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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
CENTRO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
ANTONIA IRACEMA MENEZES SANTOS CERQUEIRA
UMA REFLEXÃO A CERCA DA MORAL NIETZSCHIANA NA SOCIEDADE CIVIL
AMARGOSA – BA
2017
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ANTONIA IRACEMA MENEZES SANTOS CERQUEIRA
UMA REFLEXÃO A CERCA DA MORAL NIETZSCHIANA NA SOCIEDADE CIVIL
Trabalho de conclusão de curso apresentado como
requisito parcial para a obtenção do grau de licenciada
em Filosofia, ao Centro de Formação de Professores
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Orientador: Prof. Dr. Emanoel Luís Roque Soares
AMARGOSA – BA
2017
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FOLHA DE APROVAÇÃO
ANTÔNIA IRACEMA MENEZES SANTOS CERQUEIRA
UMA REFLEXÃO A CERCA DA MORAL NIETZSCHIANA NA SOCIEDADE CIVIL
Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau
de licenciada em Filosofia, ao Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia.
Amargosa – BA, ______ de_____________________ 2017
Banca Examinadora:
__________________________________________________
Prof. Dr. Emanoel Luís Roque Soares (UFRB – Orientador)
__________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Pedro Moura (UFRB – Examinador)
__________________________________________________
Prof. Dr. Kleysson Rosário Assis (UFRB – Examinador)
AMARGOSA – BA
2017
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Dedico à minha mãe, Maria Menezes, às
minhas filhas, Thamires e Lorena Menezes, ao
pai de minhas filhas Joseval Cerqueira e a
meu esposo José Cosme, pelo apoio e carinho
a mim dedicado, a Alequissandro por ser meu
suporte fraternal em todos os momentos.
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AGRADECIMENTOS
Finalmente depois de ter feito tantos pedidos a Deus e as entidades espirituais para
receber inspiração, entender e escrever sobre esse árduo, mas ao mesmo tempo prazeroso
assunto, chegou o momento do êxtase que é registrar o meus agradecimentos.
Primeiramente agradecer a Deus por tudo que ele tem proporcionado em minha vida,
principalmente, por ter me guiado nas horas mais difíceis e me dado paciência e sabedoria
para decifrar o que para mim vinha dele, e o que vinha do mundo.
Agradeço a toda a minha família que com seu carinho me deu força para seguir em
frente.
À minha amada filha primogênita, Thamires Menezes, por ser meu braço direito com
os afazeres domésticos para eu que tivesse condição de seguir com os estudos.
À minha amada filha Lorena Menezes por ter entendido a minha ausência em muitos
momentos da sua infância.
À minha mãe Maria José pelos mais verdadeiros conselhos e pelas orações feitas para
mim todos os dias.
À meu ex-companheiro Joseval pela compreensão com as crianças durante minha
ausência e todo apoio que foi fundamental na minha caminhada acadêmica.
Aos meus irmãos Alessandro e Iraleide pelo companheirismo, eu simplesmente amo
vocês!
Sou muito grata à Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), por me
proporcionar esse espaço, onde eu conheci pessoas das mais diversas personalidades, as quais,
nas suas diferenças, me completavam de diferentes maneiras. Sobretudo, por saber que esse
tempo aqui vai acabar, que essa etapa está chegando ao fim e que a distância vai nos separar
fisicamente, uma vez que cada um segue construindo seus destinos, carrego a certeza de que
vocês continuaram sempre comigo. Por isso, queridos amigos, meus sinceros sentimento a
todos vocês.
Alguns nomes fazem necessários serem citados: Lucas, Denise, Hanna, Diego,
Solange, Ângela, Josivane, Ayronne e Jussara, por ter ouvido de vocês frases de incentivo,
saibam que todas elas foram de grande importância para meu crescimento, por isso, quero
acompanhar as vitórias de vocês sempre! Mesmo que seja via redes sociais. Contudo, nem
todos vão deixar apenas lembranças e saudades, mas também, a eterna presença revestida em
amizade como Van Couto e Alequissandro, vocês são meus eternos presente da UFRB para
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vida. O sorriso alegre de Van é algo que eu quero sempre contemplar, e você Alequissandro é
para mim bem mais que amigo. Como sempre te digo: você é meu irmão! Meu carinho e
respeito por você ultrapassam as barreiras de uma simples amizade, com certeza, sem você eu
nada seria nesse mundo louco da academia.
Agora um agradecimento especial, à minha amiga-irmã Gilsyleia Oliveira com quem
por muitas vezes chorei e desabafei! Só você amiga para suportar, por isso, não tenho palavras
para expressar o quanto lhe sou grata. Obrigada por tudo! Você foi peça fundamental para
conclusão dessa etapa da minha vida.
Como poderia ficar de fora, ele que é minha base, aquele que me sustenta e que todo o
dia me diz: “vamos pretinha, a vida segue”, ao meu grande amor José Cosme, muito obrigado
por me dedicar tanto carinho!
E como agradecer nunca é demais, também agradeço todos os professores que
contribuíram em minha formação em especial os que fazem parte do curso de Filosofia.
Chega o momento mais esperado, é o de agradecer a você Emanoel Soares.
O que te dizer? Não tem palavras que possam expressar a quantidade de sentimentos que você
desertou em mim, você é muito especial para minha vida, mestre. Obrigada pela paciência,
principalmente durante as escritas da monografia e pela bela orientação, inclusive pelos
muitos momentos que a relação de professor e aluno foram substituídos pelos bons conselhos
de pai. Serei sempre grata a você, por todos os caminhos que você me ensinou a caminhar.
E mais uma vez, muito obrigado a todos. Vocês foram essenciais para a construção
deste trabalho e sem vocês eu nada seria!
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“No dia, porém, em que todo coração dissermos:
“avante! Também a nossa velha moral é coisa de
comedi!” – teremos descobertos novas intrigas e
possibilidades para o trama dionisíaco do
“Destino da Alma”; e ele saberá utilizá-las, disso
posso ter certeza, ele, o grande, o velho eterno
poeta-comediógrafo da nossa existência[...]”
(Friedrich Nietzsche)
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SUMÁRIO
À GUISA DE UM PROBLEMA: UMA BREVE INTRODUÇÃO .................................... 10
1 O BOM E O MAU: COMPONDO A SOCIEDADE CIVIL .......................................... 13
1.1 A origem do bom e do mau ............................................................................................. 13
1.2 A religião como moléstia da humanidade ...................................................................... 15
1.3 A moral ............................................................................................................................. 18
1.4 A necessidade de uma revolta escrava na moral ...........................................................20
2 A MORALIDADE ENQUANTO COSTUME .................................................................22
2.1 Consolidação da moralidade ...........................................................................................22
2.2 Culpa e o castigo ...............................................................................................................24
2.3 O sofrimento do homem pelo nada .................................................................................26
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................32
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................35
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RESUMO
A Moral segundo Nietzsche é o regulamento das atitudes e das ações do homem dentro da
sociedade e, sendo assim, ela tem o papel fundamental de limitar a humanidade de usufruir
dos prazeres mundanos. Portanto, é a Moral uma ação dos fracos. Isso é tratado
principalmente em sua obra A Genealogia da Moral, no entanto, o que chama a atenção nesse
aspecto é justamente o que me faz abordar esse assunto de significante importância, a Moral
nietzschiana e seus reflexos na sociedade civil. Entender como a Moral se reflete para o autor,
e como a mesma se constitui e se torna relevante na sociedade civil da sua época, são os
principais objetivos acerca desta reflexão. A obra analisada questiona profundamente nosso
ideal cristalizado de verdade e de moral, o que faz com que o homem passe a ser refém de
forças reativas que consomem sua consciência, tornando-o por muitas vezes em um objeto, no
qual, somente o castigo pode redimi-lo. Nesta obra o autor ainda aponta o socratismo e a
religião, sobretudo, a judaico-cristã, como as principais criadoras dos valores da moralidade,
os quais “cegaram” o homem com idealismo de uma vida eterna ao lado de Deus.
Palavras-chaves: Moral; Sociedade; Genealogia; Homem.
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À GUISA DE UM PROBLEMA: UMA BREVE INTRODUÇÃO
O estudo da obra de Nietzsche é fundamental para a compreensão do pensamento
moderno no que tange as questões sociais, morais e religiosas, as quais constituem a
sociedade atual, portanto, é possível abordar uma série de estudos após fazer leituras deste
autor. A relevância deste trabalho está intrinsecamente ligada aos conceitos morais
Nietzschianos presentes na obra “Genealogia da Moral”. Destarte, os conteúdos abordados
nesta monografia buscam um esclarecimento atual à luz da filosofia contemporânea.
É necessário que tenhamos noções dos fatos que levaram esse filósofo a chegar a
possíveis conclusões sobre a moral, tudo começa quando aos cinco anos de idade, Nietzsche
sofre uma grande perda – a morte de seu pai –, durante a sua criação foi orientado por sua
mãe a rígidos princípios religiosos cristãos; na fase adulta percorreu por várias cidades
enfrentando grandes crises financeiras e psicológicas, mas, por conta da sífilis contraída em
1866, entregou-se a solidão e condicionado ao sofrimento teve uma crise de loucura, vindo a
falecer em 1900.
Dotado de uma inquietude e de um romantismo nato, almejava por uma liberdade
espiritual e intelectual. Na obra “Genealogia da Moral”, também conhecida como a vontade
de voltar às origens do nascimento dos valores morais, sobretudo os valores de bem e de mal,
Nietzsche confronta a origem de muitos conceitos que fundamentam a ideia absoluta de
moralidade e de verdade. A primeira destes é a origem do bom e do mau, quando ainda no
prólogo da obra acima citada ele faz um questionamento muito pertinente sobre qual a origem
das nossas ideias de “bom” e de “mau”. Segundo Nietzsche “Sob que condição o homem
inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que valor tem eles”? (1987, p.10). A
crítica que Nietzsche faz a moralidade não é uma crítica fundada em nenhum motivo
transcendente, não é uma busca de conhecimento com princípios em uma divindade, mas sim,
uma crítica que se opõe a todos os princípios éticos teológicos e até mesmo os princípios
racionalistas modernos.
O “bom” e o “mau” em formas gerais são apenas valores, nada mais que valores
inventados pelo próprio homem, com a finalidade de reter, nos mais poderosos e fortes as suas
autonomias e seu poder, dessa forma, tornando assim os mais fracos submissos às suas
vontades. O que Nietzsche nos propõe é que, as ações humanas não sejam medidas pelos
velhos e arcaicos valores de bem e mal, de certo e errado e de pecado e virtude, os quais
foram criados por uma classe que objetivava o domínio social. Numa interpretação
nietzschiana o homem não pode limitar o seu prazer diante de um medo, imposto por um
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detentor de força maior, o qual atribui ao mau à satisfação individual, o êxtase, ou seja, a
realização do desejo individual. Para tanto, o conceito de “bom” e de “mau”, na sociedade
civil, foi fundamentado no “genuíno” objetivo de controle do homem.
Assim, na busca pelo conhecimento dos valores morais, Nietzsche assume um papel
de protagonista, e a partir de então, ele está totalmente inserido no campo a ser avaliado e a si
mesmo faz alguns questionamentos fundamentais para então concretizar as suas ideias.
Ao contrário dos antigos filósofos, em específico Sócrates, que segundo Nietzsche
pregava conceitos para a vida do homem, os quais diziam que só seria possível se o mesmo
não fizesse parte da vida, ou melhor, como se Sócrates falasse das ações morais do homem de
outro plano, onde ele não estivesse inserido. Desta forma, os juízos de valores socráticos eram
decrescentes na formação da vida do ser humano, entretanto, ao apresentar juízos absolutos, o
próprio Sócrates estaria incluso numa moral, a qual lhe daria sustento para apresentar tal
conceito. Nesse sentido, o filósofo está posto na condição de um ser superior para com o
outro, sobretudo, como um ser referencial e dono de uma verdade absoluta, mas esse contexto
socrático se faz contraditório trazendo como consequência uma decadência para a sociedade.
Veremos neste estudo que toda moral é no fundo uma objeção à natureza humana,
tendo em vista que para cada ação do homem tem uma ação moral contrária que atuará com
um papel de julgamento sobre o mesmo homem, salientando que todas as morais, em suas
particularidades, tem uma função diferenciada, portanto o animal-homem é simultaneamente
vigiado pela moralidade. Conforme Nietzsche:
[...] há morais que tem por função justificar seus autores. Há outras morais
que servem para tranquilizar e deixar satisfeito. Outras impelem o autor a se
crucificar, a se humilhar; outras ainda querem exercer uma vingança ou
talvez servem para se esconder; outra para fazer-se a se mesmo ou alguma
coisa que lhe diz respeito[...] (2012, p.105)
Nietzsche retoma sempre a pré-história1 e a história, no sentido de esclarecer a
maneira pela qual se justifica a necessidade de entender a origem dos valores morais e o
porquê de atribuímos, um valor superior e um valor inferior, a um dado valor. Ele discute a
origem dos sentidos morais a partir do antagonismo metafísico e utiliza-se de duas classes
sociais distintas: a classe dos senhores e a classe dos escravos, com isso ele deseja entender a
condição da criação dos juízos morais e a consequência da aplicação desses juízos na
formação da sociedade.
1 C.f Sempre utilizando a medida da pré-história (pré-história, aliás, que está sempre presente sempre pode
retornar). (NIETZSCHE, 1987, p.74)
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Realizando uma análise histórica e cultural entenderemos como a inversão dos valores,
também conhecida como transvaloração dos valores, contribuíram para que a humanidade, até
então estruturada nas ideologias do judaísmo e do cristianismo, pudessem fazer uma
reavaliação dos valores morais. Surgindo assim, a revolta da moral dos escravos, a qual se
consolida como a única moral.
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1 O BOM E O MAU: COMPONDO A SOCIEDADE CIVIL
1.1 A origem do bom e do mau
Fazendo uma crítica aos psicólogos ingleses2 de sua época, os quais buscavam
reconstituir uma gênese da moral, Nietzsche buscava entender a primeiras explicações para os
termos bom e mau, que até então, eram utilizados pelos mesmos para designarem
propriedades conceituais ao caráter do homem.
Comungo com Nietzsche, no intuito de começar a destrinchar como e com qual
finalidade o conceito de “bom” logo foi atribuído aos nobres e aos superiores, e de como eles
atribuíram para si os seus atos como bons, criando valores, os quais lhes tinham muitas
utilidades, inclusive para impor o poder senhorial, no qual construíam verdades, o que em
contra partida se oponha ao princípio da palavra “bom”, antes designada às atitudes não
egoístas. Para Nietzsche:
[...] eis a origem da oposição “bom” e “ruim”. (O direito senhorial de dar
nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da
linguagem como expressão de poder dos senhores: se eles dizem “isto é
isto”, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como quem
apropriando-se assim das coisas). Devido a esta proveniência a palavra
“bom” não ligada necessariamente as ações “não egoístas” como quer a
superstição daqueles genealogistas da moral. (1987, p. 22)
Ainda desta forma o conceito de “bom” segundo Nietzsche passar a ser associado ao
“poder”, o qual é concedido aos nobres e aos senhores. Assim, a desigualdade começa a
ganhar força na sociedade, uma vez que, o “bom” é associado ao caráter dos homens
poderosos compostos pelos guerreiros e pelos sacerdotes as quais valorizavam a vida
baseados em seu pré-conceitos e nos seus valores de verdade. Tais conceitos por eles
estabelecidos gera uma rivalidade entre as classes sociais europeias – nobres e escravos e a
partir dessa “luta” que nasceu entres essas classes sociais europeias, é que Nietzsche trata as
duas morais – a moral dos senhores e a moral dos escravos.
Na tentativa de esclarecer a origem do conceito do valor de “bom e “ruim” na
“Genealogia”, o filosofo faz uso até mesmo da gramática e é através da etimologia da palavra
“bom”, relativo ao “bem” e do “mau” relativo ao “ruim”, que ele busca entender porque
2 C.f – Esse psicólogos ingleses, ao quais até agora devemos as únicas tentativas de reconstituir a gênese da
moral – em si mesmos eles representam um enigma na pequeno; e é como enigma em carne e osso, deva admitir,
que eles possuem uma vantagem essencial sobre os seus livro – eles são interessante! Esses psicólogos ingleses –
que querem eles afinal ...? (NIETZSCHE, 1987, p. 19)
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atribuímos ao bem um valor superior ao valor do mau? E também, porque o conceito de
“bom” tem dois antônimos diferentes, os quais curiosamente não são sinônimos, sendo que
ruim e mau não são as mesma coisa. Tais sinônimos variam de acordo com classe que é
avaliada, observa-se que para a moral dos senhores, os fortes e os nobres utilizam o termo
“bom” e seu antônimo é o termo “ruim”, porque num guerreiro são avaliados o seu nível de
força e suas técnicas, exemplo: em uma luta temos dois rivais sendo o bom – aquele que tiver
a melhor técnica de luta e for o campeão, e outro ruim – aquele que perder a luta –. Por outro
lado, a moral dos escravos, ao utilizar o termo “bom” logo tem como antônimo o termo
“mau”, pois o que prevalece não são as técnicas de domínio presente no escravo, e sim, o seu
nível de crueldade. Logo, este olhar que tem como produto final o julgamento das ações do
homem-escravo, é um fator que determinará o nível de desumanidade do homem. É preciso
saber a quem é dado como “bom” e por quê? Qual o lugar daquele que se diz “bom” e do que
é julgado como “mau”? Neste ponto a reflexão nietzschiana é muito interessante, pelo fato do
autor usar de toda a sua competência linguística para relatar que a palavra “bom” é contra
posta a duas palavras diferentes, a saber, ela tem dupla composição, na qual num primeiro
momento ela é contra posta da palavra “ruim”, e no segundo momento, é contra posta da
palavra “mau”. Diz Nietzsche:
Precisamente o posto do que sucede com o nobre, que primeiro e
espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica de “bom”, a partir
dela cria para si uma representação de “ruim”. Este “ruim” de origem nobre
e aquele “mau” que vem do caldeirão do ódio insatisfeito – o primeiro uma
criação posterior secundaria, cor complementar; o original, o começo, o
autêntico feito na concepção de uma moral escrava – como são diferentes as
palavras “mau” e “ruim” ambas aparentemente opostas ao mesmo conceito
“bom”! (1987, p. 38)
Se aos nobres e aos fortes são atribuídos o conceito de “bons”, logo estes estão
satisfeito e se afirmam como tal, porém, os fracos3 ao olharem para nobres não se contentando
com sua posição almejam e tentam substitui-se pelo outro. No entanto, o “bom” não deseja ser
“ruim”, mas o “mau” tem inveja do “bom”, fazendo com que aquele que tem medo da vida, e
que tem medo do ressentimento não se acomode, mas em contra ponto, essa revolta aflorada
pelo desejo faz com que o “bom” se acomode no surgimento dos valores morais, e daí, se
tenha a vitória da moral dos fracos.
3Não se tinha um juízo de valor sobre os fracos e sim uma conotação, um juízo de competência, logo aquele que
não é bom, é aquele que não é competente.
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Desta forma o filósofo se afasta da filosofia tradicional4 criando um novo debate com
uma base concreta e real, na qual não existe uma verdade absoluta que possa sustentar o valor
de “bom”, enquanto bom, e de “mau”, enquanto mau. Exemplo: o conceito de bondade na
religião é uma coisa dada, nesse sentido, o valor de verdade de tal bondade não é dado por um
deus real, e sim por um fanatismo do homem que não quer se indispor com seu deus,
construindo no seu consciente a noção de uma verdade irrefutável.
A origem do “bom” e do “mau” e das ações que possam ser consideradas boas ou
ruins, estão para Nietzsche muito distante de serem explicadas dentro de uma concepção
relacionada à divindade, uma vez que esse “bom” e esse “mau” estão para o mesmo fundados
na formação da moralidade que rege o homem, sobretudo o homem europeu. Assim sendo,
esses dois valores são os primeiros fundamentos para a formação das normas morais na
história da civilização. Conclui Nietzsche:
Vamos concluir. Os dois valores contrapostos, “bom e ruim”, “bom e mau”,
travam na terra uma luta terrível, milenar; e embora o segundo valor há
muito predomine, ainda agora não faltam lugares em que a luta não foi
decidida. Inclusive se poderia dizer que desde então ela foi levada
incessantemente para o alto, com isto se aprofundando e se espiritualizando
sempre mais: de modo que hoje há talvez sinal mais decisivo de uma
“natureza elevada”, de uma natureza mais espiritual do que estar dividida
neste sentido e ser um verdadeiro campo de batalha para esses dois opostos...
(1987, p. 52)
Notamos nessa conclusão nietzschiana que os dois valores primórdios da moral
europeia tem uma base muito antiga e que provavelmente se estenderá por muito tempo. Ele
faz uma referência a um dos o maiores conflitos humanos da história da humanidade – a
guerra entre Roma e Judéia. Esse conflito configurou não só como uma luta de caráter
religioso, mas também, como uma luta de princípios de vida, de honra e de dignidade para
toda uma nação. “[...] não houve até agora, acontecimento maior do que essa luta, essa
questão, essa oposição moral”. (NIETZSCHE, 1987, p. 52)
1.2 A religião como moléstia da humanidade
O questionamento que se faz dentro da reflexão de Nietzsche sobre à religião,
certamente estará ligada a concepção que o filósofo tem acerca dos valores que, até então
compôs a origem da moral a qual foi criada em prol do favorecimento de uma classe
4“Filosofia tradicional” aqui refere-se a filosofia construída com base nos pensamentos de Sócrates e Platão.
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dominante, visto que, a religião tem por finalidade arrastar as pessoas para uma submissão
doutrinária diante de uma promessa de uma recompensa fictícia.
Com a atribuição dos conceitos nobre-sacerdotal, a humanidade passar a viver sobre
forte domínio religioso. O homem tem que seguir as normas da igreja buscando satisfazer sua
própria necessidade espiritual, porque o homem é fraco e necessita de um consolo. “E como
se chamam aquilo que lhes serve de consolo por todo sofrimento da vida?” (NIETZSCHE,
1987, p. 47). A humanidade vive em busca do absoluto, ou seja, de alguma dimensão que lhe
dê uma espécie qualquer de sentido, em última instância de redenção e salvação, mesmo que
seja uma crença de salvação, porém para isso é necessário ultrapassar a morte, é o que prega o
cristianismo. A partir disso, a vida eterna se torna o lugar para recompensas de todos os
sofrimentos da vida terrena.
Contudo, seria um homem sem religião, um homem imoral? Numa interpretação
Nietzschiana a religião nada mais é do que uma ficção que arrasta as pessoas para uma
decadência; é uma das formas de moralidade mais antiga que a geração humana pode
contemplar, a qual foi fundada numa falsa promessa de gloria e eternidade. A religião venda
os olhos da humanidade a tal ponto que o homem não se dá conta que ele criou um Deus
vingativo, um Deus que castiga e que cria entre ele e sua criatura uma dívida eterna. Esse
mesmo sistema de controle religioso cria um Deus que não tem sequer um nome próprio e
único, por isso a humanidade se apodera de vários nomes para um mesmo Deus – Jeová, Javé,
Aará, Ala, entre outros –, e para cada nome um significado religioso diferente, logo, até os
nomes que as pessoas usam referindo-se a Deus, já se confirma em meras fantasias.
Como grande conhecedor dos escritos bíblicos e da religião, sobretudo a religião
cristã, Nietzsche ressalta que o cristianismo contribuiu para que o homem tenha um conceito
mentiroso sobre Deus e desta forma degenera-o. Ele nos mostra que a religião é uma poderosa
“arma” para adestrar o mundo e domar o homem, com isso depositamos nesse Deus aquilo
que falta em nós enquanto indivíduos limitados e mortais, criando assim, uma concepção de
um Ser soberano, transcendente e onipotente. Por essa razão, o cristianismo impõe um ideal
de moralidade, no qual não há possibilidade de experimentar o diferente, restringindo assim, o
seu “fiel seguidor” a um medíocre estúpido que, por falta de experiência, menospreza o que se
apresenta em contraposição ao que ele acredita. É nesse imaginário religioso que o
cristianismo como sua falsa ideia de benevolência e salvação cria valores morais que
impedem o homem de conhecer e viver experiências diferentes, se colocando à mercê de
valores moralistas que o diminui enquanto um ser, o qual deveria conhecer e vivenciar a sua
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própria vida com total plenitude, por isso é que Nietzsche (1978) questiona a lealdade desse
Deus que é até então é a superioridade para o crentes:
É possível onipotente e onisciente e que nem se quer cuida que suas
intenções seja compreendidas pelas suas creaturas, seja um deus de
bondade? Um Deus que durante milênios deixa subsistir inumeráveis
dúvidas e hesitações, como se não tivesse importância na salvação da
humanidade, e que contudo deixa prever constantemente as mais
temíveis consequências em caso de desprezo pela verdade! Não será um
Deus cruel, esse que possui a verdade e suporta constantemente a vista
de uma humanidade que se tortura miseravelmente para a atingir? (p. 60)
Esse tal cristianismo leva o homem a crê que Deus, o qual deveria ser inteiramente
composto de amor, permite que uma enfermidade assole o homem, permite que o homem viva
uma situação financeira difícil, para que, em troca da saúde e de uma melhor situação, esse
mesmo homem, humilhe-se perante ao seu deus ao mesmo tempo que o exalta e o coloca no
mais alto patamar. Ora! Que deus é esse que permite que aquele, o qual deveria ser tratado
como seu filho, torne-se seu servo? Sem dúvidas esse deus para sociedade, é um deus cruel
porque consegue ser primazia oferecendo ao um homem um alto preço, o castigo.
A moralidade criada com base religiosa é uma moralidade opressora, muito perigosa e
letal, visto que ela arrasta uma civilização dentro da história humana que vai desde a “criação
do mundo”, até os “fins dos tempos”, ou ainda como diz Nietzsche: “O cristianismo evoluiu
assim para um moralismo doce” (1978, p. 62). Compreendemos, portanto que a devastação
da consciência humana é também fruto da crueldade da religião, a qual lava com “sangue do
cordeiro”5 toda sua glória e dominação.
Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu
a necessidade de criar em si uma memória; os mais horrendos sacrifícios e
penhores (entre eles o sacrifícios dos primogênitos), as mais repugnantes
mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os
cultos religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas
de crueldade) [...]. (NIETZCHE, 1987, p. 62)
Por consequência a religião está a serviço da moralidade dos costumes, embora traga
uma proposta de união e crescimento para humanidade. Porém, ela inibe o homem de
despertar o espírito de comunhão com o outro e com a natureza, visto dessa forma, desfaz-se
o conceito de uma religião de verdade que ao invés de ser uma instituição que tenha por
5 Cordeiro se refere a Jesus de Nazaré. Citação de Lucas.
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finalidade ajudar o homem a se construir, tanto de maneira social como emocional, se reduz
simplesmente a uma mera solução para os problemas dos pobres, ou um remédio para a cura
das enfermidades dos doentes. Essa religiosidade torturante não só das mentes humanas, mas
dos corpos humanos, é uma instituição que cresce a cada dia e arrasta milhares de pessoas que
estão cegas e adestradas por um sistema opressor que se utilizam do amor de Deus para tirar
do homem a liberdade.
Essa mesma religião que promete por meio do sacrifício do judeu a salvação, é a
mesma que determina uma imoralidade na liberdade, mas por que o homem livre é um
homem imoral? “Porque quer depender absolutamente de si mesmo.” (NIETZSCHE, 1978, p.
13). Assim, entende-se que o homem livre é um mau, uma vez que ele não tem regras para
obedecer, é um homem sem medo, entretanto a ausência do medo é ameaçador para religião
tendo em vista que o medo é um dos seus meios de repressão.
1.3 A moral
A moral não é uma qualidade inata e imutável do homem, é algo que foi desenvolvido
e implantado e, por isso, está em constante mudança. Nietzsche afirma que a moral tem
história e que há a história da moral, ao contrário do pensamento dos filósofos que os
antecederam, os quais, não viam a história da moral, e sim a moral na história. Pascoal
(2003)6, diz “que o objetivo de Nietzsche na Genealogia é no primeiro plano apontar a origem
dos valores morais, com um olhar não no passado, mas a partir da necessidade do presente,
isto é, uma crítica ao valor dos valores morais”. É isto o que o diferencia dos demais
genealogistas, principalmente dos genealogistas ingleses. O problema começa a partir da
busca da origem do conceito. Porque para Nietzsche o homem é parte do mundo, e não há
nada que possa separar esse homem do mundo, tendo em vista que o mundo7 é real, logo não
há um mundo imaginário como pregava as religiões. Sendo assim, o homem tende a viver em
constante comunhão com as coisas mundas, e sua luta com o mundo passar ser é inerente à
6Cf. Na Genealogia o olhar de Nietzsche para o passado, tanto para o período moral, quanto para o período pré-
moral da humanidade, tem por objetivo, no primeiro plano, apontar a origem dos valores morais. Esse olhar para
o passado, no entanto, não se faz por um interesse ligado no passado, mas a partir da necessidade do presente:
uma critica ao valor dos valores morais. Uma critica necessária em função de possibilidades que se apresentam
de futuro para o homem e que podem tanto ser obstruídas pela moral quanto viabilizadas por meio dela. Em
outros termos trata-se de um engajamento de Nietzsche que se dá por meio de um levantamento de formas de
vontade de poder que tornaram possível o processo de moralização do homem, e que não podem ser suprimidas,
mas afirmadas em uma dinamicidade e elevadas numa tensão capaz de impulsionar o homem para novas metas.
(2003, p. 56) 7Ambiente natural do homem, o espaço físico que nós rodeia.
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existência, ou seja, a todo o momento o homem impõe sua vontade sobre o mundo, pois ele
tem uma necessidade de transformar o mundo a seu favor, por isso, o homem põe e impõe seu
desejo sobre o outro e sobre as coisas.
A exemplo do que faziam os sacerdotes e os coronéis naquela época, esses senhores
aristocratas tinham uma dominação sobre os seus subordinados a tal ponto, que introduziam
neles sentimentos, desejos e vontades, dito de outra forma, é como se os escravos não
tivessem desejos próprios e todos os seus desejos fossem os desejos dos seus senhores.
Consequentemente, o escravo era limitado, deixando de ser um Ser imprevisível, para se
tornar um Ser previsível – tendo seu comportamento e suas ações previstas por um dominante
–. Mas, será que o homem escravizado vai viver eternamente omisso? É dessa questão que
Nietzsche parte para chegar à superação do homem, pois segundo o filosofo, é a partir da
reação que se origina a ação da omissão, a qual o homem se liberta. É no momento que ele
olha para seu senhor e suponhamos que ele diz: “eu posso ser igual a ele, as vontades do meu
senhor poder as minhas vontades, eu posso ser um senhor!”, que nasce a moral escrava.
Portanto, é nesse momento que o homem se iguala ao outro e que surge o conhecimento da
sua eterna relação com as coisas mundanas, então ele passa a ver o mundo em si e não mais a
se sentir um simples ser no mundo.
O que acontece é que com a imposição das ações que são “boas” e as ações que
“ruins”, o homem passou a selecionar as suas ações no mundo, aspirando que a sua decisão
entre fazer o que é dito como bom, ou com ruim, seriam os critérios que irão determinar a sua
posição na sociedade. Os escravos como cito no exemplo acima, viam a obediência aos seus
patrões como um critério de bondade, assim obedecer aos comandos eram “bom”. Mesmo na
atualidade isto ainda é muito presente, pois por muitas vezes deixamos de fazer algo que nos
traga prazer, simplesmente porque não se enquadra nos padrões tidos como morais na
sociedade. É esse o ponto histórico que Nietzsche questiona: “que valor tem os valores dos
juízos que o homem criou para si? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do
homem? São indícios de miséria, empobrecimento e degeneração da vida?” (p.10). É a partir
daí que se inicia o conflito para uma reavaliação dos valores desses valores morais, sobre a
ótica de uma vontade motivadora, o que o genealogista vem a chamar de vontade de poder.
O ponto de partida agora é o sentido, sobre o qual se construíram a moralidade, acima
de tudo, a tal moralidade que tornou o homem um ser social e domesticado, mas ao mesmo
tempo, em certo momento da história, o transformou num selvagem, diante de uma forte
necessidade de se igualar a si mesmo, de se torna superior a ele próprio e assim liberta-se da
20
moralidade dos costumes, tudo isso movido pela vontade de poder. “[...] em suma, um homem
de vontade própria, duradora e independente, o que pode fazer promessas”.8
A moral é, portanto, firmada no sentido que são atribuídos aos valores e cada figura
humana seja ela o filosofo, um sacerdote, o senhor ou o escravo, irá firmar os conceitos
valorais que mais lhes são úteis.
1.4 A necessidade de uma revolta escrava na moral
São as relações de poder juntamente com a posição social que designam o “bom” como
uma ação benéfica e o “ruim” como uma relação maldosa. O filósofo apresenta esse
seguimento: “bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses. Seria essa a “base” da
boa moral a moral aristocrata” (NIETZSCHE, 1987, p. 30).
Foram os judeus que ousaram a inverter essa base da boa moral, “o povo da mais
estranhada sede de vingança sacerdotal”9. O que acontece é que ao se tratar de valores o que
incomoda o filósofo é justamente o valor que se dá um dado valor do que a outro. Ora, o bem
necessita do mal para existir, assim como, a verdade da mentira, o medo da coragem e a razão
da emoção, portanto cada valor tem seu valor, sem mais e sem menor valor. Nietzsche aborda
a ideia das forças que ficam interligadas entre si e que ao mesmo tempo se chocam. Nesse
contexto, o ser ressentido é o sofredor se comparando com o nobre, é aquele homem fraco e
que em sua negatividade encontra força para ver que o nobre é o culpado da sua dor.
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna
criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a
verdadeira reação, ados atos, e que apenas por vingança imaginária obtêm
reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante sim a si
mesmo. Já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um
“não eu”. E este Não é seu ato criador. (NIETZSCHE, 1987, p. 34)
8 Nietzsche se refere a um homem de vontade própria, capaz de dominar o de menos vontade; um homem livre
de domínio sobre si e sobre a natureza. Cf. Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a arvore
finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo
para o qual era apenas o meio: encontramos então, como fruto mais maduro da sua árvore, o individuo soberano
igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade dos costumes, individuo autônomo supra-moral
(pois, “autônomo” e “moral” se excluem) em suma. O homem de vontade própria. Duradora e independente, o
que pode fazer promessas – e nele encontramos, vibrantes em cada músculos uma orgulhosa consciência do que
foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento
de realização do homem(NIETZSCHE 1987 p, 59,60) 9 Cf. assim convinha ao um povo sacerdotal, o povo da mais estranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os
judeus que, apavorante coerência, ousaram a inverter a equação de valores aristocratas (NIETZSCHE, 1987, p.
30.)
21
O ressentimento é para Nietzsche o princípio da revolta da moral escrava, pois é na
busca do equilíbrio entre a ação e a reação que nasce o movimento da auto superação do
homem, dessa forma pode-se falar tanto do ressentimento do homem nobre, como do
ressentimento do escravo.
A moral escrava é a moral do ressentido, na qual o homem necessita compara-se a
outro ser a ponto se sentir inferior e ter um sentimento de revolta. Nietzsche descreve que: “a
moral escrava, sempre requer para nascer, um mundo oposto e exterior [...] requer estímulos
exteriores para poder agir em absoluto, sua ação é no fundo uma reação” (1987 p. 34), isso
quer dizer que o que acontece é uma negação dos valores, com os quais as ações que eram
vistas como “bom” – os valores nobres – passam a ser visto como “ruim”, logo a moral dos
escravos é a moral da utilidade, da qual o homem se utiliza do sentimento que o envergonha
para então sair do seu estado de dominado. Na moral dos senhores a oposição de bom e ruim
tem o mesmo significado que nobre e desprezível, por isso, para essa classe aristocrata aquele
que é utilitário é totalmente desprezível, em geral eles desprezam tudo é contrário de si
mesmo e não se consideram seres dignos de piedade, se orgulhando disso, pois se importam
apenas com seus iguais e não tem deveres com seus inferiores. Logo o ressentimento vindo
por parte destes é um ressentimento ativo vinda da própria reação de seus atos, e, portanto,
não causa uma reação, pois é um ressentimento que não lhes causa mal algum. É possível
afirmar que ambas as classes tem diferentes formas de reação, enquanto a primeira fixa-se no
não esquecimento, a segunda pondera no total esquecimento, mas, ambas visam sempre uma
forma de obter poder.
Qual a conclusão? Os dois tipos de moral tem em comum à vontade de poder, ambas
são impulsionadas por uma força motivadora, porém distintas, onde a moral dos escravos
nasceu com uma reação a um valor moral estabelecido pelos nobres, e por outro lado a moral
dos nobres ou a moral dos senhores se consolida na aceitação dos escravos.
22
2 A MORALIDADE ENQUANTO COSTUME
2.1 Consolidação da moralidade
Os hábitos e as práticas rotineiras de uma determinada sociedade é o que se define
por costume, e assim sendo, está nela contida uma série de manifestações e experiências
sendo elas úteis ou até mesmo prejudiciais na formação e na vida do homem. O firmamento
destes costumes desde a antiguidade tem uma dominação histórica tão grande que dificulta a
aceitação de novas experiências que possam modificar as ações sociais do homem, mas o que
é moralidade? É “A obediência dos costumes”10
. É o que diz o genealogista: fazer cumprir é a
tarefa principal da moralidade. Um exemplo disso abordado por Nietzsche na obra
genealógica é a religiosidade. Sobre a ótica nietzschiana observaremos como a religião
principalmente o cristianismo tem um poder dominante sobre a moral de um povo. Ela tem
estabelecido limites e possibilidades à vida do homem desde a explicação da sua origem –
nascimento do homem na terra –, “E criou Deus o homem à sua imagem; macho e fêmea os
criou” Gênesis 1.27[..]. Até a justificativa do fim – morte do homem, com a pregação da
salvação ou condenação da sua alma. “Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a
minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrar em condenação,
mas, passou da morte para vida.” João 5.24.
O que temos de novo com a filosofia nietzschiana? Nietzsche descontrói toda
aquela ideologia cristã a qual foi sustentada por Sócrates de que há um mundo além deste a
espera da nossa alma. Sócrates se contrapõe a sensibilidade, afirmando que a ideia é pura,
imutável e imortal, enquanto a sensibilidade nos proporciona variabilidade e é finita, dessa
maneira poderemos chegar após a morte a um lugar divino e imortal. Enquanto aqueles que
não se dedicaram ao enriquecimento da alma e viveram as paixões, terá sua alma á vagar.
Nietzsche antes de buscar a sua verdade11
, reconhece o êxito que tiveram seus antecessores
– Sócrates e Platão – sobre a humanidade, de modo que ele cria uma contra proposta, ou
seja, a avaliação dos valores morais.
10
C.f A moralidade é apenas ( e sobre tudo não mais do que isso) a obediência aos costumes seja eles quais
forem; ora os costumes são a maneira tradicional de agir e de apreciar. Numa situação em que nenhuma tradição
se imponha não existe qualquer moralidade; e quanto menos a vida é determinada pelas tradições mais diminui a
moralidade. ( Nietzsche, 1978, p13) 11
O conceito de verdade para Nietzsche não se constitui uma verdade absoluta e universal para ele verdade é
uma ilusão de seu criador. Para me vale a minha verdade.
23
A tarefa da cultura na visão nietzschiana vai além de domesticar o homem, pois ela faz
parte de todo seu processo civilizatório e, portanto, influência na sua consciência moral.
Assim a liberdade, a educação e a responsabilidade, são termos que para Nietzsche fazem
parte do homem, mas que tem raízes profundas vinda do socratismo-cristão, e por esse motivo
retardou a liberdade do homem. O caminho para liberdade apresentado por Nietzsche é o
niilismo, o qual fornece meios necessários para desprendimento dos valores morais criados
pelas doutrinas socratista-cristã.
O problema relativo ao homem a partir de agora é voltado para natureza que tem por
tarefa “Criar um animal que pode fazer promessas”12
. Até então, analisamos a moralidade
sobre duas principais facetas: a moral dos senhores que é constituída sobre a afirmativa e o
domínio e a moral dos escravos constituída sobre a negatividade e a obediência. Mas, para
que ambas as morais existam é necessário que haja no homem uma consciência ou uma
memória e esse é o papel da natureza, criar no homem um memória de vontade, uma memória
que cumpra uma tarefa paradoxal que traga para o homem a função de esquecer a sua posição
diante do nobre e a sua monotonia, mas que ao mesmo tempo, o torne ativo e impassível, seria
o esquecer exercendo uma força motivadora capaz de mudar a posição do homem, não um
esquecer no sentido de “tirar da memória”.
Esquecer não é uma simples vis ineriae [força inercial], como crêem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso
sentido, graças, à qual o que é por nos experimentado, vivenciado, em nós
acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao
qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme
processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. (NIETZSCHE,
1987, p. 57)
"Como fazer no bicho-homem uma memória?” Está pergunta feita pelo próprio
Nietzsche na segunda dissertação da Genealogia, mostra que o papel da consciência é
fundamental no processo moral, pois a mesma tem a função de refletir, apresentar à memória
humana todos seus afetos fazendo com que estes não caiam no esquecimento, criando assim o
ressentimento que nada mais é do que a consolidação dos afetos no pensamento, desse modo
percebe-se como é mudado o sentido da palavra em prol da moralidade.
A criação da memória humana sempre foi marcada por grandes lutas e sofrimentos. A
formação de uma geração consciente e pensante é até hoje marcada por constantes conflitos
12
Cf. criar um animal que pode fazer promessas – não é está a tarefa paradoxal que a natureza se impôs com
relação ao homem? Não é este verdadeiro problema relativo ao homem? (NIETZSCHE, 1987, p. 57)
24
sejam eles, de força física, ou política social, por isso a luta do homem contra o mundo é
muito presente na história da humanidade isto porque o produto final dessa luta é sempre o
poder. O que permite ao homem ser possuidor desse poder é o conhecimento e sua posição
social e financeira, portanto o “indivíduo soberano” é um exemplo pertencente a este quadro
tendo em vista que ele possui tais qualidades.
A memória com sua extraordinária capacidade de interverter o valor dos afetos e
desafetos, cria no homem o sentimento de “culpa”, que segundo Nietzsche, é proveniente não
da “consciência”, mas da “má consciência”. A má consciência nasce por meio da crueldade e
é um produto da violência sofrida pela humanidade. Interpretando Nietzsche pode-se dizer
que a consciência nada mais é do que o instinto de crueldade que foi impedido de se
exteriorizar e acabou se interiorizando, logo a má consciência é assim entendida como os
instintos que foram reprimidos e que acabaram se voltando contra o próprio homem.
Quando nos deparamos com o sentimento de culpa significa dizer que nossa
consciência está sinalizando um erro cometido por nós, que a nossa ação infringiu uma
determinada moral, ou ainda, como nossa sociedade é formada sobre às bases morais
religiosas, as quais nos possibilita dizer que estamos cometendo um desagrado as “Leis de
Deus”. A “má consciência” que é responsável pelos sentimentos degenerativos do homem, a
culpa, a punição, a omissão, o obedecer e a dívida, são sentimentos associados pela “má
consciência”, portanto a má consciência é o ressentimento interiorizado no homem. Nietzsche
nos afirma: “A má consciência é uma doença, quanto a isso não há dúvidas...”13
. Nesse caso
ele faz uma comparação de doença com a “gravidez” (Ibidem, p. 95), no sentido de explicar
que é uma doença que produz algo, que cria, não uma doença que é degenerativa.
É o ressentimento que torna o homem incapaz de esquecer. Assim, a má consciência é
genitora das lembranças, as quais funcionam como força ativa para o homem e visam o
despertar de uma vontade de poder, o que é típico do nobre capaz de criar promessas.
Com a consolidação da moralidade cria-se no homem um mundo interior, aonde tudo
aquilo que não vai para fora acaba se interiorizando no sujeito como, por exemplo, o
sentimento de culpa e a dívida.
2.2 Culpa e o castigo.
13
Cf. A má consciência é uma doença, quando a isso não há dúvida, mas uma doença tal como a gravidez é uma
doença. (NIETZSCHE 1987. p, 95).
25
A culpa e o castigo também são dados morais criados pelo próprio homem, ambos
surgem dentro do cenário de vida da humanidade que, de acordo com a interpretação de
crueldade em Nietzsche, elas exercessem uma função destrutiva para homem, visto que o
homem deverá abster-se dos prazeres para conquistar um espaço considerado digno na
sociedade, bem como na sua espiritualidade.
Numa análise psicológica da consciência moral devemos nos atentar para os muitos
valores de verdade que nós deixamos de lado devido a moralidade, a qual estamos inseridos.
São esses conceitos de verdade que criaram no homem o sentimento de culpa, que segundo
Nietzsche, tem raízes fincadas no conceito material da relação entre “credor e devedor”14
.
Essa relação cria duas formas diferentes de homem, quer dizer, um superior e outro inferior, o
que para o filósofo traz consequências desastrosa para humanidade, pois essa ação estabelece
preços na relação humana, ou seja, se há uma dívida entre dois sujeitos é porque antes houve
uma medição de valores e isso colocou um deles a frente do outro e dos outros animais.
Num breve retorno a história percebemos que a ideia de credor e devedor retoma a
gênese na religião, na qual há um Deus superior e um homem inferior, sendo que o homem
deve a Deus tudo que ele tem e tudo que ele é, dessa forma o homem tem uma dívida eterna
com Deus. Essa primazia trazida pelo cristianismo coloca os seus seguidores sempre na
condição de homem moral, trazendo a crença da salvação eterna, da bondade desinteressada e
dos bons costumes, através disso, essa religiosidade criou por meio desses dogmas
sentimentos de direito e obrigação, e como se ainda não fosse suficiente ela coloca um freio
na busca da humanidade pela verdade com introdução do pecado.
O pecado é sinônimo de castigo. O pecador é aquele que comete uma ação que esteja
fora dos padrões morais já estabelecido e se torna um devedor, e como toda dívida deve ser
paga, o castigo é uma forma de quitar tal divida. Essa herança cristã com toda sua propriedade
dominante faz com que a sociedade viva como animais de rebanho. Daí então, o castigo
permite o crescimento de outra vertente moral que é julgamento para distinguir o justo e o
injusto.
Encontra-se na Genealogia várias finalidades para o castigo, abordaremos para
relevância dessa dissertação a finalidade de intimidação e vingança, a qual Nietzsche afirma
ser a finalidade primeira do castigo, “o olho tem sido feito para ver, e a mão para pegar.
Assim se imaginou o castigo sendo inventado para castigar” (NIETZSCHE, 1987, p. 81). Essa
14
Cf. O sentimento de culpa da obrigação pessoal, para retomar o fio da nossa investigação, teve origem, como
vimos, na mais antiga e primordial relação pessoal, na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor foi
então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se uma pessoa a outra. (NIETZSCHE, 1987, 72-73).
26
finalidade do castigo traz em si uma série de sentimentos entre eles o sentimento de culpa.
Esse sentimento tem herança cristã e sua relação com as divindades deixou na humanidade
registros de dor e sofrimento. Baseado no exemplo do sacrifício do primogênito ele planta no
homem o sentimento de culpa, o qual vem acompanhado da vontade de saciar sua dívida com
Deus, o medo do pecado faz o homem se autocastigar em prol da obtenção do perdão.
Portanto, vemos como foram surgindo todos os esses valores morais que permeiam a nossa
sociedade. Credor, devedor, justo, injusto, criminoso, dividas, bom, ruim, todos esses termos
que juntos formam a base moral da sociedade.
2.3 O sofrimento do homem pelo nada
A história do conhecimento é marcada por grandes dores e sofrimentos, rios de sangue
humano são ocultados por traz dos valores de verdade de todas as nações. Sempre houve uma
série de conflitos e sofrimentos quando nasceu no homem o desejo de se conhecer, uma vez
que todo conhecimento requer uma ruptura de conceitos e de sentimentos, e por muitas vezes,
uma quebra de um valor de verdade já construído. O conhecimento é sinônimo de liberdade e
liberdade pode ser interpretada como imoralidade, nesse sentido, o homem livre é um homem
desprendido das regras ele nada tem a temer. Logo não é nenhuma novidade que a agressão
física, e psicológica sempre esteve presente na ação do conhecer, desse modo podemos dizer
que à tortura é uma ação dos nobres, e dos superiores, os quais usando de toda sua moralidade
estatal foram os primeiros a exercer o sacrifício sobre a pele os escravos.
A obediência é uma característica da classe dominada, daquela que deveriam cumprir
com todas as suas obrigações legais já estabelecidas nesse mundo de conceitos morais. Logo a
“culpa”, a “consciência” e o “dever” caminham juntas quando o assunto é domesticar o
homem e ambas estão a serviço das autoridades superiores.
O fazer sofrer foi utilizado muitas vezes como exemplo para inibir ações de
progressão do homem. Durante década o sacrifício aos humanos eram realizados em praças
públicas, onde o nível de crueldade era bastante elevado, nesse caso a exibição dos corpos
esquartejados eram como se fosse troféus para a repugnante classe dominante, fazendo com
que o sofrimento não fosse individualizado, ou seja, apenas do corpo martirizado, mas sim um
sofrer coletivo, no qual toda população pudesse ver e sentir na pele o que lhes poderia
acontecer se acaso não cumprisse as regras morais e sociais. “Pense-se nos velhos castigos
alemães, como o apedrejamento (a lenda já fazia cair a pedra do moinho sobre a cabeça do
culpado)” (NIETZSCHE, 1987, p. 63). A evolução humana reprimida por uma tradição
27
moralista, que utiliza de uma força superior construída no sentimento de medo da sociedade.
Sobre as torturas do corpo Nietzsche descreve:
[...] a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda nos séculos quatorze ou
quinze), o popular esfolamento (“cortes em tiras”), a excisão da carne do
peito; e também a pratica de cobrir o mal feitor de mel e deixá-lo às moscas,
sob o sol ardente. Com a ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se
por reter na memória cinco ou seis “não quero” com relação aos quais se faz
uma promessa, a fim de viver entre os benefícios da sociedade – e
realmente! Com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente “a
razão”! – Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa
sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do
homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no
fundo de todas as “coisas boas [...]. (NIETZSCHE, 1987, p.63)
Sendo assim, por um lado à crueldade pode proporcionar para humanidade
oportunidades de crescimento e de aprendizagem, “[...] quando a humanidade não se
envergonhava ainda de sua crueldade, a vida na terra era mais contente do que agora, que
existem pessimistas.” (Nietzsche, 1887, p. 69). A crueldade é, portanto, necessária para
criação da humanidade, sobretudo, porque as ações do homem cruel expressa para sociedade
virtudes de grandeza, de superioridade e de crescimento, virtudes essas que foram
fundamentais para a consolidação da moral escrava. Por outro lado, a crueldade tem
característica marcante na relação de poder, por isso quanto maior a crueldade cometida,
maior é o status de poder do dominante. Entretanto, o grande problema é quando ela usada
como ferramenta de opressão e torna-se uma arma negativa, sobre isso, Nietzsche afirma que:
“o que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido [...]” (1887,
p. 71), a crueldade então é apenas usada no sentido de faz o mal pelo mal. Dessa forma, os
níveis de crueldade tinham duas vertentes: dor e sofrimento para a classe menos favorecida,
satisfação e alegria para a classe dominante.
No campo religioso pode-se também perceber como o “fazer sofrer” tem um papel
construtor para a posição dos deuses, uma vez que a sociedade sacerdotal com base nas
“escrituras sagradas” impôs o que devia ser proibido e configurou como pecados os atos de
prazer do homem, o que seriam – as festas, adultérios e bebedeiras. Tendo o homem
felicidade proveniente de tais campos tornaria para deus homens pecadores e, portanto, seriam
vistos pelo deus supremo com olhares malévolos15
, enquanto os homens doentes, tristes e
15
Cf. diz-se então: é muito possível que os deuses nos lancem olhares malévolos quando somos, felizes, e
olhares benevolentes quando sofremos,- e de modo nenhum lastimosos! Porque a piedade é desprezível e indigna
28
melancólicos são vistos com olhares benevolentes (Ibidem), porque a dor gera a piedade e os
dignos de piedade são os “bons”. Dessa forma, a crueldade tem atravessado décadas e até hoje
tem firmado presença da cultura da humanidade.
Na segunda dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche afirma que todas as
religiões são nos seus níveis mais profundos, sistemas de crueldade (NIETZSCHE, 1987, p.
62). Nessa posição Nietzschiana compreende-se que religião tem um nível elevado de
crueldade negativo, sobretudo o cristianismo que se fundou no doloroso ato de sacrifício do
primogênito filho de Deus, Jesus Cristo de Nazaré. Com o exemplo do sofrimento de Cristo, o
homem logo começa a ter a necessidade de viver o sofrimento, o qual torna-se algo
indispensável para o ser humano. O ideal religioso começa seu triunfante “cheque máster”, o
martírio sofrido pelo filho de Deus, as suas dores, e o seu sangue derramado, com isso é o
filho de Deus que paga pelo castigo do homem, é sob um Deus que pesa a culpa da
humanidade.
O próprio deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus
pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo
que para o próprio homem se tornou irremediável – o credor se sacrificando
por seu devedor, por amor (é se dá credito?), por amor a seu devedor[...]
(NIETZSCHE, 1987, p. 99)
A crueldade religiosa, que sacrificou o próprio deus, criou uma geração modernizada,
mas que carrega marcas profundas no passado. A moral da humanidade está no seu passado,
sobretudo nas suas lutas e suas dores, portanto o homem moderno vive na moral do
ressentimento, que é a moral das dores ativas, das dores que criam. A memória humana foi
construída nos mais terríveis meios de crueldade e é sem dúvidas a responsável por uma das
mais, se não, a mais importante conquista da humanidade, a saber, a razão. Certamente foi
muito custoso à formação dos valores para o homem.
A grande problemática dos valores que o homem tanto se apega tem consolidado uma
moral que limita a busca daquilo que o tornaria em outro homem, contudo pelo fato de que o
novo seja para ele algo imoral, nesse sentido toda essa profunda paixão do homem pelo que já
se constituiu como moral tem como consequência a busca pelo nada, porque toda essa luta,
todo esse sofrimento do homem pretende-se chegar um denominador final, o qual não passa
de uma constante busca pelo irreal, no qual não há algo de concreto. Assim a racionalidade do
de uma alma forte e temível; enquanto o nosso sofrimento ao alegra e torna benevolentes pois que a crueldade
produz sempre o mais voluptuoso sentimento de poder. ( NIETZSCHE. 1978, p. 20)
29
homem descumpri a sua real função e o deixa em uma constante busca pelo que Nietzsche
chama de niilismo.
Não foi Nietzsche o primeiro filósofo a usar o termo niilismo, mas o sentido como ele
aplica esse niilismo é que lhe é próprio. O niilismo surgiu, à medida que Nietzsche realizava
uma análise da moral, mas essa é uma temática para ser debatida em outro momento, aqui
apenas se traz uma pequena introdução desse termo para fazer entender como se consolidou
uma moral da modernidade. Dentro da Genealogia da Moral pode-se observar vários
sentidos niilistas, um deles é vitória da moral dos escravos, a qual se tem uma forma de
niilismo negativo. A tradição platônica cristã nega a vida16
em prol de valores superiores –
Deus, a imortalidade da alma, o reino do céu, a justiça dos bons e a vida eterna. Ao negar a
vida em troca desses valores que são irreais torna essa atitude negativa, portanto temos um
niilismo negativo. Nesse mesmo exemplo está presente um niilismo da reação, no momento
em que o escravo reage à ação negativa, nasce um novo sujeito, logo esse novo sujeito se
torna fruto positivo do niilismo da reação. É esses alguns dos sentidos niilista atribuídos por
Nietzsche, o que nos faz entender que o niilismo é necessário dentro da história da
humanidade até mesmo porque é de extrema importância que todos os valores sejam
desvalorizados, e tendo em vista que estes nada são e foram criados pelo homem com a
finalidade de dominar a vida.
O nada tem um papel fundamental na vida da humanidade, e foi por meio do nada que
o homem criou a mais poderosa força de comando já existente no universo, isso quer dizer
que, Deus o deus que o homem cria é um deus do nada, porque é aquele que tudo promete e
nada dá. É o que promete um paraíso, a salvação da alma e nada apresenta de concreto. Na
Genealogia da Moral o ressentimento, a má-consciência e o ideal ascético são pontos de
partida para uma analise dos sentidos niilistas. A questão que se impõe agora é entender o
sentido do ideal ascético e sua contribuição na moralidade do homem moderno.
Investigando algumas figuras humanas17
como os artistas, os filósofos, os sábios, as
mulheres, os sacerdotes, os desequilibrados e os santos, e, relacionando essas figuras aos
16
Vida concreta, vida real. 17
Cf. O que significam ideais ascéticos? Para os artistas nada, ou coisas demais; para os filósofos e eruditos
algo como instinto e faro para as condições propícias a uma elevada espiritualidade; para as mulheres, no melhor
dos casos um encontro mais de sedução, um quê de morbidezza na carne bonita, a angelicidade de belo e gordo
animal ; para os fisiologicamente deformados e desgraçados (a maioria dos mortais) uma tentativa de ver-se
como “bom demais” para este mundo, uma forma abençoada de libertinagem, sua grande arma no combate à
longa dor e ao tédio; para os sacerdotes, a característica fé sacerdotal, seu melhor instrumento de poder e
“suprema” licença de poder; para os santos, enfim, um pretexto para a hibernação, sua novíssima gloriae cupido
(novíssima cupidez de gloria) seu descanso no nada (“Deus”) sua forma de demência. (NIETZSCHE 1987, p
106)
30
ideais ascéticos, Nietzsche busca entender os ideais ascéticos a partir da relação com essas
figuras sociais. E desta forma há uma multiplicidades de diferentes respostas para a pergunta
inicial da dissertação – “O que significam ideias ascéticos?” (NIETZSCHE, 1987, p. 106)
questiona.
Os ideais ascéticos é o que dá sentido a vida, é a necessidade que o homem tem de
está sempre em busca de algo, porque para Nietzsche o fato do homem não viver na
acomodação, significa que ele está sempre em busca. “O homem prefere o nada, a nada
querer” (NIETZSCHE, 1987 p. 107). O que motiva o homem é a busca, é a vontade de poder,
de trocar o deves pelo podes, sendo esse processo por meio da razão, por isso o homem não
aceita a vida como ela é, por isso há sempre uma mudança. Mas o que Nietzsche faz não é
uma análise moral só por meio da razão, mas sim, uma análise pautada em toda a
irracionalidade e racionalidade do homem. O ideal ascético do sacerdote, por exemplo, é
pautado na irracionalidade do escravo, porque Nietzsche salienta que “ele nasce do instinto de
cura e de proteção de uma vida que degenera” (NIETZSCHE, 1987, p. 134). E o que degenera
é irracional.
É a promessa de uma “vida melhor”, é um ideal que tem a função de dá sentido ao
sofrimento, tornando o sofrimento algo suportável, tendo em vista que o sofrimento sem uma
promessa de recompensa se tornaria algo insuportável para homem. Mas o homem se adapta
ao sofrer, pois assim ele encontra sentido no sofrimento a ponto de se auto castigar. O jejuar,
por exemplo, é uma forma de fazer sofrer criado pelo homem e para ele mesmo, todavia com
um sentido que na maioria das vezes é alcançar uma benfeitoria vinda de Deus, é um sofrer
com sentido em busca de uma causa.
Na dissertação nietzschiana se tem como principal mentor a figura do sacerdote
ascético, o qual por ele se eleva a vida valorizando a morte, promete alegria quando o homem
vivencia a dor, e além disso, diviniza o sacrifício.
O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em
outro lugar, é o mais ato grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão:
mas precisamente o poder de seu desejo é o grilhão que o prende aqui:
precisamente por isso ele se torna o instrumento propício para ser- aqui e o
ser homem – precisamente com este poder ele mantem apagado à vida todo
o rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores
de toda espécie, ao colocar-se institivamente a sua frente como pastor.
(NIETZSCHE, 1987, p. 106)
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Esses sacerdotes conseguiam limitar o ser humano e muda os seus pensamentos,
porém o que surge desse ideal ascético é vontade de se voltar contra a vida, criando uma
necessidade de abrir mão do valor e dos prazeres da vida em prol do nada.
Vimos que o sentido, pelo qual certo valor moral foi criado, é o que vai determinar a
sua decadência ou o seu crescimento, bem como são os ideais ascéticos, pois o mesmo é fruto
da moralidade criada pelo homem e mais importante do que saber o que é o ideal ascético é
saber qual foi a sua contribuição para a progressão da humanidade. Nietzsche afirma que: “Se
desconsiderarmos o ideal ascético, o homem, o animal-homem, não teve até agora sentido
algum. Sua existência sobre a terra não possuía finalidade” (NIETZSCHE. 1987 p 183). É o
ideal ascético, justamente a vontade incorporada no nada a eterna busca pelo nada e ao
mesmo tempo o sentido da vida. Conclui o filósofo: “[...] para repetir em conclusão o que
afirmei no início – o homem preferirá ainda querer o nada, a nada querer [...]”. (NIETZSCHE,
1987, p 185)
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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todos os filósofos acreditaram ter deixado para seus seguidores e leitores um conceito
sobre a moral. O que segundo Nietzsche essa certeza deixa de lado uma questão essencial que
é a problematização da própria moral, e foi essa a proposta de Nietzsche, pois, ele não queria
falar de moral, mas de morais, das várias morais, da história da moral, do valor atribuído a um
conceito moral. Nesse contexto, o que Nietzsche faz é mostrar que as interpretações morais
estabeleceram um mundo de valores absoluto e verdadeiro que serviram de critérios para as
ações humanas e determinou conceitos, os quais os homens pudessem orientar suas vidas
durante toda sua existência. Os conceitos morais que representam determinados valores são
como “matéria-prima” para a “máquina humana”, pois representam de início como algo que
dá sentido ao mundo e aos atos humanos.
Mas, baseados em quais conceitos a humanidade concebeu esses valores? Como
aceitar uma ação como boa e uma ação como ruim? Foram essas indagações que fizeram com
que o filósofo mostrasse para humanidade a necessidade de discutir sobre a questão dos
valores, para tanto ele abordou as experiências coletivas, a história e até o uso da linguagem.
O estudo da linguagem tinha o objetivo de investigar a origem dos valores morais, enquanto
as experiências e a história remetiam-se ao valor de um determinado corpo, ou seja, a forma
como o valor moral oriundo da linguagem reflete na hierarquia entre os homens.
Aprofundando-se na relação homem e vivência dentro do cenário europeu, Nietzsche nos traz
duas classes sociais e ambas com morais distintas na sociedade, sendo elas, a nobreza e os
escravos.
Sendo o homem possuidor do conhecimento e partindo do princípio de que “não
existem fenômenos morais, mas interpretação moral dos fenômenos” (NIETZSCHE, 2012, p.
108) é que o autor com um olhar direcionado ao presente apontar na obra a Genealogia da
Moral a necessidade de buscar os valores dos valores morais, confrontando todo o conceito
moralista socrático, platônico-cristã e religioso já existente.
A religiosidade também teve uma parcela de culpa muito grande na história moral do
rebanho que viveu a humanidade, principalmente a religião cristã, a qual se tornou, ou é uma
arma letal e muito perigosa. Por entender que o homem vive em busca do alívio para suas
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atribulações, apoderou-se desse conhecimento e se fortaleceu usando um deus como um dom
supremo, como um ser maior sobre todas as coisas, inclusive sobre o próprio homem, e
oferecendo aquilo que Nietzsche vem a chamar de “nada” por ser uma promessa de salvação e
de um paraíso fictício. Logo se entendem que a religião é destruidora da vida humana, uma
vez que ela induz o homem a viver em busca do nada, porque para Nietzsche o “além” é o
nada e “o paraíso” é fruto ilusório da memória humana. Como ele mesmo afirma “O homem
preferirá ainda a querer o nada, a nada querer [...]”. (NIETZSCHE, 1987, p. 185)
A relação entre o “bom” e “mal” está intrínseco ao sentido do fraco e do forte. Os
nobres e os religiosos foram os que criaram os valores a partir da sua próprias necessidades de
domínio. Os nobres diante da posição social que ocupava, tinham total liberdade de dominar
os menos favorecidos, logo essas duas classes se formam automaticamente separadas, ficando
os ricos como bons e poderosos, e os pobres como os obedientes e sem força de “poder”.
[...] o juízo “bom” não provém daqueles aos quais se fez o “bem”! Foram os
“bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e
pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou
seja, de primeira ordem em posição a tudo que era baixo, de pensamento
baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram a si o
direito e criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a
utilidade! (NIETZSCHE, 1987, p. 22)
Com criação dos valores, a qual está de acordo com a utilidade, ele nos apresenta dois
tipos de morais: a moral dos senhores e a moral dos escravos, portanto podemos dizer que
existe uma dupla origem dos nossos juízos de valores, resultantes dessas duas formas distintas
de avaliar a vida, na qual a primeira se estrutura nas ações ativa e positiva, e a segunda, na
reação e na negatividade.
Compreendemos, portanto que o meio e a forma de convivência são determinantes na
formação da linguagem e ambas contribuem para que o uso de um mesmo conceito determine
a percepção das mesmas sensações que lhe deram sentido, a exemplo: o valor das palavras
“bom” e “ruim” ou “bem” e “mal”, as quais eram valores dominantes na sociedade europeia,
ou seja, uma mesma palavra pode ter valores diferentes a depender do seu contexto cultural, o
que o filósofo denomina de transvaloração dos valores. Foi dessa forma que consolidou a
moral escrava na sociedade, comungando de Nietzsche foi justamente quando o homem
utilizou o “não podes” e o “não deves” como o “eu quero” “eu posso”, a partir de então, o
homem passou a viver e desfrutar dos verdadeiros prazeres da vida. É com a consolidação da
moral dos escravos que surgiu a culpa e a má consciência que, são segundo Nietzsche, a
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interiorização dos instintos reprimidos e que por meio do ressentimento, se originou uma
destruição dos valores vitais e, consequentemente, uma defesa da moral ascética dos fracos. A
conclusão nietzschiana é que não existem valores absolutas de bem e de mal, de bom e de
ruim, portanto, os valores de ambas são criações do homem a partir dos seu interesses, por
isso a moral caracterizada como uma criação humana e produto da história da humanidade.
Apoiando-se na linguagem e na história da humanidade, desprendendo-se das
imposições socráticas e religiosas, as quais foram às bases da dominante moral europeia, é
que Nietzsche levanta a problemática, a qual traria para humanidade novas perspectivas da
sua história de vida, talvez, seja por esse motivo que muitos estudiosos das suas obras
classificam a filosofia nietzschiana como a filosofia do futuro.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A BIBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Editora
Paulus.2000.
NIETZSCHE, Friedrinch Wilhelm. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo Cesar Souza.
São Paulo: Editora Brasiliense s.a. 1987.
NIETZSCHE, Friedrinch Wilhelm. Aurora. Tradução de Ruy Magalhães. Porto –Portugal:
Editora Rés Lda.1978.
NIETZSCHE, Friedrinch Wilhelm. Além do bem e do Mal. Tradução de Antonio Carlos
Braga. São Paulo: Editora Lafonte. 2012.
PASCHOAL, Antonio Edmilson. A genealogia de Nietzsche. Curitiba: Editora Champagnat.
2003.