UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo...

96
1 UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ULBRA UMA PEDAGOGIA CULTURAL MILITANTE: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO HALAN KARDECK FERREIRA SILVA CANOAS-RS 2009

Transcript of UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo...

Page 1: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

1

UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ULBRA

UMA PEDAGOGIA CULTURAL MILITANTE: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO

HALAN KARDECK FERREIRA SILVA

CANOAS-RS 2009

Page 2: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

2

UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

ULBRA

UMA PEDAGOGIA CULTURAL MILITANTE: REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO

HALAN KARDECK FERREIRA SILVA

CANOAS-RS 2009

Page 3: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

3

HALAN KARDECK FERREIRA SILVA

UMA PEDAGOGIA CULTURAL MILITANTE:

REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universi-dade Luterana do Brasil do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr. Edgar Roberto Kirchof

CANOAS-RS 2009

Page 4: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

4

A Deus, senhor do universo.

À minha mãe Raimunda Ferreira Lira.

Ao meu pai José Gomes da Silva (em memória).

Aos meus avós Francisco Teixeira Lira (em memória) e Olga Ferreira dos Santos.

À minha esposa Lia e meus filhos Maria Clara e David.

Aos meus irmãos Tânia Maria, Girlene Francisca e Cássio.

Aos meus sobrinhos José Levi e Olga Marina.

A H. Dobal e Marcílio Rangel (em memória).

A M. Paulo Nunes, R. N. Monteiro de Santana e Cineas Santos, amigos de fé.

A todos que se julgam meus amigos, citados ou não, com a minha gratidão.

Page 5: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

5

AGRADECIMENTOS

Ao professor Doutor Edgar Roberto Kirchof, por sua dedicação à minha causa.

Ao Leonardo Dias, livreiro dedicado.

Page 6: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

1

RESUMO

SILVA, Halan Kardeck Ferreira. Uma pedagogia cultural militante: representações e identidades de vaqueiro no Cinema Novo. Canoas: ULBRA, 2009. 95 fl. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009.

Esta dissertação, intitulada “Uma pedagogia cultural militante: representações e identidades de vaqueiro no Cinema Novo”, constitui-se da análise de representações de vaqueiro conforme articuladas pelo Cinema Novo brasileiro, sendo que tais representações são compreendidas como constituidoras de identidades culturais. O corpus da análise é composto por dois textos fílmicos pertencentes à primeira fase do Cinema Novo - Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Vidas Secas (1965), de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, respectivamente. O trabalho está fundamentado teoricamente nos Estudos Culturais em educação, embora também tenham sido utilizados, como suporte para as análises, alguns estudos realizados no contexto da crítica literária e da crítica de cinema. Alguns dos principais conceitos empregados são pedagogias culturais, diferença, representação e identidade cultural. No referencial teórico, constam trabalhos realizados por autores como Stuart Hall, Tomás Tadeu da Silva, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Ismail Xavier, Renato Ortiz, Randal Johnson, Shirley Steinberg, entre outros. Os principais resultados do trabalho apontam para a existência de uma identidade híbrida construída no bojo dos filmes analisados, sendo que o vaqueiro é freqüentemente representado a partir de traços comuns a outras identidades culturais já consagradas na cultura nordestina. No filme de Glauber Rocha, predominam as representações do vaqueiro como um cangaceiro e como um beato, ao passo que, no filme de Nelson Pereira dos Santos, predomina a noção naturalista de um vaqueiro animalizado, comum ao romance de Graciliano Ramos. A principal conclusão do trabalho é que tais representações são mobilizadas, no âmbito do Cinema Novo, como uma pedagogia cultural militante, destinada a motivar o espectador para uma atitude crítica frente à realidade social e econômica injusta e opressora que predomina no Nordeste e, por extensão, em todo o Brasil.

Palavras-chave: Identidades de Vaqueiro – Pedagogias culturais – representação –– diferença.

Page 7: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

2

ABSTRACT

SILVA, Halan Kardeck Ferreira. A militant cultural pedagogy: representations and identity of herdsman in the New Movie. Canoas: ULBRA, 2009. 95 fl. Dissertation (Master Degree in Education) – Pos-Graduation Degree Program in Education. Lutheran University of Brazil, Canoas, 2009. This paper named “A militant cultural pedagogy: representations and identity of herdsman in the New Movie”, consisted of an analysis of representations of herdsman articulated by the brazilian New Movie, understanding that such representations are guidance of cultural identities. The corpus of the analysis is constituted by two film strip texts belonged to the first phase of the New Movie – Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) and Vidas Secas (1965), by Glauber Rocha and Nelson Pereira dos Santos, respectively. This study is based theoretically on Cultural Studies in Education, although some studies accomplished in the context of both literary and movie criticism have also been used as support to the analysis. Some of the main concepts used are cultural pedagogies, difference, representation and cultural identity. It also has contributions from authors´ work such as: Stuart Hall, Tomás Tadeu da Silva, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Ismail Xavier, Renato Ortiz, Randal Johnson, Shirley Steinberg, among others. The main results of this work point out to the existence of a hybrid identity developed in the core of the movies analysed, observing that the herdsman is often represented since usual traits to other cultural identities devoted in the northeast culture. In the Glauber Rocha´s movie predominates the representations of herdsman both as an outlaw and a beatified man, while in the Nelson Pereira dos Santos movie predominates the naturalist conception of an animalized herdsman, common to the novel of Graciliano Ramos. The main conclusion of this paper is that such representations are mobilized, in the New Movie scope, as a militant cultural pedagogy, addressed to motivate the audience to a critical attitude towards the economic unfair social oppressive reality that predominates in the Northeast and, by extension, in the whole Brazil. Key- words: Herdsman Identities – Cultural Pedagogies – Representation – Difference.

Page 8: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 09

1. O CINEMA NA PERSPECTIVA CULTURAL ............................................

1.1 Construindo um Caminho nos Estudos Culturais .........................................

1.2 Breve Histórico do Cinema ..............................................................................

1.3 Do Cinema que diverte ao Cinema que Ensina ..............................................

1.4 Metodologia .......................................................................................................

12

12

15

18

22

2. O NORDESTE NO UNIVERSO DIEGÉTICO DO CINEMA NOVO .......

2.1 Do Romance Social de Trinta ..........................................................................

2.2 Linguagem e Tradução – Do Romance ao Cinema .......................................

2.3 O Cinema Novo no Brasil – Uma Pedagogia Cultural Militante ......................

2.4 Representação e Identidade Cultural ............................................................

25

30

33

36

44

3. REPRESENTAÇÕES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO ....................

3.1 Sinopse ................................................................................................................

3.1.1 Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) ............................

3.1.2 Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) ...........................................

3.2 As Representações do Vaqueiro ......................................................................

3.2.1 O Vaqueiro Artista ...........................................................................................

3.2.2 O Vaqueiro Devoto ..........................................................................................

3.2.3 O Vaqueiro Insurreto .......................................................................................

3.2.4 O Vaqueiro Oprimido ......................................................................................

3.2.5 O Vaqueiro Animalizado .................................................................................

50

50

50

51

52

56

62

70

74

83

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 87

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 90

ANEXO (Canções) ................................................................................................... 94

Page 9: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

9

INTRODUÇÃO

Na cultura popular do Nordeste brasileiro, especialmente nos sertões de dentro,

as identidades do vaqueiro convivem com várias outras representações e identidades

culturais populares. No Piauí, onde durante séculos, a pecuária extensiva foi a principal

atividade econômica, a presença do vaqueiro na cultura foi e continua sendo de grande

relevo. Por conta disso, ao ingressar no programa de mestrado em Educação e Estudos

Culturais da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA –, dei início a uma pesquisa

envolvendo representações e identidades culturais de vaqueiro, a partir do contato com os

Estudos Culturais, o que possibilitou um novo olhar sobre as representações e identidades

culturais populares do sertão nordestino.

Esse novo olhar caracteriza-se por uma compreensão que pretende se afastar do

estritamente histórico, do discurso laudatório ou de uma visão romântica e apaixonada das

representações e das identidades sertanejas, buscando, antes, os aspectos relacionados com

a própria construção das identidades na cultura. Em agosto de 2008, num átimo, veio-me a

idéia de trabalhar, dentro de uma perspectiva estético-pedagógica, algumas representações

que contribuem para a construção de identidades culturais em torno do vaqueiro,

nomeadamente a partir do Cinema Novo. No contexto desse momento do cinema nacional,

escolhi dois textos fílmicos de sua primeira fase que reputo como antológicos, a saber,

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Vidas Secas (1963), de Glauber Rocha e Nelson

Pereira dos Santos, respectivamente.

O Cinema Novo, ao procurar conciliar uma visão declaradamente politizada a

uma estética inovadora, apresenta-se como uma das mais importantes vertentes

cinematográficas da contemporaneidade. Para os cinemanovistas, o cinema tem uma

função social definida, não é sinônimo de entretenimento, pois assume o lugar de um

eficaz instrumento pedagógico de atuação na transformação da sociedade brasileira e, num

contexto mais amplo, da América Latina ou, quem sabe, de todos os cenários onde atuou o

antigo colonialismo. Dentro de um amplo movimento cultural muito marcado pela

presença da juventude e da intelectualidade, o Cinema Novo aparece no momento em que

o mundo passa por mudanças substanciais em várias frentes, como na tecnologia, na

política e na cultura. Em vários continentes, estouravam movimentos de descolonização e

Page 10: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

10

de afirmação cultural, todavia, na mesma intensidade, o processo de colonização renovava-

se, recrudescia nos termos do imperialismo cultural e econômico.

Em minha pesquisa, o cinema é apresentado como artefato cultural e como

uma instância pedagógica muito atuante na sociedade contemporânea. Por essa razão,

advirto que não tenho intenção de teorizar ou fazer crítica de cinema. Pretendo refletir

sobre o modo como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, ao construírem suas

versões cinematográficas sobre o Nordeste, cada um ao seu modo, numa perspectiva

estético-pedagógica de cunho marxista, ao mesmo tempo em que fazem uma crítica da

“realidade” brasileira, acabam mobilizando diferentes representações e identidades

culturais, algumas delas de cunho popular e já existentes no sertão.

Para atingir o fim colimado, fez-se necessário passar em revista alguns

aspectos históricos, literários e culturais que refletem diretamente na composição daqueles

dois textos fílmicos. Nesse desiderato, afora os autores já considerados clássicos no campo

dos Estudos Culturais, foram de suma importância para o desenvolvimento da presente

pesquisa também outros teóricos de áreas afins, tais como Randal Johnson – crítica do

cinema –, Gilberto Freire – sociologia –, Euclides da Cunha – literatura – e principalmente

Durval Muniz de Albuquerque Júnior – estudos foucaultianos –, com A invenção do

Nordeste. Assim, longe de querer estabelecer uma genealogia na acepção foucaultiana do

termo, ao analisar as principais representações e identidades culturais populares do sertão,

procuro argumentar que essas representações e identidades não são essências que sempre

existiram, mas que são dobraduras construídas dentro de relações históricas marcadas pelas

tensões e contradições inerentes aos jogos de poder que perpassam a própria história da

humanidade.

A presente dissertação acha-se estruturada em 3 capítulos distintos que, ao

final, encerram uma unidade de sentido. No primeiro capítulo, intitulado “O cinema na

perspectiva cultural”, faço um relato da minha trajetória acadêmica e do meu interesse pelo

tema do vaqueiro e pelo cinema; em seguida, apresento uma síntese histórica do cinema,

desde a invenção do cinematógrafo até a sua trajetória no exterior e no Brasil. Além disso,

também procuro demonstrar o lugar do cinema como uma das atuantes pedagogias

culturais em atividade na sociedade contemporânea. Por fim, nesse capítulo, eu também

apresento a metodologia adotada para o trabalho, em articulação com o campo dos Estudos

Culturais em Educação.

No segundo capítulo, “O Nordeste no universo diegético do Cinema Novo”, eu

procuro, inicialmente, explicitar os vínculos do Cinema Novo com o Modernismo

Page 11: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

11

brasileiro. Em seguida, trato de esclarecer o processo utilizado pelos cinemanovistas para

transpor textos, originalmente produzidos em sistema de linguagem verbal, para um

sistema de linguagem audiovisual. Além disso, também realizo uma exposição do histórico

e da concepção estético-pedagógica do Cinema Novo Brasileiro e discorro sobre os

conceitos de representação e de identidade cultural articulados na pesquisa.

Por fim, no terceiro capítulo, além de levantar a ficha técnica e apresentar

brevemente o enredo dos filmes, parto para as análises das representações e identidades

culturais mobilizadas e construídas em torno do vaqueiro nordestino, encerrando a

pesquisa a partir dos elementos que ligam estética e ideologicamente os filmes de Glauber

Rocha e Nelson Pereira dos Santos, sob o pano de fundo dos preceitos apregoados pelo

Cinema Novo.

Page 12: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

12

1 O CINEMA NA PERSPECTIVA CULTURAL

1.1 Construindo um Caminho nos Estudos Culturais

Parte considerável da minha infância, eu vivi em Campo Maior, uma

cidadezinha provinciana encravada na região centro-norte do Piauí. Como no poema

Cidadezinha Qualquer, de Carlos Drummond de Andrade, o tempo por ali passava

devagar. A inesperada chegada de um circo era mais que o suficiente para alterar a rotina

da cidade. Gente de roupas e sotaque diferentes, palhaços montados em pernas-de-pau,

anunciando, em megafones enfeitados, as atrações do espetáculo circense. Homens,

mulheres, crianças se apressavam para o local onde o circo estava armado. Ansiosos,

queriam ver os animais exóticos da longínqua selva africana: leões melancólicos, macacos

eletrizados e, excepcionalmente, um elefante solitário.

Como a maioria das cidades antigas do Piauí, Campo Maior surgiu no caminho

do gado. Por essa razão, desde a mais tenra idade, eu venho convivendo com a presença

real ou imaginária de vaqueiros encouraçados. O meu avô materno, antes de deixar o sertão

e viver na cidade, fora vaqueiro numa fazenda de gado chamada Evereste. Dele eu ouvi as

primeiras histórias de vaqueiros e de bois encantados. Fora isso, na feira popular de Campo

Maior, que rotineiramente acontecia às segundas-feiras de cada semana, eu via um pouco

mais da realidade e da vida sertaneja. Para a feira, vinham os sertanejos comprar ou vender

gêneros de primeira necessidade e produtos do campo. No burburinho da feira, havia uma

profusão de sons, de vozes fazendo pregão: vendilhões de passarinho, de folhetos de

cordel, de ervas do sertão (mezinhas), vaqueiros semi-encouraçados, cegos cantadores,

mendigos, loucos de rua e marreteiros com bancas de jogo de azar.

Para mim, nenhum dos tipos humanos que freqüentavam a feira deixou mais

fortes impressões que o vaqueiro. Tamanha era a presença dele, que as celebrações

religiosas e culturais mais aguardadas do ano relacionavam-se ao dia do vaqueiro, o

segundo sábado do mês de junho, que é o mês em que a cidade festeja Santo Antônio de

Lisboa, o santo padroeiro de Campo Maior: novena, procissão, leilões e vaquejada. A

cidade ficava alvoroçada, repleta de vaqueiros. Quem não era vaqueiro, nessa ocasião,

dava um jeito - arrumava gibão e montaria e saía por aquelas ruas de paralelepípedos quase

perfeitos.

Page 13: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

13

Os vaqueiros com que me identifiquei na infância tinham uma imagem

marcante. Costumava vê-los encouraçados, em traje completo, quando vinham para as

homenagens a Santo Antônio. Assomavam aos magotes, todos vestidos de gibão, guarda-

peito, chapéu de couro, aguantes, mocó, esporas e, alçado numa das mãos, um rebenque de

couro cru, usado para açoitar o cavalo de campo, que não era menos composto que o

vaqueiro. As peças da montaria resumiam-se à sela campeira, que é um conjunto de peças

de couro e metal: coxim, riçafas, loros, estribos, cilhas dianteiras e traseiras, rabicho,

cabresto, cabeção, rédea, cabeçada e bainha de mata bicheira. Essa imagem de vaqueiro,

juntamente com os relatos de atos heróicos dos vaqueiros que lutaram na Batalha do

Jenipapo, as músicas de Luiz Gonzaga, de João do Vale e textos cênicos de Francisco

Pereira da Silva, diga-se de passagem, meu conterrâneo, Chapéu-de-Sebo (1966), O

Desejado e o Romance do Vilela (1973), contribuíram, decisivamente, para fortalecer a

minha identificação com a representação de vaqueiro que há pouco descrevi. O primeiro

texto é baseado na história de um vaqueiro que viveu e morreu em Campo Maior (seu

túmulo passou a ser cultuado por muitos sertanejos da região), os dois últimos são

adaptações cênicas de duas obras antológicas da literatura de cordel. As peças de Francisco

Pereira da Silva despertaram-me o interesse pela literatura popular, onde a presença do

vaqueiro é recorrente.

O meu interesse pelo cinema também veio cedo. Para minha sorte, Campo

Maior era uma das poucas cidadezinhas da região que se dava o luxo de ter um teatro e um

cinema em pleno funcionamento nos anos setenta. Porém, salvo raras exceções, os filmes a

que eu assistira na infância eram, em sua maioria, vinculados ao gênero hollywoodiano, ao

circuito industrial de cinema: Western, aventuras, artes marciais, romances açucarados e

uma velha película italiana da Paixão de Cristo, que todo ano era exibida no Cine Nazaré,

durante a Semana Santa. Os filmes de Western mexiam com minha imaginação, pois me

faziam associar o mundo dos Cowboys americanos ao mundo dos vaqueiros do sertão.

Quando passei a viver em Teresina, pude ampliar o meu gosto pelo cinema. Vi,

no Cine Royal, dois filmes, não diretamente compromissados com o cinema industrial, que

influenciaram decisivamente a minha maneira de ver filmes. Refiro-me a O Expresso da

Meia Noite (Alan Parker, 1978) e ao documentário musical Rock É Rock Mesmo (Peter

Clifton e Joe Massot, 1976), da banda de rock Led Zeppelin1. Esses dois filmes me

deixaram ao mesmo tempo perplexo e maravilhado, pois eles me fizeram reavaliar tudo o

1 Documentário que, mormente, traz imagens de um show realizado em 1973 no Madison Square Garden de New York para divulgação do LP Houses of the Holy.

Page 14: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

14

que eu havia visto em matéria de cinema. Tempos depois, não sei bem como, fiquei

sabendo da criação de uma sala de cinema no auditório Professor Herbert Parentes Fortes.

Eu não imaginava que se tratava de um Cine Clube, pois esse termo sequer existia no meu

parco vocabulário provinciano. Passei a freqüentá-lo aos sábados para ver filmes

diferentes, coisas do cine cult, fora do gênero hollywoodiano de cinema: o expressionismo

alemão, a montagem soviética, o surrealismo, o impressionismo francês, o neo-realismo

italiano, a nouvelle vague e o Cinema Novo brasileiro. De repente, sem perceber, estava

me tornado um cinéfilo, posto que passei a adotar critérios pré-definidos sobre cinema, a

ver filmes de arte, a evitar filmes comerciais, a discutir cinema, a observar quem eram os

diretores e, sobretudo, a assistir aos filmes no circuito alternativo.

O cinema de arte reacendeu em mim algo que estava semi-adormecido desde

que passei a viver em Teresina: a simpatia pela identidade cultural do vaqueiro. No lugar

do cowboy americano, eu vi, dominando a cena, em filmes como Deus e o Diabo na Terra

do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), vaqueiros

encouraçados, beatos, cangaceiros e retirantes. Eu vi aquela gente do sertão que eu nem

imaginava que um dia fosse capaz de figurar nas telas do cinema. Portanto, esses filmes

alternativos fizeram-me olhar para o vaqueiro de um modo diferente, posto que passei a

desconstruir aquela imagem um tanto quanto mítica do vaqueiro do sertão. Esses filmes

trouxeram-me outros valores, fizeram-me ver, em lugar do heroísmo romântico, um

vaqueiro empobrecido, vítima de um sistema de poder pré-capitalista.

Superada a fase inicial do programa de Mestrado, em que me familiarizei com

os Estudos Culturais, dediquei-me a buscar um tema relacionado à minha cultura regional,

que pudesse ser trabalho na perspectiva dos Estudos Culturais e da Educação, e que, ao

mesmo tempo, fosse-me agradável. A solução encontrada estava exatamente naqueles

filmes a que assisti nos circuitos alternativos de cinema, naqueles filmes quase artesanais

que, na maioria das vezes, eram realizados em países pobres com baixo orçamento e

voltados para os temas populares. Essas condições do cinema alternativo possibilitaram-me

encontrar o que eu mais desejava no momento, um caminho que me permitisse desenvolver

uma pesquisa, envolvendo, de algum modo, representação e identidade cultural de

vaqueiro, cinema e educação.

Em síntese, a minha proposta de dissertação para o Programa de Mestrado em

Educação ofertado pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, em convênio com o

Centro Federal de Educação Tecnológica do Piauí – CEFET-PI, consiste, basicamente, em

fazer análises de dois textos fílmicos e mostrar como eles, estética e pedagogicamente,

Page 15: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

15

através de eficientes práticas discursivas, atuaram e continuam atuando no processo de

construção de representações e identidades culturais de vaqueiro. Os textos fílmicos a

serem analisados são Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Vidas

secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963).

1.2 Breve Histórico do Cinema

Neste capítulo, apresento uma breve sinopse da invenção do cinema e do

desenvolvimento do cinema nacional, no intuito de retomar um pouco da história do

cinema no mundo e no Brasil, pois o Cinema Novo também pode ser visto como um dos

tantos capítulos da história do cinema nacional e mundial.

No final do século XIX, vários pesquisadores mobilizaram-se no sentido de

inventar um aparelho que fosse capaz de registrar imagens em movimento. Nessa

empreitada, lograram êxito o americano Thomas Edison, que, em 1893, na América do

Norte, registrou o seu Vitascópio, e os irmãos Louis e Auguste Lumière, que, em 1895, na

cidade de Paris, no subsolo do Grand Café, mostraram ao público o Cinematógrafo. O

invento de Thomas Edison não se popularizou, fora da América do Norte, tanto quanto o

cinematógrafo dos irmãos Lumière. Para Costa (2006, p.19), o sucesso do cinematógrafo

no mundo deve-se ao fato de ele ser mais leve e de ter um design mais funcional.

O primeiro cinema não apareceu com linguagem própria. Resumia-se ao

registro de cenas de dança, exibição de atletas, de animais amestrados ou mesmo à imagem

de um trem chegando à estação ferroviária ou de trabalhadores saindo de uma fábrica. O

cinema não fora concebido com a finalidade de contar histórias. Sobre esse assunto,

Aumont (1995, p.89) afirma que,

nos primeiros tempos de sua existência, o cinema não se destinava a se tornar maciçamente narrativo. Poderia ser apenas um instrumento de investigação científica, um instrumento de reportagem ou de documentário, um prolongamento da pintura e até um divertimento efêmero de feira. Fora concebido como um meio de registro, que não tinha a vocação de contar histórias por procedimentos específicos.

As formas de linguagem e expressão específicas do cinema foram,

posteriormente, desenvolvidas pelo francês George Mèliés, pelo norte-americano D.W.

Griffith e pelo russo Serguei Eisenstein. Com eles, o cinema deixou de ser um instrumento

de registro, libertou-se da narrativa do teatro, adquiriu uma linguagem própria e se tornou

uma das mais fascinantes maneiras de contar histórias já inventadas pelo ser humano.

Page 16: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

16

Costa (2006, p. 22) informa que os filmes teriam, aos poucos, superado suas limitações

iniciais e se transformado em arte ao encontrar os princípios específicos de sua linguagem,

ligados ao manejo da montagem como elemento fundamental da narrativa. Para Carrière

(1995, p. 22) o cinema inventou a si mesmo e imediatamente se copiou, se reinventou.

Inventou até mesmo funções até então desconhecidas: operador de câmara, diretor,

montador, engenheiro de som; todos, gradualmente, desenvolveram e aperfeiçoaram seus

instrumentos de trabalho.

Leite (2005, p. 19-20) informa que o cinema no Brasil chegou, ainda que haja

controvérsias, por volta do ano de 1898, quando o italiano Afonso Segreto, em 19 de

junho, a bordo do paquete francês Brésil, realizou nossa primeira filmagem, que ficou

conhecida como Fortaleza e navios de guerra na baía de Guanabara. Portanto, pode-se

dizer que o cinema não chegou ao Brasil com atraso, pois veio pouco tempo depois de ter

sido inventado na Europa e na América do Norte.

No ano de 1906, assomou no cenário nacional, que já priorizava as produções

hollywoodianas, o primeiro filme genuinamente brasileiro de sucesso: Os estranguladores.

Cedo, o cinema nacional tomou impulso e, entre 1907-1911, desenvolveu-se aqui o que a

historiografia cinematográfica brasileira classificou como A Bela Época do cinema

nacional. Em 1912, é fundada a Companhia Cinematográfica Brasileira. Apesar do

empenho de seu diretor, Francisco Serrador, a produção cinematográfica nacional acabou

entrando em um processo de retração. Enfrentando dificuldades, o cinema nacional resistiu

bravamente e, em 1923, ganhou fôlego novo com os ciclos regionais, em que se

destacaram os ciclos de Cataguases e de Recife, que popularizaram a produção

cinematográfica nacional e levaram o cinema às mais diferentes e recônditas regiões do

país.

Em 1930, Adhemar Gonzaga cria a Cinédia, com clara intenção de implantar,

no Brasil, a produção cinematográfica nos moldes hollywoodianos, proposta que atingiu

seu apogeu com a implantação da Atlântida, em 1941, e da Companhia Cinematográfica

Vera Cruz, em 1950. Outras companhias do gênero surgiram na época, como, por exemplo,

a Companhia Cinematográfica Maristela, Multifilmes, Sacra Filmes, Kino Filmes, todavia

essas companhias menores não alcançaram a mesma dimensão e o mesmo êxito da

Atlântida e da Vera Cruz.

Fora da proposta do cinema industrial, o cineasta Nelson Pereira dos Santos

lançou, em 1955, Rio, 40 graus, filme de inspiração neo-realista que prenunciou a

tendência do cinema brasileiro dos anos cinqüenta e sessenta. Em 1963, novamente,

Page 17: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

17

Nelson Pereira dos Santos lançou Vidas Secas, filme de impacto considerado precursor do

Cinema Novo, cuja obra mais representativa, Deus e o Diabo na Terra do Sol, só veio a

lume em 1964, ano do Golpe Militar (episódio que interferiu substancialmente no cinema

brasileiro). Além desses dois filmes citados, o Cinema Novo, em suas três fases, legou para

o cinema nacional filmes como O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Terra em Transe

(Glauber Rocha, 1967), Os Cafajestes (Ruy Guerra, 1962), Menino de Engenho (Walter

Lima Jr, 1965), A falecida (Leon Hirszman, 1965), O Padre e a Moça (Joaquim Pedro de

Andrade, 1966), A Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967) e outros.

No final dos anos sessenta e início dos anos setenta, desponta, quase

paralelamente ao Cinema Novo, o Cinema Marginal, que teve curta duração (1968-1973).

Leite (2005, p.105-106) afirma que,

se o cinema novo foi “oxigenado” ideologicamente pelo binômio nacional-popular, os diretores filiados ao Cinema Marginal, por sua vez, foram influenciados principalmente pela antropofagia, proposta pelo movimento modernista, em especial a vertente liderada por Oswald de Andrade, redescoberta pelo tropicalismo, pelas teses de Jean Luc-Godard sobre a narrativa cinematográfica, isto é, tratava-se de filmes com começo, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem, produções marcadas pela ampla liberdade de criação, pelos postulados defendidos por Orson Welles; e, finalmente, pelo cinema moderno norte-americano, especialmente os filmes B.

O Cinema Marginal, apesar da sua rápida passagem, destinou para a história do

cinema nacional alguns filmes importantes, como, por exemplo, O Bandido da Luz

Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) e Matou a Família e Foi ao Cinema (Júlio Bressane,

1969). Paralelamente ao Cinema Marginal, no período que vai de 1969 a 1973, aconteceu

no contexto do cinema nacional outro movimento cinematográfico, também marginal,

identificado com temas relacionados ao universo dos transgressores da ordem moral e

social (marginais, prostitutas), denominado de Cinema do Lixo. Entre os filmes

representativos dessa vertente, a título de ilustração, aponto Jardim das Espumas (Luis

Rozemberg, 1970), Gamal, o Delírio do Sexo (João Batista de Andrade, 1970), Piranhas

do Asfalto (Neville, 1970), Orgia, ou o Homem que deu Cria (João Silvério Trevisan,

1971), Perdidos e Malditos (Geraldo Veloso, 1971) e Nené Bandalho (Emílio Fontana,

1970).

A partir dos anos oitenta, com o processo de reabertura política do país, o

cinema nacional tomou fôlego, produziu uma gama de filmes não ligados a um movimento

específico de cinema e com uma temática ampla e variada. Entre esses filmes, estão

Inocência (Walter Lima Jr, 1983), Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982), Memórias do

Page 18: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

18

Cárcere (Nelson Pereira dos Santos, 1982), Paraíba Mulher Macho (Tizuka Yamasaki,

1983), Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1980), Quilombo (Cacá Diegues,

1984), Menino do Rio (Antonio Calmon, 1981) e outros.

Dos anos noventa para cá, o cinema nacional vem seguindo o seu curso com

boas produções, também não vinculadas a uma corrente cinematográfica determinada e

com uma temática ampla e diversificada, entre as quais destaco O Quatrilho (Fábio

Barreto, 1995), Carlota Joaquina (Carla Camurati, 1995), Central do Brasil (Walter

Salles, 1998), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), Abril Despedaçado (Walter

Salles, 2001), Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003), Carandiru (Hector Babenco, 2002) e

O Ano em que os Meus Pais Saíram de Férias (Cao Hambúrguer, 2006), Lisbela e o

Prisioneiro (Guel Arraes, 2003) e Eu Tu Eles (Andrucha Waddington, 2000). Sem parecer

cabotino, creio que essa síntese histórica do cinema nacional é capaz de dar uma idéia,

ainda que sucinta, da trajetória e da importância do cinema nacional, do início aos dias

atuais.

1.3 Do Cinema que Diverte ao Cinema que Ensina

Na atualidade, entre as funções sociais do cinema, cabe destacar a função

pedagógica. Segundo esse ponto de vista, o cinema não é vislumbrado primeiramente

como uma instância de arte e/ou entretenimento e sim, como uma instância pedagógica

capaz de promover educação além dos limites institucionais da escola. Em nossa

sociedade, a escola constitui a instância pedagógica hegemônica e, quando nela se faz uso

do cinema, geralmente este é colocado na condição de simples complemento, de recurso

suplementar para ilustrar algum saber trabalhado em disciplinas da grade curricular. Em

poucos termos, o cinema ainda não é reconhecido como uma autêntica instância

pedagógica em sentido amplo, pois, no Brasil, ainda prevalece, no âmbito da educação

institucionalizada, uma maneira muito peculiar de uso do cinema, classificado por Duarte

(2008, p. 69) como um uso instrumental. Em outro trabalho sobre cinema e educação,

Duarte (2002, p. 17) chama atenção para a importância do cinema enquanto uma instância

pedagógica no que diz respeito à formação cultural e educacional das pessoas: “Ver filmes

é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação cultural e educacional

das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais.”

As pedagogias culturais, ao mesmo tempo em que contestam a prerrogativa da

escola enquanto instância única de produção de saber, também reclamam o lugar e a

Page 19: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

19

autonomia do cinema como uma das muitas instâncias pedagógicas dos tempos atuais.

Steinberg (2004, p.14) informa que a expressão ‘pedagogia cultural’ enquadra a educação

numa variedade de áreas sociais, incluindo, mas não se limitando à escola. E esclarece que

as áreas pedagógicas são aqueles lugares onde o poder é organizado e difundido, incluindo-

se, nesses lugares, bibliotecas, TV, cinema, jornais, revistas, brinquedos, propagandas,

videogames, livros, esportes, enfim, todos os âmbitos da cultura. Nessas áreas

pedagógicas, articulam-se práticas e discursos que possibilitam o governo dos corpos, a

formação e a interpelação de sujeitos.

A função pedagógica do cinema está sempre presente, pois as pessoas, ao

mesmo tempo em que se divertem vendo filmes na televisão, no cinema ou em aparelhos

de DVD’S, também aprendem valores e modos de ser a partir das representações

veiculadas. Assim como a pedagogia tradicional possui um currículo, pode-se dizer que

também as pedagogias culturais têm seus currículos, cujo efeito é a produção e a

legitimação de conhecimentos. Sobre currículos culturais, Steinberg (2004, p.15) afirma

que “as organizações que criaram este currículo cultural não são educacionais, e sim

comerciais, que operam não para o bem social mas para o ganho individual”. Ainda

Steinberg (2004, p.15), amparada no pensamento de Henry Giroux, afirma que grande

parte das representações que atuam como pedagogia cultural, na sociedade contemporânea,

são estruturadas por dinâmicas comerciais. Portanto, não há como negar que as

organizações comerciais criaram ou se apropriaram de novas formas educacionais bastante

eficazes, sendo que, entre elas, o cinema ocupa um lugar de destaque.

No Brasil, ao longo das décadas de 20 e 30 do século XX, a intelectualidade e

o governo cogitaram a possibilidade de empregar o cinema como instrumento pedagógico

e também como instrumento a serviço da propaganda ideológica. Sobre a utilização do

cinema para o aguçamento da nacionalidade brasileira e sobre a possibilidade de seu

emprego na educação, Leite (2005, p. 35) afirma que,

de fato, a capacidade dos filmes de difundir valores agiu em tais grupos de forma diferente, pois o que mais despertou a atenção desses segmentos da intelectualidade brasileira nas décadas de 1920 e 1930 foram as possibilidades de o cinema ser empregado como instrumento pedagógico e como propaganda. Assim, no final dos anos 1920, apesar de algumas resistências e de alguns preconceitos, educadores brasileiros detectaram o enorme potencial educacional das produções cinematográficas e passaram a delinear projetos que visavam introduzir os filmes nas relações de ensino aprendizagem, abrindo um novo e fértil campo para a sobrevivência e o desenvolvimento das produções nacionais, sufocadas pela hegemonia dos filmes hollywoodianos.

Page 20: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

20

Na azáfama da novidade do cinema, criou-se um dos mais importantes órgãos

estatais de fomento ao cinema nacional. Esse órgão era o Instituto Nacional do Cinema

Educativo – INCE. Mas o reconhecimento do potencial pedagógico do cinema não é

exclusivo da intelectualidade e do governo brasileiro. Novamente, Leite (2005, p. 36)

relata que, “nos Estados Unidos, desde a chegada do cinematógrafo, foram experimentadas

as possibilidades de aplicá-lo no ensino”. A possibilidade do uso do cinema como

instrumento pedagógico e ideológico foi mais fomentada entre os países de regimes

populista e totalitarista da América e da Europa, sejam eles de orientação capitalista ou

socialista.

O potencial pedagógico do cinema não está em sua eventual capacidade para se

transformar em um substituto imediato e sofisticado do livro didático. A questão do cinema

como instância pedagógica exige um entendimento de educação em termos mais largos, no

âmbito das pedagogias culturais, que permitem ampliar as fronteiras dos espaços de ensino

e de aprendizagem. Trata-se de reconhecer o cinema como instância pedagógica no lugar

específico do cinema, sem que ele necessariamente tenha que perder sua autenticidade

estética e se transformar num substituto imediato do livro didático. O potencial pedagógico

do cinema não está adstrito a uma vertente específica de cinema. Assim sendo, a despeito

de qual seja o modelo, se o hollywoodiano, o expressionista alemão, o neo-realista italiano,

o da montagem soviética ou o do cinema novo, o que importa é que qualquer um desses

modos de fazer cinema é capaz de construir ou naturalizar representações e,

conseqüentemente, identidades culturais com as quais os sujeitos se identificam, ou não.

Os textos fílmicos, por seu dinamismo, têm a capacidade de ampliar e

democratizar os saberes, pois, para se ter acesso a textos literários, muitas vezes, exige-se

prévio conhecimento de complexos códigos de linguagem que, dependendo do autor,

podem ser bastante herméticos. Não estou, com essa ilação, negando a importância de uma

educação do olhar para ver filmes ou, tampouco, afirmando a inexistência de filmes

herméticos, de alta complexidade estética e de difícil entendimento. Comparando com

outras formas de linguagem, pode-se dizer que a atratividade do cinema se deve, em

grande parte, à forte impressão de realidade que ele provoca nas pessoas. Esse efeito foi

objeto de reflexão, entre outros, de Metz (2007, p. 16), quando o teórico afirma que,

de todos estes problemas de filme, um dos mais importantes é o da impressão de realidade vivida pelo espectador diante do filme. Mais do que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real, como percebeu Albert Affay. Desencadeia no espectador um processo ao mesmo

Page 21: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

21

tempo perceptivo e afetivo de “participação” (não nos entediamos quase nunca no cinema), conquista de imediato uma espécie de credibilidade – não total, é claro, mas mais forte do que em outras áreas, às vezes muito viva no absoluto -, encontra o meio de se dirigir à gente no tom da evidência, como que usando o convincente “É assim”, alcança sem dificuldade um tipo de enunciado que o lingüista qualifica de plenamente afirmativo e que, além do mais, consegue ser levado em geral a sério.

A linguagem predominantemente icônica do cinema, comparada à linguagem

verbal e simbólica da literatura, tem se mostrado bastante atrativa para o espectador

contemporâneo, entrementes já acostumado com a linguagem e com a predominância da

visualidade. Portanto, ao explorar o potencial pedagógico do cinema, dentro ou fora da sala

de aula, é produtivo buscar ultrapassar o aspecto conteudístico, ou seja, os elementos

diretamente ligados à história veiculada pelo filme. Para melhor aproveitar o potencial

pedagógico do cinema, faz-se necessário abordar os múltiplos elementos da linguagem

cinematográfica presentes em um texto fílmico: personagens, diálogos, montagem, planos,

seqüências, fotografia, figurino, cenário, trilha sonora, entre outros. Sobre o uso do

cinema na sala de aula, Napolitano (2008, p. 15) afirma que,

é preciso que a atividade escolar com o cinema vá além da experiência cotidiana, porém sem negá-la. A diferença é que a escola, tendo o professor como mediador, deve propor leituras mais ambiciosas além do puro lazer, fazendo a ponte entre emoção e razão de forma mais direcionada, incentivando o aluno a se tornar um espectador mais exigente e crítico, propondo relações de conteúdo/linguagem do filme como conteúdo escolar. Esse é o desafio.

A linguagem audiovisual dos textos fílmicos não veio para suprir o

desinteresse pela palavra escrita ou para concorrer com as outras artes, em especial a

literatura. Para Napolitano (2008, p.16), as competências e habilidades em torno da palavra

escrita é que devem ser o eixo do trabalho escolar, mesmo perpassadas por outras

linguagens fundamentais do mundo moderno, como a audiovisual, a iconográfica e a

sonora. Os textos fílmicos que selecionei como objetos de análise desta dissertação de

mestrado confirmam o diálogo permanente entre as artes, pois eles são legítimas

adaptações da linguagem escrita de textos literários para a linguagem audiovisual do

cinema2.

Na minha experiência cotidiana de sala de aula, tenho deparado com alguns

livros didáticos que, ao lado das sugestões bibliográficas e do glossário, já trazem

indicações de filmes para serem vistos com finalidades pedagógicas. Ver um filme, seja no

2 Os filmes são Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964); Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963).

Page 22: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

22

contexto da sala de aula ou fora dele, significa, entre outras coisas, compartilhar valores,

interesses e objetivos comuns. Assistir a um filme, ou mesmo produzi-lo, é

indubitavelmente uma experiência de lazer, criação ou recriação coletiva. A capacidade do

cinema para agregar pessoas, por si só, diz algo da importância do cinema como uma

instância pedagógica geradora de sentido, articuladora de saber, de visões de mundo, de

representações e identidades culturais. Para Rosália Duarte (2002, p.38),

parece ser desse modo que determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais. Esse é o maior interesse que o cinema tem para o campo educacional – sua natureza eminentemente pedagógica.

Após essa reflexão a respeito do potencial pedagógico do cinema, pode-se

concluir que ele, a um só tempo, é um artefato cultural e uma das instâncias pedagógicas

mais atuantes na sociedade contemporânea. Está claro, portanto, que o cinema não apenas

diverte, mas que, sobretudo, ensina. O cinema está muito presente na vida das pessoas,

pois o ato de ver filmes hoje, após pouco mais de cem anos da invenção do cinematógrafo,

tornou-se uma experiência dinâmica, visto que as pessoas podem ver filmes por meios

distintos e nos mais variados lugares. A experiência de ver filmes não mais se restringe,

nos dias atuais, às nostálgicas sessões das velhas salas de projeção de filmes, com nos

tempos de outrora.

1.4 Metodologia

A minha trajetória de pesquisador bem como meu aporte nos estudos culturais

têm seu início em 2007, quando ingressei como aluno do Programa de Mestrado em

Educação da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. Antes, entre os anos 1996 e

1998, havia feito uma pós-graduação “Lato Sensu” em Filosofia Contemporânea na PUC

de Minas Gerais, o que me possibilitou conhecer alguns dos principais temas do

pensamento contemporâneo. Essa experiência me tem auxiliado na construção da minha

trajetória nos Estudos Culturais. Todavia, devo dizer que a minha atividade de pesquisador

não está adstrita ao mundo acadêmico. Sou um pesquisador diletante, com duas

publicações na área de crítica literária: As formas incompletas: apontamentos para uma

biografia (2005), Cantiga de viver (2007). Esporadicamente, tenho colaborado com artigos

e poemas em periódicos de Teresina, jornais e revistas literárias.

Page 23: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

23

Confesso que, no início, nos primeiros contatos com os Estudos Culturais,

fiquei um tanto quanto atordoado. Esse estranhamento, em parte, deve-se à minha

formação acadêmica alicerçada na perspectiva dos paradigmas de conhecimento da

tradição filosófica e jurídica, e também à versatilidade, ao engajamento político das

análises dos Estudos Culturais, que, num átimo, fez ruir todo um arcabouço de idéias

vinculadas às metanarrativas, ao essencialismo, à objetividade e à neutralidade científica,

idéias essas que me foram cristalizadas ao longo dos anos pela tradição acadêmica. Porém,

à proporção que o programa avançava, eu fui me dando conta da importância do Centro de

Estudos Culturais Contemporâneos de Birmingham. Aos poucos, fui assimilando os

conceitos articulados pelos Estudos Culturais, tais como o Pós-Estruturalismo, que, noutros

termos, implica o deslocamento da concepção de uma linguagem descritiva para uma

concepção de linguagem construtiva, a desnaturalização das verdades essencialistas, os

jogos de poder, a centralidade da cultura e outras bossas. A partir dessa compreensão, eu

pude dimensionar a abrangência dos trabalhos pioneiros desenvolvidos naquele centro por

pensadores como Raymond Williams, Richard Hoggart, Stuart Hall, Paul Gilroy e Ângela

McRobbie.

Para desenvolver a minha proposta de dissertação de Mestrado e,

conseqüentemente, atingir os objetivos que me propus, entendi ser necessário chegar a um

razoável entendimento acerca dos Estudos Culturais e envolver-me ou ser envolvido por

eles. Essa experiência, por analogia, tem a ver com aquele sentido de leitura trabalhado

pelo filósofo espanhol Jorge Larrosa (2002, p.133-134). Trata-se de pensar a leitura como

algo que nos forma (ou nos de-forma e nos trans-forma), como algo que nos constitui ou

nos põe em questão naquilo que somos. A leitura, portanto, não é só passatempo, um

mecanismo de evasão do mundo real e do eu real. E não se reduz, tampouco, a um meio de

se conseguir conhecimentos.

Para mim, particularmente, experiências de leitura e de escritura rompem as

fronteiras entre o interior (subjetivo) e o exterior (objetivo), entre o sujeito e o objeto. Por

não conseguir trabalhar um texto sem antes estar envolvido com ele ou por ele, eu demorei

a chegar ao tema de minha dissertação de Mestrado em Educação.

Os Estudos Culturais não se constituem como uma disciplina acabada. Eles são

multidisciplinares ou, quem sabe, pós-disciplinares, o que em nada compromete o diálogo

com disciplinas acadêmicas: 1) estudos literários; 2) sociologia; 3) estudos de mídia e

comunicação; 4) Lingüística; 5) história, entre outros. Dessa proximidade dos Estudos

culturais com as disciplinas acadêmicas retromencionadas, duas grandes vertentes de

Page 24: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

24

trabalho são discerníveis. Primeiro, a vertente etnográfica, útil na realização de análises de

subculturas urbanas. Segundo, a vertente dos estudos literários, apropriada para a

realização de análises textuais de programas de TV, de filmes e de obras literárias

populares. Essa segunda vertente possibilitou-me chegar a um objeto de pesquisa e a um

referencial metodológico dentro do campo dos Estudos Culturais em Educação. Graças a

ela, eu pude me inserir numas das linhas de pesquisas do Programa de Mestrado da

ULBRA, a saber, a linha Currículo e pedagogias culturais, que concebe a pedagogia como

um fenômeno abrangente, que possibilita trabalhar com objetos de investigação localizados

tanto no espaço de saber-poder da escola institucional como fora dele (no espaço da mídia,

da arte, dos filmes, enfim, dos artefatos culturais).

Não pretendo, ao escolher o artefato cultural do cinema como objeto de

pesquisa, empreender crítica ou teorizar sobre cinema em sentido restrito. A minha

pretensão é analisar como, nesses dois textos fílmicos produzidos pelo Cinema Novo, os

autores articulam representações de vaqueiros e, ao mesmo tempo, empreendem rupturas

de sentido e de significação, mobilizando e construindo possíveis identidades culturais.

Esses textos fílmicos despertam-me interesse porque neles há representações de Nordeste

geradoras de identidades culturais que são capazes de interpelar, formar ou transformar

sujeitos.

As principais perguntas norteadoras da pesquisa que, na medida do possível,

pretendo cotejar, são as seguintes: Quais as representações de vaqueiro articuladas por

Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos em Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas

Secas? Quais as estratégias pedagógicas empregadas por esses autores para veicular visões

sobre o Nordeste e seus tipos regionais? Que efeitos de poder são visíveis? Que efeitos de

verdades são postos em circulação? Como se articulam as identidades culturais desses dois

filmes com a estética do Cinema Novo?

Page 25: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

25

2 O NORDESTE NO UNIVERSO DIEGÉTICO DO CINEMA NOVO

Com certa freqüência, o cinema nacional tem tomado o espaço regional do

Nordeste como universo de suas produções fílmicas. O Nordeste, com sua paisagem, com

seu clima, com sua gente, com seus costumes e com sua cultura, desde os tempos da

Atlântida e da Vera Cruz, vem servindo de tema ou de cenário para a realização de filmes,

documentários, novelas, séries, minisséries e reportagens, todas, é bom que se diga, com

sucesso garantido de público. Entre os memoráveis textos fílmicos sobre o Nordeste, posso

apontar, a título de exemplificação, Lampião, o Rei do Cangaço (Benjamim Abrahão,

1936), O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953), Três Cabras de Lampião (Aurélio Teixeira,

1962), O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962), Lampião, o Rei do Cangaço

(Carlos Coimbra, 1964), Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Baile Perfumado

(Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1996), Central do Brasil (Walter Salles, 1998), e as

minisséries da Rede Globo de Televisão O Bem Amado (1973), Morte e Vida Severina

(1981), Lampião e Maria Bonita (1982), Padre Cícero (1984), Tenda dos Milagres (1985),

o Pagador de Promessas (1988), Riacho Doce (1990), Teresa Batista (1992), Memorial de

Maria Moura (1994), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1998), O Auto da Compadecida

(1999) e Hoje é Dia de Maria (2005), entre outros.

Diante dessa gama de textos fílmicos, o que se pode inferir de imediato é que,

de certo tempo para cá, nenhuma outra região do Brasil foi tão amplamente mostrada e, ao

mesmo tempo, tão amplamente vista como a região Nordeste. As representações de

Nordeste, recorrentes nas telas do cinema nacional, mostram imagens que destoam das

imagens de outras regiões do país, sobretudo das regiões Sul e Sudeste. Curiosamente, o

Nordeste, no cinema nacional, continua sendo representado predominantemente sob a ótica

do discurso naturalista do antigo regionalismo, em que a velha região Norte, a atual região

Nordeste, era representada como um espaço regional sob o domínio de forças imperativas

de uma natureza hostil, de uma natureza agreste, geradora dos fatores do atraso sócio-

cultural do país. Na perspectiva de quem vê o Nordeste apenas por meio dessas imagens

unificadas, para não dizer estigmatizadas, ele continua sendo um grande óbice na via de

construção da nação brasileira moderna.

Para Albuquerque Júnior (2006, p.41),

Page 26: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

26

o antigo regionalismo, inscrito no interior da formação discursiva naturalista, considerava as diferenças entre os espaços do país como um reflexo imediato da natureza, do meio e da raça. As variações de clima, de Vegetação, de composição racial da população explicavam as diferenças de costumes, de hábitos, práticas sociais e políticas. Explicavam a psicologia, enfim, dos diferentes tipos regionais.

As representações de Nordeste circulantes nos textos fílmicos nacionais, textos

com os quais os espectadores interagem, não romperam, de todo, com os paradigmas das

práticas discursivas naturalistas ou com os padrões tradicionais de sociabilidade. O Cinema

Novo é um renovador das representações naturalistas do Nordeste, cujos fundamentos

discursivos eram inicialmente de cunho bioevolucionistas. O olhar do Cinema Novo sobre

as representações de Nordeste é dialético, mas dialético no sentido da dialética dos

contrários, de Hegel e de Marx, jamais no sentido da dialética da ascensão de Platão. Por

essa razão, o olhar do Cinema Novo nega as representações naturalistas de Nordeste sem

perdê-las de vista. O olhar do Cinema Novo sobre as representações de Nordeste

fundamenta-se no discurso sociológico, o que, noutras palavras, significa compreender a

região Nordeste deixando de fora os imperativos do clima, da raça e do meio.

Parte considerável das representações de Nordeste que circulam no cinema

nacional não resulta de um regionalismo calcado em releituras de imagens e enunciados do

antigo Norte. Na verdade, estas imagens e enunciados têm muito de um olhar

estigmatizador, de um olhar de um regionalismo que se pretende superior, eugênico,

civilizado e litorâneo. Albuquerque Júnior (2006, p.44) fornece mostras da imagem do

Nordeste vista pelo olhar de um jornalista de fora,

Paulo de Moraes Barros, jornalista de O Estado de S. Paulo, enviado a uma visita a Joaseiro, considera a inferioridade racial dos nordestinos como responsável pelo aparecimento dos “fanáticos bossais que se disseminam por toda parte na região” e pelas “turbas que os assediavam, homens e mulheres de aspectos alucinados, olhos esbugalhados, com braços estendidos, atirando-se por terra, tentando tocar a batina do beato”, como também pela violência dos bandidos facinorosos”. Questionava como podia tal povo ser a base de construção de uma nação.

As imagens de Nordeste que aparecem nas telas do cinema nacional coincidem

com as representações de Nordeste elaboradas pelo olhar do outro, de quem está vendo o

Nordeste à distância, de fora. Essas representações de Nordeste que circulam no cinema

nacional têm como efeito de verdade, a visão do Nordeste como um espaço regional

unificado, ou seja, o Nordeste como uma unidade étnica, cultural e geográfica. Por trás

dessas imagens unificadas e naturalizadas, está em atividade uma pedagogia edificante,

Page 27: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

27

diga-se de passagem, construída, em parte, pelo discurso sociológico do pernambucano

Gilberto Freire, mormente constante em duas de suas obras, Nordeste (1937) Manifesto

Regionalista (1926).

Para o cearense Djacy Menezes, essas obras de Freire destoavam no que tange

à abordagem de espacialidades da região Nordeste. Por essa razão, escreveu O Outro

Nordeste (1937), de certo modo, no intuito de mostrar que o Nordeste descrito por Freire

limitava-se apenas à região litorânea, outrora conhecida por sertões de fora, e não

contemplava os aspectos sócio-culturais e geográficos da região do semi-árido nordestino.

A discordância sobre o espaço regional do Nordeste, como unidade étnica, cultural e

geográfica, prossegue com o piauiense Renato Castelo Branco, que escreveu A Civilização

do Couro (1940), obra composta sob a influência sazonal do discurso naturalista, mas que

deixa bem claro que tanto as obras de Freire como a de Menezes não contemplaram os

aspectos étnicos, culturais e geográficos da região Meio-Norte, que é detentora do segundo

e do terceiro maior Estado da região Nordeste – o Maranhão e o Piauí. Essas três obras

permitem perceber, primeiro, que a origem do Nordeste é histórica e, segundo, que a

naturalização do espaço regional Nordeste, como unidade étnica, cultural e geográfica,

deu-se através de processo deliberado de apagamento da diversidade étnica, cultural,

geográfica e política da região que, desde os anos vinte do século passado, ficou conhecida

como região Nordeste. Para Albuquerque Júnior (2006, p.66),

o Nordeste não é um fato inerte na natureza. Não está dado desde sempre. Os recortes geográficos, as regiões, são fatos humanos, são pedaços da história, magma de enfrentamentos que se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava social que um dia veio à tona e escorreu sobre este território. O Nordeste é uma espacialidade fundada historicamente, originada por uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe deram realidade e presença.

A construção discursiva do Nordeste é ambivalente, pois simultaneamente se

sustenta numa nova concepção de regionalismo e numa certa nostalgia do passado. Para

Albuquerque Júnior (2006, p.67), “a invenção do Nordeste exige a feitura de um inventário

da natureza, da cultura e da história sócio-econômica da região, no sentido de fundar, no

presente, uma tradição do passado”. Para os edificadores do Nordeste, era preciso fazer

uma apropriação do termo Nordeste, que surgiu para delimitar a área de atuação da

Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), como um termo capaz de remeter

para uma natureza, para uma etnia, para uma cultura, para uma geografia e para uma

identidade cultural nordestina. Albuquerque Júnior (2006, p.76) informa que a construção

Page 28: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

28

do Nordeste exigiu que se fosse ao passado buscar as raízes regionais, a fim de inventar a

tradição.

O novo regionalismo é a negação do regionalismo do antigo Norte, embora a

sua visibilidade e dizibilidade de Nordeste aproveitem o maior dos problemas do velho

Norte: a seca. A seca dará o tom dos discursos políticos, das imagens e das pedagogias

articuladas no Romance Social de 30 e, conseqüentemente, no Cinema Novo, mas com um

diferencial, a substituição, no que se refere à visão dos problemas da região Nordeste, de

um olhar naturalista, próprio do antigo regionalismo do Norte, por um olhar sociológico

visivelmente marxista.

A construção discursiva do Nordeste não é algo “em si” e “por si”, pois

necessita de outras representações e identidades culturais regionais como referência,

necessita de representações e identidades culturais relacionais, cabendo destacar a da

região Sul do Brasil. Para Albuquerque Júnior (2006, p.69), “o Sul é o espaço-obstáculo, o

espaço outro no qual se pensa a identidade do Nordeste. O Nordeste nasce do

reconhecimento de uma derrota, é fruto do fechamento imagético-discursivo de um espaço

subalterno da rede de poderes, por aqueles que já não podem aspirar ao domínio do espaço

nacional”. Para enfrentar o perigo iminente da hegemonia da região Sul sobre a região

Nordeste, esta tida como repositório da cultura e da identidade nacional, em 1926,

organizou-se, na cidade de Recife, o famoso Congresso Regionalista do Recife, de onde

saiu o Manifesto Regionalista, de autoria de Gilberto Freire, mas que fora “subscrito” pelos

demais congressistas, e, espantosamente, publicado apenas no ano de 1952. Esse

congresso, misto de congresso artístico-cultural e político, incitou, entre a gente da região

Nordeste, a união, o sentimento de pertencimento e nordestinidade.

A construção social do Nordeste, modelada na afirmação de valores regionais e

na afirmação da cultura popular, em parte é conseqüência da implantação de um novo

sistema político, a República, cuja proclamação ocorreu em 15 de novembro de 1889.

Tacitamente, durante a vigência da República Velha, no governo de Campos Sales,

colocou-se em prática um arranjo político, firmado entre os setores políticos hegemônicos

dos Estados de São Paulo e Minas Gerais e as lideranças políticas regionais, conhecido

como Política dos Governadores. Em síntese, esse arranjo político consistia na alternância

entre um paulista e um mineiro na presidência da república e também na distribuição, entre

esses signatários, de cargos estratégicos na esfera federal (política do café com leite).

No Nordeste, um dos efeitos da Política dos Governadores foi a ampliação da

autonomia política das lideranças regionais, os coronéis. Em razão de uma política e uma

Page 29: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

29

economia pré-capitalista e dos excessos cometidos pelo coronelismo, eclodiram no

Nordeste uma série de revoltas e insubordinações, entre as quais a revolta de Canudos e o

cangaço, quando se destacam os líderes Antônio Conselheiro e Lampião.

A questão do Nacionalismo frente à idéia de regionalismo expressa-se no

Manifesto Regionalista de 1926, de autoria de Gilberto Freire, que destoa,

consideravelmente, por exemplo, das idéias nacionalistas decantadas pelo Movimento

Modernista de 1922, que defendia a unidade nacional a partir da adoção de um sistema

sócio-cultural que sintetizasse a diversidade social e cultural do país (um nacionalismo

sincrético). Para Freire (1976, p.56), a concepção de um estado nacional brasileiro deveria

preservar as peculiaridades e as diferenças entre as regiões:

essa desorganização constante parece resultar principalmente do fato de que as regiões vêm sendo esquecidas pelos estadistas e legisladores brasileiros, uns preocupados com “os direitos dos Estados”, outros, com as “necessidades de união nacional”, quando a preocupação máxima de todos deveria ser a de articulação inter-regional. Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais.

O Movimento Regionalista de 1926 defendia uma nova organização do Brasil

que priorizasse a região em lugar do estadualismo, que fora adotado pela República. Para

Freire (1976, p.54), o regionalismo não deve ser confundido com separatismo, com

bairrismo, com anti-internacionalismo, com antiuniversalismo ou com anti-nacionalismo.

Para ele, o regionalismo é um sistema em que as regiões, mais que os Estados, se

completam e se integram numa verdadeira organização nacional. Desde o Movimento

Regionalista de 1926, a valorização da cultura popular está intimamente ligada à questão

do nacionalismo. Nesse contexto, a cultura popular é assimilada sob um olhar conservador,

de valorização da tradição e do passado. Sobre o questionamento da concepção

conservadora da cultura popular, Ortiz (2006, p.71) afirma que

ela será entretanto fundamentalmente questionada com a emergência dos Centros Populares de Cultura. Quando Ferreira Gullar afirma que a expressão “cultura popular” designa um fenômeno novo na vida brasileira, de um certo modo o autor afirma que a noção se desvincula do caráter conservador que lhe era atribuído anteriormente. Rompe-se, dessa forma, a identidade forjada entre folclore e cultura popular. Enquanto que o folclore é interpretado como sendo as manifestações culturais de cunho tradicional, a noção de “cultura popular” é definida em termos exclusivos de transformação. Critica-se a posição do folclorista, que corresponderia a uma atitude de paternalismo cultural, para enfim implantar as bases de uma política cultural segundo uma orientação reformista-revolucionária.

Page 30: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

30

A nova concepção de cultura popular é marcada pela conotação política dos

movimentos de esquerda dos anos sessenta, como, por exemplo, o CPC, que era vinculado

à UNE. O Cinema Novo, que aparece na mesma época em que se processa a redefinição do

conceito de cultura popular, assimila esse novo conceito em suas realizações

cinematográficas. Novamente, com o novo conceito de cultura popular, vem à tona a

questão do nacionalismo, que fora, a bem dizer, no século XX, iniciada na República

Velha, continuado pelos modernistas de 1922 e redefinida pelos movimentos de esquerda

dos anos sessenta e pelo próprio Cinema Novo. Essa redefinição do conceito de cultura

popular é traduzida em termos de consciência da realidade nacional e de embates contra o

imperialismo.

2.1 Do Romance Social de Trinta

O mundo, no final da segunda década do século XX, conheceu uma grave crise

econômica cujo ponto elevado foi a quebra da bolsa de valores de Nova York, no ano de

1929. A tensão social decorrente dessa crise econômica indiretamente desencadeou, na

literatura, o surgimento de um realismo diferente daquele de outrora, do final do século

XIX: o realismo crítico. No Brasil, havia um cenário de amplas mudanças. Os setores

médio-urbanos, representados pelos tenentes, reclamavam maior participação política,

posto que, há séculos, essa se concentrava nas mãos da aristocracia rural. A ascensão

política de Getúlio Vargas, através da revolução, marca a virada política e econômica no

país. No campo das artes, as transformações surgem com o movimento modernista de

1922.

Para Abdala Júnior (1993, p. 10), na América do Norte, o realismo crítico ou

neo-realismo está intimamente associado às obras literárias de autores como Ernest

Hemingway, John Dos Passos, William Faulkner, John Steinbeck, Erskine Caldwel e

outros. Na Itália, do mesmo modo, está associado aos escritores Cesare Pavese, Élio

Vittorini e Alberto Moravia. Na Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola, vinculou-se a

Federico García Lorca e Miguel Hernández, ao passo que, na América Espanhola, associa-

se ao guatemalteco Miguel Angel e ao cubano Alejo Carpentier.

A publicação, em 1928, de A Bagaceira, obra do escritor e político paraibano

José Américo de Almeida, inicia uma nova fase da literatura nacional, que alguns críticos

denominaram de Neo-Realismo e outros, de Neo-Regionalismo, sendo que a nomenclatura

Page 31: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

31

que fez com que essa fase se tornasse amplamente conhecida foi Romance de trinta. Para

Dacanal (2001, p.13),

o Romance de 30 foi a denominação dada, não se sabe quando nem por quem – a um conjunto de obras de ficção escritas no Brasil a partir de 1928, ano da primeira edição de A bagaceira, de José Américo de Almeida, o qual, como está implícito, integra o grupo de autores obviamente qualificados de romancistas de trinta.

Além de José Américo de Almeida, integram o Romance de 30 escritores como

Graciliano Ramos, Jorge Amado, Erico Veríssimo, José Lins do Rego, Cyro Martins,

Rachel de Queiroz, Ivan Pedro Martins, Aureliano de Figueiredo Pinto e outros. Todavia,

como afirma o crítico Wilson Martins3, no tocante à história da literatura, “é feita de

exclusões e se define tanto pelo que recusa e ignora quanto pelo que aceita e consagra”.

Assim, é possível, àqueles nomes, acrescentar outros. Quase todos os escritores citados, é

patente, escreveram obras com temas voltados para a realidade agrária, valendo-se da

técnica da verossimilhança realista, de uma narrativa linear (correspondência cronológica

dos fatos narrados), do emprego dos códigos de linguagem culta (tanto para o narrador

como para os personagens), da fixação da estrutura histórica (os personagens integram essa

estrutura, geralmente agrária), da perspectiva crítica frente à estrutura histórica descrita e

de certo otimismo. Para Dacanal (2001, p.19), esse otimismo pode ser classificado como

ingênuo porque, no Romance de 30,

a miséria, os conflitos e a violência existem, mas tudo isto pode ser solucionado, principalmente porque o mundo é compreensível. E, portanto, reformável, se preciso e quando preciso. Basta a vontade dos indivíduos e/ou do grupo para que a consciência, que domina o real, o transforme. Esta fé na possibilidade de apreender o mundo, esta inocência para a qual não há clivagem entre o real e o racional, e vice-versa, é um dos elementos característicos do romance de 30.

Devido ao engajamento político declarado de alguns romancistas, como Jorge

Amado e Graciliano Ramos, no Partido Comunista Brasileiro, alguns leitores apressados

chegaram a afirmar que esses romancistas teriam escrito apenas obras panfletárias, o que

não se tem confirmado de acordo com grande parte da crítica literária no Brasil.

Sobre o Romance de 30, Gilberto de Mendonça Telles, no artigo A Crítica e o

Romance de 30 no Nordeste, ao passar em revista as manifestações da crítica sobre esse

movimento da literatura nacional, tráz à tona as palavras esclarecedoras de Wilson

Martins: “O romance do Nordeste em geral (que dominará a literatura brasileira em todo

esse período) é mais romance de paisagem que do homem, e mais o do ‘coro’ que o do 3 Ver a “introdução” de O modernismo, v. I, da coleção Literatura brasileira, de Wilson Martins, 2002, p. 9.

Page 32: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

32

herói. Romance de grupo, sem relevo individual, sua natureza anda mais próxima do

folclore que da literatura (mas é o folclore contemporâneo, não o folclore mitológico de

Macunaíma)”.4

O romance de 30 trouxe de volta para a literatura, agora sob um olhar crítico,

de denúncia e de intervenção, e não mais de descrição tão somente, os personagens

marginalizados dos setores de nossa sociedade rural, mas não apenas dela. Para Stegagno-

Picchio (2004, p.523), o novo compromisso dos anos 1930 elege, sobretudo, a prosa: de

um lado, social e regionalista, de outro, introspectiva e urbana. Uma série de fatores,

ligados à “invenção do Nordeste”, contribuiu para o estabelecimento de uma literatura, de

um romance social do Nordeste. Dentre esses fatores-estímulos, Stegagno-Picchio (2004,

p. 524) aponta aqueles que considera os mais relevantes ou imprescindíveis:

O romance do Nordeste tem como estímulo imediato a lição de Gilberto Freire e o Manifesto Regionalista expresso pelo Congresso de Recife de 1926, embora publicado em 1952. É daí que parte a nova geração de ficcionistas nordestinos, atrás dos quais se encontra, porém, toda a literatura do Norte, aberta em 1876, por O Cabeleira de Franklin Távora, e todo o nativismo naturalista e a seguir o parnasianismo da “Padaria Espiritual” de Fortaleza (1892-1913), da qual tinham saído escritores como Oliveira Paiva, Rodolfo Teófilo, Capistrano de Abreu, Clóvis Bevilacqua, Antônio Sales e Adolfo Caminha. Uma tradição de fidelidade à terra e aos problemas do homem sentidos interdisciplinarmente, mas numa dimensão que a literatura e as artes visuais, política e urbanística, arte culinária e magia, música e artesanato, se tornam, todos, singular e coletivamente, ramo de ação social e instrumento de interpretação sociológica. Algo que nas intenções desejava ser muito diferente, mais sério e “comprometido” do que o nativismo estetizante e irônico do Modernismo paulista: que no seu ativo, porém, tinha todas as conquistas instrumentais, interdisciplinariedade em primeiro lugar, e expressivas daquele movimento. José Lins do Rego, que no sistema funcionará um pouco como interprete literário e o popularizador do pensamento científico de Gilberto Freire, dirá: Por este modo o Nordeste absorvia o movimento moderno, no que este tinha de sério. Queríamos ser do Brasil, sendo cada vez mais da Paraíba, de Recife, de Alagoas, do Ceará.

Pedagogicamente, o Romance de 30 postulava um regionalismo diferente do

regionalismo naturalista de antanho. Queria um regionalismo moderno, um regionalismo

objetivo, capaz de revelar, simultaneamente, nacionalismo e universalismo através das

práticas discursivas e de narrativas sociais que tomassem a região como um espaço natural.

Para alcançar esse desiderato, os romancistas voltam o seu olhar para o passado da região

Nordeste, região onde supostamente estaria a identidade cultural do brasileiro.

O Romance de 30, com sua narrativa social, não apenas descreve a região

Nordeste, mas, de certo modo, a institui. Albuquerque Júnior (2006, p. 107) afirma que, na

4 TELES, Gilberto de Mendonça. O romance de 30 no Nordeste. A crítica e o romance de 30 no Nordeste: Wilson Martins. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983, p. 117.

Page 33: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

33

verdade, essa literatura, longe de representar apenas este objeto, participa de sua invenção,

de sua instituição. A maior receptividade do Romance de 30 se deu entre as camadas

médias urbanas, que, motivadas pelo espírito de nacionalidade, tinham interesse em

conhecer os principais problemas do país. Para Albuquerque Júnior (2006, p.110), aquela

camada, considerando-se “moderna, culta, urbanizada, civilizada”, tem enorme curiosidade

em relação ao “exótico, ao rústico”, até como forma de marcar sua diferença, além de se

interessar pelo conhecimento de “nossos problemas, de nossas angústias, de nossas

misérias”.

Não apenas no Brasil, com o Cinema Novo, mas também noutras regiões do

mundo, como na América do Norte e na Europa, o cinema aproveitou-se do potencial

pedagógico da literatura de expressão neo-realista para realizar filmes com forte pendor

crítico, visivelmente influenciado pela estética do cinema Neo-Realista italiano. A título de

exemplificação, cito John Steinbeck, que teve vários de seus romances adaptados para o

cinema, entre eles, Vinhas da Ira, que é, dentre suas obras literárias, uma das mais

expressivas, e que fora levado às telas do cinema pelo cineasta John Ford, no ano de 1944.

No Brasil, na década de sessenta do século passado, Graciliano Ramos e José

Lins do Rego tiveram algumas de suas obras adaptadas para a linguagem do cinema. É o

caso de Vidas Secas, por Nelson Pereira dos Santos (1963), Menino de Engenho, por

Walter Lima Júnior (1965), respectivamente. Não é à toa que o Cinema Novo,

especialmente em sua primeira fase, tem, como uma de suas fontes temáticas referenciais,

aquelas imagens de Nordeste trabalhadas pelo Romance de 30.

2.2 Linguagem e Tradução – Do Romance ao Cinema

Ao abordar um texto fílmico originado de um texto romanesco, faz-se

necessário o esclarecimento prévio de algumas questões relacionadas à linguagem

cinematográfica e ao processo de tradução, ainda que em breves traços.

Por tradução, pode-se entender o ato de verter qualquer texto originalmente

produzido no bojo de um sistema de comunicação verbal para um sistema de comunicação

visual ou híbrida (contendo mais de uma linguagem), ou seja, de um sistema de linguagem

simbólica para um sistema de linguagem iconográfica. Na tradição dos estudos semióticos,

afirma-se que algumas das principais dificuldades do processo de tradução surgem devido

ao modo como são agenciadas as informações em relação ao sistema significante de que se

dispõe.

Page 34: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

34

Randal Johnson (1982, p.5), amparado no pensamento de Roman Jakobson,

afirma que a informação estética é uma mensagem com uma função “poética”, ou seja, é

uma mensagem estruturada ambiguamente em termos de convenções ou do código ao qual

pertence. Max Bense, antes de Jakobson, acreditava que o discurso estético é muito

diferente do discurso documentário e da informação semântica, pois estes últimos podem

ser codificados e transmitidos de várias maneiras; já o sentido estético pode ser codificado

apenas da maneira como foi elaborado pelo artista, pois é inseparável de sua forma

significante. Em outros termos, qualquer tradução de um discurso estético sempre implica

grandes perdas e transformações semânticas.

Reflexões dessa natureza dão ensejo ao surgimento de teses sobre a

intraduzibilidade literal da informação estética. O poeta e crítico literário Haroldo de

Campos, por exemplo, propõe uma saída a partir da concepção de uma teoria da tradução

como recriação crítica. A informação estética, segundo esse pensador, quando traduzida

numa linguagem diferente, mantém, noutra língua ou noutro meio de comunicação, uma

relação de isomorfia com o sistema da obra de onde se originou. Nessa mesma linha de

raciocínio, Randal Johnson (1982, p.6) afirma que, para realizar uma tradução recriativa, o

tradutor precisa antes submergir criticamente na obra traduzida. Assim, além de ser um ato

de recriação, a tradução é também uma leitura crítica da obra original.

Como se perceberá ao longo das análises propostas no presente estudo, mesmo

quando segue, de modo praticamente linear, as seqüências narrativas da obra literária que

lhe serve como referência, um texto fílmico bem sucedido jamais deixa de recriar, em

maior ou menor grau, a linguagem narrativa a partir dos recursos próprios do sistema

cinematográfico em que está inserido. Em outros termos, um texto fílmico, ainda que tenha

sido produzido a partir da tradução de um texto literário, é sempre um texto autônomo,

sobretudo quando diverge do texto que lhe serviu de referência.

Por outro lado, não se pode negar que existe uma grande afinidade entre textos

romanescos e suas traduções fílmicas, pois o elemento estrutural mais fundamental de

ambas essas linguagens é o código narrativo. Esse compartilhamento é possível porque o

código narrativo é translingüístico, podendo ocorrer em vários tipos de linguagem, como,

por exemplo, na linguagem verbal do romance ou na linguagem visual do cinema. Tzvetan

Todorov, alinhado com o formalismo russo, ajuda a pensar essa questão a partir da

distinção entre aquilo que denomina “história” (narrativa) e “discurso” (a maneira como a

história é realizada pelo narrador). Para os cinemanovistas, a maneira como as seqüências

Page 35: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

35

narrativas são dispostas é fundamental no momento da tradução e, conseqüentemente, da

realização de textos fílmicos engajados política e culturalmente.

Para solucionar os problemas de tradução de um romance para um filme, Randal

Johnson (1982, p. 8) apresenta duas soluções possíveis apontadas por Jean Mitry: 1) seguir a

estória passo a passo e traduzir não a significação das palavras, mas as coisas referidas pelas

palavras (neste caso, o filme é ilustração do romance); 2) repensar o assunto na íntegra,

dando-lhe outro desenvolvimento e outro sentido. O Cinema Novo, especialmente na sua

fase inicial, ao adotar o romance social de trinta como fonte textual, enfrentou vários

problemas relativos às mudanças de um sistema de signos verbais para um sistema de signos

não verbais, sendo que, dentre as soluções apontadas por Johnson, sua tendência vai na

direção da segunda alternativa.

Assim como os demais cineastas envolvidos com o Cinema Novo, Glauber

Rocha, ao realizar seu Deus e o Diabo na Terra do Sol, opta pela segunda solução, pois

traduz e recria, senão direta, pelo menos indiretamente, muito das narrativas de romances

como Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953), de José Lins do Rego, além de obras da

literatura popular do Nordeste. Nelson Pereira dos Santos, por sua vez, segue um caminho

um pouco diferente, pois sua versão de Vidas Secas, em uma primeira leitura, não parece

destoar ou divergir tanto da narrativa original, buscada no romance homônimo de

Graciliano Ramos. A crítica nacional é muito enfática ao afirmar que Vidas Secas é a mais

perfeita adaptação de um texto romanesco para um texto fílmico realizada no cinema

brasileiro, sendo que o adjetivo “perfeita” é empregado para destacar o grau de

correspondência entre os aspectos diegéticos do texto fílmico e do texto romanesco.

Tanto o modo discursivo como os códigos cinematográficos elaborados pelo

Cinema Novo estão diretamente ligados ao fato de que em seus filmes, Glauber Rocha e

Nelson Pereira dos Santos pretendem realizá-los de maneira quase artesanal, o que se

explica pela postura política de ruptura com o modo discursivo e os códigos

cinematográficos do cinema industrial. Assim sendo, os códigos de montagem e de

movimento da câmara se tornam centrais para a estética do Cinema Novo, criando efeitos

de sentido que acompanham e se sobrepõem à própria seqüência narrativa.

A câmera em movimento, associada aos cortes de montagem cinematográfica,

faz com que o espectador seja chamado a uma certa interação, pois, através desses efeitos,

o ângulo de visão e perspectiva do espectador mudam dentro de uma mesma cena. Para

Randal Johnson (1982, p.25), “a montagem pode ser definida como o corte e a

reorganização sintagmática de material filmado. É um processo externo de intervenção

Page 36: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

36

sobre tal material”. Não desprezando outros códigos cinematográficos, mas realçando os

códigos de Câmera e de montagem cinematográfica, o Cinema Novo foi capaz de realizar

traduções críticas e articular discursos fílmicos, pedagogicamente engajados na perspectiva

do pensamento marxista, ao mesmo tempo em que criou uma linguagem estética própria.

Assim sendo, mesmo que siga, em termos de história, as seqüências narrativas do romance

Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a obra de Nelson Pereira dos Santos realiza uma

recriação da linguagem romanesca, principalmente através de recursos de câmera e de

montagem, dessa forma, alinhando-se ou, talvez, ajudando a criar uma linguagem ou uma

estética própria do Cinema Novo.

2.3 O Cinema Novo no Brasil – Uma Pedagogia Cultural Militante

Se a intenção dos cinemanovistas, a partir do que Glauber Rocha denominou

de estética da fome, era levar adiante um projeto de cinema nacional inteiramente livre,

tanto do ponto de vista econômico como formal, quanto à influência da tradição e dos

modelos vindos de fora, em especial do modelo do cinema industrial, entendo que não é

possível falar do Cinema Novo sem fazer uma referência a três antecedentes culturais

significativos: a Nouvelle Vague, o Neo-Realismo italiano e a Montagem Soviética.

Para Manevy (2006, p. 221), a Nouvelle Vague foi um movimento cultural do

cinema francês que aconteceu no interregno dos anos de 1950 e 1960 e que se caracterizou

como um laboratório da estética do fragmento, da incorporação do acaso na filmagem, da

polifonia narrativa bem como do uso de formas atribuídas ao documentário, às artes

visuais, ao ensaio e à literatura. Realizada por jovens de aguda visão crítica do cinema,

como François Truffault, Eric Rohmer, Claude Chabrol e Jean-Luc Godard, a Nouvelle

Vague traduz a plena afirmação de um cinema autoral com ampla liberdade para adaptar

textos literários à linguagem cinematográfica. Quanto ao Neo-Realismo, parece-me válido

dizer que é um produto cultural do pós-guerra italiano que se disseminou pelo mundo.

Acerca do que de fato seja o Neo-Realismo, há várias controvérsias envolvendo críticos de

cinema e cineastas italianos. As principais divergências giram em torno dos supostos

filmes que teriam desencadeado o Neo-Realismo italiano e dos seus aspectos técnico-

estilísticos. Sobre essa questão, Fabris (2006, 205) traz o posicionamento do cineasta

Vittorio De Sica:

o neo-realismo não foi uma escola nem um movimento e, se é possível reconhecer uma certa unidade nessa tendência cinematográfica, não é tanto “pelo

Page 37: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

37

estilo”, muito variável dependendo dos realizadores, mas por sua orientação no sentido da atualidade social e de estudo do povo italiano no decorrer do pós-guerra.

Polêmicas à parte, importa saber que o Neo-Realismo italiano, no período que

se estende de 1945 a 1952, através de nomes como Roberto Rossellini, Vittorio De Sica,

Luccino Visconti e outros cineastas, destacou-se como uma das mais influentes vertentes

de renovação do cinema moderno. Os cinemanovistas brasileiros apoderaram-se de muitas

características técnico-estilísticas do Neo-Realismo italiano e deram, ao cinema brasileiro,

um tom diferenciado em relação ao modelo de cinema hollywoodiano: filmagens em

cenários reais, a montagem cinematográfica, o uso de atores não profissionais, orçamentos

módicos e a recusa de efeitos visuais.

No Brasil, o Cinema Novo integra um amplo movimento de cultura popular

dos anos sessenta do século passado cujo propósito era promover a descolonização da

cultura brasileira, que, no tocante ao cinema, continuava fortemente influenciada pelo

modelo de produção hollywoodiano. Os anos sessenta do século vinte foram marcados por

intensa agitação no cenário político, social e cultural do país. Para Avellar (1995, p.107),

os anos sessenta estiveram,

entre a mobilização da sociedade pelas reformas de base, a participação dos estudantes na vida política, as ligas camponesas, a movimentação da arte cultura para inventar novas formas de pensar o país, entre a Bossa Nova, a História Nova, o Opinião, o arena, entre Jânio e as forças ocultas, entre Jango e os Militares, entre a Revolução Cubana e o subdesenvolvimento, entre o CPC, o Centro Popular de Cultura, e o CCC, Comando de Caça aos Comunistas, enfim entre deus e o diabo...

Os movimentos culturais populares dos anos sessenta, em sua maioria urbanos

e ligados à classe média, traziam, em seu bojo, ressonâncias de outro movimento cultural

anterior, o Movimento Modernista, iniciado em São Paulo no ano de 1922. Johnson (1982,

p.44) informa que, “para os modernistas de 1922, o Brasil, ocupado culturalmente por

modelos (mentais e físicos) europeus e norte-americanos, não conseguiu desenvolver seu

próprio ser psíquico independente, ou, como diria Mário de Andrade, seu próprio caráter”.

Para os cinemanovistas, o mercado interno estava dominado por filmes

estrangeiros, mormente os hollywoodianos, que não tinham compromisso para com a

realidade nacional. É possível afirmar que a estética do Cinema Novo mantém relações

próximas, considerando-se os motivos ideológicos (político-sociais), com a segunda fase

do Modernismo, e não tão próximas com os projetos estéticos da primeira fase modernista,

Page 38: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

38

cujo fim, primeiro ou último, era romper com as formas literárias da tradição e adotar as

técnicas literárias das vanguardas européias. Para Albuquerque Júnior (2006, p.273),

o Cinema Novo retoma a problemática modernista da necessidade de conhecer o Brasil, de buscar suas raízes primitivas, de desvendar o inconsciente nacional por meio de seus arquétipos para, a partir deste desvendamento, didaticamente ensinar ao povo o que era o país e como superar a sua situação de atraso, agora nomeado subdesenvolvimento, e de dependência externa. Era um ideário confuso em que se misturavam chavões ideológicos da esquerda e enunciados nacionalistas. O Cinema Novo se propõe, portanto, a ser uma retórica de conscientização, de estabelecimento do que era a realidade nacional, superando nossa alienação, descobrindo nosso inconsciente sob os recalques produzidos por séculos de dominação colonial. O cinema deveria, nessa perspectiva, voltar-se para a abordagem de temáticas nacionais e populares, que mostrassem, de forma realista e pedagógica, os nossos problemas estruturais, descobrindo racionalmente os elementos mais significativos das relações sociais.

Os cinemanovistas compartilhavam, com os modernistas da segunda fase –

especialmente aqueles identificados com o Romance de 30 –, o propósito de denúncia da

realidade nacional através da literatura. Essa proximidade é tamanha que muitos dos filmes

produzidos pelos cinemanovistas são adaptações de romances de escritores da segunda fase

modernista, como as obras de Graciliano Ramos e de José Lins do Rego, entre outras.

Albuquerque Júnior (2006, p.265-266) deixa claro que,

não tendo uma produção imagética capaz de se auto referenciar, o cinema recorrerá às imagens e enunciados cristalizados sobre o país, sobretudo pelo romance, para produzir o efeito de verossimilhança desejável para que o público tenha referências anteriores e possa identificar de que realidade o filme está falando. Os filmes com a temática nordestina, por exemplo, quando não são adaptações para o cinema de romances produzidos pela geração de trinta, buscarão nesses romances suas imagens e enunciados mais consagrados, com exceção apenas da produção de Glauber Rocha e outros filmes isolados do Cinema Novo, que procurarão criar uma imagem própria para esta região do Brasil.

Ao redirecionar a visão realista da segunda fase modernista, o Cinema Novo,

de certo modo, superou o que ainda restava da visão naturalista, que predominava na

construção das espacialidades do cinema nacional. Para Albuquerque Júnior (2006, p.272-

273),

o Cinema Novo terá um desenvolvimento oposto ao modernismo. Enquanto este passou de uma estética não-realista, na década de vinte, para uma estética realista, na década de trinta, o Cinema Novo parte de uma mimese realista, no início da década de sessenta, para, ao longo dessa mesma década, abandonar tal postura. Abandona-se, paulatinamente, uma linguagem simbólica para se adotar uma linguagem alegórica, na qual a postura racionalizante anterior dá lugar a uma visão mágica e mítica do concreto.

Page 39: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

39

O Cinema Novo popularizou-se no cenário nacional com o filme Os Cafajestes

(Ruy Guerra, 1962). No entanto, para muitos críticos de cinema, o estopim dessa nova

estética cinematográfica foi aceso um pouco antes, já na década de cinqüenta, quando o

cineasta Nelson Pereira dos Santos realizou Rio 40 Graus e Rio, Zona Norte, filmes que

dão início a uma ruptura, a um deslocamento quanto aos padrões cinematográficos

brasileiros. Outros críticos preferem associar a estréia do movimento do Cinema Novo a

dois fatos isolados: o lançamento de alguns filmes na Convenção de Crítica

Cinematográfica, realizada pela Cinemateca Brasileira, na cidade do Rio de Janeiro, no ano

de 1960, e alguns artigos publicados na imprensa. Para Albuquerque Júnior (2006, p.271-

272), “o movimento é nomeado e lançado por três artigos escritos e publicados em jornais

neste ano, um de Glauber Rocha, impresso em jornais da Bahia e no Jornal do Brasil, e os

de Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernadet, no Suplemento de O Estado de S. Paulo”.

Quanto à projeção internacional do Cinema Novo, pode-se dizer que não

tardou, consagrando-se principalmente com os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol

(Glauber Rocha, 1964), Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Os Cafajestes

(Ruy Guerra, 1962), exibidos e/ou premiados em festivais de cinema fora do Brasil

(Festival de Cinema de Mar del Plata, Festival de Cannes, Festival de Cinema de Acapulco

etc).

Deliberadamente, o Cinema Novo pretende unir arte e política com a

pretensão de fazer do cinema um instrumento pedagógico de conhecimento e de

intervenção na realidade nacional. Sua nova estética pretendia revitalizar e modernizar o

cinema nacional e, ainda, pôr em prática a proposta de um cinema popular e

revolucionário5, o que, noutros termos, significa explorar temas alicerçados naquilo que se

compreendia como realidade brasileira, através de um discurso de esquerda. Nesse sentido,

foram priorizadas temáticas como o próprio Nordeste, a raça, a seca, a pobreza, a

resistência, a violência, a migração, o fanatismo, entre vários outros. Para Albuquerque

Júnior (2006, p,273-274),

o Cinema Novo se assumirá como um discurso político com uma estratégia social definida. Um cinema feito por intelectuais de classe média que teriam adotado a perspectiva de classe do operariado, que se colocavam ao lado das forças “progressistas” contra as “reacionárias”, que buscavam resgatar o potencial de rebeldia da cultura popular. Paternalisticamente, propõem-se a fazer cultura para e pelo povo, construir uma vanguarda na luta contra o latifúndio e o imperialismo, identificados como os principais obstáculos a um desenvolvimento autônomo do país.

5 Popular no sentido de um cinema antiburguês.

Page 40: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

40

Entre os cinemanovistas, devido à sua larga e intensa atividade intelectual,

tornou-se figura de proa o cineasta Glauber Rocha. Todavia, os representantes desse

movimento eram unânimes em proclamar o cineasta Nelson Pereira dos Santos como o

líder espiritual do Cinema Novo brasileiro6. Por outro lado, de imediato, a recepção do

Cinema Novo não foi das melhores, por uma série de fatores. Houve problemas de ordem

técnica, má distribuição das películas e um modo de endereçamento que deixava de fora as

camadas médias da população brasileira, que não estavam tão habituadas a apreciar filmes

esteticamente fora dos padrões hollywoodianos. Ainda assim, os protagonistas do Cinema

Novo apostavam na ação pedagógica desse modo de fazer cinema como um instrumento

eficaz para remover a alienação das camadas populares do país.

Ironicamente, o Cinema Novo foi projetado em cines clubes para um público

pequeno e seleto, que não assumiu o papel de intelectual orgânico perante as classes

populares, como era esperado pelos diretores e cineastas entusiasmados. Albuquerque

Júnior (2006, p.275) ressalta que muitos intelectuais de esquerda, ligados ao Partido

Comunista e aos Centros Populares de Cultura da UNE, teceram, em face do que diziam

ser a debilidade do Cinema Novo, severas críticas às suas produções, que abarcavam

diferentes aspectos, principalmente o hermetismo da sua linguagem e o aspecto

individualista do cinema autoral, contrário à idéia de um cinema revolucionário feito por

órgãos supostamente representativos da classe operária e do movimento popular.

Longe de estabelecer uma conexão transparente entre os signos e seus

referentes, o Cinema Novo se posicionou politicamente ao escolher e destacar

representações sociais conflitantes. O sertão, com seus tipos sociais, mostrado em filmes

como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas, não surgiu de conexões desmotivadas

entre a linguagem e a realidade social. A imagética do sertão parte de práticas discursivas

instituidoras que precedem à concepção desses filmes. Ainda que tenha utilizado, em seus

filmes, alguns padrões imagéticos naturalistas, o Cinema Novo conseguiu superá-los, em

certa medida, ao buscar na razão-política, e não na razão-naturalista, as motivações para

explicar a situação daquela paisagem de cactos, de sol intenso, de morte, de migração, de

alienação, de violência, de fanatismo, de atraso, de abandono, em suma, daquilo que era

compreendido como irracionalismo.

6 Glauber Rocha, além de crítica e ensaio, escreveu poesia, teatro, romance e deixou roteiros de filmes e

desenhos. Toda a sua produção acha-se arquivada no Tempo Glauber, na cidade do Rio de Janeiro.

Page 41: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

41

Muitas das representações imagético-discursivas articuladas nesses dois textos

fílmicos já estavam presentes em ensaios sociológicos de Euclides da Cunha e nas

narrativas literárias de autores vinculados ao regionalismo moderno, mais especificamente,

ao Romance de 30. Fora isso, em consonância com o pensamento de Foucault (2002, p.26-

27), pode-se dizer que várias delas também resultam de práticas e discursos classificados

como circulantes: “conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos que

necessitam de signatário, mas não exatamente de autor, receitas técnicas transmitidas no

anonimato”.

Os cineastas Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, embora tenham

aproveitado, como fontes, imagens ou textos identificados com o Romance de 30,

apresentam-se como autores das narrativas apresentadas ao público em seus filmes, pois

entendiam que o filme é um texto e, portanto, deve ser compreendido “em si” e “por si”,

não sendo, portanto, necessário prestar conta de suas fontes imagéticas ou textuais. Com

essa atitude, os cinemanovistas desmistificaram a idéia da originalidade autoral, que, diga-

se de passagem, não apenas no tocante ao cinema, é uma questão bastante presente nas

discussões mais contemporâneas. Um dos filósofos ligados ao pensamento pós-moderno a

discorrer nessa perspectiva é Michel Foucault (2002, p.26): “O autor, não entendido, é

claro, como um indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como

princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como

foco de sua coerência”.

Nesse sentido, quando se fala de cinema autoral, importa menos a suposta

originalidade das tramas e enredos mobilizadas e mais a independência frente a certos

códigos estabelecidos pela tradição. De acordo com Xavier (2007, p.76),

cinema de autor significa, ao mesmo tempo, independência frente aos mecanismos burocráticos da produção, independência frente às convenções do filme narrativo usual e independência ideológica frente à censura temática da indústria. O autor rebela-se contra o capital, reivindica a expressão pessoal contra a comunicabilidade-rentabilidade a todo custo. Monta seus próprios esquemas de financiamento, via-de-regra, torna-se produtor e, na base dos baixos orçamentos, tenta dar viabilidade ao projeto, dentro das condições em geral adversas, por diferentes motivos.

Ao levar adiante aquilo que acreditavam ser um cinema autoral, os

cinemanovistas articularam ou rearticularam representações culturais constantes em

diversas práticas e gêneros discursivos, ressignificando-as na linguagem audiovisual do

cinema. Glauber Rocha, por exemplo, usa diversas estratégias estético-cinematográficas.

Page 42: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

42

Ao seu modo, o cineasta trabalha com a montagem einsteineana, com o teatro épico grego

e com o teatro brechtiano, cuja tônica é a técnica de atuação que favorece a atividade do

espectador graças ao caráter demonstrativo do jogo do ator. 7 Nelson Pereira dos Santos,

por sua vez, em Vidas Secas, optou por não ser tão gongórico como Glauber Rocha. Fez

um filme mais linear, marcado por uma seqüência de episódios que, em lugar da rebeldia,

mostra as contradições e o processo de submissão do homem, de um vaqueiro do sertão e

sua família, em uma sociedade rural pré-capitalista. Procura mostrar visualmente o que o

marxismo denomina de materialismo histórico, ou seja, o processo de trabalho como fator

determinante no desenvolvimento da história humana e na produção e reprodução da vida

social.

Não tinha Glauber Rocha, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, ao enfocar o

universo de beatos, de cangaceiros e de vaqueiros, a menor intenção de fazer apologia ao

misticismo, à violência ou ao folclore da região. Antes, sua intenção era demostrar, numa

realidade dada, aquilo que considerava como o motor da história: o potencial de rebeldia e

de força com que o colonizado promove a negação do colonizador através de atos de

violência, ainda que desordenados.

Como os romancistas de trinta, também os cinemanovistas acreditavam

piamente na superação da miséria a partir da superação da alienação, das antigas estruturas

sócio-culturais e da implantação, por parte de um movimento organizado ou por um

partido identificado com as classes espoliadas, de um programa político-econômico e

cultural sistemático. Sobre o caráter anárquico e/ou ordenado das revoluções, Anderson

(2005, p. 212), amparado no pensamento de Hobsbawm, afirma que a mais famosa das

revoluções modernas, a Revolução Francesa, não foi realizada e nem liderada por um

partido ou movimento organizado, considerando-se o sentido moderno destes termos. E

que a primeira revolução “planeada” de sucesso na história foi a dos bolcheviques.

Para os cinemanovistas e, especialmente, para Glauber Rocha, a resistência

anárquica e a violência desordenada de beatos, de cangaceiros e de vaqueiros não era

somente violência-violência ou miséria-miséria, mas, sobretudo, era a expressão

pedagógica de uma estética da fome, quer seja a fome do Brasil ou a fome da América

Latina. Na concepção estética de Glauber Rocha, através da estética do feio e do disforme,

o mundo conhecerá a gravidade da realidade social de um Nordeste arcaico, metafísico e

mítico.

7 PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro – brechtiano. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 34.

Page 43: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

43

Para Albuquerque Júnior (2006, p.289), a estética da fome, de Glauber Rocha,

estabelecia que “a violência era a expressão do ser dominado, a única força

desencadeadora da história, a única forma de quebrar a rotina. Ela era, portanto, uma

pedagogia, um aprendizado de como lutar pela mudança, e também uma estética, uma

forma de fazer falar e ver uma dada realidade sem verbo, uma forma de comunicar a

verdade cruel da sociedade burguesa.” Nele, o poder é visto de forma negativa, como

instância produtora de violência que se deve combater com violência, mas em sentido

contrário. A resistência e a revolta são vistas por Glauber como o avesso do poder e,

portanto, não fazem parte de sua própria trama. Para os cinemanovistas, que eram

materialistas históricos, a violência não era uma essência vinculada a questões de clima ou

miscigenação, como acreditavam os naturalistas. Ela estava associada às contradições de

um sistema econômico desigual, onde as classes estavam situadas num espaço disputado

de poder.

Numa tentativa de sistematizar as produções realizadas sob o rótulo do Cinema

Novo, Johnson (2000, p.81) afirma que “é cabido dizer que ele foi um movimento

contínuo, mas didaticamente é possível dividi-lo em três fases marcantes da vida política

brasileira, 1960-1964; 1964-1968 e 1968-1970”. Os filmes tomados como objeto desta

pesquisa surgiram na sua primeira fase, marcada por um compromisso deliberado com o

realismo do romance social dos anos trinta. Por outro lado, no que toca especificamente à

linguagem cinematográfica, embora as referências realistas vinculem-se à estética do Neo-

Realismo italiano, a Nouvelle Vague e a Montagem Soviética, colocam sua ênfase no

subdesenvolvimento do Brasil e da América Latina. Para Johnson (1982, p.83), “esses

filmes traduzem aquilo que seus diretores compreendem por realidade brasileira, isto é, a

miséria e a exploração resultantes do subdesenvolvimento do país”. A segunda fase está

muito centrada no desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica descolonizada. O

filme Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) é bastante ilustrativo da segunda fase. Já a

terceira e última fase, por sua vez, mantém um vinculo ideológico forte com o pensamento

antropofágico de Oswald de Andrade, sendo que o filme mais representativo desse período

é Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1967).

Por fim, que o Cinema Novo tenha dialogado com o Movimento Modernista e

que tenha explorado temas de nossa realidade, parece algo já bastante mencionado. Porém,

no que toca à questão do nacionalismo, é necessário esclarecer que os cinemanovistas se

afastaram visivelmente dos modernistas. Para eles, sobretudo para Glauber Rocha, a

estética da fome não tinha, entre seus propósitos, estabelecer um sentimento capaz de

Page 44: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

44

transceder as classes sociais e seus conflitos. Para Glauber Rocha, a miséria do Nordeste

não se distingue da miséria da América Latina ou da miséria de qualquer outra nação que

tenha sofrido as agruras de um processo de colonização no passado.

Esse olhar de desconfiança para com o fervor nacionalista que tanto atraiu

alguns dos modernistas foi impulsionado principalmente pela interpretação marxista que

vários intelectuais brasileiros de esquerda adotavam da realidade. Pelo menos, esse parece

ter sido o caso dos cineastas que fizeram o Cinema Novo no Brasil – eles tinham senão

uma formação, pelo menos uma visão marxista da realidade, o que os afastou da euforia

nacionalista promulgada pela ideologia integralista, utilizada como suporte intelectual, por

exemplo, do movimento Anta, vinculado ao Modernismo Brasileiro.

2.4 Representação e Identidade Cultural

No período que se convencionou chamar, no campo filosófico, de Modernidade

- abrangendo os séculos XVIII ao século XX - o sujeito autônomo cartesiano ocupou um

lugar central. Para melhor compreendê-lo, a Modernidade tratou de elaborar teorias

diferenciadas a fim de dar conta do sujeito cognoscente, tomando-o, geralmente, como um

ser congruente e, inclusive, como fundamento da própria filosofia. Com o declínio da

racionalidade moderna, iniciado a partir das reflexões realizadas por Nietzsche, o sujeito

deixa de ser visto como fundamento e passa a ser visto e discutido predominantemente no

contexto dos problemas ligados à representação e à identidade cultural.

Na contemporaneidade, sobretudo nas teorizações pós-estruturalistas, das quais

freqüentemente se aproximam os Estudos Culturais, as identidades culturais são

compreendidas em conexão com dois fatores principais, a saber, a representação e a

diferença. Para Santos (2006, p. 136), “a preocupação com a identidade não é, obviamente,

nova. Podemos dizer que a modernidade nasce dela e com ela”. Nessa mesma perspectiva,

Raymond Williams (p, 353) afirma que, no idioma inglês, o grupo de palavras em cujo

contexto o verbo “representar” é central remonta já ao século XIV.

Na perspectiva do presente trabalho, portanto, interessa, entre os muitos

sentidos ligados ao verbo representar, o significado empregado em análises culturais

recentes, ligado às “formas textuais e visuais através das quais se descrevem os diferentes

grupos culturais e suas características”8, visto que esse recorte permite conceber o

8 Ver Tomaz Tadeu da Silva. Teoria cultural e educação – um vocabulário crítico. In: representação. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 97.

Page 45: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

45

“vaqueiro” como uma identidade cultural múltipla, construída a partir das várias

representações culturais produzidas historicamente em contextos distintos, sempre

atravessadas por embates de poder. O enfoque aqui adotado está centrado sobre as

representações culturais construídas pelos filmes realizados no contexto do Cinema Novo,

sendo que tais filmes são compreendidos como “formas textuais e visuais” ou

“significantes”. Nesse sentido, Silva (2000, p. 97) esclarece que,

no contexto dos Estudos Culturais, a análise da representação encontra-se em sua expressão material como “significante”: um texto, uma pintura, um filme, uma fotografia. Pesquisam-se aqui, sobretudo, as conexões entre identidade cultural e representação, com base no pressuposto de que não existe identidade fora da representação.

Nessa mesma perspectiva, Hall (2003, p.13) afirma que, nos últimos anos, que

ele prefere chamar de Modernidade Tardia, registrou-se, em torno do conceito de

identidade, uma verdadeira explosão discursiva no mesmo instante em que esse conceito é

submetido a uma crítica minuciosa. Para Bauman (2003, p.40), um dos críticos desse

conceito, a identidade continua sendo, na Pós-Modernidade, o grande problema do sujeito,

mas não no mesmo enfoque dado pela Modernidade. Em seus termos,

A decir verdad, si el “problema moderno de la identidad” era como construirla y mantenerla sólida y estable, el “problema posmoderno de la identidad” es en lo fundamental cómo evitar la fijación y mantener vigente las opciones. En el caso de la identidad, como en otros, la palabra comodín de la modernidad fue “creación”; la palabra comodín de la posmodernidad es “reciclaje”.

A Pós-Modernidade, segundo Bauman, ou a Modernidade Tardia, segundo

Hall, vem promovendo deslocamentos que terminam por afetar diretamente a concepção

do sujeito. Para Hall (2003, p.14), “este descentramiento no requiere un abandono o una

abolición del “sujeto”, sino una reconceptualización: pensarlo en su nueva posición

desplazada o descentrada dentro del paradigma”. A partir de Hall (2003, p.15), pode-se

afirmar que, no tocante ao sujeito, um dos efeitos imediatos desse deslocamento é a

substituição do processo de identificação de base naturalista e historicista – segundo o qual

as coisas existentes no mundo material ou natural eram dotadas de características materiais

ou naturais que as constituíam, de um lado, ou de uma historicidade que as constituía, de

outro lado –, por outro processo, de base discursiva, onde o significado não é achado e sim,

construído através do discurso.

No momento da denominada “virada cultural”, há uma tendência, sobretudo no

âmbito dos Estudos Culturais, de ampliar a “extensão” e a “compreensão” do conceito

Page 46: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

46

“cultura” de tal modo que possam ser consideradas, como cultura, todas e quaisquer

práticas humanas dotadas de significado. Para Hall (1997, p.3-4), a produção do

significado surge em todos os momentos ou práticas do “circuito da cultura”, sendo que a

linguagem é um dos meios privilegiados através dos quais é produzido e por onde circula o

significado9.

O significado é produzido também no momento em que alguém se expressa,

faz uso ou consome algum produto cultural, dando-lhe valor ou significância. Há diferentes

formas de produção e de comunicação de significado, que também são linguagens, ainda

que não sejam escritas ou faladas. As linguagens funcionam através da representação, ou

melhor, através de sistemas de representação, o que, por sua vez, engloba as práticas

sociais, dado que elas estão inseridas sempre em redes que significam ou representam o

que se pretende comunicar. É através dos sistemas de significação, portanto, que se pode

assumir ou rejeitar uma identidade cultural determinada. Para Hall (1997, p.5), “é através

da cultura e da linguagem neste sentido que se dá a produção e a circulação do

significado”.

Stuart Hall procurou sintetizar as principais correntes quanto à questão da

representação a partir de três abordagens diferenciadas da linguagem: a abordagem

reflexiva, a intencional e a construcionista. Na abordagem reflexiva, prevalece o

entendimento de que as coisas “em si mesmas” são naturalmente dotadas de significados e

que a linguagem, qual um espelho, apenas reflete esses significados. Na abordagem

intencional, tem-se o entendimento de que são os usuários individuais da língua que

impõem ao mundo o significado único das coisas. Por fim, na abordagem construcionista,

sustenta-se a idéia de que nem as coisas, consideradas em si mesmas, tampouco os usuários

individuais da língua, podem estabelecer significados, pois esses são construídos

socialmente através de sistemas de representação – conceitos e signos. Dessa forma, o

autor desloca o fundamento da linguagem na medida em que afirma a centralidade do

discurso na cultura. Para Hall (1997, p.5),

discursos são formas de se referir ou construir o conhecimento acerca de um tópico particular da prática: o agrupamento (ou formação) de idéias, imagens e práticas, que proporcionam formas de falar, formas de conhecimento e conduta associadas a um tópico particular, a atividade social ou a localização social na sociedade. Estas formações discursivas, como são conhecidas, definem o que é e o que não é adequado em nossa formulação e em nossas práticas em relação a determinado assunto ou localização da atividade social; qual conhecimento é considerado útil, pertinente e

9 No sentido horário, integra o circuito da cultura: representação/identidade/produção/consumo/regulação. Tomando-se o sentido anti-horário, tem-se: representação/regulação/consumo/produção/identidade.

Page 47: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

47

“verdadeiro” nesse contexto; e que tipo de pessoa ou “sujeito” incorpora tais características. “Discursivo” tem se tornado o termo geral usado para se referir a qualquer abordagem em que o significado, a representação e a cultura sejam considerados constitutivos.

As reflexões de Stuart Hall acerca da centralidade do discurso têm amparo no

pensamento do filósofo Michel Foucault, um dos autores que argumenta em favor do

deslocamento da centralidade da “língua” para a centralidade do “discurso”. Na acepção

foucaultiana, discurso diz respeito tanto à definição e à produção dos objetos do

conhecimento como à regulação das idéias que são postas em circulação numa dada

sociedade ou simplesmente excluídas. Para Foucault, significado, prática significativa e

sujeito são construídos pelo discurso, pois, considerados em si, fora do discurso, não

possuem significado definido. Sobre como Foucault articula discurso e práticas discursivas

com a história, Hall (1997, p.38) afirma que, “longe de aceitar as continuidades trans-

históricas tão apreciadas pelos historiadores, Foucault acreditava que mais significativas

eram as rupturas e descontinuidades radicais entre um e outro período, entre uma e outra

formação discursiva”.

Outro fator importante no pensamento foucaultiano é o vínculo necessário que

ele estabelece entre o conhecimento (saber) e o poder. Em Foucault, o poder assume uma

nova forma: é disposto e exercido através de uma organização em rede. O poder é difuso,

permeia todos os níveis da existência social, de modo que, no pensamento de Foucault, não

há lugar para dicotomias tão simples como a divisão entre sujeitos opressores e oprimidos.

Para Hall (2003, p.19), a construção das identidades culturais é fortemente

marcada pela diferença, concebida como processo social discursivo, e pelo poder,

precisamente porque las identidades se construyen dentro del discurso y non fuera de él, debemos considerar-las producidas en ámbitos históricos e institucionales específicos en el interior de formaciones y prácticas discursivas específicas, mediante estrategias enunciativas específicas. Por otra parte, emergen en el juego de modalidades específicas de poder y, por ello, son más un producto de la marcación de la diferencia y la exclusión que signo de una unidad idéntica y naturalmente constituida: una “identidad” en su significado tradicional (es decir, una mismidad omniabarcativa, inconsútil y sin diferenciación interna).

As identidades culturais são, portanto, construídas ou compreendidas no

discurso e, por essa razão, sua compreensão se dá em torno das questões relativas à

diferença. Assim sendo, a construção das identidades culturais dá-se sempre numa

incessante cadeia de relações opositivas através das quais o outro é freqüentemente

transformado no diferente, o que ocorre devido à mediação do poder. Esse processo

Page 48: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

48

permite perceber que, ao contrário do entendimento que fora hegemônico na Modernidade,

as identidades culturais, na Pós-Modernidade, não são construções sólidas e estáveis,

prontas e acabadas, visto que estão sujeitas à lógica das transformações inerentes à

representação e, conseqüente, à própria cultura.

Para Hall (2002, p. 120),

o sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável está se tornando fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

De acordo com Santos (2006, p. 137), durante a Modernidade, entre os maiores

problemas da identidade, geralmente tratada a partir do conceito da subjetividade, estavam

duas grandes tensões – a tensão entre a subjetividade individual e a subjetividade coletiva.

Em outros termos, trata-se da tensão entre a concepção concreta e contextual, de um lado, e

a concepção abstrata da subjetividade, de outro lado. Na Modernidade Tardia, por sua vez,

as discussões em torno da identidade enfatizam as transitoriedades, a fugacidade e a

pluralidade das identidades culturais, outrora tomadas como rígidas, sólidas e unificadas.

Além disso, também está em pauta a questão das diferenças, das negociações de sentido

como fator determinante no processo de construção das identidades culturais. Sobre essas

questões, especificamente, é bastante esclarecedora a reflexão de Santos (2006, p. 135)

quando afirma o seguinte:

Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou países europeus, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso.

Na sociedade contemporânea, governada por imagens e pela mídia, não se

pode negar a importância da ação pedagógica do cinema na produção de sentidos que

atuam na formação de identidades culturais. Por essa razão, o cinema, ao seduzir e fascinar

os espectadores, influencia não apenas suas escolhas e/ou suas recusas mais imediatas

Page 49: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

49

como também atua em seus processos de “identificação”. Em poucos termos, como

artefato cultural, o cinema é um gerador de representações culturais que atuam diretamente

no processo de constituição de identidades culturais.

O Cinema Novo, especificamente, mobiliza elementos culturais ligados à

ordem econômica, política e cultural do sertão, revisando-os pelo olhar de uma concepção

estética marcada por um discurso político-cultural de reação ao que se considerava uma

política cultural imperialista, dominada por padrões estéticos norte-americanos. Para

designar esse modo diferente de fazer cinema, Shohat e Stam (2006, p.59), amparados no

pensamento de Paul Willemen, empregam a expressão “Terceiro Cinema”, expressão que

remete a um projeto ideológico, ou seja, trata-se de um corpo de filmes que aderem a um

certo programa político e estético, quer eles tenham sido produzidos no Terceiro Mundo ou

não.

Ao enfocar o sertão nordestino em filmes como Deus e o Diabo na Terra do

Sol e Vidas Secas, através de um discurso fílmico politicamente engajado, portanto, os

cinemanovistas empreendem uma articulação de representações culturais já presentes em

diferentes âmbitos da cultura, principalmente em artefatos como a literatura canônica

brasileira, manifestações folclóricas como danças, ditos populares, vestuário, literatura de

cordel, entre vários outros. Ao mesmo tempo, a partir dessas mesmas representações

culturais, os filmes atuam produtivamente em uma espécie de (re)construção das

identidades culturais, que acabam adquirindo traços específicos de sentido, muitas vezes,

operando hibridações entre identidades. É o que ocorre, por exemplo, quando o vaqueiro

adquire traços de beato, de cangaceiro e de retirante, como se verá nas análises

apresentadas na próxima seção deste trabalho.

Page 50: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

50

3 REPRESENTAÇÕES DO VAQUEIRO NO CINEMA NOVO

3.1 Sinopses

3.1.1 Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964)

A crítica especializada de cinema tem sido unânime ao considerar Deus e o

Diabo na Terra do Sol um marco do Cinema Novo brasileiro10. Esse filme, distribuído

pela Copacabana Filmes e dirigido por Glauber Rocha no ano de 1964, tem o roteiro

assinado pelo próprio Glauber Rocha e por Walter Lima Jr., seu assistente de direção. A

produção coube a Luiz Augusto Mendes e a fotografia e câmera, a Waldemar Lima. As

filmagens foram rodadas no sertão da Bahia, em Monte Santo, Cachê, Cocorobó, Canudos,

Feira de Santana e Salvador. No elenco, relativamente pequeno, constam nomes como os

de Geraldo Del Rey (vaqueiro Manuel), Yoná Magalhães (Rosa, esposa de Manuel),

Maurício do Valle (Antônio das Mortes), Othon Bastos (Corisco), Lídio Silva (Santo

Sebastião), Sonia dos Humildes (Dadá, companheira de Corisco), Milton Rosa (coronel

Moraes), Marrom (Cego Júlio), João Gama (padre), Antônio Pinto (coronel). Na trilha

sonora, encontram-se árias de peças sinfônicas de Heitor Villa-Lobos e Johann Sebastian

Bach, além de composições de Sérgio Ricardo com letras de Glauber Rocha.

O vaqueiro Manuel e sua família, esposa e mãe idosa, levam uma vida sofrida

no sertão da Bahia. Ainda assim, ele nutre esperanças de, com o seu esforço, adquirir um

pedaço de chão e iniciar uma fazenda-criatório. Decidido, vai à feira tocando um pequeno

rebanho para fazer a partilha com seu patrão, o coronel Moraes. Terminada a contagem do

gado, o coronel Moraes informa que nada lhe deve, pois as reses que morreram no açude

do norte eram as que lhe cabiam na partilha. Desolado, o vaqueiro Manuel insiste

afirmando que as reses mortas tinham o ferro do coronel Moraes. Contrariado, este

pergunta a Manuel se, por acaso, estaria insinuando que o coronel é um ladrão.

Após breve hiato, o vaqueiro diz a Moraes que tal insinuação fora feita pelo

próprio coronel. Furioso, este açoita Manuel, que, num acesso de ira, esfaqueia e mata o

coronel Moraes diante do curral de partilha. Após cometer o assassinato, Manuel foge em

disparada para a fazenda. No seu encalço, seguem os cabras do coronel Moraes. No

10 Entre os críticos estão Paulo Perdigão, Valter da Silveira, Norma Bahia Pontes, David E. Neves, Luiz Carlos Maciel, entre outros.

Page 51: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

51

terreiro da casa de telha, Manuel trava, com os cabras, uma luta violenta, que termina com

o saldo de três mortos: sua mãe e os dois cabras. Avexado, Manuel enterra a mãe em uma

cova rasa e, mais uma vez, para o desespero de Rosa, diz que tudo o que acontecera se

deve a um chamado dos céus pelo caminho da desgraça. Sem nada levar, o casal parte para

Monte Santo para se homiziar junto ao Santo Sebastião, beato conselheiro daquela gente

espoliada do sertão.

Ao juntar-se aos sertanejos seguidores do Santo Sebastião, que é beato

milenarista e anti-republicano, em detrimento da sua identidade cultural de vaqueiro,

Manuel, completamente alucinado, assume a identidade cultural de jagunço. Sem atender

aos apelos de Rosa para que abra os olhos e deixe Monte Santo, Manuel, completamente

alucinado, proclama em voz alta, a fim de que todos possam escutar, que sua esposa Rosa

está possuída pelo demônio. Para purificar Rosa, o Santo Sebastião exige o sacrifício de

um inocente num ritual de catarse. No âmago do sacrifício, surge Antônio das Mortes,

matador de cangaceiros, contratado pelos coronéis e representantes da Igreja Católica

Apostólica Romana, com o intuito de dar cabo à vida do Santo Sebastião e dos fanáticos

que o seguem. Entretanto, Antônio das Mortes soçobra em seu intento maior, pois Rosa,

instantes antes da sua chegada, aproveitando-se de um descuido de Manuel, assassinara a

facadas o Santo, que resta morto diante do Altar-Mor da capela da Via Sacra de Monte

Santo.

Por iniciativa própria, Antônio das Mortes poupa a vida de Manuel e de Rosa,

para que sirvam de testemunhas. Ao deixar Monte Santo, Manuel e Rosa, conduzidos pelo

Cego Júlio, encontram o cangaceiro Corisco, que estava sedento de vingar a morte de seu

compadre Lampião. Diante de Corisco, Manuel, aludindo à sua condição de ex-jagunço do

Santo Sebastião, pede para ser cangaceiro. Corisco acede, coloca em Manuel a alcunha de

Satanás. Acompanhado de Manuel, Corisco, com o que restou de seu antigo bando, ataca

fazendas de seus desafetos e comete toda sorte de crueldades. Antônio das Mortes,

mandado pelos latifundiários, após longa conversa com o Cego Júlio, sai em perseguição a

Corisco e, ao encontrá-lo, trava uma luta violenta, onde Corisco leva a pior sorte. Mais

uma vez, Antonio das Mortes poupa a vida de Manuel e de Rosa, que saem a esmo, em

desabalada carreira pelo sertão rumo ao mar, que invade a tela.

3.1.2 Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963)

Considerado o precursor do Cinema Novo brasileiro, Vidas Secas é uma das

Page 52: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

52

mais felizes adaptações realizadas no Brasil da literatura romanesca, nomeadamente, do

romance homônimo de Graciliano Ramos, à linguagem cinematográfica. Dirigido por

Nelson Pereira dos Santos em 1963, no sertão de Alagoas, Palmeira dos Índios, Vidas

Secas tem o roteiro assinado pelo próprio diretor e a fotografia, por Luiz Carlos Barreto.

Integram o elenco os atores Átila Lório (Fabiano), Maria Ribeiro (Sinhá Vitória), Orlando

Macedo (soldado amarelo), Jofre Soares (fazendeiro) e outros.

Fabiano, vaqueiro do sertão, acompanhado da esposa, Sinhá Vitória, do menino

mais novo, do menino mais velho, do papagaio e da cachorra Baleia, tocado por uma

terrível seca, deixa para trás a fazenda em que vivia e sai sem rumo certo, em busca de

melhores condições de vida para a família. Na sua bagagem, somente o que pode carregar

no próprio corpo: o aió, a cuia e a espingarda de pederneira. Sinhá Vitória carrega o

Menino mais Novo escanchado no quarto e um baú de folha sobre a cabeça. Pendurado no

baú de folha, uma pequena gaiola com o papagaio. O Menino mais Velho e a cachorra

Baleia seguem a pé, um pouco atrás de Fabiano.

Nessa emigração, o Fabiano e a família, que inclui os animais domésticos,

passam por toda sorte de privação. O clima melhora e Fabiano arranja trabalho na fazenda

em que fizera o último pouso. Procurando integrar-se à sociedade local, Fabiano e a família

vão à cidade para uma celebração religiosa. Lá sente a presença opressora do Estado

constituído, representado pelo cobrador de imposto e pelo soldado amarelo. Preso ao

sistema fundiário, Fabiano percebe sua exploração, mas recua diante das insinuações e da

explicação do fazendeiro: “são os juros”. Em solilóquio, Fabiano avalia a seca, sua

condição de espoliado, seu processo de animalização (Fabiano, Sinhá Vitória, Menino mais

Novo e Menino mais Velho estão perdendo a linguagem abstrata e articulada com que os

seres humanos se distinguem dos outros animais), e Sinhá Vitória, ao pensar em melhora,

pensa no luxo de uma cama de couro, igual à de seu Tomás da Bolandeira.

A cachorra Baleia, antropomorfizada, na agonia da morte, vislumbra um tempo

de fartura, de gordos preás. A seca segue o seu ciclo natural, mas a miséria de Fabiano, ele

percebe, não tem causas naturais. Sinhá Vitória atribui às avoantes (Zenaida auriculata

chysauchenia) as causas da seca bem como da morte dos animais. Novamente, Fabiano

parte com a família rumo ao mar, na esperança de encontrar melhor sorte.

3.2 As Representações do Vaqueiro

Coube à República, no século XIX, a partir da unificação política do Brasil em

Page 53: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

53

uma federação, fomentar o nacionalismo, e ao Movimento Modernista de 1922, no século

XX, redefini-lo através da afirmação de uma língua e de uma cultura que se pretendiam

autenticamente brasileiras. Porém, antes da República e do Modernismo, essa questão já

havia sido discutida a partir do Movimento Romântico, durante o correr da segunda metade

do século XIX, destacando-se, quanto à questão específica do nacionalismo, entre outros,

os nomes de Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar. O Movimento

Romântico elegeu o índio como o elemento símbolo da nacionalidade brasileira, ao passo

que o Movimento Modernista, em diálogo também com os românticos, encontrou, na

mestiçagem e na cultura sincrética, os elementos ideais para afirmar a nacionalidade

brasileira.

Nos anos sessenta do século XX, o Cinema Novo retoma, em seus filmes, a

questão da identidade cultural nacional, em parte, no modo como fora apresentada pelos

modernistas, porém, enfatizando dois pontos fundamentais: 1) A conscientização da

realidade nacional; 2) a valorização da cultura popular. Segundo Albuquerque Júnior

(2006, p.273),

o Cinema Novo retoma a problemática modernista da necessidade de conhecer o Brasil, de buscar suas raízes primitivas, de desvendar o inconsciente nacional por meio de seus arquétipos para, a partir deste desvendamento, didaticamente ensinar ao povo o que era o país e como superar a sua situação de atraso, agora nomeado subdesenvolvimento, e de dependência externa. Era um ideário confuso em que se misturavam chavões ideológicos da esquerda e enunciados nacionalistas. O Cinema Novo se propõe, portanto, a ser uma retórica de conscientização, de estabelecimento do que era a realidade nacional, superando nossa alienação, descobrindo nosso inconsciente sob recalques produzidos por séculos de dominação colonial. O cinema deveria, nessa perspectiva, voltar-se para a abordagem de temáticas nacionais e populares, que mostrassem, de forma realista e pedagógica, os nossos problemas estruturais, descobrindo racionalmente os elementos mais significativos das relações sociais.

No Cinema Novo, portanto, as representações culturais bem como as

identidades culturais construídas em torno do vaqueiro fazem parte de um projeto cultural

e pedagógico mais amplo ligado à representação e à identidade cultural construída para o

próprio Nordeste. Nesse contexto, o vaqueiro será apenas uma das várias “identidades-

tipo” construídas intencionalmente a partir daquilo que os cinemanovistas consideravam

como as raízes mais autênticas de uma cultura e de uma nacionalidade

brasileira/nordestina, tais como o beato, o cangaceiro, o repentista, o retirante, entre vários

outros “tipos”. Se, de um lado, o intuito pedagógico inerente à construção dessas

identidades é a denúncia da alienação cultural, sempre ligada à alienação econômica, de

Page 54: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

54

outro lado, a estratégia pedagógica utilizada para implementar essa “pedagogia da

denúncia” está baseada em quatro pontos principais.

Primeiro, os cinemanovistas procuram ressignificar certas representações

culturais consideradas “mais autênticas” daquilo que consideravam como a cultura

regional, sendo que tais representações são buscadas em espaços culturais distintos, desde

a cultura do folclore, como no caso da literatura de cordel, até o romance de trinta e,

mesmo, a ressignificação de certos tópicos do romantismo e de clássicos como Os Sertões,

Pedra Bonita, Cangaceiros, Grandes Sertão Veredas e Vidas Secas.

Segundo, a composição do enredo e a construção dos personagens seguem um

modelo estrutural bastante previsível em muitos aspectos. Os personagens do Cinema

Novo são geralmente colocados em enredos problemáticos, desempenhando papéis de

oprimidos dentro de um sistema que mescla a figura do opressor tanto ao espaço físico do

próprio Nordeste (a seca com sua imagística de cactos, aridez, animais morimbundos,

emigração...) quanto de personagens que desempenham o papel de capitalistas primitivos e

mantêm a subserviência dos agregados às custas de violência física e psicológica.

Terceiro, no que tange à concepção estética stricto sensu, ocorre, em muitos

filmes produzidos pelos cinemanovistas, a adoção de técnicas de composição fílmica a

partir da inspiração buscada no Neo-Realismo, na Nouvelle Vague e na Montagem

Soviética. Entre outras práticas, pode ser citado o modo como a câmera é utilizada para

denunciar a presença arbitrária de um “narrador”. Essa técnica, cujos efeitos estéticos

contrastam fortemente com o realismo almejado pela cinematografia geralmente praticada

em filmes comerciais norte-americanos, acentua, através da própria forma, a percepção da

aridez social e geográfica bem como da violência aparentemente insolúvel que marca as

relações sociais vivenciadas pelos tipos nordestinos. Na medida em que a

convencionalidade da própria linguagem cinematográfica é denunciada, numa espécie de

autorreflexividade crítica, pretende-se denunciar, de fato, a arbitrariedade das relações

sociais mantidas no Nordeste e, por extensão, no Brasil.

Por fim, o quarto ponto constitui-se na retomada de tópicos ligados ao passado

histórico da região Nordeste como estratégia de denúncia da realidade presente e da

alienação do povo diante da ação de forças imperialistas em um espaço regional

subdesenvolvido. De certo modo, a retomada de certos topoi e de certos tipos construídos

historicamente através de representações já consagradas no repertório cultural do Nordeste

tem a mesma finalidade pretendida com os recursos técnicos e estéticos do Cinema Novo –

como a câmera em movimento e a aridez com que são representadas cenas e imagens:

Page 55: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

55

denunciar a arbitrariedade das relações sócio-econômicas em que se encontram

personagens e indivíduos ligados a esse espaço regional. A retomada das relações

econômicas construídas historicamente insere-se dentro da visão marxista de Glauber

Rocha e de Nelson Pereira dos Santos, pois, tanto em Deus e o Diabo na Terra do Sol

quanto em Vidas Secas, fica patente a adesão ao Materialismo Histórico que tem no modo

de produção da vida material o fator que determina a vida social, política e espiritual das

personagens.

Dentro desse contexto, o vaqueiro será construído como uma identidade-tipo

que, embora seja apresentado como uma identidade congruente, revela, a partir de uma

análise atenta, estar alicerçado em um agenciamento muito idiossincrático de

representações culturais ligadas a técnicas de composição muito específicas. Nas páginas

que seguem, algumas representações mobilizadas para construir essa identidade serão

explicitadas. Não há intenção de realizar uma análise completa ou definitiva de tais

identidades culturais, mas sim, procura-se explicar um pouco o processo representacional a

partir do qual o Cinema Novo constrói uma identidade cultural de vaqueiro nordestino, que

se pretende congruente, com o intuito de servir como uma ferramenta pedagógica que

deveria ser capaz de levar à superação da suposta alienação cultural em que se encontraria

a nação brasileira quanto às próprias origens.

As análises empreendidas aqui procuram mostrar alguns modos como o

Cinema Novo ressignifica representações e identidades de vaqueiro, outrora tomadas como

uma representação e uma identidade cultural unitária. Argumenta-se, aqui, que essa

identidade cultural é um efeito criado a partir de um processo complexo de composição

representacional. Desse modo, o vaqueiro emerge não como uma identidade cultural

unificada e sim, como uma construção híbrida de discursos, imagens, representações e

identidades muitas delas já cristalizadas no imaginário cultural do Nordeste por outros

artefatos culturais. Nesse sentido, algumas das principais representações mobilizadas e

ressignificadas pelos filmes aqui apresentados são as seguintes: 1) O vaqueiro artista

(manifestação do folclore); 2) O vaqueiro devoto (manifestação da religião); 3) O vaqueiro

insurreto (manifestação do cangaço e da resistência); 4) O vaqueiro oprimido

(manifestação da seca e das relações econômicas desiguais); 5) O vaqueiro animalizado

(manifestação do “naturalismo” de Graciliano Ramos na tela).

Page 56: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

56

3.2.1 O Vaqueiro Artista

Para enfrentar a hegemonia da cultura norte-americana, muito presente na

produção cinematográfica mundial, Glauber Rocha utiliza diferentes estratégias estético-

pedagógicas. Ao agenciar a representação cultural do Nordeste, agora identificada com a

cultura popular e redimensionada como tomada de consciência da realidade social e

cultural do país, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha toma a cultura

popular do Nordeste como elemento de identificação cultural e de resistência à cultura

estrangeira, sobretudo a norte-americana.

Nesse texto fílmico, existe um posicionamento um tanto quanto ambíguo, dado

que, de um lado, Glauber Rocha exalta a cultura popular como raiz de uma cultura

autenticamente nacional e, de outro, utiliza as manifestações dessa mesma cultura popular

– representada pelo beato, pelo cangaceiro e pelo catolicismo popular, entre outros –, para

denunciar o estado de alienação e de revolta do povo nordestino.

A descrição de uma terra utópica, conforme os relatos do Santo Sebastião,

deixa claro o quanto Glauber Rocha aproveita, na sua composição cinematográfica,

imagens e fragmentos discursivos da cultura popular do sertão. A temática de um paraíso

tangível na terra é recorrente na literatura popular do Nordeste, pois a imagem de um

paraíso na terra está no imaginário de muitos povos. Trata-se de uma herança do

colonizador que se lançou pelos sertões do novo mundo. Na cultura judaica, tem-se a

imagem do Éden, que fora assimilado na cultura laica como “Eldorado” ou “O País da

Cocanha”. Sobre uma terra abundante em alimentos e felicidade, há muitos registros na

literatura popular do Nordeste, como “Viagem ao Céu” e “Viagem a São Saruê”, de

Leandro Gomes de Barros e Manoel Camilo dos Santos, respectivamente.

Na cultura popular do Nordeste, Glauber Rocha também encontrou, além dos

motivos, vários meios de composição para seu texto fílmico. Na região Nordeste, a cultura

popular tem servido de motivo e de meio para diferentes estratégias de comunicação.

Assim, no tempo em que não havia a presença dos meios de comunicação de massa, as

notícias e as estórias circulavam através das narrativas dos folhetos de cordel e dos

romances, que eram cantados por repentistas, cegos violeiros, ou vendidos nas feiras

populares das cidades do sertão. 11 Glauber Rocha (1965, p. 125), baseado na literatura

11 Orígenes Lessa (1982, p. 10) afirma que, segundo os autores, a poesia popular se divide em dois grandes gêneros: o “folheto” e o “romance”. O primeiro tem 8 páginas; o romance, 16 ou mais. O folheto é o caso da época, o assunto do dia, o comentário político, a narrativa dos grandes desastres e calamidades, o crime de

Page 57: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

57

popular, afirmava que a melhor forma de contar uma estória passada no Nordeste é a

narrativa dos folhetos de cordel:

[...] é uma coisa simples, que apenas foi introduzida agora no cinema, mas que já tem uma tradição velha na literatura brasileira. Muitos escritores já escreveram nesse tom, usando a forma do cancioneiro popular das feiras do Nordeste para narrar a estória. Não foi nenhuma escolha minha, só uma observação mais atenta do problema, que a melhor forma de contar uma estória do Nordeste é integrar a estória naquela estrutura narrativa, porque toda a realidade do Nordeste é transformada em lenda, em análise da realidade, pelos cegos trovadores e pelas pessoas que relatam os casos.

Esse processo de transformação da realidade histórica em lenda é retomado, de

certa maneira, por Glauber Rocha, pois o Santo Sebastião composto na tela do cinema nada

mais é do que o resultado da fusão e da ressignificação direta da representação de dois

beatos lendários do sertão nordestino, José Lourenço Gomes da Silva, discípulo de padre

Cícero Romão Batista e líder da comunidade Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, e

Sebastião da Pedra Bonita. No sertão, beatos, padres e cangaceiros transcenderam os

limites da história e se tornaram parte do universo místico e/ou mítico da cultura popular.

Indiretamente, no Santo Sebastião, é possível divisar vários traços da representação de

Antônio Conselheiro, que fora construída a partir dos discursos da cultura letrada, como o

discurso euclidiano, o das notícias veiculadas na imprensa do sul, o da literatura

regionalista, da literatura sociológica e, até mesmo, o da literatura popular do Nordeste.

Deliberadamente, Glauber Rocha serviu-se, além da cultura popular, também

de todas essas fontes discursivas que acabaram sendo mobilizadas, mitificadas e

naturalizadas pelo cinema nacional. Como se viu anteriormente, tanto nas representações

literárias como nas fílmicas – e o Cinema Novo não foge à regra – os beatos conselheiros

aparecem representados como homens paranóicos, fanáticos, semi-analfabetos e sem

qualquer formação apostolar. Algo análogo pode-se dizer do cangaceiro, do cego cantador

ou mesmo de Antônio das Mortes, o matador de cangaceiros. Com exceção deste último,

todos são identidades-tipo e alegóricas que foram cooptadas como personagens pelo

Cinema Novo de Glauber Rocha.

A representação de cangaceiro, bem como a do próprio cangaço, no texto

fílmico de Glauber Rocha, remete para a representação de cangaceiro e de cangaço

peculiar ao bando de Lampião, o que não ocorre, por exemplo, em Vidas Secas, onde

sensação, a discussão temática do povo, carestia, fome, lamentações. O romance, como o nome indica, apresenta as estórias de amor ou de heroísmo, os temas épicos que mais falam ao povo. Tem caráter mais permanente...

Page 58: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

58

Nelson Pereira dos Santos põe em cena outra representação cultural de cangaceiro e de

cangaço. Na cena em que o cangaceiro Corisco aparece enquadrado em primeiro plano, a

fotografia mostra os detalhes da imagem hegemônica do cangaceiro: a roupa de mescla, o

chapéu napoleônico, o lenço, a pistola, a cartucheira, o fuzil e o punhal de prata, além das

medalhas, que revelam a sua face mística.

Cena I (close de Corisco) Cena II (Corisco empunha armas) Cena III (detalhe das armas)

Sempre que vejo Deus e o Diabo na Terra do Sol, o que primeiro me chama a

atenção são os versos que servem de epígrafe para o filme. Eles aparecem no alto da tela,

mais ou menos no canto esquerdo, antes dos letreiros de apresentação dos créditos

fílmicos: “Vou contá uma estória/Na verdade e imaginação/Abra bem os seus olhos/Pra

escutar com atenção/É coisa de Deus e Diabo/Lá nos confins do sertão”. Nos folhetos e nos

romances de cordel do Nordeste, especialmente naqueles voltados para os ciclos religiosos

ou heróicos, é de hábito o poeta iniciar a narrativa com versos de abertura que resumem,

para o leitor, a história a ser contada em verso. Da mesma maneira, é de costume, o poeta

encerrar sua narrativa com versos de fechamento, sendo que, na última estrofe, o poeta

deixa clara a moral da história ou a sua intenção de comercializar o folheto ou o romance.

Vou terminar avisando a qualquer um amiguinho que quiser ir pra lá posso ensinar o caminho, porém só ensino a quem me comprar um folhetinho12.

É possível notar, nos registros da literatura de cordel, que a representação e a

identidade cultural de vaqueiro são resultantes de uma construção discursiva híbrida. Essa

manifestação literária popular, aclimatada ao folclore da região Nordeste, revela, através de

suas identidades-tipo, que a representação e a identidade cultural de vaqueiro são 12 Fragmento poético de “Viagem a São Saruê”, cordel de Manoel Camilo dos Santos.

Page 59: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

59

fronteiriças, pois se acham no limiar da fronteira de outras representações e identidades-

tipo da região. Portanto, a representação e a identidade cultural de vaqueiro estão muito

próximas de outras representações e identidades culturais do Nordeste. Desse modo, o

vaqueiro é um quase beato, um quase cangaceiro, um quase violeiro, um quase jagunço ou

um quase retirante da seca.

Esse aspecto pode ser evidenciado, no próprio filme, por exemplo, na

seqüência em que Manuel pede a Corisco para entrar no bando, quando alude a outras

identidades culturais que assumira:

MANUEL: Capitão Corisco... Eu queria entrar pro cangaço. Podia ser um cabra de ajuda nessa guerra... Num tenho o que fazer e queria vingar meu padrim Sebastião. Num foi o Governo que matou ele também? CORISCO: E você sabe brigar? MANUEL: Sei, sim sinhô, que era jagunço... Fiz muito assalto pra dar de comer aos beatos, e amonto bem que já fui vaqueiro (Glauber Rocha, p. 82-83).

Na cena em que o personagem Antônio das Mortes conversa com o Cego Júlio

no mercado de Canudos, Glauber Rocha manifesta novamente o aspecto fronteiriço das

identidades culturais do sertão. No discurso fílmico, está claro, a grande guerra não

aconteceu, ainda está por vir. A guerra de Canudos foi a maior que houve no sertão, mas

dado à sua configuração anárquica, não fora ainda uma guerra de libertação:

ANTONIO DAS MORTES: Um dia vai ter uma guerra neste sertão... Uma guerra grande sem a cegueira de Deus e do Diabo. E pra que essa guerra venha logo, eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco e depois morrer de vez, que nós somos tudo a mesma coisa!

Na cena final, ao decidir enfrentar Antônio das Mortes, Corisco, que acredita

ser a encarnação de São Jorge Guerreiro, revela-se tão místico quanto os próprios beatos

do sertão, transformados em lenda pela narrativa dos cantadores.

CORISCO: Meu padrim Ciço fechou tudo isso aqui. Eu espero Antônio das Mortes... Quero me topar com ele de home pra home, de Deus pra Diabo.

Em seguida, Corisco faz uma oração para fechar o corpo:

[...] eu José, com a espada de Abraão serei coberto; eu José, com o leite da Virgem Maria serei borrifado, eu José, na arca de Noé serei guardado; eu José, com as chaves de São Pedro serei fechado onde não me possam ver, nem ferir, nem matar, nem o sangue do meu corpo tirar. (Glauber Rocha, 1965, p. 105).

Page 60: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

60

No processo de ressignificação das representações e das identidades culturais

do sertão, a seca está como o elemento natural, e o sistema econômico, como o elemento

social. O Cinema Novo, em sua primeira fase, procurou ressignificar as representações e as

identidades culturais dentro de um amplo discurso estético-cinematográfico denominado

por Glauber Rocha de “Estética da Fome”. Como se viu anteriormente, essa proposta

ressalta a necessidade do engajamento político da arte, rejeita as noções tradicionais da arte

como expressão do belo ao mesmo tempo em que afirma a arte como expressão do feio,

do disforme. Sobre a Estética da Fome, Glauber Rocha (2004, p. 66) afirma o seguinte:

sabemos nós – que fizemos esses filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.

No texto fílmico de Glauber Rocha, a mediação entre a primeira e a segunda

parte, como também a mediação entre os principais personagens, dá-se por meio da ação

narrativa do Cego Júlio, que é uma das identidades-tipo saída das páginas da literatura de

cordel. No filme, todas as identidades-tipo que surgem e/ou interagem entre si, surgem e

interagem através dos versos do Cego Júlio: Primeira Aparição de Sebastião, Coro dos

beatos, Feira, Fuga, Primeira aparição de Antônio das Mortes, Intermezzo, Corisco,

Segunda Aparição de Antônio das Mortes e Final (anexo I). Acrescente-se, aos versos do

Cego Júlio, uma espécie de aedo do sertão, expressos na música de Sérgio Ricardo, a

música de Heitor Villa-Lobos e de J. S. Bach, que, em conjunto, fazem as mediações

diegéticas do filme. Para Xavier (2007, p.123), “Cego Júlio é a nova faceta do poeta da

tradição oral; sua presença, como personagem, dentro da ficção, embaralha os níveis,

possibilitando a conversação entre os protagonistas e a própria figura doadora da lenda”.

O Cego Júlio é a representação alegórica do veio artístico do sertanejo. Da

seqüência da feira em diante, toda a narrativa do filme é conduzida pelos versos do cego

cantador. O andamento da música incidental assinala, além de registros musicais da cultura

regional, as variações e as tensões diegéticas. Na seqüência da luta entre Manuel e os

jagunços, a música é acelerada, ao passo que, na seqüência do enterro da mãe de Manuel, a

música é moderada (toada). Com exceção da Ave Maria de J. S. Bach, a música e os versos

são adaptações de registros poeticos da cultura popular do Nordeste, que foram levantados

por Glauber Rocha.

Page 61: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

61

Os habitantes do sertão nordestino têm por hábito construir seus artefatos

culturais e manter viva a religião popular e o folclore regional. O vaqueiro pouco se serve

da indústria, pois constrói artesanalmente quase tudo de que necessita: a casa onde mora,

os utensílios domésticos, o vestuário com que sai para o campo, os instrumentos de

trabalho, a música que ouve e canta (o aboio), entre tantos outros artefatos. Em Deus e o

Diabo na Terra do Sol, Glauber Rocha fez questão de preservar, através de seus

personagens, aquilo que entende como a dimensão artística e cultural do Nordeste. O

vaqueiro, nesse contexto, é a mais expressiva das representações e das identidades culturais

do mundo sertanejo. Em poucos termos, as identidades culturais vinculadas a personagens

como o Santo Sebastião, o cangaceiro Corisco, o Cego Júlio, mantêm, com a identidade

cultural de vaqueiro, uma ligação fronteiriça, sendo que a arte desempenha um papel

central na amarra dessas identidades culturais. Por essa razão, o Cego Júlio aparece usando

um chapéu de vaqueiro, ao mesmo tempo em que os beatos e os cangaceiros, além do

chapéu de couro, dividem um passado e uma história de vaqueiro. Nos filmes de Glauber

Rocha e de Nelson Pereira dos Santos, no que tange a construção das representações e das

identidades culturais de vaqueiro, o chapéu de couro serve de símbolo ou marcador cultural

das representações e identidades culturais articuladas em Deus e o Diabo na Terra do Sol e

Vidas Secas.

Cena do vaqueiro Manuel diante da rês morta (a expressão é de desolação).

Na proposta estético-pedagógica desses filmes, o chapéu de couro, os versos

populares, os registros musicais, o vestuário e os instrumentos de trabalhos do vaqueiro são

os significantes da cultura popular do Nordeste ressignificada como símbolo de uma

Page 62: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

62

cultura autenticamente nacional, livre e independente do imperialismo cultural e

econômico em atividades nas ex-colônias. As seqüências em que Rosa pila arroz, Manuel

tritura mandioca na bola de caititu ou naquela em que aparece fazendo um cigarro de palha

– sem contar as aparições do Cego Júlio –, pretendem representar nada mais do que a face

originalmente artística do sertanejo.

Tomando-se como referência Deus e o Diabo na Terra do Sol e suas fontes

intertextuais, é possível dimensionar também as representações do vaqueiro na literatura

popular do Nordeste, presentes no folclore, na literatura ensaística, na literatura jornalística

e na literatura romanesca. Em muitos de seus depoimentos, Glauber Rocha deixa claro que

seus personagens, apesar de ficcionais, foram buscados ou elaborados a partir de um

diálogo ou de uma ressignificação do folclore e da literatura, como um todo.

Por essa razão, a pedagogia de Glauber Rocha presente em Deus e o Diabo na

Terra do Sol é bastante paradoxal. De um lado, faz uma crítica severa ao estado de

alienação e atraso cultural e econômico das identidades-tipo do sertão; de outro lado,

contudo, ao ressignificá-los, vê nessas identidades culturais as raízes de uma cultura

nacional. Em poucos termos, Glauber Rocha encontra, na tradição artística do sertão

nordestino, a fonte ideal para realizar um cinema estético e politicamente engajado, com

todas as contradições que lhe são inerentes.

3.2.2 O Vaqueiro Devoto

Na década de sessenta, período em que se deu a realização de Deus e o Diabo

na Terra do Sol, a memória do cristianismo popular e do cangaço ainda estava muito

presente na literatura regional e no imaginário popular do Nordeste. Padre Cícero falecera

em 1934, o beato José Lourenço em 1946, Lampião em 1938 e Corisco, em 1940. Ao

compor as cenas em que o Santo Sebastião aparece com maior intensidade, Glauber Rocha

escolheu, para cenário, um dos lugares mais emblemáticos do cristianismo popular do

sertão nordestino, a Via Sacra da Vila de Monte Santo, que fora erigida na década de 1760,

não por um beato conselheiro, mas pelo missionário italiano Apolônio Di Todi.

Page 63: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

63

Imagem da Via Sacra da Vila de Monte Santo

O Santo Sebastião, na primeira cena da pregação na Via Sacra da Vila de

Monte Santo, aparece envolto numa túnica, supostamente de azulão, tal como fora a túnica

e Antônio Conselheiro e a de tantos outros beatos conselheiros do sertão, e ergue para os

céus seu bordão proferindo ameaças de castigos divinos, exigindo o cumprimento, ao pé da

letra, dos preceitos de Cristo e prometendo para os fiéis uma vida afortunada em uma ilha

no meio do mar. Esse discurso messiânico, no filme de Glauber Rocha, é inserido para

marcar a ruptura do cristianismo popular com a ordem econômica e política e também para

acentuar, pelo tom profético das palavras do Santo Sebastião, o suposto grau de alienação

dos beatos.

SEBASTIÃO: Andei por mais de cem lugares dizendo que o mundo ia acabar nesta seca, com o fogo saindo das pedras. Os prefeitos, as autoridades e os fazendeiros disseram que eu estava mentindo e que o sol era o culpado da desgraça. Mas o ano passado, eu disse que ia secar cem dias e ficou cem dias sem chover! Agora eu digo: do outro lado de lá deste Santo monte existe uma terra onde tudo é verde! Os cavalos comendo as flores e os meninos bebendo leite nas águas do rio. Os homens comem pão feito de pedra e a poeira vira farinha; tem água e comida; tem a fartura do céu e, todo dia, quando o sol nasce, aparece Jesus Cristo e Virgem Maria, São Jorge e meu Santo Sebastião, todo cravado de flechas no peito... (Glauber Rocha, 1965, p.49).

Embora Glauber Rocha admita que seu personagem tenha sido construído a

partir da fusão da imagem dos beatos José Lourenço e Sebastião da Pedra Bonita, sua

representação do Santo Sebastião não difere muito da representação de Antônio

Conselheiro, ao modo de Euclides da Cunha e de outros clássicos da literatura nacional, seja

ela sociológica, regionalista, popular ou jornalística. A seqüência em que o Santo Sebastião,

no filme de Glauber Rocha, vai à vila sertaneja e assassina as prostitutas, caracteriza o

Page 64: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

64

mesmo tipo de fanatismo religioso presente de modo predominante nas obras anteriores,

principalmente em Os sertões. Corroboram com a atmosfera do fanatismo e da loucura, os

sons não diegéticos dos tiros, dos gritos das prostitutas e os benditos cantados

histericamente pelos beatos.

Em uma cena anterior, a câmera em movimento rápido, panorâmico e

silencioso, revela a face fanática dos romeiros. Há, nessa seqüência, um instante em que a

câmera focaliza, entre os beatos, uma mulher num gesto extremo de martírio, prática

comum no catolicismo popular do sertão. Ela tem sobre a cabeça uma pedra. A imagem da

pedra sobre a cabeça será retomada novamente numa seqüência posterior para caracterizar a

alienação e o delírio místico de Manuel, que pode ser visto a partir da reprodução abaixo. A

pedra, portanto, transforma-se em uma imagem emblemática na filmografia de Glauber

Rocha, uma espécie de expressão metonímica do fanatismo messiânico, mais aproximado

do misticismo do que da fé.

Manuel sobe de joelhos a escadaria da via Sacra da Vila de Monte Santo.

Nas cenas de pregação do Santo Sebastião na Via Sacra da Vila de Monte Santo,

Glauber Rocha emprega uma polifonia de códigos fílmicos para construir a representação

desse fanatismo, entre eles, a voz em off (voz do Santo Sebastião), a câmera na mão e a

música (Aleluia de J. S. Bach), que cresce sobrepondo-se paulatinamente à voz do próprio

Santo Sebastião, desse modo, acentuando o caráter místico-religioso de seu discurso.

Por outro lado, esse clima místico também é atravessado pelo discurso político-

religioso, marcadamente através das homilias realizadas pelo Santo Sebastião, o que pode

ser percebido, entre outros, a partir do excerto abaixo:

Page 65: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

65

SEBASTIÃO: Mas ali só vai chegar quem me seguir e quem der força ao enviado de Deus. Pois o sofrimento até chegar nessa ilha é grande: mais fome e mais sede e ainda por cima as tropas do Governo que persegue os inocentes com as balas da injustiça... Então é preciso mostrar aos poderosos a força e o poder do Santo... Eles tiraram D. Pedro do trono e agora querem matar quem ama o Imperador...

Os exemplos até aqui elencados já permitem perceber que Glauber Rocha aposta

em uma representação estereotipada de Antônio Conselheiro, bem como das profecias que

lhe são atribuídas, sendo que essa estratégia discursiva é utilizada de forma consciente pelo

cineasta. Nesse sentido, Glauber Rocha (1965, p.129) é enfático:

[...] o que não se deve esquecer é que Antônio Conselheiro era um débil mental, e o que ele disse pode ser interpretado à vontade. Para mim, a profecia de que “o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão” serviu como um recurso simples. É uma coisa popular, que está na cara.

É importante ressaltar que essa imagem estigmatizada de beato, incorporada

por Glauber Rocha, é uma opção de estratégia discursiva, pois há também outros discursos

disponíveis sobre o beato nordestino em que a estereotipia do lunático está mitigada ou

mesmo ausente. Em alguns casos, Antônio Conselheiro chega a ser inclusive representado

como a grande expressão do cristianismo popular no sertão nordestino. Ataliba Nogueira

(1997, p. 53), por exemplo, traz alguns excertos de crônicas de Machado de Assis,

publicadas na Gazeta de Notícias, em que o consagrado escritor se nega a aceitar a

representação do beato Antônio Conselheiro que circulava na imprensa da época,

apontando para um discurso que resiste em caracterizar o beato como um fanático

estereotipado:

Protesto contra a perseguição que se está fazendo à gente de Antônio Conselheiro... De Antônio Conselheiro ignoramos... Se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos. Diz-se que tem consigo milhares de fanáticos... Se na última batalha é certo haverem morrido novecentos deles e o resto não se desapega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo os prende até a morte. Que vínculo é esse?

Alguns pesquisadores, entre eles Nilton Freixinho e Ataliba Nogueira,

argumentaram que Antônio Conselheiro, para os padrões da época, era detentor de boa

escolaridade. Não tanto pela baixa escolaridade e mais pela ausência de uma formação

apostolar, os beatos conselheiros do sertão socorriam-se, nas pregações, de duas obras

religiosas: As Horas Marianas e A Missão Abreviada, esta última de autoria do padre

português Manuel Gonçalves Couto. Ataliba Nogueira (1997, p. 35) afirma que, após a

conquista do Arraial de Canudos pelas tropas legais, comandadas pelo general Artur Oscar

Page 66: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

66

de Andrade Guimarães, fora encontrado, pelo médico-cirurgião da expedição, no lugar

denominado Santuário, onde morara Antônio Conselheiro, uma caixa de madeira com as

Prédicas. Sabe-se que, além dessa obra, mais duas outras também foram encontradas entre

os despojos do beato - As Horas Marianas e A Missão Abreviada.

Primeira aparição do Santo Sebastião (pregação aos sertanejos)

Para Glauber Rocha, pouco importava uma representação do Santo Sebastião

que estivesse fundada em uma concepção realista ou, pelo menos, não estereotipada dos

beatos conselheiros do sertão nordestino. Sua intenção era demonstrar, de modo alegórico,

a rebeldia popular num espaço disputado de poder. Sobre seus personagens alegóricos, o

próprio Glauber Rocha (1965, p.128) afirma que

eles não são errados. O que o filme mostra – e acho que isto também está claro – é o seguinte: os dois são rebeldes. É uma rebelião de líderes dentro de um sistema de opressão; apenas, as rebeliões não são colocadas em termos revolucionários. O beato é um rebelde metafísico; o cangaceiro um rebelde anarquista.

Desse modo, a representação do Santo Sebastião de Glauber Rocha está

fortemente marcada por uma afinidade com o discurso euclidiano, pois, como se afirmou

anteriormente, este está na base da construção discursiva também de outras representações

de beatos conselheiros do sertão nordestino, sobretudo nas literaturas ensaística,

regionalista, jornalística e no próprio cinema. Sobre Antônio Conselheiro, Euclides da

Cunha (2000, p. 295) afirma, por exemplo, que “a regressão ideativa que patenteou,

caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência

Page 67: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

67

intelectual, mas não o isolou – incompreendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde – no

meio em que agiu”.

A representação do beato Antônio Conselheiro como um líder fanático,

paranóico e violento continua hegemônica até hoje. O Santo Sebastião apresenta traços de

três dos mais afamados beatos do sertão nordestino. É negro, como fora o beato José

Lourenço do Caldeirão. Sacrifica crianças, como as sacrificara também o beato Sebastião

da Pedra Bonita; e é rebelde, como o fora Antônio Conselheiro de Euclides da Cunha. A

cena do sacrifício do inocente, numa composição fotográfica de luz e sombra, ilustra bem o

delírio místico de Manuel e a representação estereotipada do beato como fanático.

Cena do sacrifício de um inocente.

Note-se que as falas do Santo Sebastião incorporam trechos das profecias que

foram tradicionalmente atribuídas ao próprio beato Antônio Conselheiro, como no excerto

abaixo:

SEBASTIÃO: Mas quem quiser alcançar a salvação fica aqui comigo de hoje em diante até o dia que aparecer no sol o sinal de Deus. Vão descer cem anjos com as espadas de fogo anunciando o dia da partida e abrindo nosso caminho nas veredas do sertão... E o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão; e quem num quiser morrer queimado vai embora hoje mesmo; quem quiser a salvação espera a meu lado, sem medo, porque o homem pra se salvar tem de sofrer e num pode temer a maldade do mundo [...] (Glauber Rocha, 1965, p. 44).

O vaqueiro Manuel, como os demais personagens de Deus e o Diabo na Terra

do Sol, é um personagem alegórico e fronteiriço, uma vez que conota a devoção do povo

sertanejo, adepto do catolicismo popular, a resistência em uma paisagem natural e social

adversa, bem como a proximidade entre as identidades culturais do sertão.

Page 68: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

68

Já as personagens Rosa e Dadá representam a consciência e a razão, em

oposição ao delírio místico, apontando para uma representação de feminilidade desatrelada

da irracionalidade dos beatos e cangaceiros. Para dissuadir Manuel, como recurso extremo,

Rosa chega a assassinar o Santo Sebastião a facadas. Por outro lado, a partir da seqüência

da invasão da fazenda do coronel Calazans, pelos cangaceiros, Rosa e Dadá trocam

carícias, como que insinuando o abandono por seus companheiros e/ou a quebra dos

rígidos códigos eróticos do sertão. Nesse sentido, cria-se uma espécie de eixo de oposições

semânticas, no qual o masculino está ligado com o misticismo alucinado e à guerra, ao

passo que o feminino está simultaneamente ligado com uma razão não-mística e com o

amor erótico.

Cena em que Rosa aparece acariciando o rosto de Dada (suscita o amor sáfico).

A súbita aparição de Antônio das Mortes, personagem ambivalente e em

conflito consigo mesmo, a mando do poder institucionalizado (Igreja/Estado), de certa

maneira, remete o espectador novamente à narrativa euclidiana, pois, assim como Antônio

das Mortes encontrara o Santo Sebastião já morto, também as tropas legais encontraram o

beato Antônio Conselheiro já sepultado. A morte do Santo Sebastião representa o fim do

fanatismo e a esperança de uma revolução planeada no futuro, marcando claramente a

posição pedagógica não apenas de Glauber Rocha, mas de todo o ideário do Cinema Novo.

Page 69: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

69

Imagem de Antônio das Mortes diante do Santo Sebastião morto.

Na cena em que Corisco incorpora o espírito de Lampião, os movimentos da

câmera (para cima/para baixo), os planos de ação (fixo/móvel), os movimentos

(parado/brusco) e a entonação da voz de Corisco (alterada/sussurrada) fazem o

discernimento entre as falas de Corisco e as de Lampião, denunciando a atuação da câmera

enquanto uma espécie de narrador.

Cena I (Corisco) Cena II (Corisco incorporando Lampião)

Também na seqüência da Via Sacra da Vila de Monte Santo, quando a câmera

se movimenta horizontalmente em silêncio, ela assume a condição de um narrador externo

e, nessa ação, revela pelo menos dois novos aspectos representacionais: o biótipo e a

expressão de fanatismo dos beatos do sertão. Ao fazer da câmera uma espécie de narrador,

Glauber Rocha subverte regras e códigos cinematográficos, como já foi mencionado

Page 70: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

70

anteriormente. Acerca desse estilo anárquico de fazer filme, peculiar ao cinema de Glauber

Rocha, Avellar (1995, p. 93) traz um comentário de Pasoline assaz interessante:

[...] consiste neste fenômeno que os especialistas definem normal e banalmente por uma fórmula: revelar a presença da câmera. Deste modo, inverte-se a grande máxima dos cineastas até o começo dos anos 60, não revelar a presença da câmera. Esta presença se revela pela alternância de lentes, de ângulos bem diferentes entre si, pelo uso da lente zoom, pelos movimentos da câmera na mão, pelos travellings exasperados – um novo código técnico que nasceu da não obediência das regras, de um autêntico e delicioso gosto pela anarquia, de um insólito e provocador desejo de liberdade.

No sertão, enquanto o catolicismo ortodoxo alinha-se aos interesses da

aristocracia rural e age no sentido de manter o povo pacificado e submisso à ordem de um

regime de servidão, o catolicismo popular dos espoliados, representado pelos beatos,

assoma, no cinema de Glauber Rocha, como uma alternativa de ruptura e libertação. Em

lugar dos votos de pobreza, da mansidão e da caridade, os beatos do Cinema Novo se

insurgem e apregoam um reinado de prosperidade e justiça na terra. A maneira da feitura

de Deus e o Diabo na Terra do Sol, como no comentário de Pasoline, reflete a anarquia do

mundo dos vaqueiros, dos beatos, dos cangaceiros e dos cantadores, levando essas

identidades-tipo a um ponto de ligação no que diz respeito à vontade de transformação

através da insurgência.

3.2.3 O Vaqueiro Insurreto

Como se afirmou anteriormente, a intenção de Glauber Rocha, ao realizar Deus

e o Diabo na Terra do Sol, não era fazer um documentário da região Nordeste e tampouco

de seus tipos sociais mais representativos, mas fazer um texto fílmico politicamente

engajado, capaz de voltar ao passado histórico da região para ressignificar as identidades

culturais de vaqueiro, de beato e de cangaceiro, tomadas como identidades-tipo ou raízes

de uma nacionalidade brasileira/nordestina, realizando, dessa maneira, uma denúncia da

realidade do presente. Essa estratégia pedagógica de retorno ao passado histórico da região

para ressignificar aquelas identidades-tipo assume, no discurso fílmico de Glauber Rocha,

uma perspectiva notadamente marxista.

No seu discurso fílmico-materialista, “sem a cegueira de Deus e do diabo”,

Glauber Rocha procura deixar claro dois fatores que movem o processo histórico – as lutas

de classes e a violência. Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, a civilização,

implacavelmente, destrói as forças amotinadas do sertão arcaico e pobre, sintonizado numa

Page 71: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

71

ordem passadista, marcadamente mística e mítica. Nesse aspecto, é bastante visível

novamente a intertextualidade do texto fílmico de Glauber Rocha com o texto ensaístico de

Euclides da Cunha (2009, p. 269): “[...] é que neste caso a raça forte não destrói a fraca

pelas armas, esmaga-a pela civilização”. A corrida desabalada de Manuel e Rosa, seguida

da vista aérea do mar, que invade toda a tela, no último plano, em contraste com aquela

vista aérea do sertão, que invade a tela na primeira plano do filme, um pouco antes da cena

em que Manuel aparece agachado diante de uma rês morta, procura, de certo modo,

representar o triunfo da civilização sobre o sertão.

Imagem I (vista aérea do sertão). Imagem II (Fuga de Manuel e Rosa). Imagem III (mar que invade a tela).

O texto fílmico de Glauber Rocha deixa claro que a violência dos beatos e dos

cangaceiros contra a ordem institucional, pelo seu caráter místico e/ou anárquico, é

impotente para varrer a opressão do sertão. Todavia, o opressor, através de um processo de

emulação, é obrigado a reconhecer outras identidades culturais da região, agindo com

extrema violência. No texto fílmico de Glauber Rocha, devido à sua leitura do marxismo, a

violência aparece como único recurso para a emancipação das forças de trabalho, mas não

exatamente a violência anárquica e desestruturada de beatos e cangaceiros. Para Glauber

Rocha, a transformação somente será possível através da violência revolucionária, fato que

se pode exemplificar a partir de um trecho da fala de Antônio das Mortes: “Um dia vai ter

uma guerra neste sertão... Uma guerra grande sem a cegueira de Deus e do diabo”.

Ainda com relação à visão marxista de Glauber Rocha, também está patente,

como se pode ver no trecho seguinte, na compreensão de que somente através do embate

direto entre classes antagônicas é que se chega à consciência de si, mesmo que não se trate

de verdadeiras classes sociais no sentido marxista mais restrito, a saber, classes marcadas

por conflitos de ordem estritamente econômica:

Page 72: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

72

PREFEITO: esta é uma praga pior que o cangaço. Nem respeitam os pobres vigários... Mataram um padre no mês passado... É por isso que mandamos lhe chamar, tenente Antônio. A situação é ruim... (Glauber Rocha, p. 47).

Para Glauber Rocha, as personagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol -

vaqueiro Manuel, Rosa, Coronel Moraes, Santo Sebastião, o padre, o prefeito, Antônio das

Mortes, Cego Júlio, cangaceiro Corisco e Dadá - são personagens alegóricos, dado que

“projetam uma dimensão política na forma de alegoria nacional: a história e o destino

individual privado é sempre uma alegoria da situação de prontidão para a luta da sociedade

e das culturas públicas do terceiro mundo”. Pedagogicamente, Glauber Rocha, por meio da

ressignificação dessas identidades-tipo, volta ao passado histórico da região Nordeste no

sentido de denunciar o estado de alienação de um povo e, ao mesmo tempo, de afirmar a

força de uma cultura autenticamente nacional e livre da influência das culturas

estrangeiras.

Para evitar o documentário realístico, o mero registro dos tipos humanos e da

natureza agreste da região Nordeste, Glauber Rocha usa a estratégia de retirar as estrelas

do chapéu de Corisco e de mostrar a seca de relance, mais através de discursos verbais

(Manuel/Santo Sebastião/Corisco) do que de imagens. Em suas imagens fílmicas, como se

vê, na cena acima, da entrada de Manuel no cangaço, Glauber Rocha mostra a seca em

segundo plano, e também noutras imagens, como na cena em que Corisco aparece matando

os retirantes, bem como na cena da rês morta, reproduzida abaixo.

Page 73: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

73

Rês morta devido à estiagem

O vaqueiro Manuel, ao assumir a identidade cultural de cangaceiro (insurreição

anárquica) em detrimento de sua identidade cultural de beato (insurreição mística), mostra

a falência do poder jurisdicional e, como saída, apela para a justiça privada. A ruptura com

a ordem social e econômica, que o mantém cativo, começa na seqüência da feira, que

termina na partilha do gado, quando Manuel mata o coronel Moraes. No discurso abaixo,

aos poucos, Manuel percebe-se preso a um regime opressor – servidão de facto (preso à

gleba) e servidão de jure (sem direito reconhecido).

MANUEL: Bom dia seu Moraes... Já trouxe as vacas... Mas morreu ainda quatro... MORAES: Beberam no açude do norte? MANUEL: Sim, sinhô. Era onde tinha água. Foi mordida de cobra... Trouxe as doze vacas, queria fazer partilha pra acerta as contas... MORAES: Num tem conta pra acertar... As vacas que morreram foram as suas...

O clima é de tensão. Ouve-se apenas o mugido de um boi. Manuel retoma o

diálogo.

MANUEL: Mas, seu Moraes, as vacas tinha era o ferro do sinhô... Num pode ser logo as minhas que sou um home pobre... Foi azar mas é verdade; as cobras mordeu as reses do sinhô... MORAES: Isso foi descuido seu, preguiça... Fica dormindo o dia inteiro e não olha o gado direito... Tá acabado e num quero conversa, que a lei tá comigo... (Glauber Rocha, 1965, p. 39)

Nessa cena, quando Manuel chega ao curral de partilha, vestido de gibão,

mantém-se a meia distância do coronel Moraes e fala em tom moderado, de cabeça baixa e

de chapéu na mão. A angulação da câmera, de cima para baixo, focaliza o coronel Moraes,

vestido em trajes elegantes, em primeiro plano, e Manuel, submisso, numa espacialização

secundária. Manuel, ao tomar consciência de sua exploração, reage instintivamente. Na

Page 74: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

74

seqüência seguinte, a angulação da câmera mostra, em primeiro plano, o rosto de Manuel

diante do rosto do patrão – a expressão de Manuel é de enfrentamento.

Chegada de Manuel para partilha do gado. Manuel enfrenta o coronel Moraes.

A cena termina com a morte do coronel Moraes e a fuga de Manuel, que tem

no encalço os jagunços do coronel. No terreiro da casa, Manuel luta com os jagunços e a

tragédia se torna completa, pois a mãe de Manuel é assassinada. As cenas em que Manuel

vive como vaqueiro servem de prólogo para as cenas seguintes, marcadas pelas

insurreições místicas (beatos) e anárquicas (cangaceiro). Dessa maneira, revela-se

novamente o intuito pedagógico de Glauber Rocha, na medida em que procura denunciar

que as identidades culturais de beato e de cangaceiro resultam de injustiças sociais

cometidas dentro de uma ordem econômica opressora, onde o vaqueiro, alegoria do

sertanejo, é, em regra, a vítima social.

3.2.4 O Vaqueiro Oprimido

Se os recursos estéticos e as estratégias fílmicas, em Deus e o Diabo na Terra

do Sol, são abundantes, em Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, elas são

propositadamente reduzidas ao nível do necessário para destacar a crueza da região

Nordeste. As estratégias fílmicas de Nelson Pereira dos Santos coadunam-se com a

afirmação de Shohat e Stam (2006, p. 367-368) de que, “em uma simbiose entre tema e

método, a falta de recursos técnicos foi transformada em uma expressão metafórica de

força”. Essa abordagem estética foi agenciada como parte de uma estratégia mais ampla do

Cinema Novo, que tinha, como um de seus principais objetivos, denunciar, através de

elementos da cultura popular e de uma produção fílmica capaz de se contrapor aos padrões

Page 75: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

75

hollywoodianos, a situação de opressão dos trabalhadores do campo no Brasil e

especialmente no Nordeste.

O filme Vidas Secas foi realizado num momento em que o Brasil passava por

uma série de transformações na ordem econômica, social, política e cultural do país que,

em parte, foram motivadas pelo Golpe Militar de 31 de março de 1964, resultando na

deposição do presidente João Goulart (1961-1964) e possibilitando a ascensão dos

militares ao poder. No campo, as reações mais fortes, desde meados dos anos cinqüenta,

sob a orientação do Partido Comunista Brasileiro – PCB, surgiram em torno das Ligas

Camponesas, onde se destacaram a Liga Camponesa de Sapé (PB) e a Sociedade Agrícola

de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco – SAPP. As ligas camponesas lutavam pela

reforma agrária e pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores do campo. Sobre a

conjuntura do país na época da realização de Vidas Secas, Randal Johnson (2003, p. 45)

apresenta um trecho de uma entrevista de Nelson Pereira dos Santos assaz esclarecedor:

[...] naquele tempo, grandes discussões sobre o problema da reforma agrária estavam acontecendo no Brasil, e muitos grupos e setores da economia estavam participando. Senti que o filme também deveria participar no debate nacional, e que minha contribuição poderia ser a de um cineasta que rejeita uma visão sentimental. Entre os escritores nordestinos, Graciliano Ramos é o mais representativo, o que expressa a visão mais consciente da região, particularmente em Vidas Secas. O que o livro diz sobre o Nordeste em 1938 ainda é válido até hoje.

Para Nelson Pereira dos Santos, portanto, Vidas Secas é uma maneira eficiente,

estratégica e pedagógica de intervir na realidade social do país e de denunciar o problema

da reforma agrária, das condições de vida dos trabalhadores do campo e de expor,

criticamente, um sistema de exploração pré-capitalista atuante na região Nordeste desde os

tempos do Brasil Colônia. Na seqüência inicial de Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos

destaca a aridez do sertão e reduz o vaqueiro Fabiano e a sua família a um ponto indistinto

na tela. A imagem do sertão ensolarado sob o som intenso das rodas de um carro-de-boi

transporta o espectador para um mundo arcaico, para uma ordem passadista. Fabiano, sua

família e mais a cachorra Baleia, como personagens alegóricos do sertão, aparecem aos

poucos, à proporção em que o som da roda do carro-de-boi arrefece, pelo leito seco de um

rio temporário. Metaforicamente, a caminhada seguindo o curso do rio significa a saída do

sertão para o mar: do sertão para a civilização. Fabiano e os meninos apresentam-se

andrajosos, suas vestes estão rasgadas, numa parte, e noutra, cerzidas.

Page 76: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

76

Sinhá Vitória é a única personagem que ainda traz as vestes conservadas. Na

situação de retirada, o elemento físico que vincula Fabiano à sua condição e à sua

identidade cultural de vaqueiro é o chapéu de couro.

Cena da caminhada pelo leito de um rio seco

Na seqüência da caminhada, a luz é intensa e somente a cachorra Baleia parece

perfeitamente adaptada à seca, pois segue sempre à frente da família. No extremo da fome,

Sinhá Vitória mata o papagaio de estimação para alimentar a família. Nas cenas iniciais do

filme, Nelson Pereira dos Santos articula algumas de suas estratégias fílmicas para

desenvolver a narrativa. Entre elas, estão os pontos de vista subjetivos apontados por

Shohat e Stam (2006, p. 370):

[...] o filme também constrói pontos de vista subjetivos por meio de movimentos da câmera: tomadas de ângulo baixo evocam a experiência de travessia do sertão feita por um menino; um giro vertiginoso da câmera sugere a queda por tontura do filho mais novo. Outros procedimentos narrativos incluem a exposição (uma tomada de superexposição, alvejante, do sol cegando e entorpecendo personagem e espectador); a angulação da câmera (a câmera se inclina para acompanhar o movimento da cabeça do menino); e o foco (a visão de Baleia sai do foco quando Fabiano a imobiliza, como se a cachorra estivesse enfeitiçada por seu dono).

Na cena da chegada à fazenda abandonada, Fabiano e a família sobrevivem

comendo raiz de umbuzeiro ou as preás caçadas por Baleia. Fabiano e Sinhá Vitória

apreciam o pasto, a chegada das chuvas. Enchem-se de esperanças.

FABIANO: Vai chover. SINHÁ VITÓRIA: Deus queira e Virge Santíssima tamén.

Page 77: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

77

Para Fabiano e Sinhá Vitória, as chuvas não significam um fenômeno da

natureza: trata-se da vontade divina. Na seqüência do retorno do fazendeiro com o gado,

somente se ouve o aboio dos vaqueiros, o som dos chocalhos e o canto dos pássaros

silvestres. Nessas cenas, Nelson Pereira dos Santos revela dois aspectos importantes

relacionados à exploração do homem do campo: 1) O absenteísmo dos fazendeiros; 2) O

cíclico das secas. Para Randal Johnson (2003, p. 49), esses dois aspectos estão bem

definidos no filme:

O fazendeiro tem uma posição (aparentemente) ambivalente. Enquanto, num sentido positivo, ele dá a Fabiano e sua família a oportunidade de trabalharem em sua fazenda, seu papel é principalmente negativo. Ele é o proprietário ausente que compra a mão-de-obra de Fabiano. Enquanto é vantajoso economicamente, ele emprega Fabiano como vaqueiro, mas, assim que a seca retorna, manda-o embora. Além de pagar uma miséria ao vaqueiro (um bezerro de cada quatro), o fazendeiro também explora Fabiano, cobrando juros altos sobre o dinheiro emprestado a ele durante o ano. Portanto, sua atividade econômica é baseada não só na fazenda, mas também na usura.

Ao chegar, o fazendeiro sente-se incomodado com a presença de Fabiano,

dando a entender que não há lugar para retirante. A câmera enquadra Fabiano, comparado

ao fazendeiro, sempre em um plano secundário, inferiorizado. O lugar de Fabiano na terra

estranha somente se define no momento em que revela ao fazendeiro a sua identidade

cultural de vaqueiro.

FAZENDEIRO: Pode pegar seus picuás e fazer o caminho de volta. Não quero ninguém aqui. Fabiano observa calado. A luz é intensa, estourada. FAZENDEIRO: Já não disse prá ir embora!? E é prá já, ouviu? FABIANO: Sou bom vaqueiro, nhô sim. Sou bom vaqueiro, sirvo pra tudo, talvez... FAZENDEIRO: É essa sua gente? Só isso? FABIANO: An, ran! Tem mais a cachorra... Sou pra todo serviço. FAZENDEIRO: É! Como é sua paga? FABIANO: Tou acustamdo, ganho um bezerro de quatro que nasce. FAZENDEIRO: É, na quarteação tá bom. Pode ficar. FABIANO: Nhô, sim. Nhô, sim.

Fabiano e a família vivem em um mundo à parte. Na fazenda, só convivem

com os animais. Nas cenas em que Fabiano aparece entre outros vaqueiros, não estabelece

com eles qualquer diálogo verbal. Na seqüência da apartação do gado, a câmera enquadra

Fabiano e os vaqueiros no mesmo plano dos animais. Somente em três cenas, a câmera

enquadra Fabiano em situação de vantagem: 1) Na cena em que Fabiano amansa a égua

(prevalece uma alternância de silêncio e de sons não-diegéticos, a câmera em movimento

assume o ângulo do olhar do menino mais novo); 2) Na cena com os cangaceiros (Fabiano

Page 78: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

78

empunha um rifle, a câmera enquadra-o em primeiro plano, de baixo para cima); 3) Na

cena do encontro com o soldado amarelo na caatinga (a câmera na mão focaliza Fabiano

em primeiro plano e o soldado em um plano secundário, inferiorizado).

Cena em que Fabiano monta uma égua brava.

A sociabilidade de Fabiano e da família também está comprometida pelo

isolamento físico e psicológico. Na cidade, não tem amigos, estão sempre sozinhos, não

conseguem se relacionar com os outros sertanejos. As relações com o fazendeiro sempre

ocorrem de modo vertical. Fabiano percebe sua exploração, mas não sabe como reagir, não

possui capacidade para argumentar com o fazendeiro. Na cena da apartação do gado,

Fabiano é coagido a vender ao fazendeiro, por um valor irrisório, as reses que recebera na

quarteação.

FAZENDEIRO: É cem merréis por cabeça. FABIANO: Oh, xente! FAZENDEIRO: No tá bom não? FABIANO: Nhô, sim.

Na cena da apartação do gado, a câmera, ao alternar o foco do fazendeiro para

Fabiano e de Fabiano para o fazendeiro, pontua e marca a relação vertical entre o

fazendeiro (superioridade) e seus vaqueiros (inferioridade), apontando esteticamente para a

temática do vaqueiro oprimido. Fabiano e o outro vaqueiro são enquadrados no mesmo

plano, de cima para baixo, têm ao fundo o chão e os pés de uma rês. O Fazendeiro é

enquadrado em primeiro plano (de baixo para cima) e tem ao lado, num plano secundário,

um vaqueiro e, ao fundo, o céu sem nuvens.

Page 79: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

79

Imagem I – o fazendeiro (plano superior) Imagem II – Vaqueiros (plano inferior)

Na cena seguinte, Sinhá Vitória faz contas sem usar números, apenas com os

grãos (como se fosse um ábaco). Ela faz planos: roupas, calçados e uma cama de couro,

semelhante à de seu Tomás da Bolandeira, que, no filme, é apenas uma referência do

passado e um modelo de vida digna. Essa cena assinala o quanto os sertanejos sentem-se

atraídos pelos valores daqueles que os exploram economicamente, o que poderia apontar

para a concepção marxista de ideologia.

Quando Fabiano vai à cidade acertar as contas com o fazendeiro, ele,

novamente, percebe sua exploração. Esboça uma reação, mas é obrigado, pelas

circunstâncias, a recuar.

FABIANO: Me descurpe, mas tem de menos. FAZENDEIRO: Tá certo. FABIANO: É que a mulher disse que é mais, aqui tem erro na conta. FAZENDEIRO: A diferença é dos juros. Num lhe emprestei dinheiro todo esse ano? FABIANO: Eu não, mas a mulher tem miolo, sabe fazer conta. Aqui tem de menos. FAZENDEIRO: Sua paga está aí, num tem mais nada prá receber. FABIANO: Isso num tá certo, sou nego não! FAZENDEIRO: Nego aqui num tem nem um! Leve seu dinheiro. E se num quiser vá procurá emprego noutro lugar. Cabra insolente num trabalha comigo. FABIANO: Bem! Bem! Não é preciso barulho. Foi palavra à toa, me descurpe. Foi culpa da mulher, patrão. Eu num sei lê, a velha disse é tanto, eu acreditei. FAZENDEIRO: Tá bem, Fabiano. Vá trabalhar. FABIANO: Mas noutra num caio não sinhô, me descurpe.

Para mostrar a exploração do homem do campo, Nelson Pereira dos Santos, ao

conceber Vidas Secas como texto fílmico, ao invés de adotar a estrutura própria da

narrativa do romance - organizada numa série de treze contos autônomos unidos através da

manutenção do ambiente e da continuidade dos personagens - adota, além de seus próprios

elementos fílmicos, tais como a seqüência da cadeia e a dos cangaceiros, uma narrativa

Page 80: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

80

fílmica linear, forjada na reordenação, na supressão e na superposição de capítulos que, no

romance de Graciliano Ramos, acham-se separados.

Fabiano e a família estão sendo submetidos a um processo de animalização,

acham-se no mesmo plano das coisas e dos animais. A cidade marca a distância entre o

mundo de Fabiano e o mundo de seus exploradores. Por diversas vezes, nas cenas da

cidade, Fabiano sente a presença do Estado opressor. Primeiro, através do cobrador de

imposto e, depois, através do Soldado Amarelo. Na cidade, a câmera enfatiza o grau de

isolamento de Fabiano e da família ao enquadrá-los sempre sozinhos ou sufocados entre a

gente sertaneja. Ilustram bem essa última situação as cenas passadas no interior da igreja.

A multidão os comprime e o som da ladainha os emudece. No filme, a religião católica

aparece como mediadora entre opressores e oprimidos. É a religião da humildade, da

pobreza e da caridade. Como se percebe, o filme de Glauber Rocha possui uma alternativa

inexistente no filme de Nelson Pereira dos Santos: o catolicismo popular, que prega, em

lugar da humildade e da pobreza, um reino promissor (a bonança) e, em lugar da caridade,

a justiça.

Cena de Sinhá Vitória na igreja da cidade (isolada entre as rezadeiras).

Em Vidas Secas, fica claro que não há lugar para o sertanejo acometido da

seca ou do sistema servil que o explora. O vaqueiro retirante, representado por Fabiano,

pretende-se uma alegoria do retirante do sertão. Na cidade, Fabiano só tem prejuízos e

decepções, perde dinheiro no jogo e a dignidade na cadeia. Quando o Soldado Amarelo

pisa nos seus pés calejados, este percebe o quanto está isolado, pois os sertanejos que

testemunharam o abuso de poder do Soldado Amarelo não se solidarizam com ele:

afastam-se calados com a chegada dos soldados, que levam Fabiano para a cadeia.

Page 81: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

81

Cena de Fabiano com o soldado amarelo (ninguém se solidariza)

Na cadeia, Fabiano sofre agressões físicas e psicológicas. No chão do cárcere,

geme e resmunga como um animal ferido. Sem proferir uma palavra sequer, o

companheiro de cela, um vaqueiro insurreto (cangaceiro), solidariza-se com o seu

sofrimento.

Cena de Fabiano na cadeia pública (o companheiro de cela o auxilia).

Na cela, a angulação da câmera mostra o excesso da luz natural que entra pela

janela durante o dia. À noite, sob a luz agonizante de uma fogueira, ouve-se intensa

cantoria, que vai até o raiar do dia (reisado). A cena da apresentação do reisado escancara a

estratificação social da cidade sertaneja: o fazendeiro, que também detém o poder político

(prefeito), o juiz, o padre e as senhoras de família, que se reúnem para ver a cantoria do

Page 82: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

82

reisado. Em um mundo à parte, Sinhá Vitória e os meninos passam a noite ao relento, sem

saber do paradeiro de Fabiano. Essa cena termina com a chegada inesperada de um bando

de cangaceiros.

Os cangaceiros (insurretos) desafiam a ordem social e o poder

institucionalizado, representados pelo padre (mediador), o fazendeiro (prefeito) e o juiz

(poder jurisdicional). Nessa cena, a câmera enquadra as autoridades em plano aberto, e,

depois, em plano fechado pelas grades da cadeia pública. A câmera assume o olhar do

oprimido.

Cena da libertação dos prisioneiros (mediante coerção dos cangaceiros).

Nessa cena, Nelson Pereira dos Santos, deliberadamente, contrapõe, à

representação hegemônica de cangaceiro, originária do bando de Lampião e fortemente

incorporada pela cultura popular, uma outra representação. No filme, a angulação da

câmera focaliza os cangaceiros a cavalo, armados e com chapéu de vaqueiro. Por

conseguinte, aqui, os cangaceiros passam a representar os injustiçados do sertão, os que

recorrem à justiça privada, uma vez que não têm respaldo da justiça institucionalizada. Na

finalização da cena do rio, onde Fabiano lava as feridas nas costas, ele é requisitado para

ingressar no bando, o que aponta novamente para um dualismo típico do Cinema Novo: a

representação de um vaqueiro oprimido, de um lado, submisso ao sistema injusto, e um

vaqueiro insurreto, de outro, disposto a lutar pela própria dignidade.

Page 83: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

83

Cena do rio (imagem frontal dos cangaceiros).

Nessa cena, Nelson Pereira dos Santos suscita uma possível explicação para o

modo como se origina a identidade cultural do cangaceiro. Fabiano, por um momento,

hesita, pensa em entrar para o bando, mas decide continuar na vida de vaqueiro. A seca

volta com força, Sinhá Vitória atribui a estiagem e a morte do gado às avoantes. O

Fazendeiro retorna, recolhe o gado e manda Fabiano embora. Na última cena, Fabiano

emigra com a família, tornando-se um ponto indistinto que desaparece na tela.

Pedagogicamente, no texto fílmico de Glauber Rocha e de Nelson Pereira dos

Santos, o vaqueiro é representado pelo viés marxista, ou seja, como personagem alegórico

de uma classe alienada e explorada economicamente por outra. Uma importante diferença

entre Manuel e Fabiano, porém, é que Manuel apela para a justiça privada (violência

mística/anárquica) como alternativa de libertar-se do sistema de servidão que o mantém

cativo, ao passo que Fabiano não vê qualquer saída, por isso, sucumbe num degradante

processo de animalização que o faz perder o “status” humano e o reduz à condição análoga

à de animal. No estágio mais avançado desse processo, a cachorra Baleia, em estado de

humanização, chega a ser um contraponto para a identidade cultural de Fabiano, na medida

em que se torna um animal em processo de humanização, ao passo que Fabiano é um

humano em processo de animalização.

3.2.5 O Vaqueiro Animalizado

Não conseguia entender as razões por que Graciliano Ramos fora levado à cadeia.

Essa questão tornou-se clara quando li Vidas Secas, pela segunda vez, e quando vi o filme.

Page 84: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

84

Embora Vidas Secas tenha sido escrito em 1938, não hesito em afirmar que o conjunto

anterior da sua literatura o mandaria à prisão já em 1936. Em 1965, Nelson Pereira dos

Santos transpôs Vidas Secas para a linguagem do cinema. Conseguiu manter, e acentuar,

muitos aspectos da obra original, sobretudo o naturalismo de Graciliano Ramos.

Acerca do naturalismo no romance e no filme, cabem algumas reflexões

preliminares. O naturalismo de Graciliano Ramos é atípico e não se enquadra na

modalidade de naturalismo explorado pela literatura brasileira na segunda metade do

século XIX. Distingue-se, o naturalismo de Graciliano Ramos, por meio de um processo de

regressão ou de perda do “status” humano. Assim sendo, não se trata da manifestação de

um atavismo biológico (instintos primitivos), como pretendia o Naturalismo de influência

evolucionista e darwinista, predominante no século XIX e início do século XX e presente

mesmo na obra de Euclides da Cunha. A perda da potencialidade humana de Fabiano e da

família tem razões externas, nomeadamente socioeconômicas: ela está sendo desperdiçada

mediante a opressão exercida pela propriedade privada (fazendeiro) e pelo Estado (soldado

amarelo/cobrador de impostos).

Três aspectos principais assinalam o processo de animalização ou dispersão do

“status” humano de Fabiano e da família: 1) A perda da sociabilidade; 2) A perda da

linguagem articulada; 3) A sucumbência ao regime de servidão. No mesmo nível

existencial de Fabiano e da família, restam apenas os vaqueiros anônimos e os animais da

fazenda. A racionalidade, singularizada no assenhoramento do poder econômico e político,

estabelece a diferença no que diz respeito à identidade cultural entre os espoliados

(Fabiano) e a aristocracia rural (fazendeiro). O filme de Nelson Pereira dos Santos explora,

esteticamente, esse processo a partir de uma série de perdas – perda da linguagem

articulada, dos bens, da dignidade –, do isolamento social e do esvaziamento das

identidades culturais (perda de vínculos com a cultura). Como no romance homônimo de

Graciliano Ramos, é através de Fabiano que Nelson Pereira dos Santos procura demonstrar

o processo de perda do “status” humano caracterizado por uma sucessão de perdas –

mormente a perda da linguagem articulada.

No filme, os meninos, que não têm nomes, quando juntos, aparecem calados,

não dialogam entre si. Na cena da rezadeira, o menino mais velho principia um diálogo

com a mãe, mas é asperamente reprimido. Em seguida, retoma-o com a cachorra Baleia,

que, comparada a Fabiano e à família, está em processo de humanização, numa inversão

surpreendente.

Page 85: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

85

MENINO MAIS VELHO: Mãe o que é o inferno? SINHÁ VITÓRIA: É um lugar ruim demais. MENINO MAIS VELHO: Ruim demais como? SINHÁ VITÓRIA: Ah!

Na cena final, a saída da fazenda, num dos raros momentos de diálogo entre

Sinhá Vitória e Fabiano, Nelson Pereira dos Santos, através da insatisfação, do queixume

de Sinhá Vitória, deixa evidente que o processo de animalização é uma conseqüência de

causas sociais, ou seja, a opressão de um sistema de exploração pré-capitalista (um sistema

de servidão).

SINHÁ VITÓRIA: hum... No que tão pensando? FABIANO: Bicho miúdo num pensa. SINHÁ VITÓRIA: Que será deles? Um pouco mais eles botam corpo. FABIANO: Aí já vão poder vaquejar. SINHÁ VITÓRIA: Ô xente! Que idéia... Nossa Senhora que livre eles dessa desgraça. Hum, vaquejar... Nesse mundão de Deus havemo de encontra um lugá prá nós, nem que seja uma roça de pouca serventia, mas que dê pro dicomer o ano inteiro. Com os poder da Virgem a vida da gente vai mudá... Roça bonita, muito milho, feijão... Fartura e sustança pros meninos se criar. Vamos ter vida nova, sem carecer de conta do gado, a se daná no mato feito a peste. Depois a gente pára numa cidade grande. Vai ter tanta coisa pra gente vê, pra esses óis que só conhece a desgraça. Os meninos vão prá escola, aprender tudo. Ter sabê, lê no livro, fazer conta no lápis que nem seu Tomás. FABIANO: Grandes coisas... Seu Tomás sabia muito, é! Mas quando botou o pé no mundo, se acabou no caminho. A leitura dele serviu prá alguma coisa, serviu? Num serviu prá ele agüentar nem uma légua. SINHÁ VITÓRIA: E quem... E quem vai andá sempre no mato, escondido que nem bicho? Um dia temo que virá gente. Podemo continuar que nem bicho, escondido no mato... Podemos? Podemos? FABIANO: Não podemo não.

No filme, a visão marxista de Nelson Pereira dos Santos é patente na denúncia

de um sistema de poder opressor e arcaico, que impõe sérios limites à liberdade dos

trabalhadores do campo. Fabiano submete-se forçosamente à servidão que é incapaz de

avaliar - a servidão de facto e a servidão de jure. Pela primeira, está preso à gleba e, pela

segunda, acha-se sem direitos juridicamente reconhecidos contra o senhor (fazendeiro).

Em Vidas Secas, Nelson Pereira dos Santos manifesta, com ênfase a

estratificação do mundo sertanejo, dividido de maneira tripartite: cultural, econômica e

socialmente. Como estratégia pedagógica para denunciar a divisão do mundo sertanejo e

destacar as diferenças identitárias, Nelson Pereira dos Santos vale-se do contraponto entre

duas formas de manifestação cultural. De um lado, apresenta a cultura popular (bandinha

de pífaros/reisado/rezadeira/cangaceiros) e, de outro, a cultura erudita (lição de violino). A

cultura popular está ligada à gente espoliada do sertão, que a concebe e a mantém viva;

enquanto a cultura erudita cabe exclusivamente à aristocracia rural (fazendeiros).

Page 86: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

86

Na cena do festejo, pelo menos dois aspectos fundamentais podem ser

apreendidos: a criatividade e a pobreza material dos integrantes da banda de pífaros

(musicalidade/trajes humildes). Na cena do reisado, nota-se que somente o povo participa

diretamente dessa manifestação cultural herdada do colonizador e aclimatada à região. A

aristocracia rural assiste à cantoria, mas dela não participa e tampouco se identifica

diretamente. Para a aristocracia rural, o reisado tem um caráter decorativo, apenas. O

reisado, que é uma manifestação de louvor e reverência a Cristo, termina por ser uma

manifestação de louvor e reverência aos usufrutuários do poder econômico e político da

região (o prefeito, o juiz, o padre e os fazendeiros).

Num mundo à parte, em um acentuado processo de animalização, Fabiano e a

família não se identificam tanto com as manifestações da cultura popular (folclore), pois

dela não participam, não assistem a ela, sequer. Em todo o filme, a cena da rezadeira é o

único momento em que Fabiano e a família participam efetivamente da cultura popular. O

processo de animalização de Fabiano e da família é tão brutal que mesmo os seus vínculos

com as representações e as identidades culturais populares estão em vias de esvaziamento.

Esse efeito é mais perceptível no discurso de Sinhá Vitória. Na cena final, da retirada, ela

renega até mesmo a identidade cultural de vaqueiro:

SINHÁ VITÓRIA: Que será deles? Um pouco mais eles botam corpo. FABIANO: Aí já vão poder vaquejar. SINHÁ VITÓRIA: Ô xente! Que idéia... Nossa Senhora que livre eles dessa desgraça. Hum, vaquejar... Nesse mundão de Deus havemo de encontrá um lugá prá nós, nem que seja uma roça de pouca serventia, mas que dê pro dicomer o ano inteiro.

No contexto do marxismo, traduz-se a perda do status humano pelo termo

reificação. Tanto no romance de Graciliano Ramos como no filme de Nelson Pereira dos

Santos, esse processo foi traduzido, esteticamente, através de recursos que apontam para a

animalização dos protagonistas, especialmente de Fabiano. Diferente do personagem

Manuel, de Glauber Rocha, que realiza o percurso do vaqueiro insurreto bem como o

percurso do vaqueiro beato, Fabiano não adere a nenhuma dessas alternativas, vistas por

Glauber Rocha como únicos caminhos viáveis para fazer frente à opressão social e

econômica. Por essa razão, a Fabiano, não resta outro percurso senão o da perda de seus

bens, sua dignidade e da própria humanidade. Do espectador desafiado por essa identidade

cultural, por sua vez, espera-se mais do que fruição: espera-se um aprendizado sobre o que

o Cinema Novo considera como as principais mazelas da realidade do Nordeste e do

Brasil.

Page 87: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

87

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível traçar alguns paralelos entre a proposta estético-pedagógica de

Glauber Rocha e a de Nelson Pereira dos Santos, sendo que algumas delas apontam para a

própria concepção estética do Cinema Novo. Os cinemanovistas tinham uma acepção

própria de arte e cinema e, a partir dela, procuraram romper com alguns conceitos da

estética tradicional, principalmente o conceito kantiano da finalidade sem fim, mais

conhecido pelo jargão parnasiano da arte pela arte, segundo o qual a arte possuiria um fim

em si mesma, independentemente de seus conteúdos representacionais.

Desse modo, o Cinema Novo também se opõe à concepção do cinema como

mero entretenimento, predominante nas grandes produções industriais, marcadas pelas

concepções ditadas principalmente por Hollywood. Para os cinemanovistas, o cinema

possui função social e compromisso pedagógico com a realidade nacional, sendo que sua

estética deve estar a serviço desses dois pressupostos. Coerentes com o intuito de realizar

um cinema crítico e engajado, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos vão ao interior

do Nordeste brasileiro e a algumas fontes literárias, estrategicamente, recuando no tempo

histórico a fim de ressignificar as supostas raízes da cultura regional, levantando, desse

modo, questões que acreditavam afetar a realidade social do Brasil como um todo.

Ao explorar, em sua proposta fílmica, o tema da violência (mística e anárquica)

conforme praticada por beatos e cangaceiros, Glauber Rocha dirigia uma crítica ao império

das forças maniqueístas (bem/mal) cristalizadas, no sertão nordestino, por um sistema pré-

capitalista de exploração do homem pelo homem. No filme, o catolicismo popular assume

a condição de marcador de uma identidade cultural, caracterizada pela resistência e pela

insubordinação ao catolicismo ortodoxo, este último alinhado aos interesses da aristocracia

rural. Além disso, no contexto fílmico de Glauber Rocha, o vaqueiro é construído como

uma identidade-tipo e alegórica, aludindo às vítimas de um sistema socioeconômico

opressor em atividade no sertão.

Por outro lado, todas essas identidades-tipos estão colocadas numa tênue

fronteira com relação à identidade cultural do vaqueiro. Nesse processo, portanto, as

representações e as identidades culturais colocadas em cena mostram-se transitórias,

sincréticas e/ou perpassadas umas pelas outras. No centro de uma “Babel” de

representações e identidades culturais, portanto, o Santo Sebastião, bem como os

Page 88: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

88

cangaceiros e os beatos, aludem tanto a entidades bíblicas (Jesus, Virgem Maria, São

Sebastião) como aos Santos da cultura popular (São Jorge Guerreiro/ São Cosme e

Damião/São Lázaro). Da mesma forma, os cangaceiros apresentam-se tão místicos e

fatalistas quanto os beatos do sertão e estes, por sua vez, podem ser tão violentos e

anárquicos quanto os próprios cangaceiros.

Conforme aponta a epígrafe do filme, a representação do vaqueiro criada por

Glauber Rocha mantém verdade e imaginação indissociáveis. Algumas das principais

referências históricas mobilizadas para esse trabalho de construção híbrida do Santo

Sebastião, do vaqueiro Manuel, de Antônio das Mortes e de Corisco são, entre outros,

Antônio Conselheiro/José Lourenço/Sebastião da Pedra Bonita, Severino Tavares, Pedro

Batista da Santa Brígida, Major José Rufino, Corisco e Lampião. Tais figuras sociais

compartilham a sina de terem sido condenados a desaparecer e, ao mesmo tempo, de serem

transformadas em lenda pela cultura popular (cordel) e pelo folclore do Nordeste.

Diferentemente da proposta de Glauber Rocha, que mostra a insubordinação e

a violência da classe popular, Nelson Pereira do Santos, por sua vez, optou por enfatizar o

homem em um irreversível processo de sucumbência cujo limite beira a animalização do

humano. O vaqueiro de Nelson Pereira dos Santos é uma alegoria, uma identidade-tipo

representativa de todos os homens oprimidos por um sistema pré-capitalista de exploração

– a servidão de facto e a servidão de jure, e/ou vitimados pela seca que assola o sertão

nordestino –, sem condições nem mesmo de se posicionarem frente ao dualismo

dicotômico da violência anárquica e religiosa que impera no sertão, cujos principais tipos

representativos são o cangaceiro e o beato.

Em Vidas Secas, a cultura popular não é posta como raiz de uma cultura

independente e autenticamente brasileira. Na verdade, ela é apresentada como um

elemento de diferenciação de identidade, jamais como elemento de uma unidade cultural

brasileira em sentido amplo. Para Nelson Pereira dos Santos, portanto, prevalece sobre as

gentes brasileiras uma espécie de “apartheid” social tácito, responsável pelo fracasso do

contrato social e pela manutenção da estratificação cultural, econômica e social dos

homens. Em razão da forte opressão no campo, tem início um processo de reificação que

assume as formas de uma animalização quase naturalizada. Diferente das personagens de

Glauber Rocha, Fabiano não é capaz de se identificar nem mesmo com os referenciais

culturais mais patentes de sua classe social, a saber: o cangaceiro, o beato, o reisado, o

cantador, entre outras identidades culturais consagradas pela cultura folclórica e popular do

Nordeste. Nesse processo de esvaziamento, a identidade cultural de retirante assume a

Page 89: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

89

forma de uma síntese do esvaziamento das identidades culturais como um todo. É o que

resta do vaqueiro, do agregado, do cantador, do beato, do cangaceiro...

Ao recuar no tempo histórico do Nordeste brasileiro, Glauber Rocha e Nelson

Pereira dos Santos, cada um à sua maneira, postulam uma pedagogia cultural cujo principal

objetivo é transformar a realidade histórico-social por meio da ressignificação de

identidades-tipo do Nordeste ou por meio de uma crítica da realidade agrária. Para Glauber

Rocha, a ressignificação das identidades culturais do sertão levará à afirmação de uma

unidade cultural, forte e livre da influência das culturas estrangeiras. Já para Nelson Pereira

dos Santos, por sua vez, a estratificação cultural, econômica e social dos homens sertanejos

e brasileiros não deixa margem para o surgimento de uma unidade cultural, restando

apenas a denúncia de um processo aviltante de desumanização. Ressignificar as

identidades-tipo não lhe parece o bastante, pois o regime de exploração do homem do

campo brutaliza e provoca a perda do humano.

Page 90: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

90

REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 3. ed. Recife: FNJ, Ed. Massangana, São Paulo: Cortez, 2006.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2005.

AUMONT, J. et al. A estética do filme. 5. ed. São Paulo: Papirus, 1995.

AUMONT, J; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. 3. ed. Campinas: Papirus, 2007.

AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

BARROSO, Gustavo. Terra de sol. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia da Letras, 2007.

BRANCO, Renato Castelo. O Piauí, a terra, o homem e o meio. São Paulo: Quatro Artes, 1970.

CAMARA JÚNIOR, J. Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 20ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. São Paulo: Global, 2004.

COSTA, Flávia Cesarino. Primeiro cinema. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008 - (Coleção Campo Imagético).

COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. 2 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. In: SANTIAGO, Silviano (org.). Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000. 413 p. (Biblioteca luso-brasileira; Série brasileira V. 1).

DACANAL, José Hidelbrando. O romance de 30. 3. ed. Porto Alegre: Novo Século, 2001.

Page 91: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

91

FABRIS, Mariarosária. Um olhar neo-realista. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

_____ A ordem do discurso. 8. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

FREIRE, Gilberto. Manifesto regionalista. 6. ed. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1997.

GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7 ed. Rio de Janeiro: Dp&A, 2002.

HALL, Stuart; GAY, Paul du. Cuestiones de identidad cultural. Buenos Aires: Amorrortu, 2003.

JOHSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo. São Paulo: T.A. Queiroz, 1982.

JÚNIOR, Benjamin Abdala. O romance social brasileiro. São Paulo: Editora Sipone, [2000?].

LEITE, Sidney Ferreira. Cinema brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.

LOPES, José de Ribamar (org). Literatura de cordel – antologia. 2 ed. Fortaleza: BNB, 1983.

MANEVY, Alfredo. Nouvelle vague. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. 3ª ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008 - (Coleção Campo Imagético).

MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. 3. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008 – (Coleção Campo Imagético).

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2007.

MONZANI, Josette. Gênese de deus e o diabo na terra do sol. São Paulo: Annablume, fapesp; Salvador: Fundação Gregório de Matos; UFBA, 2005.

NEVEU, E; MATTELART, A. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

NOGUEIRA, Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1997.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.

Page 92: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

92

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

PORTELA, Eduardo; CRISTOVÃO, Fernando; TELES, Gilberto de Medonça. O romance de 30 no nordeste. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983.

ROCHA, Glauber. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

_______. Revolução do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de alice: o social e o político na pós-modernidade. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Critica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte, 2004.

____.Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

_____. Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 5. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

_____. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 6. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

____(org.). O que é, afinal Estudos Culturais. 3ª ed. 1 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

STEINBERG, Shirley, KINCHELOE, Joe. Cultura infantil: a construção corporativa da infância. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

TEIXEIRA, I. A. de C; LOPES, J. de S. M. (Orgs.). A escola vai ao cinema. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

TOLENTINO, Célia aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

VANOYE, F; GOLIOT-LÈTÈ, A. Ensaio sobre a análise fílmica. 4. ed. São Paulo: Papirus, 1994.

Page 93: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

93

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chaves: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.

_____. Cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

____. (org.). A experiência do cinema. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

_______. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

____. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

Page 94: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

94

ANEXO (Canções)

1. Primeira Aparição de Sebastião Manuel e Rosa viviam no sertão Trabalhando a terra com as próprias mãos Até que um dia, pelo sim, pelo não, Entrou na vida deles o Santo Sebastião. Trazia a bondade nos olhos, Jesus Cristo no coração. 2. Coro dos Beatos

As ovelhas desgarradas Que andam em pastos perdidos Procurando o seu rebanho E o senhor da boa vida. Quero deixar este mundo Com a minha triste sina, Procurando o seu rebanho E o senhor da Boa Vida.

3. Feira Sebastião nasceu do fogo No mês de fevereiro, Anunciando que a desgraça Ia acabar com o mundo inteiro Mas que ele podia salvar quem estivesse do lado dele, Que era, que era santo, Era santo milagreiro. 4. Fuga Meu filho, tua mãe morreu, Não foi de morte de Deus. Foi de briga no sertão, De tiro, que jagunço deu. 5. Primeira Canção de Antônio das Mortes Jurando em dez igrejas Sem santo padroeiro Antônio das Mortes Matador de cangaceiro Matador, matador,

Page 95: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

95

Matador de cangaceiro. 6. Intermezzo Da morte de Monte Santo Sobrou Manuel Vaqueiro Por piedade de Antônio Matador de cangaceiro. Mas a estória continua, Preste mais atenção: Andou Manuel e Rosa Nas veredas do sertão Até que um dia, pelo sim, pelo não, Entrou na vida deles Corisco, diabo de Lampião. 7. Corisco Lampião e Maria Bonita Pensava que nunca, que nunca morria. Morreu na boca da noite, Maria Bonita ao romper do dia. 8. Segunda Aparição de Antônio das Mortes Andando com remorso, Volta Antônio das Mortes Vem procurando noite e dia Corisco de São Jorge. Vem procurando noite e dia Corisco de São Jorge. 9. Final Procurando pelo sertão Todo mês de fevereiro O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Procura, Antônio das Mortes! Se entrega, Corisco! Eu não me entrego não! Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão! Se entrega, Corisco! Eu não me entrego não! Não me entrego ao tenente, Não me entrego ao capitão, Só me entrego só na morte,

Page 96: UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL PROGRAMA DE PÓS ... · programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo ulbra uma pedagogia cultural militante: representaÇÕes e identidades ... pós-graduação

96

De parabelo na mão! (Corisco) Mais forte são os poderes do povo! Farreia, farreia povo, Farreia até o sol raiar... Mataram Corisco, Balearam Dada. 10. Epílogo O sertão vai virar mar E o mar vai virar sertão! Tá contada a minha estória, Verdade, imaginação. Espero que o sinhô tenha tirado uma lição: Que assim mal dividido Esse mundo anda errado, Que a terra é do homem, Não é de Deus nem do Diabo!