Platão. Por
essa razão, o olhar do Cinema Novo nega as representações naturalistas de Nordeste sem
perdê-las de vista. O olhar do Cinema Novo sobre as representações de Nordeste
fundamenta-se no discurso sociológico, o que, noutras palavras, significa compreender a
região Nordeste deixando de fora os imperativos do clima, da raça e do meio.
Parte considerável das representações de Nordeste que circulam no cinema
nacional não resulta de um regionalismo calcado em releituras de imagens e enunciados do
antigo Norte. Na verdade, estas imagens e enunciados têm muito de um olhar
estigmatizador, de um olhar de um regionalismo que se pretende superior, eugênico,
civilizado e litorâneo. Albuquerque Júnior (2006, p.44) fornece mostras da imagem do
Nordeste vista pelo olhar de um jornalista de fora,
Paulo de Moraes Barros, jornalista de O Estado de S. Paulo, enviado a uma visita a Joaseiro, considera a inferioridade racial dos nordestinos como responsável pelo aparecimento dos “fanáticos bossais que se disseminam por toda parte na região” e pelas “turbas que os assediavam, homens e mulheres de aspectos alucinados, olhos esbugalhados, com braços estendidos, atirando-se por terra, tentando tocar a batina do beato”, como também pela violência dos bandidos facinorosos”. Questionava como podia tal povo ser a base de construção de uma nação.
As imagens de Nordeste que aparecem nas telas do cinema nacional coincidem
com as representações de Nordeste elaboradas pelo olhar do outro, de quem está vendo o
Nordeste à distância, de fora. Essas representações de Nordeste que circulam no cinema
nacional têm como efeito de verdade, a visão do Nordeste como um espaço regional
unificado, ou seja, o Nordeste como uma unidade étnica, cultural e geográfica. Por trás
dessas imagens unificadas e naturalizadas, está em atividade uma pedagogia edificante,
27
diga-se de passagem, construída, em parte, pelo discurso sociológico do pernambucano
Gilberto Freire, mormente constante em duas de suas obras, Nordeste (1937) Manifesto
Regionalista (1926).
Para o cearense Djacy Menezes, essas obras de Freire destoavam no que tange
à abordagem de espacialidades da região Nordeste. Por essa razão, escreveu O Outro
Nordeste (1937), de certo modo, no intuito de mostrar que o Nordeste descrito por Freire
limitava-se apenas à região litorânea, outrora conhecida por sertões de fora, e não
contemplava os aspectos sócio-culturais e geográficos da região do semi-árido nordestino.
A discordância sobre o espaço regional do Nordeste, como unidade étnica, cultural e
geográfica, prossegue com o piauiense Renato Castelo Branco, que escreveu A Civilização
do Couro (1940), obra composta sob a influência sazonal do discurso naturalista, mas que
deixa bem claro que tanto as obras de Freire como a de Menezes não contemplaram os
aspectos étnicos, culturais e geográficos da região Meio-Norte, que é detentora do segundo
e do terceiro maior Estado da região Nordeste – o Maranhão e o Piauí. Essas três obras
permitem perceber, primeiro, que a origem do Nordeste é histórica e, segundo, que a
naturalização do espaço regional Nordeste, como unidade étnica, cultural e geográfica,
deu-se através de processo deliberado de apagamento da diversidade étnica, cultural,
geográfica e política da região que, desde os anos vinte do século passado, ficou conhecida
como região Nordeste. Para Albuquerque Júnior (2006, p.66),
o Nordeste não é um fato inerte na natureza. Não está dado desde sempre. Os recortes geográficos, as regiões, são fatos humanos, são pedaços da história, magma de enfrentamentos que se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava social que um dia veio à tona e escorreu sobre este território. O Nordeste é uma espacialidade fundada historicamente, originada por uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe deram realidade e presença.
A construção discursiva do Nordeste é ambivalente, pois simultaneamente se
sustenta numa nova concepção de regionalismo e numa certa nostalgia do passado. Para
Albuquerque Júnior (2006, p.67), “a invenção do Nordeste exige a feitura de um inventário
da natureza, da cultura e da história sócio-econômica da região, no sentido de fundar, no
presente, uma tradição do passado”. Para os edificadores do Nordeste, era preciso fazer
uma apropriação do termo Nordeste, que surgiu para delimitar a área de atuação da
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), como um termo capaz de remeter
para uma natureza, para uma etnia, para uma cultura, para uma geografia e para uma
identidade cultural nordestina. Albuquerque Júnior (2006, p.76) informa que a construção
28
do Nordeste exigiu que se fosse ao passado buscar as raízes regionais, a fim de inventar a
tradição.
O novo regionalismo é a negação do regionalismo do antigo Norte, embora a
sua visibilidade e dizibilidade de Nordeste aproveitem o maior dos problemas do velho
Norte: a seca. A seca dará o tom dos discursos políticos, das imagens e das pedagogias
articuladas no Romance Social de 30 e, conseqüentemente, no Cinema Novo, mas com um
diferencial, a substituição, no que se refere à visão dos problemas da região Nordeste, de
um olhar naturalista, próprio do antigo regionalismo do Norte, por um olhar sociológico
visivelmente marxista.
A construção discursiva do Nordeste não é algo “em si” e “por si”, pois
necessita de outras representações e identidades culturais regionais como referência,
necessita de representações e identidades culturais relacionais, cabendo destacar a da
região Sul do Brasil. Para Albuquerque Júnior (2006, p.69), “o Sul é o espaço-obstáculo, o
espaço outro no qual se pensa a identidade do Nordeste. O Nordeste nasce do
reconhecimento de uma derrota, é fruto do fechamento imagético-discursivo de um espaço
subalterno da rede de poderes, por aqueles que já não podem aspirar ao domínio do espaço
nacional”. Para enfrentar o perigo iminente da hegemonia da região Sul sobre a região
Nordeste, esta tida como repositório da cultura e da identidade nacional, em 1926,
organizou-se, na cidade de Recife, o famoso Congresso Regionalista do Recife, de onde
saiu o Manifesto Regionalista, de autoria de Gilberto Freire, mas que fora “subscrito” pelos
demais congressistas, e, espantosamente, publicado apenas no ano de 1952. Esse
congresso, misto de congresso artístico-cultural e político, incitou, entre a gente da região
Nordeste, a união, o sentimento de pertencimento e nordestinidade.
A construção social do Nordeste, modelada na afirmação de valores regionais e
na afirmação da cultura popular, em parte é conseqüência da implantação de um novo
sistema político, a República, cuja proclamação ocorreu em 15 de novembro de 1889.
Tacitamente, durante a vigência da República Velha, no governo de Campos Sales,
colocou-se em prática um arranjo político, firmado entre os setores políticos hegemônicos
dos Estados de São Paulo e Minas Gerais e as lideranças políticas regionais, conhecido
como Política dos Governadores. Em síntese, esse arranjo político consistia na alternância
entre um paulista e um mineiro na presidência da república e também na distribuição, entre
esses signatários, de cargos estratégicos na esfera federal (política do café com leite).
No Nordeste, um dos efeitos da Política dos Governadores foi a ampliação da
autonomia política das lideranças regionais, os coronéis. Em razão de uma política e uma
29
economia pré-capitalista e dos excessos cometidos pelo coronelismo, eclodiram no
Nordeste uma série de revoltas e insubordinações, entre as quais a revolta de Canudos e o
cangaço, quando se destacam os líderes Antônio Conselheiro e Lampião.
A questão do Nacionalismo frente à idéia de regionalismo expressa-se no
Manifesto Regionalista de 1926, de autoria de Gilberto Freire, que destoa,
consideravelmente, por exemplo, das idéias nacionalistas decantadas pelo Movimento
Modernista de 1922, que defendia a unidade nacional a partir da adoção de um sistema
sócio-cultural que sintetizasse a diversidade social e cultural do país (um nacionalismo
sincrético). Para Freire (1976, p.56), a concepção de um estado nacional brasileiro deveria
preservar as peculiaridades e as diferenças entre as regiões:
essa desorganização constante parece resultar principalmente do fato de que as regiões vêm sendo esquecidas pelos estadistas e legisladores brasileiros, uns preocupados com “os direitos dos Estados”, outros, com as “necessidades de união nacional”, quando a preocupação máxima de todos deveria ser a de articulação inter-regional. Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais.
O Movimento Regionalista de 1926 defendia uma nova organização do Brasil
que priorizasse a região em lugar do estadualismo, que fora adotado pela República. Para
Freire (1976, p.54), o regionalismo não deve ser confundido com separatismo, com
bairrismo, com anti-internacionalismo, com antiuniversalismo ou com anti-nacionalismo.
Para ele, o regionalismo é um sistema em que as regiões, mais que os Estados, se
completam e se integram numa verdadeira organização nacional. Desde o Movimento
Regionalista de 1926, a valorização da cultura popular está intimamente ligada à questão
do nacionalismo. Nesse contexto, a cultura popular é assimilada sob um olhar conservador,
de valorização da tradição e do passado. Sobre o questionamento da concepção
conservadora da cultura popular, Ortiz (2006, p.71) afirma que
ela será entretanto fundamentalmente questionada com a emergência dos Centros Populares de Cultura. Quando Ferreira Gullar afirma que a expressão “cultura popular” designa um fenômeno novo na vida brasileira, de um certo modo o autor afirma que a noção se desvincula do caráter conservador que lhe era atribuído anteriormente. Rompe-se, dessa forma, a identidade forjada entre folclore e cultura popular. Enquanto que o folclore é interpretado como sendo as manifestações culturais de cunho tradicional, a noção de “cultura popular” é definida em termos exclusivos de transformação. Critica-se a posição do folclorista, que corresponderia a uma atitude de paternalismo cultural, para enfim implantar as bases de uma política cultural segundo uma orientação reformista-revolucionária.
30
A nova concepção de cultura popular é marcada pela conotação política dos
movimentos de esquerda dos anos sessenta, como, por exemplo, o CPC, que era vinculado
à UNE. O Cinema Novo, que aparece na mesma época em que se processa a redefinição do
conceito de cultura popular, assimila esse novo conceito em suas realizações
cinematográficas. Novamente, com o novo conceito de cultura popular, vem à tona a
questão do nacionalismo, que fora, a bem dizer, no século XX, iniciada na República
Velha, continuado pelos modernistas de 1922 e redefinida pelos movimentos de esquerda
dos anos sessenta e pelo próprio Cinema Novo. Essa redefinição do conceito de cultura
popular é traduzida em termos de consciência da realidade nacional e de embates contra o
imperialismo.
2.1 Do Romance Social de Trinta
O mundo, no final da segunda década do século XX, conheceu uma grave crise
econômica cujo ponto elevado foi a quebra da bolsa de valores de Nova York, no ano de
1929. A tensão social decorrente dessa crise econômica indiretamente desencadeou, na
literatura, o surgimento de um realismo diferente daquele de outrora, do final do século
XIX: o realismo crítico. No Brasil, havia um cenário de amplas mudanças. Os setores
médio-urbanos, representados pelos tenentes, reclamavam maior participação política,
posto que, há séculos, essa se concentrava nas mãos da aristocracia rural. A ascensão
política de Getúlio Vargas, através da revolução, marca a virada política e econômica no
país. No campo das artes, as transformações surgem com o movimento modernista de
1922.
Para Abdala Júnior (1993, p. 10), na América do Norte, o realismo crítico ou
neo-realismo está intimamente associado às obras literárias de autores como Ernest
Hemingway, John Dos Passos, William Faulkner, John Steinbeck, Erskine Caldwel e
outros. Na Itália, do mesmo modo, está associado aos escritores Cesare Pavese, Élio
Vittorini e Alberto Moravia. Na Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola, vinculou-se a
Federico García Lorca e Miguel Hernández, ao passo que, na América Espanhola, associa-
se ao guatemalteco Miguel Angel e ao cubano Alejo Carpentier.
A publicação, em 1928, de A Bagaceira, obra do escritor e político paraibano
José Américo de Almeida, inicia uma nova fase da literatura nacional, que alguns críticos
denominaram de Neo-Realismo e outros, de Neo-Regionalismo, sendo que a nomenclatura
31
que fez com que essa fase se tornasse amplamente conhecida foi Romance de trinta. Para
Dacanal (2001, p.13),
o Romance de 30 foi a denominação dada, não se sabe quando nem por quem – a um conjunto de obras de ficção escritas no Brasil a partir de 1928, ano da primeira edição de A bagaceira, de José Américo de Almeida, o qual, como está implícito, integra o grupo de autores obviamente qualificados de romancistas de trinta.
Além de José Américo de Almeida, integram o Romance de 30 escritores como
Graciliano Ramos, Jorge Amado, Erico Veríssimo, José Lins do Rego, Cyro Martins,
Rachel de Queiroz, Ivan Pedro Martins, Aureliano de Figueiredo Pinto e outros. Todavia,
como afirma o crítico Wilson Martins3, no tocante à história da literatura, “é feita de
exclusões e se define tanto pelo que recusa e ignora quanto pelo que aceita e consagra”.
Assim, é possível, àqueles nomes, acrescentar outros. Quase todos os escritores citados, é
patente, escreveram obras com temas voltados para a realidade agrária, valendo-se da
técnica da verossimilhança realista, de uma narrativa linear (correspondência cronológica
dos fatos narrados), do emprego dos códigos de linguagem culta (tanto para o narrador
como para os personagens), da fixação da estrutura histórica (os personagens integram essa
estrutura, geralmente agrária), da perspectiva crítica frente à estrutura histórica descrita e
de certo otimismo. Para Dacanal (2001, p.19), esse otimismo pode ser classificado como
ingênuo porque, no Romance de 30,
a miséria, os conflitos e a violência existem, mas tudo isto pode ser solucionado, principalmente porque o mundo é compreensível. E, portanto, reformável, se preciso e quando preciso. Basta a vontade dos indivíduos e/ou do grupo para que a consciência, que domina o real, o transforme. Esta fé na possibilidade de apreender o mundo, esta inocência para a qual não há clivagem entre o real e o racional, e vice-versa, é um dos elementos característicos do romance de 30.
Devido ao engajamento político declarado de alguns romancistas, como Jorge
Amado e Graciliano Ramos, no Partido Comunista Brasileiro, alguns leitores apressados
chegaram a afirmar que esses romancistas teriam escrito apenas obras panfletárias, o que
não se tem confirmado de acordo com grande parte da crítica literária no Brasil.
Sobre o Romance de 30, Gilberto de Mendonça Telles, no artigo A Crítica e o
Romance de 30 no Nordeste, ao passar em revista as manifestações da crítica sobre esse
movimento da literatura nacional, tráz à tona as palavras esclarecedoras de Wilson
Martins: “O romance do Nordeste em geral (que dominará a literatura brasileira em todo
esse período) é mais romance de paisagem que do homem, e mais o do ‘coro’ que o do 3 Ver a “introdução” de O modernismo, v. I, da coleção Literatura brasileira, de Wilson Martins, 2002, p. 9.
32
herói. Romance de grupo, sem relevo individual, sua natureza anda mais próxima do
folclore que da literatura (mas é o folclore contemporâneo, não o folclore mitológico de
Macunaíma)”.4
O romance de 30 trouxe de volta para a literatura, agora sob um olhar crítico,
de denúncia e de intervenção, e não mais de descrição tão somente, os personagens
marginalizados dos setores de nossa sociedade rural, mas não apenas dela. Para Stegagno-
Picchio (2004, p.523), o novo compromisso dos anos 1930 elege, sobretudo, a prosa: de
um lado, social e regionalista, de outro, introspectiva e urbana. Uma série de fatores,
ligados à “invenção do Nordeste”, contribuiu para o estabelecimento de uma literatura, de
um romance social do Nordeste. Dentre esses fatores-estímulos, Stegagno-Picchio (2004,
p. 524) aponta aqueles que considera os mais relevantes ou imprescindíveis:
O romance do Nordeste tem como estímulo imediato a lição de Gilberto Freire e o Manifesto Regionalista expresso pelo Congresso de Recife de 1926, embora publicado em 1952. É daí que parte a nova geração de ficcionistas nordestinos, atrás dos quais se encontra, porém, toda a literatura do Norte, aberta em 1876, por O Cabeleira de Franklin Távora, e todo o nativismo naturalista e a seguir o parnasianismo da “Padaria Espiritual” de Fortaleza (1892-1913), da qual tinham saído escritores como Oliveira Paiva, Rodolfo Teófilo, Capistrano de Abreu, Clóvis Bevilacqua, Antônio Sales e Adolfo Caminha. Uma tradição de fidelidade à terra e aos problemas do homem sentidos interdisciplinarmente, mas numa dimensão que a literatura e as artes visuais, política e urbanística, arte culinária e magia, música e artesanato, se tornam, todos, singular e coletivamente, ramo de ação social e instrumento de interpretação sociológica. Algo que nas intenções desejava ser muito diferente, mais sério e “comprometido” do que o nativismo estetizante e irônico do Modernismo paulista: que no seu ativo, porém, tinha todas as conquistas instrumentais, interdisciplinariedade em primeiro lugar, e expressivas daquele movimento. José Lins do Rego, que no sistema funcionará um pouco como interprete literário e o popularizador do pensamento científico de Gilberto Freire, dirá: Por este modo o Nordeste absorvia o movimento moderno, no que este tinha de sério. Queríamos ser do Brasil, sendo cada vez mais da Paraíba, de Recife, de Alagoas, do Ceará.
Pedagogicamente, o Romance de 30 postulava um regionalismo diferente do
regionalismo naturalista de antanho. Queria um regionalismo moderno, um regionalismo
objetivo, capaz de revelar, simultaneamente, nacionalismo e universalismo através das
práticas discursivas e de narrativas sociais que tomassem a região como um espaço natural.
Para alcançar esse desiderato, os romancistas voltam o seu olhar para o passado da região
Nordeste, região onde supostamente estaria a identidade cultural do brasileiro.
O Romance de 30, com sua narrativa social, não apenas descreve a região
Nordeste, mas, de certo modo, a institui. Albuquerque Júnior (2006, p. 107) afirma que, na
4 TELES, Gilberto de Mendonça. O romance de 30 no Nordeste. A crítica e o romance de 30 no Nordeste: Wilson Martins. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983, p. 117.
33
verdade, essa literatura, longe de representar apenas este objeto, participa de sua invenção,
de sua instituição. A maior receptividade do Romance de 30 se deu entre as camadas
médias urbanas, que, motivadas pelo espírito de nacionalidade, tinham interesse em
conhecer os principais problemas do país. Para Albuquerque Júnior (2006, p.110), aquela
camada, considerando-se “moderna, culta, urbanizada, civilizada”, tem enorme curiosidade
em relação ao “exótico, ao rústico”, até como forma de marcar sua diferença, além de se
interessar pelo conhecimento de “nossos problemas, de nossas angústias, de nossas
misérias”.
Não apenas no Brasil, com o Cinema Novo, mas também noutras regiões do
mundo, como na América do Norte e na Europa, o cinema aproveitou-se do potencial
pedagógico da literatura de expressão neo-realista para realizar filmes com forte pendor
crítico, visivelmente influenciado pela estética do cinema Neo-Realista italiano. A título de
exemplificação, cito John Steinbeck, que teve vários de seus romances adaptados para o
cinema, entre eles, Vinhas da Ira, que é, dentre suas obras literárias, uma das mais
expressivas, e que fora levado às telas do cinema pelo cineasta John Ford, no ano de 1944.
No Brasil, na década de sessenta do século passado, Graciliano Ramos e José
Lins do Rego tiveram algumas de suas obras adaptadas para a linguagem do cinema. É o
caso de Vidas Secas, por Nelson Pereira dos Santos (1963), Menino de Engenho, por
Walter Lima Júnior (1965), respectivamente. Não é à toa que o Cinema Novo,
especialmente em sua primeira fase, tem, como uma de suas fontes temáticas referenciais,
aquelas imagens de Nordeste trabalhadas pelo Romance de 30.
2.2 Linguagem e Tradução – Do Romance ao Cinema
Ao abordar um texto fílmico originado de um texto romanesco, faz-se
necessário o esclarecimento prévio de algumas questões relacionadas à linguagem
cinematográfica e ao processo de tradução, ainda que em breves traços.
Por tradução, pode-se entender o ato de verter qualquer texto originalmente
produzido no bojo de um sistema de comunicação verbal para um sistema de comunicação
visual ou híbrida (contendo mais de uma linguagem), ou seja, de um sistema de linguagem
simbólica para um sistema de linguagem iconográfica. Na tradição dos estudos semióticos,
afirma-se que algumas das principais dificuldades do processo de tradução surgem devido
ao modo como são agenciadas as informações em relação ao sistema significante de que se
dispõe.
34
Randal Johnson (1982, p.5), amparado no pensamento de Roman Jakobson,
afirma que a informação estética é uma mensagem com uma função “poética”, ou seja, é
uma mensagem estruturada ambiguamente em termos de convenções ou do código ao qual
pertence. Max Bense, antes de Jakobson, acreditava que o discurso estético é muito
diferente do discurso documentário e da informação semântica, pois estes últimos podem
ser codificados e transmitidos de várias maneiras; já o sentido estético pode ser codificado
apenas da maneira como foi elaborado pelo artista, pois é inseparável de sua forma
significante. Em outros termos, qualquer tradução de um discurso estético sempre implica
grandes perdas e transformações semânticas.
Reflexões dessa natureza dão ensejo ao surgimento de teses sobre a
intraduzibilidade literal da informação estética. O poeta e crítico literário Haroldo de
Campos, por exemplo, propõe uma saída a partir da concepção de uma teoria da tradução
como recriação crítica. A informação estética, segundo esse pensador, quando traduzida
numa linguagem diferente, mantém, noutra língua ou noutro meio de comunicação, uma
relação de isomorfia com o sistema da obra de onde se originou. Nessa mesma linha de
raciocínio, Randal Johnson (1982, p.6) afirma que, para realizar uma tradução recriativa, o
tradutor precisa antes submergir criticamente na obra traduzida. Assim, além de ser um ato
de recriação, a tradução é também uma leitura crítica da obra original.
Como se perceberá ao longo das análises propostas no presente estudo, mesmo
quando segue, de modo praticamente linear, as seqüências narrativas da obra literária que
lhe serve como referência, um texto fílmico bem sucedido jamais deixa de recriar, em
maior ou menor grau, a linguagem narrativa a partir dos recursos próprios do sistema
cinematográfico em que está inserido. Em outros termos, um texto fílmico, ainda que tenha
sido produzido a partir da tradução de um texto literário, é sempre um texto autônomo,
sobretudo quando diverge do texto que lhe serviu de referência.
Por outro lado, não se pode negar que existe uma grande afinidade entre textos
romanescos e suas traduções fílmicas, pois o elemento estrutural mais fundamental de
ambas essas linguagens é o código narrativo. Esse compartilhamento é possível porque o
código narrativo é translingüístico, podendo ocorrer em vários tipos de linguagem, como,
por exemplo, na linguagem verbal do romance ou na linguagem visual do cinema. Tzvetan
Todorov, alinhado com o formalismo russo, ajuda a pensar essa questão a partir da
distinção entre aquilo que denomina “história” (narrativa) e “discurso” (a maneira como a
história é realizada pelo narrador). Para os cinemanovistas, a maneira como as seqüências
35
narrativas são dispostas é fundamental no momento da tradução e, conseqüentemente, da
realização de textos fílmicos engajados política e culturalmente.
Para solucionar os problemas de tradução de um romance para um filme, Randal
Johnson (1982, p. 8) apresenta duas soluções possíveis apontadas por Jean Mitry: 1) seguir a
estória passo a passo e traduzir não a significação das palavras, mas as coisas referidas pelas
palavras (neste caso, o filme é ilustração do romance); 2) repensar o assunto na íntegra,
dando-lhe outro desenvolvimento e outro sentido. O Cinema Novo, especialmente na sua
fase inicial, ao adotar o romance social de trinta como fonte textual, enfrentou vários
problemas relativos às mudanças de um sistema de signos verbais para um sistema de signos
não verbais, sendo que, dentre as soluções apontadas por Johnson, sua tendência vai na
direção da segunda alternativa.
Assim como os demais cineastas envolvidos com o Cinema Novo, Glauber
Rocha, ao realizar seu Deus e o Diabo na Terra do Sol, opta pela segunda solução, pois
traduz e recria, senão direta, pelo menos indiretamente, muito das narrativas de romances
como Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953), de José Lins do Rego, além de obras da
literatura popular do Nordeste. Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, segue um caminho
um pouco diferente, pois sua versão de Vidas Secas, em uma primeira leitura, não parece
destoar ou divergir tanto da narrativa original, buscada no romance homônimo de
Graciliano Ramos. A crítica nacional é muito enfática ao afirmar que Vidas Secas é a mais
perfeita adaptação de um texto romanesco para um texto fílmico realizada no cinema
brasileiro, sendo que o adjetivo “perfeita” é empregado para destacar o grau de
correspondência entre os aspectos diegéticos do texto fílmico e do texto romanesco.
Tanto o modo discursivo como os códigos cinematográficos elaborados pelo
Cinema Novo estão diretamente ligados ao fato de que em seus filmes, Glauber Rocha e
Nelson Pereira dos Santos pretendem realizá-los de maneira quase artesanal, o que se
explica pela postura política de ruptura com o modo discursivo e os códigos
cinematográficos do cinema industrial. Assim sendo, os códigos de montagem e de
movimento da câmara se tornam centrais para a estética do Cinema Novo, criando efeitos
de sentido que acompanham e se sobrepõem à própria seqüência narrativa.
A câmera em movimento, associada aos cortes de montagem cinematográfica,
faz com que o espectador seja chamado a uma certa interação, pois, através desses efeitos,
o ângulo de visão e perspectiva do espectador mudam dentro de uma mesma cena. Para
Randal Johnson (1982, p.25), “a montagem pode ser definida como o corte e a
reorganização sintagmática de material filmado. É um processo externo de intervenção
36
sobre tal material”. Não desprezando outros códigos cinematográficos, mas realçando os
códigos de Câmera e de montagem cinematográfica, o Cinema Novo foi capaz de realizar
traduções críticas e articular discursos fílmicos, pedagogicamente engajados na perspectiva
do pensamento marxista, ao mesmo tempo em que criou uma linguagem estética própria.
Assim sendo, mesmo que siga, em termos de história, as seqüências narrativas do romance
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a obra de Nelson Pereira dos Santos realiza uma
recriação da linguagem romanesca, principalmente através de recursos de câmera e de
montagem, dessa forma, alinhando-se ou, talvez, ajudando a criar uma linguagem ou uma
estética própria do Cinema Novo.
2.3 O Cinema Novo no Brasil – Uma Pedagogia Cultural Militante
Se a intenção dos cinemanovistas, a partir do que Glauber Rocha denominou
de estética da fome, era levar adiante um projeto de cinema nacional inteiramente livre,
tanto do ponto de vista econômico como formal, quanto à influência da tradição e dos
modelos vindos de fora, em especial do modelo do cinema industrial, entendo que não é
possível falar do Cinema Novo sem fazer uma referência a três antecedentes culturais
significativos: a Nouvelle Vague, o Neo-Realismo italiano e a Montagem Soviética.
Para Manevy (2006, p. 221), a Nouvelle Vague foi um movimento cultural do
cinema francês que aconteceu no interregno dos anos de 1950 e 1960 e que se caracterizou
como um laboratório da estética do fragmento, da incorporação do acaso na filmagem, da
polifonia narrativa bem como do uso de formas atribuídas ao documentário, às artes
visuais, ao ensaio e à literatura. Realizada por jovens de aguda visão crítica do cinema,
como François Truffault, Eric Rohmer, Claude Chabrol e Jean-Luc Godard, a Nouvelle
Vague traduz a plena afirmação de um cinema autoral com ampla liberdade para adaptar
textos literários à linguagem cinematográfica. Quanto ao Neo-Realismo, parece-me válido
dizer que é um produto cultural do pós-guerra italiano que se disseminou pelo mundo.
Acerca do que de fato seja o Neo-Realismo, há várias controvérsias envolvendo críticos de
cinema e cineastas italianos. As principais divergências giram em torno dos supostos
filmes que teriam desencadeado o Neo-Realismo italiano e dos seus aspectos técnico-
estilísticos. Sobre essa questão, Fabris (2006, 205) traz o posicionamento do cineasta
Vittorio De Sica:
o neo-realismo não foi uma escola nem um movimento e, se é possível reconhecer uma certa unidade nessa tendência cinematográfica, não é tanto “pelo
37
estilo”, muito variável dependendo dos realizadores, mas por sua orientação no sentido da atualidade social e de estudo do povo italiano no decorrer do pós-guerra.
Polêmicas à parte, importa saber que o Neo-Realismo italiano, no período que
se estende de 1945 a 1952, através de nomes como Roberto Rossellini, Vittorio De Sica,
Luccino Visconti e outros cineastas, destacou-se como uma das mais influentes vertentes
de renovação do cinema moderno. Os cinemanovistas brasileiros apoderaram-se de muitas
características técnico-estilísticas do Neo-Realismo italiano e deram, ao cinema brasileiro,
um tom diferenciado em relação ao modelo de cinema hollywoodiano: filmagens em
cenários reais, a montagem cinematográfica, o uso de atores não profissionais, orçamentos
módicos e a recusa de efeitos visuais.
No Brasil, o Cinema Novo integra um amplo movimento de cultura popular
dos anos sessenta do século passado cujo propósito era promover a descolonização da
cultura brasileira, que, no tocante ao cinema, continuava fortemente influenciada pelo
modelo de produção hollywoodiano. Os anos sessenta do século vinte foram marcados por
intensa agitação no cenário político, social e cultural do país. Para Avellar (1995, p.107),
os anos sessenta estiveram,
entre a mobilização da sociedade pelas reformas de base, a participação dos estudantes na vida política, as ligas camponesas, a movimentação da arte cultura para inventar novas formas de pensar o país, entre a Bossa Nova, a História Nova, o Opinião, o arena, entre Jânio e as forças ocultas, entre Jango e os Militares, entre a Revolução Cubana e o subdesenvolvimento, entre o CPC, o Centro Popular de Cultura, e o CCC, Comando de Caça aos Comunistas, enfim entre deus e o diabo...
Os movimentos culturais populares dos anos sessenta, em sua maioria urbanos
e ligados à classe média, traziam, em seu bojo, ressonâncias de outro movimento cultural
anterior, o Movimento Modernista, iniciado em São Paulo no ano de 1922. Johnson (1982,
p.44) informa que, “para os modernistas de 1922, o Brasil, ocupado culturalmente por
modelos (mentais e físicos) europeus e norte-americanos, não conseguiu desenvolver seu
próprio ser psíquico independente, ou, como diria Mário de Andrade, seu próprio caráter”.
Para os cinemanovistas, o mercado interno estava dominado por filmes
estrangeiros, mormente os hollywoodianos, que não tinham compromisso para com a
realidade nacional. É possível afirmar que a estética do Cinema Novo mantém relações
próximas, considerando-se os motivos ideológicos (político-sociais), com a segunda fase
do Modernismo, e não tão próximas com os projetos estéticos da primeira fase modernista,
38
cujo fim, primeiro ou último, era romper com as formas literárias da tradição e adotar as
técnicas literárias das vanguardas européias. Para Albuquerque Júnior (2006, p.273),
o Cinema Novo retoma a problemática modernista da necessidade de conhecer o Brasil, de buscar suas raízes primitivas, de desvendar o inconsciente nacional por meio de seus arquétipos para, a partir deste desvendamento, didaticamente ensinar ao povo o que era o país e como superar a sua situação de atraso, agora nomeado subdesenvolvimento, e de dependência externa. Era um ideário confuso em que se misturavam chavões ideológicos da esquerda e enunciados nacionalistas. O Cinema Novo se propõe, portanto, a ser uma retórica de conscientização, de estabelecimento do que era a realidade nacional, superando nossa alienação, descobrindo nosso inconsciente sob os recalques produzidos por séculos de dominação colonial. O cinema deveria, nessa perspectiva, voltar-se para a abordagem de temáticas nacionais e populares, que mostrassem, de forma realista e pedagógica, os nossos problemas estruturais, descobrindo racionalmente os elementos mais significativos das relações sociais.
Os cinemanovistas compartilhavam, com os modernistas da segunda fase –
especialmente aqueles identificados com o Romance de 30 –, o propósito de denúncia da
realidade nacional através da literatura. Essa proximidade é tamanha que muitos dos filmes
produzidos pelos cinemanovistas são adaptações de romances de escritores da segunda fase
modernista, como as obras de Graciliano Ramos e de José Lins do Rego, entre outras.
Albuquerque Júnior (2006, p.265-266) deixa claro que,
não tendo uma produção imagética capaz de se auto referenciar, o cinema recorrerá às imagens e enunciados cristalizados sobre o país, sobretudo pelo romance, para produzir o efeito de verossimilhança desejável para que o público tenha referências anteriores e possa identificar de que realidade o filme está falando. Os filmes com a temática nordestina, por exemplo, quando não são adaptações para o cinema de romances produzidos pela geração de trinta, buscarão nesses romances suas imagens e enunciados mais consagrados, com exceção apenas da produção de Glauber Rocha e outros filmes isolados do Cinema Novo, que procurarão criar uma imagem própria para esta região do Brasil.
Ao redirecionar a visão realista da segunda fase modernista, o Cinema Novo,
de certo modo, superou o que ainda restava da visão naturalista, que predominava na
construção das espacialidades do cinema nacional. Para Albuquerque Júnior (2006, p.272-
273),
o Cinema Novo terá um desenvolvimento oposto ao modernismo. Enquanto este passou de uma estética não-realista, na década de vinte, para uma estética realista, na década de trinta, o Cinema Novo parte de uma mimese realista, no início da década de sessenta, para, ao longo dessa mesma década, abandonar tal postura. Abandona-se, paulatinamente, uma linguagem simbólica para se adotar uma linguagem alegórica, na qual a postura racionalizante anterior dá lugar a uma visão mágica e mítica do concreto.
39
O Cinema Novo popularizou-se no cenário nacional com o filme Os Cafajestes
(Ruy Guerra, 1962). No entanto, para muitos críticos de cinema, o estopim dessa nova
estética cinematográfica foi aceso um pouco antes, já na década de cinqüenta, quando o
cineasta Nelson Pereira dos Santos realizou Rio 40 Graus e Rio, Zona Norte, filmes que
dão início a uma ruptura, a um deslocamento quanto aos padrões cinematográficos
brasileiros. Outros críticos preferem associar a estréia do movimento do Cinema Novo a
dois fatos isolados: o lançamento de alguns filmes na Convenção de Crítica
Cinematográfica, realizada pela Cinemateca Brasileira, na cidade do Rio de Janeiro, no ano
de 1960, e alguns artigos publicados na imprensa. Para Albuquerque Júnior (2006, p.271-
272), “o movimento é nomeado e lançado por três artigos escritos e publicados em jornais
neste ano, um de Glauber Rocha, impresso em jornais da Bahia e no Jornal do Brasil, e os
de Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernadet, no Suplemento de O Estado de S. Paulo”.
Quanto à projeção internacional do Cinema Novo, pode-se dizer que não
tardou, consagrando-se principalmente com os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol
(Glauber Rocha, 1964), Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Os Cafajestes
(Ruy Guerra, 1962), exibidos e/ou premiados em festivais de cinema fora do Brasil
(Festival de Cinema de Mar del Plata, Festival de Cannes, Festival de Cinema de Acapulco
etc).
Deliberadamente, o Cinema Novo pretende unir arte e política com a
pretensão de fazer do cinema um instrumento pedagógico de conhecimento e de
intervenção na realidade nacional. Sua nova estética pretendia revitalizar e modernizar o
cinema nacional e, ainda, pôr em prática a proposta de um cinema popular e
revolucionário5, o que, noutros termos, significa explorar temas alicerçados naquilo que se
compreendia como realidade brasileira, através de um discurso de esquerda. Nesse sentido,
foram priorizadas temáticas como o próprio Nordeste, a raça, a seca, a pobreza, a
resistência, a violência, a migração, o fanatismo, entre vários outros. Para Albuquerque
Júnior (2006, p,273-274),
o Cinema Novo se assumirá como um discurso político com uma estratégia social definida. Um cinema feito por intelectuais de classe média que teriam adotado a perspectiva de classe do operariado, que se colocavam ao lado das forças “progressistas” contra as “reacionárias”, que buscavam resgatar o potencial de rebeldia da cultura popular. Paternalisticamente, propõem-se a fazer cultura para e pelo povo, construir uma vanguarda na luta contra o latifúndio e o imperialismo, identificados como os principais obstáculos a um desenvolvimento autônomo do país.
5 Popular no sentido de um cinema antiburguês.
40
Entre os cinemanovistas, devido à sua larga e intensa atividade intelectual,
tornou-se figura de proa o cineasta Glauber Rocha. Todavia, os representantes desse
movimento eram unânimes em proclamar o cineasta Nelson Pereira dos Santos como o
líder espiritual do Cinema Novo brasileiro6. Por outro lado, de imediato, a recepção do
Cinema Novo não foi das melhores, por uma série de fatores. Houve problemas de ordem
técnica, má distribuição das películas e um modo de endereçamento que deixava de fora as
camadas médias da população brasileira, que não estavam tão habituadas a apreciar filmes
esteticamente fora dos padrões hollywoodianos. Ainda assim, os protagonistas do Cinema
Novo apostavam na ação pedagógica desse modo de fazer cinema como um instrumento
eficaz para remover a alienação das camadas populares do país.
Ironicamente, o Cinema Novo foi projetado em cines clubes para um público
pequeno e seleto, que não assumiu o papel de intelectual orgânico perante as classes
populares, como era esperado pelos diretores e cineastas entusiasmados. Albuquerque
Júnior (2006, p.275) ressalta que muitos intelectuais de esquerda, ligados ao Partido
Comunista e aos Centros Populares de Cultura da UNE, teceram, em face do que diziam
ser a debilidade do Cinema Novo, severas críticas às suas produções, que abarcavam
diferentes aspectos, principalmente o hermetismo da sua linguagem e o aspecto
individualista do cinema autoral, contrário à idéia de um cinema revolucionário feito por
órgãos supostamente representativos da classe operária e do movimento popular.
Longe de estabelecer uma conexão transparente entre os signos e seus
referentes, o Cinema Novo se posicionou politicamente ao escolher e destacar
representações sociais conflitantes. O sertão, com seus tipos sociais, mostrado em filmes
como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas, não surgiu de conexões desmotivadas
entre a linguagem e a realidade social. A imagética do sertão parte de práticas discursivas
instituidoras que precedem à concepção desses filmes. Ainda que tenha utilizado, em seus
filmes, alguns padrões imagéticos naturalistas, o Cinema Novo conseguiu superá-los, em
certa medida, ao buscar na razão-política, e não na razão-naturalista, as motivações para
explicar a situação daquela paisagem de cactos, de sol intenso, de morte, de migração, de
alienação, de violência, de fanatismo, de atraso, de abandono, em suma, daquilo que era
compreendido como irracionalismo.
6 Glauber Rocha, além de crítica e ensaio, escreveu poesia, teatro, romance e deixou roteiros de filmes e
desenhos. Toda a sua produção acha-se arquivada no Tempo Glauber, na cidade do Rio de Janeiro.
41
Muitas das representações imagético-discursivas articuladas nesses dois textos
fílmicos já estavam presentes em ensaios sociológicos de Euclides da Cunha e nas
narrativas literárias de autores vinculados ao regionalismo moderno, mais especificamente,
ao Romance de 30. Fora isso, em consonância com o pensamento de Foucault (2002, p.26-
27), pode-se dizer que várias delas também resultam de práticas e discursos classificados
como circulantes: “conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos que
necessitam de signatário, mas não exatamente de autor, receitas técnicas transmitidas no
anonimato”.
Os cineastas Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, embora tenham
aproveitado, como fontes, imagens ou textos identificados com o Romance de 30,
apresentam-se como autores das narrativas apresentadas ao público em seus filmes, pois
entendiam que o filme é um texto e, portanto, deve ser compreendido “em si” e “por si”,
não sendo, portanto, necessário prestar conta de suas fontes imagéticas ou textuais. Com
essa atitude, os cinemanovistas desmistificaram a idéia da originalidade autoral, que, diga-
se de passagem, não apenas no tocante ao cinema, é uma questão bastante presente nas
discussões mais contemporâneas. Um dos filósofos ligados ao pensamento pós-moderno a
discorrer nessa perspectiva é Michel Foucault (2002, p.26): “O autor, não entendido, é
claro, como um indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como
princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como
foco de sua coerência”.
Nesse sentido, quando se fala de cinema autoral, importa menos a suposta
originalidade das tramas e enredos mobilizadas e mais a independência frente a certos
códigos estabelecidos pela tradição. De acordo com Xavier (2007, p.76),
cinema de autor significa, ao mesmo tempo, independência frente aos mecanismos burocráticos da produção, independência frente às convenções do filme narrativo usual e independência ideológica frente à censura temática da indústria. O autor rebela-se contra o capital, reivindica a expressão pessoal contra a comunicabilidade-rentabilidade a todo custo. Monta seus próprios esquemas de financiamento, via-de-regra, torna-se produtor e, na base dos baixos orçamentos, tenta dar viabilidade ao projeto, dentro das condições em geral adversas, por diferentes motivos.
Ao levar adiante aquilo que acreditavam ser um cinema autoral, os
cinemanovistas articularam ou rearticularam representações culturais constantes em
diversas práticas e gêneros discursivos, ressignificando-as na linguagem audiovisual do
cinema. Glauber Rocha, por exemplo, usa diversas estratégias estético-cinematográficas.
42
Ao seu modo, o cineasta trabalha com a montagem einsteineana, com o teatro épico grego
e com o teatro brechtiano, cuja tônica é a técnica de atuação que favorece a atividade do
espectador graças ao caráter demonstrativo do jogo do ator. 7 Nelson Pereira dos Santos,
por sua vez, em Vidas Secas, optou por não ser tão gongórico como Glauber Rocha. Fez
um filme mais linear, marcado por uma seqüência de episódios que, em lugar da rebeldia,
mostra as contradições e o processo de submissão do homem, de um vaqueiro do sertão e
sua família, em uma sociedade rural pré-capitalista. Procura mostrar visualmente o que o
marxismo denomina de materialismo histórico, ou seja, o processo de trabalho como fator
determinante no desenvolvimento da história humana e na produção e reprodução da vida
social.
Não tinha Glauber Rocha, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, ao enfocar o
universo de beatos, de cangaceiros e de vaqueiros, a menor intenção de fazer apologia ao
misticismo, à violência ou ao folclore da região. Antes, sua intenção era demostrar, numa
realidade dada, aquilo que considerava como o motor da história: o potencial de rebeldia e
de força com que o colonizado promove a negação do colonizador através de atos de
violência, ainda que desordenados.
Como os romancistas de trinta, também os cinemanovistas acreditavam
piamente na superação da miséria a partir da superação da alienação, das antigas estruturas
sócio-culturais e da implantação, por parte de um movimento organizado ou por um
partido identificado com as classes espoliadas, de um programa político-econômico e
cultural sistemático. Sobre o caráter anárquico e/ou ordenado das revoluções, Anderson
(2005, p. 212), amparado no pensamento de Hobsbawm, afirma que a mais famosa das
revoluções modernas, a Revolução Francesa, não foi realizada e nem liderada por um
partido ou movimento organizado, considerando-se o sentido moderno destes termos. E
que a primeira revolução “planeada” de sucesso na história foi a dos bolcheviques.
Para os cinemanovistas e, especialmente, para Glauber Rocha, a resistência
anárquica e a violência desordenada de beatos, de cangaceiros e de vaqueiros não era
somente violência-violência ou miséria-miséria, mas, sobretudo, era a expressão
pedagógica de uma estética da fome, quer seja a fome do Brasil ou a fome da América
Latina. Na concepção estética de Glauber Rocha, através da estética do feio e do disforme,
o mundo conhecerá a gravidade da realidade social de um Nordeste arcaico, metafísico e
mítico.
7 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro – brechtiano. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 34.
43
Para Albuquerque Júnior (2006, p.289), a estética da fome, de Glauber Rocha,
estabelecia que “a violência era a expressão do ser dominado, a única força
desencadeadora da história, a única forma de quebrar a rotina. Ela era, portanto, uma
pedagogia, um aprendizado de como lutar pela mudança, e também uma estética, uma
forma de fazer falar e ver uma dada realidade sem verbo, uma forma de comunicar a
verdade cruel da sociedade burguesa.” Nele, o poder é visto de forma negativa, como
instância produtora de violência que se deve combater com violência, mas em sentido
contrário. A resistência e a revolta são vistas por Glauber como o avesso do poder e,
portanto, não fazem parte de sua própria trama. Para os cinemanovistas, que eram
materialistas históricos, a violência não era uma essência vinculada a questões de clima ou
miscigenação, como acreditavam os naturalistas. Ela estava associada às contradições de
um sistema econômico desigual, onde as classes estavam situadas num espaço disputado
de poder.
Numa tentativa de sistematizar as produções realizadas sob o rótulo do Cinema
Novo, Johnson (2000, p.81) afirma que “é cabido dizer que ele foi um movimento
contínuo, mas didaticamente é possível dividi-lo em três fases marcantes da vida política
brasileira, 1960-1964; 1964-1968 e 1968-1970”. Os filmes tomados como objeto desta
pesquisa surgiram na sua primeira fase, marcada por um compromisso deliberado com o
realismo do romance social dos anos trinta. Por outro lado, no que toca especificamente à
linguagem cinematográfica, embora as referências realistas vinculem-se à estética do Neo-
Realismo italiano, a Nouvelle Vague e a Montagem Soviética, colocam sua ênfase no
subdesenvolvimento do Brasil e da América Latina. Para Johnson (1982, p.83), “esses
filmes traduzem aquilo que seus diretores compreendem por realidade brasileira, isto é, a
miséria e a exploração resultantes do subdesenvolvimento do país”. A segunda fase está
muito centrada no desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica descolonizada. O
filme Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) é bastante ilustrativo da segunda fase. Já a
terceira e última fase, por sua vez, mantém um vinculo ideológico forte com o pensamento
antropofágico de Oswald de Andrade, sendo que o filme mais representativo desse período
é Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1967).
Por fim, que o Cinema Novo tenha dialogado com o Movimento Modernista e
que tenha explorado temas de nossa realidade, parece algo já bastante mencionado. Porém,
no que toca à questão do nacionalismo, é necessário esclarecer que os cinemanovistas se
afastaram visivelmente dos modernistas. Para eles, sobretudo para Glauber Rocha, a
estética da fome não tinha, entre seus propósitos, estabelecer um sentimento capaz de
44
transceder as classes sociais e seus conflitos. Para Glauber Rocha, a miséria do Nordeste
não se distingue da miséria da América Latina ou da miséria de qualquer outra nação que
tenha sofrido as agruras de um processo de colonização no passado.
Esse olhar de desconfiança para com o fervor nacionalista que tanto atraiu
alguns dos modernistas foi impulsionado principalmente pela interpretação marxista que
vários intelectuais brasileiros de esquerda adotavam da realidade. Pelo menos, esse parece
ter sido o caso dos cineastas que fizeram o Cinema Novo no Brasil – eles tinham senão
uma formação, pelo menos uma visão marxista da realidade, o que os afastou da euforia
nacionalista promulgada pela ideologia integralista, utilizada como suporte intelectual, por
exemplo, do movimento Anta, vinculado ao Modernismo Brasileiro.
2.4 Representação e Identidade Cultural
No período que se convencionou chamar, no campo filosófico, de Modernidade
- abrangendo os séculos XVIII ao século XX - o sujeito autônomo cartesiano ocupou um
lugar central. Para melhor compreendê-lo, a Modernidade tratou de elaborar teorias
diferenciadas a fim de dar conta do sujeito cognoscente, tomando-o, geralmente, como um
ser congruente e, inclusive, como fundamento da própria filosofia. Com o declínio da
racionalidade moderna, iniciado a partir das reflexões realizadas por Nietzsche, o sujeito
deixa de ser visto como fundamento e passa a ser visto e discutido predominantemente no
contexto dos problemas ligados à representação e à identidade cultural.
Na contemporaneidade, sobretudo nas teorizações pós-estruturalistas, das quais
freqüentemente se aproximam os Estudos Culturais, as identidades culturais são
compreendidas em conexão com dois fatores principais, a saber, a representação e a
diferença. Para Santos (2006, p. 136), “a preocupação com a identidade não é, obviamente,
nova. Podemos dizer que a modernidade nasce dela e com ela”. Nessa mesma perspectiva,
Raymond Williams (p, 353) afirma que, no idioma inglês, o grupo de palavras em cujo
contexto o verbo “representar” é central remonta já ao século XIV.
Na perspectiva do presente trabalho, portanto, interessa, entre os muitos
sentidos ligados ao verbo representar, o significado empregado em análises culturais
recentes, ligado às “formas textuais e visuais através das quais se descrevem os diferentes
grupos culturais e suas características”8, visto que esse recorte permite conceber o
8 Ver Tomaz Tadeu da Silva. Teoria cultural e educação – um vocabulário crítico. In: representação. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 97.
45
“vaqueiro” como uma identidade cultural múltipla, construída a partir das várias
representações culturais produzidas historicamente em contextos distintos, sempre
atravessadas por embates de poder. O enfoque aqui adotado está centrado sobre as
representações culturais construídas pelos filmes realizados no contexto do Cinema Novo,
sendo que tais filmes são compreendidos como “formas textuais e visuais” ou
“significantes”. Nesse sentido, Silva (2000, p. 97) esclarece que,
no contexto dos Estudos Culturais, a análise da representação encontra-se em sua expressão material como “significante”: um texto, uma pintura, um filme, uma fotografia. Pesquisam-se aqui, sobretudo, as conexões entre identidade cultural e representação, com base no pressuposto de que não existe identidade fora da representação.
Nessa mesma perspectiva, Hall (2003, p.13) afirma que, nos últimos anos, que
ele prefere chamar de Modernidade Tardia, registrou-se, em torno do conceito de
identidade, uma verdadeira explosão discursiva no mesmo instante em que esse conceito é
submetido a uma crítica minuciosa. Para Bauman (2003, p.40), um dos críticos desse
conceito, a identidade continua sendo, na Pós-Modernidade, o grande problema do sujeito,
mas não no mesmo enfoque dado pela Modernidade. Em seus termos,
A decir verdad, si el “problema moderno de la identidad” era como construirla y mantenerla sólida y estable, el “problema posmoderno de la identidad” es en lo fundamental cómo evitar la fijación y mantener vigente las opciones. En el caso de la identidad, como en otros, la palabra comodín de la modernidad fue “creación”; la palabra comodín de la posmodernidad es “reciclaje”.
A Pós-Modernidade, segundo Bauman, ou a Modernidade Tardia, segundo
Hall, vem promovendo deslocamentos que terminam por afetar diretamente a concepção
do sujeito. Para Hall (2003, p.14), “este descentramiento no requiere un abandono o una
abolición del “sujeto”, sino una reconceptualización: pensarlo en su nueva posición
desplazada o descentrada dentro del paradigma”. A partir de Hall (2003, p.15), pode-se
afirmar que, no tocante ao sujeito, um dos efeitos imediatos desse deslocamento é a
substituição do processo de identificação de base naturalista e historicista – segundo o qual
as coisas existentes no mundo material ou natural eram dotadas de características materiais
ou naturais que as constituíam, de um lado, ou de uma historicidade que as constituía, de
outro lado –, por outro processo, de base discursiva, onde o significado não é achado e sim,
construído através do discurso.
No momento da denominada “virada cultural”, há uma tendência, sobretudo no
âmbito dos Estudos Culturais, de ampliar a “extensão” e a “compreensão” do conceito
46
“cultura” de tal modo que possam ser consideradas, como cultura, todas e quaisquer
práticas humanas dotadas de significado. Para Hall (1997, p.3-4), a produção do
significado surge em todos os momentos ou práticas do “circuito da cultura”, sendo que a
linguagem é um dos meios privilegiados através dos quais é produzido e por onde circula o
significado9.
O significado é produzido também no momento em que alguém se expressa,
faz uso ou consome algum produto cultural, dando-lhe valor ou significância. Há diferentes
formas de produção e de comunicação de significado, que também são linguagens, ainda
que não sejam escritas ou faladas. As linguagens funcionam através da representação, ou
melhor, através de sistemas de representação, o que, por sua vez, engloba as práticas
sociais, dado que elas estão inseridas sempre em redes que significam ou representam o
que se pretende comunicar. É através dos sistemas de significação, portanto, que se pode
assumir ou rejeitar uma identidade cultural determinada. Para Hall (1997, p.5), “é através
da cultura e da linguagem neste sentido que se dá a produção e a circulação do
significado”.
Stuart Hall procurou sintetizar as principais correntes quanto à questão da
representação a partir de três abordagens diferenciadas da linguagem: a abordagem
reflexiva, a intencional e a construcionista. Na abordagem reflexiva, prevalece o
entendimento de que as coisas “em si mesmas” são naturalmente dotadas de significados e
que a linguagem, qual um espelho, apenas reflete esses significados. Na abordagem
intencional, tem-se o entendimento de que são os usuários individuais da língua que
impõem ao mundo o significado único das coisas. Por fim, na abordagem construcionista,
sustenta-se a idéia de que nem as coisas, consideradas em si mesmas, tampouco os usuários
individuais da língua, podem estabelecer significados, pois esses são construídos
socialmente através de sistemas de representação – conceitos e signos. Dessa forma, o
autor desloca o fundamento da linguagem na medida em que afirma a centralidade do
discurso na cultura. Para Hall (1997, p.5),
discursos são formas de se referir ou construir o conhecimento acerca de um tópico particular da prática: o agrupamento (ou formação) de idéias, imagens e práticas, que proporcionam formas de falar, formas de conhecimento e conduta associadas a um tópico particular, a atividade social ou a localização social na sociedade. Estas formações discursivas, como são conhecidas, definem o que é e o que não é adequado em nossa formulação e em nossas práticas em relação a determinado assunto ou localização da atividade social; qual conhecimento é considerado útil, pertinente e
9 No sentido horário, integra o circuito da cultura: representação/identidade/produção/consumo/regulação. Tomando-se o sentido anti-horário, tem-se: representação/regulação/consumo/produção/identidade.
47
“verdadeiro” nesse contexto; e que tipo de pessoa ou “sujeito” incorpora tais características. “Discursivo” tem se tornado o termo geral usado para se referir a qualquer abordagem em que o significado, a representação e a cultura sejam considerados constitutivos.
As reflexões de Stuart Hall acerca da centralidade do discurso têm amparo no
pensamento do filósofo Michel Foucault, um dos autores que argumenta em favor do
deslocamento da centralidade da “língua” para a centralidade do “discurso”. Na acepção
foucaultiana, discurso diz respeito tanto à definição e à produção dos objetos do
conhecimento como à regulação das idéias que são postas em circulação numa dada
sociedade ou simplesmente excluídas. Para Foucault, significado, prática significativa e
sujeito são construídos pelo discurso, pois, considerados em si, fora do discurso, não
possuem significado definido. Sobre como Foucault articula discurso e práticas discursivas
com a história, Hall (1997, p.38) afirma que, “longe de aceitar as continuidades trans-
históricas tão apreciadas pelos historiadores, Foucault acreditava que mais significativas
eram as rupturas e descontinuidades radicais entre um e outro período, entre uma e outra
formação discursiva”.
Outro fator importante no pensamento foucaultiano é o vínculo necessário que
ele estabelece entre o conhecimento (saber) e o poder. Em Foucault, o poder assume uma
nova forma: é disposto e exercido através de uma organização em rede. O poder é difuso,
permeia todos os níveis da existência social, de modo que, no pensamento de Foucault, não
há lugar para dicotomias tão simples como a divisão entre sujeitos opressores e oprimidos.
Para Hall (2003, p.19), a construção das identidades culturais é fortemente
marcada pela diferença, concebida como processo social discursivo, e pelo poder,
precisamente porque las identidades se construyen dentro del discurso y non fuera de él, debemos considerar-las producidas en ámbitos históricos e institucionales específicos en el interior de formaciones y prácticas discursivas específicas, mediante estrategias enunciativas específicas. Por otra parte, emergen en el juego de modalidades específicas de poder y, por ello, son más un producto de la marcación de la diferencia y la exclusión que signo de una unidad idéntica y naturalmente constituida: una “identidad” en su significado tradicional (es decir, una mismidad omniabarcativa, inconsútil y sin diferenciación interna).
As identidades culturais são, portanto, construídas ou compreendidas no
discurso e, por essa razão, sua compreensão se dá em torno das questões relativas à
diferença. Assim sendo, a construção das identidades culturais dá-se sempre numa
incessante cadeia de relações opositivas através das quais o outro é freqüentemente
transformado no diferente, o que ocorre devido à mediação do poder. Esse processo
48
permite perceber que, ao contrário do entendimento que fora hegemônico na Modernidade,
as identidades culturais, na Pós-Modernidade, não são construções sólidas e estáveis,
prontas e acabadas, visto que estão sujeitas à lógica das transformações inerentes à
representação e, conseqüente, à própria cultura.
Para Hall (2002, p. 120),
o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável está se tornando fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
De acordo com Santos (2006, p. 137), durante a Modernidade, entre os maiores
problemas da identidade, geralmente tratada a partir do conceito da subjetividade, estavam
duas grandes tensões – a tensão entre a subjetividade individual e a subjetividade coletiva.
Em outros termos, trata-se da tensão entre a concepção concreta e contextual, de um lado, e
a concepção abstrata da subjetividade, de outro lado. Na Modernidade Tardia, por sua vez,
as discussões em torno da identidade enfatizam as transitoriedades, a fugacidade e a
pluralidade das identidades culturais, outrora tomadas como rígidas, sólidas e unificadas.
Além disso, também está em pauta a questão das diferenças, das negociações de sentido
como fator determinante no processo de construção das identidades culturais. Sobre essas
questões, especificamente, é bastante esclarecedora a reflexão de Santos (2006, p. 135)
quando afirma o seguinte:
Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou países europeus, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso.
Na sociedade contemporânea, governada por imagens e pela mídia, não se
pode negar a importância da ação pedagógica do cinema na produção de sentidos que
atuam na formação de identidades culturais. Por essa razão, o cinema, ao seduzir e fascinar
os espectadores, influencia não apenas suas escolhas e/ou suas recusas mais imediatas
49
como também atua em seus processos de “identificação”. Em poucos termos, como
artefato cultural, o cinema é um gerador de representações culturais que atuam diretamente
no processo de constituição de identidades culturais.
O Cinema Novo, especificamente, mobiliza elementos culturais ligados à
ordem econômica, política e cultural do sertão, revisando-os pelo olhar de uma concepção
estética marcada por um discurso político-cultural de reação ao que se considerava uma
política cultural imperialista, dominada por padrões estéticos norte-americanos. Para
designar esse modo diferente de fazer cinema, Shohat e Stam (2006, p.59), amparados no
pensamento de Paul Willemen, empregam a expressão “Terceiro Cinema”, expressão que
remete a um projeto ideológico, ou seja, trata-se de um corpo de filmes que aderem a um
certo programa político e estético, quer eles tenham sido produzidos no Terceiro Mundo ou
não.
Ao enfocar o sertão nordestino em filmes como Deus e o Diabo na Terra do
Sol e Vidas Secas, através de um discurso fílmico politicamente engajado, portanto, os
cinemanovistas empreendem uma articulação de representações culturais já presentes em
diferentes âmbitos da cultura, principalmente em artefatos como a literatura canônica
brasileira, manifestações folclóricas como danças, ditos populares, vestuário, literatura de
cordel, entre vários outros. Ao mesmo tempo, a partir dessas mesmas representações
culturais, os filmes atuam produtivamente em uma espécie de (re)construção das
identidades culturais, que acabam adquirindo traços específicos de sentido, muitas vezes,
operando hibridações entre identidades. É o que ocorre, por exemplo, quando o vaqueiro
adquire traços de beato, de cangaceiro e de retirante, como se verá nas análises
apresentadas na próxima seção deste trabalho.
50
3 REPRESENTAÇÕES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO
3.1 Sinopses
3.1.1 Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964)
A crítica especializada de cinema tem sido unânime ao considerar Deus e o
Diabo na Terra do Sol um marco do Cinema Novo brasileiro10. Esse filme, distribuído
pela Copacabana Filmes e dirigido por Glauber Rocha no ano de 1964, tem o roteiro
assinado pelo próprio Glauber Rocha e por Walter Lima Jr., seu assistente de direção. A
produção coube a Luiz Augusto Mendes e a fotografia e câmera, a Waldemar Lima. As
filmagens foram rodadas no sertão da Bahia, em Monte Santo, Cachê, Cocorobó, Canudos,
Feira de Santana e Salvador. No elenco, relativamente pequeno, constam nomes como os
de Geraldo Del Rey (vaqueiro Manuel), Yoná Magalhães (Rosa, esposa de Manuel),
Maurício do Valle (Antônio das Mortes), Othon Bastos (Corisco), Lídio Silva (Santo
Sebastião), Sonia dos Humildes (Dadá, companheira de Corisco), Milton Rosa (coronel
Moraes), Marrom (Cego Júlio), João Gama (padre), Antônio Pinto (coronel). Na trilha
sonora, encontram-se árias de peças sinfônicas de Heitor Villa-Lobos e Johann Sebastian
Bach, além de composições de Sérgio Ricardo com letras de Glauber Rocha.
O vaqueiro Manuel e sua família, esposa e mãe idosa, levam uma vida sofrida
no sertão da Bahia. Ainda assim, ele nutre esperanças de, com o seu esforço, adquirir um
pedaço de chão e iniciar uma fazenda-criatório. Decidido, vai à feira tocando um pequeno
rebanho para fazer a partilha com seu patrão, o coronel Moraes. Terminada a contagem do
gado, o coronel Moraes informa que nada lhe deve, pois as reses que morreram no açude
do norte eram as que lhe cabiam na partilha. Desolado, o vaqueiro Manuel insiste
afirmando que as reses mortas tinham o ferro do coronel Moraes. Contrariado, este
pergunta a Manuel se, por acaso, estaria insinuando que o coronel é um ladrão.
Após breve hiato, o vaqueiro diz a Moraes que tal insinuação fora feita pelo
próprio coronel. Furioso, este açoita Manuel, que, num acesso de ira, esfaqueia e mata o
coronel Moraes diante do curral de partilha. Após cometer o assassinato, Manuel foge em
disparada para a fazenda. No seu encalço, seguem os cabras do coronel Moraes. No
10 Entre os críticos estão Paulo Perdigão, Valter da Silveira, Norma Bahia Pontes, David E. Neves, Luiz Carlos Maciel, entre outros.
51
terreiro da casa de telha, Manuel trava, com os cabras, uma luta violenta, que termina com
o saldo de três mortos: sua mãe e os dois cabras. Avexado, Manuel enterra a mãe em uma
cova rasa e, mais uma vez, para o desespero de Rosa, diz que tudo o que acontecera se
deve a um chamado dos céus pelo caminho da desgraça. Sem nada levar, o casal parte para
Monte Santo para se homiziar junto ao Santo Sebastião, beato conselheiro daquela gente
espoliada do sertão.
Ao juntar-se aos sertanejos seguidores do Santo Sebastião, que é beato
milenarista e anti-republicano, em detrimento da sua identidade cultural de vaqueiro,
Manuel, completamente alucinado, assume a identidade cultural de jagunço. Sem atender
aos apelos de Rosa para que abra os olhos e deixe Monte Santo, Manuel, completamente
alucinado, proclama em voz alta, a fim de que todos possam escutar, que sua esposa Rosa
está possuída pelo demônio. Para purificar Rosa, o Santo Sebastião exige o sacrifício de
um inocente num ritual de catarse. No âmago do sacrifício, surge Antônio das Mortes,
matador de cangaceiros, contratado pelos coronéis e representantes da Igreja Católica
Apostólica Romana, com o intuito de dar cabo à vida do Santo Sebastião e dos fanáticos
que o seguem. Entretanto, Antônio das Mortes soçobra em seu intento maior, pois Rosa,
instantes antes da sua chegada, aproveitando-se de um descuido de Manuel, assassinara a
facadas o Santo, que resta morto diante do Altar-Mor da capela da Via Sacra de Monte
Santo.
Por iniciativa própria, Antônio das Mortes poupa a vida de Manuel e de Rosa,
para que sirvam de testemunhas. Ao deixar Monte Santo, Manuel e Rosa, conduzidos pelo
Cego Júlio, encontram o cangaceiro Corisco, que estava sedento de vingar a morte de seu
compadre Lampião. Diante de Corisco, Manuel, aludindo à sua condição de ex-jagunço do
Santo Sebastião, pede para ser cangaceiro. Corisco acede, coloca em Manuel a alcunha de
Satanás. Acompanhado de Manuel, Corisco, com o que restou de seu antigo bando, ataca
fazendas de seus desafetos e comete toda sorte de crueldades. Antônio das Mortes,
mandado pelos latifundiários, após longa conversa com o Cego Júlio, sai em perseguição a
Corisco e, ao encontrá-lo, trava uma luta violenta, onde Corisco leva a pior sorte. Mais
uma vez, Antonio das Mortes poupa a vida de Manuel e de Rosa, que saem a esmo, em
desabalada carreira pelo sertão rumo ao mar, que invade a tela.
3.1.2 Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963)
Considerado o precursor do Cinema Novo brasileiro, Vidas Secas é uma das
52
mais felizes adaptações realizadas no Brasil da literatura romanesca, nomeadamente, do
romance homônimo de Graciliano Ramos, à linguagem cinematográfica. Dirigido por
Nelson Pereira dos Santos em 1963, no sertão de Alagoas, Palmeira dos Índios, Vidas
Secas tem o roteiro assinado pelo próprio diretor e a fotografia, por Luiz Carlos Barreto.
Integram o elenco os atores Átila Lório (Fabiano), Maria Ribeiro (Sinhá Vitória), Orlando
Macedo (soldado amarelo), Jofre Soares (fazendeiro) e outros.
Fabiano, vaqueiro do sertão, acompanhado da esposa, Sinhá Vitória, do menino
mais novo, do menino mais velho, do papagaio e da cachorra Baleia, tocado por uma
terrível seca, deixa para trás a fazenda em que vivia e sai sem rumo certo, em busca de
melhores condições de vida para a família. Na sua bagagem, somente o que pode carregar
no próprio corpo: o aió, a cuia e a espingarda de pederneira. Sinhá Vitória carrega o
Menino mais Novo escanchado no quarto e um baú de folha sobre a cabeça. Pendurado no
baú de folha, uma pequena gaiola com o papagaio. O Menino mais Velho e a cachorra
Baleia seguem a pé, um pouco atrás de Fabiano.
Nessa emigração, o Fabiano e a família, que inclui os animais domésticos,
passam por toda sorte de privação. O clima melhora e Fabiano arranja trabalho na fazenda
em que fizera o último pouso. Procurando integrar-se à sociedade local, Fabiano e a família
vão à cidade para uma celebração religiosa. Lá sente a presença opressora do Estado
constituído, representado pelo cobrador de imposto e pelo soldado amarelo. Preso ao
sistema fundiário, Fabiano percebe sua exploração, mas recua diante das insinuações e da
explicação do fazendeiro: “são os juros”. Em solilóquio, Fabiano avalia a seca, sua
condição de espoliado, seu processo de animalização (Fabiano, Sinhá Vitória, Menino mais
Novo e Menino mais Velho estão perdendo a linguagem abstrata e articulada com que os
seres humanos se distinguem dos outros animais), e Sinhá Vitória, ao pensar em melhora,
pensa no luxo de uma cama de couro, igual à de seu Tomás da Bolandeira.
A cachorra Baleia, antropomorfizada, na agonia da morte, vislumbra um tempo
de fartura, de gordos preás. A seca segue o seu ciclo natural, mas a miséria de Fabiano, ele
percebe, não tem causas naturais. Sinhá Vitória atribui às avoantes (Zenaida auriculata
chysauchenia) as causas da seca bem como da morte dos animais. Novamente, Fabiano
parte com a família rumo ao mar, na esperança de encontrar melhor sorte.
3.2 As Representações do Vaqueiro
Coube à República, no século XIX, a partir da unificação política do Brasil em
53
uma federação, fomentar o nacionalismo, e ao Movimento Modernista de 1922, no século
XX, redefini-lo através da afirmação de uma língua e de uma cultura que se pretendiam
autenticamente brasileiras. Porém, antes da República e do Modernismo, essa questão já
havia sido discutida a partir do Movimento Romântico, durante o correr da segunda metade
do século XIX, destacando-se, quanto à questão específica do nacionalismo, entre outros,
os nomes de Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar. O Movimento
Romântico elegeu o índio como o elemento símbolo da nacionalidade brasileira, ao passo
que o Movimento Modernista, em diálogo também com os românticos, encontrou, na
mestiçagem e na cultura sincrética, os elementos ideais para afirmar a nacionalidade
brasileira.
Nos anos sessenta do século XX, o Cinema Novo retoma, em seus filmes, a
questão da identidade cultural nacional, em parte, no modo como fora apresentada pelos
modernistas, porém, enfatizando dois pontos fundamentais: 1) A conscientização da
realidade nacional; 2) a valorização da cultura popular. Segundo Albuquerque Júnior
(2006, p.273),
o Cinema Novo retoma a problemática modernista da necessidade de conhecer o Brasil, de buscar suas raízes primitivas, de desvendar o inconsciente nacional por meio de seus arquétipos para, a partir deste desvendamento, didaticamente ensinar ao povo o que era o país e como superar a sua situação de atraso, agora nomeado subdesenvolvimento, e de dependência externa. Era um ideário confuso em que se misturavam chavões ideológicos da esquerda e enunciados nacionalistas. O Cinema Novo se propõe, portanto, a ser uma retórica de conscientização, de estabelecimento do que era a realidade nacional, superando nossa alienação, descobrindo nosso inconsciente sob recalques produzidos por séculos de dominação colonial. O cinema deveria, nessa perspectiva, voltar-se para a abordagem de temáticas nacionais e populares, que mostrassem, de forma realista e pedagógica, os nossos problemas estruturais, descobrindo racionalmente os elementos mais significativos das relações sociais.
No Cinema Novo, portanto, as representações culturais bem como as
identidades culturais construídas em torno do vaqueiro fazem parte de um projeto cultural
e pedagógico mais amplo ligado à representação e à identidade cultural construída para o
próprio Nordeste. Nesse contexto, o vaqueiro será apenas uma das várias “identidades-
tipo” construídas intencionalmente a partir daquilo que os cinemanovistas consideravam
como as raízes mais autênticas de uma cultura e de uma nacionalidade
brasileira/nordestina, tais como o beato, o cangaceiro, o repentista, o retirante, entre vários
outros “tipos”. Se, de um lado, o intuito pedagógico inerente à construção dessas
identidades é a denúncia da alienação cultural, sempre ligada à alienação econômica, de
54
outro lado, a estratégia pedagógica utilizada para implementar essa “pedagogia da
denúncia” está baseada em quatro pontos principais.
Primeiro, os cinemanovistas procuram ressignificar certas representações
culturais consideradas “mais autênticas” daquilo que consideravam como a cultura
regional, sendo que tais representações são buscadas em espaços culturais distintos, desde
a cultura do folclore, como no caso da literatura de cordel, até o romance de trinta e,
mesmo, a ressignificação de certos tópicos do romantismo e de clássicos como Os Sertões,
Pedra Bonita, Cangaceiros, Grandes Sertão Veredas e Vidas Secas.
Segundo, a composição do enredo e a construção dos personagens seguem um
modelo estrutural bastante previsível em muitos aspectos. Os personagens do Cinema
Novo são geralmente colocados em enredos problemáticos, desempenhando papéis de
oprimidos dentro de um sistema que mescla a figura do opressor tanto ao espaço físico do
próprio Nordeste (a seca com sua imagística de cactos, aridez, animais morimbundos,
emigração...) quanto de personagens que desempenham o papel de capitalistas primitivos e
mantêm a subserviência dos agregados às custas de violência física e psicológica.
Terceiro, no que tange à concepção estética stricto sensu, ocorre, em muitos
filmes produzidos pelos cinemanovistas, a adoção de técnicas de composição fílmica a
partir da inspiração buscada no Neo-Realismo, na Nouvelle Vague e na Montagem
Soviética. Entre outras práticas, pode ser citado o modo como a câmera é utilizada para
denunciar a presença arbitrária de um “narrador”. Essa técnica, cujos efeitos estéticos
contrastam fortemente com o realismo almejado pela cinematografia geralmente praticada
em filmes comerciais norte-americanos, acentua, através da própria forma, a percepção da
aridez social e geográfica bem como da violência aparentemente insolúvel que marca as
relações sociais vivenciadas pelos tipos nordestinos. Na medida em que a
convencionalidade da própria linguagem cinematográfica é denunciada, numa espécie de
autorreflexividade crítica, pretende-se denunciar, de fato, a arbitrariedade das relações
sociais mantidas no Nordeste e, por extensão, no Brasil.
Por fim, o quarto ponto constitui-se na retomada de tópicos ligados ao passado
histórico da região Nordeste como estratégia de denúncia da realidade presente e da
alienação do povo diante da ação de forças imperialistas em um espaço regional
subdesenvolvido. De certo modo, a retomada de certos topoi e de certos tipos construídos
historicamente através de representações já consagradas no repertório cultural do Nordeste
tem a mesma finalidade pretendida com os recursos técnicos e estéticos do Cinema Novo –
como a câmera em movimento e a aridez com que são representadas cenas e imagens:
55
denunciar a arbitrariedade das relações sócio-econômicas em que se encontram
personagens e indivíduos ligados a esse espaço regional. A retomada das relações
econômicas construídas historicamente insere-se dentro da visão marxista de Glauber
Rocha e de Nelson Pereira dos Santos, pois, tanto em Deus e o Diabo na Terra do Sol
quanto em Vidas Secas, fica patente a adesão ao Materialismo Histórico que tem no modo
de produção da vida material o fator que determina a vida social, política e espiritual das
personagens.
Dentro desse contexto, o vaqueiro será construído como uma identidade-tipo
que, embora seja apresentado como uma identidade congruente, revela, a partir de uma
análise atenta, estar alicerçado em um agenciamento muito idiossincrático de
representações culturais ligadas a técnicas de composição muito específicas. Nas páginas
que seguem, algumas representações mobilizadas para construir essa identidade serão
explicitadas. Não há intenção de realizar uma análise completa ou definitiva de tais
identidades culturais, mas sim, procura-se explicar um pouco o processo representacional a
partir do qual o Cinema Novo constrói uma identidade cultural de vaqueiro nordestino, que
se pretende congruente, com o intuito de servir como uma ferramenta pedagógica que
deveria ser capaz de levar à superação da suposta alienação cultural em que se encontraria
a nação brasileira quanto às próprias origens.
As análises empreendidas aqui procuram mostrar alguns modos como o
Cinema Novo ressignifica representações e identidades de vaqueiro, outrora tomadas como
uma representação e uma identidade cultural unitária. Argumenta-se, aqui, que essa
identidade cultural é um efeito criado a partir de um processo complexo de composição
representacional. Desse modo, o vaqueiro emerge não como uma identidade cultural
unificada e sim, como uma construção híbrida de discursos, imagens, representações e
identidades muitas delas já cristalizadas no imaginário cultural do Nordeste por outros
artefatos culturais. Nesse sentido, algumas das principais representações mobilizadas e
ressignificadas pelos filmes aqui apresentados são as seguintes: 1) O vaqueiro artista
(manifestação do folclore); 2) O vaqueiro devoto (manifestação da religião); 3) O vaqueiro
insurreto (manifestação do cangaço e da resistência); 4) O vaqueiro oprimido
(manifestação da seca e das relações econômicas desiguais); 5) O vaqueiro animalizado
(manifestação do “naturalismo” de Graciliano Ramos na tela).
56
3.2.1 O Vaqueiro Artista
Para enfrentar a hegemonia da cultura norte-americana, muito presente na
produção cinematográfica mundial, Glauber Rocha utiliza diferentes estratégias estético-
pedagógicas. Ao agenciar a representação cultural do Nordeste, agora identificada com a
cultura popular e redimensionada como tomada de consciência da realidade social e
cultural do país, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha toma a cultura
popular do Nordeste como elemento de identificação cultural e de resistência à cultura
estrangeira, sobretudo a norte-americana.
Nesse texto fílmico, existe um posicionamento um tanto quanto ambíguo, dado
que, de um lado, Glauber Rocha exalta a cultura popular como raiz de uma cultura
autenticamente nacional e, de outro, utiliza as manifestações dessa mesma cultura popular
– representada pelo beato, pelo cangaceiro e pelo catolicismo popular, entre outros –, para
denunciar o estado de alienação e de revolta do povo nordestino.
A descrição de uma terra utópica, conforme os relatos do Santo Sebastião,
deixa claro o quanto Glauber Rocha aproveita, na sua composição cinematográfica,
imagens e fragmentos discursivos da cultura popular do sertão. A temática de um paraíso
tangível na terra é recorrente na literatura popular do Nordeste, pois a imagem de um
paraíso na terra está no imaginário de muitos povos. Trata-se de uma herança do
colonizador que se lançou pelos sertões do novo mundo. Na cultura judaica, tem-se a
imagem do Éden, que fora assimilado na cultura laica como “Eldorado” ou “O País da
Cocanha”. Sobre uma terra abundante em alimentos e felicidade, há muitos registros na
literatura popular do Nordeste, como “Viagem ao Céu” e “Viagem a São Saruê”, de
Leandro Gomes de Barros e Manoel Camilo dos Santos, respectivamente.
Na cultura popular do Nordeste, Glauber Rocha também encontrou, além dos
motivos, vários meios de composição para seu texto fílmico. Na região Nordeste, a cultura
popular tem servido de motivo e de meio para diferentes estratégias de comunicação.
Assim, no tempo em que não havia a presença dos meios de comunicação de massa, as
notícias e as estórias circulavam através das narrativas dos folhetos de cordel e dos
romances, que eram cantados por repentistas, cegos violeiros, ou vendidos nas feiras
populares das cidades do sertão. 11 Glauber Rocha (1965, p. 125), baseado na literatura
11 Orígenes Lessa (1982, p. 10) afirma que, segundo os autores, a poesia popular se divide em dois grandes gêneros: o “folheto” e o “romance”. O primeiro tem 8 páginas; o romance, 16 ou mais. O folheto é o caso da época, o assunto do dia, o comentário político, a narrativa dos grandes desastres e calamidades, o crime de
57
popular, afirmava que a melhor forma de contar uma estória passada no Nordeste é a
narrativa dos folhetos de cordel:
[...] é uma coisa simples, que apenas foi introduzida agora no cinema, mas que já tem uma tradição velha na literatura brasileira. Muitos escritores já escreveram nesse tom, usando a forma do cancioneiro popular das feiras do Nordeste para narrar a estória. Não foi nenhuma escolha minha, só uma observação mais atenta do problema, que a melhor forma de contar uma estória do Nordeste é integrar a estória naquela estrutura narrativa, porque toda a realidade do Nordeste é transformada em lenda, em análise da realidade, pelos cegos trovadores e pelas pessoas que relatam os casos.
Esse processo de transformação da realidade histórica em lenda é retomado, de
certa maneira, por Glauber Rocha, pois o Santo Sebastião composto na tela do cinema nada
mais é do que o resultado da fusão e da ressignificação direta da representação de dois
beatos lendários do sertão nordestino, José Lourenço Gomes da Silva, discípulo de padre
Cícero Romão Batista e líder da comunidade Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, e
Sebastião da Pedra Bonita. No sertão, beatos, padres e cangaceiros transcenderam os
limites da história e se tornaram parte do universo místico e/ou mítico da cultura popular.
Indiretamente, no Santo Sebastião, é possível divisar vários traços da representação de
Antônio Conselheiro, que fora construída a partir dos discursos da cultura letrada, como o
discurso euclidiano, o das notícias veiculadas na imprensa do sul, o da literatura
regionalista, da literatura sociológica e, até mesmo, o da literatura popular do Nordeste.
Deliberadamente, Glauber Rocha serviu-se, além da cultura popular, também
de todas essas fontes discursivas que acabaram sendo mobilizadas, mitificadas e
naturalizadas pelo cinema nacional. Como se viu anteriormente, tanto nas representações
literárias como nas fílmicas – e o Cinema Novo não foge à regra – os beatos conselheiros
aparecem representados como homens paranóicos, fanáticos, semi-analfabetos e sem
qualquer formação apostolar. Algo análogo pode-se dizer do cangaceiro, do cego cantador
ou mesmo de Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros. Com exceção deste último,
todos são identidades-tipo e alegóricas que foram cooptadas como personagens pelo
Cinema Novo de Glauber Rocha.
A representação de cangaceiro, bem como a do próprio cangaço, no texto
fílmico de Glauber Rocha, remete para a representação de cangaceiro e de cangaço
peculiar ao bando de Lampião, o que não ocorre, por exemplo, em Vidas Secas, onde
sensação, a discussão temática do povo, carestia, fome, lamentações. O romance, como o nome indica, apresenta as estórias de amor ou de heroísmo, os temas épicos que mais falam ao povo. Tem caráter mais permanente...
58
Nelson Pereira dos Santos põe em cena outra representação cultural de cangaceiro e de
cangaço. Na cena em que o cangaceiro Corisco aparece enquadrado em primeiro plano, a
fotografia mostra os detalhes da imagem hegemônica do cangaceiro: a roupa de mescla, o
chapéu napoleônico, o lenço, a pistola, a cartucheira, o fuzil e o punhal de prata, além das
medalhas, que revelam a sua face mística.
Cena I (close de Corisco) Cena II (Corisco empunha armas) Cena III (detalhe das armas)
Sempre que vejo Deus e o Diabo na Terra do Sol, o que primeiro me chama a
atenção são os versos que servem de epígrafe para o filme. Eles aparecem no alto da tela,
mais ou menos no canto esquerdo, antes dos letreiros de apresentação dos créditos
fílmicos: “Vou contá uma estória/Na verdade e imaginação/Abra bem os seus olhos/Pra
escutar com atenção/É coisa de Deus e Diabo/Lá nos confins do sertão”. Nos folhetos e nos
romances de cordel do Nordeste, especialmente naqueles voltados para os ciclos religiosos
ou heróicos, é de hábito o poeta iniciar a narrativa com versos de abertura que resumem,
para o leitor, a história a ser contada em verso. Da mesma maneira, é de costume, o poeta
encerrar sua narrativa com versos de fechamento, sendo que, na última estrofe, o poeta
deixa clara a moral da história ou a sua intenção de comercializar o folheto ou o romance.
Vou terminar avisando a qualquer um amiguinho que quiser ir pra lá posso ensinar o caminho, porém só ensino a quem me comprar um folhetinho12.
É possível notar, nos registros da literatura de cordel, que a representação e a
identidade cultural de vaqueiro são resultantes de uma construção discursiva híbrida. Essa
manifestação literária popular, aclimatada ao folclore da região Nordeste, revela, através de
suas identidades-tipo, que a representação e a identidade cultural de vaqueiro são 12 Fragmento poético de “Viagem a São Saruê”, cordel de Manoel Camilo dos Santos.
59
fronteiriças, pois se acham no limiar da fronteira de outras representações e identidades-
tipo da região. Portanto, a representação e a identidade cultural de vaqueiro estão muito
próximas de outras representações e identidades culturais do Nordeste. Desse modo, o
vaqueiro é um quase beato, um quase cangaceiro, um quase violeiro, um quase jagunço ou
um quase retirante da seca.
Esse aspecto pode ser evidenciado, no próprio filme, por exemplo, na
seqüência em que Manuel pede a Corisco para entrar no bando, quando alude a outras
identidades culturais que assumira:
MANUEL: Capitão Corisco... Eu queria entrar pro cangaço. Podia ser um cabra de ajuda nessa guerra... Num tenho o que fazer e queria vingar meu padrim Sebastião. Num foi o Governo que matou ele também? CORISCO: E você sabe brigar? MANUEL: Sei, sim sinhô, que era jagunço... Fiz muito assalto pra dar de comer aos beatos, e amonto bem que já fui vaqueiro (Glauber Rocha, p. 82-83).
Na cena em que o personagem Antônio das Mortes conversa com o Cego Júlio
no mercado de Canudos, Glauber Rocha manifesta novamente o aspecto fronteiriço das
identidades culturais do sertão. No discurso fílmico, está claro, a grande guerra não
aconteceu, ainda está por vir. A guerra de Canudos foi a maior que houve no sertão, mas
dado à sua configuração anárquica, não fora ainda uma guerra de libertação:
ANTONIO DAS MORTES: Um dia vai ter uma guerra neste sertão... Uma guerra grande sem a cegueira de Deus e do Diabo. E pra que essa guerra venha logo, eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco e depois morrer de vez, que nós somos tudo a mesma coisa!
Na cena final, ao decidir enfrentar Antônio das Mortes, Corisco, que acredita
ser a encarnação de São Jorge Guerreiro, revela-se tão místico quanto os próprios beatos
do sertão, transformados em lenda pela narrativa dos cantadores.
CORISCO: Meu padrim Ciço fechou tudo isso aqui. Eu espero Antônio das Mortes... Quero me topar com ele de home pra home, de Deus pra Diabo.
Em seguida, Corisco faz uma oração para fechar o corpo:
[...] eu José, com a espada de Abraão serei coberto; eu José, com o leite da Virgem Maria serei borrifado, eu José, na arca de Noé serei guardado; eu José, com as chaves de São Pedro serei fechado onde não me possam ver, nem ferir, nem matar, nem o sangue do meu corpo tirar. (Glauber Rocha, 1965, p. 105).
60
No processo de ressignificação das representações e das identidades culturais
do sertão, a seca está como o elemento natural, e o sistema econômico, como o elemento
social. O Cinema Novo, em sua primeira fase, procurou ressignificar as representações e as
identidades culturais dentro de um amplo discurso estético-cinematográfico denominado
por Glauber Rocha de “Estética da Fome”. Como se viu anteriormente, essa proposta
ressalta a necessidade do engajamento político da arte, rejeita as noções tradicionais da arte
como expressão do belo ao mesmo tempo em que afirma a arte como expressão do feio,
do disforme. Sobre a Estética da Fome, Glauber Rocha (2004, p. 66) afirma o seguinte:
sabemos nós – que fizemos esses filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.
No texto fílmico de Glauber Rocha, a mediação entre a primeira e a segunda
parte, como também a mediação entre os principais personagens, dá-se por meio da ação
narrativa do Cego Júlio, que é uma das identidades-tipo saída das páginas da literatura de
cordel. No filme, todas as identidades-tipo que surgem e/ou interagem entre si, surgem e
interagem através dos versos do Cego Júlio: Primeira Aparição de Sebastião, Coro dos
beatos, Feira, Fuga, Primeira aparição de Antônio das Mortes, Intermezzo, Corisco,
Segunda Aparição de Antônio das Mortes e Final (anexo I). Acrescente-se, aos versos do
Cego Júlio, uma espécie de aedo do sertão, expressos na música de Sérgio Ricardo, a
música de Heitor Villa-Lobos e de J. S. Bach, que, em conjunto, fazem as mediações
diegéticas do filme. Para Xavier (2007, p.123), “Cego Júlio é a nova faceta do poeta da
tradição oral; sua presença, como personagem, dentro da ficção, embaralha os níveis,
possibilitando a conversação entre os protagonistas e a própria figura doadora da lenda”.
O Cego Júlio é a representação alegórica do veio artístico do sertanejo. Da
seqüência da feira em diante, toda a narrativa do filme é conduzida pelos versos do cego
cantador. O andamento da música incidental assinala, além de registros musicais da cultura
regional, as variações e as tensões diegéticas. Na seqüência da luta entre Manuel e os
jagunços, a música é acelerada, ao passo que, na seqüência do enterro da mãe de Manuel, a
música é moderada (toada). Com exceção da Ave Maria de J. S. Bach, a música e os versos
são adaptações de registros poeticos da cultura popular do Nordeste, que foram levantados
por Glauber Rocha.
61
Os habitantes do sertão nordestino têm por hábito construir seus artefatos
culturais e manter viva a religião popular e o folclore regional. O vaqueiro pouco se serve
da indústria, pois constrói artesanalmente quase tudo de que necessita: a casa onde mora,
os utensílios domésticos, o vestuário com que sai para o campo, os instrumentos de
trabalho, a música que ouve e canta (o aboio), entre tantos outros artefatos. Em Deus e o
Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha fez questão de preservar, através de seus
personagens, aquilo que entende como a dimensão artística e cultural do Nordeste. O
vaqueiro, nesse contexto, é a mais expressiva das representações e das identidades culturais
do mundo sertanejo. Em poucos termos, as identidades culturais vinculadas a personagens
como o Santo Sebastião, o cangaceiro Corisco, o Cego Júlio, mantêm, com a identidade
cultural de vaqueiro, uma ligação fronteiriça, sendo que a arte desempenha um papel
central na amarra dessas identidades culturais. Por essa razão, o Cego Júlio aparece usando
um chapéu de vaqueiro, ao mesmo tempo em que os beatos e os cangaceiros, além do
chapéu de couro, dividem um passado e uma história de vaqueiro. Nos filmes de Glauber
Rocha e de Nelson Pereira dos Santos, no que tange a construção das representações e das
identidades culturais de vaqueiro, o chapéu de couro serve de símbolo ou marcador cultural
das representações e identidades culturais articuladas em Deus e o Diabo na Terra do Sol e
Vidas Secas.
Cena do vaqueiro Manuel diante da rês morta (a expressão é de desolação).
Na proposta estético-pedagógica desses filmes, o chapéu de couro, os versos
populares, os registros musicais, o vestuário e os instrumentos de trabalhos do vaqueiro são
os significantes da cultura popular do Nordeste ressignificada como símbolo de uma
62
cultura autenticamente nacional, livre e independente do imperialismo cultural e
econômico em atividades nas ex-colônias. As seqüências em que Rosa pila arroz, Manuel
tritura mandioca na bola de caititu ou naquela em que aparece fazendo um cigarro de palha
– sem contar as aparições do Cego Júlio –, pretendem representar nada mais do que a face
originalmente artística do sertanejo.
Tomando-se como referência Deus e o Diabo na Terra do Sol e suas fontes
intertextuais, é possível dimensionar também as representações do vaqueiro na literatura
popular do Nordeste, presentes no folclore, na literatura ensaística, na literatura jornalística
e na literatura romanesca. Em muitos de seus depoimentos, Glauber Rocha deixa claro que
seus personagens, apesar de ficcionais, foram buscados ou elaborados a partir de um
diálogo ou de uma ressignificação do folclore e da literatura, como um todo.
Por essa razão, a pedagogia de Glauber Rocha presente em Deus e o Diabo na
Terra do Sol é bastante paradoxal. De um lado, faz uma crítica severa ao estado de
alienação e atraso cultural e econômico das identidades-tipo do sertão; de outro lado,
contudo, ao ressignificá-los, vê nessas identidades culturais as raízes de uma cultura
nacional. Em poucos termos, Glauber Rocha encontra, na tradição artística do sertão
nordestino, a fonte ideal para realizar um cinema estético e politicamente engajado, com
todas as contradições que lhe são inerentes.
3.2.2 O Vaqueiro Devoto
Na década de sessenta, período em que se deu a realização de Deus e o Diabo
na Terra do Sol, a memória do cristianismo popular e do cangaço ainda estava muito
presente na literatura regional e no imaginário popular do Nordeste. Padre Cícero falecera
em 1934, o beato José Lourenço em 1946, Lampião em 1938 e Corisco, em 1940. Ao
compor as cenas em que o Santo Sebastião aparece com maior intensidade, Glauber Rocha
escolheu, para cenário, um dos lugares mais emblemáticos do cristianismo popular do
sertão nordestino, a Via Sacra da Vila de Monte Santo, que fora erigida na década de 1760,
não por um beato conselheiro, mas pelo missionário italiano Apolônio Di Todi.
63
Imagem da Via Sacra da Vila de Monte Santo
O Santo Sebastião, na primeira cena da pregação na Via Sacra da Vila de
Monte Santo, aparece envolto numa túnica, supostamente de azulão, tal como fora a túnica
e Antônio Conselheiro e a de tantos outros beatos conselheiros do sertão, e ergue para os
céus seu bordão proferindo ameaças de castigos divinos, exigindo o cumprimento, ao pé da
letra, dos preceitos de Cristo e prometendo para os fiéis uma vida afortunada em uma ilha
no meio do mar. Esse discurso messiânico, no filme de Glauber Rocha, é inserido para
marcar a ruptura do cristianismo popular com a ordem econômica e política e também para
acentuar, pelo tom profético das palavras do Santo Sebastião, o suposto grau de alienação
dos beatos.
SEBASTIÃO: Andei por mais de cem lugares dizendo que o mundo ia acabar nesta seca, com o fogo saindo das pedras. Os prefeitos, as autoridades e os fazendeiros disseram que eu estava mentindo e que o sol era o culpado da desgraça. Mas o ano passado, eu disse que ia secar cem dias e ficou cem dias sem chover! Agora eu digo: do outro lado de lá deste Santo monte existe uma terra onde tudo é verde! Os cavalos comendo as flores e os meninos bebendo leite nas águas do rio. Os homens comem pão feito de pedra e a poeira vira farinha; tem água e comida; tem a fartura do céu e, todo dia, quando o sol nasce, aparece Jesus Cristo e Virgem Maria, São Jorge e meu Santo Sebastião, todo cravado de flechas no peito... (Glauber Rocha, 1965, p.49).
Embora Glauber Rocha admita que seu personagem tenha sido construído a
partir da fusão da imagem dos beatos José Lourenço e Sebastião da Pedra Bonita, sua
representação do Santo Sebastião não difere muito da representação de Antônio
Conselheiro, ao modo de Euclides da Cunha e de outros clássicos da literatura nacional, seja
ela sociológica, regionalista, popular ou jornalística. A seqüência em que o Santo Sebastião,
no filme de Glauber Rocha, vai à vila sertaneja e assassina as prostitutas, caracteriza o
64
mesmo tipo de fanatismo religioso presente de modo predominante nas obras anteriores,
principalmente em Os sertões. Corroboram com a atmosfera do fanatismo e da loucura, os
sons não diegéticos dos tiros, dos gritos das prostitutas e os benditos cantados
histericamente pelos beatos.
Em uma cena anterior, a câmera em movimento rápido, panorâmico e
silencioso, revela a face fanática dos romeiros. Há, nessa seqüência, um instante em que a
câmera focaliza, entre os beatos, uma mulher num gesto extremo de martírio, prática
comum no catolicismo popular do sertão. Ela tem sobre a cabeça uma pedra. A imagem da
pedra sobre a cabeça será retomada novamente numa seqüência posterior para caracterizar a
alienação e o delírio místico de Manuel, que pode ser visto a partir da reprodução abaixo. A
pedra, portanto, transforma-se em uma imagem emblemática na filmografia de Glauber
Rocha, uma espécie de expressão metonímica do fanatismo messiânico, mais aproximado
do misticismo do que da fé.
Manuel sobe de joelhos a escadaria da via Sacra da Vila de Monte Santo.
Nas cenas de pregação do Santo Sebastião na Via Sacra da Vila de Monte Santo,
Glauber Rocha emprega uma polifonia de códigos fílmicos para construir a representação
desse fanatismo, entre eles, a voz em off (voz do Santo Sebastião), a câmera na mão e a
música (Aleluia de J. S. Bach), que cresce sobrepondo-se paulatinamente à voz do próprio
Santo Sebastião, desse modo, acentuando o caráter místico-religioso de seu discurso.
Por outro lado, esse clima místico também é atravessado pelo discurso político-
religioso, marcadamente através das homilias realizadas pelo Santo Sebastião, o que pode
ser percebido, entre outros, a partir do excerto abaixo:
65
SEBASTIÃO: Mas ali só vai chegar quem me seguir e quem der força ao enviado de Deus. Pois o sofrimento até chegar nessa ilha é grande: mais fome e mais sede e ainda por cima as tropas do Governo que persegue os inocentes com as balas da injustiça... Então é preciso mostrar aos poderosos a força e o poder do Santo... Eles tiraram D. Pedro do trono e agora querem matar quem ama o Imperador...
Os exemplos até aqui elencados já permitem perceber que Glauber Rocha aposta
em uma representação estereotipada de Antônio Conselheiro, bem como das profecias que
lhe são atribuídas, sendo que essa estratégia discursiva é utilizada de forma consciente pelo
cineasta. Nesse sentido, Glauber Rocha (1965, p.129) é enfático:
[...] o que não se deve esquecer é que Antônio Conselheiro era um débil mental, e o que ele disse pode ser interpretado à vontade. Para mim, a profecia de que “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão” serviu como um recurso simples. É uma coisa popular, que está na cara.
É importante ressaltar que essa imagem estigmatizada de beato, incorporada
por Glauber Rocha, é uma opção de estratégia discursiva, pois há também outros discursos
disponíveis sobre o beato nordestino em que a estereotipia do lunático está mitigada ou
mesmo ausente. Em alguns casos, Antônio Conselheiro chega a ser inclusive representado
como a grande expressão do cristianismo popular no sertão nordestino. Ataliba Nogueira
(1997, p. 53), por exemplo, traz alguns excertos de crônicas de Machado de Assis,
publicadas na Gazeta de Notícias, em que o consagrado escritor se nega a aceitar a
representação do beato Antônio Conselheiro que circulava na imprensa da época,
apontando para um discurso que resiste em caracterizar o beato como um fanático
estereotipado:
Protesto contra a perseguição que se está fazendo à gente de Antônio Conselheiro... De Antônio Conselheiro ignoramos... Se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos. Diz-se que tem consigo milhares de fanáticos... Se na última batalha é certo haverem morrido novecentos deles e o resto não se desapega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo os prende até a morte. Que vínculo é esse?
Alguns pesquisadores, entre eles Nilton Freixinho e Ataliba Nogueira,
argumentaram que Antônio Conselheiro, para os padrões da época, era detentor de boa
escolaridade. Não tanto pela baixa escolaridade e mais pela ausência de uma formação
apostolar, os beatos conselheiros do sertão socorriam-se, nas pregações, de duas obras
religiosas: As Horas Marianas e A Missão Abreviada, esta última de autoria do padre
português Manuel Gonçalves Couto. Ataliba Nogueira (1997, p. 35) afirma que, após a
conquista do Arraial de Canudos pelas tropas legais, comandadas pelo general Artur Oscar
66
de Andrade Guimarães, fora encontrado, pelo médico-cirurgião da expedição, no lugar
denominado Santuário, onde morara Antônio Conselheiro, uma caixa de madeira com as
Prédicas. Sabe-se que, além dessa obra, mais duas outras também foram encontradas entre
os despojos do beato - As Horas Marianas e A Missão Abreviada.
Primeira aparição do Santo Sebastião (pregação aos sertanejos)
Para Glauber Rocha, pouco importava uma representação do Santo Sebastião
que estivesse fundada em uma concepção realista ou, pelo menos, não estereotipada dos
beatos conselheiros do sertão nordestino. Sua intenção era demonstrar, de modo alegórico,
a rebeldia popular num espaço disputado de poder. Sobre seus personagens alegóricos, o
próprio Glauber Rocha (1965, p.128) afirma que
eles não são errados. O que o filme mostra – e acho que isto também está claro – é o seguinte: os dois são rebeldes. É uma rebelião de líderes dentro de um sistema de opressão; apenas, as rebeliões não são colocadas em termos revolucionários. O beato é um rebelde metafísico; o cangaceiro um rebelde anarquista.
Desse modo, a representação do Santo Sebastião de Glauber Rocha está
fortemente marcada por uma afinidade com o discurso euclidiano, pois, como se afirmou
anteriormente, este está na base da construção discursiva também de outras representações
de beatos conselheiros do sertão nordestino, sobretudo nas literaturas ensaística,
regionalista, jornalística e no próprio cinema. Sobre Antônio Conselheiro, Euclides da
Cunha (2000, p. 295) afirma, por exemplo, que “a regressão ideativa que patenteou,
caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência
67
intelectual, mas não o isolou – incompreendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde – no
meio em que agiu”.
A representação do beato Antônio Conselheiro como um líder fanático,
paranóico e violento continua hegemônica até hoje. O Santo Sebastião apresenta traços de
três dos mais afamados beatos do sertão nordestino. É negro, como fora o beato José
Lourenço do Caldeirão. Sacrifica crianças, como as sacrificara também o beato Sebastião
da Pedra Bonita; e é rebelde, como o fora Antônio Conselheiro de Euclides da Cunha. A
cena do sacrifício do inocente, numa composição fotográfica de luz e sombra, ilustra bem o
delírio místico de Manuel e a representação estereotipada do beato como fanático.
Cena do sacrifício de um inocente.
Note-se que as falas do Santo Sebastião incorporam trechos das profecias que
foram tradicionalmente atribuídas ao próprio beato Antônio Conselheiro, como no excerto
abaixo:
SEBASTIÃO: Mas quem quiser alcançar a salvação fica aqui comigo de hoje em diante até o dia que aparecer no sol o sinal de Deus. Vão descer cem anjos com as espadas de fogo anunciando o dia da partida e abrindo nosso caminho nas veredas do sertão... E o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão; e quem num quiser morrer queimado vai embora hoje mesmo; quem quiser a salvação espera a meu lado, sem medo, porque o homem pra se salvar tem de sofrer e num pode temer a maldade do mundo [...] (Glauber Rocha, 1965, p. 44).
O vaqueiro Manuel, como os demais personagens de Deus e o Diabo na Terra
do Sol, é um personagem alegórico e fronteiriço, uma vez que conota a devoção do povo
sertanejo, adepto do catolicismo popular, a resistência em uma paisagem natural e social
adversa, bem como a proximidade entre as identidades culturais do sertão.
68
Já as personagens Rosa e Dadá representam a consciência e a razão, em
oposição ao delírio místico, apontando para uma representação de feminilidade desatrelada
da irracionalidade dos beatos e cangaceiros. Para dissuadir Manuel, como recurso extremo,
Rosa chega a assassinar o Santo Sebastião a facadas. Por outro lado, a partir da seqüência
da invasão da fazenda do coronel Calazans, pelos cangaceiros, Rosa e Dadá trocam
carícias, como que insinuando o abandono por seus companheiros e/ou a quebra dos
rígidos códigos eróticos do sertão. Nesse sentido, cria-se uma espécie de eixo de oposições
semânticas, no qual o masculino está ligado com o misticismo alucinado e à guerra, ao
passo que o feminino está simultaneamente ligado com uma razão não-mística e com o
amor erótico.
Cena em que Rosa aparece acariciando o rosto de Dada (suscita o amor sáfico).
A súbita aparição de Antônio das Mortes, personagem ambivalente e em
conflito consigo mesmo, a mando do poder institucionalizado (Igreja/Estado), de certa
maneira, remete o espectador novamente à narrativa euclidiana, pois, assim como Antônio
das Mortes encontrara o Santo Sebastião já morto, também as tropas legais encontraram o
beato Antônio Conselheiro já sepultado. A morte do Santo Sebastião representa o fim do
fanatismo e a esperança de uma revolução planeada no futuro, marcando claramente a
posição pedagógica não apenas de Glauber Rocha, mas de todo o ideário do Cinema Novo.
69
Imagem de Antônio das Mortes diante do Santo Sebastião morto.
Na cena em que Corisco incorpora o espírito de Lampião, os movimentos da
câmera (para cima/para baixo), os planos de ação (fixo/móvel), os movimentos
(parado/brusco) e a entonação da voz de Corisco (alterada/sussurrada) fazem o
discernimento entre as falas de Corisco e as de Lampião, denunciando a atuação da câmera
enquanto uma espécie de narrador.
Cena I (Corisco) Cena II (Corisco incorporando Lampião)
Também na seqüência da Via Sacra da Vila de Monte Santo, quando a câmera
se movimenta horizontalmente em silêncio, ela assume a condição de um narrador externo
e, nessa ação, revela pelo menos dois novos aspectos representacionais: o biótipo e a
expressão de fanatismo dos beatos do sertão. Ao fazer da câmera uma espécie de narrador,
Glauber Rocha subverte regras e códigos cinematográficos, como já foi mencionado
70
anteriormente. Acerca desse estilo anárquico de fazer filme, peculiar ao cinema de Glauber
Rocha, Avellar (1995, p. 93) traz um comentário de Pasoline assaz interessante:
[...] consiste neste fenômeno que os especialistas definem normal e banalmente por uma fórmula: revelar a presença da câmera. Deste modo, inverte-se a grande máxima dos cineastas até o começo dos anos 60, não revelar a presença da câmera. Esta presença se revela pela alternância de lentes, de ângulos bem diferentes entre si, pelo uso da lente zoom, pelos movimentos da câmera na mão, pelos travellings exasperados – um novo código técnico que nasceu da não obediência das regras, de um autêntico e delicioso gosto pela anarquia, de um insólito e provocador desejo de liberdade.
No sertão, enquanto o catolicismo ortodoxo alinha-se aos interesses da
aristocracia rural e age no sentido de manter o povo pacificado e submisso à ordem de um
regime de servidão, o catolicismo popular dos espoliados, representado pelos beatos,
assoma, no cinema de Glauber Rocha, como uma alternativa de ruptura e libertação. Em
lugar dos votos de pobreza, da mansidão e da caridade, os beatos do Cinema Novo se
insurgem e apregoam um reinado de prosperidade e justiça na terra. A maneira da feitura
de Deus e o Diabo na Terra do Sol, como no comentário de Pasoline, reflete a anarquia do
mundo dos vaqueiros, dos beatos, dos cangaceiros e dos cantadores, levando essas
identidades-tipo a um ponto de ligação no que diz respeito à vontade de transformação
através da insurgência.
3.2.3 O Vaqueiro Insurreto
Como se afirmou anteriormente, a intenção de Glauber Rocha, ao realizar Deus
e o Diabo na Terra do Sol, não era fazer um documentário da região Nordeste e tampouco
de seus tipos sociais mais representativos, mas fazer um texto fílmico politicamente
engajado, capaz de voltar ao passado histórico da região para ressignificar as identidades
culturais de vaqueiro, de beato e de cangaceiro, tomadas como identidades-tipo ou raízes
de uma nacionalidade brasileira/nordestina, realizando, dessa maneira, uma denúncia da
realidade do presente. Essa estratégia pedagógica de retorno ao passado histórico da região
para ressignificar aquelas identidades-tipo assume, no discurso fílmico de Glauber Rocha,
uma perspectiva notadamente marxista.
No seu discurso fílmico-materialista, “sem a cegueira de Deus e do diabo”,
Glauber Rocha procura deixar claro dois fatores que movem o processo histórico – as lutas
de classes e a violência. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a civilização,
implacavelmente, destrói as forças amotinadas do sertão arcaico e pobre, sintonizado numa
71
ordem passadista, marcadamente mística e mítica. Nesse aspecto, é bastante visível
novamente a intertextualidade do texto fílmico de Glauber Rocha com o texto ensaístico de
Euclides da Cunha (2009, p. 269): “[...] é que neste caso a raça forte não destrói a fraca
pelas armas, esmaga-a pela civilização”. A corrida desabalada de Manuel e Rosa, seguida
da vista aérea do mar, que invade toda a tela, no último plano, em contraste com aquela
vista aérea do sertão, que invade a tela na primeira plano do filme, um pouco antes da cena
em que Manuel aparece agachado diante de uma rês morta, procura, de certo modo,
representar o triunfo da civilização sobre o sertão.
Imagem I (vista aérea do sertão). Imagem II (Fuga de Manuel e Rosa). Imagem III (mar que invade a tela).
O texto fílmico de Glauber Rocha deixa claro que a violência dos beatos e dos
cangaceiros contra a ordem institucional, pelo seu caráter místico e/ou anárquico, é
impotente para varrer a opressão do sertão. Todavia, o opressor, através de um processo de
emulação, é obrigado a reconhecer outras identidades culturais da região, agindo com
extrema violência. No texto fílmico de Glauber Rocha, devido à sua leitura do marxismo, a
violência aparece como único recurso para a emancipação das forças de trabalho, mas não
exatamente a violência anárquica e desestruturada de beatos e cangaceiros. Para Glauber
Rocha, a transformação somente será possível através da violência revolucionária, fato que
se pode exemplificar a partir de um trecho da fala de Antônio das Mortes: “Um dia vai ter
uma guerra neste sertão... Uma guerra grande sem a cegueira de Deus e do diabo”.
Ainda com relação à visão marxista de Glauber Rocha, também está patente,
como se pode ver no trecho seguinte, na compreensão de que somente através do embate
direto entre classes antagônicas é que se chega à consciência de si, mesmo que não se trate
de verdadeiras classes sociais no sentido marxista mais restrito, a saber, classes marcadas
por conflitos de ordem estritamente econômica:
72
PREFEITO: esta é uma praga pior que o cangaço. Nem respeitam os pobres vigários... Mataram um padre no mês passado... É por isso que mandamos lhe chamar, tenente Antônio. A situação é ruim... (Glauber Rocha, p. 47).
Para Glauber Rocha, as personagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol -
vaqueiro Manuel, Rosa, Coronel Moraes, Santo Sebastião, o padre, o prefeito, Antônio das
Mortes, Cego Júlio, cangaceiro Corisco e Dadá - são personagens alegóricos, dado que
“projetam uma dimensão política na forma de alegoria nacional: a história e o destino
individual privado é sempre uma alegoria da situação de prontidão para a luta da sociedade
e das culturas públicas do terceiro mundo”. Pedagogicamente, Glauber Rocha, por meio da
ressignificação dessas identidades-tipo, volta ao passado histórico da região Nordeste no
sentido de denunciar o estado de alienação de um povo e, ao mesmo tempo, de afirmar a
força de uma cultura autenticamente nacional e livre da influência das culturas
estrangeiras.
Para evitar o documentário realístico, o mero registro dos tipos humanos e da
natureza agreste da região Nordeste, Glauber Rocha usa a estratégia de retirar as estrelas
do chapéu de Corisco e de mostrar a seca de relance, mais através de discursos verbais
(Manuel/Santo Sebastião/Corisco) do que de imagens. Em suas imagens fílmicas, como se
vê, na cena acima, da entrada de Manuel no cangaço, Glauber Rocha mostra a seca em
segundo plano, e também noutras imagens, como na cena em que Corisco aparece matando
os retirantes, bem como na cena da rês morta, reproduzida abaixo.
73
Rês morta devido à estiagem
O vaqueiro Manuel, ao assumir a identidade cultural de cangaceiro (insurreição
anárquica) em detrimento de sua identidade cultural de beato (insurreição mística), mostra
a falência do poder jurisdicional e, como saída, apela para a justiça privada. A ruptura com
a ordem social e econômica, que o mantém cativo, começa na seqüência da feira, que
termina na partilha do gado, quando Manuel mata o coronel Moraes. No discurso abaixo,
aos poucos, Manuel percebe-se preso a um regime opressor – servidão de facto (preso à
gleba) e servidão de jure (sem direito reconhecido).
MANUEL: Bom dia seu Moraes... Já trouxe as vacas... Mas morreu ainda quatro... MORAES: Beberam no açude do norte? MANUEL: Sim, sinhô. Era onde tinha água. Foi mordida de cobra... Trouxe as doze vacas, queria fazer partilha pra acerta as contas... MORAES: Num tem conta pra acertar... As vacas que morreram foram as suas...
O clima é de tensão. Ouve-se apenas o mugido de um boi. Manuel retoma o
diálogo.
MANUEL: Mas, seu Moraes, as vacas tinha era o ferro do sinhô... Num pode ser logo as minhas que sou um home pobre... Foi azar mas é verdade; as cobras mordeu as reses do sinhô... MORAES: Isso foi descuido seu, preguiça... Fica dormindo o dia inteiro e não olha o gado direito... Tá acabado e num quero conversa, que a lei tá comigo... (Glauber Rocha, 1965, p. 39)
Nessa cena, quando Manuel chega ao curral de partilha, vestido de gibão,
mantém-se a meia distância do coronel Moraes e fala em tom moderado, de cabeça baixa e
de chapéu na mão. A angulação da câmera, de cima para baixo, focaliza o coronel Moraes,
vestido em trajes elegantes, em primeiro plano, e Manuel, submisso, numa espacialização
secundária. Manuel, ao tomar consciência de sua exploração, reage instintivamente. Na
74
seqüência seguinte, a angulação da câmera mostra, em primeiro plano, o rosto de Manuel
diante do rosto do patrão – a expressão de Manuel é de enfrentamento.
Chegada de Manuel para partilha do gado. Manuel enfrenta o coronel Moraes.
A cena termina com a morte do coronel Moraes e a fuga de Manuel, que tem
no encalço os jagunços do coronel. No terreiro da casa, Manuel luta com os jagunços e a
tragédia se torna completa, pois a mãe de Manuel é assassinada. As cenas em que Manuel
vive como vaqueiro servem de prólogo para as cenas seguintes, marcadas pelas
insurreições místicas (beatos) e anárquicas (cangaceiro). Dessa maneira, revela-se
novamente o intuito pedagógico de Glauber Rocha, na medida em que procura denunciar
que as identidades culturais de beato e de cangaceiro resultam de injustiças sociais
cometidas dentro de uma ordem econômica opressora, onde o vaqueiro, alegoria do
sertanejo, é, em regra, a vítima social.
3.2.4 O Vaqueiro Oprimido
Se os recursos estéticos e as estratégias fílmicas, em Deus e o Diabo na Terra
do Sol, são abundantes, em Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, elas são
propositadamente reduzidas ao nível do necessário para destacar a crueza da região
Nordeste. As estratégias fílmicas de Nelson Pereira dos Santos coadunam-se com a
afirmação de Shohat e Stam (2006, p. 367-368) de que, “em uma simbiose entre tema e
método, a falta de recursos técnicos foi transformada em uma expressão metafórica de
força”. Essa abordagem estética foi agenciada como parte de uma estratégia mais ampla do
Cinema Novo, que tinha, como um de seus principais objetivos, denunciar, através de
elementos da cultura popular e de uma produção fílmica capaz de se contrapor aos padrões
75
hollywoodianos, a situação de opressão dos trabalhadores do campo no Brasil e
especialmente no Nordeste.
O filme Vidas Secas foi realizado num momento em que o Brasil passava por
uma série de transformações na ordem econômica, social, política e cultural do país que,
em parte, foram motivadas pelo Golpe Militar de 31 de março de 1964, resultando na
deposição do presidente João Goulart (1961-1964) e possibilitando a ascensão dos
militares ao poder. No campo, as reações mais fortes, desde meados dos anos cinqüenta,
sob a orientação do Partido Comunista Brasileiro – PCB, surgiram em torno das Ligas
Camponesas, onde se destacaram a Liga Camponesa de Sapé (PB) e a Sociedade Agrícola
de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco – SAPP. As ligas camponesas lutavam pela
reforma agrária e pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores do campo. Sobre a
conjuntura do país na época da realização de Vidas Secas, Randal Johnson (2003, p. 45)
apresenta um trecho de uma entrevista de Nelson Pereira dos Santos assaz esclarecedor:
[...] naquele tempo, grandes discussões sobre o problema da reforma agrária estavam acontecendo no Brasil, e muitos grupos e setores da economia estavam participando. Senti que o filme também deveria participar no debate nacional, e que minha contribuição poderia ser a de um cineasta que rejeita uma visão sentimental. Entre os escritores nordestinos, Graciliano Ramos é o mais representativo, o que expressa a visão mais consciente da região, particularmente em Vidas Secas. O que o livro diz sobre o Nordeste em 1938 ainda é válido até hoje.
Para Nelson Pereira dos Santos, portanto, Vidas Secas é uma maneira eficiente,
estratégica e pedagógica de intervir na realidade social do país e de denunciar o problema
da reforma agrária, das condições de vida dos trabalhadores do campo e de expor,
criticamente, um sistema de exploração pré-capitalista atuante na região Nordeste desde os
tempos do Brasil Colônia. Na seqüência inicial de Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos
destaca a aridez do sertão e reduz o vaqueiro Fabiano e a sua família a um ponto indistinto
na tela. A imagem do sertão ensolarado sob o som intenso das rodas de um carro-de-boi
transporta o espectador para um mundo arcaico, para uma ordem passadista. Fabiano, sua
família e mais a cachorra Baleia, como personagens alegóricos do sertão, aparecem aos
poucos, à proporção em que o som da roda do carro-de-boi arrefece, pelo leito seco de um
rio temporário. Metaforicamente, a caminhada seguindo o curso do rio significa a saída do
sertão para o mar: do sertão para a civilização. Fabiano e os meninos apresentam-se
andrajosos, suas vestes estão rasgadas, numa parte, e noutra, cerzidas.
76
Sinhá Vitória é a única personagem que ainda traz as vestes conservadas. Na
situação de retirada, o elemento físico que vincula Fabiano à sua condição e à sua
identidade cultural de vaqueiro é o chapéu de couro.
Cena da caminhada pelo leito de um rio seco
Na seqüência da caminhada, a luz é intensa e somente a cachorra Baleia parece
perfeitamente adaptada à seca, pois segue sempre à frente da família. No extremo da fome,
Sinhá Vitória mata o papagaio de estimação para alimentar a família. Nas cenas iniciais do
filme, Nelson Pereira dos Santos articula algumas de suas estratégias fílmicas para
desenvolver a narrativa. Entre elas, estão os pontos de vista subjetivos apontados por
Shohat e Stam (2006, p. 370):
[...] o filme também constrói pontos de vista subjetivos por meio de movimentos da câmera: tomadas de ângulo baixo evocam a experiência de travessia do sertão feita por um menino; um giro vertiginoso da câmera sugere a queda por tontura do filho mais novo. Outros procedimentos narrativos incluem a exposição (uma tomada de superexposição, alvejante, do sol cegando e entorpecendo personagem e espectador); a angulação da câmera (a câmera se inclina para acompanhar o movimento da cabeça do menino); e o foco (a visão de Baleia sai do foco quando Fabiano a imobiliza, como se a cachorra estivesse enfeitiçada por seu dono).
Na cena da chegada à fazenda abandonada, Fabiano e a família sobrevivem
comendo raiz de umbuzeiro ou as preás caçadas por Baleia. Fabiano e Sinhá Vitória
apreciam o pasto, a chegada das chuvas. Enchem-se de esperanças.
FABIANO: Vai chover. SINHÁ VITÓRIA: Deus queira e Virge Santíssima tamén.
77
Para Fabiano e Sinhá Vitória, as chuvas não significam um fenômeno da
natureza: trata-se da vontade divina. Na seqüência do retorno do fazendeiro com o gado,
somente se ouve o aboio dos vaqueiros, o som dos chocalhos e o canto dos pássaros
silvestres. Nessas cenas, Nelson Pereira dos Santos revela dois aspectos importantes
relacionados à exploração do homem do campo: 1) O absenteísmo dos fazendeiros; 2) O
cíclico das secas. Para Randal Johnson (2003, p. 49), esses dois aspectos estão bem
definidos no filme:
O fazendeiro tem uma posição (aparentemente) ambivalente. Enquanto, num sentido positivo, ele dá a Fabiano e sua família a oportunidade de trabalharem em sua fazenda, seu papel é principalmente negativo. Ele é o proprietário ausente que compra a mão-de-obra de Fabiano. Enquanto é vantajoso economicamente, ele emprega Fabiano como vaqueiro, mas, assim que a seca retorna, manda-o embora. Além de pagar uma miséria ao vaqueiro (um bezerro de cada quatro), o fazendeiro também explora Fabiano, cobrando juros altos sobre o dinheiro emprestado a ele durante o ano. Portanto, sua atividade econômica é baseada não só na fazenda, mas também na usura.
Ao chegar, o fazendeiro sente-se incomodado com a presença de Fabiano,
dando a entender que não há lugar para retirante. A câmera enquadra Fabiano, comparado
ao fazendeiro, sempre em um plano secundário, inferiorizado. O lugar de Fabiano na terra
estranha somente se define no momento em que revela ao fazendeiro a sua identidade
cultural de vaqueiro.
FAZENDEIRO: Pode pegar seus picuás e fazer o caminho de volta. Não quero ninguém aqui. Fabiano observa calado. A luz é intensa, estourada. FAZENDEIRO: Já não disse prá ir embora!? E é prá já, ouviu? FABIANO: Sou bom vaqueiro, nhô sim. Sou bom vaqueiro, sirvo pra tudo, talvez... FAZENDEIRO: É essa sua gente? Só isso? FABIANO: An, ran! Tem mais a cachorra... Sou pra todo serviço. FAZENDEIRO: É! Como é sua paga? FABIANO: Tou acustamdo, ganho um bezerro de quatro que nasce. FAZENDEIRO: É, na quarteação tá bom. Pode ficar. FABIANO: Nhô, sim. Nhô, sim.
Fabiano e a família vivem em um mundo à parte. Na fazenda, só convivem
com os animais. Nas cenas em que Fabiano aparece entre outros vaqueiros, não estabelece
com eles qualquer diálogo verbal. Na seqüência da apartação do gado, a câmera enquadra
Fabiano e os vaqueiros no mesmo plano dos animais. Somente em três cenas, a câmera
enquadra Fabiano em situação de vantagem: 1) Na cena em que Fabiano amansa a égua
(prevalece uma alternância de silêncio e de sons não-diegéticos, a câmera em movimento
assume o ângulo do olhar do menino mais novo); 2) Na cena com os cangaceiros (Fabiano
78
empunha um rifle, a câmera enquadra-o em primeiro plano, de baixo para cima); 3) Na
cena do encontro com o soldado amarelo na caatinga (a câmera na mão focaliza Fabiano
em primeiro plano e o soldado em um plano secundário, inferiorizado).
Cena em que Fabiano monta uma égua brava.
A sociabilidade de Fabiano e da família também está comprometida pelo
isolamento físico e psicológico. Na cidade, não tem amigos, estão sempre sozinhos, não
conseguem se relacionar com os outros sertanejos. As relações com o fazendeiro sempre
ocorrem de modo vertical. Fabiano percebe sua exploração, mas não sabe como reagir, não
possui capacidade para argumentar com o fazendeiro. Na cena da apartação do gado,
Fabiano é coagido a vender ao fazendeiro, por um valor irrisório, as reses que recebera na
quarteação.
FAZENDEIRO: É cem merréis por cabeça. FABIANO: Oh, xente! FAZENDEIRO: No tá bom não? FABIANO: Nhô, sim.
Na cena da apartação do gado, a câmera, ao alternar o foco do fazendeiro para
Fabiano e de Fabiano para o fazendeiro, pontua e marca a relação vertical entre o
fazendeiro (superioridade) e seus vaqueiros (inferioridade), apontando esteticamente para a
temática do vaqueiro oprimido. Fabiano e o outro vaqueiro são enquadrados no mesmo
plano, de cima para baixo, têm ao fundo o chão e os pés de uma rês. O Fazendeiro é
enquadrado em primeiro plano (de baixo para cima) e tem ao lado, num plano secundário,
um vaqueiro e, ao fundo, o céu sem nuvens.
79
Imagem I – o fazendeiro (plano superior) Imagem II – Vaqueiros (plano inferior)
Na cena seguinte, Sinhá Vitória faz contas sem usar números, apenas com os
grãos (como se fosse um ábaco). Ela faz planos: roupas, calçados e uma cama de couro,
semelhante à de seu Tomás da Bolandeira, que, no filme, é apenas uma referência do
passado e um modelo de vida digna. Essa cena assinala o quanto os sertanejos sentem-se
atraídos pelos valores daqueles que os exploram economicamente, o que poderia apontar
para a concepção marxista de ideologia.
Quando Fabiano vai à cidade acertar as contas com o fazendeiro, ele,
novamente, percebe sua exploração. Esboça uma reação, mas é obrigado, pelas
circunstâncias, a recuar.
FABIANO: Me descurpe, mas tem de menos. FAZENDEIRO: Tá certo. FABIANO: É que a mulher disse que é mais, aqui tem erro na conta. FAZENDEIRO: A diferença é dos juros. Num lhe emprestei dinheiro todo esse ano? FABIANO: Eu não, mas a mulher tem miolo, sabe fazer conta. Aqui tem de menos. FAZENDEIRO: Sua paga está aí, num tem mais nada prá receber. FABIANO: Isso num tá certo, sou nego não! FAZENDEIRO: Nego aqui num tem nem um! Leve seu dinheiro. E se num quiser vá procurá emprego noutro lugar. Cabra insolente num trabalha comigo. FABIANO: Bem! Bem! Não é preciso barulho. Foi palavra à toa, me descurpe. Foi culpa da mulher, patrão. Eu num sei lê, a velha disse é tanto, eu acreditei. FAZENDEIRO: Tá bem, Fabiano. Vá trabalhar. FABIANO: Mas noutra num caio não sinhô, me descurpe.
Para mostrar a exploração do homem do campo, Nelson Pereira dos Santos, ao
conceber Vidas Secas como texto fílmico, ao invés de adotar a estrutura própria da
narrativa do romance - organizada numa série de treze contos autônomos unidos através da
manutenção do ambiente e da continuidade dos personagens - adota, além de seus próprios
elementos fílmicos, tais como a seqüência da cadeia e a dos cangaceiros, uma narrativa
80
fílmica linear, forjada na reordenação, na supressão e na superposição de capítulos que, no
romance de Graciliano Ramos, acham-se separados.
Fabiano e a família estão sendo submetidos a um processo de animalização,
acham-se no mesmo plano das coisas e dos animais. A cidade marca a distância entre o
mundo de Fabiano e o mundo de seus exploradores. Por diversas vezes, nas cenas da
cidade, Fabiano sente a presença do Estado opressor. Primeiro, através do cobrador de
imposto e, depois, através do Soldado Amarelo. Na cidade, a câmera enfatiza o grau de
isolamento de Fabiano e da família ao enquadrá-los sempre sozinhos ou sufocados entre a
gente sertaneja. Ilustram bem essa última situação as cenas passadas no interior da igreja.
A multidão os comprime e o som da ladainha os emudece. No filme, a religião católica
aparece como mediadora entre opressores e oprimidos. É a religião da humildade, da
pobreza e da caridade. Como se percebe, o filme de Glauber Rocha possui uma alternativa
inexistente no filme de Nelson Pereira dos Santos: o catolicismo popular, que prega, em
lugar da humildade e da pobreza, um reino promissor (a bonança) e, em lugar da caridade,
a justiça.
Cena de Sinhá Vitória na igreja da cidade (isolada entre as rezadeiras).
Em Vidas Secas, fica claro que não há lugar para o sertanejo acometido da
seca ou do sistema servil que o explora. O vaqueiro retirante, representado por Fabiano,
pretende-se uma alegoria do retirante do sertão. Na cidade, Fabiano só tem prejuízos e
decepções, perde dinheiro no jogo e a dignidade na cadeia. Quando o Soldado Amarelo
pisa nos seus pés calejados, este percebe o quanto está isolado, pois os sertanejos que
testemunharam o abuso de poder do Soldado Amarelo não se solidarizam com ele:
afastam-se calados com a chegada dos soldados, que levam Fabiano para a cadeia.
81
Cena de Fabiano com o soldado amarelo (ninguém se solidariza)
Na cadeia, Fabiano sofre agressões físicas e psicológicas. No chão do cárcere,
geme e resmunga como um animal ferido. Sem proferir uma palavra sequer, o
companheiro de cela, um vaqueiro insurreto (cangaceiro), solidariza-se com o seu
sofrimento.
Cena de Fabiano na cadeia pública (o companheiro de cela o auxilia).
Na cela, a angulação da câmera mostra o excesso da luz natural que entra pela
janela durante o dia. À noite, sob a luz agonizante de uma fogueira, ouve-se intensa
cantoria, que vai até o raiar do dia (reisado). A cena da apresentação do reisado escancara a
estratificação social da cidade sertaneja: o fazendeiro, que também detém o poder político
(prefeito), o juiz, o padre e as senhoras de família, que se reúnem para ver a cantoria do
82
reisado. Em um mundo à parte, Sinhá Vitória e os meninos passam a noite ao relento, sem
saber do paradeiro de Fabiano. Essa cena termina com a chegada inesperada de um bando
de cangaceiros.
Os cangaceiros (insurretos) desafiam a ordem social e o poder
institucionalizado, representados pelo padre (mediador), o fazendeiro (prefeito) e o juiz
(poder jurisdicional). Nessa cena, a câmera enquadra as autoridades em plano aberto, e,
depois, em plano fechado pelas grades da cadeia pública. A câmera assume o olhar do
oprimido.
Cena da libertação dos prisioneiros (mediante coerção dos cangaceiros).
Nessa cena, Nelson Pereira dos Santos, deliberadamente, contrapõe, à
representação hegemônica de cangaceiro, originária do bando de Lampião e fortemente
incorporada pela cultura popular, uma outra representação. No filme, a angulação da
câmera focaliza os cangaceiros a cavalo, armados e com chapéu de vaqueiro. Por
conseguinte, aqui, os cangaceiros passam a representar os injustiçados do sertão, os que
recorrem à justiça privada, uma vez que não têm respaldo da justiça institucionalizada. Na
finalização da cena do rio, onde Fabiano lava as feridas nas costas, ele é requisitado para
ingressar no bando, o que aponta novamente para um dualismo típico do Cinema Novo: a
representação de um vaqueiro oprimido, de um lado, submisso ao sistema injusto, e um
vaqueiro insurreto, de outro, disposto a lutar pela própria dignidade.
83
Cena do rio (imagem frontal dos cangaceiros).
Nessa cena, Nelson Pereira dos Santos suscita uma possível explicação para o
modo como se origina a identidade cultural do cangaceiro. Fabiano, por um momento,
hesita, pensa em entrar para o bando, mas decide continuar na vida de vaqueiro. A seca
volta com força, Sinhá Vitória atribui a estiagem e a morte do gado às avoantes. O
Fazendeiro retorna, recolhe o gado e manda Fabiano embora. Na última cena, Fabiano
emigra com a família, tornando-se um ponto indistinto que desaparece na tela.
Pedagogicamente, no texto fílmico de Glauber Rocha e de Nelson Pereira dos
Santos, o vaqueiro é representado pelo viés marxista, ou seja, como personagem alegórico
de uma classe alienada e explorada economicamente por outra. Uma importante diferença
entre Manuel e Fabiano, porém, é que Manuel apela para a justiça privada (violência
mística/anárquica) como alternativa de libertar-se do sistema de servidão que o mantém
cativo, ao passo que Fabiano não vê qualquer saída, por isso, sucumbe num degradante
processo de animalização que o faz perder o “status” humano e o reduz à condição análoga
à de animal. No estágio mais avançado desse processo, a cachorra Baleia, em estado de
humanização, chega a ser um contraponto para a identidade cultural de Fabiano, na medida
em que se torna um animal em processo de humanização, ao passo que Fabiano é um
humano em processo de animalização.
3.2.5 O Vaqueiro Animalizado
Não conseguia entender as razões por que Graciliano Ramos fora levado à cadeia.
Essa questão tornou-se clara quando li Vidas Secas, pela segunda vez, e quando vi o filme.
84
Embora Vidas Secas tenha sido escrito em 1938, não hesito em afirmar que o conjunto
anterior da sua literatura o mandaria à prisão já em 1936. Em 1965, Nelson Pereira dos
Santos transpôs Vidas Secas para a linguagem do cinema. Conseguiu manter, e acentuar,
muitos aspectos da obra original, sobretudo o naturalismo de Graciliano Ramos.
Acerca do naturalismo no romance e no filme, cabem algumas reflexões
preliminares. O naturalismo de Graciliano Ramos é atípico e não se enquadra na
modalidade de naturalismo explorado pela literatura brasileira na segunda metade do
século XIX. Distingue-se, o naturalismo de Graciliano Ramos, por meio de um processo de
regressão ou de perda do “status” humano. Assim sendo, não se trata da manifestação de
um atavismo biológico (instintos primitivos), como pretendia o Naturalismo de influência
evolucionista e darwinista, predominante no século XIX e início do século XX e presente
mesmo na obra de Euclides da Cunha. A perda da potencialidade humana de Fabiano e da
família tem razões externas, nomeadamente socioeconômicas: ela está sendo desperdiçada
mediante a opressão exercida pela propriedade privada (fazendeiro) e pelo Estado (soldado
amarelo/cobrador de impostos).
Três aspectos principais assinalam o processo de animalização ou dispersão do
“status” humano de Fabiano e da família: 1) A perda da sociabilidade; 2) A perda da
linguagem articulada; 3) A sucumbência ao regime de servidão. No mesmo nível
existencial de Fabiano e da família, restam apenas os vaqueiros anônimos e os animais da
fazenda. A racionalidade, singularizada no assenhoramento do poder econômico e político,
estabelece a diferença no que diz respeito à identidade cultural entre os espoliados
(Fabiano) e a aristocracia rural (fazendeiro). O filme de Nelson Pereira dos Santos explora,
esteticamente, esse processo a partir de uma série de perdas – perda da linguagem
articulada, dos bens, da dignidade –, do isolamento social e do esvaziamento das
identidades culturais (perda de vínculos com a cultura). Como no romance homônimo de
Graciliano Ramos, é através de Fabiano que Nelson Pereira dos Santos procura demonstrar
o processo de perda do “status” humano caracterizado por uma sucessão de perdas –
mormente a perda da linguagem articulada.
No filme, os meninos, que não têm nomes, quando juntos, aparecem calados,
não dialogam entre si. Na cena da rezadeira, o menino mais velho principia um diálogo
com a mãe, mas é asperamente reprimido. Em seguida, retoma-o com a cachorra Baleia,
que, comparada a Fabiano e à família, está em processo de humanização, numa inversão
surpreendente.
85
MENINO MAIS VELHO: Mãe o que é o inferno? SINHÁ VITÓRIA: É um lugar ruim demais. MENINO MAIS VELHO: Ruim demais como? SINHÁ VITÓRIA: Ah!
Na cena final, a saída da fazenda, num dos raros momentos de diálogo entre
Sinhá Vitória e Fabiano, Nelson Pereira dos Santos, através da insatisfação, do queixume
de Sinhá Vitória, deixa evidente que o processo de animalização é uma conseqüência de
causas sociais, ou seja, a opressão de um sistema de exploração pré-capitalista (um sistema
de servidão).
SINHÁ VITÓRIA: hum... No que tão pensando? FABIANO: Bicho miúdo num pensa. SINHÁ VITÓRIA: Que será deles? Um pouco mais eles botam corpo. FABIANO: Aí já vão poder vaquejar. SINHÁ VITÓRIA: Ô xente! Que idéia... Nossa Senhora que livre eles dessa desgraça. Hum, vaquejar... Nesse mundão de Deus havemo de encontra um lugá prá nós, nem que seja uma roça de pouca serventia, mas que dê pro dicomer o ano inteiro. Com os poder da Virgem a vida da gente vai mudá... Roça bonita, muito milho, feijão... Fartura e sustança pros meninos se criar. Vamos ter vida nova, sem carecer de conta do gado, a se daná no mato feito a peste. Depois a gente pára numa cidade grande. Vai ter tanta coisa pra gente vê, pra esses óis que só conhece a desgraça. Os meninos vão prá escola, aprender tudo. Ter sabê, lê no livro, fazer conta no lápis que nem seu Tomás. FABIANO: Grandes coisas... Seu Tomás sabia muito, é! Mas quando botou o pé no mundo, se acabou no caminho. A leitura dele serviu prá alguma coisa, serviu? Num serviu prá ele agüentar nem uma légua. SINHÁ VITÓRIA: E quem... E quem vai andá sempre no mato, escondido que nem bicho? Um dia temo que virá gente. Podemo continuar que nem bicho, escondido no mato... Podemos? Podemos? FABIANO: Não podemo não.
No filme, a visão marxista de Nelson Pereira dos Santos é patente na denúncia
de um sistema de poder opressor e arcaico, que impõe sérios limites à liberdade dos
trabalhadores do campo. Fabiano submete-se forçosamente à servidão que é incapaz de
avaliar - a servidão de facto e a servidão de jure. Pela primeira, está preso à gleba e, pela
segunda, acha-se sem direitos juridicamente reconhecidos contra o senhor (fazendeiro).
Em Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos manifesta, com ênfase a
estratificação do mundo sertanejo, dividido de maneira tripartite: cultural, econômica e
socialmente. Como estratégia pedagógica para denunciar a divisão do mundo sertanejo e
destacar as diferenças identitárias, Nelson Pereira dos Santos vale-se do contraponto entre
duas formas de manifestação cultural. De um lado, apresenta a cultura popular (bandinha
de pífaros/reisado/rezadeira/cangaceiros) e, de outro, a cultura erudita (lição de violino). A
cultura popular está ligada à gente espoliada do sertão, que a concebe e a mantém viva;
enquanto a cultura erudita cabe exclusivamente à aristocracia rural (fazendeiros).
86
Na cena do festejo, pelo menos dois aspectos fundamentais podem ser
apreendidos: a criatividade e a pobreza material dos integrantes da banda de pífaros
(musicalidade/trajes humildes). Na cena do reisado, nota-se que somente o povo participa
diretamente dessa manifestação cultural herdada do colonizador e aclimatada à região. A
aristocracia rural assiste à cantoria, mas dela não participa e tampouco se identifica
diretamente. Para a aristocracia rural, o reisado tem um caráter decorativo, apenas. O
reisado, que é uma manifestação de louvor e reverência a Cristo, termina por ser uma
manifestação de louvor e reverência aos usufrutuários do poder econômico e político da
região (o prefeito, o juiz, o padre e os fazendeiros).
Num mundo à parte, em um acentuado processo de animalização, Fabiano e a
família não se identificam tanto com as manifestações da cultura popular (folclore), pois
dela não participam, não assistem a ela, sequer. Em todo o filme, a cena da rezadeira é o
único momento em que Fabiano e a família participam efetivamente da cultura popular. O
processo de animalização de Fabiano e da família é tão brutal que mesmo os seus vínculos
com as representações e as identidades culturais populares estão em vias de esvaziamento.
Esse efeito é mais perceptível no discurso de Sinhá Vitória. Na cena final, da retirada, ela
renega até mesmo a identidade cultural de vaqueiro:
SINHÁ VITÓRIA: Que será deles? Um pouco mais eles botam corpo. FABIANO: Aí já vão poder vaquejar. SINHÁ VITÓRIA: Ô xente! Que idéia... Nossa Senhora que livre eles dessa desgraça. Hum, vaquejar... Nesse mundão de Deus havemo de encontrá um lugá prá nós, nem que seja uma roça de pouca serventia, mas que dê pro dicomer o ano inteiro.
No contexto do marxismo, traduz-se a perda do status humano pelo termo
reificação. Tanto no romance de Graciliano Ramos como no filme de Nelson Pereira dos
Santos, esse processo foi traduzido, esteticamente, através de recursos que apontam para a
animalização dos protagonistas, especialmente de Fabiano. Diferente do personagem
Manuel, de Glauber Rocha, que realiza o percurso do vaqueiro insurreto bem como o
percurso do vaqueiro beato, Fabiano não adere a nenhuma dessas alternativas, vistas por
Glauber Rocha como únicos caminhos viáveis para fazer frente à opressão social e
econômica. Por essa razão, a Fabiano, não resta outro percurso senão o da perda de seus
bens, sua dignidade e da própria humanidade. Do espectador desafiado por essa identidade
cultural, por sua vez, espera-se mais do que fruição: espera-se um aprendizado sobre o que
o Cinema Novo considera como as principais mazelas da realidade do Nordeste e do
Brasil.
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível traçar alguns paralelos entre a proposta estético-pedagógica de
Glauber Rocha e a de Nelson Pereira dos Santos, sendo que algumas delas apontam para a
própria concepção estética do Cinema Novo. Os cinemanovistas tinham uma acepção
própria de arte e cinema e, a partir dela, procuraram romper com alguns conceitos da
estética tradicional, principalmente o conceito kantiano da finalidade sem fim, mais
conhecido pelo jargão parnasiano da arte pela arte, segundo o qual a arte possuiria um fim
em si mesma, independentemente de seus conteúdos representacionais.
Desse modo, o Cinema Novo também se opõe à concepção do cinema como
mero entretenimento, predominante nas grandes produções industriais, marcadas pelas
concepções ditadas principalmente por Hollywood. Para os cinemanovistas, o cinema
possui função social e compromisso pedagógico com a realidade nacional, sendo que sua
estética deve estar a serviço desses dois pressupostos. Coerentes com o intuito de realizar
um cinema crítico e engajado, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos vão ao interior
do Nordeste brasileiro e a algumas fontes literárias, estrategicamente, recuando no tempo
histórico a fim de ressignificar as supostas raízes da cultura regional, levantando, desse
modo, questões que acreditavam afetar a realidade social do Brasil como um todo.
Ao explorar, em sua proposta fílmica, o tema da violência (mística e anárquica)
conforme praticada por beatos e cangaceiros, Glauber Rocha dirigia uma crítica ao império
das forças maniqueístas (bem/mal) cristalizadas, no sertão nordestino, por um sistema pré-
capitalista de exploração do homem pelo homem. No filme, o catolicismo popular assume
a condição de marcador de uma identidade cultural, caracterizada pela resistência e pela
insubordinação ao catolicismo ortodoxo, este último alinhado aos interesses da aristocracia
rural. Além disso, no contexto fílmico de Glauber Rocha, o vaqueiro é construído como
uma identidade-tipo e alegórica, aludindo às vítimas de um sistema socioeconômico
opressor em atividade no sertão.
Por outro lado, todas essas identidades-tipos estão colocadas numa tênue
fronteira com relação à identidade cultural do vaqueiro. Nesse processo, portanto, as
representações e as identidades culturais colocadas em cena mostram-se transitórias,
sincréticas e/ou perpassadas umas pelas outras. No centro de uma “Babel” de
representações e identidades culturais, portanto, o Santo Sebastião, bem como os
88
cangaceiros e os beatos, aludem tanto a entidades bíblicas (Jesus, Virgem Maria, São
Sebastião) como aos Santos da cultura popular (São Jorge Guerreiro/ São Cosme e
Damião/São Lázaro). Da mesma forma, os cangaceiros apresentam-se tão místicos e
fatalistas quanto os beatos do sertão e estes, por sua vez, podem ser tão violentos e
anárquicos quanto os próprios cangaceiros.
Conforme aponta a epígrafe do filme, a representação do vaqueiro criada por
Glauber Rocha mantém verdade e imaginação indissociáveis. Algumas das principais
referências históricas mobilizadas para esse trabalho de construção híbrida do Santo
Sebastião, do vaqueiro Manuel, de Antônio das Mortes e de Corisco são, entre outros,
Antônio Conselheiro/José Lourenço/Sebastião da Pedra Bonita, Severino Tavares, Pedro
Batista da Santa Brígida, Major José Rufino, Corisco e Lampião. Tais figuras sociais
compartilham a sina de terem sido condenados a desaparecer e, ao mesmo tempo, de serem
transformadas em lenda pela cultura popular (cordel) e pelo folclore do Nordeste.
Diferentemente da proposta de Glauber Rocha, que mostra a insubordinação e
a violência da classe popular, Nelson Pereira do Santos, por sua vez, optou por enfatizar o
homem em um irreversível processo de sucumbência cujo limite beira a animalização do
humano. O vaqueiro de Nelson Pereira dos Santos é uma alegoria, uma identidade-tipo
representativa de todos os homens oprimidos por um sistema pré-capitalista de exploração
– a servidão de facto e a servidão de jure, e/ou vitimados pela seca que assola o sertão
nordestino –, sem condições nem mesmo de se posicionarem frente ao dualismo
dicotômico da violência anárquica e religiosa que impera no sertão, cujos principais tipos
representativos são o cangaceiro e o beato.
Em Vidas Secas, a cultura popular não é posta como raiz de uma cultura
independente e autenticamente brasileira. Na verdade, ela é apresentada como um
elemento de diferenciação de identidade, jamais como elemento de uma unidade cultural
brasileira em sentido amplo. Para Nelson Pereira dos Santos, portanto, prevalece sobre as
gentes brasileiras uma espécie de “apartheid” social tácito, responsável pelo fracasso do
contrato social e pela manutenção da estratificação cultural, econômica e social dos
homens. Em razão da forte opressão no campo, tem início um processo de reificação que
assume as formas de uma animalização quase naturalizada. Diferente das personagens de
Glauber Rocha, Fabiano não é capaz de se identificar nem mesmo com os referenciais
culturais mais patentes de sua classe social, a saber: o cangaceiro, o beato, o reisado, o
cantador, entre outras identidades culturais consagradas pela cultura folclórica e popular do
Nordeste. Nesse processo de esvaziamento, a identidade cultural de retirante assume a
89
forma de uma síntese do esvaziamento das identidades culturais como um todo. É o que
resta do vaqueiro, do agregado, do cantador, do beato, do cangaceiro...
Ao recuar no tempo histórico do Nordeste brasileiro, Glauber Rocha e Nelson
Pereira dos Santos, cada um à sua maneira, postulam uma pedagogia cultural cujo principal
objetivo é transformar a realidade histórico-social por meio da ressignificação de
identidades-tipo do Nordeste ou por meio de uma crítica da realidade agrária. Para Glauber
Rocha, a ressignificação das identidades culturais do sertão levará à afirmação de uma
unidade cultural, forte e livre da influência das culturas estrangeiras. Já para Nelson Pereira
dos Santos, por sua vez, a estratificação cultural, econômica e social dos homens sertanejos
e brasileiros não deixa margem para o surgimento de uma unidade cultural, restando
apenas a denúncia de um processo aviltante de desumanização. Ressignificar as
identidades-tipo não lhe parece o bastante, pois o regime de exploração do homem do
campo brutaliza e provoca a perda do humano.
90
REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 3. ed. Recife: FNJ, Ed. Massangana, São Paulo: Cortez, 2006.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2005.
AUMONT, J. et al. A estética do filme. 5. ed. São Paulo: Papirus, 1995.
AUMONT, J; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. 3. ed. Campinas: Papirus, 2007.
AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
BARROSO, Gustavo. Terra de sol. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia da Letras, 2007.
BRANCO, Renato Castelo. O Piauí, a terra, o homem e o meio. São Paulo: Quatro Artes, 1970.
CAMARA JÚNIOR, J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 20ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. São Paulo: Global, 2004.
COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008 - (Coleção Campo Imagético).
COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. 2 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. In: SANTIAGO, Silviano (org.). Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. 413 p. (Biblioteca luso-brasileira; Série brasileira V. 1).
DACANAL, José Hidelbrando. O romance de 30. 3. ed. Porto Alegre: Novo Século, 2001.
91
FABRIS, Mariarosária. Um olhar neo-realista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
_____ A ordem do discurso. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
FREIRE, Gilberto. Manifesto regionalista. 6. ed. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1997.
GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7 ed. Rio de Janeiro: Dp&A, 2002.
HALL, Stuart; GAY, Paul du. Cuestiones de identidad cultural. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.
JOHSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.
JÚNIOR, Benjamin Abdala. O romance social brasileiro. São Paulo: Editora Sipone, [2000?].
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.
LOPES, José de Ribamar (org). Literatura de cordel – antologia. 2 ed. Fortaleza: BNB, 1983.
MANEVY, Alfredo. Nouvelle vague. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. 3ª ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008 - (Coleção Campo Imagético).
MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. 3. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008 – (Coleção Campo Imagético).
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2007.
MONZANI, Josette. Gênese de deus e o diabo na terra do sol. São Paulo: Annablume, fapesp; Salvador: Fundação Gregório de Matos; UFBA, 2005.
NEVEU, E; MATTELART, A. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1997.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.
92
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
PORTELA, Eduardo; CRISTOVÃO, Fernando; TELES, Gilberto de Medonça. O romance de 30 no nordeste. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983.
ROCHA, Glauber. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
_______. Revolução do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006.
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Critica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte, 2004.
____.Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
_____. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 5. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
_____. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 6. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
____(org.). O que é, afinal Estudos Culturais. 3ª ed. 1 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
STEINBERG, Shirley, KINCHELOE, Joe. Cultura infantil: a construção corporativa da infância. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
TEIXEIRA, I. A. de C; LOPES, J. de S. M. (Orgs.). A escola vai ao cinema. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
TOLENTINO, Célia aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
VANOYE, F; GOLIOT-LÈTÈ, A. Ensaio sobre a análise fílmica. 4. ed. São Paulo: Papirus, 1994.
93
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chaves: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.
_____. Cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
____. (org.). A experiência do cinema. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
_______. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
____. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
94
ANEXO (Canções)
1. Primeira Aparição de Sebastião Manuel e Rosa viviam no sertão Trabalhando a terra com as próprias mãos Até que um dia, pelo sim, pelo não, Entrou na vida deles o Santo Sebastião. Trazia a bondade nos olhos, Jesus Cristo no coração. 2. Coro dos Beatos
As ovelhas desgarradas Que andam em pastos perdidos Procurando o seu rebanho E o senhor da boa vida. Quero deixar este mundo Com a minha triste sina, Procurando o seu rebanho E o senhor da Boa Vida.
3. Feira Sebastião nasceu do fogo No mês de fevereiro, Anunciando que a desgraça Ia acabar com o mundo inteiro Mas que ele podia salvar quem estivesse do lado dele, Que era, que era santo, Era santo milagreiro. 4. Fuga Meu filho, tua mãe morreu, Não foi de morte de Deus. Foi de briga no sertão, De tiro, que jagunço deu. 5. Primeira Canção de Antônio das Mortes Jurando em dez igrejas Sem santo padroeiro Antônio das Mortes Matador de cangaceiro Matador, matador,
95
Matador de cangaceiro. 6. Intermezzo Da morte de Monte Santo Sobrou Manuel Vaqueiro Por piedade de Antônio Matador de cangaceiro. Mas a estória continua, Preste mais atenção: Andou Manuel e Rosa Nas veredas do sertão Até que um dia, pelo sim, pelo não, Entrou na vida deles Corisco, diabo de Lampião. 7. Corisco Lampião e Maria Bonita Pensava que nunca, que nunca morria. Morreu na boca da noite, Maria Bonita ao romper do dia. 8. Segunda Aparição de Antônio das Mortes Andando com remorso, Volta Antônio das Mortes Vem procurando noite e dia Corisco de São Jorge. Vem procurando noite e dia Corisco de São Jorge. 9. Final Procurando pelo sertão Todo mês de fevereiro O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Procura, Antônio das Mortes! Se entrega, Corisco! Eu não me entrego não! Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão! Se entrega, Corisco! Eu não me entrego não! Não me entrego ao tenente, Não me entrego ao capitão, Só me entrego só na morte,
96
De parabelo na mão! (Corisco) Mais forte são os poderes do povo! Farreia, farreia povo, Farreia até o sol raiar... Mataram Corisco, Balearam Dada. 10. Epílogo O sertão vai virar mar E o mar vai virar sertão! Tá contada a minha estória, Verdade, imaginação. Espero que o sinhô tenha tirado uma lição: Que assim mal dividido Esse mundo anda errado, Que a terra é do homem, Não é de Deus nem do Diabo!