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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Programa de Pós-Graduação em Letras
A DIALÉTICA DO CAOS: UMA INTERPRETAÇÃO DE O CÃO E OS
CALUANDAS DE PEPETELA
Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
A DIALÉTICA DO CAOS: UMA INTERPRETAÇÃO DE O CÃO E OS
CALUANDAS DE PEPETELA
Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do
título de Mestre em Letras Vernáculas.
Orientadora: Profa. Doutora Maria Teresa
Salgado Guimarães da Silva.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria
Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas.
Aprovada por:
Profª Drª Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva(Presidente)
Profª Drª Gumercinda Gonda
Profª Drª Claudia Fabiana
Profª Drª Luana Antunes
(Suplente)
Prof. Dr. Mário César Lugarinho
(Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Gloria, Pedro Paulo Machado Nascimento.
A Dialética do caos: Uma interpretação de O Cão e os
Caluandas de Pepetela. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de
Letras, 2016. xi, 260f.: il.; 31 cm.
Orientador: Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/
Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, 2016.
Referências Bibliográficas: f. 89-95.
1.Literaturas Africanas em Língua Portuguesa. 2. Literatura
Angolana. I. Salgado, Maria Teresa. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.
RESUMO
A DIALÉTICA DO CAOS: UMA INTERPRETAÇÃO DE O CÃO E OS
CALUANDAS DE PEPETELA
Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria
Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas.
Muitos equívocos se cometem em relação à dialética quando utilizada como
justificativa de uma única doutrina ou visão de mundo. Isso não constitui dialética, visto
que, nesse caso, não se distingue contrários para diálogo, síntese ou superação, mas para
combate e posterior vitória de um deles, identificado com o bem. A partir desse ponto de
vista pseudo-dialético, maniqueísta por excelência, toda a realidade é julgada com base
nos padrões determinados pela doutrina “correta”: é nesse âmbito que interpretamos O
Cão e os caluandas de Pepetela como uma narrativa que provoca o questionamento dessa
pseudo-dialética que, na verdade, busca submeter o real a uma variedade de dualismos.
Esse questionamento se dá por um modo dialético de se lidar com o real que, na obra, se
revela pelos relatos feitos da presença de um cão andarilho pela cidade de Luanda. Este
simboliza o caos, porém não como um valor meramente negativo, mas como aquilo que
permite a criação do novo e do inesperado para além de qualquer dualismo intransigente.
O caos suscitado nos personagens pela chegada desse cão acaba por refutar dogmas
pessoais e sociais fundamentados numa visão de mundo maniqueísta.
Palavras-chave: Dialética; Literatura Angolana; Pepetela; Diálogo; Caos; Maniqueísmo.
ABSTRACT
THE DIALECTS OF THE CHAOS: AN INTERPRETATION OF THE
PEPETELA’S O CÃO E OS CALUANDAS
Pedro Paulo Machado Nascimento Gloria
Orientadora: Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas.
Many misconceptions are made related with dialects when used to justify a single
doctrine or worldview. That is not what dialectics is made of, since, in this question, one
can not distinguish opponents for the dialogues, synthesis or overcoming, but to the fight
and victory of one of them, identified with the good. From this point of view, pseudo-
dialectical and Manichaeist, all reality is analysed inside very determined patterns pointed
by the “correct” doctrine: We inferred from this scope that Pepetela's O Cão e os
caluandas is a narrative that create a questioning of this pseudo-dialectics that, actually,
seek to submit the Real to a variety of dualities. This questioning is made through a
dialectic way to deal with the Real that, in this work, are revealed by the reports made in
the presence of a vagabond hound in Luanda City, It simbolizes the Chaos, though, not as
a mere negative value, but as something that enables the creation of a new and unexpected
thing beyond of any intransigent duality. The chaos provoked in the characters by the
arrival of this hound finishes to deny personal and social dogmas based in a manichaeist
view of the world.
Keywords: Dialectic; Angolan Literature; Pepetela; Dialogue; Chaos; Manichaeism.
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação aos poucos e raros que não se deixaram seduzir pela fatal
facilidade e falsa obviedade dos maniqueísmos politicos, religiosos e intelectuais deste
mundo.
AGRADECIMENTOS
Aos professores Manuel Antônio de Castro, Cinda Gonda, Maria Teresa Salgado
e Antonio Jardim. A Fabrício Gonçalves, Verônica Filíppovna, Rogério Amorim e
Leonardo Perin. Tão diferentes caminhos de diálogo que, nos anos de graduação, me
despertaram as questões que deram origem a esta dissertação.
SUMÁRIO
1. Introdução ......................................................................................................................... 1
2. Luanda Caótica: Lugar de escuta da Angola Polifônica .............................................. 6
2.1. Espaços ........................................................................................................................... 6
2.2. Vozes .............................................................................................................................. 7
2.3. O Cão: A Geografia de Luanda .................................................................................... 10
2.4. O Cão: A Memória de Luanda ..................................................................................... 11
2.5. O Caos .......................................................................................................................... 17
3. A Dialética do Caos: A Obra do Cão ............................................................................ 25
3.1. Dialética ........................................................................................................................ 25
3.2. A Obra do Cão .............................................................................................................. 29
4. Entre Judeus: A voz dialética do mulato e a ternura do judeu de Angola ............... 38
5. O Elogio da Ignorância: A condenação de Ngunga e a apoteose do
maniqueísmo .......................................................................................................................... 46
6. Os colonizados em Papelópolis e a Liberdade da Toninha: ou A Ordem
Burocrática e a Resistência da Utopia ................................................................................. 62
7. Conclusão ........................................................................................................................ 73
8. Referências Bibliográficas ............................................................................................. 76
1
1. INTRODUÇÃO
Daí também que, ao nos debruçarmos
sobre a realidade angolana, estejamos de
fato, tentando o resgate de nossa própria
realidade. Porque apesar de todos os
rótulos que nos são impostos, apesar de
todas as crises fabricadas por interesses
financeiros, conseguimos manter a chama
da indignação e do pensamento.
(Cinda Gonda)
Previno que qualquer dissemelhança com
fatos ou pessoas pretendidos reais foi
involuntária.
(Pepetela, em O Cão e os caluandas)
Em tempos onde várias ideologias, por suposta boa intenção, se proclamam
como a melhor, a mais libertadora ou a mais correta, relegando todas as outras à esfera
do errado a ser erradicado para o bem das sociedades, é preciso relembrar da dialética
como um modo de interpretação do real que não se deixa esgotar e fossilizar nos
extremos do sim e do não. A pluralidade do pós-moderno pode iludir de que a
intolerância, a transformação do outro em um “não” a ser reprimido, é assunto passado;
porém, o que se tem visto é que a pluralidade, em vez de ser entendida como a
convivência tolerante dos múltiplos, tem sido interpretada como permissão para a
existência de múltiplos intolerantes. Chega-se mesmo a defender o direito de relegar o
outro à esfera do errado, do abominável e do que deve ser excluído, e tudo isso em
nome de uma suposta liberdade de expressão. O maniqueísmo tem resistido tenazmente
na pós-modernidade; a visão binária de mundo tem resistido mesmo nas mentes que
acreditam ter uma visão dialética da vida, pois sua “dialética” não passa de um estranho
embate entre tese e antítese, até que sua tese vença. Em tais tempos, em que a essência
da dialética deve ser relembrada e vivida, há escritores que cumprem essa demanda em
sua sociedade. Nas literaturas de língua portuguesa, nas últimas décadas, poucos tem
2
sido tão incisivos no cumprimento dessa demanda social e artística como o angolano
Pepetela. Pelo modo como o faz, é genuinamente angolano, pois está profundamente
enraizado nos acontecimentos de sua nação; a tal ponto que sua obra acaba por se
confundir com a própria tentativa de (re)construção de Angola como nação. Porém,
pelo alcance com que tece literariamente a questão da dialética do real, seu apelo pode
ser universal. A percepção do tratamento universal da questão, da qual pensá-la em
nossa sociedade nos parece de extrema urgência, foi o motivo de termos escolhido uma
das obras de Pepetela para esta dissertação. A obra escolhida foi O Cão e os caluandas,
uma obra do período intermediário de Pepetela: está exatamente entre as obras utópicas
do período de luta pela libertação de Angola da colonização portuguesa e as obras de
desilusão com a utopia no período da guerra civil.
O Cão e os caluandas é um texto diferenciado em vários sentidos. Classificado
como um romance, apresenta uma estrutura narrativa aparentada com uma seleção de
segmentos narrativos, documentais e até teatrais que possuem em comum a presença de
um cão andarilho da cidade de Luanda. Cada um desses segmentos, cada qual com seu
narrador próprio, foram colhidos, escolhidos e dispostos por um narrador-organizador
sob o pretexto de procura desse cão. Será em torno, portanto, da figura desse cão que
será feita a interpretação contida nessa dissertação. Como não foi possível interpretar
cada um dos segmentos que compõe a obra, optamos por nos deter naqueles que nos
pareceram ser capitais na estrutura de O Cão e os caluandas, afim de nos
concentrarmos na questão dialética que perpassa não só essa obra, mas a visão crítica
do real presente nas obras pepetelianas. Estabeleceremos diálogo, principalmente, com
as obras As Aventuras de Ngunga, Mayombe (ambas anteriores a O Cão e os
caluandas) e A Geração da Utopia (posterior). Mostraremos também o elo da literatura
de Pepetela com importantes autores do pensamento ocidental a quem a própria obra
faz menções, sejam diretas, sejam “digeridas” literariamente. A linguagem simples e
direta, por vezes amável e simpática de Pepetela, não deve enganar: sua obra trata de
questões capitais a toda civilização e se alimenta de grandes referências tanto do
pensamento ocidental quanto da cultura dos povos africanos. Assim, sua literatura
cumpre seu papel de construir pontes e mostra ser aberta a acolher as faces mais
distintas do humano; é desse modo que devemos compreender o humanismo literário
de Pepetela.
No primeiro capítulo desta dissertação, “Luanda Caótica: Lugar de escuta da
Angola Polifônica”, empreendemos uma interpretação da narrativa O Cão e os
3
Caluandas como interpretação dialética da realidade e construtora de uma geografia
literária luandense e angolana. Primeiro se fará a exposição e interpretação do espaço
inaugurado na obra a partir do espaço de Luanda, por sua vez, metáfora do espaço do
Estado Angolano. Faremos uso de algumas das noções de geografia literária na análise
dos meios pelos quais os relatos escritos acerca do cão escrevem a cartografia de
Luanda. Após a reflexão a partir desse espaço ficcional que não se confunde com o
físico, embora a ele faça referência e o ressignifique, e do papel descentralizador do cão
andarilho, se fará uma análise do povoamento desse espaço. Tal povoamento é feito
pela memória dos moradores de Luanda, acerca do que viram, ouviram falar ou mesmo
do que conviveram com o cão. Este, como memória, a partir da ausência e da presença,
do esquecimento e da lembrança, instaura a crise (maka, confusão), que permite a
construção de outros espaços e a trama da memória como realização. Desse modo, o
cão traz à tona aspectos da realidade que se encontravam silenciados, voluntariamente
ou não. É então que introduziremos a questão do caos como possibilitador dialético das
novas possibilidades de leitura e construção de espaço e memória, ou seja, realidade.
Três segmentos da obra foram selecionados para esse fim; são eles Luanda assim,
nossa, O primeiro oficial, O cão escapa de aparecer no jornal e os relatos da luta do
cão contra a buganvília. Porém, obviamente, a interpretação é feita tendo-se em vista e
fazendo-se referência a toda a obra, sem a qual não seria possível interpretar a figura do
cão, multifacetada, única, provocadora das mais diferentes reações emocionais e
questionamentos.
No segundo capítulo, “A Dialética do Caos: a Obra do Cão”, com o apoio
teórico das concepções de Gerd Borheim em sua Dialética: Teoria e Praxis, se refletirá
sobre uma visão dialética de mundo em contraposição a uma visão maniqueísta. A
visão dialética de mundo presente em O Cão e os caluandas, representada e
possibilitada pelo cão, dialogará por meio deste com a figura de Mefistófeles, um diabo
que aparece pela primeira vez a Fausto na forma de um cão na obra de Goethe, e com a
procura pelo ser e/ou não ser do diabo do personagem Riobaldo de Grande Sertão:
Veredas de Guimarães Rosa. A figura do cão passa a ser relacionada à figura do diabo,
porém destituído da visão negativa das doutrinas e concepções de fundo maniqueísta
que marca tanto algumas religiões quanto filosofias no Ocidente. O diabo passa a ser
considerado, numa visão de mundo dialética, como um princípio de retorno ao caos e
como um agente de desestabilização: Caos e desestabilização necessários para
promover a libertação quanto a estruturas caducas e possibilitadores da criação do
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novo. Pretendemos mostrar o quanto o cão de O Cão e os caluandas pertence a uma
visão africana das forças que foram relacionadas ao mal e ao “demoníaco” no Ocidente,
visão africana essa que as considera parte integrante da natureza e da existência, e não
mal a ser vencido ou suprimido.
No terceiro capítulo, “Entre Judeus: A voz dialética do mulato e a ternura do
judeu de Angola”, procuraremos mostrar o quanto, na obra pepeteliana, a figura do
mulato está ligada à um visão de mundo dialética, enunciada como o “talvez”, ignorado
e hostilizado num mundo maniqueísta de “sim” e “não”. Essa ligação não se dá por uma
relação racial ou de apologia à mestiçagem, mas por um viés apenas simbólico. Será
interpretado o segmento Entre Judeus de O Cão e os caluandas a partir do ponto de
vista acima exposto, concluindo-se numa reflexão acerca da “ternura” na obra de
Pepetela, relacionando o segmento supracitado com aspectos da obra As Aventuras de
Ngunga, do mesmo autor.
No quarto capítulo, “O Elogio da Ignorância: A condenação de Ngunga e a
apoteose do maniqueísmo” apontaremos as conseqüências do julgamento maniqueísta
da realidade. O Elogio da Ignorância, o primeiro dos dois segmentos em forma
dramática de O Cão e os caluandas, será interpretado como a não realização e até
negação, por parte da trajetória angolana até então, daquele ideal humanista
personificado no personagem Ngunga de As Aventuras de Ngunga. Buscaremos
explicar a relação paródica e de pensamento com o Elogio da Loucura de Erasmo de
Roterdã, que inclusive é citado nominalmente no segmento. Mostraremos, também, o
quanto a crítica pepeteliana contida nesse segmento crucial da obra, algo como que uma
miniatura dela mesma, dialoga de maneira bem próxima com o pensamento do
educador brasileiro Paulo Freire na obra Pedagogia do Oprimido, acerca do fracasso
dos movimentos libertadores ao buscarem mudar um estado social sem atentar em
remover certos padrões maniqueístas de julgamento herdados da estrutura social
anterior. A falta de diálogo, resultante da visão do outro como “coisa” útil a ser
manipulada para um fim maior, também será brevemente abordada a partir da
consideração das relações Eu-Tu e Eu-Isso na obra Eu e Tu de Martin Buber.
No quinto e último capítulo, “Os colonizados em Papelópolis e a Liberdade da
Toninha: ou A Ordem Burocrática e a Resistência da Utopia”, demonstraremos que o
fato de a utopia da democracia socialista em Angola ter acabado sufocada em meio a
um processo de administração social burocrático é uma das maiores críticas de O Cão e
os caluandas. Primeiramente, será exposta a natureza da burocracia; para tanto,
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recorreremos às noções de Max Weber em sua obra Economia e Sociedade, na qual a
burocracia é analisada como forma de opressão aceita por seu caráter aparentemente
neutro. Após interpretação de segmentos de O Cão e os caluandas compostos por
documentos burocráticos, interpretaremos a desilusão com a utopia inicial em vista da
realidade angolana no pós-independência. Porém não a interpretaremos como uma
desistência da utopia, mas como a permanência da utopia em outras formas. A utopia da
luta por um ideal de mudança social definitiva dá lugar à visão dialética da utopia do
inconformismo perante qualquer situação que se diz definitiva e imutável. A figura da
toninha, pela qual o cão se apaixona, revelará essa nova postura utópica, que não
pretende ajustar a realidade a um ideal, mas ouvir as demandas dessa realidade. A
utopia se estabelece como diálogo entre a fala do sonho e a fala da realidade.
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2 . LUANDA CAÓTICA: LUGAR DE ESCUTA DA ANGOLA POLIFÔNICA
A poesia do caos
Chegou sem avisar
Alvoroçou todos os pássaros
Fez muita gente debandar.
A poesia do caos
Pairou sobre as favelas
Como uma aurora boreal
E desfez todas mazelas.
A poesia do caos
Eclodiu no planalto
E fez o foco central
A postura de arauto.
A poesia do caos
Se fez presente na invenção
De dissertar a diferença
Entre tecnologia e evolução.
(Vício Primavera)
2.1. Espaços
A obra de arte é instauradora de espaço e tempo. Ao entrar no espaço e no
tempo de O Cão e os Caluandas de Pepetela, percebe-se um espaço que independe
daquele definido pelo Estado Angolano, embora seja construído a partir dessa
cartografia previamente definida e mesmo a ressignifique. De modo algum trata-se de
ver na obra um espaço alienado da realidade dos espaços angolanos históricos; há sim
na obra um espaço autônomo, fundado pela linguagem e que só existe a partir da
linguagem. Porém, justamente por, sendo literário e ficcional, existir a partir da
linguagem, esse espaço se configura como releitura dos espaços da realidade, mais
particularmente dos espaços da realidade angolana.
Tratando-se de uma nação africana, é importante distinguir Estado, nação e
povo, como bem observa Kwame Appiah:
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A história da Europa metropolitana no último século e meio foi a da
luta para estabelecer a condição de Estado para as nacionalidades.
Mas, na independência, a mesma Europa deixou a África com Estados
à procura de nações.
(Appiah, 1997, p.227)
Isso vai se refletir na construção do espaço em diversas obras literárias
africanas, entre as quais a presentemente estudada. Acerca disso o próprio Pepetela se
pronunciará numa entrevista a Michel Laban, ao ser perguntado se haveria algum tema
em comum nas suas obras: “Há um tema que é comum, que é o tema da formação da
nação angolana; isso faz o denominador comum” (In Laban, 1990, p.771).
Na obra pré-independência de Pepetela, seus personagens pareciam conceber a
construção dessa nação a partir da libertação quanto ao colonizador português, mas uma
obra como Mayombe já anunciava a possível intriga entre as várias etnias na tentativa
de governarem o mesmo Estado. Quando ocorre a independência, sendo Pepetela
ministro do governo, a escrita de O Cão e os Caluandas marca a grande decepção (não
tão inesperada) que vai culminar na desilusão profunda de A Geração da Utopia, já nos
tempos da guerra civil. A escolha de Luanda como símbolo de Angola não é gratuita:
Na verdade, a particularidade africana de Luanda permite defini-la
como uma multiplicidade, na medida em que ela seria, na realidade, a
junção de três cidades distintas [...] em sua multiplicidade é, também, e
talvez mesmo pelas contradições que a percorrem, a imagem símbolo
de Angola.[...] Não causa espécie, portanto, que a cidade seja referência
obrigatória no imaginário nacional e cenário privilegiado da literatura
produzida no país. Dessa forma, cremos que estudar a literatura
produzida em Angola é obrigatoriamente referir-se a Luanda, sua
história e sua gente. (Macêdo, 2008, p.13-14)
Desse modo, Luanda em Pepetela se torna mesmo a materialização da obra
literária, tal qual trataremos a seguir: não um local de escuta de um narrador, de uma
ideia, de uma estética ou de uma voz, mas local de escuta de vários narradores, de
várias ideias, de múltiplas estéticas e das mais variadas vozes. Luanda e a obra literária
tornam-se local de escuta de uma Angola polifônica, universalizada a ponto de
representar a polifonia do mundo em que todos os povos vivem.
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2.2. Vozes
O Cão e os Caluandas é um ponto sísmico na literatura angolana e uma obra
única, mesmo na tradição literária luciânica, a qual pertence pelo uso da paródia e da
sátira sem caráter moralizante, pela liberdade de imaginação e, principalmente, pela
mistura de gêneros que marca a obra.
Transcrições de depoimentos, entrevistas e conversas informais,
relatórios, atas, ofícios, requerimentos, diários, cenas em modo
dramático, matérias jornalísticas, entrelaçam-se constantemente, de
modo a dificultar ou impossibilitar a classificação genérica. [...]
Pepetela utiliza essa “instabilidade genérica” como estratégia
narrativa destinada a problematizar o estatuto ficcional, postura
afinada com o espírito e método da tradição luciânica. (Martins, 2008,
p.2)
Outra característica importante da tradição luciânica é o distanciamento do
narrador. No caso de O Cão e os Caluandas, o narrador se distancia de tal modo que
torna-se um organizador dos relatos de muitos narradores. Isso o próprio narrador-
organizador diz no seu “Aviso ao leitor” em que, inclusive, também se coloca
distanciado do tempo em que os relatos aconteceram:
Peço esforço para compreenderem a linguagem, que é a da época em
que aconteceram os casos. Os que conheceram o cão pastor-alemão
deixaram os documentos escritos ou gravados, que me resumi a pôr em
forma publicável. Foi preciso um inquérito rigoroso, muitas solas
gastas, a procurar as pessoas e, sobretudo, convencê-las a falar, a
escrever ou a darem-me na candonga fotocópias de documentos. O
pouco conseguido aí está. (Pepetela, 2006, p.9)
Não poderia mesmo ser única e contada por um só narrador essa obra que se
coloca como reflexo das angústias e contradições de um povo plural e de uma nação
fragmentada em tantas. Do mesmo modo, essa obra que também reflete um contundente
o desejo de unidade não poderia ser um mero emaranhado de fragmentos e vozes
narrativas dispersas. Assim, Pepetela constrói com mestria uma narrativa composta de
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narrativas independentes, cada qual com seu próprio narrador, sendo ordenadas na obra
por uma espécie de narrador organizador. É a polifonia, numa obra que traz as questões
de um povo plural, levada até as últimas consequências.
[..] as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-
se numa unidade de ordem superior à homofonia. E se falarmos de
vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a
combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de
princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer
assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de
muitas vontades, a vontade do acontecimento. (Bakhtin, 2008, p.23).
Nesse aspecto, a polifonia da obra realiza a unidade da comunidade e não a
uniformidade do coletivo. O coletivo trataria da uniformização das vozes traduzida na
voz única do narrador; já a comunidade traz a audição das várias vozes narrativas no
espaço comum ofertado pela obra, numa intensa unidade. A unidade da comunidade
pressupõe a coexistência com a multiplicidade, a uniformidade do coletivo impõe a
transformação de cada um dos múltiplos em um só deles. Nisso reside, inclusive, a
principal característica do projeto de nação que perpassa toda obra pepeteliana, uma
unidade onde coexiste a multiplicidade e não uma uniformização em que, sendo
imposto um padrão, aquele que não se adequa a ele é eliminado e o que se adequa deixa
de ser pessoa para ser apenas mais uma peça de uma grande máquina. A obra pepeliana
faz-se, desse modo, lugar de escuta de uma Angola polifônica, onde nem mesmo o
narrador tem o direito de fazer sua voz se sobrepor às demais.
A estrutura de O cão e os calunas, mais que a de qualquer outra obra
pepeteliana, reflete essa polifonia. Ela é composta de seções ou segmentos, cada um
deles com um narrador diferente. Visto sua total descontinuidade e independência, é
preferível chamá-las seções ou segmentos e não capítulos. Um “Aviso ao leitor” de um
narrador organizador antecede todos os relatos e a obra se fecha com dois relatos
também da sua autoria. Os segmentos tem apenas duas coisas em comum, a procura de
um cão e a presença do cão entre os moradores de Luanda: o cão e os caluandas. O
pretexto é a busca do narrador organizador por esse cão; e para tal colhe relatos das
pessoas que o teriam visto. Entre eles, como que os amarrando, há um relato em forma
de diário que conta o cismar e a luta do cão contra uma buganvília que cresce tomando
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conta de todo o quintal. Essa luta é uma metáfora da realidade angolana no pós-
independência e mesmo da própria obra, como veremos na última seção deste capítulo.
2.3. O Cão: a Geografia de Luanda
Os relatos que formam a obra não são de forma alguma sobre o cão, mas acerca
do cão. À sua volta giram os relatos das vozes que vão formando sua imagem, como a
circunferência feita por um compasso, desenhada à volta e a partir do ponto central sem
jamais tocá-lo. Isso dá a cada relato que forma essa circunferência vários significados e
interpretações. Deve-se ter o cuidado de não se perder na linha do círculo e suas
nuances, nos relatos e no que se restringem apenas ao seu tempo e espaço, mas o centro
estará presente em cada visão do círculo, ainda que não observada antes, e causará
makas excentricamente no espaço de Luanda. Há em O Cão e os Caluandas o retrato e
a caricatura, o momento histórico e a mensagem imediata, mas não só isso, antes, todas
essas faces nada mais são que a circunferência.
Por ser centro e nunca fixar-se num ponto – o cão nunca se fixa num local e por isso
a multiplicidade de relatos – ele se torna um agente descentralizador do espaço
constituído. É seu andar que cria o espaço, e Luanda já não é um lugar por onde passa o
seu caminho, mas por onde passa seu caminho que se torna Luanda.
Atravessou toda a cidade, indiferente ao transito, às novas ruas e
prédios novos, aos polícias e buzinadelas. Luanda era mesmo só o
ponto de passagem obrigatória do Mussulo para o seu destino, uma
quinta próspera nos arredores de Viana, onde tinha vivido uma
menina que escrevia os seus dramas num diário. (Pepetela, 2006,
p.166)
Esse caminho é tanto estendido às ruas de Luanda quanto ao coração dos
caluandas, que sofrem verdadeiras metamorfoses após sua chegada. A cartografia de
Luanda é formada pelo caminhar de suas patas, feito real pelas palavras dos que o
viram: o caminho do cão, um caminho da linguagem.
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O que é um caminho? Caminho é o que se deixa alcançar. A saga do
dizer é o que, sendo encantado, nos deixa alcançar a fala da
linguagem. O próprio da linguagem abriga-se, portanto, no caminho
com o qual a saga do dizer deixa aqueles que a escutam alcançar a
linguagem. Só podemos ser esses que escutam à medida que
pertencermos ao dizer e sua saga. O deixar alcançar, isto é, o caminho
para a fala, vem precisamente de um deixar pertencer à saga do dizer.
(Heidegger, 2003, p.205)
Estamos diante de uma obra poética em que a linguagem, pelos relatos de um cão,
devolve à geografia seu sentido primordial, o de escrita do reconhecimento humano do
espaço onde está e do qual faz parte, tal como Max Sorre sinalizava no século XIX ao
dissertar sobre a Geografia Humana: “[...] não é possível fazer Geografia Humana sem
imaginação. Esta tem sido sempre necessária. Onde falta a imaginação não há sentido
da diferença, ou seja, da originalidade de cada combinação local (Sorre, 2003, p.142)”.
E esse último período da citação do eminente geógrafo francês já não surpreenderia na
boca de Pepetela ou de um crítico de suas obras ao comentá-las.
2.4. O Cão: a Memória construtora de Luanda
É o não fixar-se que permite ao cão desenhar um cartografia da cidade; afinal, na
obra, os lugares só existem a partir do momento em que o canino passa por elas. Porém
quem povoa esse espaço é a memória dos moradores de Luanda que o viram, e são
esses relatos que, por sua vez, formam a obra. Convém não confundir memória com
lembrança, pois “o esquecimento pode estar tão estreitamente confundido com a
memória, que pode ser considerado como uma de suas condições” (Ricoeur, 2007,
p.435). O cão não se deixa apreender em detalhes pela lembrança numa obra que,
ironicamente, é toda lembrança dele, ou melhor, lembranças, já que as lacunas do
esquecimento provocam a multiplicidade de vozes da lembrança do cão. Isso permite
que seja lembrado de formas completamente diferentes, de modo que nem pareça o
mesmo cão.
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No texto em questão, ele assume nomes de origem grega, portuguesa,
latina e africana, ao longo dos vários capítulos: Jasão, Leão dos
Mares, Cupido, Lucapa. Seu caráter polivalente abre-se, portanto a
inúmeras interpretações [...] à medida que ele circula pela cidade de
Luanda, vêm à tona as diversas contradições sociais, econômicas,
políticas e/ou afetivas, das personagens envolvidas nas situações.
(Salgado, 2009, p.298)
Porém, é a ausência do cão que reforça a sua presença como força ressignificadora
da realidade angolana, como presença que dá ver o que está presente e não se quer, ou
não se deixa, ver; como presença simbólica que faz pensar o que não se quer pensar,
que revela ser o que não se quer que seja.
Memória é fazer vibrar a presença do que está aparentemente ausente, é
fazer aparecer o que é o que tem vigência como ser, tem sentido como
ser. Desse modo, se poderia entender memória como pensar, tanto no
sentido de propiciar, dar ensejo à reflexão, quanto no sentido de colocar
um penso, pôr um curativo, curar. Curar diz restabelecer, recuperar,
restaurar. Memória diz, portanto, também de uma dinâmica de re-
estabelecimento, de recuperação, de restauração da unidade, do ser.
(Jardim, 2005, p.157)
Assim, o fundamento da memória, na obra, é o esquecimento, e dele emergem os
relatos, lembranças do cão, como flashes. Esse emergir é seletivo, um “abuso da
memória” como teoriza Paul Ricoeur:
Por que os abusos da memória são, de saída, abusos do esquecimento?
Nossa explicação, então, foi: por causa da função mediadora da
narrativa, os abusos de memória tornam-se abusos de esquecimento. De
fato, antes do abuso, há o uso, a saber, o caráter inelutavelmente
seletivo da narrativa. Assim como é impossível lembrar-se de tudo, é
impossível narrar tudo. A ideia de narração exaustiva é uma ideia
performaticamente impossível. A narrativa comporta necessariamente
uma dimensão seletiva.
(Ricoeur, 2007, 455)
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Assim, durante toda a obra o cão vai trazer seletivamente a lembrança do que estava
esquecido ou silenciado e alguns dos relatos que formam a obra se parecem menos
narração de fatos do que uma descrição de como o cão afetou os caluandas por fazer vir
à sua memória o que não queriam lembrar. Os relatos são memória dos afetos que o cão
provocou ao por em crise e ressignificar a realidade de cada um dos narradores e não
lembrança objetiva da sua imagem e paradeiro, tal como o narrador-organizador parece
ter desejado ao começar a colher relatos sobre o “seu” cão perdido. Durante os relatos,
o animal parece até mesmo perder sua materialidade, torna-se vários cães.
O mesmo cão, no mesmo dia, a mil quilômetros de distância. E esta?
[...] Que certeza essa que eu tinha de ser o mesmo cão? Não há muitos
cães pastor-alemão? Como podia eu seguir-lhe o rasto sem me perder
no labirinto de cheiros formados por todos os pastores-alemães de
Luanda? Não é essa a dúvida?
(Pepetela, 2006, 164)
Ele sempre some sem deixar rastros e, paradoxalmente, o relato dos que cruzaram
com ele são seus únicos rastros possíveis. Mesmo na seção intitulada O Cão escapa de
aparecer no jornal, que é um artigo de notícia de um jornal luandense, o cão desaparece
antes de ser fotografado para o jornal. Sua imagem não é apreensível, sempre escapa.
Assim, ele se torna invisível, sem dados objetivos precisos, algo quase do domínio da
lenda; porém, nesse esquecimento de sua materialidade, a memória dele persiste:
Aparece de certa forma como estranho, para uma concepção de
memória comprometida com a imagem, com o visual, que o que seja
constituidor da substantividade da memória seja alguma coisa invisível.
No entanto, cremos que assim é, pois concreto não é apenas o que tem
massa, mas o que desencadeia realidade. (Jardim, 2005, p.156)
Analisemos, por exemplo, a seção acima citada, intitulada O Cão escapa de
aparecer no jornal. É um dos relatos centrais da obra, apesar da sua brevidade e da sua
forma: uma notícia de jornal. Numa festa, na Feira Popular de Luanda, por conta do Dia
Mundial da Criança, um cão começou a ladrar insistentemente. Era um cão da raça
pastor-alemão, usado como cão policial pelos colonizadores antes da independência e
durante a guerra de libertação (fato que é lembrado várias vezes durante a obra), o que
14
certamente fez que os mais velhos rememorassem nele toda uma lembrança amarga da
opressão colonial.
Alguns populares mais velhos até o quiseram afastar com pontapés.
Mas o animal insistia. Ladrava freneticamente para um embrulho que se
encontrava no chão, ao lado do sistema elétrico do carrossel. Tal foi a
confusão e a insistência, que apareceu o serviço-de-ordem. Um policial
avançou para o objeto misterioso e o cão calou-se logo. (Pepetela, 2006,
74)
Ao se verificar, descobriu-se que o cão havia achado uma bomba. Havia uma
bomba direcionada à futura geração, por mais que os mais velhos se incomodassem
com os latidos do cão. Obviamente, se pensa na guerra civil que se seguirá à escrita de
O Cão e os Caluandas. O ladrar do cão é um alerta quase profético do que estava por
vir. Diz o futuro ao fazer referência ao passado: memória. Nesse segmento da obra,
conseguiu-se desarmar a bomba e o cão herói desapareceu antes que o fotografassem,
como sempre sua imagem perdeu-se. Porém, em outros relatos fica bem claro que essa
bomba ainda está por desarmar, como no relato Luanda assim, nossa, em que seu
narrador, catetense, rememora com certo rancor dos malanjinos ao contar sobre seu
amigo Malaquias, que abrigou o cão. A briga acerca do cão fez com que o narrador
expusesse todo o seu ódio acerca do outro grupo e o título “Luanda assim, nossa” não
poderia ser mais irônico que nesse relato em que a presença do cão faz saltar aos olhos
a existência do conflito étnico, da Luanda dividida.
A maka foi fruto de ressentimentos antigos deles que ainda hoje estão
vivos; os malanjinos escondem, mas esperam a desforra. Digo-lhe,
deixem os malanjinos tentar levantar a cabeça que lha cortamos de vez.
Depois da maka acabar, ficamos amigos. É a única exceção que faço, é
o Malaquias. Porque em minha casa nem cão, nem gato, nem
malanjino. (Pepetela, 2006, p.30)
O cão, em tais relatos, se torna tanto alerta como presença real da guerra. Em
outros, se torna alerta e presença da colonização, mas uma colonização com outra
roupagem, que tem como máscara a hierarquia dos cargos públicos e a burocratização
dos serviços e como face o Sistema Econômico Mundial.
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O romance O Cão e os Caluandas não questiona apenas o estatuto de poder
europeu-ocidental, tal como traduzido e legado por Portugal, mas abarca em seu
questionamento a intenção de domínio de várias etnias angolanas sobre outras. Em As
Aventuras de Ngunga, obra anterior à independência, em plena guerrilha, isso já se
rascunhava: o valor da educação que ensina a questionar tanto a visão totalizadora do
colonizador português quanto a obediência cega, “dogmática”, ao velho negro (um dos
aspectos mais estereotipados da “tradição ancestral” angolana).
[...] Até que, uma noite, [o professor] resolveu dizer alguma coisa.
Contou a sua vida no kimbo do presidente Kafuxi. No fim, o
professor disse:
- Sim, eu conheço-o. A minha escola devia ser instalada lá. Mas ele
recusou dar-me de comer. Dizia que já dava aos guerrilheiros, que não
podia mais. O povo queria a escola, mas ele é o Presidente.
- Não se pode arranjar outro presidente? – perguntou Chivuala.
- A Imba falava-me muito da escola – disse Ngunga. – Ela queria
estudar. Assim, perdeu por causa do pai.
- O Kafuxi é o mais velho dali – disse União. – Ninguém tem coragem
de o tirar de Presidente. Já no tempo dos tugas ele era chefe do povo.
Mas não pensem que é só ele.
E Ngunga pensou que havia coisa que não estavam certas. Mas ele
ainda era miúdo...
(Pepetela, 1980, p.26)
Nos romances pós-independência, isso fica mais patente. Afinal, a liberdade
chegara, mas ninguém se sentia verdadeiramente livre; percebeu-se que, com o
colonizador português expulso, havia ainda outro colonizador, em nível mundial – O
Sistema Econômico que gera colonizados e colonizadores, opressores e oprimidos,
como o próprio Pepetela expõe lucidamente em entrevista a Wilson Bueno:
Esta geração realizou parte do seu projeto, a independência. Mas nós
lutávamos também pela criação de uma sociedade mais justa e mais
livre, por oposição à que conhecíamos sob o colonialismo. Por razões
várias (constantes interferências externas, desunião interna e erros de
governação), esse objetivo não foi atingido e hoje Angola ainda é um
16
país que procura a paz e está destruído, economicamente
desestruturado e com uma população miserável, enquanto meia dúzia
de milionários esbanja e esconde fortunas no estrangeiro.
(Bueno,2000)
De fato, um romance como O Cão e os Caluandas é, numa fala aparentemente
bem-humorada, risonha e terna, uma compreensiva, amarga e dolorosa ironia da
“liberdade” de uma terra onde se formava um nova espécie de colonização através da
economia. Uma colonização perpetuada por um nacionalismo socialista apenas
nominal, por disputa de poder por parte de facções étnicas (estrategicamente fomentada
pelos portugueses durante a colonização) e por uma acomodação da maioria, como se a
maior libertação e felicidade a que o povo angolano pudesse chegar fosse a expulsão
dos portugueses. A guerra civil desmentiu isso dolorosamente e, terminada a mesma,
isso continuaria sendo desmentido pela perpetuação da miséria da maioria da população
angolana, cada vez mais “assimilada” a modelos culturais estrangeiros. A Geração da
Utopia, romance escrito imediatamente após a guerra civil, será talvez o marco de
maturação desse desencanto, pressentido em Mayombe e Ngunga e tornado fato em O
Cão e os caluandas:
- O problema fundamental é que o Malongo e o Vítor são os neo-
burgueses, os que enriqueceram ou pensam enriquecer à sombra do
Estado e têm comportamento de novos-ricos, com tudo de trágico e
ridículo que essa palavra comporta. E há os lumpen-burgueses, os
candongueiros de todas as espécies, os que começaram por pequenos
negócios de rua e vão crescendo, sem cultura nem ética. Qual das
duas classes comerá a outra? São classes com origens sociais
diferentes, mas de igual apetite insaciável. Chegarão a fazer uma
aliança e a criar um novo empresariado? Vão vender-se ao estrangeiro
ou serão capazes de o assimilar? Seguirei com curiosidade esse
combate que vai preencher o fim do século.
(Pepetela, 1991, p.307)
O cão de Pepetela parece lembrar a todo momento que o homem angolano havia
exemplarmente se voltado contra a colonização explicita do seu país; porém,
acomodara-se diante de uma colonização mais sutil, imposta por outros meios. Seus
17
efeitos não parecem tão visíveis, mas são tão catastróficos quanto. Podem ser
percebidos nos falsos diálogos, onde uma voz se sobrepõe à outra, trazendo a conversa
como pretexto para censurar o outro ou para demonstrar pela retórica a sua
superioridade. No segmento intitulado O primeiro oficial, isso é verbalizado de forma
mesmo brutal quando o seu narrador, chefe de uma repartição, reage ao fato de uma das
crianças protestar contra ele ter prendido o cão:
Pois é, esses kandengues de agora, com as porcarias que andam a
aprender na escola e nas ruas, já refilam com os pais: que o povo tem o
direito à palavra e eles são o povo. Veja lá! Na minha casa, não. Eu falo
e o resto ouve. Quem traz o dinheiro para casa? Quando eles ganharem
o seu sustento e tiverem uma mulher em quem mandar e bater, então
aceito que venham discutir comigo. Antes não, sou eu o chefe. Com
este feitio energético é que subi na Repartição, se fosse um mole, um
pau-mandado, ainda hoje era escriturário-datilógrafo de segunda, como
na altura da independência. (Pepetela, 2005, p.24)
A desumanização do outro se arraigou tão forte em certos setores da sociedade
angolana, que muitos oprimidos interpretaram a independência como álibi para se
tornarem opressores. São, em sua maioria, efeitos da assimilação da época colonial,
resquícios de uma visão de mundo onde não há relação de diferentes senão colonizador-
colonizado, superior-inferior. Antes, esse mesmo personagem já havia até mesmo
verbalizado sua admiração pelo colonizador e seu senso de ordem e, em sua crítica um
tanto paradoxal à burocracia, justifica toda opressão colonial em nome do bom
ordenamento das coisas, lembrando do tempo colonial até como um bom tempo, um
tempo “em que as coisas funcionavam”.
A burocracia é reprovável, lembro-me dum escrito de Lenine sobre o
assunto, mas a ordem é necessária. E boas maneiras... Mas esta gente de
hoje já esqueceu a exploração colonial, julgam que têm todos os
direitos, mesmo de terem as coisas mal as pedem, como se no tempo
colonial fosse diferente... E devemos confessar […] que os tugas lá
nisso de administração sabiam fazer as coisas. Eu aprendi com eles e
não tenho vergonha de o dizer. Dava trabalho, às vezes um gajo bravava
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mesmo, mas era preciso. Os papéis sempre direitinhos, as cópias
certinhas, o classificador geral em ordem, os arquivos especiais, etc.,
tudo bem ordenadinho, limpo, sem uma ressalva, bem agrafados ou
furados, enfim, um gosto, um prazer, um orgulho de profissão.
(Pepetela, 2005, p.21)
Recorrente nesse trecho, assim como no Elogio da Ignorância, de que trataremos
especificamente em outro momento desta dissertação, é o uso artificial de teóricos
comunistas, fruto da ignorância quanto aos mesmos, que em Luanda assim, nossa é
verbalizado de forma altamente irônica para justificar o mais nefasto egoísmo
capitalista e o ranço racista do seu narrador:
- Marx disse: primeiro a barriga, depois as ideias e os sentimentos.
Malaquias abanou só a cabeça, não respondeu. Ficou esmagado com a
citação do seu ídolo, tinha o retrato desse branco judeu na sala de
visitas. (Pepetela, 2005, p.32)
2.5. O caos.
No segmento Luanda assim, nossa, seu narrador assim descreve Luanda após
fazer uma lista dos vários grupos que vivem na cidade:
Isto é uma Babilônia ingovernável, uma Torre de Babel. Os esgotos não
funcionam, as ruas parecem queijos, as árvores imitam as ovelhas da
Europa, tosquiadas rentes, os ratos confundem-se com coelhos, os
passeios sujos, os prédios a feder de podres, a luz elétrica sempre com
falhas, os jardins mortos.
(Pepetela, 2006, p.31)
Logo depois pergunta: “De quem a culpa?” A resposta: “[...] nós, os genuínos,
sabemos que o problema reside na diversidade da população”. E a solução: “Se me
deixassem, expulsava daqui todos os não-genuínos, todos, esses é que empestam a
cidade. Ia ver que num mês Luanda era uma cidade orgulho nosso”.
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A descrição desse caos urbano faz referência, ao contrário do que se possa
pensar, ao centro de Luanda e não à Luanda dos musseques. Quando o cão,
descentralizador, passa pelo centro da cidade, é instaurado o caos, ou seja, se expõe a
falta de qualquer centro ou princípio ordenador. O narrador do segmento citado, porém,
atribui o caos à diversidade, ou seja, atribui a crise do espaço à multiplicidade do seu
povoamento. Acontece que em O Cão e os Caluandas (e poderíamos dizer que na obra
de Pepetela em geral) o caos não é negativo, é ele que permite que o novo aconteça; a
ordem entendida como definitiva sempre aprisiona, a ordem necessita de um ordenador
e da manutenção desse ordenador para manter-se, porém só no caos é possível a
diversidade.
O caos é sobretudo o princípio da possibilidade de tudo. Trata-se de
uma experiência de ser e de realidade tão rica e inaugural que dela se
origina tudo, o que é e não é, nela se nutre toda a criação em qualquer
área ou nível, seja do real ou irreal, seja do necessário ou contingente.
(Leão, 2010, p.38)
Obviamente, aqui não se faz a apologia da bagunça gratuita, da falta de
infraestrutura urbana etc. O caos que se diz aqui é a crise, a maka que o cão sempre
instaura onde aparece, a exceção a toda ordem, o que permite o novo, e mesmo as
ordens não teriam sido possíveis se antes delas não houvesse o caos. Os narradores e
personagens de O Cão e os Caluandas são recém saídos de uma ordem em que eram
oprimidos, mas se assustam perante o caos, porque criar a partir dele é ainda mais
difícil que destruir a ordem opressora. Construir um país em liberdade exige construir a
partir do caos, pois a construção a partir de uma ordem já estabelecida já não é em
liberdade, mas readaptação de um antigo sistema opressor a novos opressores. Acerca
disso nos deteremos mais demoradamente no capítulo desta dissertação em que
trataremos do segmento intitulado Elogio da Ignorância, em diálogo com reflexões da
obra Pedagogia do Oprimido, do pensador e educador brasileiro Paulo Freire. A obra
de Pepetela é um constante chamado a criar a partir do caos e uma denúncia das
opressões explícitas ou não das diversas ordens que se colocam como salvadoras do
caos. A cartografia de Luanda apresentada por O cão e os caluandas é uma cartografia
do caos. Essa cartografia de modo algum limita ou define o caos, antes é a escrita do
caminho criativo no caos (do cão ou do leitor), afinal, fosse o caos cartograficamente
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definível e pensável, não seria mais o caos, mas tão somente um conglomerado de
coisas fora do lugar. Nesse caso, só seria possível rearranjar, mantendo o já estabelecido
com aparência diferente, mas nunca criar.
Ninguém nunca consegue pensar sobre o caos, por mais que se deseje
e se empenhe. Quem o pretendesse nem mesmo saberia o que estaria
fazendo, i.e., que não estaria pensando sobre o caos, mas sobre
uma coisa. Pois só é possível pensar sobre o que tem sentido, nunca
sobre o princípio de ordem e articulação da possibilidade de haver
sentido. (Leão, 2010, p.37)
A luta contra a diversidade acaba sendo também contra o caos que permite a
criação. Resta saber se as sociedades realmente prentendem destruir a diversidade a
favor de alguma ordem definitiva (como aliás sempre fizeram), a favor de uma “Luanda
cidade orgulho nosso”, na triste ambiguidade desse termo. Não é à toda que a presença
do cão, instauradora do caos, se dá pela memória de cada um dos que a relataram, na
multiplicidade de lembranças e esquecimentos constituindo a unidade da memória de
Luanda.
Pela memória que o ser humano se configura como um ser passível de
constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida que é pela memória
que se estabelece a possibilidade de vigência da unidade. A memória
é um modo privilegiado de consolidação da unidade e, por isso, um
modo privilegiado de consolidação de toda a possibilidade de
relacionamento entre o que foi, o que é e o que será. Desse modo, é
pela memória que o caos pode ser converter em cosmos. É por meio
dela, memória, entre outras coisas, que o ser humano cria a
possibilidade de escapar dos estreitos limites impostos pela vigência
de uma espácio-temporalidade subjugada por critérios advindos
unicamente de imediatas relações inter-materiais, e, desse modo, ser
capaz de pleitear vigências espácio-temporais que se configurem a
partir da possibilidade.
(Jardim, 2005, p.157)
21
Pela memória instaura-se o caos, que permite toda possibilidade, também pela
memória convoca-se a criar a partir dele. As andanças do cão denunciam uma Luanda
caótica não para simples constatação, mas convocando os que fazem parte do seu
caminho, os narradores e o leitor, à criação de uma Luanda que se configura em mundo,
em uma unidade.
A totalidade que denominamos mundo é, assim, um imenso
movimento em que precisamos perceber uma imensidão de diálogos,
possibilitado pelo “aberto”, pela condição da vida de ser uma
permanente doação. Dessa forma, dialogamos conosco mesmos, num
autodiálogo, e dialogamos com o outro, seja ele um ente próximo, ou
uma concepção de mundo completamente distante e diferente da
nossa. Também dialogamos com o passado e com as possibilidades
do futuro, dialogamos com os limites que encontramos e com o não-
limite que percebemos aberto ao homem. [...] quanto mais nos
abrimos aos diversos diálogos, mais amplo é o “nosso mundo”. Mas o
que é mais verdadeiramente este dialogar? Ele só é possível porque é
propriamente um estar no entre, uma travessia sobre a própria
liminaridade, na tensão de todas as possibilidades de realização.
(Tavares, 2014, p.164)
Assim, é o caos que abre a possibilidades de se constituir e realizar um mundo
sem entraves doutrinários maniqueístas. Essa realização, porém, não acontecerá senão
no diálogo, ou seja, na relação com o outro e, mais profundamente, na visão dialética da
realidade, onde passado e futuro, limite e não-limite, particular e universal, angolano e
não angolano não são mundos distintos e irreconciliáveis, mas faces diferente de um
mesmo mundo, de uma mesma unidade. Nesse âmbito, o particular e o universal não
são contrários; antes, um implica o outro.
É nesse ponto que talvez melhor se evidencie o universal na obra de Pepetela. O
que, num primeiro momento, se mostra um projeto de construção de Angola como
nação, ou seja, um caso particular, se torna algo de caráter universal, justamente pela
dialética que move esse projeto. As vozes que exprimem esse projeto em seus romances
não dizem o mesmo, como se fossem apenas fantoches ideológicos de um autor bom-
propagandista, antes dizem até mesmo contrários. Na sua obra, a unidade se dará não
por unificação das vozes, mas justamente pela diversidade das vozes. Será pelo caos
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polifônico que se fará a criação da unidade. Não há espaço na ficção pepeteliana para as
artificiais perfeição e ordem que as propagandas ideológicas tentam impor nas visões da
realidade que propagandeiam, a não ser como sátiras dessas propagandas enganosas,
que se querem universalistas, na arrogância de pretenderem que tudo o que exista
realmente seja como sua ideologia prega. Antes, a dialética do caos na realidade
angolana, que uma obra como O Cão e os Caluandas expressa e busca a ponto de
mesmo a estrutura da obra ser-lhe reflexo, permite que a obra de Pepetela sirva como
questionamento de qualquer estrutura social onde o diálogo não tem espaço, onde um
maniqueísmo estrutural diga quais vozes devem ser ouvidas e quais não o devem, o que
é e o que não deva ser. Esse questionamento universal só é possível pela radicalidade
com que Pepetela revela em seus personagens questões profundas da realidade
angolana. Acerca disso, são oportunas as observações de Lukács, tratando da obra de
Goethe, acerca do Particular e do Universal.
Existe uma grande diferença no fato do poeta buscar o Particular para
o Universal ou ver no Particular o Universal. No primeirio caso nasce
a alegoria, onde o Particular só tem valor enquanto exemplo do
Universal; no segundo, está propriamente a natureza da poesia, isto é,
no expressar um Particular sem pensar no Universal ou sem se referir
a ele. Quem concebe este Particular de um modo vivo expressa ao
mesmo tempo, ou logo em seguida, mesmo sem o perceber, também o
Universal.
(Lukács, 1978, p.150 apud Montez, 2006, p.200)
Tal pensamento pode se estender aos grandes ficcionistas em geral. Quanto a
Pepetela, não se pode negar o evidente engajamento político, porém suas obras não são
teses ou panfletos ideológicos estetizados, apesar do forte senso político que as anima;
mesmo em uma obra como As Aventuras de Ngunga, feita para ser uma cartilha
ideológica, surgem contradições nos homens (angolanos) e na sua realidade (angolana),
que a certeza ideológica não permitiria. Sua Luanda é mesmo Luanda, e não uma
alegoria para fins ideológicos. Por isso, o homem angolano de Pepetela pode estar
presente em todo homem e a Luanda caótica fundada pelas andanças do cão pode
causar identificação com várias sociedades.
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Surgir e morrer, criar e anular, nascimento e morte, alegria e dor, tudo
se mistura no mesmo sentido e na mesma medida; por isso, mesmo o
acontecimento mais particular se apresenta sempre como uma
imagem e um símbolo do mais universal.
(Lukács, 1978, p.150 apud Montez, 2006, p.200)
Dos relatos da obra, talvez o mais particularmente angolano, e ao mesmo tempo
de questões nitidamente universais, seja o relato fragmentado em forma de diário, que
entremeia todos os outros relatos, narrando a hostilidade cada vez maior e luta final do
cão contra uma buganvília, planta que aos poucos vai tomando conta de todo o quintal.
Esse relato recortado em várias partes é geralmente interpretado como algo à parte dos
relatos dos que viram o cão, mas todos eles são em essência luta do cão contra a
buganvília. A esse ponto de nossa interpretação já se compreende o que essa buganvília
pode trazer como questão e os esquecimentos e lembranças que ela traz à memória. Não
é somente a sociedade angolana que tem a sua buganvília, símbolo do Estado
burocratizado, do discurso e da ordem vazios, mas que se pretendem totalizadores da
realidade na sua prática totalitária.
Toda a ação desse cão se faz contra a tecnoburocracia instalada no
poder. Com muita ironia o escritor vai antecipando as formas rituais
de um socialismo epidérmico, que vive de falas vazias e não dá conta
dos problemas de seu país. O cão solidário não as aceita e as
desmascara em situações bem-humoradas. Termina já velho, sem
dentes, mas com uma força capaz de destruir uma simbólica
buganvília (o estado burocratizado) cujos galhos, em crescimento
avassalador, estão destruindo a casa angolana.
(Abdala Junior, 2006 , p.37)
Nesse último relato, um sonho do narrador organizador, a luta violentíssima e
dramática do cão contra a buganvília (até que, nas significativas palavras do narrador,
ele se tornasse “só ideia envolta em sangue”) e a sua vitória dizem que é possível não
deixar a buganvília tomar conta de todo quintal a ponto de nada mais caber nele.
- Patrão velho fica bravo se tocamos na buganvília.
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- Quem tem coragem de desobedecer ao patrão velho? – disse
Antônio – Nem a menina. Ela também queria cortar a buganvília.
Mas, haka! Tinha medo mesmo.
O cão, indiferente às dúvidas que provocara, num ronco esgotado,
desapareceu no meio dos destroços, atacando a última raiz, a mais
funda. Só se via o restolhar verde-vermelho do combate.
(Pepetela, 2006, p.116)
O cão não venceu a buganvília sozinho, os trabalhadores e o menino o
ajudaram, mas não a teria vencido em definitivo se não atacasse “a última raiz, a mais
funda”. E não seria essa uma crítica a todas ordens revolucionárias ou
antirevolucionárias, que num primeiro momento até derrubam a buganvília, mas
deixam suas raízes para que vinguem de novo? Ou seja, essa luta simbólica contra a
buganvília e contra a sua raiz põe em questão o combate a sistemas burocráticos e
totalitários sem que se lute contra a estrutura que os permite. A luta simbólica do cão
contra a buganvília ressignifica e põe em questão a luta do indivíduo contra a ordem
coletiva que anula toda individualidade em nome de um ideal econômico e político.
Após narrar a luta, a vitória do cão e seu gesto derradeiro, o narrador do último relato
da obra, um sonho seu (e, por que não, esperança sua), enuncia: “E o meu sonho... se
foi. Com ele começa a vossa fala”. Um verdadeiro “Faça-se!” enquanto a terra é ainda
sem forma e caótica. O Cão e os Caluandas oferece o mapa e a memória do caos, que
nele aprofundado saiba o leitor criar questionamentos e novos significados a sua
realidade. A verdadeira literatura não tem ordens a dar, nem a receber, como o cão vaga
por onde quer e instaura o questionamento por onde vaga.
25
3. A DIALÉTICA DO CAOS: A OBRA DO CÃO
Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro
de si para dar à luz uma estrela cintilante.
Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro
de vós outros.
(Nietzche)
O diabo regula seu estado preto, nas
criaturas, nas mulheres, nos homens. Até:
nas crianças – eu digo. Pois não é ditado:
“menino – trem do diabo”? E nos usos, nas
plantas, nas águas, na terra, no vento...
Estrumes... o diabo na rua, no meio do
redemoinho...”
(Guimarães Rosa)
1.1. Dialética
Historicamente, as ideologias dominantes ocidentais tem o caos por um valor
negativo, ligado à crise, à destruição e à dúvida. Essas três palavras foram, por sua vez,
demonizadas religiosamente e atribuídas sempre à ação maligna pelas religiões cristãs
dominantes. Por outro lado, também foram renegadas ao obscurantismo e ao domínio
da ignorância pelas ciências e racionalismos que as acusam de obstruir o progresso do
conhecimento. Assim, são renegadas tanto pelos que as acusam de obstruir a salvação,
quanto pelos que as acusam de obstruir o progresso e a ciência. Mesmo quando a
“dúvida”, por exemplo, é reconsiderada, como em um Descartes, não passa de destacá-
la para mais gloriosamente vê-la vencida sob uma certeza mais verdadeira do que todas
as outras que a dúvida destruiu. A modernidade chegou ao paroxismo de fazer da crise
um modo estável de vida, da destruição uma norma de criação e da dúvida uma certeza
implacável, esvaziando essas experiências de toda força poética e de sabedoria que
implicam: tornaram-se modismo e regra desde as vanguardas européias. Isso provém do
fato de se considerá-las um dos lados de um suposto dualismo, onde destruição e
criação, por exemplo, se excluem mutuamente. Questiona-se sempre de qual lado do
dualismo se está, mas nunca se há mesmo o dualismo. Perde-se a dimensão dialética de
destruição e criação, para se incorrer em um simplório maniqueísmo onde quando não
26
se defende uma forma absolutamente criada, tendo-se por conta de conservador do bem
absoluto, defende-se uma absoluta destruição, tendo-se por conta de salvador
revolucionário. É a falsa oposição de metafísicos e niilistas, que Nietzche já denunciava
como ambos limitadores da vida e redutores da realidade, essencialmente dialética.
Hegel, o pensador inaugural da dialética tal como a modernidade irá desdobrá-la, já
esclarecia a radicalidade do ser dialético:
[...] não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta
da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva,
que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida
que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa
potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer
de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a
outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto
encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-
se é o poder mágico que converte o negativo em ser.
(Hegel, 1992, p.38)
Em O Cão e os caluandas não há sequer resquício do caos como valor a ser
tomado como motivo de medo ou como algo a ser evitado. Há sim a esperança
profunda de superação do caos. Essa superação não se conquista a partir do afastar-se
do caos achegando-se a qualquer ordem, mas encarando esse caos. Na poética de O Cão
e os caluandas, o caos e o real se confundem no desejo de construção de uma ordem a
partir do encarar o caos, ou seja, encarar o real com todas as suas possibilidades,
previstas e imprevistas a toda ordem. Essa ordem construída, por sua vez, não será
definitiva, pois as questões do real escapam sempre a qualquer ordem. Torna-se preciso
um aprendizado não do aprender ou aceitar as coisas instituídas para, presunçosamente,
durarem para sempre, mas um aprendizado do lidar com a imprevisibilidade e
inesgotabilidade de questões do real, ou seja, do nunca acomodar-se. Um aprendizado
do encarar o caos sem atemorizar-se, sem condená-lo ou fingir que não há, mas com a
mesma clareza e firmeza, porém de imensa ternura, com que o estilo pepeteliano guia o
leitor nesse encaramento. O Cão e os caluandas, como denúncia e pensamento, é um
encarar o caos; como poética, uma chamada a criar a partir do caos.
A dialética presente na obra de Pepetela, porém, não é a dialética idealista, onde
o encontro dos opostos acontece apenas no plano das ideias, sendo a realidade o seu
27
resultado; antes, está mais próxima da dialética tal como desenvolvida por Marx, onde a
contradição já se dá na realidade, de forma concreta, dela resultando as ideias. A
contradição se dá no real e não como discurso que pode ser resolvido em sutilezas
argumentativas.
Motor de toda transformação, a contradição é universal. Quando se
fala em “contradição”, os filósofos idealistas compreendem
simplesmente “luta de ideias”. Para eles a contradição não é
concebível, senão entre ideias que se opõem. Interpretam-na segundo
o sentido corrente da palavra (“dizer o contrário”). Mas a contradição
das ideias é apenas uma das formas da contradição: por ser a
contradição uma realidade objetiva, presente em todo o mundo, é que
se encontra, também, no “sujeito”, que ela se encontra no homem
(que faz parte do mundo).
(Politzer, 1986, p.80)
No entanto, de modo algum a obra de Pepetela se torna uma simples estetização
do materialismo dialético marxista. Ele é apenas o ponto de partida da sua observação e
reflexão sobre a realidade angolana. Primeiramente a realidade, depois a teoria: o que
está de acordo com o próprio materialismo dialético. Submeter a literatura, como
espelho da essência do real, a uma teoria dialética seria trair essa própria dialética,
fazendo do real o espelho de uma teoria, ou seja, uma tese única, sem antítese, um
enigma rebaixado a uma simples pergunta feita quando já se sabe a resposta. A postura
literária de Pepetela diante do real é bem diferente, conforme se deixa claro no início do
segmento Carnaval com Kianda de O Cão e os caluandas em que o narrador-
organizador escreve acerca da da verdadeira interpretação de um acontecimento:
[...] o caso a seguir teve tantas interpretações, tanta gente presenciou
as cenas, que deixou o anonimato pudico duma casa e passou a
acontecimento nacional (então tudo que se passa em Luanda não é
nacional?). Os muitos possíveis contadores descrevem a seu modo,
conforme a posição da sua bunda no caso. Recebi centenas de cartas e
descrever uma ou outra parte, houve mesmo reportagem no jornal e
entrevistas, a Rádio falou e refalou do feito, a Televisão filmou (é
verdade, por uma vez não deixou escapar). Cada um com sua versão.
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A verdade é como um diamante, reflete a luz do Sol de mim maneiras,
depende da face virada para nós.
(Pepetela, 2005, p.87)
Esse trecho poderia facilmente ser usado para descrever a procura da verdade
sobre o cão andarilho de Luanda ou para descrever a própria estrutura de O Cão e os
caluandas. A multiplicidade do real e a multiplicidade das interpretações do real ditam
a tônica da obra; as contradições não existem apesar da realidade, são elas mesmo que
constituem a realidade. Saber ler a realidade e O Cão e os caluandas, como monumento
literário dela mesma, exige saber perceber essas contradições e compreendê-las além do
rótulo do positivo e do negativo. Exige também, principalmente, não aceitar a resposta
de quem quer que seja, de índole religiosa, política, filosófica ou empírica, como única
e verdadeira interpretação do real.
[...] o objetivo da narrativa não parece ser apenas o de criticar uma
sociedade que faz pouco caso do ideal revolucionário, mas, sim, o de
atualizar a contradição como mola mestra de qualquer interpretação e
mesmo de qualquer ideal. O movimento de interpretar o texto torna-se
análogo ao que se estabelece com o mundo referencial, embora a
ficção não se confunda com ele. A frase “a verdade é como um
diamante, reflete a luz do sol de mil maneiras, depende da faceta
virada para nós”[...] exatamente na metade da obra, não é apenas uma
imagem poética. Tal declaração torna-se, de fato, uma constatação
básica para a presente narrativa, a qual se quer plural. Afinal, o
fundamental não é remeter o narrado ao referencial, mas levar o leitor
a perceber que não existe uma resposta verdadeira, seja em relação ao
texto literário seja em relação ao contexto histórico no qual ele se
insere.
(Salgado, 2009, p.269)
Sendo assim, a obra de Pepetela é dialética por excelência. Não é uma obra
política e ontológica, é ontológica porque é política; ao tratar do social, não é uma voz
coletiva que se faz ouvir, mas as vozes individuais se fazem ouvir bem distinguidas,
comunitariamente. Não é uma ordem ou a propaganda de um projeto de ordem que se
faz ouvir, mas as vozes do caos, que poeticamente se sugerem ao leitor. Essas vozes, na
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obra aqui interpretada, se fazem ouvir pela presença do cão, personagem do qual
trataremos exclusivamente no próximo tópico, visto seu papel incisivo no processo
dialético, os símbolos que evoca e as questões decisivas que traz ao texto.
Apesar de Pepetela, em toda sua obra até então publicada, caminhar na direção
do sugerir uma superação dos opostos, não cai no equívoco de não distinguir os
opostos, como se fossem apenas o mesmo com formas contrárias, nem incorre no
equívoco de descrever, determinando inexoravelmente, a superação dos opostos como o
fez Hegel ao tratar da grande síntese final, o Absoluto. Em Pepetela não há absolutos,
mas sempre o questionamento do absolutizante. Pretender determinar em um ideal a
unidade que a dialética propõe acaba resultando em propor uniformidade. Até porque os
caminhos da história de Hegel a Pepetela provaram não ser possível tal descrição, que
redunda inevitável em uma determinação do futuro e comodismo perante o presente.
Pepetela lança ao caos amorosamente, expõe a crise, pois sabe que só se pode
encontrar a si próprio no processo dialético da dilaceração absoluta e de todo absoluto.
Isso é concretizado embalando o leitor em linguagem de tal ternura que o caos não é
mais tenebroso nem improdutivo, mas um terno caminho de aprendizagem de
reencontro de si próprio: o encontro com um bonito cão que passa, desperta paixões e
até entra no lar de quem se deixar fascinar por ele.
3.2. A Obra do Cão
Em uma das obras canônicas da literatura ocidental, um cão chama a atenção do
velho Fausto, que o diz a Wagner, um estudante ávido de conhecimento científico, mas
pouco profundo. Wagner responde que vê apenas um cão preto, que aquilo que o
fascinado Fausto vê no cão, como se os enredasse, não passa de fantasia acerca daquele
cão comum, talvez demasiado bem adestrado. Acaba convencendo a Fausto, que leva o
gracioso canino, aparentemente inofensivo, à sua morada, seu quarto de estudos. O cão
da cena do Fausto de Goethe dialoga com o de O Cão e os caluandas não apenas por
este também ser cão e adentrar a casa de alguns dos principais narradores da obra, todos
presos por um fascínio inexplicável pelo belo cão, mas também pelo que esses cães
revelam e provocam dentro da casa a que foram levados.
Pois o Malaquias disse logo:
- Lindo cão! Abre-lhe a porta para ele entrar.
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- Tás doido? Sei lá quem ele é...
- Depois sai embora. É capaz de ter fome.
Não sei até hoje porquê acedi. Desses gestos que as pessoas têm! Juro
que em minha casa nunca entrou nem cão, nem gato, bicho só para
comer, era o que mais me faltava.
(Pepetela, 2006, p.29)
O meu pai apareceu um dia com o cão em casa. Disse andou sempre
a seguir-me, não me quer largar mais. Eu fiquei contente, um lindo
cão e inteligente. Demos-lhe o nome de Jasão, foi o meu pai que
escolhei o nome, pois gosta muito de lendas gregas. Jasão aprendeu
logo o nome, era esperto.
(Pepetela, 2006, p.43)
O meu marido trouxe um dia o cão para casa. Tinha-o encontrado na
Mutamba e o bicho não parou mais de o seguir [...]. Quando o pastor
alemão veio, não tínhamos pois filhos. Devo confessar que não me
agradou nada a ideia de o ter em casa. Primeiro, a comida; depois
vinha perturbar, mudar os hábitos; e um presentimento fúnebre,
desses pressentimentos femininos.
(Pepetela, 2006, p.77 e 78)
[...] Ia dizer-te que esse cão me apareceu – foi o único que pareceu –
como o tal príncipe encantado. Um príncipe encantado disfarçado de
cão. Claro que depois não acreditei, isso passou. Um pastor-alemão
me apanhou na Mutamba, ficou uns tempos lá em casa.
(Pepetela, 2006, p.133)
No Fausto de Goethe, enquanto o próprio Fausto em seu quarto de estudos diz o
famoso monólogo em que, inutilmente, tenta traduzir de maneira satisfatória para a
linguagem o Logós, que tudo origina e tudo une, o cão revela-se o disfarce de
Mefistófeles, um diabo. Inicia-se ali a jornada dialética de Fausto, o encontro de si
mesmo no “aniquilamento absoluto”, a encarada direta no negativo, demorando-se
junto dele, para usar termos hegelianos. Essa seria a perdição do Fausto da criação de
Goethe, não fosse ele salvo justamente pelo caminho que percorreu com Mefistófeles, o
ser que lança ao negativo total. Mefistófeles é um agente dialético, um ser negativo e
31
identificado com o mal e a mentira num contexto ideológico e religioso em que o bem e
o mal, a vida e a morte, a verdade e a mentira, o positivo e o negativo são conceitos
estanques e definitivos. O diabo, porém, os confunde e aponta à dialética profunda que
subjaz a conceitos tão simploriamente maniqueístas.
FAUSTO
De vós outros, amigo, a natureza
Largamente no nome ler-se pode,
Que bem claro o demonstram vossos títulos
De Padre da mentira ou Deus das moscas.
Ora pois, quem és tu?
MEFISTÓFELES
Parte da força
Que tem no mal intento, e o bem só causa.
FAUSTO
Que queres tu dizer com esse enigma?
MEFISTÓFELES
O espírito sou que sempre nega!
E com razão: pois tudo quanto nasce
De extermínio total somente é digno;
Pelo que, nada haver melhor seria.
É, pois aquilo que chamais pecado,
Ruínas, em suma – o mal – meu elemento.
(Goethe, 2003, 72)
O Mefistófeles de Goethe, personagem de uma obra mestra da civilização
ocidental, escrita em um de seus maiores centros filosóficos e teológicos, precisa
explicar sua função e os mal entendidos que se fazem da sua função. O cão de Pepetela
não precisa dar essas explicações e nem mesmo mudar de forma para que se explique e
seja entendido. Pepetela escreve dentro uma sociedade que, embora tenha as influências
da cosmologia cristã presente no catolicismo português, imposto como religião oficial
durante os quase 500 anos de colonização em Angola, não vive majoritariamente a
cosmovisão cristã, antes cosmogonias africanas antigas, às vezes mesmo adaptadas a
32
um cristianismo de fachada, em que a relação entre o que se denominou chamar Bem e
Mal, Vida e Morte, não exibe tão forte traço de dualismo, antes se relacionam numa
ampla gama de forças espirituais invisíveis e o que parece oposto numa doutrina
dogmática pode conviver como pluralidade apenas.
[...] hoje em dia, a maioria dos africanos, quer eles sejam ou não
convertidos ao islamismo ou ao cristianismo, ainda compartilha as
crenças de seus ancestrais numa ontologia de seres invisíveis. [...]
Essa crença na pluralidade de forças espirituais invisíveis possibilita o
espetáculo extraordinário – aos olhos ocidentais – de um bispo
católico rezando num casamento metodista, junto com o apelo
tradicional da realeza aos ancestrais. Para a maioria dos participantes
do casamento, é possível dirigir-se a Deus em diferentes estilos –
metodista, católico, anglicano, muçulmano, tradicional – e também é
possível dirigir-se aos ancestrais.
(Appiah, 1997, p.190,191)
Pelo lugar e pela cultura de onde escreve Pepetela, não faria sentido o cão
explicar seu ofício diabólico, defendendo-o, como o faz Mefistófeles e tal como é força
que façamos neste texto acadêmico. Ele não foi demonizado e estigmatizado como
“mal” para que precise que se faça sua defesa, antes é aceito como força que tem o seu
lugar num cosmos em que nada se exclui. O cão de O cão e os caluandas surge como
presença provocadora de uma força inconformista, que destrói e lança ao ridículo o
instituído e a certeza repressora de todo questionamento (força essa que para fins
filosóficos e teóricos nomeamos dialética), força que teologicamente caracteriza o
diabo, que politicamente se chama subversão e o racionalismo seco pode chamar de
poético ou, a contra-gosto, licença poética. Nas crenças de diversas etnias angolanas,
essa força se mostra como divindade, o que se refletiu, por exemplo, nas religiões afro-
brasileiras. Não é coincidência, portanto, que essas religiões de matriz africana sejam
identificadas por fundamentalistas de algumas outras religiões, majoritariamente cristãs
ou muçulmana, como religiões ligadas ao mal, ao diabólico como negativo a ser
excluído. O leitor que vive no seio da civilização ocidental e aprendeu, por longo
tempo, a procurar nas obras quais personagens representam o que é bom e quais
personagens representam o que é mal (sendo o mesmo leitor que não entende porque o
Fausto, personagem da obra de Goethe, merece ser salvo depois de uma jornada com
33
um diabo) fica desconcertado com a figura do cão em O cão e os caluandas,
dificilmente classificável em termos maniqueístas.
A figura do cão mediatiza todo o discurso; embora não possua voz
narrativa, sua escolha como personagem simbólica não pode ser
subestimada. Seu significado é extremamente importante, não só nas
culturas africanas, mas também nas mitologias das mais diversas
civilizações. Ele pode incorporar, desde a imagem do herói, entre
alguns povos, como os bantos, até a figura do interdito e do imundo
nas sociedades muçulmana e cristã. No texto em questão, ele assume
nomes de origem grega, portuguesa, latina e africana, ao longo dos
vários capítulos: Jasão, Leão dos Mares, Cupido, Lucapa. Seu caráter
polivalente abre-se, portanto, a inúmeras interpretações: como cão de
guarda, simboliza a proteção, a defesa; mas como cão policial encarna
a repressão, o controle; é marca do poder colonial, porém representa,
também, a marginalidade e a vadiagem dos cães sem dono. À medida
que ele circula pela cidade de Luanda, vêm à tona as diversas
contradições sociais, econômicas, políticas, e/ou afetivas, das
personagens envolvidas nas situações.
(Salgado, 2009, p.268)
Um interpretação maniqueísta do cão sempre se mostra insuficiente. Seja para
julgá-lo bom ou mau, oprimido ou opressor, símbolo da libertação ou símbolo da
colonização. Haveria o recurso de recorrer ao foco narrativo, já que o narrador-
organizador parece nutrir certa simpatia pelo cão, mas tal recurso também se mostraria
insuficiente numa obra em que há multiplicidade de narradores, favoráveis ou não ao
cão. O narrador-organizador, justamente por se colocar no papel de organizador, desde
o prefácio da obra, e não de um censor, não emite julgamento claro acerca do cão. Sua
preocupação é procurar o cão, não valorá-lo. O fato do cão ser descrito na grande
maioria dos relatos como um cão pastor alemão, tal como os cães de guarda dos
colonizadores, poderia atrair sobre ele o julgamento negativo. Isso, porém, contrariaria
sua presença libertadora de consciência e verdadeira burladora de ordens ou desordens
instituídas. Portanto, não é no caminho de julgá-lo bom ou mau que se pode
empreender interpretação justa do cão. Ele não pode ser julgado moralmente, porém
não há como negar seu lugar ético. Não seria ele um personagem que, ao invés de se
34
submeter aos padrões morais de bem e mal, do que deve ser e do que não deve ser, um
personagem que justamente questiona esses padrões? O que se percebe é que, assim que
o cão aparece em qualquer um dos relatos da obra, ele desestabiliza o sistema de
valores de cada um dos narradores, mostra furos numa teoria fechada do real, enfim,
expõe a dialética incessante do real.
Todos os episódios propõem um questionamento imaginativo, e não
uma mera interpretação antifrástica da ironia. Se não fosse assim,
bastava interpretarrmos o cão como um agente desmascarador do que
está por trás de cada uma das situações encenadas. O cão
desmacararia “Tico, o Poeta”, pretenso intelectual revolucionário,
mostrando que ele é, na verdade, um parasita social. O cão revelaria
como “o primeiro oficial”, supostamente defensor do sistema, deixa-
se corremper por esquemas e trocas de favores. O cão desvelaria o
racismo e o tribalismo, no relato “Luanda Assim Nossa”. O cão
exibiria um ex-militante, agora membro do governo, preocupado
apenas com a sua imagem, comportando-se com rispidez,
agressividade e radicalismo em relação à própria família, em “O Mal
É a Televisão”. De fato, o cão desmascara e revela a face oculta de
cada uma das personagens enfocadas. Mas poderíamos considerar
estas personagens como essencialmente negativas, pequenas e/ou
médias engrenagens do poder – retratos, oscilando entre o realismo e
a caricatura – que fazem pouco caso do ideal revolucionário? Ou
existiria no texto um atentar também para a estrutura maior, na qual
estão inseridas as próprias personagens, vítimas de sistemas que só
acirraram ainda mais as contradições?
(Salgado, 2009, p.268)
Se a presença do cão e as contradições que ela expõe apontassem a uma
dialética do real em direção a um fim utópico absoluto, ou seja, uma visão absoluta do
que é ou deva ser o real (tanto por meio de apologia quanto por condenação de
indivíduos) seria mais confortável interpretá-lo em relação a esse fim, mas o fato da
dialética do cão ser incessante causa o desconforto de não se poder responder a
pergunta “o que ele representa?”. Ao relacionarmos o cão com o diabo, a resposta
poderia ser “Representa o mal” ou “representa o bem”, dependendo da posição de quem
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responde, mas não há como falar de padrões de mal ou bem diante de um personagem
cuja presença justamente confunde e lança ao caos os padrões e as posições. Pode-se
dizer o que sua presença na obra provoca, mas não o que ele representa, nem o que ele
simboliza. A obra, aliás, é provocada pela sua presença na vida dos narradores. Suas
narrações do incidente caótico que, feliz ou infelizmente, o cão lhes causou se tornam
falas de análises de si mesmos.
O cão de Pepetela é um diabo, tal qual Mefistófeles, tal qual o animal tem sido
caracterizado em termos como “obra do cão” e a ponto do simples termo “o cão”
designar o próprio diabo. O mesmo diabo, aliás, com o qual se identifica o personagem
pícaro, andarilho travesso que provoca as instituições quase que ingenuamente, uma
espécie de diabo simpático e brincalhão, chamado significativamente “pobre diabo”, do
qual o cão de O cão e os caluandas tem características muito próximas, embora não
coincida completamente. Em Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, “Cara de
gente, cara de cão: determinaram – era o demo”, observa o personagem Riobaldo, nos
inícios da sua fala que, tendo a reflexão acerca do diabo como um dos fios, tece a saga
do humano num sertão cosmogônico, como a Luanda de O Cão e os caluandas. Esse
tecido poético roseano retorna ao silêncio primordial com as seguintes palavras: “O
diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”. Em O cão
e os caluandas o que há é a obra do cão, ou seja, o caminho, os abismos de questões
deixados como seu rastro, a profunda humanidade que sua travessia por Luanda
despertou dialeticamente em cada um dos narradores. O cão revela o “homem humano”
de cada um dos que encontra na sua travessia pela cidade. As duas obras são
estruturadas num diálogo constante e direto com o leitor, à procura do diabo ou do cão.
O que Riobaldo e o narrador-organizador de O cão e os caluandas encontram não é o
diabo nem o cão, mas o próprio sentido da busca incessante. Nas perguntas sem
resposta das narrativas de O cão e os caluandas, Pepetela põe essa questão de forma
explícita. São perguntas que ficam sem “sim” e sem “não”. Até mesmo quando essas
perguntas são supostamente respondidas, a resposta mantém o caráter de enigma. A
dialética não é um meio a um fim do humano, ela se torna a própria morada do humano,
assim como os relatos acerca do cão não são meios para chegar ao cão, mas acabam se
revelando a presença quase mítica do próprio cão.
Desde o princípio vocês tinham uma dúvida. Ela vinha, ela ia. Talvez
nem todos a tenham formulado. Mas ela lá estava: que certeza essa
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que eu tinha de ser o mesmo cão? Não há muitos cães pastor-alemão?
Como podia eu seguir-lhe o rasto sem me perder no labirinto de
cheios formados por todos os pastores-alemães de Luanda? Não é
essa a dúvida?
Fácil responder. Há qualquer coisa nesse cão, chamem feitiço, na
maneira como as pessoas se referem a ele, que o identifica
imediatamente. Uma magia? O Mundo está cheio dela. Mas eu, que
não sou cão, farejo-o nas estórias. E garanto-vos que a reportagem do
Cubal traz o cheiro característico dele.
Por isso vos digo: é preciso recomeçar tudo de novo. Este é o primeiro
episódio do meu livro. Agora leiam ao contrário, de trás para a frente,
se quiserem. O leitor deve ter sempre toda a liberdade.
Qual então o fio da estória? O cão? A toninha? O mar? Luanda? Ou
tudo isso e que afinal era a vida boa daqueles tempos pouco depois da
independência (anos hoje acinzentados pelos anos), em que a vida
estava na pedra de cada muro, no buraco de cada rua, na coragem toda
nova das pessoas de olharem para o fundo dum beco sem saída e
encontrarem força de sorrir?
(Pepetela, 2006, p.164)
Chega-se a duvidar da existência do cão, mas pouco importa se ele existe ou
não, ou se é o mesmo cão em todas as estórias, o que importa é sua travessia por
Luanda, tornada mais que lendária, quase mítica, pelo fascínio e mesmo pelas
incongruências dos relatos feitos dele. Esse aspecto atinge o ponto máximo na luta final
contra a buganvília, que o próprio narrador diz ter sido um sonho, confundindo mais
ainda quem, inutilmente, por toda a obra quis saber algum dado objetivo sobre o
paradeiro do cão. A pergunta “Onde está o cão?” ficou sem resposta e mesmo o
narrador-observador parece ter desistido de respondê-la, mas se encontrou nessa busca
um outro, o “homem humano” do Riobaldo de Rosa ou simplesmente o “talvez” que o
narrador pepeteliano enunciou em Mayombe, obra anterior a O cão e os caluandas,
numa fala que mostra a consciência dialética do homem com clareza, mas mantendo
todo o enigma desse inconciliável, sempre desdobrado dialeticamente em outro entre
outros. Trata-se da célebre auto-apresentação do personagem mulato Teoria, que será
exposta no próximo tópico do texto.
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O romance Mayombe denuncia que a história não pode lidar de modo
dualista. Opor meramente os “tugas” (portugueses) aos “turras”
(guerrilheiros do MPLA) é cair em uma análise simplista. Teoria é o
narrador que questiona esse maniqueísmo. Ele é o intelectual; reflete
sobre o lugar do mulato em uma revolução que apenas opõe negros e
brancos. Discutindo a possibilidade do “talvez”, propõe uma
interpretação histórica dialética.
(Secco, 2008, p.55)
O símbolo dialético na sociedade angolana, em Pepetela, será o mulato,
enquanto voz do que não se encaixa em nenhuma ordem limitadora do real.
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4.ENTRE JUDEUS: A VOZ DIALÉTICA DO MULATO E A TERNURA DO
JUDEU DE ANGOLA
Como é dramático ter sempre de escolher,
preferir um caminho a outro, o sim ou o
não! Porque no Mundo não há lugar para
o talvez?
(Pepetela, em Mayombe)
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
Eu soubesse repor
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
(Manuel Bandeira)
Neste tópico empreenderemos uma interpretação do mulato como símbolo
dialético na obra de Pepetela, a partir do segmento Entre Judeus de O Cão e os
Caluandas.
Talvez seja numa obra anterior a O Cão e os Caluandas que se encontra uma
das mais explícitas defesas da visão dialética da realidade na obra pepeteliana. Trata-se
do segmento de Mayombe em que o personagem mulato Teoria expõe sua relação com
a realidade em que vive:
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura do café,
vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante
português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num
universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez.
Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem
espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e
recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em
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não? Ou são os homens que devem aceitar o talvez? Face a este
problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois
grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são
os outros; o mundo é geralmente maniqueísta.
(Pepetela, 1982, p.6)
Em O Cão e os Caluandas, a imagem do mulato, que fora tornada quase que
uma personificação da dialética em Mayombe, agregará a si uma imagem de felicidade
fundamentada na própria dialética que a situação do mulato representa. Tal afirmação
pareceria desprovida de um fundamento intelectual sério se por “felicidade”
entendemos apenas “alegria”, “utopia definitiva” ou, simploriamente, satisfação do
indivíduo, tal como prega qualquer manual de auto-ajuda. Porém, as noções de
“felicidade”, assim como todas as outras questões ideologicamente postas, são
historicamente condicionadas; portanto, dialeticamente construídas. Por essa razão não
nos sentimos tolhidos ao propor a presença de uma dialética da felicidade em certos
passos da obra de Pepetela, até mesmo como componente de sua visão humanística do
ser humano, especialmente no segmento Entre Judeus de O Cão e os Caluandas.
O enredo desse segmento é o seguinte: Um escritor conta como, num bar,
conheceu uma linda prostituta de luxo. Duas coisas os unem: o fato de serem mulatos e
de se interessarem por um enigmático cão andarilho de Luanda, cão esse que a
prostituta conta ter sido, com uma boneca da sua infância, a única coisa que amara. O
título do segmento provém do momento do diálogo em que reconhecem a sua condição
como mulatos na sociedade angolana e, nesse diálogo, a fala da prostituta é bem
elucidadora:
[...] Mas aqui nós os dois temos uma coisa em comum. A cor, sabes?
Mulato é o judeu de Angola. Ouvi isso dum amigo poeta e gostei da
ideia. Mulato-judeu-de-Angola! Os judeus sempre foram os tipos que
levaram de todos. Aqui é o mulato. Se alguma coisa corre mal, a
culpa é do mulato que estiver mais perto. Porque os negros têm a sua
tribo, as suas grandes famílias, defendem-se. Mulato não tem tribo.
Melhor, a sua tribo é a dos mulatos... Temos isso em comum. [...]
(Pepetela, 2006, p.130)
40
O mulato ainda é representação visível daquele “talvez” dialético que em
Mayombe é hostilizado a favor da escolha de um dos lados propostos pelos
maniqueísmos. Porém, em Entre Judeus, é adicionada à ideia do “talvez” dialético do
mulato, uma ideia de felicidade. Apesar das várias correntes de opinião, moda e
pensamento filosófico o fazerem sinônimo de realização das vontades de um ego ou a
realização de um projeto de realidade ideal, o vernáculo “felicidade” tem raízes
etimológicas mais profundas. A palavra latina “felix” (genitivo “felicis”) significava
originalmente fértil, frutuoso, fecundo, pleno, e é no sentido de plenitude e fecundidade
de vida que pode ser interpretado na obra de Pepetela. Em sua obra a plenitude de ser
está muito mais ligada à realização poética da vida e à ternura. A fecundidade é o que
permite sempre a plenitude, porque não há nada na realidade que seja estéril de
poeticidade. Portanto, a felicidade de Pepetela está longe de ser a adequação do ser a
uma noção de como se deve ser feliz. Não há plano ou projeto para a felicidade, ela
apenas acontece, e todo o segmento Entre Judeus será como que a apreensão e
recriação pela linguagem desse acontecimento poético.
O dois mulatos, prostituta e escritor, alcançarão, em Entre Judeus, plenitude e
fecundidade de ser a partir da liberdade de ser e do erotismo da palavra. A situação
deles numa sociedade maniqueísta, dividida entre o negro e o branco, não faz com que
se sintam vítimas; pelo contrário, faz com que se sintam livres dos padrões ideológicos
que prendem negros e brancos. Nessa perspectiva, um certo tom de confidência entre
iguais percorre todo o texto. O mulato como símbolo dialético aparece ignorado por sua
sociedade, marginalizado, portanto, livre das suas obrigações. A escolha de uma
prostituta e de um escritor mulatos, nesse contexto, é altamente simbólica: a liberdade
do corpo e a liberdade da palavra.
No texto não se esclarece qual seria o nome de nenhum dos dois personagens.
Na verdade, ali não importam os seus nomes de registro civil (nem o nome de
profissão, no caso da “prostituta”), o que interessa são os “nomes de judeu” que um dá
ao outro: Samuel e Judite. Seus nomes sociais ou de profissão não nomeiam o seu ser,
já “Samuel” e “Judite” foram nomes que deram um ao outro quando um no outro se
reconheceu: quando se reconheceram “judeus de angola”, não apenas mulatos no
sentido racial do termo, mas aqueles que não se encaixam em nenhum padrão.
Como em diversas das histórias bíblicas judaicas (as dos patriarcas Abraão e
Israel, por exemplo), foram renomeados ao revelarem a si mesmos seu verdadeiro ser;
porém no texto de Pepetela, ao invés de acontecer essa revelação por uma maravilhosa
41
teofania, acontece a partir do diálogo com o outro, do reconhecimento da semelhança
no diferente. Judite, a “quitata-de-luxo”, recebe o seu nome do escritor após contar
sobre o cão que amara. Pensando que o escritor vê com asco seu estranho amor pelo
cão, recebe dele a seguinte resposta:
- Estás enganada. A minha cara deve ser apenas de alguém que está
muito mais interessado do que pensas. O que dizes é bonito e
agradeço a sinceridade. Olha, nem sei teu nome, vais ficar Judite.
Não, não quero saber o teu nome. Para mim chamas-te Judite, nome
de judia.
(Pepetela, 2006, p.133)
O nome “Judite” remete à personagem homônima do conto de mesmo nome
presente na Torá e no Velho Testamento da Bíblia católica. Trata-se de uma
personagem que, utilizando-se da sua beleza, deixou o rei assírio, Holofernes, seduzir-
se por ela e o decapitou no leito, libertando assim o povo judeu do domínio dos assírios.
O nome de Judite permanece no Ocidente, bastante esvaziado do sentido religioso e
heroico original, ligado ou à prostituta que se utiliza da sua beleza para conseguir o que
quer dos homens e levá-los à ruína ou à prostituta que, marginalizada, se utiliza dos
meios que pode para ganhar a vida e conseguir se proteger dos perigos da sociedade.
Desse segundo estereótipo, o romance Nome de Guerra de Almada Negreiros é um
antecedente na literatura de língua portuguesa. Publicado em 1938, é possível que a
Judite de Entre Judeus seja uma espécie de paródia da Judite de Nome de Guerra. A
Judite de Nome de Guerra tem como angústia estar anônima sob esse nome-tipo
marginalizado socialmente. É por esse nome que se relaciona com a sociedade e, ao
mesmo tempo, com que se defende dela.
Nome de guerra, sobrenome, anonimato. Como sobreviver, como
viver em sociedade, defendendo nossa individualidade e assumindo,
ao mesmo tempo, um papel? Judite é encarada como aquela que é só
persona, como aquela que escolheu um papel — talvez para poder
enfrentar a sociedade —, que vive a maior parte do tempo como
Judite, age como Judite e até parece poucas vezes se lembrar de que
não é Judite. Mas, ou por prudência ou por incapacidade, não revela
seu verdadeiro nome: cala-se.
42
(Chigres, 2015)
Já a Judite do texto de Pepetela é o total oposto. O nome, que deveria ser tipo
que aprisiona ou oculta o verdadeiro ser, torna-se o nome verdadeiro, dado pelo afeto
do outro e com o outro. Importante assinalar que no texto de Pepetela não se sabe nem
o nome de nascimento nem o “nome de guerra” da personagem, eles não importam
(como o próprio “escritor” dirá mais adiante), importa apenas o nome que se recebe no
diálogo e na identificação com o outro. Desse modo já se anuncia que o estereótipo será
quebrado, mostrando que um nome, mesmo que saturado e tornado clichê, pode tomar
novamente sua força originária no diálogo, onde dois seres se conhecem e até se auto-
conhecem ao abrir-se ao outro. O nome Judite em vez de ser veículo de ocultação de si
mesmo e defesa perante a sociedade que a marginaliza, um nome social, torna-se em
Pepetela uma revelação de seu verdadeiro ser, nome que permanece oculto à sociedade,
um nome íntimo, já que ela só existe como Judite para o escritor, para o outro com que
se relaciona:
- Ouve, Judite. Tive uma ideia, não sei o que vais achar. Pensei
escrever esta conversa que tivemos, fazer um conto, e oferecer ao meu
amigo. Se ele pensar que fica bem no livro, entra a estória que
escrevi. Vou chamar-te Judite, nome judeu, ninguém vai saber que és
tu, ninguém mesmo. [...]
(Pepetela, 2006, p.135)
Por sua vez, o escritor, recebe seu nome de Judite ao receber dela mesma a
permissão para escrever o que ela contara.
- Podes mesmo, Samuel. Chamo-te Samuel, nome de judeu. Também
não quero saber o teu nome. Podes escrever e dar ao teu amigo.
- Faine! Esta noite mesmo vou escrever, Judite. Sei que vai sair bem.
Se leres o livro, um dia, vais ver essa parte e vais saber que a Judite és
tu. E que te acho linda e uma garina fixe, fixe mesmo.
(Pepetela, 2006, p.136)
Já o nome Samuel remete à figura do último juiz e primeiro profeta judeu na
Terra Prometida, sendo ligado à imagem de educador e restaurador da unidade cultural
43
de um povo. Essa imagem, desligada de toda conotação religiosa, talvez represente a
imagem do escritor angolano como aquele que, após a independência, tinha a função de
mostrar (ou criar) a unidade cultural angolana, apesar da aparentemente inviabilidade
de tal tarefa em vista da multiplicidade de etnias, sem contar dos resquícios da cultura
portuguesa, a começar pela própria língua. Essa função do escritor, construtor da
literatura nacional fica evidente no conhecido dito de Pepetela acerca da questão:
Creio que a literatura nacional é elemento indispensável, tão
importante como outro qualquer, para a consolidação da
independência. É um fator que ajuda a aumentar a unidade nacional,
por ser veículo de situações, modos de vida e de pensar, dentro do
País, [...] Pode ser exagero – é caso para se discutir – mas afirmo que
não há, não pode haver, a criação dum país verdadeiramente
independente sem uma literatura nacional própria, que mostre ao povo
aquilo que o povo sempre soube: isto é, que tem uma identidade
própria.
(Hildebrando, 2006, p.317)
O fato desse Samuel angolano, escritor pela unidade, ser mulato e discriminado
pelos demais grupos parece um presságio da guerra civil fraticida que virá, uma guerra
que será a extrema consequência da rejeição da utopia da unidade.
Ao se tornarem personagens do conto futuramente escrito, os dois personagens
são nomeados, e esse nomear torna-se uma união entre os dois pela linguagem, tão
intensa quanto a união corporal que virá adiante. Judite encontra plenitude em contar
sobre o cão, Samuel a encontra na noite com Judite. A expressão dessa plenitude de ser
mostra-se como um certo desprezo por uma lógica financeira da vida, que condiciona a
liberdade a troca ou acumulo de capital. Judite, porém, oferece liberdade amorosa
apenas pelo preço da liberdade da palavra.
Bebemos os uísques em silêncio. Depois ela disse:
- Esta noite não vais escrever o conto. Amanhã tens tempo.
- Porquê?
- Hoje vou dar uma de generosa. Vamos prá cama, fazer amor na tribo
mulata. A paga são esses uísques e o conto que vais escrever. Abro a
primeira exceção na minha vida.
44
- Fazes feriado? Vais perder dinheiro.
- É, está decidido, sei que também queres. Leio nos olhos.
- Mas porque aceitas o que não pedi?
- Por isso mesmo. Ou porque és o meu primeiro escritor e um
borrachinho ainda por cima. Ou por solidariedade de judeus!
Na noite seguinte, na solidão do meu quarto de solteiro, escrevi este
conto que ofereço ao autor do livro. Que dele faça o que quiser.
(Pepetela, 2006, p.136)
Ao terminar seu conto o escritor, nomeado Samuel, pode ainda desdenhar de
bens considerados altíssimos e ideais num mundo consumista, como se tão alta e plena
fosse a noite com Judite que, ainda que os juntasse todos, não a pagariam. Em vez
desses bens, deu algo que considera mais precioso.
Só não falo do que se passou no quarto de Judite, ninguém tem nada
com isso. Mas adianto que se tivesse um Rolls Royce, um Boeing,
uma ilha no Atlântico, sei lá quê, lhe daria depois daquela noite. Só
tinha uma coisa para lhe dar e ela ansiava por ela. Foi o que dei:
ternura.
(Pepetela, 2006, p.136)
No final, plenos na liberdade que só a marginalidade mulata podia lhes dar, a
felicidade surge, indiferente ao lucro, como um curioso comércio entre Samuel e Judite,
judeus de Angola. Um insólito comércio: de ternura. Da mesma ternura com que o
narrador de As Aventuras de Ngunga recomenda com que reguemos e façamos crescer
o nosso Ngunga interior, ou seja, aquela parte de cada um que não se conforma os
estereótipos e maniqueísmos absolutos sacralizados pelas sociedade.
Não será numa parte desconhecida de ti próprio que se esconde
modestamente o pequeno Ngunga?
Ou talvez Ngunga tivesse um poder misterioso e esteja agora em
todos nós, nós os que recusamos viver no arama farpado, nós os que
recusamos o mundo dos patrões e dos criados, nós os que queremos o
mel para todos.
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Se Ngunga está em nós, que esperamos então para fazer crescer?
Como as árvores, como o massango e o milho, ele crescerá em nós se
o regarmos. Não com água do rio, mas com ações. Não com água do
rio, mas com o que Uassamba em sonhos oferecia a Ngunga: a
ternura.
(Pepetela, 1980, p. 59)
Impressiona que justamente na obra em que se inicia a desilusão com o ideal
revolucionário, em obra anterior personificado em Ngunga, reapareça a ternura que o
pode “fazer crescer”. Isso ocorre justamente num diálogo entre mulatos, “judeus de
angola”, que se sentem à margem no novo regime pós-“revolução”, assim como no
regime colonial. A ternura em Pepetela vai muito além da delicadeza e da meiguice,
está mais relacionada ao cuidado com o outro do que com o sentimentalismo subjetivo.
Somente esse cuidado com o outro pode ultrapassar os estereótipos, os regimes antigos
e novos que oprimem e marginalizam, as discriminações, os maniqueísmos ideológicos
e tantas outras formas de opressão que se fundam na total falta de diálogo e cuidado
com o outro. Não é, portanto, coincidência que a ternura pepeteliana apareça, no pós-
independência, primeiramente na figura do mulato, feito o “talvez” encarnado, pois
quando aí é mostrado o mulato sendo marginalizado e discriminado por todos os grupos
circundantes, não se faz nenhuma defesa da mestiçagem nem qualquer consideração de
cunho racial, mostra-se, na verdade, o quanto a visão pouco dialética e tão radicalmente
maniqueísta de mundo desses grupos negligencia justamente esse cuidado com o outro,
o quanto em nome de ideais, poderes e comércios perdem a ternura. Em Muana Puó,
primeiro romance pepeteliano, já se encontra acerca de um dos personagens: “Não
posso viver sem ternura, queixa-se ele, ainda morcego... esse é o meu mel!”. Não seria
esse mesmo buscar a ternura, o “mel para todos” da utopia de Ngunga, mais do que
uma simples divisão de bens materiais, mas a conquista de bens sociais? Não começaria
a justiça social justamente pela conscientização do cuidado, da ternura, para com o
outro? No final de As Aventuras de Ngunga, Pepetela sugestiona que essa ternura pode
estar escondida dentro de cada um, em O Cão e os caluandas ele denuncia os
comportamentos e estruturas que a escondem. No segmento Entre Judeus, a ternura dá
as caras, personificada no diálogo amoroso daqueles que esses comportamentos e
estruturas marginalizaram.
46
5.O ELOGIO DA IGNORÂNCIA: A CONDENAÇÃO DE NGUNGA E A
APOTEOSE DO MANIQUEÍSMO
Um povo ignorante é um instrumento cego
da sua própria destruição.
(Simón Bolívar)
Esta geração realizou parte do seu projeto,
a independência. Mas nós lutávamos
também pela criação de uma sociedade
mais justa e mais livre, por oposição à que
conhecíamos sob o colonialismo. Por
razões várias (constantes interferências
externas, desunião e erros de governação),
este objetivo não foi atingido e hoje Angola
ainda é um país que procura a paz e está
destruído, economicamente desestruturado
e com uma população miserável, enquanto
meia dúzia de milionários esbanja e
esconde fortunas no estrangeiro.
(Pepetela)
Muitos equívocos se cometem em relação à dialética quando utilizada como
justificativa de uma única doutrina ou visão de mundo. Nesse caso, a dialética não
passará de um brutal maniqueísmo, onde a doutrina escolhida é tida como correta e
todas as outras são homogeneizadas na esfera do errado. Isso não constitui dialética,
visto que, nesse caso, não se distingue contrários para diálogo ou até síntese, mas para
combate e posterior vitória de um deles, geralmente identificado com o bem. A partir
desse ponto de vista pseudo-dialético, maniqueísta por excelência, toda a realidade é
julgada com base nos padrões determinados pela doutrina “correta”: o que se encaixar
rigorosamente neles é tido como bom, e pode sobreviver, o que escapa em um só ponto
desses padrões é relegado ao “errado” e deverá ser eliminado para que um dia haja
47
finalmente a vitória do bem. É nesse âmbito que acontece a ação do segmento Elogio
da Ignorância, o primeiro dos segmentos dramáticos de O Cão e Os Caluandas.
As palavras do Apresentador da “peça” começam com um erro que talvez não
merecesse atenção, não fosse ele recorrente em outros segmentos da obra:
Erasmo escreveu a peça Elogio da Loucura. Vocês não viram, nem
eu. Aliás, não interessa. Parece que Erasmo era contra a Santa
Inquisição naqueles anos lá da Europa. A peça em que vão actuar
chama-se O Elogio da Ignorância. Qualquer semelhança de ideia,
conotada ou denotada, com Erasmo é pura maledicência e vontade de
queimar os autores-actores, isto é, vocês.
(Pepetela, 2006, p.63)
O Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã é, na verdade, um ensaio. As
palavras do apresentador deixam claro que ele, nem nenhum dos presentes, leram a
obra de Erasmo. Em O Cão e os Caluandas há outros exemplos desse conhecimento
“por ouvir falar” de obras da cultura ocidental, a maioria deles em relação ao
pensamento de Marx que, ironicamente, é seguido de maneira fanática e intransigente
sem que se tivesse lido pessoalmente qualquer linha de um livro de Marx. Criticar uma
obra sem antes ter lido, nada mais próprio para iniciar um Elogio da Ignorância.
Percebe-se nessa atitude mais que o simples equívoco de alguém que ignora uma obra,
torna-se evidente que assim como o europeu estereotipou as culturas africanas, entre
elas as diversas existentes em Angola, como reação a isso, também muitos angolanos
desenvolveram uma imagem estereotipada e hostil das culturas européias. Trata-se do
perigo da visão de mundo maniqueísta, em que só é possível reagir a uma opressão com
uma opressão contrária, ou seja, mudando-se o oprimido e o opressor. A ideologia de
opressão, porém, permanece intacta. A grande denúncia desse segmento talvez seja
análoga a uma das grandes reflexões do pensador e pedagogo brasileiro Paulo Freire:
O seu conhecimento de si mesmos, como oprimidos, se encontra,
contudo, prejudicado pela “imersão” em que se acham na realidade
opressora. “Reconhecerem-se”, a esse nível, contrários ao outro não
significa ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase
aberração: um dos pólos da contradição, pretendendo não a libertação,
mas a identificação com o seu contrário.
48
[...]
Até as revoluções, que transformam a situação concreta de opressão
em uma nova, em que a libertação se instaura como processo,
enfrentam esta manifestação da consciência oprimida. Muitos dos
oprimidos que, direta, ou indiretamente, participaram da revolução,
marcados pelos velhos mitos da estrutura anterior, pretendem fazer da
revolução a sua revolução privada. Perdura neles, de certo modo, a
sombra testemunhal do opressor antigo.
(Freire, 2011, p.44,45)
A denúncia é do fracasso das lideranças pós-independência em educar o povo ao
diálogo. Importante destacar que no momento de escrita de O Cão e os Caluandas
Pepetela é Ministro da Educação no governo de Agostinho Neto. Essa denúncia, por
trás do seu bom humor e tom de paródia, tão caros a Pepetela, não só alerta que várias
das estruturas de opressão permanecem intactas, como prevê a tônica da guerra civil
que se anuncia. Apesar desta afirmação do próprio autor a Michel Laban acerca de O
Cão e os Caluandas:
Os aspectos críticos que aparecem nesse livro não são
fundamentalmente críticas estruturais, são de comportamentos – que
eu considerava, e considero comportamentos errados... e aí já a
conciliação é mais possível – é vista em termos de militante, militante
que critica comportamentos errados, de maneira que havia o fim de
atingir um objetivo – objetivo esse que o governante percebe também.
A conciliação fazia-se a esse nível.
(Laban, 1991, p.779,780)
Ao se ler O Cão e os Caluandas percebe-se claramente que os “comportamentos
errados” são apenas aspectos externos e visíveis dos pensamentos ainda formados pelos
“velhos mitos da estrutura anterior”. Embora a crítica de O Cão e os Caluandas não
tenha sido fundamentalmente estrutural, mas de uma motivação de escrita quase
moralística e de objetivos situados historicamente, sua crítica satírica de costumes
acaba por fornecer os sintomas claros de um inegável equívoco a nível estrutural. Em
nenhuma outra parte de O Cão e os Caluandas eles aparecerão de maneira tão evidente
e ditos sem meios termos como no Elogio da Ignorância.
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A relação da Loucura do Elogio de Erasmo com a Ignorância do Elogio de
Pepetela só fica clara se levamos em conta que no ensaio de Erasmo quem fala é a
Loucura. O ensaio é a voz da própria Loucura personificada em indivíduo.
Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba
muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos,
orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que
estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais. [...]
Sou eu mesma, como vedes; sou eu aquela verdadeira dispenseira de
bens, a que os latinos chamam Stultitia e os gregos Moria. E que
necessidade haveria de vo-lo dizer? O meu rosto já não diz o
bastante?
(Rotherdam, 1979, p.7)
Já no Elogio da Ignorância, ela não se personifica em um indivíduo para fazer
ouvir a sua voz, antes, a voz da Ignorância é uma voz coletiva e não individual, torna-se
mesmo até a própria voz de um coletivo que “ainda que de ignorantes, se quer
inquestionável” (Hildebrando, 2006, 328).
4ºACTOR – Está bem identificado o inimigo de classe. Esses que
andaram na escola.
[...]
3ºACTOR – Já ouvimos o bastante. Porque andou na escola, pensava
que já podia ser Director da peça.
4ºACTOR – Como se um coletivo de ignorantes não fosse capaz de
encenar esta peça sobre a ignorância...
[...]
APRESENTADOR (quase chorando) – Mas eu não aprendi nada na
escola. Ou antes, já esqueci tudo.
6ºACTOR – Os vícios nunca se esquecem.
APRESENTADOR – Juro-vos que esqueci. Como o vosso benéfico
contacto permanente...
[...]
4ºACTOR – Ele tem razão. O colectivo acima de tudo. Nada de
individualismos. [...]
(Pepetela, 2006, p.69,70)
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Enquanto a obra de Erasmo assume por vezes a aparência de monólogo de um
indivíduo que dá voz à Loucura, o Elogio de Pepetela torna-se um monólogo de muitos
que nunca chega a ser diálogo, e é essa a voz da Ignorância: um coletivo que se compõe
de indivíduos que só falam e não ouvem, a impossibilidade total de diálogo entre
indivíduos que já tem suas visões de mundo totalmente cristalizadas e, portanto,
qualquer palavra que se afaste da sua cartilha do que é certo já se torna motivo para a
discórdia e a hostilidade.
[...] a “incoerência” esconde, na realidade, uma crítica mordaz ao
desvirtuamento do conceito de coletivo, em que este não mais
significa a junção instável de várias individualidades, mas sim uma
autoridade responsável pela supressão de qualquer individualidade.
Toda originalidade passa a ser condenável. Assim, por exemplo,
numa sociedade onde o analfabetismo é regra, o personagem chamado
de apresentador, por ter estudado até o quinto ano, passa a ser
irrevogavelmente culpado. A peça se torna julgamento.
(Hildebrando, 2006, 328).
Nesse âmbito há uma possível afinidade histórica (embora não uma
equivalência, obviamente) entre a posição de Erasmo, que escreve na sociedade
renascentista cristã europeia, e a de Pepetela, que escreve num regime que se quer
socialista. Os pólos que se colocaram à época de Erasmo, exigindo-se a escolha de um
deles, foram o catolicismo romano e o protestantismo nascente. Erasmo rejeitou a
escolha, antes denunciou o absurdo da situação dessa escolha que, na verdade, nada
mais era que a falsa liberdade de se optar onde estar preso.
(houveram) insistentes pedidos de Lutero e dos outros reformadores,
no sentido de que Erasmo participasse das novas ideias religiosas,
pois afinal todos queriam basicamente as mesmas coisas e o célebre
humanista seria uma arma decisiva na luta, com toda sua cultura e
erudição muitíssimo superiores às dos demais. Do outro lado ocorre o
mesmo, com o Vaticano a solicitar a Erasmo que condenasse as teses
de Lutero, para isso chegando mesmo a oferecer-lhe um posto de
cardeal. Mas Erasmo não se deixa render, porque não concorda com
nenhum dos lados. A Igreja lhe parece podre e a exigir profundas
51
modificações, mas os reformadores eram, a seu ver, bárbaros e
fanáticos. Além do mais, faz questão de conservar absoluta
independência pessoal, e isso implica não tomar partido. O que
poderia parecer covardia era, na verdade, o resultado de arraigada
convicção de que os dois lados estavam errados e o verdadeiro
caminho deveria ser criado pelo homem enquanto ser inteligente e
livre.
(Pessanha, 1979, 16,27)
O Elogio da Loucura foi a obra de Erasmo em que essa visão se evidenciou de
forma mais acessível ao leigo, tanto por sua natureza humorística quanto pela
dramaticidade como tratou alguns temas pela boca da própria Loucura, que afirma sem
pudor ser ela a mestra desses dois pólos aparentemente conflitantes. Por isso, tornou-se
essa obra um símbolo do humanismo que não reduz o humano a nenhuma teoria ou
doutrina sobre o que esse humano é ou que deva ser. É a esse humanismo que as obras
de Pepetela apontam e que indica a posição de sua obra dentro da Angola independente,
de regime socialista. Se a Loucura de Erasmo denuncia que em seus domínios estão os
fanáticos da religião, a Ignorância de Pepetela denuncia pelos seus ignorantes que em
seus domínios estão os fanáticos do coletivo.
Mais uma vez, entra-se nos domínios do maniqueísmo, cujos equívocos em
relação à compreensão do outro e da realidade permanecerão de forma inexorável
durante todo o Elogio da Ignorância. Essa visão maniqueísta já se pressupõe na
primeira fala, quando o apresentador adverte que não há semelhança com a obra do
europeu Erasmo, já que saber algo da cultura européia e de qualquer outro tipo de
erudição em matéria de cultura, como ficará claro mais adiante no segmento, é visto
como uma forma de orgulho e tentativa de se sobrepor arrogantemente ao coletivo.
Anular-se no coletivo se torna a lei, e é nesse âmbito que a voz da Ignorância se fará
ouvir. Não ignoramos aqui o fato de que a cultura européia foi imposta de maneira
opressora durante os quase quinhentos anos de colonização angolana, porém não deve-
se ignorar também que o próprio Pepetela entende a literatura angolana como uma
ponte e possível síntese entre as culturas africanas, americanas e européias, a começar
pelo próprio uso da língua portuguesa de forma completamente angolana.
52
Evidentemente, eu penso que a nossa literatura precisa de ir à tradição
– e eu, sempre que posso, tento ir, procurar raízes. Isto é uma
sociedade com muitas fontes – não só fontes propriamente africanas,
mas que são diversas, conforme as regiões, conforme as culturas e
etnias; mas, depois toda a influência européia, quer de Portugal, quer
do resto da Europa, quer do próprio Brasil etc. Há um caldear de
culturas, aqui, e nós temos de ir procurando raízes daquilo que faz
uma certa identidade.
(Laban, 1991, p.779,780)
À uma visão de mundo maniqueísta não são necessárias pontes e diálogos, mas
a obrigação da escolha de um lado ou de outro; para tal, é preciso um absoluto cerco
ideológico que, primeiramente, convence da impossibilidade de qualquer diálogo e,
segundo, determina a coletivização do pensamento, condenando qualquer “desvio”
individual como uma agressão ao coletivo. Obviamente, há uma identificação
equivocada por parte dos personagens entre coletivo e povo, quanto, na verdade, a
coletivização seria mais repressão da individualidade dos indivíduos que juntos formam
o povo, ou seja, uma uniformização, a transformação do múltiplo em um só. Já o povo é
o conjunto de individualidades que convivem, ou seja, uma unidade, a convivência de
múltiplos em um só. Esse equívoco acarreta na total indiferença dos personagens à
liberdade do indivíduo, sendo ora chamada com desprezo de “originalidade”, ora de
“individualismo”. O personagem apresentador que havia iniciado a proposta da peça
sem enredo e texto prévio, livre, é acusado do seguinte modo:
4º ACTOR – Desde o princípio que está armado em original. A
desprezar o coletivo, a querer individualizar-se.
[...]
O coletivo acusa o Apresentador com todas as provas. Desviou o
rumo da peça pela sua introdução individualista. Intelectualista! Isso é
contrário à nossa linha.
[...]
4ºACTOR – O réu não reconhece a sua culpa?
APRESENTADOR – Claro que não.
4ºACTOR – É crime fazer uma apresentação original?
3ºACTOR – Já confessou o crime.
53
[...]
4ºACTOR – É verdade, é. O réu quis substituir-se ao coletivo no
julgamento sobre as capacidade de um ator-autor.
3ºACTOR – Julga-se muito culto, com certeza. Muito conhecedor das
coisas.
(Pepetela, 2006, p.67)
A liberdade de pensamento do indivíduo torna-se uma ameaça ao coletivo, aos
conceitos com que se quer instituir o coletivo, ainda que a conquista dessa mesma
liberdade de pensamento que tenha permitido que se forjassem e aplicassem esses
conceitos com liberdade. É a contradição de muitas das revoluções que, especialmente
no momento de escrita dessa obra, Pepetela consegue perceber com mais clareza, fato
que em obra anteriores aparecia apenas como alerta e intuição. A luta contra a liberdade
é, antes, luta contra a educação libertadora, é a luta contra Ngunga, aquele guerrilheiro
que é formado tanto pelo conhecimento quanto pela experiência em As Aventuras de
Ngunga, obra escrita ainda nos tempos de guerrilha.
No tempo do colonialismo, ali nunca tinha havido escola, raros eram
os homens que sabiam ler e escrever. Mas agora o povo começava a
ser livre. O Movimento, que era de todos, criava a liberdade com as
armas. A escola era uma grande vitória sobre o colonialismo. O povo
devia ajudar o MPLA e o professor tem tudo. Assim, o seu trabalho
seria útil. As crianças deveriam aprender a ler e a escrever e, acima de
tudo, a defender a Revolução. Para bem defender a Revolução, que
era para o bem de todos, tinham de estudar e ser disciplinados.
(Pepetela, 1980, p.24)
Essa fala do Comandante Mavinga em As Aventuras de Ngunga, são a total
antítese da realidade do que se tornou a Revolução, conforme a contundente denúncia
do Elogio da Ignorância, feita da paródia e do absurdo, porque a absurda realidade que
se fez no pós-revolução não passava de uma cruel paródia dos ideais que animaram a
utopia que Ngunga personificou. O Elogio da Ignorância denuncia que a mente da
Angola pós-colonial acaba voltando-se contra os princípios que inspiraram a luta contra
o colonialismo e pela liberdade de Angola. Em O Cão e os caluandas acontece a
percepção de que a utopia da unidade, personificada anteriormente na figura do jovem
54
Ngunga, além de não ter se realizado, encontra resistência tanto no senso comum de
muitos angolanos quanto nas práticas do próprio estado burocratizado.
Acreditamos que Ngunga, em função do contexto em que é gestado,
espelha todas as virtudes essenciais ao modelo de identidade angolana
com que o escritor em questão deseja ver formadas as novas gerações
de sua terra que deverão sustentar as conquistas já alcançadas e dar
continuidade ao aprofundamento das lutas pelas quais se garantirá o
futuro da nação que naquele momento está sendo construída.
(Campos, 2009, p.230)
Mais que o Apresentador, é o ideal personificado em Ngunga que é julgado e
condenado no Elogio da Ignorância. O Ngunga que dá ouvidos ao professor União e ao
Comandante Mavinga nos seus insistentes ensinamentos de que, para mudar sua
sociedade de forma realmente estrutural, Ngunga precisa, além da indignação e da
vontade, do conhecimento.
- Hei-de lutar para acabar com a compra das mulheres – gritou
Ngunga, raivoso. – Não são bois!
- Para isso precisas de estudar. Eu não sei sobre o alambamento.
Sempre se fez, os méus avós ensinaram-me isso. Mas, se achas que
está mal e é preciso acabar com ele, então deves estudar. Como
aceitarão o que dizes se fores um ignorante como nós?
(Pepetela, 1980, p.45)
Ngunga é julgado e condenado no Elogio da Ignorância em nome da mesma
liberdade pelo qual lutava. A Angola de O Cão e os caluandas parece não compreender
a Angola da verdadeira aventura de Ngunga, que não se constituiu de fatos guerreiros
nem se propagandas ideológicas, mas é “o processo de conscientização que o leva a
querer aprender mais e lutar para que o ‘mel’ seja de todos” (Hildebrando, 2006, p.320).
A educação, que antes da independência, n´As Aventuras de Ngunga, era estimulada
como arma contra o regime colonial, passa a ser considerada no regime de viés
socialista da Angola independente de O Cão e os caluandas uma arma contra qualquer
regime, pela liberdade de pensamento que propicia. Essa educação passa então a ser
hostilizada e a sua liberdade torna-se temida pelo próprio regime que ajudaram a
55
construir. Já toma forma aqui a desilusão que tomará sua mais acabada forma literária
no romance A Geração da Utopia, nas palavras do autor, “estória sobre uma geração
que fez a independência de Angola e não soube fazer mais” (Bueno, 2000). Ngunga
passa a ser temido e visto com desconfiança em vez de ser uma face da utopia
angolana. A reflexão de Paulo Freire se torna aqui mais uma vez oportuna, acerca
daqueles que, tendo vencido a luta pela sua liberdade, agora temem que a liberdade
destrua o roteiro que escreveram para a história, de tanto que ainda são “marcados pelos
velhos mitos da estrutura anterior”:
Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem
suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a
expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio”
deixado pela expulsão com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. O
de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade,
que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente
busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a
faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela
precisamente porque não a tem.
[...]
Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros
e a escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si
mesmos, preferindo a gregarização à convivência autêntica.
Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os mantém à
comunhão criadora a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda
somente buscada.
(Freire, 2011, p.46,47)
O medo da liberdade, mais que o medo de que o roteiro que se escreveu para a história
seja contrariado, é medo de uma história sem roteiro, de uma história que tenha que ser
recriada a cada dia. Mais uma vez chegamos à presença do temido caos, da história sem
ordem instituída para prevê-la e dirigi-la. Para irromper esse caos, ou antes torná-lo
evidente, como em todos os outros relatos de O Cão e os Caluandas, deverá surgir o
cão na peça. Quando surge, a peça já se erigiu em julgamento. Como já havia uma
noção considerada a única correta da história, a da supremacia do coletivo, nada mais
natural que a história se transforme em julgamento e condenação de quem destoou
56
dessa ideologia. Realmente, os livros de história escolares tem sido ainda, apesar dos
esforços de vários historiadores, o julgamento dos vencidos por parte dos vencedores,
que contam a história. Nesse âmbito, as obras de Pepetela tornam-se uma reação na
História às histórias dominantes que a querem monopolizar e moldar segundo interesses
egoístas travestidos de ideais e utopias.
É uma consciência histórica que leva a que a obra romanesca de
Pepetela funcione com uma lógica antiépica que acaba por referenciar
os ideais agônicos da revolução e do nacionalismo – e,claro,da
cidadania, que nem logrou vingar. E isso, por um lado, pela
“vulgaridade” das suas personagens (personagens comuns: mesmo as
figuras históricas têm uma postura simplesmente humana) e também
através do despertar de vozes e memórias que na utopia político-
social não tinham lugar. Pelo processo de vigília dessas vozes, antes
silentes e marginais, resgatadas da História, descobrem-se as sombras
do outro lado da realidade, vai-se modificando a paisagem da
cidadania e a nação começa a emergir diversa, colorida.
(Mata, 2006, p.49)
O Elogio da Ignorância torna-se, assim, também uma metáfora das histórias
humanas que tentaram e tentam se impor como a única História Humana. Mesmo,
porém, quando fazem dela um julgamento e a violentam como justificativa ideológica,
ela permanece sem roteiro e sem texto prévio; à frente de cada movimento histórico que
se quer o definitivo, sempre há um impulso ao caos que permitirá a criação do novo.
Sempre há o cão. A participação dele é pequena nesse segmento da obra, porém
altamente simbólica. Antes de aparecer fisicamente na peça, ele já era presente na
primeira fala do apresentador:
[...] Para os atores que nunca tenham comparecido antes, devo dizer
que esta peça não tem texto escrito. Como seria possível se o cão não
sabe ler? E o cão reage de maneira imprevisível, por isso cada
representação é sempre diferente da anterior. Ainda não aconteceu ele
morder alguém. Seria interessante improvisar um final com um dos
atores agarrado a uma canela. Final sangrento.
(Pepetela, 2006, p.63)
57
É por causa da sua presença que a peça não terá roteiro, que a História não pode
ser determinada. Durante todo o segmento, tentará se prever o momento da entrada do
cão, ainda que o Apresentador já o tenha dito imprevisível. Ao final o cão não entra
fisicamente na “peça”, só se ouve seu latido do lado de fora. Em nenhum momento ele
aceita fazer parte da peça imprevisível que é composta dos seus personagens,
ignorantes, tentarem prevê-la e a transformarem num julgamento de acordo com suas
ideias (paradoxalmente, individuais) do que é o coletivo.
CÃO (de fora da cena) – Ão, ao, ao.
5º ATOR – Já chegou, já chegou. O meu amigo já chegou.
Naturalmente!
3º ATOR – Chama-o então, 5º. Que entre depressa. Temos de acabar
o julgamento para executar rápido o réu.
6º ATOR – Que se passa com esse meu inimigo? Não quer entrar?
Não costuma ser assim tão lento.
4º ATOR – Vai entrar. Ele não foge ao coletivo, é um cão muito
inteligente e disciplinado. Compreende melhor que o Apresentador o
peso do coletivo.
[...]
5º ATOR – E o cão?
6º ATOR (indo até a boca da cena e olhando para fora) – Parece que
foi embora. Hoje não vou poder chateá-lo.
[...]
2º ATOR (olhando também para fora) – Foi embora, sim. Não quer
ser cúmplice dessa injustiça.
5º ATOR - Mas eu sou amigo do cão. Sinceramente! Por que ele não
é meu amigo?
(Pepetela, 2006, p.70,71)
Na citação acima, em que ocorre a “participação” do cão, ocorre uma metáfora
da participação do cão em todo O Cão e os caluandas: Sua participação é justamente
não participar, desencadear todo narrar sem que interfira nele. Nota-se durante todo o
Elogio da Ignorância que o 5º e o 6º Atores só sabem interpretar a partir da antinomia
“amigo” e “inimigo”, o cão só pode ser interpretado de acordo com o relacionamento
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que tem com eles, ou seja, o eu deles é a medida para interpretar-classificar o outro.
Também pode-se notar a curiosa participação do 2º Ator, que parece ser o único lúcido
dos seis atores, porém seu posicionamento é apenas mais uma espécie de ignorância
diante dos ignorantes que querem julgar a seu bel prazer o outro e a história: Ele
reclama e se indigna, porém aceita o veredito final, a “injustiça”. Na verdade, sua
indignação perante a injustiça é apenas um meio de deixar a conciência limpa, de “lavar
as mãos”, não uma vontade efetiva de mudar a situação. Isso é provado pela sua última
fala na peça onde, prostrado após a votação “democrática” que termina aprovação da
“injustiça”, diz: “Inclino-me à vontade do coletivo”. Pouco antes, durante a votação,
pergunta-se ao Apresentador se não aceita a posição do coletivo, ao que ele responde:
“Da maioria , não do coletivo”. Já aí há a crítica tanto à passiva “consciência limpa” do
2º Ator quanto à falsa democracia que se acha justa apenas por obter maior número de
votos, apenas por servir à maioria e não à coletividade que ela tanto diz defender. A
democracia, se não baseada do diálogo, pode se transformar numa mera ditadura da
maioria. O que não há em todo o Elogio da Ignorância é o diálogo, há apenas palavras
trocadas, há conversa, porém não diálogo, que implica relacionamento, cuidado com o
outro, nos termos da ternura pepeteliana que citamos no capítulo anterior. A conversa
traz a fala como estabelecimento da posição do falante, mas o diálogo pressupõe a
escuta.
O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo,
para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto na relação eu-tu.
Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a
pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos
demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito. É preciso primeiro que os que assim se encontram negados no
direito primordial de dizer a palavra reconquistem esse direito,
proibindo que este assalto desumanizante continue.
Se é dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, os homens o
transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens
ganham significação enquanto homens.
Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro
em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados
ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um
59
ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-
se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes.
(Freire, 2011, p.109)
A relação eu-tu, citada por Freire, é uma referência ao pensamento do judeu
Martin Buber na obra Eu e tu, em que se pensa os pares “eu-tu” e “eu-isso” como
símbolos das duas relações que o ser pode estabelecer com o outro. O “eu-tu” é diálogo,
relação, já o “eu-isso” pressupõe o outro como objeto de experiência subjetiva, onde o
subjetivo dita o que deve ser e o que não deve ser, independente do que realmente seja
ou não. O Elogio da Ignorância pode também ser interpretado como uma realização
dramática do “eu-isso”.
O mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio EU-ISSO.
A palavra-princípio EU-TU fundamenta o mundo da relação.
[...]
O experimentador não participa do mundo: a experiência se realiza
“nele” e não entre ele e o mundo.
O mundo não toma parte da experiência.
Ele se deixa experienciar, mas ele nada tem a ver com ISSO, pois, ele
nada faz com ISSO e nada DISSO o atinge.
(Buber, 1979, p.6)
No Elogio da Ignorância realiza-se como que uma paródia do mundo como
experiência, ou seja, do primado da visão subjetiva do mundo sobre a própria existência
do mundo. Cada um dos personagens tenta impor ao mundo, que o outro também
constitui, sua visão subjetiva de como o mundo deve ser; por isso, tudo que há nesse
mundo torna-se “coisa” a ser administrada ou julgada por essa visão subjetiva que se
apresenta como teoria ou utopia social. Não é possível relação, diálogo, com uma
“coisa” que compõe o mundo, ela não pode ser chamada de TU, pois quem assim a
considera “coisa” não se rebaixaria a ela tratando-a como um igual. Só seria possível
chamá-la ISSO, o que implica distanciamento ao mesmo tempo que supõe uma falsa
objetividade, que subjuga tudo que há num mesmo nível, abaixo de um EU que impõe
seu subjetivo a toda realidade, como se ela estivesse nela e não o contrário. Importante
notar que, no pensamento de Buber, de modo algum o mundo como experiência é
ligado ao mal, nem se trata de um oposto cujo outro oposto seria o mundo da relação,
60
do diálogo. Antes, o mundo da experiência, do EU-ISSO é necessário e pertence à
existência humana, ele torna-se nocivo apenas quando se torna o sentido último dessa
existência, quando o técnico, o burocrático, o doutrinário e a ordem são mais
valorizados que o humano, a multiplicidade e o diálogo. Quando o EU-ISSO reconhece
a primazia do diálogo, do EU-TU, na construção e percepção dos sentidos da
existência, ele é útil como instrumento de relação. Em O Cão e os caluandas, porém,
Pepetela começa a denunciar o quanto a relação EU-ISSO tornou-se o centro e o fim de
toda atividade na Angola independente. Isso é mostrado não só no uso de uma doutrina
social ridiculamente inflexível a qualquer movimento não previsto do homem e da
realidade, mas principalmente na burocracia que será representada em uma série de
segmentos de O Cão e os caluandas que constituem-se de documentos burocráticos,
cuja estrutura formal, padrão lingüístico de distanciamento, impessoalidade e fidelidade
a um sistema social fechado não conseguem acompanhar o fluxo da realidade e nem a
realidade social e humana. Analisando alguns esses “documentos” no próximo capítulo,
perceberemos o quanto Pepetela põe o documento burocrático como uma espécie de
monumento ao não-diálogo, à impessoalidade fria para com os semelhantes. Esses
documentos se tornarão os monumentos do mundo do Elogio da Ignorância.
O final do julgamento, aparentemente cômico, nesse que talvez seja o segmento
central de O Cão e os caluandas, torna-se altamente simbólico tanto da visão da
realidade nessa obra em especial quanto da percepção Pepeteliana da relação entre
ficção e realidade.
A sentença, tão inusitada quanto todo o resto, é proferida por todos,
em coro: “O réu é condenado à pena máxima. Paga uma grade de
cerveja”. Em meio aos gritos desesperados do réu, que é arrastado
pelos outros, avisa-nos o autor: “Cai o pano. Esburacado”.
Através dessa melancólica cortina esburacada que esconde e revela,
Pepetela passa a limpo, com seus personagens sem nomes,
numerados, o que ficou por realizar do projeto socialista que a
revolição angolana preconizava.
(Hildebrando, 2006, p.328,329)
O buraco na cortina, indicação final da cena dramática, significa muito mais que
um símbolo de pobreza ou uma simples indicação de viés cômico. Primeiramente, o
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buraco permite que a cortina, mesmo se fechando, não deixe de revelar: a denúncia e o
ridículo do Elogio da Ignorância são feridas expostas, que nenhuma cortina ideológica
e ideal pode esconder. Também, por conta desse buraco, a cortina deixa uma brecha na
sua função de separar drama e realidade. A realidade do Elogio da Ignorância e o drama
da sociedade angolana não se distinguem. O buraco na cortina se torna uma metáfora da
própria obra: O Cão e os caluandas não será a obra que as cortinas escondem e
revelam, mas foi escrita para ser justamente um revelador e incômodo buraco na
cortina. O ciclo utópico pepeleliano que tivera seu auge em Ngunga e em Mayombe
chega ao fim. A utopia, porém, permanecerá, após O Cão e os caluandas, não como
projeto de luta, mas como resistência da chamada geração da utopia, “uma geração
impedida de desistir de sonhar, talvez por escolha, destino, ou quem sabe, por
condenação” (Gonda, 2007, p.23)
O saldo intensamente negativo do Elogio da Ignorância é o diagnóstico do que
se tornou a sociedade angolana do pós-independência, às portas da guerra civil:
Inexistência de diálogo e de incentivo ao conhecimento e à conscientização do social,
resultando na presença constante do julgamento maniqueísta do outro, da realidade e da
história. É o julgamento e a condenação à morte de Ngunga, e seria também a execução
e o epitáfio, não fossem as aparições do cão a abrirem brechas insuspeitáveis para o
diálogo e a ternura no restante da obra.
62
6. OS COLONIZADOS EM PAPELÓPOLIS E A LIBERDADE DA
TONINHA: OU A ORDEM BUROCRÁTICA E A RESISTÊNCIA DA
UTOPIA
ESCRAVO EM PAPELÓPOLIS
Ó burocratas!
Que ódio vos tenho, e se fosse apenas ódio...
É ainda o sentimento
da vida que perdi sendo um dos vossos.
(Carlos Drummond de Andrade)
Se a perseguição exclusiva de fins não-
utópicos resulta no que aí temos, no mundo
em redor, este mundo cujo horizonte
supremo é “operar com êxito nas
empresas”, não há que hesitar: a utopia
será, mais do que nunca, necessária.
(Carlos Felipe Moisés, em Poesia e
Utopia)
A sociedade refletida no Elogio da Ignorância tem como motor a administração
burocrática. Não é coincidência que dois dos segmentos de O Cão e os caluandas sejam
documentos burocráticos e em vários outros os personagens sejam funcionários
públicos. Antes, porém, de interpretar esses segmentos é preciso entender o que
significa a burocracia, para além do simples documentarismo. Para tanto, nos
basearemos no pensamento de Max Weber em seu clássico Economia e Sociedade. A
ignorância que, em o Cão e os caluandas, tem o seu Elogio como forma de dominação
de um povo, terá na burocracia seu monumento e seus agentes.
Para Weber, a burocracia é instrumento da instalação do poder, é uma forma
sutil de dominação que, a partir de quando recebe a legitimidade dos subordinados,
passa a funcionar como administração. Lembre-se a fala do personagem do segmento O
Primeiro Oficial, exposta no primeiro capítulo deste texto, em que o funcionário
público angolano de certo modo justifica a dominação portuguesa sob o pretexto de que
63
pelo menos os portugueses sabiam administrar e manter a burocracia em ordem.
Naquele contexto, sua fala não só legitima a anterior dominação portuguesa como a sua
própria, funcionário da burocracia na Angola pós-independência, sob os outros
angolanos, que não saberiam manter as “coisas em ordem”, nem agir de maneira
“sensata”.
Todas as dominações procuram despertar e cultivar a crença em sua
legitimidade. Dependendo da natureza da legitimidade pretendida
difere o tipo de obediência e do quadro administrativo, destinado a
garanti-la, bem como o caráter do exercício da dominação.
Entre os diferentes tipos de dominação estudados por Weber, a
burocracia se insere na dominação legal-burocrática. Essa dominação
possui um caráter racional, fundamentado na crença da validade dos
regulamentos estabelecidos racionalmente e na legalidade dos chefes
designados nos termos da lei. Assim a relação entre dominantes e
dominados se estabelece, não por vontade própria, mas por estar
previsto, em estatuto, que determina quem deve mandar e quem deve
obedecer. Quem manda, assim o faz para obedecer ao estatuído. O
dominante, que está apenas exercendo uma função como dever
objetivo do cargo que ocupa, deve agir impessoalmente, sem
interferência subjetiva, sem consideração a pessoas, sem influência de
qualquer espécie. Deve agir de maneira estritamente formal, segundo
regras racionais.
(Santos, 2011, p.270)
A forma de dominação burocrática se funda também sobre a disciplina, o dever
de obediência. A hierarquização se torna essencial, ou seja, a base mesmo da sociedade.
Aparentemente, não há mais dominantes e dominados, pois a hierarquia administrativa
tem a aparência de ser escolhida e criada por meios racionais, que se supõe neutros. A
hierarquização burocrática dificilmente será considerada uma dominação a primeira
vista, visto que se funda sobre uma suposta razão natural a todos, como se ela fosse
realmente a lei última da realidade social.
Há na administração burocrática um processo de nivelamento de
dominantes e dominados porque, na verdade, todos obedecem a um
64
estatuto previamente estabelecido. As classes laboriosas e as classes
dirigentes são apenas variantes do cidadão - a dominação fica
dissimulada e esta planificação surge como instrumento para exercer
o poder e justificar seu exercício. É uma forma sutil e perfeita pela
qual o autoritarismo se impõe no mundo capitalista. Na forma
burocrática de administrar aplica-se o princípio absoluto da separação
entre o quadro administrativo e os meios de administração e
produção. Substitui-se assim o governo das pessoas pela
administração das coisas e a racionalidade que a governa faz surgir a
crença de uma razão inscrita nas próprias coisas, na medida em que
esta razão estabelece uma sociedade inteligível de ponta a ponta. As
idéias de organização, controle, administração e planificação
transformam o universal abstrato em ação adequada a fins.
(Santos, 2011, p.271)
Por fim, a hierarquia burocrática se funda sobre a necessidade de centralização.
Esta garantiria a estabilidade da dominação.
A burocracia não é um aparelho qualquer à disposição de dirigentes
políticos; é um aparelho centralizado. A centralização diz respeito
tanto ao recrutamento quanto a administração de um pessoal colocado
sob a autoridade se não das mesmas regras, pelo menos de regras que
dependem dos mesmos princípios. E por ser centralizada é que este
tipo de administração tende a uma codificação mais ou menos
rigorosa que procura dar coerência a uma massa de leis, decretos,
regulamentos prolíficos e confusos. Administrar/dominar via
burocracia é estabelecer obediência por meio de um quadro
administrativo: cria-se uma infinidade de direitos e deveres, instala-se
uma hierarquia entre o séquito e este corpo administrativo. E isto
possibilita a estabilidade da dominação. Neste sentido, vemos que
Weber estabeleceu as estratégias usadas pelos dominantes para
assegurar a dominação e fazer com que os dominados aceitem-na.
(Santos, 2011, p.271)
Torna-se bem claro que a suposta neutralidade das leis que legitimam a
burocracia, sob a aparência de impessoalidade, torna-se simples coisificação dos
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membros da sociedade. É nesse âmbito que as pessoas acabam se tornando números de
estatísticas ou partes de um coletivo supostamente homogêneo. É a relação Eu-Isso, do
pensamento de Buber, em total predominância quanto a qualquer outro tipo de relação.
Para o sucesso da hierarquia burocrática e seu funcionamento, a desumanização torna-
se peça chave.
A peculiaridade da cultura moderna, especialmente a de sua base
técnico-econômica, exige precisamente esta "calculabilidade" do
resultado. A burocracia em seu desenvolvimento pleno encontra-se,
também, num sentido específico, sob o princípio sine ira ac studio.
Ela desenvolve sua peculiaridade específica, bem-vinda ao
capitalismo, com tanto maior perfeição quanto mais se "desumaniza",
vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela
qualidade específica que é louvada como sua virtude: a eliminação do
amor, do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente
pessoais e, de modo geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na
execução das tarefas oficiais. Em vez do senhor das ordens mais
antigas, movido por simpatia pessoal, favor, graça e gratidão, a
cultura moderna exige para o aparato externo em que se apóia o
especialista não-envolvido pessoalmente e, por isso, rigorosamente
"objetivo", e isto tanto mais quanto mais ela se complica e
especializa. E tudo isto a estrutura burocrática oferece numa
combinação favorável.
(Weber, 1999, p.213)
É nesse âmbito que a crítica de Pepetela inscreverá seus personagens. A
burocracia é mais que uma resposta ao caos, é a própria negação dele, um faz-de-contas
de que ele não existe. Trata-se de um embuste documental do que se chama ordem.
Eliminar o caos verdadeiramente implicaria eliminar tudo aquilo que escapa ao controle
de toda ordem, tudo aquilo que potencializa caos. Não é à toa que, nas ordens que se
querem perfeitas, sempre se quer a expulsão dos poetas e daquilo que, no humano, não
serve aos propósitos retilíneos do regime: a caótica humanidade do homem não serve às
ordens que buscam eficiência maquinal no agir sobre a realidade. Mais uma vez na
obra, é o cão que instaurará o caos, que fará com que as personagens relembrem da sua
humanidade para além dos tipos e das funções que lhe são dadas na nova ordem tecno-
66
burocrática que se torna a Angola independente. Há dois segmentos de O Cão e os
caluandas que são expressamente documentos burocráticos. O primeiro deles
denomina-se Acta, o segundo denomina-se Que Raiva!. Neles, a presença irreverente do
cão no que relatam, além de expor ao ridículo a exigência burocrática do relato, quebra
a formalidade burocrática desses documentos que, paradoxalmente, acabam por expor
uma crítica à própria burocracia.
O primeiro desses segmentos é uma ata de uma reunião da Comissão sindical e
da Direção de uma empresa, e o que é relatado nessa ata se inscreve entre as
declarações do mulato Teoria em Mayombe e o absurdo do Elogio da Ignorância.
Trata-se da atitude de um técnico chamado João Venâncio dos Santos, que ao saber que
um outro funcionário roubando panos do armazém da firma, não o denunciou, posto
que João Venâncio era branco e o funcionário que praticara o roubo era negro.
[...] disse o Cds Venâncio que se bateu muito tempo na dúvida e até
pensou falar com o próprio Adriano a sós, para o convencer a ser
honesto. Mas teve medo [...] que o Adriano reagia mal e que saía por
aí embora a dizer se pensava que ele era ladrão por ser negro [...]. Por
isso às vezes ele (Venâncio) não sabia muito bem como proceder,
tinha medo de ir contra os princípios da república por falta de política
e por ideias caducas que ainda podiam estar na sua cabeça [...].
(Pepetela, 2006, p.37)
A situação do roubo só é exposta por causa do cão.
Felizmente apareceu aquele cão pastor-alemão, anjo vingador, [...] ao
se agarrar no pano cuja uma ponta andava sair das calças do Adriano
quando este pulou embora o muro da fábrica. Se não fosse o cão, até
hoje que o Adriano andava nas calmas, a fingir trabalhar e a roubar o
suor dos operários, tudo por culpa dele, Venâncio.
(Pepetela, 2006, p.36)
Mais que o roubo, o cão denuncia o absurdo da questão racial tomada de forma
simplista. Venâncio é alguém que, para usarmos os termos do mulato Teoria de
Mayombe, se perde entre os conceitos de negro e branco, que crê eternamente opostos,
só tendo dúvida de qual lado deles estar nas situações que a realidade dos homens lhe
67
oferece. Venâncio nem desconfia do “talvez”, assim como os colegas que o julgaram. A
questão racial é tratada como posição burocrática e legal e não como conscientização, o
que fica bem claro quando na própria ata se registra que Venâncio não denunciou
Adriano por medo de estar agindo contra os princípios do novo regime. O segmento
Acta reflete o que pode acontecer quando questões importantes, como a racial, são
simplesmente impostas de lugar superior da hierarquia burocrática, em vez de se
investir numa educação e conscientização humanística do povo que inclua essa e outras
questões que envolvem dignidade humana e justiça social. Ainda aqui ecoam os
chamados de As Aventuras de Ngunga e Mayombe para a conscientização e instrução
do povo como pilar da revolução e do manter os resultados da revolução. Em vez disso,
achou-se que o estabelecimento da ordem burocrática, com sua rigidez e papelada que
se supõem neutras das intempéries da história, poderia manter tais conquistas. Em O
Cão e os caluandas, diante desse chamado não atendido, percebe-se melancolicamente
esses resultados se perdendo, ou pior, se degenerando, pouco a pouco. O segmento Acta
é um documento da degeneração, assim como o segundo segmento burocrático da obra,
Que Raiva!, que trata-se uma troca de remessas documentais, expressamente
burocráticas, entre funcionários públicos de várias alturas da hierarquia.
Esse segmento é um testemunho literário, ironicamente em forma de cartas e
despachos burocráticos, do quanto os problemas do povo são esquecidos e mesmo
piorados num sistema em que a resolução ou não desses problemas torna-se apenas
questão de retórica entre um documento e outro, além da transferência de
responsabilidades, tanto da parte mais baixa da hierarquia burocrática para a mais alta,
tanto da mais alta para a mais baixa. O povo sequer participa da tomada dessas decisões
urgentes a ele mesmo, que envolvem, por exemplo, no caso desse segmento, questões
de saúde pública. Tal é o retrato de um regime que se quer democrático, “popular”,
porém por esse segmento pode-se depreender que é apenas burocrático, no sentido
figurativo que a própria palavra sugere (bureau-cratos): o poder não nas mãos do povo,
mas daqueles que, atrás das mesas, em seus escritórios confortáveis, acham que podem
resolver os problemas humanos com um despacho ou assinatura em um documento
qualquer. Os problemas do povo chegam a seus escritórios como uma petição
documental, nada mais próprio que a solução seja apenas mais um documento.
O primeiro documento é uma petição de um técnico de saúde de Luanda que
alerta o Chefe da Seção sobre uma possível epidemia de raiva na cidade, inclusive cita
um tal cachorro pastor-alemão que persegue alguns passantes e do qual se suspeita que
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tenha raiva; termina o documento pedindo a tomada da seguinte previdência: aproveitar
o estoque de vacinas, que acabará estragando pelas más condições de armazenamento, e
vacinar todos os cachorros, antes que haja um surto.
Além do aumento indiscriminado de caninos que pululam à solta
nesta cidade, que é impossível combater pois há muito deixaram de
funcionar os chamados “carrosde cães”, que faziam as batidas pelas
ruas a capturar os animais sem coleira nem atestado de vacina anti-
rábica, que se juntam a matilhas de porcinos, ratazanas, palmípedes,
caprinos e outros animais não identificados, vários populares se têm
referido ao facto de que, na zona da Mutamba, em espécimen da rapa
pastor-alemão, de aspecto subalimentado, perseguir alguns passantes.
Nunca se registrou o caso de ele morder alguêm, mas o seu aspecto
geral e o fato de perseguir determinadas pessoas, cria suspeitas
justificadas de que esteja a germinar a raiva dentro de si. Medidas
adequadas deveriam e poderiam ser tomadas [...]
Essa petição é escrita no dia 2 de fevereiro de 1980, o Chefe de Setor envia
somente em 15 de Abril um documento sobre a situação e dificuldades do
empreendimento proposto pelo técnico de saúde ao Chefe de Departamento. Este, por
sua vez, envia a petição do mesmo em 27 de Julho ao Diretor, que finalmente autoriza a
Informação-Proposta do técnico de saúde no dia 5 de Outubro, pouco mais de 7 meses
após a petição. A resposta do técnico, após receber a aprovação para algo de urgência
depois de tanto tempo, é realmente “dolorosa”:
Infelizmente, cumpre-me o doloroso dever de informar que, face ao
tempo que decorreu, as condições humanas e materiais recolhidas se
perderam. As vacinas deterioraram-se, devido às más condições de
conservação a que já fizera alusão na minha proposta; muitos dos
quadros-operadores já arranjaram empregos noutros serviços que
pagam salários mais elevados e até o cão pastor-alemão que o Cda
Chefe de Departamento conhece deixou de aparecer na Mutamba há
meses.
É preciso pois fazer nova importação de vacinas, o que leva meses
senão anos, bem como formar novo pessoal, o que repõe o eterno
problema dos salários.
69
(Pepetela, 2006, p.124)
A hierarquia burocrática funcionou, mas o problema, além de não ter sido
resolvido, demorará anos para uma nova possível solução. Até lá, as vidas que forem
ceifadas pelos problemas de saúde pública serão apenas mais números de outros
documentos. Ironicamente, por três vezes no fim de três dos documentos burocráticos
que permitiram essa situação, aparece o enunciado “O mais importante é resolver os
problemas do povo”, esvaziado de sentido, como um simples protocolo. O título do
segmento, “Que raiva!”, pode adquirir três sentidos: o espanto perante a iminente
ameaça de um surto de raiva que poderá vitimar a população, o desdém do processo
burocrático perante essa ameaça real e a revolta inconformada diante do desdém dos
processos burocráticos à realidade do povo. Resta saber se ainda haverá espaço para a
utopia nesse contexto. O terceiro sentido que o título desse segmento pode assumir
talvez seja a chave para se pensar a nova postura utópica pepeteliana, tornando
altamente significativo o aviso do técnico de saúde, exposto acima, de que há suspeitas
de que o cão esteja germinando a raiva dentro de si.
Se pode-se falar de uma desistência da utopia na obra de Pepetela a partir de O
Cão e os caluandas, trata-se apenas da utopia como “máquina de fazer felicidade”, da
utopia como eliminação do caos em favor de um plano de perfeição aplicado
homogeneamente a todos os indivíduos. Acerca dessa postura pepeteliana, é pertinente
citar o poema de Pessoa/Caeiro, também numa postura aparentemente anti-utópica:
Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria eu ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem como tu queres, seriam sócomo tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!
70
(Pessoa, 1993 , p.76)
A percepção pepeteliana de que a “máquina de fazer felicidade” do socialismo
angolano já não funcionava, ou antes nunca funcionou, prepara uma nova percepção da
utopia, que não parte de uma ideia a que a realidade que seja conformada, mas de
buscar ideias que nasçam diretamente da realidade angolana. Em O Cão e os caluandas
fica claro o quanto ideais sociais que não levam em conta a realidade imediata do povo
acabam por resultar no domínio da burocracia e na repressão do próprio povo.
Trata-se para a Angola revolucionária de criar novas estruturas de
poder, a partir dessas bases, respeitando-se as chamadas “condições
objetivas”. Esqueceram-se, como nos modelos estatais soviéticos, de
relevar as potencialidades subjetivas, quase sempre creditadas ao
revolucionário romântico que sonhou com uma sociedade libertária.
Depreende-se da leitura de O Cão e os caluandas como esse sonho
libertário acabou por ficar emperrado nas esferas administrativas.
Repetiram-se formas autoritárias, avassaladoras, e não a democracia
socialista desejada.
(Abdala Junior, 2006 , p.44)
No segmento Epílogo, a nova postura utópica pepeteliana aparece simbolizada
por uma toninha, que fascina o cão.
Estávamos os dois, ele e eu, sentados no pôr do Sol, a olhar o mar
alto. Eu a fumar o meu cachimbo, ele a pensar as suas vidas antigas. E
passou um grupo de golfinhos. O último vinha muito atrás do grupo e
a uns dez metros da costa: às vezes a arrebentação quase lhe atirava
para a areia. Era uma toninha, das coisas mais lindas que vi na minha
vida.
O cão, que ladra para tudo que aparece no mar, nem jamanta lhe faz
medo, ficou quietinho, calado, a olhar a toninha. Ela ondulava,
mergulhava e voltava, lançando a espuma das ondas para o ar e tons
azulados nos violetas do pôr do Sol.
(Pepetela, 2006. p.155,156)
71
O cão “apaixona-se”pela toninha e mesmo ao vê-la perder-se no mar ao longe
continua procurando por ela todo pôr do Sol. Não seria essa toninha um símbolo da
esperança utópica? O próprio narrador dá pistas disso no final do segmento.
Creio que todos, homens do mar, temos uma toninha que só aparece
uma vez na vida e que, ao ir-se de vez, nos deixa um vazio no
coração. E dá vontade mesmo, quando o Sol morre no mar, ganir para
essa toninha que tem algas como cabelos. [...] temos de a deixar
seguir o seu caminho, mesmo que fiquemos na praia a perdê-la,
morrendo toda a vida.
(Pepetela, 2006)
O cão, que durante todos os segmentos da obra parece mostrar os absurdos e
corrupções de uma sociedade fundada sobre a utopia da libertação e da democracia
socialista, reencontra a utopia como paixão, como inconformação de um “vazio no
coração” deixado pelo fracasso das utopias e pelos problemas estruturais da sociedade
ainda não resolvidos. A utopia muda de forma para que permaneça, torna-se a
consciência da necessidade constante de mudança, ao invés de previsão de uma
mudança definitiva. A palavra de ordem “luta”, dá lugar à palavra “inconformação”. A
utopia, enfim, sai das mãos e dos projetos de um (indivíduo ou grupo) para assumir
formas distintas como a busca de cada um, em vez de propor a uniformização e a
mudança final, atinge a maturidade dialética de propor a unidade dos múltiplos e a
necessidade constante de mudança.
Práticas libertárias pressupõem sujeitos múltiplos, flexíveis e abertos
para a mudança inovadora. Em termos de construção de uma
sociedade libertária, implicam a criação de novos habitus, afastando-
se da ritualização acrítica. O problema é complexo, não obstante, pois
tais habitus estão arraigados no conjunto da vida social. Envolve a
construção de práxis abertas, quando o conjunto da população tem
suas formas de comportamento pautadas pela discriminação e o jogo
do mais forte. Só respeita formas homólogas àquelas que aprendeu a
respeitar. Ao mesmo tempo, há uma série formal que vem da
experiência do assim denominado socialismo real, que desembocou
72
na prática para formas políticas, econômicas e sociais afins de um
capitalismo de Estado.
(Abdala Junior, 2006 , p.43,44)
Por fim, é preciso compreender O Cão e os caluandas para entender a
permanência da utopia como inconformação na obra posterior de Pepetela, e não
entender a crítica impiedosa à sociedade angolana que será feita em obras como A
Geração da Utopia e Predadores como um simples abandono desiludido da utopia. Tal
interpretação só interessaria aos que querem manter o estado das coisas, no pretexto de
que os sonhos, em relação às situações de realidade social, de nada adiantam.
73
6. CONCLUSÃO
NADA É IMPOSSÍVEL DE MUDAR
Desconfiai do mais trivial,
Na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
Não aceiteis o que é de hábito
Como coisa natural,
Pois em tempo de desordem sangrenta,
De confusão organizada,
De arbitrariedade consciente,
De humanidade desumanizada,
Nada deve parecer natural
Nada deve ser impossível de mudar.
(Bertold Brecht)
A obra de Pepetela, deste O Cão e os caluandas, sob o prisma de uma nova
postura utópica, tem feito a crítica da sociedade angolana, tanto das partes mais altas da
hierarquia, pela sua corrupção, quanto das mais baixas, por seu conformismo, e até
mesmo do fato de haver a hierarquia. A situação do país se agravou, obviamente, após a
eclosão da guerra civil em Angola, mas ela só veio confirmar a denúncia presente em O
Cão e os caluandas e pressentida mesmo nos tempos da luta pela utopia, em Mayombe.
O sentimento de se estar presente em uma sociedade que traiu sua própria utopia é
onipresente nas suas obras desde então. As propostas de ordem que controlassem o caos
só trouxeram barbárie e o desejo de controle sobre o humano. Suas obras não
vislumbram em Angola nem a ordem, nem o caos, mas a simples bagunça resultante
das tentativas falidas de ordem: “desordem organizada” e “arbitrariedade consciente”,
para usar termos brechtianos. A intolerância da visão maniqueísta de mundo impediu a
unidade Angolana que era prevista nas guerras de libertação; mais que nenhuma outra
figura na obra de Pepetela, a do mulato personifica esse fato. Em O Cão e os
caluandas, Pepetela se distancia irremediavelmente da forma de utopia pregada nos
tempos de libertação do colonizador português e atesta o fracasso dela entre a
74
corrupção, a burocracia insensível ao povo e o conformação do próprio povo. Porém, é
nessa mesma obra que ele se aproxima irremediavelmente da utopia, como ternura e
como inconformismo perante toda realidade opressora, sem ater-se a forma alguma que
prometa o controle do caos. Do homem (angolano) não mais se esperará o controle da
realidade e de sua imprevisibilidade, mas o saber lidar com a imprevisibilidade e os
viés do real sem, no entanto, deixar aprisionar-se por qualquer outro homem ou
ideologia que lhe prometam o controle e a extinção desse caos que se confunde com a
própria humanidade do homem, imprevisível e fértil em possibilidades. Como elemento
que mostra uma brecha libertadora de caos em toda ordem que se quer totalizadora do
real, a figura do cão apaixonado pela toninha que se vai no mar ao longe e nunca mais
retorna, é o retrato dessa utopia sempre presente, ainda que na ausência de formas
sociais absolutas que possam obrigar a realidade a se encaixar nelas. Uma utopia que
sobrevive aos colapsos inevitáveis dos sistemas utópicos absolutos diante de uma
realidade essencialmente dialética. A toninha persiste como memória e ternura no cão.
A figura do cão lutando contra a imensa buganvília que toma todo o quintal é o retrato
da luta tenaz contra os opressores, porém essa luta se dará por outros modos que não a
guerrilha e a doutrinação. O ponto inicial dessa luta talvez seja a inconformação e o
desejo do diálogo. Quando um dia for necessária a luta em termos materiais, será ela
consequência da inconformação e do desejo de liberdade ao diálogo e não apenas
defesa de uma ideia sem contato algum com o real como um todo, ou antes, arrogando-
se de ter resolvido todas as questões que vieram e virão nesse e desse real. A dialética
do caos não expõe o caos e as ordens possíveis como lados inconciliáveis de um
maniqueísmo, antes, compreende que do caos sempre nasça nova ordem e que em toda
ordem, finita e limitada, está presente o caos, que permitirá o nascimento do novo em
meio ao que já caduca. Os maniqueísmos intelectuais, religiosos e políticos, no seu afã
de manterem eternamente as ordens que caducam, as opõem ao caos e tentam reprimí-
lo, inutilmente. Não é à toa que, nos regimes totalitários que se iludem da própria
eternidade, o artístico e os afetos mais imprevisíveis e espontâneos do homem são ou
prontamente censurados ou submetidos a uma violenta carga de regras. A literatura de
Pepetela mostra o afloramento justamente desses afetos imprevisíveis e espontâneos do
homem angolano. A própria linguagem espontânea de suas obras, carregada de leve
humor e da ternura que chama ao diálogo, reflete esse afloramento, que simplesmente
se dá no real sem pedir permissão ao sistema político vigente, à visão de mundo tida
como verdadeira ou à moralidade dos homens para acontecer. A realidade sempre faz
75
aflorar do caos um novo que não se limita nem ao “sim” nem ao “não” a que os
conceitos individuais e sociais julgam tê-la reduzido. Desse modo, a literatura
pepeteliana torna-se também o testemunho de uma sociedade da qual o povo não foi
ainda educado a uma visão dialética do outro, de si mesmo e da vida (o que talvez seja
a realidade na maioria das sociedades atuais, vítimas de fanáticos maniqueísmos
políticos e/ou religiosos) e do quanto essa situação só pode redundar em barbárie e
ignorância, não importa que nova ordem suba ao poder ou por qual projeto utópico
absoluto se lute. Ao mesmo tempo, é um convite à inconformação perante uma
realidade de desumanização e consumismo que se quer insuperável e pretende provar
sua perenidade mostrando o túmulo de todas as utopias que já tentaram depô-la do
poder. Um cão passa por Luanda e, no interior caótico dos caluandas e dos leitores, os
túmulos se abrem: vazios.
76
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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