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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE E CULTURA NA AMAZÔNIA EDIVÂNIA HOSANA DA SILVA IMAGINÁRIO DAS ÁGUAS: NARRATIVAS MARAVILHOSASDA COMUNIDADE SÃO JOSÉ, NO CAREIRO DA VÁRZEA, AMAZONAS Manaus-AM 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE E CULTURA NA

AMAZÔNIA

EDIVÂNIA HOSANA DA SILVA

IMAGINÁRIO DAS ÁGUAS:

NARRATIVAS “MARAVILHOSAS” DA COMUNIDADE SÃO JOSÉ,

NO CAREIRO DA VÁRZEA, AMAZONAS

Manaus-AM

2009

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EDIVÂNIA HOSANA DA SILVA

IMAGINÁRIO DAS ÁGUAS:

NARRATIVAS “MARAVILHOSAS” DA COMUNIDADE SÃO JOSÉ,

NO CAREIRO DA VÁRZEA, AMAZONAS

Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação

Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade

Federal do Amazonas, como requisito para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Frederico Krüger Aleixo

Manaus-AM

2009

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EDIVÂNIA HOSANA DA SILVA

IMAGINÁRIO DAS ÁGUAS:

NARRATIVAS “MARAVILHOSAS” DA COMUNIDADE SÃO JOSÉ,

NO CAREIRO DA VÁRZEA, AMAZONAS

Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação

Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade

Federal do Amazonas, como requisito para obtenção do grau de Mestre.

Manaus, 30 de maio de 2009.

Banca Examinadora

Presidente: Prof. Dr. Marcos Frederico Krüger Aleixo

Universidade Federal do Amazonas

Membro: Profa. Dra. Josebel Akel Fares

Universidade Estadual do Pará

Membro: Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida Universidade Federal do Amazonas

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Para os ribeirinho-pescadores da comunidade São José, Costa da

Terra Nova, Careiro da Várzea, Amazonas, que deram corpo, alma

e voz a este trabalho.

Para todos que ruminam a voz como um saber à margem da

sociedade letrada e também da própria literatura.

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AGRADECIMENTOS

Quero aqui agradecer,

Ao Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade

Federal do Amazonas, aos seus colaboradores professores do corpo docente pela acolhida ao

projeto, à pesquisa, à mestranda.

Ao professor doutor: Marcos Frederico Krüger Aleixo, a quem admiro por sua

dedicação aos estudos da literatura. Porque aceitou percorrer comigo estes caminhos de rio;

pela preciosa orientação que soube tão bem, em alguns momentos, dizer pouco para significar

muito; que, nos momentos da incerteza epistemológica, apontou trilhas em forma de

verdadeiros enigmas a serem desvendados por mim, tudo em provocação ao meu instinto

saber de pesquisadora aprendiz, com muito carinho, meu eterno agradecimento, eternamente

obrigada.

Ao professor doutor: Alfredo Wagner Berno de Almeida, porque me motivou a fazer

muitas leituras de muitos autores, a reescrever e reescrever, algumas vezes, até considerei

exagero, mas agora sei o quanto me foram importantes e como foram. Os versos verbalizam a

perspicácia do professor em suas orientações para ajudar no processo de minha construção

intelectual como pesquisadora. Disso tudo, sei que o mais importante não é o novo. “O que

tenho de novo é o jeito de caminhar” (Thiago de Mello) e nisto reside muita diferença.

Obrigada, professor.

Ao professor doutor Antônio Carlos Witkoski: porque me incentivou quando este

trabalho pertencia apenas ao mundo das ideias; porque soube tão bem sugestionar as muitas

leituras para o início da minha formação como pesquisadora e para a pesquisa, também pelos

muitos empréstimos de livros de sua biblioteca particular; obrigada, porque nos tornamos

amigos.

Aos professores doutores: Renan Freitas Pinto, Frantomé Bezerra Pacheco, por

mostrarem que não existe fronteira intelectual entre professor e aluno; por oportunizarem a

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partilha dos nossos saberes em conversas meio prosa, que afloraram ideias pertinentes à

construção do objeto de estudo e a minha formação como pesquisadora.

Aos familiares: porque a distância não ausentou o carinho e o amor que sentem por

mim. Em especial, à Natália: filha e amiga que muito me compreendeu e ajudou nos

momentos difíceis.

Aos colegas professores de trabalho: porque sempre se mostraram torcedores

fervorosos e curiosos para ver a conclusão deste trabalho.

Aos amigos: porque sempre foram muito solidários. Em especial, à Helena da Silva

Torres que tanto acreditou e incentivou-me nesta trajetória intelectual, que me elogia quando

traduzo as idéias em palavras no papel.

Às famílias da Comunidade São José, Costa da Terra Nova, Careiro da Várzea,

Amazonas, porque me acolheram e confiaram a mim suas criações poéticas e oníricas.

Aos leitores: porque esta leitura, mesmo que em pensamento, é um mergulho em

águas encantadas para conhecer o real maravilhoso da comunidade São José, Costa da Terra

Nova, Careiro da Várzea, Amazonas.

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Desse modo a água nos aparecerá como um ser total: tem um

corpo, uma alma, uma voz. Mais que nenhum outro elemento

talvez, a água é uma realidade poética completa. Uma poética da

água, apesar da variedade de seus espetáculos, tem garantia de uma

unidade. (BACHELARD, 1989, p. 17)

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RESUMO

A literatura toma como objeto de análise o imaginário das águas que se revela nos

diversos contos orais dos ribeirinhos. É possível, por meio da análise desses contos, perceber

que os narradores elaboram suas histórias como estratégias que asseguram, regulam e

interditam suas relações com a natureza. Essa forma simbólica de explicar o mundo natural

requer do ribeirinho um saber sobre a ilha, os lagos, os rios, a natureza, isso lhe é próprio.

Esse saber dá-se sob o plano do onírico, o qual está moldado sob uma estrutura individual e

coletiva. Por isso o imaginário vem expresso em muitas faces, tais como: o medo, o mal como

necessário, as metamorfoses dos seres aquáticos em formas humanas, os seres imaginários

como habitantes das águas e de reinos encantados. O diálogo travado pela literatura com as

várias áreas do conhecimento ajudou-me a compreender o quanto essas criações pertencem ao

universo do maravilhoso como categoria da literatura oral amazônica. Outrossim, esta

abordagem científica dá voz ao pescador não como um homem diferente, mas como um poeta

de seu mundo. Portanto, o imaginário se configura realidade, vida, sentimento, poesia,

racionalidade que mostra o quanto o homem constrói explicações lógicas para fenômenos que

comumente não são explicados pela sociedade humana. Esse jeito amazônico de ser e viver

está nuançado de poesia que assegura o maravilhoso como elemento que pulula a alma e a

vida dos pescadores da comunidade São José, Costa da Terra Nova, Careiro da Várzea,

Amazonas.

Palavras-chave: literatura; imaginário; narrativa; maravilhoso; oralidade; simbólico.

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ABSTRACT

The literature takes as its object of analysis the imaginary water which is in various

oral tales of bordering. It is possible, through the analysis of these stories, realize that the

narrators and their stories develop strategies to ensure regular and defined their relationship

with nature. This symbolic way of explaining the natural world requires a knowledge of the

river on the island, lakes, rivers, nature, that you own. This knowledge is made under the plan

the dream, which is shaped in a structure individual and collective. So the imagery is

expressed in many faces, such as fear, as a necessary evil, the metamorphoses of human

beings forms in water, they are perceived as inhabitants of water and enchanted kingdoms.

The dialogue in the literature with various fields of knowledge helped to understand how

these works belong to the wonderful world of oral literature as a category of the Amazon. But

this scientific approach gives voice to the fisherman and not a different man, but as a poet in

his world. So the imagery is configured reality, life, feeling, poetry, logic that shows how man

constructs logical explanations for phenomena that are commonly explained by the human

society. The way Amazon is to be live and nuances of poetry that provides wonderful as a

swarm that the soul and life of the fishermen community of San José, Costa da Terra Nova,

the Varzea Careiro, Amazonas.

Keywords: literature, imagination, narrative, wonderful, oral, symbolic.

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SUMÁRIO

PRIMEIRAS PALAVRAS

CAMINHOS DE RIO DA PESQUISA

CAPÍTULO I

1. VOZES NARRATIVAS........................................................................................... 24

1.1 Os Narradores....................................................................................................... 32

1.2 A Comunidade...................................................................................................... 39

1.2.1 O mundo lá dentro cá fora............................................................................. 39

1.2.2 O mundo lá fora cá dentro............................................................................. 43

1.2.3 Cá dentro: uma comunidade de ribeirinhos pescadores................................ 47

1.2.4 Categorias de identidade............................................................................... 53

1.2.5 O mundo das águas....................................................................................... 54

CAPÍTULO II

2. NO “REINO ENCANTADO” DAS ÁGUAS........................................................... 68

2.1 Narrativas Imaginárias............................................................................................ 68

2.2 De Propp a Paul Zumthor....................................................................................... 74

2.2.1 Contos do mundo das águas........................................................................... 80

2.2.2 Contos do mundo da floresta.......................................................................... 94

2.2.3 Contos das profundezas das águas.................................................................. 100

CAPÍTULO III

3. O MARAVILHOSO: ENCANTARIA DAS ÁGUAS............................................. 105

3.1 O medo como elemento de comunicação com o mundo dos encantados............... 112

3.1.1 Os seres imaginários das águas....................................................................... 119

3.2 A metamorfose: eixo temático nos contos maravilhosos........................................ 123

ÚLTIMAS PALAVRAS................................................................................................ 126

REFERÊNCIAS............................................................................................................. 129

ANEXO: DOCUMENTAÇÃO DA PESQUISA DE CAMPO.................................. 132

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - O Narrador ....................................................................................................................... 32

Figura 2 - O Narrador........................................................................................................................ 32

Figura 3 - O Narrador........................................................................................................................ 33

Figura 4 - O Narrador........................................................................................................................ 33

Figura 5 - O Narrador........................................................................................................................ 34

Figura 6 - O Narrador........................................................................................................................ 34

Figura 7 - O Narrador........................................................................................................................ 35

Figura 8 - O Narrador........................................................................................................................ 35

Figura 9 – O Narrador....................................................................................................................... 36

Figura 10 - O Narrador...................................................................................................................... 36

Figura 11- O Narrador....................................................................................................................... 37

Figura 12 - O Narrador...................................................................................................................... 37

Figura 13 - O Narrador...................................................................................................................... 38

Figura 14 - O Narrador...................................................................................................................... 38

Figura 15 - O Narrador...................................................................................................................... 39

Mapa do Careiro................................................................................................................................ 44

Figura 16 – Festejo do Padroeiro São José....................................................................................... 47

Figura 17 – Terras de Várzea............................................................................................................ 48

Figura 18 – Ofício do Pescador......................................................................................................... 48

Figura 19 – Capela Nossa Senhora de Nazaré.................................................................................. 49

Regimes do Imaginário das Águas.................................................................................................. 59

Figura 20 – Ato mágico e técnico..................................................................................................... 62

Figura 21 – Moradias dos ribeirinhos............................................................................................... 63

Figura 22 - Moradias dos ribeirinhos................................................................................................ 64

Figura 23 – Lazer sobre as águas...................................................................................................... 65

Figura 24 – Colheita de Verduras, 2007........................................................................................... 66

Figura 25 – Casal de Pescadores....................................................................................................... 67

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PRIMEIRAS PALAVRAS

Pensar a construção do nosso próprio ato de construir o objeto da

pesquisa é dar vazão à liberdade criativa, nisto está o nosso Direito

de Sonhar1, como na escolha dos autores, das idéias a discutir, das

teorias a subsidiar, das metodologias e do método.

Pensar a construção do objeto por polifonia é, no mínimo, assegurar o método proposto.

Pensar a construção do objeto é arquitetar em nosso imaginário o próprio objeto.

Pensar e construir o objeto é estabelecer conexões com o mundo da

palavra.

Pensar o objeto é saber usar, na medida certa, a nossa capacidade

criativa.

Pensar e construir o objeto é também ser um eterno aprendiz de

artista, a isto este trabalho se propõe quando defende o Direito de Sonhar.

Pensar e construir o objeto é pensar com os nossos olhos, dentro dos olhos dos outros, nisto Thomas Clarck Pollack nos proporciona

uma analogia em relação à elaboração da teoria aqui proposta:

... A elaboração de uma teoria é semelhante à análise que precede o corte de um

grande diamante em pedras menores, mais usáveis. A divisão em si, segundo me

disseram, é um processo relativamente breve e simples. É feita com uma faca tipo cunha, bastante afiada, e um martelo. No entanto, se se quiser cortar o

diamante ao longo de suas linhas naturais, deve-se estudar a sua textura

demorada e atentamente, antes de proceder à divisão. Se as linhas naturais da

textura forem analisadas corretamente, os diamantes que resultarem podem valer

muito mais do que o todo maior bruto (apud. DUNDES, 1996, p.17).

Construir esta teoria é também pensar o ato quase mágico do

ourives que procura nos mínimos detalhes o ângulo certo para decepar uma de tantas outras possíveis pedras de diamante.

Procuramos ser este ourives ao utilizar a metodologia e o método para compreender o objeto recortado.

1 Expressão utilizada a partir da obra: BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. Trad. José Américo de Pádua

Danesi. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S. A., 1991.

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CAMINHOS DE RIO DA PESQUISA

O trabalho de campo, para elaboração desta dissertação, contempla a comunidade

São José, situada na Costa da Terra Nova, pertencente ao município do Careiro da Várzea,

Amazonas. O acesso implica viajar em um dos transportes aquáticos, tais como: motor rabeta,

voadeira, lancha, barco de linha ou canoa a remo. Tomando como ponto de partida a capital

do Amazonas, Manaus, saindo do Porto da Ceasa, tem-se a dista de 22 km em linha reta para

chegar na comunidade São José.

Meus primeiros contatos, como pesquisadora, iniciaram em janeiro de 2007,

estendendo-se até o mês de fevereiro e março de 2008. Nestes meses há duas ordens cíclicas

distintas na paisagem da comunidade: a seca que ainda persiste e o movimento lento e suave

da subida das águas que, na calmaria, se aproximam da terra firme e da floresta. Essas ordens

configuram o duelo entre o mundo chamado da terra firme e o mundo das águas. Neste duelo

não vence nem um nem outro; os dois combinam força e imaginário. Segundo a entrevistada

Francisca Neide da Silva Dominico, pescadora, moradora da São José, “Em março já inicia a

cheia e a água come tudo”.

No período em que as águas vão enchendo, a vida da comunidade se transforma. Este

período perdura de março a maio, porque em junho e julho configura-se, de fato, a cheia.

Todo este tempo chuvoso é considerado inverno. O outro período escolhido pela pesquisa

corresponde aos meses seguintes: final de julho, agosto, setembro e outubro de 2008, quando

a ordem cíclica é de cheia para aproximação da vazante que anuncia o período da seca,

designado localmente de verão.

A escolha desses períodos cíclicos para execução dos trabalhos de recolha das

narrativas deu-se devido ao interesse da pesquisadora, a partir da seleção aleatória do

município e do povoado, em configurar o imaginário das águas presente na comunidade São

José, Careiro da Várzea, Amazonas; espaço-ambiente permeado de florestas tanto em terras

firmes, quanto em várzeas.

No que tange à escolha do lugar, ou seja, o território em jogo, recortei a comunidade

São José, que tem como economia principal a pesca e como atividade secundária a

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agricultura. A seu lado, localiza-se a comunidade São Francisco que movimenta,

principalmente, a agricultura, sendo a pesca uma atividade complementar, voltada tão

somente para consumo e lazer. Ambas são pertencentes à Costa da Terra Nova, município do

Careiro da Várzea. Embora o recorte desta pesquisa de campo refira-se a São José, não há

dissociação cultural quando o critério subjaz “o mundo das águas”. Conforme relatou a

senhora Iracema Moraes Moreira, de 81 anos, da comunidade São Francisco, a mais idosa do

lugar, “o que é diferente é o tipo de atividade, aqui nois vive da agricultura”.

Mesmo assim, este trabalho joga seu olhar científico sobre a Comunidade São José,

em virtude dos próprios moradores se auto-definirem pela atividade econômica da pesca, ou

seja, surge então a categoria de identidade do grupo de pescadores. É importante não esquecer

que também valorizam e praticam a atividade da agricultura. No momento da recolha das

narrativas, notou-se que as famílias da São José mantêm relação de parentesco com a da São

Francisco. Então, devido a essa percepção, também considerei as narrativas orais de

informantes da comunidade São Francisco, respeitando o critério de indicação de um

entrevistado da comunidade São José. Ressalte-se: o que está em jogo neste estudo não é a

demarcação territorial das narrativas, mas o respeito, em primeiro lugar, à vida desses

indivíduos e como as relações sociais são construídas no mesmo espaço-ambiente aquático.

Nos primeiros contatos, apresentei-me como pesquisadora e estudante, mestranda do

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), da Universidade

Federal do Amazonas, ao representante da comunidade, o senhor Geraldo Ayres Pinto.

Explanei a ele sobre o trabalho de pesquisa, enfatizando a escolha da comunidade por ser uma

ilha. O diálogo fluiu muito bem, pois o representante fazia perguntas sobre a universidade,

sobre a pesquisa e sobre a minha vida pessoal. Não obstante, com a senhora Maria (esposa do

senhor Geraldo), a receptividade não foi igual, porque nas palavras dela a comunidade é alvo

de muitas pesquisas, as quais não trazem retorno financeiro.

Mediante a fluência do diálogo com o senhor Geraldo, obtive informações sobre a

vida dos moradores, suas atividades de trabalho na comunidade, bem como sobre a economia,

o grau de parentesco, a territorialidade da comunidade, o grau de escolaridade e o meio de

transporte.

A partir desse diálogo, o senhor Geraldo orientou-me a procurar a casa da professora

pedagoga Maria Sueli Moraes da Silva, mais conhecida como Sueli. Ao conhecer a pedagoga

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criou-se o canal de comunicação, configurando uma relação de confiança. Surgiu, a partir

desta relação, a figura da “mediadora”.

A professora Sueli apresentou-me os nomes dos moradores, falou um pouco do grau

de parentesco entre algumas famílias e, a partir daí, tracei as demais entrevistas com as

famílias indicadas. Dessas participaram 23 pessoas, indistintamente homens e mulheres,

adolescentes e idosos.

O grau de parentesco existente na comunidade é marcante, o que não deixou de ser

percebido pelo meu olhar atento como pesquisadora. Devido a isso, otimizou-se a recolha das

narrativas, pois um entrevistado indicava outro para contar uma história. Muitas vezes, esta

atividade de recolha, aos poucos, descobria os laços de parentesco entre contadores porque

seguia a trilha da indicação.

A pesquisa contemplou instrumentos, ou melhor, estilos alternativos de trabalho,

para a coleta de dados, os quais foram mais proficientes para coligir os dados de campo. Essa

metodologia liberou as potencialidades criadoras dos entrevistados e ajudou-me na

conceituação e decifração dos mistérios do objeto de estudo, promovendo o entrecruzamento

dos dados com os referenciais teóricos.

Evitei a definição arbitrária dos informantes para fugir à particularização “dessa

gente das águas” e também por considerá-las informantes imprescindíveis e dotados de

saberes práticos; por isso faz-se necessário buscar esta ideia contida em Foucault: “o

descontínuo na forma nova passa do obstáculo à prática” (FOUCAULT, 1997, p. 10). A partir

dessa premissa, vemos que a minha prática como pesquisadora precisou abdicar das amarras

da pesquisa formal e dar vazão ao que o campo nos mostra; mais ainda reforça-se a postura

em não entender as diferenças, digo, superar o obstáculo das leituras generalizantes sobre os

sujeitos da pesquisa na condição de comuns, mas reconhecê-los a partir da sua própria

história. Por isso, entende-se, com mais propriedade, que o objeto se constrói a partir de outra

perspectiva aquém da formal, mas que também possível para este trabalho, porque requer

desvelar o imaginário. Ainda, procurou-se desconstruir as formulações de muitos dos

manuais, a fim de dar voz ao devir dos informantes e de seus saberes práticos.

Apliquei as técnicas: a) da entrevista semiestruturada que facilitou a abertura ao

diálogo e o aprofundamento do discurso, o que permitiu ao entrevistado maior liberdade para

verbalizar o seu pensamento; b) aliada aos postulados de Bourdieu, da observação participante

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(BOURDIEU, 1989) como forma de viver e assumir o lugar do outro. Por este enfoque,

pretendeu-se a atenuação da barreira existente entre a minha condição de pesquisadora e a do

outro, o que requereu o meu envolvimento nas distintas situações vividas pela comunidade

insular. Desse modo é importante ressaltar que a postura recaiu sobre uma abordagem

interdisciplinar e transdisciplinar.

Combinada à entrevista semiestruturada e à observação participante, utilizei a

técnica da fotografia para completar os momentos da recolha das narrativas orais, segundo

Maria Cristina Siqueira de Souza Campos em sua obra: A Associação da Fotografia aos

Relatos Orais na Reconstrução Histórico-Sociológica da Memória Familiar (1999), essa

técnica compõe a representação do mundo ribeirinho e complementa a construção da

observação etnográfica da comunidade, sob orientações de Marcel Mauss, Manual de

Etnografia (1967). Esse conjunto embasou a construção da representação do universo

ribeirinho. Além disso, utilizei os instrumentais: caderno de campo, gravador digital, máquina

fotográfica digital, apresentados e percebidos pelos entrevistados durante o trabalho de campo

para registrar as narrativas. Antes de iniciar as gravações, seção de fotos e/ou anotações no

caderno de campo, preocupei-me em explicar a importância dos instrumentais. Devido a isso,

não houve rejeição por parte de nenhum entrevistado, eles se mostraram bastante

familiarizados e à vontade durante o uso dos referidos instrumentais.

O trabalho de observação participante foi realizado durante os meses de janeiro,

fevereiro, março, julho, agosto, setembro e outubro. Nestes meses, a minha presença tornou-

se uma constante na comunidade. A senhora Sueli, já referida como mediadora, cedeu

gentilmente o seu lar para a minha permanência nos dias de pesquisa. Durante as visitas de

observação, respeitei a rotina e participei dinamicamente do cotidiano familiar e da

comunidade.

A seleção dos contadores de histórias deu-se ao longo das visitas e entrevistas.

Quanto mais familiaridade adquiria com os moradores e com os entrevistados, melhor ia

percebendo quais informantes narravam com naturalidade, expressividade, força poética, e

gosto ao contar as histórias. Então, surgiram os atores e suas histórias, o que acabou servindo

de critério preponderante para desvendar o conteúdo onírico e simbólico.

Neste garimpar de narrativas, a relação sujeito e objeto diluiu-se, pois a empenhei-

me na recolha e, num trabalho de artesã, fazia as transcrições do material factual gravado e/ou

manuscrito. Também optei por manter o nível de linguagem oral, assim como elementos

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linguísticos característicos de cada pessoa, respeitando-a por sua identidade linguística

individual, coletiva e do lugar.

A partir das transcrições das narrativas orais, mergulhei na análise das transcrições

para abstrair o universo das histórias, a fim de compreender e interpretar os conteúdos

temáticos, as representações explícitas e implícitas das figuras do imaginário, os léxicos

específicos; além da busca de traços singulares, da recorrência de temas e da estrutura

narrativa, bem como do enfoque do narrador, das figuras de linguagem expressas, da carga

semântica de cada narrativa, das “bacias semânticas”2, expressões alegóricas, próprias do

mundo das águas, das relações sociais existentes e construídas e delas com a natureza.

A partir do mencionado no parágrafo anterior, portanto, as muitas formas de

linguagem expressiva, pelas quais o imaginário se desenhou como concretude do saber local,

foram compreendidas como elementos identitários dessa comunidade de pescadores e

desenham a literatura oral dos pescadores, visto que concorrem como verdadeiras

singularidades da cultura ribeirinha amazônica.

Nesta situação de pesquisa, não houve preocupação em fechar questões, mas em

construir uma relação entre entrevistador e entrevistado, ou melhor, entre pesquisador e

objeto. Observei primeiro o que o campo apresentou; tomei o cuidado, segundo Bourdieu

(2003), em evitar o efeito de imposição pela minha presença como pesquisadora na

comunidade São José. Em uma situação específica, a esposa do presidente da comunidade, a

senhora Maria, em relato, reclamou da presença constante de pesquisadores, principalmente

com vínculo institucional. Possivelmente essa reação defensiva se justifique pela proximidade

da comunidade com a capital, Manaus (AM), ou também de pesquisadores que não foram

éticos para com a comunidade. Diante deste contexto, as visitas de observação foram

ocorrendo com maior frequência para que este trabalho não fosse confundido com outros que

ocorreram na mesma época, principalmente patrocinados por empresas da capital ou por

órgão governamental.

As respostas não estão bem demarcadas em relação ao que foi perguntado,

justamente porque o mais relevante era o diálogo, meio prosa, meio entrevista. Essa postura

serviu para aquebrantar a imposição metodológica da pesquisa a fim de conquistar a confiança

das pessoas e manter a naturalidade no ato de contar as histórias. A técnica de coleta de dados,

2 In. DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem, 2004.

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como dito, ocorreu por meio de relatos orais e fotografias, associados aos instrumentos:

gravador digital, caderno de campo e máquina fotográfica digital. Procurei controlar o efeito

de imposição dos instrumentais quando, antes de iniciar a recolha dos relatos, ou seja, das

narrativas, eu já os apresentava e, num acordo tácito, o entrevistado escolheu gravar as falas

ou fazer o registro manuscrito e, por último, posar para as fotos. Os entrevistados não se

mostraram “envergonhados”, aceitaram os recursos de método com naturalidade e, nas poses

das fotos, solicitaram para ver as fotos na tela da máquina digital.

As narrativas orais apresentam temáticas diversificadas referidas a divindades e suas

categorias respectivas, que disciplinam as relações com a natureza, tais como: feras da água

(onça d‟água); cobra grande; boto; seres imaginários do fundo das águas: pai do lago;

seres imaginários da floresta; homem da floresta ou espírito do mau; encanto em águas

profundas; panema.

Essas narrativas recolhidas possuem traços específicos e recorrentes, tais como:

frases curtas, relatos onisciente e/ou onipresente, marcas da linguagem oral regional, figuras

de linguagem, expressões do mundo das águas e da floresta, estrutura simples, elementos do

maravilhoso, do fantástico e do sobrenatural.

Para a obtenção destas narrativas, a relação de pesquisa deu-se sob o enfoque da

orientação metodológica de Bourdieu (1989). No mesmo espírito epistemológico, ele nos

lembra de um aspecto relevante que se juntou à orientação; a pesquisa de campo é parte de

uma atividade intelectual, além das dificuldades que, aos poucos surgiram quando a tentativa

foi de seguir a rigidez – que é o avesso da inteligência e da criação - com rigor; e ficarmos

necessitados desse ou daquele expediente, uma vez que a atividade criadora também requer

“vigilância epistemológica” (BOURDIEU, 1989).

Ainda convém frisar que é difícil obter informações sobre este universo mágico dos

ribeirinhos. A fala não é direta. As histórias não são coletadas diretamente, há uma

(re)elaboração, há obstáculos, que uma dissertação de mestrado, com tempo reduzido de

trabalho de campo, não pode resolver.

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Instrumentos Analíticos

No exercício da pesquisa de campo, o entrevistado sacralizou os lugares, pois ele

mostrou um lugar onde houve um “encantamento”, quer dizer, uma ação de transfiguração do

lugar e das personagens para o mundo do sobrenatural.

Os instrumentos analíticos de que me vali para proceder à análise do material

inicialmente coletado remeteram-se à leitura de um “estudo de comunidade”, considerado um

“clássico” para a interpretação da categoria, que ressalta as categorias “mundo submerso”,

“reino”, “encantado” e “navio encantado” (GALVÃO, 1976, p. 64-85), e também de um

elenco mais aprofundado que tem a pretensão de dar conta da “análise crìtica” que se trata da

categoria “realidade maravilhosa” ou “real maravilhoso” (CARPENTIER, 2005, p.13-14)

Para Galvão o “reino” ou “reino encantado” é semelhante a uma cidade; o termo

“encantado” é uma ação mágica dos sobrenaturais, ou seja, aquilo que é extraordinário ou

maravilhoso. A definição, exposta em Galvão, considerou as subjetividades do lugar da fala,

ou seja, da “comunidade de Itá”, conforme o trecho: “(50) O conceito é definido localmente

como uma força mágica atribuída aos sobrenaturais. Seres humanos, animais, objetos podem

ficar encantados por influência de um sobrenatural” (GALVÃO, 1976. p. 66). Ainda descreve

os que habitam este mundo submerso:

Os habitantes desse „reino‟ do fundo dos rios têm semelhança com criaturas humanas, sua pele é muito alva e os cabelos louros. Alimentam-se de uma comida

especial que se provada pelos habitantes deste mundo, os transforma em encantados

que jamais retornam do „reino‟ . (GALVÃO, 1976, p.67).

Nesse mundo das águas, surge também o “navio encantado” que é a metamorfose da

cobra grande, o qual é descrito: “Pode aparecer como um „navio encantado‟, barco deserto de

tripulantes que singra o rio com todas as luzes de bordo acesas. Essas aparições são comuns

em Itá” (op. cit, p. 71).

Ademais, fortalece também este debate, as contribuições do literato Alejo Carpentier,

com sua visão surrealista. O autor trouxe, para efeitos teóricos, o conceito de “real

maravilhoso” ou “realidade maravilhosa”, desenvolvidos por ele, nos anos 40 do século XX.

Para este autor, “[...] pensaba, además, que esa presencia y vigência de lo real maravilhoso no

era privilegio único de Haitì, sino patrimônio de la América entera [...]” (CARPENTIER,

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2005, p.13). E, por não ser privilégio somente do Haiti, podemos dizer que estamos diante de

um real maravilhoso também no Amazonas, assim como na comunidade São José.

O encantamento é a ação dinâmica do ser que coabita o reino encantado. A partir

disso, esse ato de criação é visto como estratégia condicionante e de controle do nicho de

pesca ou mesmo como estratégia que desperta à audiência.

Outro aspecto a destacar é a relação com os entrevistados. Percebeu-se a confluência

das pessoas, ou melhor, o gênero em jogo, sendo o entrevistado homem ou mulher e a

pesquisadora. Neste caso, os narradores manifestaram fuga em seus relatos para o mundo das

reticências (...) e para o mundo das interrogações repetidas (?), por exemplo: “você sabe?

Você conhece, é?”. Essas narrativas entremeadas de interrogações, que pressupõem uma

resposta afirmativa ao não-dito, também configuram estratégias para envolver o ouvinte. As

narrativas aqui coletadas no campo são versões de um trabalho de campo feito por minhas

mãos, que tiveram um olhar de aprendiz, que preferiu compartilhar nesta introdução a omitir.

Todavia, Bourdieu (1989) ilumina esta reflexão, quando orienta o “fazer o campo”

como uma atividade de descoberta constante; e, enfim, convida a libertarmo-nos de “certezas

metodológicas”. Certa desta postura, é que preferi romper a distância tradicional entre sujeito

e objeto, apostando em minha capacidade criativa e libertadora dos tantos metodologismos

científicos, por acreditar que os manuais apresentam, em sua maioria, uma receita episteme-

metodológica, bastante limitada e incapaz de dar conta de todos os aspectos aqui expostos.

Embora essa postura não seja um caminho muito fácil, a escolha desta metodologia encerra

um grande desafio não só para esta pesquisa, mas também para outras que assim preferem

estes “caminhos de rio”.

Se por um lado, a construção deste objeto do conhecimento supera a prática

investigativa empirista, por construir o seu próprio modelo de interpretação da realidade e,

depois construir, em linhas gerais, as conclusões sobre o objeto analisado; por outro,

considera a “comunidade rural” investigada como portadora de experiências vividas e de

saberes práticos. Por tudo o que foi dito, entende-se “os sujeitos” muito mais como autores

das representações sobre suas próprias realidades, como artífices de seus próprios mundos.

Sendo assim, adota-se a interdisciplinaridade como norteadora, uma vez que me

apropiei de uma realidade multifacetada, o que me exigiu saberes das diversas áreas do

conhecimento, aguçando também a minha sensibilidade para jogar, sobre o objeto, os olhos

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do sentido, do percebido, do pensado; os quais estão também na raiz de minha autobiografia

acadêmica.

O espírito de investigação sobre a realidade social acolheu em seu aporte teórico a

transdisciplinaridade porque conjuga os saberes da literatura, da sociologia, da antropologia,

da filosofia, da lingüística. Por tudo isso, este trabalho é eminentemente de caráter qualitativo.

A relação de entrevista configura construção, já que a considera uma “relação social, portanto:

Só a reflexividade, que é sinônimo de método, mas uma reflexividade reflexa,

baseada num „trabalho‟, num „olho‟ sociológico, permite perceber e controlar no

campo, na própria condução da entrevista, os efeitos da estrutura social na qual ela

se realiza (BOURDIEU, 2003, p. 694).

A partir do citado, não se pode negar a presença dos efeitos inevitáveis de imposição,

os quais surgiram durante a coleta das entrevistas; mas, para controlá-los, pratiquei o

exercício reflexivo; no caso, na primeira visita, houve imposição por parte da esposa do

representante da comunidade a senhora Maria, já referida.

De que forma, então, notou-se que essas relações sociais se construíram,

considerando o exposto anteriormente? Justamente pela proximidade na relação de entrevista,

manifesta pelos convites para a festa do padroeiro, para festinhas de aniversário, para passeios

ao lago do Juanico3, para caminhadas pela comunidade, para almoços em que o prato

principal era peixe. Essas atitudes foram demonstrações de aceitação, gesto de familiaridade e

confiança para com a pesquisadora.

Outro aspecto a ressaltar é “a comunicação „não-violenta‟”, como explicita Bourdieu,

o pesquisador detém um capital cultural diferenciado pela linguagem científica. Logo, iniciar

o jogo da entrevista evitando a comunicação “não-violenta”, é garantia de uma relação de

entrevista mais proficiente na obtenção dos dados, já que, o “mercado de bens lingüísticos e

simbólicos adquiridos no seu exercìcio acadêmico”, influencia e muito o diálogo com os

agentes sociais (BOURDIEU, 2003. p.695)

Portanto, a pesquisa preocupou-se em reduzir, ao máximo, essa violência simbólica.

No caso os termos específicos usados na comunidade foram absorvidos pela pesquisa, a fim

3 Este substantivo próprio designa o nome do lago que existe na comunidade, neste trabalho vamos utilizar o

termo escrito como é pronunciado com [u] (Juanico), também está grafado dessa maneira no mapa de Sternberg,

de 1956, da região do Careiro.

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de evitar a imposição linguística. A exemplo: o uso dos termos “alagação, alagado, repiquete,

se[é]ca” em detrimento a “enchente, cheia, vazante e se[ê]ca”. Quanto às perguntas, no ato da

entrevista, optou-se pela simplicidade, pois o diálogo não seguiu um modelo padrão como já

dito. Por ser a fluência mais importante, um tanto meio “prosa” meio “entrevista”, a

pesquisadora introduzia as questões pertinentes.

As transcrições das narrativas respeitaram a estrutura frasal simples, a recorrência de

elementos linguìsticos de encadeamento como “aì”, marca da modalidade oral do discurso, a

estrutura das narrativas, conforme construiu o entrevistado. Portanto, segundo Bourdieu:

“Assim, transcrever é necessariamente escrever, no sentido de reescrever” (BOURDIEU,

2003, p. 710), logo os sinais da pontuação utilizados são marcas da expressividade, na

tentativa de registrar a carga de dramaticidade e a reprodução parcial dos gestos, das mímicas

e a da postura corporal de cada narrador ao contar suas histórias.

Ainda, o registro escrito tem o cuidado de mostrar o potencial linguístico e a carga

simbólica do ato de contar as histórias. Outro sinal da pontuação bastante recorrente são as

reticências a fim de sinalizar os “lapsos, as incertezas, os esquecimentos ou indecisões

característicos da linguagem oral. Por esse método torna-se melhor o entendimento no ato de

ler e interpretar as narrativas.

As histórias contadas mergulham eminentemente para o mundo dos recursos hídricos

de rios e lagos, como forma de defesa da natureza; outras desenham o imaginário entre o

mundo da floresta e das profundezas das águas. Esse devaneio é um “divórcio entre o

intelecto e a imaginação”, nas palavras do autor, a lìngua materna murmura memória

(BACHELARD, 2006, p.27-28).

Para tanto, essas histórias estão classificadas em três mundos: contos no mundo das

águas; contos no mundo da floresta; contos no fundo das águas, por essas temáticas

demonstrarem que esses mundos são os entornos. Neste caso convém assumir o ponto de vista

de Bachelard, “De repente ele se faz sonhador do mundo. Abre-se para o mundo e o mundo

se abre para ele. Nunca teremos visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que

vìamos” (BACHELARD, 2006, p.165). Os sujeitos da entrevista possuem um saber prático, a

ciência também precisa acolhê-lo e, numa relação dialética, entre teoria e prática, construir

ciência.

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A escolha dos entrevistados, ou melhor, narradores, deu-se seguindo alguns critérios:

por indicação, quando um entrevistado citava o outro como conhecedor de muitas histórias de

boto, cobra-grande, pau da careta, panema, seres imaginários ou encantados; pela

naturalidade ao narrar; pela interação comunicativa com a pesquisadora, inclusive, consta

expressão de reforço “a senhora sabe né?”; por narrarem histórias pertinentes ao mundo

hídrico e por serem pescadores ou pescadoras, pela criatividade linguística e carga dramática,

pela afinidade com a pesquisadora.

Já a escolha da faixa-etária foi aleatória, mesmo porque, se um entrevistado

escolhido por critérios supracitados, indicava um outro, não se determinava a idade, por isso

houve oscilação dos 24 aos 85 anos de idade. Fator que acabou enriquecendo os dados no

caso “a pensar sobre a manutenção do hábito de contar as histórias de geração a geração”.

Nesta abordagem de pesquisa de campo, os informantes são coautores de sua própria

história. Então, vamos conhecer e dialogar, aqui de fora, com estes protagonistas lá de dentro

sobre estas narrativas imaginárias das águas. A valorização do discurso do outro é a forma de

aproximação da pesquisa com o objeto. Assim as diferenças se constroem pela proximidade

dialógica desta conversa em pensamento. O campo se apresenta pelas suas múltiplas vozes no

primeiro capítulo deste trabalho. Antes disso, vamos conhecer o mundo das águas e sua

dinâmica insular como expressão do ofício de pesquisador e aprendiz.

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CAPÍTULO I

1 VOZES NARRATIVAS

Os narradores aqui selecionados mostram de forma simples e, por suas vozes, as

muitas histórias do imaginário das águas. A arte de narrar e seus artistas constituem traços

identitários das ditas gentes ribeirinhas da comunidade São José4. Essas histórias orais

permeiam dois distintos universos: o mundo das águas e o mundo da terra, embora muito bem

diluídos. A diluição ocorre sob a força do regime das águas, que propicia uma relação onírica

como fenômeno de juntura do homem com a natureza.

Mas, afinal, de quem são as vozes? Cabe aqui explanar sobre a identidade social das

vozes narrativas. Os proprietários desse saber se reconhecem como “pescadores”,

“ribeirinhos” e até mesmo “caboclo”. Para chegar a esta conclusão, a pesquisadora entrevistou

alguns narradores, inquirindo-os sobre sua auto-denominação. Disso resultaram as opiniões

dos moradores de São José: “Ribeirinho são os que vivem na várzea, porque a gente só faz

começar nunca termina”, respondeu a senhora Francisca, pescadora; “Somos ribeirinhos

porque moramos no interior e na água, senhor João Bosco, pescador; “Caboclo todos nós

somos, porque somos amazônicos, pode ser da cidade, do interior, todos somos amazônicos”,

senhor Gabriel Sales, pescador; “Somos caboclo porque vivemos no interior e ribeirinhos

porque veve na várzea alagante”; “[...] ainda hoje me considero um pescador”, Edimilson,

barqueiro e pescador. Ademais, ib. ver (item 1.2.4) Categorias de Identidade, constam essas

entrevistas e uma breve análise da categorização do grupo. Neste trabalho usar-se-á

indistintamente os termos pescadores, ribeirinhos, caboclo quando fizer referência aos

contadores de histórias, narradores ou mesmo donos dessas vozes narrativas.

Os estudos do medievalista Paul Zumthor5 pregam pela necessidade de atenuar as

oposições oral/escrito, para isso as sociedades medievais servem de objeto de estudo. A

4 No corpo da dissertação optou-se em utilizar “comunidade São José” quando se referir ao local de pesquisa.

5 In. Zumthor, Paul: Biografia: nasceu em Genebra, na Suíça, em 1915. Medievalista, poeta, romancista,

estudioso das poéticas da voz e polígrafo, Zumthor viveu na França, na Holanda e no Canadá, onde faleceu em

1995. Publicou em revistas universitárias e de crítica dezenas de artigos. Visitou o Brasil em 1977, 1988 e 1993,

e tinha por este país um interesse e uma dedicação peculiares. De sua vasta obra teórica destacam-se: Éssai de poétique médiévale (Paris: Seuil, 1972), Langue, texte, énigme (idem, 1975), Le Masque et la lumière (idem,

1978), Introduction à la poésie orale (idem, 1983), La Lettre et la voix (idem, 1987), La Mesure du monde

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desconstrução da tradicional oposição oral/escrito exige engendrar em suas obras: Introdução

à poesia oral (1997); A letra e a voz: A “literatura” medieval (1993); Performance,

recepção, leitura (2007). A sua erudição como estudioso e pesquisador traz a voz como

objeto de estudo da ciência contemporânea. E, quando questionado sobre o valor literário da

voz, Zumthor diz o seguinte:

Nessa tarefa de desalienação crítica, o que tenho de eliminar logo é o preconceito literário. A noção de „literatura‟ é historicamente demarcada, de pertinência limitada

no espaço e no tempo: ela se refere à civilização européia, entre os séculos XVI ou

XVIII e hoje. Eu a distingo claramente da idéia de poesia, que é para mim a de uma

arte da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e

fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas”. Foi dessa perspectiva

que me coloquei o problema da poesia vocal (insisto no adjetivo) e afastei os

pressupostos ligados à expressão, infelizmente freqüente, „literatura oral‟

(ZUMTHOR, 2007, p. 12).

Convém salientar dois aspectos da citação e analisá-los. O primeiro concerne ao uso

do termo “literatura oral”. O autor cria a categoria “poesia vocal” como renúncia aos

pressupostos científicos já cristalizados sobre a idéia do oral estar à margem do erudito. No

entanto, como se percebe, o problema não está na expressão, mas no significado social e

literário que ela carrega; então, coube a esta pesquisa usar e também discutir a categoria

“literatura oral” não mais na perspectiva da aerudição, verte-se à lógica de que o ribeirinho

da comunidade São José possui um saber que emana do seu imaginário e vem expresso pelas

suas narrativas como expressão identitária da sua “poesia vocal”. Logo, vem legitimar, nesta

pesquisa, a categoria da literatura oral amazônica porque pretende transgredir os vários

preconceitos literários já enraizados na história da história da literatura sobre o objeto de

estudo dela. Neste último, reside o segundo aspecto.

O lugar das falas é o do saber e deste temos muitas vozes, tanto das gentes que

simplesmente narraram seus conhecimentos sobre a Amazônia, em situações meio entrevista

meio prosa, quanto das gentes que se intitularam contadores de histórias, porque suas vozes

(idem, 1993) e Babel ou l`inachèvement (Paris: Seuil, 1997). Como ficcionista, publicou La Traversée (1991),

La Porte à côté (1994), La Fête des fous (1991), Ecriture et nomadisme, (1991) e, ainda, o livro de poemas Fin

en soi (1996). Alguns de seus livros publicados no Brasil foram A letra e a voz (Companhia das Letras, 1993);

Introdução à poesia oral (Hucitec/Educ, 1997); Tradição e esquecimento (Hucitec, 1997); Oralidade em tempo

& espaço: colóquio Paul Zumthor (org. Jerusa Pires Ferreira, Educ, 1999); Escritura e nomadismo (Ateliê

Editorial, 2005).

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nasceram da nascente do rio da imaginação em um momento meio brincadeira6, meio

entrevista. Ressalte-se o quanto os narradores que se apresentam nesta seção, cujas fotografias

ilustram os contextos da criação poética, são conhecedores-contadores de histórias. Cada um

escolheu como e onde contar e encantar seu público ouvinte, inclusive, a pesquisadora.

O momento mágico do ato de contar as histórias é extremamente difícil transcrever,

pois muitos elementos estão no plano das sensações por isso chegam a ser indescritíveis já

que cada coisa está em seu lugar. Neste caso, como próprio do ritual encantatório, como

estratégia utilizada pelos narradores ribeirinhos. Para melhor descrever os mínimos detalhes

desse contexto mágico, apreciar-se-á, no capítulo II, as performances existentes em cada voz

narrada. Essa abordagem performática vem dos estudos do medievalista Paul Zumthor,

supracitado.

Nesta perspectiva, esses narradores constituem a cultura ribeirinha, e o imaginário

deles é o saber da região. Cada narrador inicia sua arte de contar como se estivesse em um

palco, neste caso, o da vida cotidiana, porque cada contador foi surpreendido com a chegada

da pesquisadora para ouvir as histórias. Logo isso configura um artífice da metodologia de

pesquisa de campo, pois a surpresa garantiu captar do narrador sua manifestação verbal mais

espontânea possível. Assim preservou-se a escolha do espaço-ambiente de narração; também

o contexto situacional de fala; e, por último, os ouvintes espectadores, ou seja, garantir o

público. O efeito da surpresa está associado à técnica da fotografia para representar este

contexto encantatório e artístico de cada narrador.

Os limites da realidade e da invenção não estão em jogo quando o ponto de

intersecção é o imaginário. Esses traços do ato de contar histórias são marcas pertinentes e

asseguram a tradição oral de culturas amazônicas. Na obra Amazônia: mito e literatura,

Marcos Frederico Krüger diz: “A matéria narrada é um denominador comum entre mito e

literatura. Aliás, o desejo de ouvir e contar histórias parece inerente à condição humana”.

(KRÜGER, 2005, p.14). Se é inerente à condição humana, então, a pertinência deste estudo

comprova que a temática “literatura oral” está ainda no leito discursivo das pesquisas

científicas nas academias; exceto, não mais como viés do folclore, porém como categoria

conceitual de análise da literatura amazônica. Numa perspectiva sociológica, as estruturas

6 O verbo brincar é bastante significativo para os ribeirinhos, porque tem sentido polissêmico: situação agradável

brincadeira nas águas de encantamento, ou também no sentido pejorativo de copulação do bo[ô]to com mulher ou da bo[ô]ta com o pescador.

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narrativas também são traços da cultura ribeirinha e revelam artífices de seus próprios

mundos.

Para Walter Benjamin “[...] a arte de narrar está em extinção” (1992, p. 28), disso

compreende-se que as denominadas sociedades modernas ditas da escrita, da reprodução em

geral, da website, pouco trocam experiências comunicáveis orais, ou seja, as de boca em boca.

Devido a isso, já não asseguram tanto as trocas de conhecimentos e essa “extinção” remete à

decadência das relações sociais neste consagrado mundo moderno urbano.

Entretanto, interpretando a idéia de Walter Benjamin sobre o sentido da palavra

“extinção”, de sobremaneira, convida à reflexão: afinal essa extinção se dá concomitante, ou

seja, da “narrativa como experiência de vida” e do ”narrador criador e mediador da

experiência”. Então, com isso W. Benjamim sugere que as sociedades atuais já não valorizam

tanto esses aspectos culturas, pois é sabido que a gênese no mundo não é o da escrita, mas sim

o da oralidade, fato que remonta à época da pré-história.

A decadência do narrador e de suas histórias, conforme justifica Walter Benjamin,

esteve em crise após a guerra mundial e permanecerá nas sociedades modernas. Sob a visão

de outro estudioso, a decadência tem raízes históricas, a saber, com o advento da “[...]

invenção da imprensa – 1450 [...]” (LUYTEN, 2005, p. 36). A partir dessa data inicia-se o

processo de utilização da impressão como veículo de divulgação e promoção do popular; mais

precisamente na Europa.

No entanto, dentro do contexto da América do Sul, a literatura oral brasileira é

bastante expressiva, ou melhor, a tradição da arte de contar histórias ainda faz parte da

cultura no Brasil. O aspecto negativo desse contexto reside no tratamento emblemático:

acultural e aerudito que este objeto tem recebido. Nisto pesquisadores e academias pouco tem

se esforçado para mudar esta imagem, isto é, este saber da literatura oral que se encontra na

vida cotidiana e que, por vezes, está à margem da valorização.

Mas, algumas prováveis razões, sobretudo, são evidentes para refletir sobre a dita

aerudição. Vê-se que o Brasil não se preocupou muito em estudar e registrar sua própria

cultura de modo a legitimar a categoria das histórias orais como arte literária. Essa idéia é

reforçada também por Luyten (2005) que, no capítulo A literatura popular na América, de seu

livro O que é literatura de cordel, menciona que o Brasil direcionou mais seus estudos à

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imitação da cultura colonizadora européia, sobrepondo-a à brasileira. Sendo assim, tem-se a

imagem cristalizada de que a literatura oral está fadada ao segundo plano como aerudição.

Logo, o narrador, em seu exercício artesanal de artista e criador, é poeta do seu

tempo quando nos apresenta de forma simples os causos, mitos, lendas, contos, fábulas,

crônicas, música, poesia, teatro, cordel, dança e outras tantas criações. A sua condição de

poeta delegou a ele ser refém do seu próprio processo criativo e isso dentro do seu processo

histórico. Por isto o que se pretende é não anestesiar o narrador e suas histórias porque

sabemos que a literatura oral está no anonimato da discussão acadêmica por ser complexa.

O que se pretende é refutar a dimensão do acultural, para que o subjetivo, veiculado

em cada história, não seja mais uma “imagem enlatada” segundo Gilbert Durand (2004). Essa

anistia científica será assegurada sob os postulados de Gaston Bachelard quando prefere “[...]

a „imagem literária‟ sobre qualquer imagem icônica [...]” (BACHELARD, apud DURAND,

2004, p.118). Ainda nesta mesma idéia, Durand critica a ciência ocidental da “Verdade” e

herdeira do “raciocìcio socrático”; ele reforça que o imaginário, o simbólico, as imagens

desafiam esse pensamento socrático, logo são novos desafios também para a ciência ocidental

da “Verdade” (DURAND, 2004, p. 8).

O paradoxo binário “mentira e verdade” dissolve-se na lógica de um novo espírito

científico. O novo infere não só o objeto, como também a postura científica, pois os dois

tomam o leito das culturas híbridas. O fato de Durand afirmar que a reprodutibilidade técnica

da comunicação das imagens está nesse novo espírito, vê-se, neste mesmo fio discursivo, a

necessidade de relacioná-la à reprodutibilidade exposta em Walter Benjamin, tal como ícone

de propagação e desenvolvimento das sociedades. Neste, as galáxias da supremacia da

comunicação escrita já desvelam, além de aspectos positivos, também negativos vistos nas

sociedades modernas. Nelas já não se permite tanto a transmissão das experiências de “boca

em boca”, ou seja, a decadência, sinônimo aqui de não valorização, e a extinção da tradição

da oralidade são visíveis. Isso se deu porque a dita reprodutibilidade técnica criou outros

paradoxos binários, tais como: “fala e escrita”, ou utilizando a expressão de Durand (2004)

“galáxias Gutenberg”, fase da supremacia da escrita como meio privilegiado de transmissão

dos saberes. Desse modo, a decadência da oralidade também urge debate científico já que

permeia as culturas ditas modernas. Neste caso, tem-se a cultura amazônica ribeirinha como

ícone neste estudo.

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Reitera-se que o narrador precisa alimentar seu imaginário e ainda expressá-lo por

imagens oníricas da cobra grande, do boto vermelho, do pau da careta entre tantas outras

formas imagináveis do seu raciocínio mental. Sobre isso menciona Durand: “[...] imagem

mental (a imagem perceptiva, das lembranças, das ilusões etc.) ou icônica (o figurativo

pintado, desenhado, esculpido e fotografado...)” (DURAND, 2004, p. 5-6), rumam como

objeto de estudo em diversas universidades.

Os narradores em Walter Benjamin são as gentes simples, indefesas e anônimas que

carregam o patrimônio da experiência, de quem as falas foram sequestradas no período pós-

guerra como explicita a citação:

Uma geração que ainda fora à escola em ónibus puxado a cavalos, viu-se indefesa,

numa paisagem em que tudo se alterara exceto as nuvens. Sob elas, perdido num

cenário dominado por forças destruidoras e explosões, o minúsculo e frágil corpo

humano (BENJAMIN, 1992, p. 28).

A cultura dos narradores ribeirinhos da comunidade São José é uma cultura da

oralidade, embora a distância da ilha à capital, Manaus, seja relativamente pequena, isso não

impede as trocas simbólicas dos paradigmas citadinos urbanos da capital sobre/na ilha.

Observam-se costumes distintos, porém comuns em qualquer sociedade. Em relação à

tecnologia, a comunidade se beneficia do telefone móvel celular, da televisão e do aparelho de

som com rádio e/ou cd. Em contrapartida, é “restrito” a eles o uso do telefone fixo, da

internet, do automóvel, de moto, e de outros meios tecnológicos que são utilizados em

Manaus ou em outras cidades ou comunidades próximas.

Não se pode inferir que, se a comunidade dispusesse de maiores usos de tecnologias,

talvez não teria o hábito de contar histórias. Essa hipótese não tem resposta agora, é para um

estudo futuro. No entanto, a lógica dos ribeirinhos insulares desajusta a idéia exposta por

Walter Benjamin, em que aspecto? Pontua-se o sentido da expressão “era da

reprodutibilidade” (BENJAMIN, 1992, p, 77-75). Esta gera outra possibilidade de leitura: se

por um lado o reproduzível sai do anonimato de sua produção artística e passa a ter um

público receptor mais abrangente, por outro aspecto o objeto reproduzido não carrega a

oportunidade intercomunicável das experiências.

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Mas afinal, o reprodutor dessa reprodutibilidade mudou? O que se percebe é a

mudança apenas geográfica dos mundos: o citadino urbano e o insular rural. Neste o narrador

dotado de sua aura, constrói a vida pela prática, a que lhe serve de saber, já o citadino está

mais cercado por um paradigma social moderno e reproduzível. Mas, a ideia aqui não é

separá-los, e sim perceber que há categorias sociais distintas, embora pertençam ao conjunto

das singularidades de uma sociedade.

Essas identidades sociais vistas por duas óticas: pela do citadino, o ribeirinho é

elemento da natureza. E, na contramão dessa imagem; pela outra, o citadino também deseja

ser ribeirinho quando procura afastar-se da capital em busca de outras experiências,

principalmente, as dos espaços permeados por águas e florestas. Aqui cabe compreender

como uma troca de papéis sociais pela necessidade das trocas simbólicas, o que seria o fugere

urbem, proposto pelos árcades.

Então, os imaginários se entrecruzam, traduzidos em acúmulo de experiências para

ambos. A partir de então, ocorre a transfiguração, ou seja, a saída do estado encantatório

desses sujeitos. Mas a transmutação desses mundos ocorre de formas distintas, pois a senha de

retorno do citadino é pela racionalidade reprodutível icônica, ao passo que o ribeirinho utiliza

seu ato devaneante e se permite sonhar, por não estar preso às amarras da reprodutibilidade

técnica “enlatada” e pouco criativa do citadino. Como ainda, o ribeirinho continuará a

conviver em seu mundo e acumulará mais experiências e as compartilhará pelo seu processo

imaginário de reprodutibilidade oral, pois é bastante dinâmico e criativo.

Os narradores ribeirinhos bebem na fonte do diálogo oral, da troca, do saber buscado

nas relações familiares e nas relações estabelecidas socialmente. O que temos atualmente

nesta comunidade de pescadores da Amazônia é uma estirpe de narradores que são

verdadeiros poetas da natureza. As trocas de experiências são concretizadas de diversas

formas: nas pescarias; nas conversas de terreiro; no despescar o peixe da rede; nos banhos de

rio; nas igrejas; nas festas do padroeiro São José; nas brincadeiras na casa de alguém; nos

caminhos de rio, “estivas” construìdas sobre as águas, para ligar a comunidade ao rio

Amazonas; na arte de construir os meios de transporte: a canoa a remo, a canoa rabeta, a

canoa com toldo, a lancha; na plantação das verduras; nos campeonatos de futebol; nos

passeios de barco; entre tantas outras formas que lhes servem de embrião para o onírico, como

faceta do imaginário amazônico.

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A abordagem dada neste debate mergulhou nos estudos de Walter Benjamin, pois ele

constrói o DNA do narrador em seu livro: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política (1992).

O estudioso apresenta o narrador a partir do trabalho de Nikolai Lesskov e afirma o quanto

Lesskov soube configurar em suas obras um narrador de voz sábia, criativa poética contra o

mecanicismo da reprodutibilidade técnica como arte que bebe numa outra fonte, cujo tempo e

o espaço já não acompanham o saber, porque a arte virou produto e não saber. A perspectiva

do narrador de Walter Benjamin inspirou a construção dos narradores da comunidade São

José.

O perfil dos narradores ribeirinhos também se assemelha ao dos narradores de

Nikolai Lesskov (op. cit.), pois são poetas do seu lugar e do seu tempo; o demiurgo elabora

um mundo encantado, cujo universo é o maravilhoso, neste navegam em águas dos sonhos

para contar, encantar, desencantar e permitir que suas histórias imaginárias expressem as

muitas vozes plurais que desejam deslindar a literatura oral da Amazônia.

As fotos desejam apresentar cada entrevistado. Este momento da pesquisa de campo

exige o colocar-se na condição do outro e deixar que o campo seja porta voz da sua própria

voz.

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1.1 Os Narradores

Figura 1 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana) 7

“Sou Alessandra Silva Sales, tenho 24 anos, sou residente na comunidade São José,

Costa da Terra Nova. Sou agricultora e estudante de Letras, vou contar várias histórias.”

“Sou Eduardo Dominico de Oliveira, tenho 57 anos. A partir de 8 anos iniciei a

atividade da pesca.”

“Sou Francisca Neide da Silva Dominica, tenho 55 anos. Quando tem lavoura trabalho

na lida da lavoura. Em março já inicia a cheia e “a água come tudo”. Depois que alaga vou

pescar com o Eduardo.”

7 As fotos da seção Os Narradores são de autoria da pesquisadora e representam os atos da narração.

Figura 2 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

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Figura 3 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome é Milena, tenho 31 anos, minha vida é aqui na comunidade do Careiro, eu

ajudo meu marido na pescaria, não sou muito boa não, mais aqui aculá... a gente vai levando.

A gente sai pra pescá sábado de manhã bem cedo.”

“Sou Sebastião Pinto, sou pescador, tenho 32 anos, e trabalho junto com a Milena.

Mas quem vai conta história pra senhora é a Milena, enquanto eu trabalho nesta malhadeira.”

Figura 4 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Nasci aqui na Terra Nova, tô com 52 anos na comunidade. Meu nome é João Batista

da Silva. Minha novidade de pescaria é..., pesquei muito, ainda pesco, vivo doente da coluna.

A pessoa que pesca debaixo de chuva, sol, com carapanã...”

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Figura 5 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome é Gabriel Ferreira de Sales, tenho 85 anos, moro o tempo todo aqui, nasci

e me criei. Desde muito tempo nois trabalhamos na pesca e na agricultura, essas são mais

fortes. A maioria das pessoa são parente.”

Figura 6 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Sou Francisca Ferreira da Silva. Nasci, me criei, me casei, construí família, nunca saí

daqui. Vou fazer 80 anos.”

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Figura 7 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Eu me chamo Iracema Moraes Moreira. Eu tenho 81 anos, nasci lá encima a donde é

hoje a comunidade São José, eu me criei aqui. Essa comunidade é São Francisco, aqui o local

é Costa da Terra Nova - Careiro da Várzea.”

Figura 8 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome e Vangesti de Sales Alves, tenho 47 anos. Moro na Terra Nova há 15

anos. A minha história é do boto vermelho. O chapéu do boto é daquela árvore de imbaúba.”

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Figura 9 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome é José Vieira, tenho 56 anos, desde 8 anos que eu conheço aqui o Lago

Juanico. No Lago tem a história do Pau da Careta.”

Figura 10 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome é Simoni, sou filha da Sueli. Vou contá a história da cobra do Lago

Juanico... Aqui nós vamos chegar no Juanico, passano pelos igapós. Lá, tá tudo cheio.”

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Figura 11 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome é Edimilson, trabalho transportando o pessoal da Ceasa pra comunidade

São José, muitos anos vivi na comunidade e trabalhei como pescador, conheço tudo, ainda

hoje me considero um pescador.”

Figura 12 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Sou o João Bosco, filho-neto do seu Gabriel. Tenho 39 anos, sou pescador, Aqui é a

marca da última alagação. A marca da alagação sempre fica na árvore.”

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Figura 13 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Sou João de Jesus Sales. Tenho 55 anos, moro na comunidade São José há 35 anos.

Sou agricultor e pescador.”

Figura 14 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome é Maria Sueli Moraes da Silva, sou professora, minha famìlia é de

pescadores. Nasci aqui e criei meus filhos. A minha história é que nas profundezas das águas

tem um encanto.”

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Figura 15 - O narrador (Foto: Edivânia Hosana)

“Meu nome é Ilma Pinto de Sales, tenho 35 anos, fiz o ensino médio incompleto, moro

aqui há 35 anos, sou pescadora, não trabalho na agricultura.”

1.2 “A Comunidade”

1.2.1 O mundo lá dentro cá fora

A Amazônia é considerada comumente como espaço de legitimação do imaginário,

com ribeirinhos imbuídos de uma força divina que vivem a remoldar de significações a vida;

a descortinar sentidos, num processo de criação e (re)ordenação sucessiva. Os espaços

amazônicos expressos por terras, florestas e águas formam uma paisagem singular e mostram

o modo supremo da dinâmica amazônica. Os espaços aquáticos na Amazônia já despertaram o

olhar cientìfico, pelo menos desde os anos quarenta do século passado, de Hilgard O‟ Reilly

Sternberg (1998). E, ainda hoje, despertam interesse de inúmeros pesquisadores de diferentes

competências científicas para compreender esta dinâmica insular. As várzeas encantam os

estudiosos porque constituem cenários sociais próprios da ocupação histórica da Amazônia,

além do mais são importantes pela possibilidade de produção econômica, pela biodiversidade

que expressam os vários modos de interação homem-natureza.

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Há uma determinada produção8 intelectual e científica que elegeu, por duas décadas, a

região do Careiro para observações empíricas, como mostra a tabela:

Autor Título do livro Data

Hilgard O‟Reilly Sternberg A água e o homem na várzea do Careiro 1956

Paulo Petry Deriva de Ictioplankton no Paraná do Rei, Várzea do

Careiro, Amazônia central, Brasil 1989

Alcijara M. Bentes Rodrigues

A produção agropecuária do Careiro da Várzea e sua

contribuição para o abastecimento alimentar de

Manaus 1994

Elizabeth Magalhães de

Figueiredo; Luiz Antonio de Oliveira

Características químicas de solos e ocorrências de

micorrizas vesículo-arbusculares em várzeas de três ilhas do Estado do Amazonas

1994

Claudia María Rios

Velásquez; Neusa Hamada

Citotaxonomia, distribuição espacial e temporal e

Amazônia Central 2000

SEBRAE Diagnóstico sócio-econômico e cadastro empresarial

do Careiro da Várzea (Estudos Municipais) 2000

Mauro Tobias de Azevedo A competitividade da Produção Agrícola do Careiro

da Várzea no mercado de Manaus 2001

Mauro Tobias de Azevedo Vantagens vocacionais da agricultura no Município

do Careiro da Várzea no abastecimento de Manaus 2001

Therezinha J. P. Fraxe Cultura cabocla-ribeirinha: mitos, lendas e

transculturalidade 2004

Janaína Paolucci Sales;

Danilo Fernandes da Silva

Filho

Agricultura familiar de várzea: componentes do

sistema de produção pecuária 2005

Rivelino Soares de Freitas;

Selda Vale da Costa Restrições alimentares na Amazônia 2006

Juan Manuel Herrera Mast;

Marilene Corrêa da Silva

Freitas Bovinocultura na Amazônia 2006

Antônio Carlos Witkoski Terras, florestas e águas de trabalho: os camponeses

amazônicos e as formas de uso de seus recursos 2007

8 Estas informações constam na documentação do Museu Amazônico. In. Pergamum – Sistema Integrado de

Bibliotecas – Relatório de Pesquisa Básica: termo pesquisado Careiro da Várzea, consulta realizada em

13/10/2008. Exceto as obras: Cultura cabocla-ribeirinha: mitos, lendas e transculturalidade; Terras, florestas e águas de trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais (Série: Amazônia: a

terra e o homem). Essas obras constam a fim de enriquecer a pesquisa sobre estudos feitos na/sobre ilha.

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naturais (Série: Amazônia: a terra e o homem)

Harley de Freitas Liberato

Alternativas energéticas para as comunidades

excluídas no Município do Careiro da Várzea-Am: a

comunidade de São José

Sem

data

As produções mostram a trajetória científica já percorrida. Entretanto, esta é uma

outra possibilidade de estudo, por contemplar o universo mítico dos agentes sociais da região.

Além de dar ênfase à literatura oral amazônica por meio das narrativas desses agentes sociais.

Neste estudo, pretende-se desdizer hoje os tantos ditos e retirar as manchas de uma

não-cultura, ou no cerne do debate de que o onírico e o imaginário, em muitos estudos, estão

pintados nas interpretações da história da Amazônia como de menor importância. A

desconstrução destas falsas identidades quer apagar as imagens de uma Amazônia baseada no

exótico; nos estereótipos: o primitivo, o nativo, o indígena, o caboclo, os ribeirinhos, os

amazônidas; na biodiversidade; nas extensas florestas; nos rios de águas doces, assim como

na exuberância da natureza e de sua destruição; nas comunidades prosaicas; nos mitos em

versões forjadas de „paraíso‟ ou de „inferno verde‟. Portanto, o imaginário toma o leito do

debate acadêmico a fim de legitimar seu novo espírito científico por águas correntes não mais

do exótico ou do onírico como delírio. A resposta a estas questões vem das muitas vozes da

comunidade São José, como vozes que negam as certezas já cristalizadas da ciência da Razão,

da Racionalidade, da Verdade.

Nesta abordagem relacional importa compreender o lugar de quem fala ou as

metáforas do “olhar de quem vê”. A capacidade de sentir e escrever, de enxergar os fatos e as

realidades desta Amazônia, pouco ainda vista, cabe a quem dela conhece tão bem. O mesmo

sucede com a área estudada Costa da Terra Nova. Mas o que está no mundo cá dentro, lá de

fora? Talvez o que o outro lá fora ainda não quis nem quer aceitar e é justamente isto que

pretendemos mostrar e analisar.

No livro Miséria do Mundo (2003), Bourdieu expõe a condição indispensável à

postura tanto da pesquisa quanto da metodologia, utilizada no exercìcio da “reflexão-reflexa”

(BOURDIEU, 2003, p. 694), para assim compreender a nossa incompreensão de compreender

o mundo. Logo, o fazer ciência pela porta da consciência, garante, desde logo, um trabalho

crítico a muitas abordagens científicas nas distintas universidades do Brasil.

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O fazer a pesquisa de campo não há manual que ensine, mas então, se não há manual,

o pesquisador bastante atento ao seu objeto constrói seu próprio fazer científico pela busca

constante e, nesta empreitada, toma ciência de que o rigor não pode ser confundido com a

rigidez ao olhar para o contexto eleito para o estudo. Não abdicando do rigor investigativo,

trabalhamos nossa interpretação, usando a sensibilidade artística e tecemos a escrita em

palavras sobre o imaginário da comunidade São José. O olhar recaiu sobre a relação natureza

e sociedade, a qual é bastante percebível na comunidade rural amazônica quando se permite

estudá-la e entendê-la, uma vez que a relação de proximidade com Manaus, a capital do

Estado, dá-se pelas diferenças.

Mais uma vez reforça-se que a idéia deste compor o saber empírico com o teórico

vem dos detalhes de investigação sociológica de Bourdieu, os quais constam nas obras A

profissão do Sociólogo: preliminares epistemológicos (1999), Poder Simbólico (2006),

efetivamente inspiraram esta pesquisa. E, neste aprender com autores, este me ensinou ser

também e, por que não, neste momento, beber na fonte em que bebe o sociólogo a fim de

desvendar o objeto “imaginário”. Então assegura o mesmo autor sobre o procedimento

apropriado do pesquisador, como segue abaixo:

O sociólogo não pode ignorar que é próprio de seu ponto de vista ser o ponto de

vista sobre um ponto de vista. Ele não pode re-produzir o ponto de vista de seu

objeto, e construí-lo como tal, re-situando-o no espaço social, senão a partir deste

ponto de vista muito singular (e, num sentido muito privilegiado) onde deve se

colocar para estar pronto a assumir (em pensamento) todos os pontos de vista possíveis. E é somente à medida que ele é capaz de se objetivar a si mesmo que

pode, ficando no lugar que lhe é inexoravelmente destinado no mundo social,

transportar-se em pensamento ao lugar onde se encontra seu objeto (que é também,

ao mesmo em certa medida, um alter ego e tomar assim seu ponto de vista, isto é,

compreender que se estivesse, como se diz, no seu lugar, ele seria e pensaria, sem

dúvida, como ele. (BOURDIEU, 2003, p.713)

Retomando a ideia “[...] transportar-se em pensamento ao lugar onde se encontra seu

objeto [...]” (op. cit), dessa maneira o pesquisador é capaz de objetivar-se e tomar um

distanciamento necessário para se colocar no lugar do outro e, com propriedade, tornar-se o

autor da narração. A partir dela, construiu-se esta observação etnográfica da comunidade São

José. Estar na condição de narrador onipresente é assegurar os procedimentos metodológicos

aqui descritos. Agora, percebamos o local da pesquisa e, neste convite, vamos (re)viver os

lugares diferentes do lugar de quem fala.

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Estas vozes serão narradas de forma bastante atenta e menos exaustiva e acolhem

“todos os pontos de vista possìveis”. Nesta tarefa de apreciar e deslindar o objeto estabeleceu-

se uma relação de reciprocidade, o movimento intelectual também é dinâmico como é a vida

dos pescadores na comunidade São José.

Nesta composição, as fotos auxiliam a apresentação dos dados da observação

etnográfica, o que nos exige um olhar bastante atento e vigilante, combinado ao fôlego

intelectual necessário para conhecer esta trajetória da pesquisa e o mundo insular dos

ribeirinhos.

1.2.2 O mundo lá fora cá dentro

Representações simbólicas do lugar da fala

A ideia em apresentar o mapa do lugar para os entrevistados não estava nos planos

iniciais do projeto, surgiu por um insigth da pesquisa. Na oportunidade, março de 2007, a

senhora Sueli, professora e pedagoga, orientou a pesquisadora a procurar o senhor Gabriel

Vieira de Sales, a pessoa mais idosa da comunidade. A mediadora desta apresentação foi a

adolescente Suelen, neta da professora Sueli. A chegada da pesquisadora na casa da família

não a surpreendeu, o ritual de apresentação foi respeitado.

Depois do ritual de entrada, o entrevistado, com muita espontaneidade, inicia o

diálogo demonstrando inquietude “sobre o que a senhora está estudando? Acho que já estou

velho, quase não lembro mais de nada...”. Após essas falas, a pesquisadora tranquilizou-o

explanando sobre a importância dos relatos dele para integrar o trabalho por ela realizado.

Então prossegue a entrevista esclarecendo ao senhor Gabriel que ele ficasse à

vontade para contar muitas histórias, frisando que a conversa seria gravada. Tão logo, a

pesquisadora percebe o quanto seu Gabriel já estava envolvido, porque aceitou a entrevista

com grado, como mostram suas palavras “já está gravando?”. Ele iniciou a narração com sua

biografia: “Meu nome é Gabriel Vieira de Sales, tenho 85 anos, sou pescador, já estou

aposentado, cursei o ensino médio”. Em meio aos relatos do senhor Gabriel, a pesquisadora

mostra o mapa do Careiro, então o seu filho rouba a cena e entra no diálogo ao compor, a

partir da visão do mapa, a imagem simbólica como se pode apreciar abaixo. A partir dessa

situação, outros entrevistados também conheceram o mapa e também expressaram suas

“poesias vocais” sobre a ilha. (ZUMTHOR, 2007, p. 12)

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(Mapa do Careiro – Cambixe e Adjacência, Estado do Amazonas9)

9 Mapa elaborado em 1956, pelo geógrafo Hilgard O‟Reilly Sternberg, ilustrado na obra: A Água e o Homem

na Várzea do Careiro, 1998, de sua autoria.

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O lugar é um “Peixe-Boi, Pirarucu ou Tambaqui”

Acho a imagem parecida com um peixe boi ou pirarucu (Senhor João de Sales, 39

anos, filho e neto do senhor Gabriel, pescador)

Esta imagem representa um tambaqui, pra nóis é um peixe raro na comunidade. Nóis

somos diferentes como o tambaqui e o pirarucu pelo nosso modo de vida (Francisco

Batista Alves, 48 anos, agente ambiental)

Estilo de um peixe nosso lugar. (Edimilson Domingues de Oliveira, 56 anos,

pescador)

Por essas falas, a pesquisadora percebeu a importância em mostrar o mapa aos

moradores. A apreciação do mapa despertou espanto, surpresa e aquisição de conhecimentos

entre a pesquisadora e os ribeirinhos, sobretudo, proporcionou a configuração dessas

representações. O mundo insular está representado de forma simbólica pelo peixe. Logo a

relação de comparação homem-peixe se justifica pelos relatos acima. Logo, compreende-se

que esta imagem de que o homem está na água e ela está no homem prova uma relação de

interação muito forte nesta comunidade.

Aprofundando mais esta idéia de que o lugar da fala é o da água, Bachelard nos

explica: “[...] a água nos aparecerá como ser total: tem um corpo, uma alma, uma voz. Mais

que nenhum outro elemento talvez, a água é uma realidade poética completa”.

(BACHELARD, 1989, p.17). Por sua vez, se a água é corpo, mente, poesia e realidade, o

homem também é, visto que a sua condição lhe possibilita essa transmutação em devaneio. E,

mais ainda, a água doce é feminina, ela tem um útero materno, sua fonte. Portanto o homem

precisa voltar ao seu útero e nele alimentar seu potencial onírico de forma dinâmica. Sem a

água mãe, o filho não sobrevive, assim como também os peixes e o homem.

Configuração da área de estudo

O Careiro da Várzea, desmembrado do Município do Careiro, tem seus limites assim

definidos: com o Município de Autazes; com o Município do Careiro; Com o Município de

Manaquiri; com o Município de Iranduba; com o Município de Itacoatiara; com o Município

de Manaus.

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A região pode ser também considerada lacustre porque há muitos lagos por toda a

ilha. O Município do Careiro da Várzea foi criado, segundo Beltrão10

, “pela lei de 1828 de 30

de dezembro de 1987, sede da antiga Vila do Careiro. Dista da Capital do Estado 22 km em

linha reta”.

Itinerário até a comunidade São José

Para este percurso, em pensamento, o ponto de referência, ou seja, “de partida” é o

porto da Ceasa, na capital. O acesso implica viajar em um dos transportes aquáticos por

caminhos de rio. Para a comunidade São José tem-se as opções: no motor rabeta, voadeira,

lancha, barco de linha (passa duas vezes ao dia na comunidade São José), ou canoa a remo.

Para o Careiro da Várzea, as opções são: balsa, motor de rabeta, lancha, barco de linha ou

voadeira.

Neste itinerário à comunidade, uma parada para apreciar o fenômeno do Encontro

das Águas, para então navegar pelo rio Solimões, quando já se vê, no horizonte, a paisagem

indescritìvel da “ilha do Careiro”, uma imensidão de florestas de terra firme, florestas de

várzea, rios, casas, lagos, numa combinação natureza e sociedade.

Nesta imensidão paisagística, os olhos atentos da pesquisadora veem-se diante de

tamanha beleza; os olhos quase não alcançam a longa faixa de terras caídas que, impactadas

pelas águas, formam, como se vê no mapa, a Costa da Terra Nova. A larga extensão de águas

se sobrepõe à quantidade de terras. Porém, o fenômeno mais curioso é o balanço das águas

dos vários rios: o Negro, o Solimões, o Amazonas e Paraná, que desnudam a roupagem da

floresta e fertilizam as terras. A relação configura o pacto nupcial em que “o elemento de cá

precisa do de lá” e vice-versa. Essas forças que se unem formam uma vasta composição

específica: florestas, animais, casas, rios, lagos, os quais são utilizadas pelos pesquisadores,

demonstrando as especificidades da cultura amazônica desta região.

A Terra Nova compreende uma área de aproximadamente 20 km de costa na ilha do

Careiro. A ela pertencem as localidades: o Rebojo e a Costa, o Paraná da ilha, a região

conhecida como Marimba. Vejamos as subdivisões elencadas:

10 BELTRÃO, Otto Gilberto de Arruda. Realidade do Amazonas. vol. Amazonas. (Obra não publicada). In.

acervo do Museu Amazônico. S/d

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Na Costa e o Rebojo: localizam-se as comunidades de São José, São Francisco e

Nossa Senhora da Conceição.

No Paraná da Terra Nova ou Paraná da ilha: localizam-se as comunidades de Santa

Luzia, Santa Rita, Nossa Senhora de Nazaré e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Na Marimba: localiza-se a comunidade de Nossa Senhora Aparecida.

Geograficamente esta é a localização da região entre a costa do Rebojo e a costa da

Terra Nova, que se trata de uma área do distrito do Municìpio do Careiro da Várzea, “ilha do

Careiro”. Para fins desta pesquisa, recortamos, para a pesquisa de campo, a Costa da Terra

Nova, onde está localizada a comunidade São José.

1.2.3 Cá dentro: uma comunidade de ribeirinho-pescadores

A história e a dinâmica da vida na comunidade São José serão apresentadas a seguir

e, para isto, vamos utilizar as narrativas dos entrevistados, num trabalho de entrevista meio

“prosa” meio “entrevista”. As fotos auxiliam esta descrição. A primeira foto mostra o centro

da comunidade. O mastro e os enfeites simbolizam os desejos coletivos, os sonhos das gentes

insulares e sua identidade.

Vê-se na igreja e nas casas a decoração para os festejos do padroeiro São José. A foto

foi registrada em 19 de março de 2007. O festejo ao santo acontece todos os anos.

Fig. 16: Festejo do Padroeiro São José (Foto: Edivânia Hosana)

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Esta outra foto representa geograficamente a extensão de várzea, sendo a parte mais

central da comunidade, onde realizam o cultivo da terra e a plantação de legumes e verduras

na época da seca. Nesta ocasião, nota-se que a água já sinalizava o tempo de colheita.

Fig. 17: Terras de Várzea (Foto: Edivânia Hosana)

As casas desta imagem estão atrás da extensão de terras de várzea vistas

anteriormente. A maioria dos pescadores, ocupantes desta área da comunidade, cultivam as

terras de várzea no plantio de verduras e legumes para venda em pequena escala e consumo

familiar e comunitário.

Fig. 18: Ofício do Pescador (Foto: Edivânia Hosana)

Esta outra imagem compõe-se de igreja, campo de futebol e casas de moradores,

inclusive, algumas residências são de pessoas que nasceram na comunidade, mas moram em

Manaus e retornam somente nos finais de semana para lazer. Em termos de limites

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geográficos, mesmo não sendo visível a demarcação territorial, esta imagem representa o final

das ocupações dos ribeirinhos da comunidade São José e a divisa com a outra comunidade

denominada São Francisco.

Fig. 19: Capela Nossa Senhora de Nazaré (Foto: Edivânia Hosana)

Conclui-se, a partir das descrições, que a comunidade ocupa uma extensão pequena da

ilha em que os núcleos das igrejas católicas demarcam o início da comunidade.

A explicação para o nome Comunidade São José veio também pelas palavras do

senhor Gabriel Ferreira (de 85 anos, pescador, já aposentado, cursou o ensino médio) e de

outros entrevistados. Mas a pesquisa de campo é sempre um novo. Meses depois do primeiro

contato, retornei à comunidade para outra entrevista com o senhor Gabriel. A minha chegada

surpreendeu-o, quando proferiu “Entre, como vai? Fazia tempo que a senhora não vinha.

Sente, estou meio adoentado”. No ambiente familiar, crianças brincavam de carrinho e

tentavam pegar o gravador da pesquisadora, neste contexto muito familiar, em meio ao

barulho da televisão ligada, quando o senhor Gabriel ordena “minino vão brincar pra lá que o

vovô tá conversando!”. Notei que a voz do senhor Gabriel refletia o seu estado “doentio”. A

conversa iniciou-se pelo estado de saúde; depois o diálogo fluiu, porque o senhor Gabriel

roubou a cena quando nos apresentou a história da comunidade São José. Os tópicos a seguir

são trechos de suas falas, às quais passo a analisar:

“Antes era Rebojo”

A expressão “era Rebojo” e “não era comunidade” sugere o não reconhecimento dos

ribeirinhos como categoria “comunidade”. Adentra-se aqui numa discussão complexa sobre a

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categoria comunidade. Diga-se, inclusive, inquietante para muitos estudiosos. Vamos agora

abrir espaço teórico para refletir e pontuar algumas questões sobre esta categoria.

Moro o tempo todo, nasci e me criei aqui. A história da comunidade não era

comunidade, de uma certa parte pra lá era Rebojo, aí onde mora a Maria do Geraldo,

aí era conhecido como Ponta das Mangueiras, pra cá era Ponta da Terra Nova, pra lá

era Costa do Cacau Grande, mais pra lá era Rebojo (Sr. Gabriel).

Conforme Durkheim (1999) nos explica: a idéia de “solidariedade mecânica” é

observada, porque significa dizer que os indivíduos diferem muito pouco uns dos outros.

Neste caso, o lugar de vivência “era o Rebojo”, espaço de garantia dessas semelhanças.

Completando, ainda, o não reconhecimento “antes não era comunidade” mostra a pouca

relação com a sociedade Manaus, o que infere o desejo dos membros em resgatar na memória

o quanto viviam em solidariedade mecânica.

“Hoje é comunidade”

A memória do senhor Gabriel infere o quanto as relações com a sociedade, digo,

capital, conduziram a forma de pensar e o modo de vida das gentes. Essas transformações

estão no relato:

Hoje essa comunidade é chamada São José, porque é o nome da igreja, aí a

comunidade ficou com esse nome. Desde muitos tempos nois trabalhamos na pesca

e na agricultura. Essas são mais fortes. A maioria das pessoas são parentes (senhor

Gabriel).

O resgate da memória sugere pensar sobre a idéia de Durkheim (1999), quando este

explica que a organização tem como natureza comunal a atividade econômica, a religião e o

parentesco. Na comunidade São José há predominância do catolicismo. Em contrapartida há

conflitos devido a existência de um tronco de igreja evangélica instalada recentemente e

bastante organizada, embora com poucos membros. A esse conjunto é o que Durkheim

denomina de “sistema” (1999, p. 50). Logo, a solidariedade dá-se pela economia principal da

pesca e da agricultura, pelo parentesco e pela religião. Esses são notórios e visíveis.

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“Agora tem gente de fora”

A idéia contida nesta fala sugere pensar sobre o comunitarismo consoante de

Bauman (2001). A sensação de que a vida na comunidade vai garantir uma identidade é o que

possivelmente despertou interesse de pessoas de fora, como se nota na fala do senhor Gabriel

“Agora tem gente de fora”. O não ter vontade de morar em Manaus reforça a lógica aqui

exposta. O viver num espaço-ambiente em que os modos de vida mais rotinizados, os

costumes cultivados, atraem adeptos desta lógica por perceberem a segurança e permanência

dos atores neste mesmo lugar. Pela ótica contrária também resguarda a saída, principalmente,

dos que não desejam abrir mão desta lógica. Ainda que os que foram tenha sido em número

desconsiderável em relação aos que ficaram.

Agora tem gente de fora. A maioria dos moradores nasceram e permanecem aqui.

Elas não tem vontade de morar em Manaus. Os que foram embora começou devido

as alagação (Sr. Gabriel).

“Somos comunidade pela nossa união”

O termo “união” pode ser pensado mais significativamente por meio dos estudos de

Weber (1999). Para o autor as formas de ajuste social estão na união de interesses, essa

relação é denominada de “relação associativa”. Nas palavras de Weber a ”relação associativa”

se distingue da “relação comunitária”, esta dá-se pelo sentimento depreendido por cada

membro, já aquela é o ajuste pela união, ou seja, acordo racional. Vejamos como relatam os

entrevistados:

Somos uma comunidade pela nossa união, somos uma classe só, somos interioranos.

O nome ribeirinho, nos colocaram é um nome imposto, porque moramos na beira

do rio. Caboclo todos nós somos, porque somos amazônicos, pode ser da cidade, do

interior, todos somos amazônicos. (senhor Gabriel Sales)

Somos comunidade porque se um vai fazer uma coisa combina com todo mundo. (Senhora Francisca Dominica, 55 anos, agricultora e pescadora)

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Insere-se também neste debate sobre a “categoria comunidade” os estudos de Charles

Wagley em Uma Comunidade Amazônica, capítulo de mesmo título, quando expõe as

características da população rural do Baixo Amazonas, como consta:

É nas suas comunidades que os habitantes de uma região ganham a vida, educam os

filhos, levam uma vida familiar, agrupam-se em associações, adoram seus deuses,

têm suas superstições e seus tabus e são movidos pelos valores e incentivos de suas

determinadas culturas. Na comunidade a economia, a religião, a política e outros

aspectos de uma cultura parecem interligados e formam parte de um sistema geral de

cultura, tal como o são na realidade. Todas as comunidades de uma área

compartilham a herança cultural da região e cada uma delas é uma manifestação

local das possíveis interpretações de padrões e instituições regionais. Qualquer

comunidade da Amazônia brasileira conviria aos nossos propósitos, como

laboratório de estudos de uma cultura regional e da forma pela qual ela é preservada

por um grupo de habitantes da Amazônia. (WAGLEY, 1988, p. 44)

Considerando que o trabalho de campo de C. Wagley ocorreu há muitos anos, de

junho a setembro de 1948, esta demarcação temporal nada interfere e não se pode ignorá-la

como obra de referência. Visto que suas idéias permanecem válidas e servem para

compreender a comunidade São José e o modo de pensar e agir dos integrantes dela como

singularidades na Amazônia.

Outra obra de referência também inscrita nesta discussão, Santos e Visagens. Este

clássico aborda a temática aqui exposta: “Não é por acaso que as atuais cidades da Amazônia

estão situadas nas confluências e encontros de cursos d‟água”. Noutra passagem: “Os rios,

ontem e hoje, servem de “estradas” para penetrar a floresta e é em suas margens que se vão

fixar os escassos povoados” (GALVÃO, 1976, p. 11). Por esse trecho, conclui-se o quanto a

dinâmica da vida, na época datada, ainda é a mesma de hoje.

Pensando a comunidade São José, compreender e aceitar a sua própria lógica e

dinâmica tanto onírica quanto social é o mais coerente. Porque o mundo cá dentro está lá

fora, e o mundo lá fora está cá dentro, é um movimento dinâmico, ou melhor, porque essa

relação da comunidade com a capital constitui rede de relações sociais – sociedade -, isto é, a

comunidade não é um “isolamento”, pois a proximidade com a capital se dá por suas

diferenças e não por suas igualdades exigidas, muitas vezes. À guisa, o mundo dos ditos

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ribeirinhos amazônicos não está em desarticulação, nem com a capital, nem com a Amazônia,

nem com o Brasil, nem com o mundo.

1.2.4 Categorias de Identidade

O Falso dilema: Ribeirinhos ou Caboclos?

Outra questão relevante diz respeito ao uso dos termos “ribeirinhos” e “caboclos”,

considerando as narrativas dos entrevistados, eles se autodenominam por “ribeirinhos,

caboclos” ou mesmo “caboclos-ribeirinhos”. Sendo que o uso do primeiro é reflexivamente

entendido por eles como imposição geográfica da sociedade, justificado por muitas causas,

como percebemos em seus discursos:

Ribeirinho são os que vivem na várzea, porque a gente só faz começar nunca

termina. A água vem pelos dois lados tanto pela frente quanto por trais. (Sra.

Francisca)

Somos ribeirinho porque moramos no interior e na água. (Sr. João Bosco)

Somos uma classe só, somos interioranos. O nome ribeirinho nos colocaram, é

imposto, porque moramos na beira do rio. Caboclo todos nós somos, porque somos

amazônicos, pode ser da cidade, do interior, todos somos amazônicos. (Sr. Gabriel)

Somos caboclo porque vivemos no interior e ribeirinhos porque veve na várzea

alagante (Sr. Francisco Batista Alves, 48 anos, agente ambiental).

Os termos: água, interior, várzea alagante, beira do rio, amazônicos remetem à idéia

de lugar; ou seja, essa construção de identidade tem como fator a ressaltar o lugar a que

pertence o mundo das águas e são “eventos diferentes” que ocorrem neste tempo e espaço.

Logo o tempo se consagra como dinâmico e o lugar estático. Mas, sobretudo, o dinâmico se

sobressai pela relação de dependência com a capital do Amazonas, Manaus. As relações

sociais são “geografias imaginárias” (SAID, 1990, apud HALL, 2002, p.70-71). A partir

disso, infere-se que, na Amazônia, o fenômeno da “compressão espaço-tempo e identidade” é

visível. Então o rio que separa a vida urbana amazônica da vida ribeirinha é mais imaginário

que físico, logo as ambivalências “ribeirinhos” e “caboclos”, “comunidade e sociedade”

precisam encontrar seu leito indivisível por meio da “compressão”, mediada pelo espaço-

tempo e ambas convergem para configurar a cultura amazônica.

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1.2.5 O mundo das águas

Inicialmente vamos nos reportar à analise do livro O Rio comanda a vida, de

Leandro Tocantins, lançado em 1956, um ano antes do lançamento de Santos e Visagens

(1957), de Eduardo Galvão. No clássico O Rio comanda a vida discutem-se muitas questões,

mas para esta análise recorta-se a idéia da prevalência do meio físico do quadro natural.

Sabemos hoje e também disse Tocantins que nossas estradas na Amazônia são por rios, pois

as águas cobrem grande parte do território amazônico.

No capítulo, também intitulado pelo mesmo nome da obra, o autor menciona:

“Diante disso, entrevê-se uns laivos de determinismo, quase a confirmar os exageros da

doutrina defendida por Taine, Buckle e Huntington, porque o homem, diante do cenário

grande demais para a sua pequenez, sente-se impotente, inapto [...]” (TOCANTINS, 2000, p.

276); em outra passagem novamente afirma: “[...] a água chega a ser o fiador dos destinos

humanos”.

A idéia exposta por Tocantins de que o determinismo está presente na Amazônia

deve ser visto com certa cautela, uma vez que as narrativas dos ribeirinhos da comunidade

São José mostram a atuação recíproca natureza e sociedade. Isto fica mais claro no próximo

tópico desta discussão pela análise dos regimes das águas.

Os regimes das águas

Considerando os discursos dos ribeirinhos e o entendimento deles sobre o regime das

águas, interessa-nos expor o quanto este imaginário registra sua própria lógica até na

elaboração dos conceitos e definições sobre a dinâmica da vida diante da presença do

elemento água.

Como ponto de partida, elegemos o livro Terras, Florestas e Águas de Trabalho: os

camponeses amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais, de Antônio Carlos

Witkoski, (2007). Nesta obra, especificamente, quando o autor aborda sobre o “regime da

inundação” emprega os termos “enchente/cheia e vazante/seca” e “aponta o calendário

hidrológico do Rio Solimões/Amazonas” (WITKOSKI, 2007, p.115-116). Em comparação ao

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calendário dos ribeirinhos, temos apenas três termos para designar os regimes. Desse modo,

cabe entendê-los melhor a seguir.

Considerando a lógica dos ribeirinhos da comunidade de pescadores São José e

diferenciando-a da exposta por Witkoski (2007), temos três regimes no lugar, assim

denominados: Alagação (muita água, é extraordinário), alagado, enchente, alagamento e

cheia (ápice das águas); Seca[é] (baixa das águas) repiquete ou mancada (transição de um

regime para outro, ou seja, o rio para); Enchendo (rio pegando água). Considerando a fala

do pescador, João Lúcio Rodrigues de Oliveira, em conversa-entrevista, o saber ribeirinho

tem explicações para os fenômenos geográficos, neste caso, para os regimes. Esse

conhecimento acumulado vem da prática da pesca conjugada à relação recíproca com a

natureza, o que desenha a sua lógica imaginária, como consta:

“Regime Enchendo”

Neste regime, conforme explica a professora Sueli e o pescador João Lúcio, as terras

se conjugam com a chegada mansa das águas: “as terras desaparecem e vem a água podre”. O

apodrecimento significa o anúncio de um novo tempo e essa passagem é mais sentida que

previsível, porque a natureza tem sua própria lógica.

Nós que moramos aqui bem sabemos qui a natureza não é fácil de explicar, nós

sentimos porque as plantas apodrecem tudo, as águas ficam escuras e podres, parece

um verde bem escuro (Sra. Sueli).

O rio enchendo significa as terras estão sumindo, aparece muito peixe (Sr. João

Lúcio).

“Regime da cheia ou enchente”

“Andá molhado”: percebe-se que os termos: cheia, enchente, alagado, alagamento

são cadeias semânticas que inferem as representações: cheia, fartura, as árvores e o capim

exercem a função de termômetro, mostrando proporção das chuvas neste regime.

Quando tá tudo alagado temos, que andá molhado, percebemos a enchente pelas

árvores e o capim, pelo nível da água aí fazemos as marca nas árvores, as veiz nem

precisa (Sr. Gabriel).

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Acho que a branca é a maioria, só que na cheia elas são unidas (Sr. Gabriel).

O lago Juanico era farto, eu escolhia o peixe, pescava de zarpão, tarrafa e anzol, era

para o sustento, vendia um pouco e dava para os vizinhos (Sr. Gabriel).

Na época da cheia a cobra não acorda (Sra. Simoni).

Depois que não tem terra e planta aì pode dizer “tá alagado tudo” (Sr. João Lúcio).

A água da cheia nos propicia não varrermos o terreiro, nem roçarmos, trabalhamos

menos (Sra. Ilma Sales).

Na enchente temos mais fartura, hoje o peixe tá diminuindo porque a pesca de

malhadeira degrada os peixe, e não deixa eles crescê (Sr. Gabriel).

Na enchente a floresta ainda tá bonita, ela se transforma em lago de pesca, porque a

vida é essa (Sr. Gabriel).

A floresta na época da enchente são terras cobertas de água (Sr. Francisco Batista

Alves).

Nossa vida aqui depende das águas porque temos enchente, ri piqueti (parada das

águas), vazante e seca (Sr. Gabriel).

Quando chega a cheia parece tudo „branco areiado‟, porque clareia tudo (Sra. Sueli).

A memória resgata o tempo psicológico que é mais sentido a previsível. A cheia é o

momento do sono profundo, da hibernação da cobra que dorme no homem amazônico. A

cólera não se impõe devido ao estado de satisfação. As causas prováveis da cólera, ou seja,

para a limitação dos recursos aquáticos perpassam a crise da razão social e não da Amazônia

como natureza.

“Regime da Alagação”

“Tudo tem que ser alto, até a rede”. Este é um regime imprevisível e, embora seja de

fartura, também é de “aperreio”, como explanam os pescadores:

Em algumas épocas a alagação era grande, tudo tem que ser alto, até a rede. É o pior

aperreio, vivemos mais molhado que enxuto, a canoa é tudo, porque na época da

cheia ela passa em tudo que é lugar, a canoa é o transporte nosso. Na enchente a

água vem pra encher tudo, então a preta briga com a branca, aí a preta é empurrada

(Sr. Gabriel).

Rapaiz a alagação vai ser grande. (Sr. João Lúcio)

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Entende-se por “alagação”, uma cheia atìpica, e é possível senti-la, a partir do

momento em que não tem mais planta. A não presença de “plantas” mostra que a subida das

águas foi ou será maior que a normal. A carga semântica do vocativo “rapaiz”, é

performática, ou seja, está na voz e não na palavra em si, pois está expresso em hipérbole,

justamente o tom da voz não quer só chamar o outro, mas também compartilhar a expectativa

imaginária coletiva de muita água, de fartura de pescado e de renda melhor para a família .

Neste regime o mundo é aéreo e não terrestre. O homem é meio Narciso como completa o

trecho: “Diante das águas, Narciso tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade, a

revelação, sobretudo, de sua realidade e de sua idealidade” (BACHELARD, 1989, p.25).

“Regime da Seca”

“A floresta é floresta”. Neste caso os espaços estão demarcados e a relação homem e

natureza é bastante percebível, justamente porque a floresta já não permite mais ser o lago de

pesca. Vê-se que neste regime as águas param, isto é, o que o senhor João Lúcio denomina de

“tá secando”, comumente é o fenômeno da “vazante”, segundo estudos de Witkoski (2007).

Mas, pelo prisma de Bachelard (1989), o espelho é a senha que permite o acesso aos vários

regimes, logo o regime da seca é outra condição de labor da vida que proporciona a saída do

estado narcísico, como mostram as falas:

A floresta enquanto ainda tem terra é a floresta, depois que alaga é o igapó. “Não

falamos vazante, falamos o rio tá secando. (Sr. João Lúcio)

Na época da seca, seca o lago da cobra, aí a cobra fica doida e ataca mais. (Sra. Simoni)

Quando tem terra seca, temos mais jogo e festa (Sra. Ilma Sales)

A água vai embora (Sra. Sueli)

A seca representa a época que as terras saem, aì enxergamos tudo fica „marrom‟.

(Sra. Sueli)

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“O Inverno e o Verão”

Para o ribeirinho é bastante difícil precisar as estações do inverno e do verão na

Amazônia, devido aos impactos do homem sobre o seu próprio meio. Em entrevista, quando a

pesquisadora pergunta sobre as estações do ano, o senhor João Lúcio explica-nos o seguinte:

“Inverno e Verão é difìcil sabê, o mundo tá tão mudado. A senhora deve sabê, né? O negócio

é que o homem não tá cuidando da natureza, então tudo muda, até isso”. Ainda completa a

ideia, de forma colorida, a senhora Sueli, quando expressou sobre as estações do ano, com a

seguinte metáfora “O verão é quente, tudo fica amarelo e laranja, bastante chamativo e o

inverno parece com a cor cinza-azul-escuro, é como eu entendo, que nasci e me criei aqui”. O

imaginário do ribeirinho se desnuda para compor o lugar sob suas muitas facetas. A partir das

vozes dos ribeirinhos, afere-se o seguinte:

[...] a voz que é consciência; que será habitada pelas palavras, mas que

verdadeiramente não fala nem pensa; que simplesmente trabalha „por nada dizer‟,

petrificando fonemas, e para quem o discurso pronunciado tem lugar quando lhe

toca a razão de ser. (ZUMTHOR, 1997, p.14)

A “razão de ser” é construída num jogo de relações, cujo sentido, o percebido e o

apreendido alimentam o homem amazônico a expressar o seu próprio SER. A fim de mostrar

essa interpretação do devaneio poético, conclui-se a ilustração do regime das águas como

expressão estética dessas vozes imaginárias das águas. As cores foram expressas pela

professora Maria Sueli Moraes da Silva.

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Regimes do Imaginário das Águas

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O regime diurno e noturno das águas

Partindo dos estudos de Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do

Imaginário (2002), no livro primeiro: O Regime Diurno da imagem e no livro segundo: O

Regime Noturno da imagem, o autor explana que por atitudes é possível chegar às estruturas

mais coletivas, ou nas palavras do próprio “estruturas mais gerais de representação”

(DURAND, 2002, p.190). Entende-se por “atitudes” a construção de um saber em que o

mágico e o técnico se juntam e compõem a estrutura social.

“O regime noturno das águas”

As águas da noite é bom pra pescá, elas traz tranquilidade, pescávamos no passado

de dentro de casa. Hoje nós penamos pra pescá um peixe até pro almoço. (Sr.

Gabriel)

As águas da noite são muita calmaria. Trais tranquilidade, deixa mais confortável.

Na cheia também é calmaria e tem mais descontrole porque o medo aumenta. (Sr.

Francisco Batista Alves)

Perigo tem muitos bichos, cobra, jacaré, a cobra grande – O pescador é o animal

mais corajoso. O homem tem muita coragem, é a escuridão. A noite os bichos são

mais selvagens. (Sr. João Lúcio Rodrigues de Oliveira)

As águas da noite são silenciosas. Na cheia eu me sinto mais calma, só o canto dos

bichos, jacaré que esturra. As águas do rebojo amedrontam porque se fizer zuada a

água se agita, faz funil. O mistério eu não sei. Eu acho que é a força da natureza.

Algumas pessoas já morreram quando a terra sentou na água e vai embora. (Sra.

Ilma Pinto de Sales)

As águas da noite amedrontam porque não sabemos o que tem no fundo (Sr. João

Bosco)

Analisando as palavras a partir dos estudos de Bachelard, A água e os sonhos (1989),

percebe-se, nesse regime da escuridão, muitas imagens, tais como: silenciosas, calmas,

amedrontadoras, escuras, confortáveis. Em contrapartida, nesse regime da escuridão, temos as

imagens do homem medroso, do homem animal corajoso. Essas “ambivalências” marcam a

“dominante da flagelação”. Logo, a ruptura as ambivalências ocorre pelo ato do

enfrentamento, ou cólera, pois esse poder lhe devolve o seu demiurgo11

. Assim o homem

também identifica-se como parte integrante da natureza, o qual dela retira o alimento;

portanto o alimento é a metáfora da vitória, da alegria (BACHELARD, 1989, p. 157-192).

11 O termo “demiurgo” será utilizado no sentido de estado de criação onìrica.

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Sobre o exposto, Bachelard denomina de “complexo de Swinburne”, isto é, “Um

complexo é sempre a articulação de uma ambivalência. Em torno de um complexo, a alegria e

a dor estão sempre prontas a trocar ao seu ardor [...]”. E, reitera: “Mas são as ambivalências

que trabalham a vontade de poder que comandam tudo” (BACHELARD, 1989, p. 174). Neste

caso, a vontade de poder está no enfrentamento do homem, pois mesmo não sabendo o que

tem no fundo das águas, ele a descobre, a desvenda, a desvela, porque é uma força corajosa

que emana da sua natureza.

“O regime diurno das águas”

As águas são evoluídas e movimentam, são mais correntes. Eu me identifico com o

movimento da água. Ele (peixe) está movimentando a água e tirando o alimento na

época da enchente. Na cheia de dia tem mais fartura de peixe para o pescador e para o agricultor é prejuízo. (Sr. Francisco Batista Alves)

Durante o dia são mais calmas porque podemos prever o que acontece, por exemplo

se livrar de um jacaré e de uma cobra. (Sr. João Lúcio Rodrigues de Oliveira)

As águas diurnas são mais agitadas, elas ficam mais „banzeirentas‟. Elas agitadas

deixam o pescador nervoso Quando se forma tempo, as águas diurnas amedrontam.

(Sra. Ilma Pinto de Sales)

As águas do dia nós percebemos quando o rio seca ou enche. (Sr. Gabriel)

As águas diurnas não são perigosas porque a gente tá vendo o que se passa . (Sr.

João Bosco)

O estado demiurgo é o da previsibilidade, porque as águas diurnas são claras, calmas

e a noção do que se passa é controlável. Entretanto as águas banzeirentas também visitam o

homem demiurgo; a cólera se revolta, devido aos impactos causados pelo homem ao meio

ambiente como uma rede de relações.

Os dois regimes são o fluxo do imaginário, compreendido em atos práticos, tais

como: não é somente um ato individual, mas também coletivo; não é somente um ato mágico,

mas também técnico; não é somente um ato racional, mas também onírico; não é somente um

ato individual, mas também coletivo. Os regimes não são díspares, mas se completam,

comprovado pelo ato de tecer a malhadeira, como explica o pescador Sebastião da Silva

Pinto, de 32 anos: “A malhadeira precisa ser sempre bem malhada”. O “sempre” explicita que

as tramas precisam de união. Logo, o ato mágico do tecer a malhadeira se completa pelo ato

prático da captura do peixe. Neste dia, a pesquisadora conheceu o jovem casal da foto (fig.

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20). Quando surpreendidos pela pergunta: “Que histórias vocês tem para contar?”, o direito de

expressar o imaginário diurno-noturno foi dado à jovem senhora Milena pelo esposo. Ele

ressaltou que eles estavam tramando a malhadeira e que ela teceria as histórias de pescaria.

Mas esta menção pretende frisar que a foto abaixo não está no trabalho como técnica de

escrita, mas para respaldar a ideia dos atos mágicos e técnicos dos pescadores.

Fig. 20: Ato Mágico e Técnico (Foto: Edivânia Hosana)

A linguagem onírica do mundo das águas

O imaginário das águas também apresenta-se pela riqueza semântica: águas pretas,

brancas, encontro das águas, noite, dia, alagação, alagado, repiquete, se[é]ca, começo, terras

de várzea, floresta, rebojo, verduras, lavoura, pesca, pescado, nomes dos apetrechos de pesca,

costa (localização), lagos, feras das águas, Paraná, não só estas como também outras palavras

constituem o rico vocabulário dos ribeirinhos pescadores da comunidade São José e serão

contempladas pela sua riqueza semântica. E isso nos importa estudar porque a idéia é perceber

o quanto a conotação é a dominante no imaginário das águas, porque constrói significados

próprios das gentes da cultura amazônica. A conotação não pode ser explicada pela precisão

do dicionário de uma língua, mas, sobretudo, pelo sistema sociocultural imaginário que dela

faz uso (DURAND, 2004).

Da comunidade São José, vista de frente, tem-se a imagem, no horizonte infinito, do

Rio Amazonas, por ele estradas se formam, percorridas pelas balsas que passam carregadas de

carretas que transportam contêineres com diversos produtos, além dos barcos que

transportam pessoas e mercadorias do interior para a capital e vice-versa, canoas com

pescadores em suas pescarias, navios de passageiros, navios petroleiros, motores rabetinha

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transportando famílias, mantimentos, gentes de sonhos e imaginários, de memórias. Tudo isso

constitui a paisagem, o lugar, o cotidiano, a vida dos ribeirinhos. Neste cá e lá está o rio, nem

de longe, nem de perto, meio rural, meio urbano, e nem por isso os impede de construir rede

de relações com a capital.

Mas, apesar da proximidade, as famílias ribeirinhas vivem em união como relatou a

senhora Francisca. Deste lado de dentro da comunidade têm-se as moradias dos ribeirinhos.

As casas formam dois conjuntos. A imagem abaixo mostra um dos conjuntos. Atrás da fileira

de casas está o rio Amazonas. Na outra fileira, como mostra a próxima imagem, as casas

fazem fundos com o lago Juanico. Todas as casas são suspensas, atendendo aos ciclos das

águas, como mostra:

Fig. 21: Moradias dos Ribeirinhos (Foto: Edivânia Hosana)

As casas são dispostas lado a lado, principalmente, formando o conjunto de moradias

por parentesco. Atrás da fileira destas está o rio Amazonas. Na frente delas está outra fileira

de casas. O modelo arquitetônico possui o telhado alto, varanda, janelas com ferrolhos e

portas com fechadura, a maioria das casas tem uma cozinha com pia, um quarto, no máximo

dois, senão formando um único vão. Ainda, pelo lado de fora, ao lado da cozinha tem o

banheiro que não é usado para banho, só para as necessidades fisiológicas. Já embaixo da

casa, há o banheiro ao ar livre para se banhar. O detalhe é que ribeirinho banha-se trajando

vestimenta, por exemplo: o homem de calção e a mulher de sutiã de praia e short. Após o

ritual do banho, o corpo é envolvido e protegido por uma toalha e retira-se a roupa molhada

para estender. O ritual do banho é concluído dentro de casa com a colocação da roupa limpa e

seca.

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A mobília compreende o essencial como: geladeira, mesa, fogão, televisor, rádio,

sofá e um balde grande para armazenar água para beber. Embaixo da casa é o lugar para

guardar apetrechos de pesca, a canoa, o motor, isopor para armazenar o pescado, uma caixa

d‟água que serve como depósito para água do banho, além de espaço reservado para o ritual

do banho de canequinha ao ar livre, também conhecido como banho de cuia

Fig. 22: Moradias dos Ribeirinhos (Foto: Edivânia Hosana)

No meio das fileiras de casas há um corredor onde a vegetação rasteira toma conta, e

por ele transitam os moradores da comunidade. Cada casa ocupa um chão de terra e, como

não há cercas para demarcar, a natureza se encarrega, pois a distância uma da outra é bastante

pequena em cada conjunto, porém existe divisão só quando há acidente geográfico. Cada

conjunto de fileiras de casas compreende uma estirpe familiar. Ela ocupa tanto o lado direito,

quanto o lado esquerdo, como mostra a imagem acima. O grau de parentesco é uma marca

importante, logo a disposição das casas mostra a união das famílias e o desejo de ocupar o

mesmo espaço.

Nas palavras da senhora Francisca Neide Dominica, no período da cheia, ela e o

marido saem para pescar às 5 horas da manhã e retornam somente às 6 horas da tarde.

A casa serve somente para dormir e a canoa se transforma em casa, às veis, a gente

entra pelas janela, a porta fica fechada pra não entrar cobra. Daí é só mesmo para

dormir. A água entrava pela fresta e a gente amanhecia com os fundo da rede

molhada. O mundo da casa é na canoa. Quando eu venho do igapó a gente trais o

peixe assado e vamos comê... (Sra. Francisca Neide Dominica)

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O lazer e as brincadeiras (sentido de diversão), na comunidade São José,

compreendem a limpeza do quintal da casa, o jogo de futebol, o passeio de canoa com a

família, a pesca com os filhos, o jogo de bola na água, a visita à taberna para fazer compras,

as danças no Zé Vieira, o ouvir música, as conversas, a ida de canoa às comunidades

próximas, o passeio na casa do vizinho, o jogo de sinuca ou dominó, a festa do padroeiro São

José que dura oito noites de novena. Como mostra a imagem, em dia de domingo, o banho, o

jogo de bola sobre a água são a diversão preferida dos ribeirinhos. Esta água é do rio

Amazonas que, na calmaria, vem trazer sentido à vida dos ribeirinhos da comunidade, como

confirma o trecho:

Nossa diversão aqui é limpar o quintal, jogar futebol, passeio de canoa. (Senhor Gabriel Vieira de Sales, 85 anos, há 85 reside na comunidade, é pescador, já

aposentado, cursou o ensino médio)

Fig. 23: Lazer sobre as Águas (Foto: Edivânia Hosana)

No entanto, para eles não é lazer a ida a Manaus, justificado pelo senhor João Lúcio

Rodrigues de Oliveira, de 41 anos, pescador, como relatou à pesquisadora: “Não temo

vontade de fazer lazer em Manaus, aqui a gente vive melhô que o povo de Manaus”.

Na comunidade São José a formação escolar é somente para as crianças (ensino

básico), adolescentes e adultos estudam na comunidade vizinha, São Francisco; o transporte é

de motor rabeta. A escola da comunidade São Francisco oferece ensino fundamental, médio e

superior (com alguns cursos de formação de professores). Os atores sociais também têm a

opção de estudar no município do Careiro da Várzea. Entretanto, o transporte disponível para

conduzir os estudantes é o motor rabeta que funciona à gasolina. Este percurso se torna

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bastante longe e perigoso. Registram-se as narrativas de uma aluna de Letras e mãe de um

professor do grupo escolar:

Nossa comunidade de São Francisco vive mais da agricultura a de São José vive

mais da pesca. Meu filho trabalha como professor, aqui já tem até faculdade, ele

trabalha pela prefeitura e pelo estado. (Sra. Iracema Moraes Moreira)

Neste momento está dificultoso, é perigoso porque tenho que viajá para estuda no

Careiro. Pago R$ 180,00 por mês e o transporte compramos gasolina. Quando me

formar, pretendo trabalhar aqui na comunidade (Srta. Alessandra Pereira)

A economia da pesca e da agricultura

Em relação à dinâmica de trabalho, quando a água do rio Amazonas vem cobrindo a

terra firme, as famílias aproveitam para colher a tempo as verduras plantadas na época da

seca. Pela imagem abaixo é possível entender que o trabalho na comunidade é bastante

polivalente. Para a senhora Sandra Maria Sales, de 58 anos, agricultora, o trabalho na lavoura

é bastante difícil, porque “Os meses de plantio são setembro, outubro, novembro e dezembro,

já em março a água come tudo, aí trabalhamos na pesca”. Observa-se na comunidade que a

proporção de terras para plantio é restrita em relação à proporção de águas. O trabalho tanto

na lavoura quanto na pesca é realizado de forma artesanal, ou melhor, sem o uso de recursos

tecnológicos. A mão-de-obra é familiar nas duas atividades.

Fig. 24: Colheita de Verduras, 2007 (Foto: Edivânia Hosana)

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Ressalta-se que a pesca é uma atividade realizada na comunidade, em muitos casos,

pelos cônjuges. O trabalho doméstico da manutenção da casa é realizado também pelos

integrantes da família.

Fig. 25: Casal de pescadores (Foto: Edivânia Hosana)

Portanto, o campo apresenta múltiplas interpretações e este percurso exposto é

apenas um ponto de vista de tantos outros possíveis.

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CAPITULO II

2 NO “REINO ENCANTADO” DAS ÁGUAS

2.1 Narrativas Imaginárias

A expressão “Reino Encantado” vem do empréstimo da ideia exposta por Galvão em

Santos e Visagens (1976), quando realizam pesquisa de campo em uma comunidade

amazônica, a qual denominam de Itá. Em seus estudos, explorou não só sobre a temática da

vida religiosa , como também, no capítulo quatro, intitulado Os bichos visagentos, o universo

do caboclo, mas numa dimensão simbólica. O povo de Itá, segundo o autor, acredita na

relação deles com o sobrenatural, na existência de um “reino encantado”; de um “navio

encantado”; de “divindades ou espìritos malignos”; de “companheiros do fundo à semelhança

de criaturas humanas”, por exemplo: os botos, a cobra grande; de “companheiros das matas:

os anhangás, os veados, currupiras”; “pajés sacaca com poderes especiais que viajam pelo

fundo d‟água”; “milongas (feitiços)”; “panema”; outros (GALVÃO, 1976, p. 64-85). Em

suma, essas crenças dinamizam a existência tanto individual quanto coletiva, porque vai

moldando de sentido a vida da comunidade numa certa ambiguidade. Os encantados

constituem um conjunto social para garantir a permanência do grupo social.

Além da ideia de “reino encantado” de Eduardo Galvão (1976), também contribuíram

os estudos do surrealista Alejo Carpentier, El Reino de este mundo, (2005), com primeira

edição lançada, em 1949. A obra extrapola a temática da revolução da então colônia de Saint

Domingue, atual Haiti, para mostrar o insólito ou extraordinário da revolução por meio da

ficção. A fim de atingir esse objetivo, Carpentier insere seu projeto do “real maravilhoso”

pela interdisciplinaridade e transdisciplinaridade entre história e literatura. Os campos do

conhecimento são diluídos no romance quando o autor cria “o reino encantado” e expõe a

realidade maravilhosa existente no Haiti e no contexto americano. A imersão da revolução na

ficção é feita por meio das vozes dos personagens “escravos” que desvelam a força do

imaginário por meio dos mitos, das crenças vivas e da busca da identidade negra no Haiti.

Essa inspiração do autor, para a criação da narrativa, bebeu na fonte de sua visão surrealista, a

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partir de 1930 e da viagem feita ao Haiti, em 1943, fatores que o influenciaram para compor

seu projeto do “real maravilhoso”.

Segundo Carpentier, o “real maravilhoso” contempla não só o olhar do “belo”, mas

também une o insólito, o extraordinário, o desventuroso, isto é, imagens literárias do

cotidiano da revolução no Haiti.

A literatura brasileira também é palco da criação de Reinos Encantados como

universos mágicos, onde destaca-se, principalmente, o trabalho de Monteiro Lobato que, por

suas mãos mágicas e imaginárias, soube tão bem encantar gerações desde o período do pré-

modernismo à contemporaneidade. E, não é só o público infanto-juvenil que apreciou e ainda

aprecia essas criações com seus personagens animalescos em formas humanas, os lugares

encantados, as milongas (feitiços mágicos), os seres encantados da floresta e os seres

encantados das águas, mas também o público adulto. Essa dose de ficção de Monteiro explora

diversas temáticas que polemizam aspectos sociais de envergadura no cenário brasileiro.

Ademais, essas criações dos ribeirinho-pescadores da comunidade São José, não são

diferentes, pois eles também desvelam seus Reinos Encantados em terras firmes, florestas e

águas. Está-se diante da presença do maravilhoso na comunidade, porque o cotidiano é o

próprio feérico, a vida que emana deste mundo perpassa o onírico.

As narrativas orais revelam muito desses Reinos Encantados, porque mostram o

modo supremo da experiência de vida e como essa experiência se sedimentou ou sedimenta

na memória do homem amazônico, em especial, o que reside o espaço geográfico banhado

por águas. Esses artistas sociais possuem um conhecimento rico, isto é, são verdadeiros

poetas, pois anunciam os sinais de chuva, a época das vazantes dos rios, os ciclos melhores

para pescar, plantar, colher, vender e obter renda, o canto dos pássaros, a brisa que ressoa dos

rios, as cores da natureza, a revolta e a calmaria das águas e regozijam-se numa relação de

inteira sintonia entre natureza e homem no papel de protagonistas do seu próprio meio. A

partir do Dicionário De Termos Literários, tem-se o seguinte conceito para “narrativa”:

Com a crítica formalista em voga na segunda metade do século XX, o vocábulo

„narração‟ entrou a perder o significado clássico [...], a ser empregado

genericamente com sentido de „narrativa‟ ou de „arte de narrar‟, „ato de narrar‟, „ato

de narração‟. Nesta acepção, desvaneciam-se os traços que a identificavam como um

específico recurso formal, uma vez que envolvia praticamente todos os elementos

inerentes à elaboração da narrativa, desde o narrador até o leitor, passando pelo foco

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narrativo, a personagem, o tempo o espaço, etc., [...] 2) „o verdadeiro autor da

narrativa não é somente aquele que conta, mas também, e por vezes com vantagem,

aquele que a escuta‟ (idem 1972: 267), como se abolida por decreto a figura do

criador real da obra de arte [...]. (MOISÉS, 2004, p.)

As narrativas orais emergem da memória coletiva, nela estão os conhecimentos

construídos das experiências intersubjetivas e extrassubjetivas, as quais são importantes em

toda sociedade. No livro de Walter Benjamin (1992), especificamente o ensaio sobre O

Narrador, o autor aborda as especificidades necessárias para um escritor construir com mais

propriedade o narrador e também as narrativas. Ao literato russo Lesskov, W. Benjamin

confere os méritos dessa arte literária, porque este assegura a verdadeira “essência” tão

importante ao narrador. A essência pode ser interpretada neste trabalho como um saber,

então, a relação do homem com a natureza está em nível subjacente às relações sociais. Logo,

as Narrativas Imaginárias são expressas por narradores potencializadores dessa essência .

O significado de essência é aqui um saber; em Lesskov, o saber se formou das

muitas experiências adquiridas nas viagens por toda a Rússia, as quais serviram de matéria-

prima para a vasta produção das lendas russas. Nas lendas, o narrador é possuidor dessa

verdadeira essência épica, isto é., “épos, palavra, narrativa, poema” (MOISÉS, 2004, p. 151).

As narrativas de Lesskov comportam, além do verdadeiro narrador, também uma dimensão

abrangente e mais utilitária, que compreende isto: “Esta utilidade pode, por vezes, consistir

num ensinamento moral, outras vezes numa instrução prática, e ainda, nalguns casos, num

ditado ou norma de vida – mas o narrador é sempre alguém que sabe dar conselhos ao

ouvinte” (BENJAMIN, 1992, p. 31).

Haja vista que o escritor Lesskov apropriou-se de seus saberes adquiridos na Rússia

e os transformou em escritos literários, é possível suplantar a idéia de que as lendas russas em

sua essência literária carregam as marcas da oralidade. Se as lendas beberam na fonte da

oralidade, então as narrativas imaginárias são a própria essência bruta, assim como um

diamante não lapidado, porque também há nelas traços da linguagem poética, a qual é

garantia para o texto literário.

Defende-se, portanto, a atenuação entre a oralidade e a escritura literária, o que pode

parecer derrisório, é pura ousadia epistemológica. E, para cotejar a atenuação da fronteira,

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dialoga-se com o medievalista Paul Zumthor, para quem “Falta-nos uma poética geral da

oralidade que sirva de relê às pesquisas particulares e proponha noções operatórias, aplicáveis

ao fenômeno das transmissões da poesia pela voz e pela memória, à exclusão de toda outra

coisa” (ZUMTHOR, 1997, p. 9). Em sua concepção, a palavra expressa o instante da memória

potencializada em ato, a qual provém da voz.

Logo, compreende-se que a escrita contém em suas marcas a voz e a palavra e isto

nasceu na oralidade. Paralelamente, o ribeirinho também apropria-se de seu devaneio, em seu

olimpo das águas, transformando-as em processo de criação poética das coisas. Essa

dimensão está contida no fundo da realidade amazônica, pois não há população que não tenha

essas formas narrativas que expressem as suas poéticas do imaginário.

A cultura ribeirinha é realidade social e não pode receber da ciência uma explicação

ou tratamento reducionista de suas potencialidades imaginárias traduzidas pela voz. Faltam-

nos pesquisas específicas voltadas a esse objeto como bem menciona Zumthor, que já carrega

seu estigma de popular ou acultural. Então, é ousadia também pensar que o estigma possui

vida própria e se enquadra na categoria de acultural ou aerudito. Mas, o “bom senso” não

cabe aqui como discernimento, mas como “capacidade de, ante um problema do cotidiano,

trabalhá-lo com eficiência e competência.” (GEERTZ, 1997, p. 115), por esse turno as

narrativas orais, objeto deste estudo, recebem abordagem científica como fenômeno cultural,

aí sim, reside o bom senso.

A Amazônia também foi construída pelas vozes dos narradores europeus, embora a

intencionalidade ao produzi-las contemplou a invenção de um Novo Mundo emblemático,

estigmatizado, exótico, das amazonas, do inferno verde, do paraíso perdido, dos primitivos,

dos aborígenes, entre outros. Mas é inegável que, no princípio da colonização exploradora, as

vozes de visão dos europeus percorreram para além das fronteiras dos rios, das florestas, da

Amazônia, do Brasil, da Europa, do mundo e transformaram-se em narrativas escritas,

sobretudo, a partir de uma visão estigmatizada, idealizada e controversa como referenciado

acima. Sendo assim, esse mesmo percurso de ida, procurou o percurso de volta. Esse

pensamento em palavras escritas legou, para nós, uma Amazônia homogênea. Em diálogo

com Geertz (op. cit.), o crivo da competência e eficiência não pode assegurar o escrito pelo

escrito, há de se estabelecer uma fronteira tênue entre o oral e o escrito, como confluentes,

embora a incompetência se deva mais pelo conteúdo veiculado neste processo. Muitas

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produções escritas dos viajantes influenciaram e influenciam a produção e transformação do

próprio pensamento social desta época.

Outrossim, fator determinante para a desvalorização das narrativas orais diz respeito

ao reinado da “civilização da imagem”, cujo efeito “perverso” surge à proporção do advento

da imagem. Portanto,

a transmissão instantânea destas imagens e „filmes‟ à distância será o fruto da

aplicação da telecomunicação oral (É. Branly, 1890; A. S. Popov, 1895; G. Maconi,

1901) e depois das imagens da televisão (B. Rosing, 1907; V. K. Zworykin, 1910-

1927) e a descoberta da onda magnética considerada „inútil e puramente teórica‟ por

H. Hertz (1888), seu inventor. (DURAND, 2004, p. 32)

Essas invenções e seus inventores acabaram por valorizar as imagens reproduzidas em

laboratórios, o que certamente também trouxe progresso pelo viés da física, da química, da

matemática. Porém, não esquecendo ainda de bem mencionar, deles também advêm os efeitos

perversos, com os quais as sociedades do Ocidente sentirão. Aos olhos críticos, o exposto está

no cerne das ciências do racionalismo iconoclasta do Ocidente, tão fortemente criticado em

Durand (op. cit). Mas o imaginário, qual sua dimensão? Justamente o contrário disso, pois

muito padeceu do conceito de “casa dos loucos” (DURAND, 2004).

Na confluência da crítica de Durand, a supervalorização da “mediática” também

trouxe acesso das massas aos escritos, a exemplo a literatura de ficção. Nela as narrativas:

contos, lendas, mitos, assim como outras. Aqui cabe retomar W. Benjamin que não

desvaloriza a tradição das narrativas orais. Mas, afinal o alógico, neste fio epistemológico, é

entender a modalidade escrita como primeira e superior à oralidade. O que tem como

oposição são as modalidades possuírem suas especificidades, mas o crivo do oral está mais

para o aerudito e o escrito literário para o erudito. É desrespeitar as culturas pelas suas

diversidades.

É precisamente a superioridade que não pretendemos supervalorizar e, neste caminho

teórico, está o trabalho de Paul Zumthor. O medievalista critica estudos científicos que

desvalorizam a oralidade. Em seu livro A letra e a voz: a "literatura" medieval (1993), Paul

Zumthor mostra não somente a trajetória dos estudos de voz e oralidade na literatura da Idade

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Média, mas também nos oferece suporte teórico para a compreensão das narrativas

contemporâneas.

O teórico, com seu pioneirismo nos estudos da performance, apresenta uma obra

complexa e instigante, que traz com justeza informações relevantes sobre os elementos

performativos de um texto literário e, ao mesmo tempo, deixa um leque de opções para outras

pesquisas no que concerne aos estudos da voz.

Sendo assim, à luz de Zumthor, as narrativas orais apresentam uma poética, ou

melhor, um imaginário poético. A presença do poético está na voz, logo a palavra oral é

expressão simbólica da voz do cotidiano, i. é., está mais relacionada ao pragmatismo. E, neste

percurso, ela assume corpo pela voz poética como forma de erudição. No ato da contação das

histórias, o narrador e o ouvinte compartilham os mundos, porque a mensagem está carregada

das modalidades da oralidade e nela estão saberes partilhados no ato mágico da contação das

histórias.

Walter Benjamin (1994) afirmou que a arte de narrar está morrendo. Contudo, pode-

se dizer que essa tradição permanece na comunidade São José. O contar histórias ainda

subsiste na ilha e convive com outros atos como assistir televisão, ouvir rádio, escutar cd,

assistir ao filme em DVD, pescar, plantar o alimento para sobrevivência, tomar banho no rio

Amazonas ou nos lagos, catar fruta na floresta, escutar canto dos pássaros, enxergar a capital

Manaus, apreciar o rio em devaneio, pescar para sobrevivência ou para devanear somente.

As narrativas imaginárias dos ribeirinhos amazônicos subvertem, pela dimensão do

imaginário, a clássica bipartição popular/erudito, ou oral/escrito, porque, segundo as

contribuições dos estudos do medievalista Zumthor, o fluxo da voz oralidade/erudição está no

seio das narrativas. Portanto, a expressão Narrativas Imaginárias configura categoria de

análise no próximo tópico deste trabalho.

As narrativas foram recolhidas de forma aleatória ou por indicação de um contador a

outro. Desse modo cada contador, em sua arte, ficou livre para expressar de maneira

espontânea o seu imaginário poético das águas. Então a subdivisão em três mundos ocorreu a

partir das análises das muitas histórias. O critério de encaixe foi o espaço-ambiente das

narrativas.

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As histórias orais foram transformadas em material escrito, respeitando a

metodologia exposta na introdução deste trabalho. Os contadores mantiveram seus nomes,

não manifestando imposição sobre a autoria.

A teoria de análise aqui proposta foge a qualquer categorização que não leve em

consideração o material factual, porque a ideia não é estabelecer uma comparação com outras

narrativas já consagradas pelas vertentes folclóricas. Sobretudo, deslindar as suas

especificidades e, a partir delas, buscar uma entre tantas possíveis compreensões.

2.2 De Vladimir Propp a Paul Zumthor

A partir do explicitado sobre Propp e Zumthor, pretende-se perceber a

predominância das funções nos textos como também a dominante poética da linguagem

onírica. Para isso, haverá a junção da teoria de Zumthor à de Vladimir I. Propp, que dedicou

estudo aos contos maravilhosos

Propp fecundou numerosos estudos tanto na União Soviética quanto no Ocidente.

Entretanto, a partir do marco temporal 1930 e 1940, o interesse pela forma declinou

principalmente nos estudos literários soviéticos. Embora nos anos de 1950 tivesse como

ícone:

[...] os estudos tipológico-estruturais no domínio do folclore apareceram no

Ocidente – França e Estados Unidos [...], [...] ligados ao sucesso da escola

etnográfica dos „modelos culturais‟ e particularmente, sob influência do

desenvolvimento impetuoso da lingüística estrutural e da semiótica.

(MELETÍNSKI, apud. PROPP, 2006, p. 164-165)

A partir de 1950, surgem muitas críticas, considerando o propositor Propp mais

ligado às posições dos estudos histórico-geográficos que já estavam em voga por Stith

Thompson dos estudos folclóricos da escola fino-americana. Mas, em sua defesa, Propp diz

que os estudos sincrônicos devem preceder aos diacrônicos.

Em 1958 surge uma tradução em inglês do livro Morfologia do conto maravilhoso, o

qual conferiu vida nova aos filólogos e antropólogos e cujo êxito da tradução inglesa “[...]

encontrou uma recepção favorável nas resenhas de Melville Jacobs e Claude Lévi-Strauss.”

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(PROPP, 2006, p. 164). Portanto, a obra de Propp teve dimensões amplas cientificamente,

embora já existisse há 30 anos na Rússia.

Se em 1958 surge a tradução em inglês do trabalho de Propp, antes desta data, 1955,

Claude Lévi-Strauss torna público um manifesto cientìfico sobre “Estudo estrutural do mito”,

objetivando não só mostrar a aplicação da linguística estrutural ao folclore, como também

evidenciar o mito como fenômeno da língua; sobretudo encontrar os mitemas como

constituintes da estrutura da oração e, por último, perceber por essas unidades a relação das

funções, ou seja, para cada função há um sujeito que a executa. Nesse aspecto Propp e Levi-

Strauss se aproximam bastante.

Em contrapartida, os métodos se distinguem nos seguintes aspectos: o russo se detém

na recolha empírica dos contos e transforma-os em escritos para estudos, ainda qualifica o

conto maravilhoso como mítico, ou seja, porque na gênese do conto há a estrutura do mito;

de outro modo, Levi-Strauss estuda os mitos e não parte da empiria, quando qualifica o conto

como uma atenuação do mito. Para ele o mito perpassa o conto, já que seu caráter contempla

o estático e o dinâmico, ou melhor, como narração que explica o passado como também o

presente e o futuro. Por tudo isso, Levi-Strauss não concebe o caráter da dualidade da

categoria saussuriana “langue e parole”.

A guisa das proposições sobre o método de Propp e de Levi-Strauss, infere-se que os

métodos são semelhantes em parte, mas muito mais distintos de forma abrangente. Aliás, não

desconsiderando os objetos distintos. Nesta mesma consciência científica, pontua-se que os

Contos Imaginários também têm suas especificidades.

No entanto, certos da distância histórica e temporal de 80 anos já transcorridos da

edição do livro Morfologia do conto maravilhoso, o método de Propp será ponto de partida

para as análises dos Contos Imaginários, porque o marco temporal e espacial não invalidou o

método de Propp. Então as trinta e uma funções de Propp serão aplicadas às histórias dos

ribeirinhos a fim de deslindar se há uma estrutura inerente como percebeu o estudioso nos

Contos de Magia.

Ressalte-se o seguinte: a maioria das pesquisas começa pela classificação

harmoniosa das ciências físico-matemáticas, por isso a ideia aqui é transgredir ao olhar

preciso e projetar um norte de análise sobre o material recolhido. E, a partir disso, perceber

até que ponto as funções são recorrentes; ademais compreender a dominante e a relevância

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das funções e concluir o que as histórias nos revelam. Além desse estudo estrutural, também

contemplamos os estudos dos traços poéticos como elementos da voz ou performances como

denomina o teórico Paul Zumthor (1997). As performances nos ajudam na compreensão do

ato narrativo como um conjunto composto de vários elementos: o narrador, a voz, a fala, o

contexto, o corpo, o ouvinte, a audição, o texto, conteúdo. Por tudo isso esta junção das

funções e performances são cotejadas nesta pesquisa.

A divisão das histórias em três mundos é apenas uma forma de organizá-las pelo que

elas revelam em si, uma vez que a pretensão não é a de classificação desses contos, porque as

vozes dos agentes sociais ganham abordagem científica, pois o ribeirinho considera que sua

vida está permeada de águas, florestas e profundezas das águas. Mas o que se quer esclarecer

inicialmente, antes de passar à análise pormenorizada, é que esses entornos são espaços

aquáticos, quer dizer, há sempre, em terra firme ou floresta, um fio de água que cobre tudo.

Portanto, respeitou-se o lugar da fala dos ribeirinho-pescadores. Entendem-se os espaços

aquáticos mais imaginários e psicológicos a geográficos. Isso justifica, sobremaneira, a

seguinte organização: Contos do mundo das águas, Contos do mundo da floresta e Contos das

profundezas das águas.

A partir de um estudo sobre Morfologia do Conto Maravilhoso (2006), Vladimir

Propp forneceu a pista de que há, nas narrativas dos ribeirinhos, as mesmas funções dos

personagens percebidas por ele em seus contos de magia. De sua complexa teoria, vamos

utilizar o modelo de análise estrutural, constante no capítulo III, denominado Funções dos

Personagens, (PROPP, 2006, p.26-62). Aplicar-se-á as funções como estratégia para perceber

o que predomina nas narrativas imaginárias e também o quanto conduzem às ações dos

personagens.

Metodologicamente, a título de esclarecimento, a numeração abaixo configura

apenas como forma de organização para esta análise, embora respeite os 31 tipos elencados na

classificação da teoria de Propp. Seguem abaixo as funções. O número equivale sempre ao

mesmo tipo de função e aparecerá no corpo interno de cada narrativa, porém entre parênteses.

Após percorrer cada narrativa à procura das funções, listar-se-á abaixo de cada narrativa o

número e o tipo equivalente da função a qual se revelou no texto. Após essas incursões,

mencionar-se-á a predominância delas, assim como, as performances como expressão poética

da literatura. As descrições das funções são as seguintes:

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As funções dos personagens

(1) “Afastamento”: pode ser temporário ou não, o personagem necessita sair para o

trabalho, para a mata, para dedicar-se ao comércio, para a guerra, para negócios,

visitar alguém ou lugar, para pescar, para passear ou apanhar frutas.

(2) “Proibição ou Interdito”: ao herói é imposto algo, ou então é dado conselho,

ordem ou feito pedido; isso pode não estar explícito, mas subentendido na

história.

(3) “Transgressão”: essa função depende do interdito, ou seja, é motivada pela outra.

(4) “Interrogatório”: o diálogo acontece na tentativa de descobrir pistas.

(5) “Informação”: essa função está acompanhada da anterior, e também pode

acontecer de forma indireta.

(6) “Ardil”: pode ocorrer a utilização de meios mágicos, porque a idéia é persuadir,

fraudar, coagir ou enganar a vítima.

(7) “Cumplicidade”: essa função é uma espécie de truque e ocorre de forma

mascarada, porque o antagonista ou protagonista disfarçam as ações para fazer o

outro saber disso.

(8) “Dano ou Carência”: desencadeia a ação no conto, porque o dano carrega o nó da

intriga. As ações podem ser as seguintes: utilização de elemento mágico;

eliminação do auxiliar mágico, ou do personagem; extorsão à vítima; expulsão da

vítima; enfeitiçar algo ou alguém; substituição; ordenação para matar ou

guerrear; encarceração dos personagens; prática de canibalismo. A carência é

motivada pelo desejo de obter algo o que requer o objeto mágico.

(9) “Mediação ou Conexão”: compreende a introdução do herói no conto. Tanto

pode executar ações como sofrer, exemplo: poder de socorrer, toma o destino de

casa, sabe do dano, luta por libertação.

(10) “Reação”: o herói buscador reage,

(11) “Partida”: nesta missão o elemento mágico está presente.

(12) “Prova”: o herói é provocado a cumprir prova e nisto aceita o elemento mágico.

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(13) “Reação à Prova das Ações do Doador”: o herói pode superar ou não; responder

ou não; fazer algo ou não; libertar ou não; poupar ou não; salvar ou não; vencer

ou não; usar o objeto mágico contra o doador ou não.

(14) “Recepção do Meio Mágico”: ocorre a recepção do meio mágico.

(15) “Deslocamento”: o herói é transferido para linha horizontal ou vertical, ou seja,

para as alturas ou profundezas.

(16) “Combate”: o enfrentamento entre o protagonista e o antagonista.

(17) “Estigma”: o herói é marcado.

(18) “Vitória”: pode ser positiva ou negativa.

(19) “Reparação do Dano ou Carência”: o objeto é alcançado ou por força ou astúcia,

o elemento mágico também serve para realizar a reparação do dano.

(20) “Regresso”: o herói retorna, às vezes, pelo elemento mágico.

(21) “Perseguição”: o herói é perseguido.

(22) “Salvamento da Perseguição”: o herói consegue livrar-se do antagonista.

(23) “Chegada Incógnita”: pode ser por disfarce ou de forma simples.

(24) “Pretensões Infundadas”: o herói retorna sob pretensão familiar.

(25) “Tarefa Difícil”: essa função é bastante favorita no conto maravilhoso, porque o

personagem tem que vencer os obstáculos.

(26) “Realização da Tarefa”: o herói pode resolver sem nem executar.

(27) “Reconhecimento pelo Estigma”: a marca ou título pode ser física ou abstrata.

(28) “Desmascaramento”: o falso herói é reconhecido.

(29) “Transfiguração”: o herói, por meio do mágico, caracteriza-se de modo a receber

nova aparência.

(30) “Castigo ou Punição”: o inimigo é castigado.

(31) “Recompensa”: o herói recebe algo ou alguém simbolizando a recompensa pelo

feito.

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As performances

Além das funções de Propp, também contemplamos analisar as narrativas pela

perspectiva poética de Zumthor (2007); conforme este autor, a performance é a ação

oral-auditiva pela qual a mensagem poética é expressa no presente sob desejo do

locutor e por ele assumir a voz também conjuga expressão e presença corporal

(física), enquanto o destinatário não é passivo porque atua na interação. Logo, neste

percurso o narrador, autor, ouvinte pervertem a realidade e mergulham no mundo

ficcional em que o imaginário é sentido, percebido, experimentado e vivido de modo

a (re)construí-lo ou (re)elaborá-lo. E, para perceber o poético imaginário, observar-

se-á, nas narrativas, a existência dos elementos performáticos, sendo eles descritos

nas análises da seguinte forma:

(LP) “Linguagem poética”: figuras de linguagem, tais como: “personificação,

aliteração, metáforas, metonímias, comparação, sinestesias, onomatopeias, outras”.

(PV) “Performance vocal”: quando o narrador utiliza a voz.

(PC) “Performance corporal”: quando o narrador utiliza o corpo como expressão da

voz.

(PVC) “Performance vocal e corporal”: quando o narrador envolve os dois elementos

mencionados anteriormente, o vocal e o corporal.

(Frame)12

O contador assume a responsabilidade de construir a história diante da

audiência.

A partir das funções de Propp e das performances de Zumthor, passar-se-á à

análise atenta das 29 histórias recolhidas na comunidade de pescadores São José, Careiro da

Várzea, Amazonas. Os títulos das narrativas foram denominados pelos contadores. Desse

modo, as transcrições foram fiéis aos relatos orais. Abaixo, seguem os contos e, na sequência,

as descrições, tanto das funções quanto das performances.

12 Para esta análise o termo vem de empréstimo do inglês e quer dizer “imaginar, construir, planejar”

(MICHAELIS, 1980, p. 130). No caso dos contadores é o momento ou preparação para construir a história.

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2.2.1 Contos do Mundo das Águas

Análise do Conto I: Cobra Grande

Essa história de medo foi um tempo que nois tava pescando

ainda na.., uns três quatro anos (1). Boca da noite, nois tava.

Tinha colocado as malhadeiras, aí nois tava... correjemos, umas nove horas(3). Era passarinho (4) gritando... escutou

aquilo...??(5). É cobra grande (2). Vambora tirá as malhadeira

antes (15). Que ela só deu esse estalo (8). Só quem tava lá era nois mesmo. Era de sábado pra domingo. Rapaiz vambora,

embora (LP) (21).Viemo dispescar aqui, nessa posta do

barquinho (15 e 20). Cheguemo, aí nois trazia um bucado de pacu, uns 500, passamo a noite quase toda dispescando (27).

Foi a cobra que eu vi aí no lago Juanico. (Senhor João de

Jesus Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(1) Situação Inicial: rememora os bons tempos de pescaria no lago Juanico.

(1) “Afastamento”: o personagem sai para a pescaria e quer buscar no lago muitos peixes. Espaço de águas noturnas

(2) “Interdito”: medo da cobra

(3) “Transgressão”: o personagem coloca as malhadeiras mesmo com medo.

(4) “Fornecimento”: o passarinho é o elemento mágico da ação, ele guarda a floresta e o lago, porque está no plano aéreo.

(5) “Embuste e Cumplicidade”: personagem principal e secundário dividem o medo.

(15) “Deslocamento”: a retirada das malhadeiras de dentro da água .

(8) “Dano Inicial ou Carência”: a astúcia do pescador diante do estalo da cobra e

captura da malhadeira.

(21) “Perseguição”: o medo volta e desencadeia o regresso dos personagens.

(15 e 20) “Deslocamento e Regresso”: ação de retirar o peixe da malhadeira.

(27) “Reconhecimento”: personagem consegue 500 peixes “pacus”. Época de fartura do

peixe.

(LP) “Linguagem Poética: Aliteração”: suspense “vambora embora”.

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Análise do Conto II: “A Cobra do Juanico”

A cobra do Juanico... Um dia eu tava pescando no meio do lago (1). O pai dela tava mais pra cá um poco (7). Aí a cobra deu aquele istalo (2

e 6 ). Hum... Hum...(PV) (10) . Minha mulhe disse “João o que foi

isso?”(4). Pra num faze medo a ela, eu disse “num foi nada não”(10).

Ela disse “Será que é a Cobra Grande?”(9). O Bastião tinha uma

casinha perto do lago. Ele já tava atrepado pra fugi da cobra (15). Aí ele disse “rapaiz você não ouviu um istalo?, é a cobra”(7). Essa cobra

saiu do Juanico (15), é por isso que o lago vivia cheio. Agora essa

época tá secando, a água tá baixinha.... (15). Agora ela tá lá no rebojo (15), porque no lago esquenta. Nois fumo vê, lá tem uma vala grande

a donde ela tava (12). Agora o lago seca...seca....(LP) (12) Quando ela

tava lá não secava. (12) (Sr. João Batista da Silva)

Funções dos Personagens e Performances

(1) “Situação Inicial e Afastamento”: a partida está implícita porque a personagem já está

pescando no meio do lago, ou seja, local do ardil .

(7) “Cumplicidade”: várias pessoas participam da ação do personagem e isso reforça a idéia

da cobra no lago.

(2 e 6) “Interdito e Ardil do Antagonista”: o estalo é a apresentação da moradora do lago: a

cobra, cuja função é de antagonista. O próprio estalo é o feitiço do personagem.

(10) “Início da Reação”: as interjeições provocam suspense para desencadear o interrogatório.

(4) “Interrogatório”: entra os personagens da história para confirmação do embate.

(10) “Início da Reação”: o antagonista esconde a presença do herói.

(15) “Deslocamento no Espaço”: o protagonista se desloca no espaço aquático para espalhar o seu feitiço, numa espécie de provocação ao antagonista.

(7) “Cumplicidade”: entre personagens sobre o feitiço da cobra.

(15) “Deslocamento”: a cobra procura por alimento, quando o lago está seco

(9) “Mediação do Herói”: a cobra estabelece a conexão pela prova do feitiço “buraco”.

(12) “Prova da Carência”: o personagem antagonista “pescador” volta ao normal, ele não

pescou porque o lago estava enfeitiçado pela cobra. Na época de seca a cobra encanta com

seus poderes mágicos.

(7) “Cumplicidade”: o herói-vítima busca elementos para explicar o feitiço da cobra.

(PV) “Performance Vocal”: suspense.

(LP) “Linguagem Poética: Repetição”: “seca, seca”.

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Análise do Conto III: Cobra Grande

Já vivi muitas histórias com cobra, a cobra grande flutua e não passa ninguém. A cobra grande faz um ronco, e passa no rio e vai embora

subindo o rio afora (5). Eu e dois irmãos e um senhor vizinho já

botamos pra trais, quase a terra leva nois, ficava um eito de terra

grande na ponta, ela afundava e a terra quase leva nois (LP) (20). Eu e

meu filho tava pescando umas dez horas da noite (1). Quando eu vi o menino disse “papai que bicho é isso ai”(2). A cobra quase me comeu

(16). Elas querem comida, ela pega todo mundo. (LP) (27) (Sr.

Eduardo)

Funções dos Personagens e Performances

(5) “Informações”: o herói apresenta o seu antagonista e o lugar do embate.

(20) “Regresso”: o herói, no embate, é surpreendido pelas forças da natureza, ou seja, as provas e, ao vencê-las, não há o enfrentamento com a cobra pelo regresso sem o peixe “ouro”

a ser conquistado.

(31) “Situação Inicial”: apresentação do personagem principal e secundário “pai e filho”.

(2) “Interdito”: a suspeita da presença de um bicho desencadeia a impossibilidade da pesca no

regime da noite.

(16) “Combate”: “o quase” quer dizer que o protagonista escapou do enfrentamento com o

antagonista.

(27) “Reconhecimento”: do protagonista de que a força do antagonista é maior.

(LP) “Linguagem Poética: Personificação”: a terra está personificada.

(LP) “Linguagem Poética: Hipérbole”: “todo mundo”.

Análise do Conto IV: Cobra Grande

Nove hora da manhã (faz tempo, 8 anos), ela saiu, vinha um velhinho

(2e 3) passando, é um troço feio (18). Nois botamos o motor pra terra, ai ela afundou, não boiou mais (20).Tem uma cobra que eu vi ali faz

dois anos, ai eu disse pros meninos. Sulapo (suapo) é um lugar, é um

Paraná no tempo de seca (LP) (17). Lá no Jari tem um poço, no tempo de seca (LP) é o solapo onde ela veve, ninguém pesca lá, todo mundo

(LP) tem medo. (30) (Sr. Eduardo)

Funções dos Personagens e Performances

(2 e 3) “Interdito e Transgressão”: o velhinho passando, a cobra em forma humana.

(18) “Vitória”: protagonista assume que é vencido pela cobra.

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(LP) “Linguagem Poética: Metonímia”: “todo mundo”.

(LP) “Linguagem Poética: repetição hiperbólica”: “no tempo de seca”.

(20) “Regresso”: o antagonista regressa sem o peixe.

(17) “Estigma”: o lugar é apresentado pelo antagonista como nicho de proibição de pesca na

época da seca.

(30) “Castigo”: onde a cobra se recolhe para viver e salvaguardar seu espaço aquático.

Análise do Conto V: Cobra

Várias vezes de noite quando ia pescar no Juanico, ela istalava e assusta os bicho tudinho (18). Agora aí eu descobri que não é Cobra

Grande (18). Porque..., (PV) em pescaria eu entrei num igapó (1 e 15).

Assim uma parte limpa, eu descobri aquela rebojadeira, tava alagado, aquilo tirava bagaço, tirava lama, lá do fundo boiava aquelas lama, eu

achei que era muitas cobra que tavam lá brigando né (2). Um primo

meu topo assim com um bando de cobra atacando a cobra fêmea, chegando a matá, era muitas. Ele contô parece que umas doze (16). Eu

dibui que era isso, cobra que tava lá na alagação, lá na vagabundagem

lá (LP), eu não percebi que fosse cobra grande não, era cobra de certos tamanho um metro, seis metro, de oito, nove metro (LP). Elas se

reuniam assim e atacavam as fêmeas, fazem aquelas istaladeiras, a

gente pensa que é cobra grande, mais num é não (18). (Sr. Gabriel Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(2) “Interdito”: a presença de muitas cobras, mostra o lugar das cobras.

(18) “Vitória”: já no início apresenta o desfecho da ação do falso herói.

(PV) “Performance Vocal”: prolongamento do som para denotar suspense.

(LP) “Linguagem Poética: rima e repetição”: “lá, lá, lá”.

(LP) “Linguagem Poética: repetição hiperbólica”: “cobra, cobra”

(1 e 15) “Afastamento e Deslocamento”: segue as pistas para localizar a cobra.

(16) “Combate”: o amigo também viveu a mesma experiência e serve de alerta. Aqui o antagonista descobre que na alagação as cobras se multiplicam.

(18) “Vitória”: falso herói conclui que o barulho emitido por cobras em acasalamento ocorre

na época da cheia do rio e nos igapós.

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Análise do Conto VI: Cobra Grande

O lago tá secando (2) agora, enquanto tem uma cobra no lago, ele não

seca, quando a cobra sai o lago seca, é isso que eu sei daqui do lago do

Juanico, Costa da Terra Nova (1). A cobra saiu pru rio, tá morando aí

no Solimões mermo, porque toda cobra que se cria no lago quando ela

fica grande ela sai (2). Também tem uma outra cobra grande no lago

do Filipi, aqui próximo do Juanico, ninguém sabe pra onde ela vai sair, ela tá da grossura dum tambô de 200 litros (LP), é... (PV). Lá

nesse lago à noite ninguém pode ficar lá porque ela tremesse a água,

espanta os bicho, jacaré, jaçanã (8). Aí num sei se ela vai sai pru lago do Juanico ou pru lago do Reis (LP). (15) (Sr. José Vieira)

Funções dos Personagens e Performances

(2) “Interdito”: lago secando prova que a cobra já saiu e o lugar não está para a pesca.

(18) “Vitória”: descoberta de que no lago mora a cobra e quando o lago está cheio a cobra

permanece e na seca ela se desloca nos ambientes de água.

(LP) “Linguagem Poética: comparação”: “cobra é tambor”.

(PV) “Performance vocal”: prolongamento do som para inferir suspense.

(LP) “Linguagem Poética: rima”: “pru, pru”.

(8) “Carência”: o herói-vítima quer buscar alimento (peixe), mas de noite os rios são

perigosos porque as cobras se locomovem nos ambientes aquáticos, também em busca de

alimento.

(15) “Deslocamento”: da cobra prova que o perigo ainda existe para o protagonista.

Análise do Conto VII: Cobra Grande

Essa história quem conta é a minha tia (PV) (1). Ela estava pescando (1), viu algo se mexendo, era a cobra grande, os bichos faziam muito

barulho (2 e 9). Quando ela estalou a minha tia, que estava pescando,

tirou as malhadeiras dela do igapó e não foi mais (16 e 30). Ela não quer que ninguém mexa nela lá (LP), com o barulho de pescador, ela

sai. A natureza de dia pertence ao ser humano e à noite pertence pros

bichos. Na época da cheia ela não acorda (18). (Sra. Simoni)

Funções dos Personagens e Performances

(1) “Situação Inicial e Afastamento”: a busca do peixe.

(PV) “Performance Vocal”: desperta a audiência.

(LP) “Linguagem Poética: aliteração”: “nela lá”.

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(2 e 9) “Interdito e Mediação”: os agouros dos pássaros são avisos da presença da cobra.

(16 e 30) “Combate e Castigo”: retirada das malhadeiras sem o peixe, pelo estalo da cobra e

não retornou mais.

(18) “Vitória”: a cobra mora no lago. Na cheia ela dorme e à noite não quer perturbação. O

estalo é o sinal de sua presença, e sinal de que não pode pescar.

Análise do Conto VIII: Cobra

Quando era de noite assim, a gente só escuta o barulho da água, aquele chiado forte da correnteza (1 e 4). Aí ele oiô e disse “ Valdi,

aquilo parece um motô” (PV). Aqueles dois foco assim vermelho

rumo da bera, e esse Valdi é meu primo, ele tem timbira nos peis (17), ele num pode pisá direito. Aì o Lailson disse “Valdi vem se

aproximando”, “que nada rapaiz..., nada” (LP). Aquela água vinha

chiando (LP) pra perto dele (2). Ela com o pescoço na água assim..., chega aqueles óios parecia umas lâmpada (LP), aí ele pegou e disse

“é a cobra pelo amor de Deus” (LP), ele remou pra bera, a canoa deu

em terra, só que ele num foi mais porque era praia (16). Chegou a chiar na areia (LP) (30). Na hora o Valdi num sobe nem que os peis

dele era doente, saiu pulando naquele mondrongo de terra, chega ela

chiou na areia assim..., aquelas iscama dela óia que coisa mais monstra, calcularo as malha que ela tem do tamanho de uma bacia

dessa de alumínio (LP), isso era lá no rebojo lá, já morreu muita gente

aí. (PV) (Sra. Milena)

Funções dos Personagens e Performances

(2) “Interdito”: chiado da água levanta a suspeita da presença da cobra.

(1 e 4) “Situação Inicial e Apresentação do Antagonista”: a cobra surge por meios

sobrenaturais.

(PV) “Performance Vocal”: a imitação do barulho do motor é para a audiência sentir

auditivamente o quanto o barulho era forte.

(17) “Estigma do Herói”: narrador apresenta o herói-vítima pelo estigma.

(LP) “Linguagem Poética: recurso de repetição”: “nada”.

(LP) “Linguagem Poética: Hipérbole”: só Deus poderá intervir diante de tamanha

monstruosidade.

(LP) Linguagem Poética: Comparação”: olhos e lâmpada: a cobra tem olhos reluzentes no

período noturno.

(16) “Combate”: herói-vítima foge da perseguição da cobra e se recolhe na margem do rio.

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(LP) “Linguagem Poética: personificação”: o chiado é o atrito da cobra na areia, devido ao tamanho e ao peso da cobra, a força para capturar a presa provoca o chiado.

(LP) “Linguagem Poética: personificação”: a água chia.

(LP) “Linguagem Poética: comparação”: malhas da cobra são do tamanho de uma bacia de

alumínio, ou seja, grandes.

(30) “Castigo”: o herói-vítima não supriu a carência, foi expulso do ambiente aquático pela cobra.

(PV) “Enquadre de Fim”: conclui a história falando sobre o estigma da vìtima “timbira nos

pés” e o perigo que ronda a pescaria no Rebojo, local onde vivia a comunidade antigamente,

porque é ambiente de terras caídas.

Análise do Conto IX: Cobra Grande

Eu nunca vi a cobra grande no lago, mas a minha sogra disse que ela estala (PV) (9), as folhas vem (LP), os animais se espantam (9). Na

época da seca ela esturra porque tá faltando água pra ela (2). Os

pescadores não arriscam, se vamos pescar só pra necessidade e vemos o sinal dela, às vezes, até deixamos os materiais, quando ela se acalma

nós vamos lá e tiramos nossas coisas (8). (Sra. Ilma Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(9) “Mediação”: o antagonista prevê pelas pistas: presságio dos pássaros e da floresta diante

da presença do herói, a cobra.

(PV) “Performance Vocal”: busca referência para testemunho.

(LP) “Linguagem Poética: personificação”: as folhas caminham na floresta

(2) “Interdito”: no período de seca a cobra esturra.

(8) “Castigo”: a pesca para suprir a necessidade até é possível ser feita, a cobra se acalma.

Mas a pesca na época da seca é agressão ao meio ambiente e aos seus seres terrestres e

aquáticos.

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Análise do Conto X: O Boto

Uma veiz aconteceu comigo uma história no rio Juruá, daqui pra lá é oito dias de viagem. Essa história do boto...(P), eu tava pescando no

Juruá, aí o motô de pesca ficava do outro lado, aí eu atravessava, o

lugar era Costa da Gaivota, com quatro casas, quatro já é uma

comunidade, aí eu peguei o lago sozinho e Deus...(1). Quando cheguei

lá, tava com as malhadeira e espinhel, armei e tirei três tambaqui, dexei dentro da água (2). Lá não tinha ninguém, nem morava.

Quando foi de manhã bem cedo, eu entrei pro igapó, vigiei a

malhadeira pra tirá tambaqui, quando puxei debaixo da canoa aquele negócio vermelho, porque a água era escura, aí eu pensei é um boto,

mais era uma bota na malhadeira, tava morta (3). Quando eu tava

desengatando essa bota, era um lago cheio de tufão, quando olhei aquele homi velhão, cabeça branca, barbadão, pensei “pur aqui num

mora ninguém!” a canoa do homi era só lodo, parece que tinha saído

do chão (8). Aì aquele homi se aproximou de mim e deu “bom dia!”, eu me arrupiei todo, ele tinha uma serra de antigamente, quase dois

dedo de dente. Lá num mora ninguém, só aquelas casa, aí eu pensei

“deve di sê o Pai do Lago”, aì ele falou “como foi que essa bota caiu na malhadeira?”, “eu sô pescador. Tava pescando quando vi essa bota

tava aqui” (7), aì ele me oiô. “Sê num tem medo não?” “Não senhô,

tando com Deus”(2 e 4), “Olha não joga essa bota aqui não, amarre na canoa e jogue lá na beira da baixada”, ai eu amarrei bem e fui

arrastando na canoa, aí deixei a bota lá (13). Fui lá com os minino que

moram lá mermo ,aí eu falei que vi um velho forte, cabeça branca... (PVC.) (20). “Rapaiz lá num mora ninguém”, eles falaram isso “Sabe

o qui deve di sê Pai do Lago”. “Você escapou di sê comido pur uma

cobra que vira homi (29 )”. Nunca mais eu fui pescá lá (30). (Sr. João Batista da Silva)

Funções dos Personagens e Performances

(1) “Afastamento e Carência”: há uma certa junção das funções, ou melhor, o afastamento da

terra para o espaço aquático e a carência como necessidade do alimento. A companhia divina

de Deus encoraja-o ao desconhecido.

(2) “Interdito ou Proibição”: os utensílios de pesca são utilizados para capturar o tambaqui, no

entanto servem de elemento de ligação à captura do antagonista.

(3) “Dano”: provocado pela captura da bota, desencadeará a ação, ou seja, o nó da intriga.

(9) “Mediação ou Introdução”: o pescador e o pai da lago aparecem para o confronto.

(8) “Reação”: o herói-vítima surpreende-se com a presença do pai do lago, das profundezas da

água, isso desencadeia o interrogatório.

(4) “Interrogatório”: o antagonista e protagonista iniciam embate sobre a captura da bota.

(7) “Cumplicidade”: o herói-vìtima se coloca numa condição de vìtima, ou seja, “caiu na

rede”, “sou pescador”, quer dizer que não me responsabilizo pelo que “cair” na rede.

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(2) “Interdito”: o herói-vítima resgata a divindade para protegê-lo.

(13) “Reação”: o herói se encontra diante da prova difícil imposta pelo antagonista, essa prova

é carregar o fado.

(20) “Regresso”: o falso herói se desloca horizontalmente e refugia-se com outros colegas.

(30 e 29) “Castigo e Punição”: significa não pescar mais no lugar porque aparece cobra que

vira homem. Transfiguração da cobra para homem.

(PVC) “Performance Corporal”: os gestos produzidos na narração, o tom da voz o cenário e o corpo dialogam com o ouvinte.

Análise do Conto XI: O Boto Vermelho

Vou contar a história que meus pais transcreveram de geração pra

geração (PV). É a história do Boto vermelho. Era uma moça, acho que ela tinha uns 37 anos, tava lavando roupa na beira do rio (1,2).

Quando ela deu fé o boto tara puxando a perna dela (4). Ela se

assustou com aquilo, gritava, gritava, mas ninguém escutava ela, porque o barranco era alto (2). Aí apareceram três rapazes na hora.

Eles ajudaram ela (20). Porque já tava quase levando ela pro fundo do

mar (21). Aquele negócio..., ele ia encantar ela (PCV). Hoje as pessoas ainda contam essa história (PV). (Srta. Alessandra Silva

Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(PV) “Frame”: contador assume a responsabilidade de contar uma história da memória

familiar.

(1 e 2) “Afastamento e Interdito”: não podia lavar roupa no período da menstruação, pois o

sangue atrai os seres aquáticos.

(4) “Combate”: ritual de encantamento do boto para seduzir a moça (fêmea) às profundezas

aquáticas.

(2) “Interdito”: para evitar que alguém escutasse os gritos da personagem durante combate de

encantamento.

(20) “Regresso e Perseguição”: a personagem (moça) retorna à condição inicial pelo salvamento.

(PVC) “Performance Vocal e Corporal”: de confirmação e ênfase.

(PV) “Performance Vocal”: referência aos contadores de histórias.

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Análise do Conto XII: O Boto

O boto, dizem que ataca as pessoas pelo menos eu fui atacado, num pudia

mais pescá (30). Eles passavam debaixo da canoa, puxavam no meu

remo. Isso era sempre que me acontecia, eu era rapaiz, qualquer hora,

eles vivem passando por baixo, rebojavam, chegavam a me atacar aqui no porto aí (PC). Sabe porque é que acontecia? (PV). É porque eu andei

atacando uns botinho (2). Então eles ficavam com raiva, eles me

perseguiam, sem eu sabe de nada (15). Foi uma conhecida minha numa curandeira lá. Ela perguntou se ela tinha parente que batizava de boto, aí

ela se lembrou de mim que me viu matá um boto (8). Ela si lembrou..., aí

a mulher ensinou pra mim fazê remédio, usar alho quando eu sai (8) e tivesse muito cuidado que eles tavam atrais de mim pra me dá fim. Aí eu

não pude pescar tranqüilo (8). Fiz o remédio do alho, aí eles deixaram de

me persegui (13). Pras minhas mininas eu falava pra elas que o boto ataca as pessoa assim que malina neles (2). Acho que a malineza do

homem e da mulher é a mesma. Acho que é... (PV). Eu conheço uma

mulher que ela tava contando que ela não podia sai, quando ela saia tava aquele homi sentado no meio da canoa (6). Quando ela desembarcava da

canoa não via mais aquele homi (8). Era boto, aí boiava em boto, aí eu

não sei se era verdade, mais eu acho que é verdade... (PV), boto malina, sei que eles me malinavam. Quando eu tumava meu banho, pulei em

terra que eu olho, ele tava bem encostadinho no pau (20 e 29). Agora

acreditei... (PV) (Sr. Gabriel Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(30) “Castigo”: por ter matado o botinho já não pode mais pescá. O desfecho da história está no

inicio, deslocamento da função.

(8) “Dano ou Carência”: o batizo, o remédio e o alho afastam o boto do pescador.

(2) “Interdito”: a pesca predatória dos botinhos.

(15) “Deslocamento”: locomoção do herói-vítima para suprir a carência

(13) “Reação à Prova”: por meio dos elementos mágicos, o herói-vítima consegue livrar-se da perseguição do boto.

(2) “Interdito”: fluxo da memória, resgata fatos da vida. E o boto é o interdito para as filhas não saírem de casa.

(PV) “Performance Vocal”: o silêncio (...) torna significante a idéia da malineza.

(29) “Transfiguração”: no mundo terreno, o homem vira boto.

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(20) ”Regresso”: mais psicológico pelo fluxo da memória.

(PV) “Performance Vocal”: retorno à narração em primeira pessoa e confirmação com o público

ouvinte.

Análise do conto XIII: Boto Vermelho

Fiz uma festa aqui na minha casa, uma colega minha viu o boto

vermelho com chapéu da imbaúba, é aquele lá... (PC). Ele dançou, ele brincou, quando deu meia noite (2), ele caiu dentro d‟água (6). Dizem

que ele vem em terra pra encantar as mulheres quando estão

menstruadas. Eles vão simbora pra bera do rio. Eles malinam muito, muito malinos... (PV) (Sra. Vangesti de Sales Alves)

Funções dos Personagens e Performances

(PC) “Performance Corporal”: aponta com o dedo e mostra a imbaúba.

(2) “Interdito”: o horário é momento para o desencantamento do antagonista.

(6) “Transfiguração”: o moço perde o feitiço e se transforma em boto.

Análise do Conto XIV: Boto de Cavalo

Meu sogro que morava lá encima, di noiti passava lá um homi di

chapéu na cabeça num cavalo branco.que.., (6) quando pensava que

não, aquele “tch... tch...” na água (2 e 8) (PV). Ele corria pra dentro d‟água. Eu nunca vi, mais eles calculava que era boto, eles diziam prá

lá (29) (PC). (Sra. Francisca Ferreira da Silva)

Funções dos Personagens e Performances

(2) “Interdito”: homem de chapéu na cabeça passava à noite.

(6) “Ardil”: o antagonista disfarçado de homem para enganar as mulheres.

(8) “Dano”: antagonista desaparece.

(29) “Transfiguração do antagonista”: reconhecimento pelo herói-vítima.

(PV) “Performance Vocal”: onomatopéia para imitar o barulho da água.

(PC) “Performance Corporal”: faz gesto como referência aos contadores dessa história.

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Análise do Conto XV: Lenda de Boto

Essa história do boto que o meu pai contava era o seguinte..., isso aí

vem de geração pa geração, esse negócio de lenda, de mitos (PV) (1). Aí ele tinha um roçado lá no outro terreno da minha mãe, lá encima, aí

quando ele saía de casa pra ir trabalhá no roçado, ele dizia pra nois qui

nois nu fosse pra bera pur que hora de seis hora era muito perigoso pra nois mulhê tá na bera do rio tomando banho (2). Aí inclusive uma

veiz eu tinha numa faxa de nove, dez ano, nois fumo tomá banho né

(1). Aí sabe como é criança né, minino pega corda um du outro e vai pulá na água, num qué sabê, aí apareceu uma canoa (14). Isso aí eu

conto purque eu mermo vi, tava na bera do rio (PV). Apareceu uma

canoa com um homi, u homi remando na frenti e vinha um velhinho barbado, bem velhinho na popa da canoa e disse que nois saisse da

água que era muito perigoso, a genti ta seis hora dentro da água (15).

Então aquela canoa apareceu du nada, aquele velhinho, velhinho. Nasci e mi criei aqui, eu nunca tinha visto aquele homi. Aí derdai eu

fiquei com isso na menti, pur que o meu pai falava... (PV). Mais sabe

como é qui é minino danado né, derdai nunca mais quis sabê di tomá banho seis hora na bera du rio. (30) (Sra. Sueli)

Funções dos Personagens e Performances

(1) “Situação Inicial”: apresentação da história; e afastamento da protagonista “menina”.

(Frame) Contador assume a responsabilidade de contar uma história que é patrimônio das

gerações, o que expressa as habilidades do contador à audiência.

(2) “Interdito ou Proibição”: o pai alerta dos perigos do rio às seis horas.

(14) “Recepção do Elemento Mágico na História”: o surgimento da canoa com um homem.

(PV) “Performance Vocal”: ênfase para convencer o ouvinte.

(15) “Deslocamento”: o antagonista vem das profundezas do rio para a superfície.

(PVC) “Performance Vocal”: o corpo e a voz dão ênfases para reforçar a proibição.

(30) “Castigo”: não tomar banho no rio no período noturno.

Análise do Conto XVI: Feras da Água

Fui aculá, vi o peixe dentro do pariri, jogo o espinhel, fui para o outro

lado e joguei a cascuda, a fera pegando (8). Chegou o meu irmão e

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pedi para desembarcarmos o surubin antes que alguém veja (31). Durante quatro dias nos seguiram para descobrir onde estávamos

pescando. Temos que ser sabidos porque se perguntarmos eles engana.

Então nós seguimos pra descobrir a toca (15). Temos medo do lago do Felipe, lá tem muito jacaré e cobra. Eles comem os pescadores. Em

época de cheia de dois a três meses, lá tem mais bodó (com

malhadeira). Os jacarés parecem um boi uiavando (2). Mais ou menos dois meses um pescador foi atacado por jacarés neste lago. (Sr.

Eduardo)

Funções dos Personagens e Performances

(8) “Carência”: desejo de capturar feras d‟água.

(31) “Recompensa”: captura do surubin.

(15) “Deslocamento”: a locomoção no espaço aquático é para não revelar o local sagrado da captura do surubin a outros pescadores “antagonistas”.

(2) “Interdito”: o lago do Felipe tem fera para capturar, mas tem feras que comem os pescadores, ou seja, o lago está enfeitiçado por feras.

Análise do Conto XVII: Piraíba

A gente sai pra pescar sábado de manhã bem cedo, a gente fomos lá

encima a donde tem um barranco lá, no alto onde chamam de Ponta.

Aí demos arrastado lá com a malhadeira pra pegá isca, pra pude linhar de linha comprida. Aí voltamos viemos arrastá aqui na frente,

mais abaixo (15). Aì mandaram por Deus a “cai o mapará boto”, isca

preferida de fera grande, dourado e piraíba (2 e 18). Meu esposo disse “vamos dá uma discaìda”. Eu pensava que a gente vinha pra casa

merenda. Aì eu inda falei uma maldade “pode se que essa disgraça dê

no pau, depois a gente tira”. Eu vinha cum raiva, acho que num durô cinco minutos a isca caiu na boca da bicha (16 e 18). Era um peixe tão

grande que só de se lembrar dá medo quando foi boiá. Aí tirô nois pro

rumo da água preta, do lado de lá. Aí o Sebastião, dono do restaurante,

ficou cum a piraíba, nois fizemo nossa casa cum o dinheiro (31). (Sra.

Milena)

Funções dos Personagens e Performances

(2) “Interdito”: presença de peixes menores para pegar feras.

(15) “Deslocamento”: o herói procura no ambiente aquático o nicho de pesca.

(18) “Vitória do Protagonista”: descoberta do nicho das feras.

(16 e 18) “Combate e Vitória”: o casal de pescador entra em combate com o antagonista,

captura da fera.

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(31) “Recompensa”: descoberta do nicho das piraíbas, captura e compra da casa com a venda do peixe.

Análise do Conto XVIII: Panema

Essa história é do meu pai (já coroa) (Frame). Um belo dia ele matou

um pirarucu nós tinha uma vizinha com o nome de Rosa (17). Ai ele tratou, tirou a carne do peixe e deu um pedaço pra vizinha (2), ai ele

pediu pra mamãe trata o peixe (8). Desse dia pra cá ele passou dois

meses sem pegar peixe. Ai ele disse pra mamãe, Elisa, a dona Rosa me panemou (30) Tinha uma mulher que conhecia o papai, ai papai

conversando disse que deu um peixe pra vizinha e desde esse dia não

arpoou nenhum peixe. Ai ela perguntou se a vizinha comeu o peixe. Então ela lhe panemou, ela disse pro papai que ele tinha que ir na casa

dela quando saísse de casa, você vá no fogão de barro e procure

embaixo do barro, papai tirou (10 e 19). Ela enterrou pra lascar com a vida dele. Aquela mulher é ruim (28). Eu nunca fui panemado, não

levo muita fé nesse negócio (PV). Eu tenho um irmão que pena

demais, ele é tão desconfiado, ele tem o maior medo de dar peixe. Não aceita peixe até quando eu quero dar. Ele não aceita. Depois você vai

dizer que eu coloquei panema. Passar por cima da tarrafa não pode.

Mijar por cima da escama também dá panema. (Sr. Eduardo)

Funções dos Personagens e Performances

(Frame) Contador assume a responsabilidade de contar a história do pai.

(2) “Interdito”: dividiu a pesca com a vizinha “pedaço”.

(17) “Estigma”: matar pirarucu atrai panema.

(8) “Dano”: pescou e deu um pedaço à vizinha Rosa.

(30) “Castigo”: ficou panemado pela vizinha.

(10 e 19) “Reação do herói-vítima e reparação do dano”: o personagem cumpre ritual para

despanemar.

(28) “Desmascaramento”: o herói descobre que a vizinha enfeitiça os pescadores.

(PV) “Performance Vocal”: o narrador traz a fala para a primeira pessoa, como forma de referência.

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Análise do Conto XIX: Encanto no Lago

Uma veiz quando eu tava pescando caiu um temporal, ficou tudo

branco, aí conforme eu tirava água, aquele negócio também tirava

água (1, 2 e 6). Era claro que aquilo... (PV), só podia ser algum

encanto, porque às veiz quando tava pescando encantava muito

“alicorne”, quando fui vê era um lago só de tufão (7). Quando cheguei

perto desse lago, eu vi um vulto, aí fui vê o que era, era uma canoa (8). Eu virei a canoa, quando olhei pra ela tava toda cortada de

tessado, a proa e a popa (19). Eu tenho pra mim que aquilo ali foi

alguma vingança de pescador. Porque eu fiquei pensando... (PV). Pescaria é muito perigoso. Sê comido por jacaré. (Sr. João Batista da

silva)

Funções os Personagens e Performances

(1e 6) “Situação Inicial e Ardil”: o antagonista utiliza meios mágicos para enganar a vítima.

(2) “Interdito”: ações repetidas imitando o protagonista.

(PV) “Performance Vocal”: reflexão do pescador (protagonista) sobre a suspeita da presença de um ser sobrenatural.

(7) “Cumplicidade”: pescador prevê a aproximação do antagonista e disfarça.

(8) “Dano”: o protagonista já sente algo estranho no ambiente.

(19) “Reparação do Dano”: o protagonista encontra a canoa e percebe que o encanto se desfez, pois não há presença do vulto.

(PV) “Performance Vocal”: ênfase no tom da voz, supondo ausência de palavras, e compartilhando com a audiência a suposta resposta.

2.2.2 Contos do Mundo da Floresta

Análise do Conto XX: Cobra Grande

O meu pai viu a cobra grande, desde que eu me entendi. Meu pai me contava que ela aparecia lá encima, onde hoje é Terra Caída, naquela

época não era caída (PV). Diz que ela tava aparecendo muito lá (2).

Quando foi uma noite, aí diz que lá vem, aquilo parecia uma tora de pau, aí ela veio..., veio pra bera (LP), ela encostou no barranco. Ele era

muito afoito, ele pegou uma taboca e deu encima dela (8), aí ela deu com o rabo que levantou água muito alto, aí parecia uma terra caindo,

aí ela desapareceu (16). Ele contava essa história, isso foi na noite do

velório (16). Era gente caindo, mulher dismaiando pra todo lado (PV).

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Isso era onde hoje é Terra Caída. A terra vai caindo e as pessoas vem vindo, vindo mais pra cá. Lá na Terra Caída morre muita gente (30).

Tem uma mulher que tava lavando roupa e nunca mais foi encontrada.

Eu sei que sumiu uma criança, tinha uns quatro ano, eu me dou com os pais dela. Acharo a boneca dela no mato, um pano que ela tava.

Essa menina nunca acharo, num sabe se foi cobra, jacaré bicho... (14)

Isso foi pra lá do colégio (PC). (Sra. Iracema Moraes Moreira)

Funções dos Personagens e Performances

(PV) “Frame”: narrador rememora que a história é do pai dela, desde que era pequena já sabe. Apresenta à audiência o local do enredo chamado Terra Caída, que antigamente não era caída.

(LP) “Repetição”: recurso para expressar drama.

(2) “Interdito”: a presença da cobra num determinado local.

(8) “Dano”: provocou a cobra com uma taboca.

(16) “Combate”: o herói-vítima entra em combate para vencer a cobra, O antagonista

desaparece de forma sobrenatural porque era noite de velório.

(PV) “Performance Vocal”: o fim do drama do personagem.

(30) “Castigo”: a Terra Caída é local de muito perigo, principalmente na atualidade, porque o

homem já impactou o seu próprio meio.

(PC) “Performance Corporal”: demonstração com as mãos, apontando para o lugar.

(14) “Recepção ou Transmissão”: a narradora prova, por várias outras histórias, um saber da

presença de um sobrenatural na floresta, já consagrado pelo tempo e espaço.

Análise do Conto XXI: Pau da Careta

Gosto de pescar no Juanico. Pra entrar lá no Juanico tem o pau da careta, é quase da grossura desse farol (LP) (PV). Já com três ou

quatro anos, meu irmão fez um cigarro e meteu lá na boca, porque tem

a caricatura de uma pessoa (2 e 17). A gente pesca o dia todo pra lá, lá tem o pau do “imbigo”, mais embaixo do pau da careta (15). A gente

conta porque já vem de outros mais velhos, quando eu. cheguei aqui

já ouvia falar desse pau (PV). Eu não pescava em igapó até uma vez eles me levaram lá pra conhece o pau da careta. Aquilo pra eles é uma

graça, é uma pessoa, aquilo é obra de Deus, só pode ter sido, quando

aparece essas coisa assi não é feita pelo homi, é obra do senhor (17). Os mais velho de outros tempo tem medo, eu não tenho. (PV) (Sr.

João de Jesus Sales)

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Funções dos Personagens e Performances

(LP e PC) “Linguagem Poética: Comparação e Performance Corporal”: o pau da careta é

como um farol, aponta para o objeto “farol”.

(2) “Interdito”: a caricatura de uma pessoa na frente do lago.

(17) “Estigma”: descrição das características do pau da careta, comparando-o ao homem. E na

segunda ocorrência garante que é obra de Deus “sobrenatural”.

(15) “Deslocamento”: a locomoção para os nichos de pesca requer um ritual de passagem pelos “estigmas” “pau da careta” (primeiro) e “pau do umbigo” (depois).

(PV) “Frame”: contador assegura a história da existência dos “paus” porque já é um saber proveniente dos mais antigos. Essa responsabilidade é revelada à audiência.

(PV) “Performance Vocal”: retoma o foco em primeira pessoa como forma de mostrar o enfrentamento aos recursos aquáticos mesmo diante de elemento sobrenatural.

Análise do Conto XXII: Pau da Careta

A História do pau da careta... (PV). Eu era pequeno ainda. O pessoal dizia “onde vai pescar fulano?”, “lá perto do pau da careta” (9). Que

diacho de pau é esse, é um pau mermo, dá uns quatro metros, tinha a

cabeça de uma pessoa, tinha zoio, boca, ingualzinho uma pessoa (2 e 17). De uns tempo pra cá ele não aparece mais, ele caiu (8). A

novidade é essa. (PV) Não sei se os mais antigo sabem outras coisa do

pau. (Sr. João Batista da silva)

Funções dos Personagens e Performances

(PV) “Performance Vocal: Frame”: o narrador assume sua condição de contador.

(2) “Interdito”: árvore na frente do lago com cara de pessoa.

(9) “Carência”: desejo de pescar lá no pau da careta.

(17) “Estigma”: descrição do pau da careta como elemento da natureza personificado em

forma humana.

(8) “Dano”: o pau não aparece mais, o que sugere a pesca já não ter mais a mesma

recompensa de tempos atrás.

(PV) “Performance Vocal: frame”: finaliza a história dizendo à audiência que a novidade é

essa e isso é o saber dele sobre o pau.

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Análise do Conto XXIII: Pau da Careta

O pau é tipo uma careta (2), é da natureza (17). Agora aí o pessoal

conhecia como pau da careta, acho que ainda existe (PV). (Sr. Gabriel

Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(2) “Interdito”: árvore com características humanas.

(17) “Estigma”: é imaginário, pois há personificação da floresta em pessoa humana.

(PV) “Performance Vocal: Frame”: o narrador deixa para o ouvinte a ambiguidade: “acho que

existe” como forma de legitimação imaginária da crença atualizada.

Análise do Conto XXIV: Pau da Careta

Esse pau da careta passa pelo Pau do “imbigo”, de lá vai pra Terra Preta, onde moraram us índio (1 e 2). As lenda que tem lá é aparece

lá..., as coisas onde os índio fazia que desenhava aquelas coisa de

barro, tudo lá (17). É que tinha uma cobra que agora saiu nesse méis de junho. (17) (PV) (Sr. José Vieira)

Funções dos Personagens e Performances

(1 e 2) “Afastamento e Interdito”: o pescador quer dizer que o local de pesca no lago do

Juanico é lendário, porque antigamente moravam índios da parte mais alta chamada Terra Preta, então neste lugar não alagava. Sugere que os índios desenhavam tudo, inclusive o pau

da careta como elemento sobrenatural para guardar o local de pesca.

(17) “Estigma”: o local já é um estigma imaginário porque vem de outros tempos e ainda

existe hoje, não mais guardado pelos índios, mas pela cobra.

(PV) “Performance Vocal: frame”: no final, o narrador atualiza a crença e o estigma do lugar,

com isso ele o sacraliza.

Análise do Conto XXV: Homem da mata

A outra história que eu vou contar é do meu irmão e minha (PV). O

meu irmão viu mermo, semana passada, um homem ali. Ele é alto,

moreno, barbado, bem pretão, pretão mermo (2). O pessoal fala que é

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satanás se apoderando do escuro (17). Ele só gosta de coisa escura. Ele ia passando, a gente víamos lá do jogo, era onze horas da noite,

tudo a pé, vinha na frente eu, meu irmão e o rapaiz dali, aí quando eu

passei, ele tava escorado no coqueiro, quando ele viu os mininos atrais (16), assim eu disse “mano aqui tem um homi”, aì eu pensei... qué

bem me assaltar, a gente pensa assim..., ele disse “cadê, cadê??” (LP),

aí eles vieram aqui em casa pegar os tessados (15), pegaram a lanterna e nada, ele foi pra dentro da mata (8 e 18). (Srta. Alessandra Silva

Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(PV) “Performance Vocal: frame”: contador mostra à audiência a habilidade em contar

histórias.

(2) “Interdito”: a presença humana à noite proíbe o acesso à floresta.

(17) “Estigma do Antagonista”: o imaginário descreve as características do homem da mata,

como um ser noturno ou comparado ao espírito mau, satanás que se apodera do escuro.

(16) “Combate”: os irmãos entram em combate com o antagonista, ou ser da floresta.

(LP) “Repetição”: drama

(15) “Deslocamento”: herói sai em busca de instrumento para conter o antagonista.

(8) “Dano e Vitória”: o antagonista desaparece repentinamente por meios sobrenaturais, a vitória é do herói.

Análise do Conto XXVI: Panema

Quando vamos pra pesca, preparamo os materiais (8). Eu separo tudo,

só que pra mim é proibido passar por cima dos materiais de pesca quando estou nos meus dias. Lá no rio eu sei fazer tudo (17). Pra

protege a pele eu uso calça comprida, camisa comprida e chapéu,

porque é muito quente, eu vou mostrá... (PC) Eles dizem que ficam panemados. Mulher não fica panemada, só os homens. Andá

menstruada na canoa também dá panema neles (2). A panema

acontece mais na terra e também depois que ficam panemados tem que despanemar e isso é mais na terra. Agora nesta época não estou

pescando porque ganhei meu bebê (2). (Sra. Ilma Sales)

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Funções dos Personagens e Performances

(8) “Afastamento e Carência”: há um ritual para pescar, porque quando o marido e a esposa

trabalham juntos cabe à mulher separar os materiais de pesca, de modo que não passe por cima deles quando está menstruada.

(17) “Estigma”: a mulher realiza todas as atividades na pesca, porém é estigmatizada pelo seu

poder maligno, a menstruação.

(2) “Interdito”: a mulher não pode pescar com o marido quando está menstruada, porque

panema o homem e também a ela é restrita a arte de pescar quando ganha bebê, o que abrange

o período de recuperação do parto.

(PC) “Performance Corporal”: vai relatando e busca a vestimenta para mostrar à audiência.

Análise do Conto XXVII: Encanto do Boto

Nois fumo numa brincadeira lá embaixo, o nome do estabelecimento

é Chico do Biel. Quando foi noite, minha tia tara sentada lá, tia Zé (1).

Aí chegou um rapaiz todo de branco perto dela e disse “minha senhora me diga uma coisa: será que boto casa?” (4). Foi o suficiente

pra ela gritar com dor de cabeça, todo mundo que tara na festa

começaro a sacudir ela, porque ela num agüentava mais (5). Eu tinha de nove a deis ano, meu tio, papai, mamãe, segurando ela (8). Ela

dizia isso: “o homi de branco me perguntou se boto casava”, ela

achava que tara querendo encantar ela e ao mermo tempo num deu certo, ela respondia: “boto aqui num casa” (10). Fazia hora que ele

tara olhando pra ela, quase qui ela vai. Quando ela si lembrava ficava

assim (10). E também nesse mermo dia ela tara menstruada nesse dia, então atrai mermo tudo que é tipo de bicho, cobra... (PV) ,

principalmente boto. (Sra. Milena)

Funções dos Personagens e Performances

(1) “Afastamento”: a brincadeira no estabelecimento do Chico do Biel.

(4) “Interrogatório”: o rapaz pergunta à moça.

(5) “Informação”: a vítima descobre a presença do boto.

(8) “Dano”: as pessoas vigiando a moça

(10) “Reação”: a moça reage à presença do homem dizendo que boto não casa para não ser

encantada por ele.

(PV) “Performance Vocal”: dramaticidade à história pela ênfase no tom da voz.

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2.2.3 Contos das Profundezas das Águas

Análise do Conto XXVIII: Pai do Lago

O meu avô conta uma história do homi que ele viu lá no lago Juanico

(PV), dentro do lago, branquinho, branquinho, tava no lago puxando

uma canoinha, menor de que essa e muito (6) (PC). O meu avô disse que ele é o Pai da Mata e do Lago (6). Tem aquele horário pra você

pescar, e você sair de dentro do lago, que senão ele le encanta (8). O

meu avô já foi no fundo do mar, lá no lago Juanico. Ele levou o meu avô lá pra ver como é. (12) Essa história é real. Minha mãe sempre

conta que isso aconteceu mermo com ele (PV). Ele veio com a canoa

cheia de peixe, peixe (LP) de toda qualidade porque outras vezes ele não tinha um peixe pra comer e quando ele vinha de lá trazia a canoa

cheia de peixe (18). Isso que é engraçado (PV). (Srta. Alessandra

Silva Sales)

Funções dos Personagens e Performances

(6) “Ardil”: o protagonista descreve o antagonista como um ser vindo das profundezas do

lago.

(PC) “Performance Corporal”: mostra uma canoa que está ao lado como comparação ao tamanho da embarcação.

(2 e 8) “Interdito e Dano”: a pesca no lago é feita até um determinado horário, ou seja, o pai do lago faz o controle do ambiente aquático e da mata. O encantamento dura um determinado

período.

(12) “Prova”: o herói vai para o fundo do lago e conhece a cidade encantada onde mora o pai

do lago a permissão é dada pelo dono do lago.

(PV) “Performance Vocal”: forma de legitimação da história, porque o avô e a avó contam

dessa forma, assegurando credibilidade ao narrador.

(LP) “Linguagem Poética: Repetição”: recurso dramático.

(PVC) “Performance Vocal e Corporal”: dramaticidade pela expressão vocal e facial.

(8) “Vitória”: o protagonista alcançou a carência: a pesca foi proveitosa.

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Análise do Conto XXIX: Encanto na Água

Vou contá um fato que aconteceu na minha família (PV), sou casada,

tenho 6 filhos, na época não tinha estudo elevado aqui, eles foro

matriculado em outra escola que tinha ensino elevado, eles saiam 9 e

meia, deiz hora da minha casa e retornavam à noite 10 ou 11 hora da

noite quando o motô nu dava problema (1). Aí aconteceu uns fato, não foi só um, foi vários, com as moça de lá, que as moça pegava...,

chamavam, chamavam negócio de caboclo (LP). Aí quando elas

ficavam fora delas num tinha homi que segurasse elas, era deiz, quinze homi pra segurá ela que elas tinha um Encanto na água. A

vontadi delas quando dava esses problema elas queriam ir pra água,

pra água, (LP) inclusive até morreu um rapaiz da escola, depois dele morto é que foro descobri que ele tinha um espírito maligno, que ele

tinha matado ele. Aí a genti sempre preocupado de acontecê com uma

das minha filha. Ela chegava em casa, aí eu vim descobri porque ela ficava muito caladona num queria tê contato com ninguém, aí as veiz

eu conversava e procurava sabê o que que ela tinha, aí ela sempre

assim... meio aborrecida. Aí quando foi o terceiro dia conteceu... (PV). Eu nunca cheguei a vê mais eu só via os comentários dos outros aluno

que ela virava Ruck (LP) a bordo do motô, aí quando foi um dia...

(PV). A minha maior preocupação é que tava alagado nesse dia e o destino dela era ir pra água, a gente tinha a maior preocupação, era

época do rio alagado (2), que nois morava aqui na Várzea. Aí quando

era di noite eu pregava prego nas janelas com medo dela querê cai na água e dá esses “acessos” nela (2). Aí atraveis de uma colega minha

ela falou que tinha uma parenta dela em Manaus que embaixo de Deus

ela curava esse tipo di problema assim. Aí aconteceu deu di chegá o dia, aí eu levei, quando eu levei ela daqui com medo né, lá do

Encontro das águas di dá aqueles acesso nela i ela querê cai n‟água

purque assim... , o Encontro é sempre o lugar dessas coisa assim, aí ela foi amarrada (15). Então ela até chorava e dizia purque... ela não

era bicho. Aí quando nois chegamo lá na senhora, ela começou a passá

mal, eu fiquei preocupada que eu nuca tinha visto né, aí a curandeira foi e disse que eu não tivesse medo não, qui ela não ia fazê nada não,

aí foi quando ele baixou nela, (16) “O pessoal que diz quando caboclo

baxa na pessoa assim” aì ele perguntou de mim o purque que eu tinha

ido lá, qui ela já pertencia a ele, que ele ia levá ela pro fundo do mar

pra mostrá as coisa mais cristalinas que tinha no fundo do mar (4 e 5).

Aí eu falei pra ele que ele não tinha mais poder do que Deus. Minha filha ia ficá boa, aí ele pediu que levasse o namorado dela, que o

namorado dela uma noite dessa nois tava aqui na taberna aí nois tava...

só vimo aquele... era ele o namorado da minha filha brigando com essa dita pessoa que tinha vindo pra buscá ela (16). Ela já tinha ido

embora, ela tava lá no caminho do porto, lá pra fora, aí ele correu

atrais dela, correu pra i buscá pra quilo num acontecê qui a vontadi dela era ir pra água, aí quando nois descobrimo viemo pra casa, ele

tava todo machucado. O espírito lá acertava nele, só que ele não

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acertava meu genro, us murro dele só dava nu ventu, aí eu rezava muito com ele sabe... di noite. Então chegou u dia deu mostrá o

catecismo pra ela, pra ela rezá, orá, que Deus desse aquela cura dela,

ai ela viu uma imagem na bíblia, acho qui pode te sido algum apóstolo que tava na, na página do catecismo, aí ela foi e jogou fora, aí eu disse

pra ela “purque tu jogou fora minha filha, aqui tá a palavra di Deus?”.

Aí ela disse “parece cum esse homi, mamãe, é todinho esse homi”, era horrível, se fô pecado qui Deus mi perdoi, parece qui era o apóstolo

(LP), ele era muito feio barbado, barbado, cabeludo, velho, né. (17).

Aí ela jogou o catecismo fora, aí ela disse que eu num mostrasse mais qui aquela imagem era idêntica a du homi qui aparecia pra ela, aí ela

pegou..., ele vinha di noiti e entrava pela porta di trais e sentava no

sofá, ele passava a noiti todinha adorando ela (21). Só que ele num si prevalecia dela purque toda noiti eu orava e dexava a bíblia embaixo

da rede dela (14). Aì ela perguntou um dia dele “por que com tanta

pessoa?”, ele disse que si engraçou dela pur que ela era uma moça muito obidiente, dona di casa, uma excelenti pessoa... Aí foi quando

eu levei ela nessa senhora lá abaixo de Deus, ela disse pra mim que

ela tava curada (18), aí di lá pra cá eu nunca mais tive problema com ela. (Sra. Sueli)

Funções dos personagens e Performances

(PV) “Performance Vocal”: foco em primeira pessoa para situar o ouvinte.

(1) ”Situação Inicial”: apresentação dos personagens.

(LP) “Linguagem Poética: Repetição”: “chamavam, chamavam”, serve como recurso de

ênfase. A outra repetição “água, água” como drama

(PV) “Performance Vocal”: a interrupção da fala expressa drama.

(LP) “Linguagem Poética: Metáfora”: associação com o “Ruck”, personagem da ficção

cinematográfica.

(PV) “Performance Vocal”: drama pela interrupção da fala.

(2) “Interdito ou Proibição”: época da cheia é perigoso, porque surgem espíritos das águas

profundas.

(15) “Deslocamento”: a moça vai para Manaus à procura da curandeira.

(16) “Combate”: a personagem “moça” é tomada pelo sobrenatural.

(4 e 5) “Interrogatório e Informação”: personagens da história dialogam, sendo a Sueli e o homem das águas.

(16) “Combate:” namorando com o homem das águas.

(17) “Estigma”: descrição do homem das águas.

(21) “Perseguição”: o homem perseguia a moça até quando ia dormir.

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(14) “Recepção do Elemento Mágico”: a bíblia serve de amuleto para afastar o mal “homem”.

(18) “Vitória”: veio por meio da curandeira com seus poderes sobrenaturais.

(LP) “Linguagem Poética: Metáfora”: o apóstolo é a metáfora da divindade homem das

águas com poderes de encantar.

À guisa inicial desta análise interna dos textos sobre as funções dos personagens e as

performances poéticas, confirmaram-se que, nos três mundos: mundo das águas, mundo da

floresta e mundo das profundezas das águas, há uma carga de ambiguidade, ou seja, eles

sugerem o quanto o ribeirinho-pescador transita nos espaços aquáticos e cria nesses mundos

seu estado de equilíbrio com a natureza.

O conjunto dos 29 contos analisados pontua instrumentos conceituais e analíticos, tais

como: a predominância das funções, a destacar, das 31 apontadas no método de Propp (2006),

o afastamento, o interdito ou proibição, a transgressão, o deslocamento, o combate, o

regresso, a transfiguração, a recompensa. A forte presença destas funções dos personagens

remete a ações no enredo das histórias; ainda contêm nessas narrativas as performances,

espécie de dominante poética dos narradores como construção onírica e literária.

A predominância das funções mostra o quanto as ações dos personagens corroboram

na construção do enredo narrativo. A estrutura narrativa não-linear revela o fluxo da memória,

e isso caracteriza a categoria narrativas imaginárias como literatura oral amazônica.

Outrossim, a dominante poética, já evidenciada nos contos, reforça o quanto os

ribeirinhos, imbuídos de um saber local, moldam seus mundos pelo viés do onírico. Esse

mundo feérico do sonho está na estrutura social do ribeirinho.

A juntura das funções dos personagens ao aspecto poético revela o quanto o

imaginário das águas mergulha na categoria maravilhoso, o qual se desdobra em faces: do

medo, como elemento de comunicação, com o mundo dos encantados; pela linguagem

conotativa como elaboração de um mundo simbólico e regulador do grupo social; pela

metamorfose como eixo temático das narrativas. Eis o que diz Propp: “As funções constituem

os elementos fundamentais do conto maravilhoso, sobre os quais se constrói o curso da ação”

(PROPP, 2006, p. 68). Aqui cabe esclarecer que a ordem não está em questão, mas a presença

das funções assegura a tese de que estamos diante da categoria narrativa “maravilhosa”.

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Nesta perspectiva, Todorov (1975) contribui com seus estudos sobre o fantástico e o

maravilhoso, mais especificamente com a ideia de atenuação, pois é possível perceber que

existe uma linha bastante tênue entre o natural e o sobrenatural e essa atenuação é necessária

na comunidade São José. E dialoga com a abordagem das “relações internas de um sistema

social” (MATTA, 1977, p. 95) que subvertem as dicotomias: homem/natureza,

natureza/sociedade, natural/sobrenatural. Esses aspectos serão ainda pertinentes à abordagem

no próximo capítulo.

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CAPITULO III

3. O “MARAVILHOSO” COMO ENCANTARIA DAS ÁGUAS

A literatura oral amazônica comporta uma linguagem onírica, porque contém o

maravilhoso como elemento de encadeamento entre o natural e o sobrenatural. As narrativas

imaginárias, aqui estudadas, expressam marcas visíveis de uma cultura híbrida. Logo, o

onírico, além de estar na estrutura social, também a subverte e legitima o conto maravilhoso

como categoria da literatura oral Amazônica.

A teoria da literatura de Tzvetan Todorov, Introdução à Literatura Fantástica, (1975),

norteou esta reflexão no que concerne ao maravilhoso. A escolha desta teoria vem reconhecer

que há uma estrutura premente nas narrativas maravilhosas que, por sua vez, desvelam a

linguagem onírica como construção pertinente à vida nas comunidades da Amazônia. A

linguagem onírica se destaca da linguagem comum do cotidiano por ser aquela carregada de

poesia. Desse modo, pode-se dizer que as narrativas maravilhosas apresentam faces do

imaginário e que isso lhes vem assegurar o caráter literário. Essas faces são aqui ditas pela

literatura, pois ela sabe dizer tão bem o que outras linguagens não dizem.

A propósito, a título de esclarecimento, este trabalho não abordará, em profundidade,

o gênero do conto fantástico, mas, por vezes, explicitará sua proximidade com o maravilhoso.

Como ainda, adentra a categoria do maravilhoso a fim de desvelar suas especificidades, ou

seja, não o que tem de específico em cada conto, mas o que neles existe e, via de regra, é

comum ao conjunto de contos aqui expostos, os quais configuram as faces do imaginário

amazônico.

Segundo Tzvetan Todorov (1975), não será o gênero que define o conto maravilhoso,

nem tampouco a comparação a outros gêneros, porém “[...] a obra vale pelo que tem de

inimitável”, ou melhor, o texto aqui é tomado como objeto deste estudo e por ele mesmo; nem

o gênero, nem a comparação estão em debate. A análise literária, sob o viés de Todorov,

embasa esta teoria quando sugestiona que a análise do texto busca o que existe em si, ou seja,

nele mesmo. Portanto o texto forneceu os elementos desta análise compreensiva.

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Muitas são as críticas aos estudos estruturalistas e aos seguidores desta teoria.

Inclusive, Vladimir Propp é bastante criticado por seus estudos sobre contos maravilhosos.

Dele este estudo viu e acolheu a abordagem sobre as funções das personagens, por assim

acreditar que foram/são de muita importância nos debates da literatura. A análise convida-nos

ao devaneio, já que os contos imaginários dos pescadores ribeirinhos do Amazonas

apresentam uma estrutura não-linear, cujo maravilhoso vem de águas profundas carregado de

poesia dos rios, dos lagos, das pessoas, da vida na comunidade, do mundo das águas. O

onírico move as águas da estrutura social existente na comunidade e está sob a força do

imaginário.

Embora Tzvetan Todorov e Vladimir Propp tenham realizado seus estudos sob bases

estruturalistas, muito dos traços do estruturalismo ainda moldam as sociedades ditas

contemporâneas. O que importa são os aspectos extraídos do estruturalismo que ajudaram a

compreender esta pesquisa. Dentre muitas, a crítica ao estruturalismo também se dá por

razões, dentre elas: “[...] a analogias com a Botânica ou a Zoologia” (TODOROV, 1975,

p.10). A similitude com as Ciências Naturais é bastante refutada pelo estudioso quando

defende a sua própria base teórica, como mostra neste trecho:

[...] todo estudo da literatura participará, quer queira ou não, deste duplo

movimento: da obra em direção à literatura (ou ao gênero), e da literatura (do

gênero) em direção à obra; privilegiar provisoriamente uma ou outra direção, a

diferença ou a semelhança, é um procedimento perfeitamente legítimo.

(TODOROV, 1975, p.10)

Importa a Todorov, não a reprodução de uma teoria, mas criar a sua própria

metodologia. Por isso, sua base teórica está na medida certa para o estudo do fantástico e do

maravilhoso. Sob esse norte, os estudos todorovianos deram luz à teoria que estuda os contos

imaginários sob o enfoque do maravilhoso como literatura oral amazônica. Em sua própria

base teórica, o duplo movimento citado reporta para uma ação do externo para o interno, ou

deste àquele. Aquém destas, também temos uma terceira possibilidade que enseja o

movimento recíproco ao mesmo tempo para legitimar o texto. Quer Todorov, em sua base

teórica, que a literatura permaneça com este movimento dinâmico. E, se é bastante flexível,

não convém adotar nesta análise dos contos imaginários uma direção estática, mas de via

dupla e dinâmica, e ambígua. Os estudos do conteúdo literário tomam o texto como objeto de

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estudo, no entanto, no caso desta pesquisa, o objeto de análise é o texto oral como reprodução

do mundo imaginário dos amazônicos. A propósito, o duplo movimento aqui mostra que há

uma sincronização de elementos sobrenaturais que revelam o onírico e legitimam o

imaginário como forma simbólica da literatura oral amazônica.

Para Lovecraft, a quem Todorov faz críticas, o fantástico não está na obra, mas na

experiência do leitor, cujo medo é a revelação da presença do sobrenatural. Para este mesmo

autor, um conto é fantástico quando o leitor mergulha no mundo do insólito (LOVECRAFT,

apud. TODOROV, 1975, p.40). Vê-se quanto o leitor interfere no desfecho do texto, pois a

ação não está na personagem, mas no leitor, ou melhor, fora do texto. Esta ideia mantém-se

contrária ao movimento duplo de Todorov.

Analisando o dicionário literário de Massaud Moisés, tem-se: “Maravilhoso -

Maravilha + oso, do latim mirabilia, coisas admiráveis, plural neutro de mirabilis, estranho,

notável” (2004, p. 274). Os acontecimentos terrenos estão sob a força sobrenatural ou não, ou

seja, a surpresa é o ato desencadeador dos encantamentos e das revelações do mundo

sobrenatural. Para os ribeirinhos, há certa ambiguidade no mundo terreno, pois os

sobrenaturais permanecem em suas vidas.

Neste arcabouço teórico sobre o maravilhoso, articula-se também a ideia de Carpentier

(2005) sobre o “real maravilhoso”, a partir do romance El Reino de este mundo, lançado em

1949, posterior a 1928, primeira edição de Morfologia do Conto maravilhoso, de Vladimir

Iakovlevitch Propp. Cabe a articulação porque a teoria do “real maravilhoso” de Carpentier.

dá novo caráter à narrativa hispano-americana dos anos, 1960 a 1970, o que eleva tanto a

produção quanto seus escritores latino-americanos ao reconhecimento internacional. O projeto

de Carpentier compõe a expressão literária não só pelo olhar do belo, mesmo porque a

literatura estava muito amarrada ao paradigma estético “realista-naturalista”, mas também a

ótica de que os fatos do cotidiano são “pitorescos” e, portanto, elevados à categoria folclórica,

porque, segundo Carpentier:

Para empezar, la sensación de lo maravilloso pressupone uma fe. Los que no

creen em santos no pueden curarse com milagros de santos, ni los que no son

Quijotes pueden meterse, en cuerpo, alma y buenes, en el mundo de Amadís de

Gaula o Tirante el Blanco. (CARPENTIER, 2005, p. 12)

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O “real maravilhoso” pressupõe não uma abordagem partidária do real, mas a que

valoriza o insólito ou extraordinário, vistos não só no cotidiano do Haiti, como também em

qualquer sociedade. A fé individual ou coletiva está presente no romance porque o autor

bebeu na fonte de suas viagens ao Haiti. Desse modo seu poder de criação pela utilização de

elementos mágicos, pela prática religiosa, pela voz da cultura negra, pela exploração dos

mitos, crenças vivas, pela elaboração de reinos encantados, pela simbologia dos utensílios de

trabalho dos negros, utilizados em campo de batalha na revolução, os quais são indícios do

insólito, do extraordinário. Essa configuração toda é percebida na trama da narração, nas

ações de um “Mackandal” ou “Bouckman”, personagens emblemáticos de Carpentier que

usam o artifìcio da prática “dos venenos” para o enfrentamento aos adversários nos campos

de batalha da revolução. Esse conjunto ficcional todo está nas páginas de El reino de este

mundo, o qual desvela o projeto da nova expressão literária, assim definida pelo autor: “lo real

maravilloso no era privilegio único de Haiti, sino patrimônio de la America entera, donde

todavía no se há terminado de establecer, por ejemplo, um recuento de cosmogonias.”

(CARPENTIER, 2005, p. 13-14).

Neste fio discursivo, vale retomar que, à similitude da narrativa de um Carpentier, está

Vladimir Propp, Lesskov (apud. BENJAMIN, 1992), Paul Zumthor, porque esse autores

beberam na fonte das criações orais, do cotidiano, da vida das pessoas, das memórias

individuais e coletivas. Desse modo, também cabe dizer que as Narrativas Imaginárias dos

ribeirinhos da comunidade São José, também possuem esta mesma especificidade.

O mundo dos encantados na Amazônia já existe desde a época dos índios até os dias

de hoje. Também já configurou tema de pesquisa de Eduardo Galvão em Santos e Visagens:

um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas, com primeira edição em 1957. Os

aspectos históricos servem-nos, senão como fatores determinantes, mas como objetos de

análise para compreender o porquê da existência de comunidades cuja modalidade oral

impera como principal meio de comunicação, mesmo inseridos num processo social da

cibercultura13

, da web 2.0, do mundo virtual, da possibilidade de estudar, inclusive, na

modalidade Educação a Distância. Interessa perceber que o oral não deixou de existir, apenas

mudou a abordagem. No contexto da cibercultura, esta distância da sociedade é apenas,

porque a necessidade das trocas simbólicas está cada vez mais dinâmica. Tem-se uma

mudança apenas no formato, devido à inserção e ao uso das tecnologias e das mídias. Mas o

13 In. LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Atlas, 1999.

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enfoque deste trabalho não adentra esta questão, porém optou-se em não deixá-la à margem

do rio das discussões, por não ser conveniente.

Navega-se de muitas maneiras para estabelecer as trocas simbólicas seja pelo rio que

conduz e imprime força aos ribeirinhos, seja pela ciberweb. Portanto o reino dos encantados

não é uma criação onírica somente da cultura dos indígenas, nem somente da dos ribeirinhos,

mas já integra a cultura amazônica, a brasileira, a ocidental como elemento existente nas

sociedades.

Os encantados estão no debate acadêmico desde a época dos navegantes, mas o que

interessa exatamente não é tecer um marco da origem dos encantados. De outra maneira, sim,

conduzir o debate analiticamente para perceber as várias facetas teóricas e poder, com maior

propriedade, fazer uma leitura do mundo maravilhoso ou do mundo mágico tão presente na

conjuntura social da Amazônia. Em referência à obra supracitada de Eduardo Galvão, tem-se

a seguinte definição sobre a origem dos encantados:

O conceito de encantado por exemplo, que baseia ou entremeia as descrições de

sobrenaturais de origem indígena, é em muitos casos um empréstimo europeu que

não se deve desprezar porque constitui atualmente parte integrante e ativa da crença.

O mesmo se pode dizer de divindades ou espíritos malignos, que embora sua origem

aparentemente ameríndia, aproxima-se modernamente de crenças européias como a

dos lobisomens. (GALVÃO, 1976, p.66)

A ideia de “empréstimo europeu” dever ser relativizada, pois os europeus viajantes

desvendavam a região amazônica como “a desconhecida”, objetivando interesses econômicos,

logo permutavam e/ou impunham sua cultura aos indígenas.

No Dicionário de termos literário constam informações sobre o feérico e o fantástico,

tais como:

Nos últimos decênios do século XX, o maravilhoso voltou à cena literária em

companhia do fantástico, com o qual não raro se confunde ou se mescla.

Tomando-o como gênero, houve quem considerasse o feérico e o fantástico suas

espécies: “longe do real, o maravilhoso feérico secreta o seu próprio espaço, o

seu próprio tempo, as suas próprias personagens” Daì que “o fantástico dos

romances góticos é um maravilhoso que mete medo (VAX, apud. MOISÉS,

2004, p. 275).

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O mundo mágico pertence à literatura amazônica, de outro modo, não está só na

literatura estrangeira como já mencionado anteriormente. É visível também a presença do

maravilhoso como marca nos contos imaginários dos povos insulares da Amazônia como

singularidades pertencentes à literatura brasileira. Os encantados também ensejam estar na

discussão acadêmica, uma vez que, a partir do século XX, como bem menciona (MOISÉS,

2004), ganham destaque no âmbito da literatura e afloram como categoria narrativa

maravilhosa. Mas, além do maravilhoso, também se destacam os contos fantásticos, porém

delimitar um rio divisor do maravilhoso e do fantástico sempre gerou e ainda gera polêmica.

Mas a questão não é polemizar também, porém tomar o leito discursivo dos vários autores e

perceber não a distância, sobretudo, a proximidade, ou melhor, a vizinhança do fantástico e do

maravilhoso em específico nos contos imaginários dos ribeirinhos amazônicos.

A literatura oral, de qualquer país ou região, é plena de elementos fantásticos, ou

maravilhosos, por exemplo, As mil e uma noites. A fadiga de algumas formas realistas tem

conduzido muitos escritores ao mundo do fantástico e do maravilhoso. No fantástico as

personagens submetem-se aos acontecimentos, logo a dicotomia entre os planos natural e

sobrenatural dissolvem-se; ainda nesta distinção, o fantástico pertence ao mundo do terror e

do medo. O mágico pertence ao mundo da interdição, do refúgio contra o terror ou o medo.

Intercambiando fantástico e maravilhoso tem-se o medo como elemento presente em ambos.

Ressalte-se, no entanto, para o maravilhoso o medo desencadeia o interdito como espécie de

refúgio; já no fantástico, o medo mantém a estrutura e isso garante o fantástico, sem esquecer

que o leitor tem o poder de decisão para atenuar ou aumentar o medo.

Na obra Introdução à Literatura Fantástica, Tzvetan Todorov (1975) explana acerca

do fantástico e do maravilhoso. A obra conduz à leitura sobre a pertinência dos traços de

vizinhança entre os dois gêneros. A vizinhança se desfaz quando o leitor intervêm de modo a

dialogar com a obra quando está diante do que para ele possa ser insólito, pois o fantástico se

diferencia do maravilhoso porque engloba estas três condições:

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo dos

personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação

natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta

hesitação pode ser igualmente experimentada por personagem; desta forma o papel

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do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a

hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra; no caso de uma

leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem. Enfim, é importante

que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a

interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”. (TODOROV, 1975, p. 38-

39)

Em síntese, as três condições mencionadas acima recaem sobre o enfoque da

competência do leitor. Deste modo, estes três aspectos se assemelham e legitimam o

fantástico. Portanto, não para só nisto, a distinção vai além, pois o mais importante não é a

estrutura da intriga, menos ainda a capacidade de criação do autor da narrativa, nem tampouco

os pontos que costuram a intriga, mas preponderantemente a carga emotiva que emana do

leitor real e de sua experiência com relação ao estado atmosférico provocado pelo conto. O

autor Lovecraft é discìpulo desta idéia “(...) Eis por que devemos julgar o conto fantástico não

tanto em relação às intenções do autor e os mecanismos da intriga, mas em função da

intensidade emocional que ele provoca” (apud op. cit., p. 40).

No leito do debate sobre o maravilhoso, Todorov (1975, p. 60-63) divide-o em

(sub)categorias, a fim de mostrar o quanto a obra convida à “exploração mais total da

realidade universal”, como mostram as seguintes classificações:

a) Maravilhoso instrumental: há presença de instrumentos mágicos que servem de

comunicação com os outros mundos;

b) Maravilhoso científico ou ficção-científica: aqui o sobrenatural ganha uma explicação

a partir do que a ciência moderna não tem poder de explicar;

c) Maravilhoso hiperbólico: há um certo sobrenatural, mas a razão ainda prevalece;

d) Maravilhoso exótico: a definição do exótico está no receptor implícito da narrativa,

pois o narrador implícito se encarrega de misturar o natural e o sobrenatural.

No entanto, segundo o mesmo autor, há o maravilhoso puro citado por Pierre Mobille,

cujo sentido consta:

Para além da satisfação, da curiosidade, de todas as emoções que nos dão as narrativas, os contos e as lendas, para além da necessidade de distrair, de esquecer,

de buscar sensações agradáveis ou terrificantes, a finalidade real da viagem

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maravilhosa é, já estamos em condições de compreendê-lo, a exploração mais total

da realidade universal. (p. 24, apud TODOROV, 1975, 63).

A inferência a ser feita sobre o maravilhoso está na expressão “a exploração mais total

da realidade universal” (op. cit.). Fala-se da mesma “realidade universal” também defendida e

explorada por Carpentier (2005), por Vladimir Propp (2006), por Walter Benjamim (1992),

por Zumthor (2007), Krüger (2005), por Fares (2003). Nota-se que o maravilhoso, além de

trabalhar a realidade universal, extrapola suas próprias fronteiras. E, o ir além envolve a

linguagem figurada e poética. A presença das figuras de linguagem, assim como “a realidade

universal” configuram conteúdo do maravilhoso na literatura amazônica. Este diferencia-se do

fantástico, porque contém em si a exploração da linguagem alegórica e poética.

As palavras tomam sentidos: o próprio e o figurado ou alegórico. Cabe agora não

estabelecer fronteira, mas evidenciar os elementos pertinentes que ajudam na configuração do

caráter alegórico das narrativas imaginárias. A linguagem figurada pertinente é a indireta,

logo o sobrenatural assume símbolos dessa expressão figurada da linguagem pelo medo como

elemento de comunicação.

3.1 O medo como elemento de comunicação com o mundo dos encantados

Nas palavras de Todorov (1975), o medo é marca do fantástico, no entanto, como há

uma vizinhança entre o fantástico e o maravilhoso, observa-se também que o medo está do

mesmo modo nas narrativas maravilhosas, cuja manifestação de comunicação é indireta, ou

seja, é visível por meio do sobrenatural. Logo, o medo é manifestação da comunicação prenhe

de poesia e que é estabelecida com o sobrenatural pelas personagens. A presença do medo nas

personagens é visível quando acontece a ação, ou seja, ela surge nos contos quando há o

enfrentamento da personagem nos espaços de pesca, cujo embate se dá nos mundos: mundo

das águas, mundo da floreta, mundo das profundezas das águas. Convém esclarecer que para

os pescadores não há separação física nem geográfica, pois a floresta é o rio, o rio é a floresta,

a floresta é a terra, a terra é o rio; o rio, a floresta e a terra constituem universos aquáticos para

os pescadores.

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Mas o que vem a ser o medo aqui exposto? Na perspectiva de abordagem de Todorov

(1975, p. 40-41), o medo não é condição necessária para assegurar se uma obra pertence à

categoria “fantástico”, assim como também não é para a definição da categoria

“maravilhoso”. No entanto, o medo é elemento em ambos. Em especial sobre as narrativas

imaginárias aqui analisadas, o medo predomina em todas as narrativas, mesmo porque, o que

define esta análise é o objeto e não os conceitos em si.

O medo compartilhado pelas vozes dos narradores nos contos não é físico nem

material é de outra ordem. Ele é maravilhoso e perpassa os sentidos em sua plenitude, vem

expresso pela linguagem onírica em forma de sinestesias, de onomatopeias, hipérboles da

floresta, da terra e das águas. Essa linguagem das sensações é expressa pelas vozes dos tantos

narradores que tão bem conhecem os espaços amazônicos e os poetizam de forma simples,

mas com carga de certeza da realidade em que vivem. Para isso, cada trecho ilustra essas

vozes das personagens ora no papel de personagens oniscientes, ora no papel de personagens

onipresentes. Apreciar-se-á abaixo essas nuanças do medo.

Maravilhoso poético do medo

Mistura de sentidos: Conto I: “Era passarinho gritando... escutou aquilo??”; Conto

VIII: “Aquela água vinha chiando pra perto dele”; Conto IX: “[...] as folhas vêm, os

animais se espantam”; Conto XI: “O boto tara puxando a perna dela”; Conto XIV: di

noite passava um homi [...]”; Conto XV: “[...] hora de seis hora era perigoso pra nois

mulhê ta na bera do rio [...]”; “Temos medo do lago do Felipe”; [...] era um peixe tão

grande que só de se lembra dá medo”; Conto XVIII: “[...] ele tem o maior medo de dar

peixe”; Conto XXV: “[...] escuro”; Conto XXVIII: “Tem aquele horário pra você

pescar, e você sair de dentro do lago, que senão ele le encanta”.; Conto XXIX: “[...]

alagado, o destino dela era de ir pra água”.

Hipérboles das águas: Conto I: “Essa história de medo [...]”; Conto II: “Pra num faze

medo a ela [...]”, Conto III: “[...] já botamos pra trais „[...] papai que bicho é isso aì‟”;

Conto IV: [...] ninguém pesca lá, todo mundo tem medo”; Conto X: “ Lá num mora

ninguém”; Conto XIX: “[...] aì conforme eu tirava água, aquele negócio também tirava

água”.; Conto XX “[...] aquilo parecia uma tora de pau [...]”; Conto XXVII: “[...] será

que boto casa?”.

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Onomatopeias das águas: Conto II: “Hum... Hum... . Minha mulhe disse: „João o que

foi isso‟ „num foi nada não‟”; Conto V: “[...] ela istalava e assusta os bicho tudinho”.

Conto VI: “[...] porque ela tremesse a água, espanta os bicho, jacaré, jaçanã”.

As vozes das personagens nos trechos das narrativas expressam uma atmosfera

poética e emotiva, com certa carga de intensidade. Umas com maior intensidade como nos

contos da cobra; outras, o medo surge com menor força. O compartilhar, neste caso, também

se revelou uma arma poderosa para o enfrentamento das personagens e isso fica evidente

quando o medo é dividido entre personagens e isso aumenta a certeza da presença de seres

imaginários, considerados também divindades do sobrenatural. Como mostram, a exemplo,

algumas falas das personagens “papai que bicho é isso aí” (Conto III) e “[...] escutou aquilo”

(Conto I). O silêncio vem como resposta a esta interrogação, ou mesmo em poucas palavras,

expressando a carga de cumplicidade pela presença dos encantados seres imaginários .

Em referência à obra A cidade de Deus, de Santo Agostinho, volume I, livro I e VIII,

esta explana sobre a existência de monstros humanos, também remonta a origem desde os

escritos bíblicos, como mostra esse trecho “Da descendência de Adão ou dos filhos de Noé

provieram certas castas de homens monstruosos?”. Essa interrogação inicial do volume I

(AGOSTINHO, 1996, p.1473) tem como resposta, na mesma obra, o seguinte: “Para concluir

esta questão com prudência e cautela: ou o que se conta dessas raças não se verifica; ou, se se

verifica, não são homens; ou, se são homens, provêm de Adão” (op cit., p. 1476). Vê-se que

descendem de Noé, como revela a história dos povos, monstros humanos com características

atípicas aos demais humanos da casta social da época. Sendo assim, compreende-se que a

existência de homens com imperfeições sempre foi um questionamento sobre o poder da

criação divina de Deus. Para concluir, o prodígio, sinônimo de sobrenatural, está nos

primórdios da humanidade assim como nos tempos atuais, como em muitas culturas, nesta

não seria diferente.

Esse modo de se relacionar socialmente dos ribeirinhos é uma recusa ao meio direto de

comunicação. A comunicação do homem com a natureza dá-se por meio do onírico. Pela

perspectiva do onírico, a literatura oral amazônica revela o quanto é importante também

estudar e compreender como o homem ribeirinho mantém essa relação com a natureza. Para a

professora Josebel Akel Fares, em seu artigo Imagens da matinta em contexto amazônico,

(FARES, apud. FERNANDES, 2003, p. 34), as matintas são o resultado da imaginação,

instigado pelo medo, pelo onírico ou pelo devaneio, a qual é própria dos homens que

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permeiam as matas. No caso das narrativas imaginárias, a imaginação também é provocada da

mesma forma, porém esta pesquisa contemplou narrativas distintas, ou melhor, explorando a

criação dos vários seres imaginários dentro de num contexto em que o espaço das

personagens é o aquático.

Os monstros aquáticos: cobra, feras da água, onça d‟água, pau da careta, boto,

evidenciados nas histórias imaginárias são criaturas engendradas pelo homem. Nas palavras

de Júlio Jeha, fazendo referência a Santo Agostinho: “Agostinho se debateu com o problema

do mal e propôs que este é uma privação do bem e, como tal, só pode ter uma não-existência.

Como falar de uma privação senão através dos seus efeitos?” (JEHA, apud. SILVA, 2000, p.

10). Essa ideia dos efeitos da privação são expressos pelas faces do medo que desvelam a

presença dos monstros nos espaços de pesca, muitas vezes, até predatória, outras tantas dentro

dos limites impostos pela própria condição da natureza. No caso da comunidade aqui estudada

há um respeito à sazonalidade e ao calendário de pesca. No entanto, mesmo tendo

conhecimento deste calendário, o ato das personagens de Interditar previne a exploração

predatória dos locais de pesca. Isso é bastante evidente no momento em que as personagens se

locomovem nestes espaços aquáticos para o embate com o antagonista. Logo, os monstros se

revelam pelo efeito do medo que, por sua vez, desempenham uma espécie de regulamentação

e controle da natureza e garantem, na esfera social, a sustentabilidade da comunidade de pesca

como detentora de um saber tradicional.

Aprofundando mais o debate sobre o Mal, reitera o mesmo autor “De um modo ou de

outro, os monstros dão um rosto (ou não) ao nosso medo do desconhecido, que tendemos

associar ao mal a ser praticado contra nós” (JEHA, apud. SILVA, 2000, p. 10). Nesta

discussão as criaturas imaginárias são um recurso literário e também metáfora não só

existente na cultura contemporânea, mas também de raízes mitológicas. Ainda explicando que

as criaturas ou monstros são símbolos da relação do homem com o sobrenatural e nesta lógica

revelam transgressão. Isso se explica porque a linguagem metafórica é, inclusive, uma forma

dizível de comunicar o que existe no mundo das idéias. Por isso as metáforas dão forma ao

que é abstrato. Portanto, o medo conduz à criação dos monstros como metáfora e

representação do mal. Ademais, não tomado como ruim, mas como ambíguo, cujo efeito

controla a relação de interação do homem com a natureza. Nesta linha temática, mencionam-

se algumas ideias sobre o que vem a ser o Mal.

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Para Paul Ricoeur, Adorno e Lévinas, o Mal é um “mistério impenetrável”, então não

é representável, o mal está na literatura em forma de vazios para mostrar o indizível. No

entanto, em posição contrária, aos autores mencionados, “[...] Simone Weil afirma que o mal

é representável. Ela escreve que o bem é a própria realidade” ainda “que a união dos

contrários constitui o real” (JEHA, apud SILVA, 2000, p. 11). Para Weil o mal não é o

oposto do bem, mas é sofrimento e isso pode ser entendido como representação que se revela

por vários meios, neste caso, nas personagens: “dor, como experiência de dor. Chegar ao fim

da dor significa vislumbrar o fim, a fronteira do mal” (op. cit. p. 12).

Todavia numa tentativa de explicitar o mal, vê-se que há tantas abordagens seculares

que até causam imprecisão. Como menciona Jeha sobre a existência da “moralidade e da

sabedoria” (op. cit. p.13), são expostas como vertentes conceituais mais gerais. A primeira

toma o agente social como ciente do mal e focaliza-o na ação, ou seja, a ação é o vetor do

mal; já a segunda toma o mal como a contenção dos desejos reprimidos ou insatisfeitos do ser

humano e fita ao conhecimento. Essas abordagens são contrárias à opinião de Simone Weil

quando defende que o mal não é o oposto do bem e por isso é sofrimento que conduz à

privação dos desejos humanos.

A obra A literatura e o Mal, de George Bataille (1989), expõe que a literatura é a

manifestação de uma insatisfação social, e o Mal é a representação desta insatisfação. No

prefácio aponta o valor supremo absoluto e dominador da literatura, no seguinte trecho: “A

literatura, eu o quis lentamente demonstrar, é a infância enfim reencontrada [...]” e, na

sequência, conclui o autor: “Enfim, a literatura deveria se advogar culpada.” (BATAILLE,

1989, p. 10). A partir desta ideia, entende-se “infância reencontrada” como manifestação da

ausência frustrada, que vem a ser a liberdade mais pura, ou seja, livre de contaminação adulta

e que só uma criança a tem em sua essência pueril, mas não uma ingenuidade desprovida de

conhecimento, bem ao contrário.

Na mesma linha teórica de Bataille, tem-se os autores: Emily Brontë, Baudelaire,

Michelet, William Blake, Sade, Proust, Kafka, Genet, que comungam dessas ideias e servem

de objeto de estudo para Bataille, pois as obras analisadas destes pertencem à geração a que

pertence também Georges Bataille, pois, segundo este “A literatura é o essencial ou não é

nada” (BATAILLE, 1989, p. 2). Portanto o Mal traduz-se em experiência e converge ao

conhecimento, pois cada autor citado por ele se aventura pela literatura a fim de criar

personagens transgressores da sua própria ordem social e nisto há similitude quando os

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narradores elaboram os contos imaginários e neles personificam as terras, as florestas e as

águas como mundos encantados dos seres imaginários, cuja criação emana da imaginação

criadora e poética de cada autor-personagem-narrador.

O Mal transborda nos contos imaginários, porém com muita ambiguidade, ou seja,

quando o narrador constrói o enredo, ele descreve os espaços como únicos por onde atuam as

personagens, cuja ação é de interação com a natureza. Sendo assim, tanto os espaços de

atuação em terra firme quanto nos rios, nas florestas e nos lagos são considerados espaços

aquáticos (hiperonímia), uma vez que os espaços de terra sempre têm uma lâmina de água,

como se fosse um espelho que reflete o universo destes ribeirinhos.

No caso das narrativas aqui estudadas, da comunidade São José, os grupos sociais

precisam de limites para manter uma visão de mundo compartilhada, logo o monstro é criação

imaginária, e também o modo de cominar limites culturais ou rupturas sociais de forma

coletiva, isso garante as leis sociais de autocontrole.

Num processo de criação, referindo-se a Kafka, o Interdito tem efeito semelhante ao

que tem para o pescador, pois em Kafka, no momento da criação da obra, o autor trai a sua

própria condição de ser, então desadormece nele o Interdito. O poder que emana do autor ou

das personagens é a manifestação dessa condição da insatisfação. Esse estado é notável na

fase da infância, diz Kafka:

Minha decadência espiritual começou com brinquedos infantis, é verdade que

conscientemente pueris. Por exemplo, eu simulava tiques no rosto, andava com

braços cruzados atrás da cabeça, infantilidade detestável, mas coroada de êxito. O

mesmo aconteceu com o desenvolvimento de meu estilo literário, desenvolvimento

que mais tarde infelizmente se interrompeu. (BATAILLE, 1989, p. 139-140)

Segundo o autor, o estado de satisfação da insatisfação é delegado somente à

criança, o que ele denomina de poder soberano. Logo, o poder de criação de Kafka, como

autor, também traduz não o Eu individual, mas em si emana a condição humana de um Nós

que fala por vozes na literatura. Isso também é próprio de cada contador de história, exposto

neste estudo. Justamente a eficácia das ações das personagens mostra o poder de criação

proveniente de um imaginário das águas e próprias de pessoas simples, porém detentoras de

uma racionalidade adquirida pela relação de interação com as terras, as águas e as florestas.

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Os contadores de histórias são os tributários da construção dessas relações sociais, as quais

são estabelecidas pelo viés do onírico como forma de expressar o desejo do poder soberano do

homem em seu mundo maravilhoso e vem reconhecer como linguagem onírica da literatura

oral amazônica.

Em análise ao trabalho e estilo de Kafka convém assegurar a dificuldade de enquadrar

suas obras num gênero fantástico ou maravilhoso, porque cada obra dessa literatura não-real,

seja ela dita simbolista, alegórica, surreal, surrealista, grotesca, estranha, maravilhosa,

fantástica, real-mágica, ou como queiramos chamá-la, cada obra literária dessa natureza é, na

verdade, uma obra singular e, portanto, difícil de ser classificada. Assim como são as

narrativas imaginárias, de estrutura não-linear. Além do aspecto do gênero em Kafka,

também há nas narrativas o “aspecto social, familiar e sexual, e finalmente o aspecto

religioso” (BATAILLE, 1989, p. 145).

Nas narrativas imaginárias, observam-se, além de elementos do maravilhoso, os

aspectos “social, familiar e sexual, e finalmente o aspecto religioso” (op. cit.), os quais são

singularidades da estrutura social evidenciadas nas narrativas da comunidade aqui analisada.

Portanto a ação das personagens revela o desejo sem limites.

Esse jogo da transgressão das leis sociais é visível pelas histórias imaginárias, como

bem explica Emily Brontë “O interdito diviniza aquilo a que ele proìbe o acesso. Ele

subordina este acesso à expiação – à morte -, mas o interdito nem por isso deixa de ser um

convite ao mesmo tempo que um obstáculo” (BATAILLE, 1989, p. 18-19). O interdito

também é evidente nas narrativas, o qual serve como obstáculo para que as personagens

burlem esse obstáculo ou sacralizem o local como encantado a fim de preservá-lo ou alcançar

o objetivo estabelecido. Neste caso, a exploração dos espaços de terras, florestas e águas é o

que está em jogo, pois os pescadores se apropriam desses espaços aquáticos porque deles

provêm o sustento da família. Ainda mais no caso da comunidade dos pescadores, a pesca se

sobressai como atividade principal, mesmo que seja em pequena escala artesanal. Ela é capaz

de gerar renda para as famílias; já a exploração dos espaços de terras firmes dá-se em menor

proporção, devido ao período de seca ser bem menor e também porque os espaços de terras

firmes são de proporções bem pequenas já que o local é uma ilha. O cultivo de verduras e

hortaliças e a pesca na comunidade São José garantem o trabalho das muitas famílias. Logo, o

interdito é o instrumento de preservação, de proibição, de controle, de advertência. Vários

sinônimos poderiam ser aqui mencionados, mas não é o caso, resta concluir que interditar

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também é a garantia da criação das formas simbólicas, muito comum nas culturas ocidentais.

Roberto da Matta, no capítulo Panema: uma Tentativa de Análise Estrutural, corrobora a

análise com a seguinte ideia:

A natureza, entretanto, ao mesmo tempo que limita as relações externas da comunidade, reforça sua solidariedade. Assim, é fácil entender por que os habitantes

de Itá concebem suas relações com o mundo natural como equilibradas e,

provavelmente, como cíclicas Tomando-se como referência esta oposição,

verificamos que ela tende a diminuir as diferenças entre os homens. (MATTA, 1977,

p. 92)

Infere-se do trecho que a natureza e o sistema social estão numa dimensão de

similitude, pois um ordena o outro e garante, nesta sincronização, o controle das relações do

homem com a natureza e dos homens entre eles, o que na verdade vamos denominar de

contrato social simbólico. O simbólico está alicerçado na estrutura social em atos mágicos e

simbólicos, ou melhor, a comunidade necessita dar sentido à vida por meio das criações

simbólicas que, por sua vez, exercem o autocontrole social da própria comunidade. Esta

forma de explicar o mundo e nele estabelecer regras não opera do mesmo jeito na sociedade

dita humana, visto que a natureza opera numa outra dimensão, a do imaginário, neste caso.

3.1.1 Os seres imaginários das águas

A palavra do sonho faz parte de um sistema arcaico de expressão. Além disso, a

linguagem humana do sonho está carregada de símbolos que servem para expressar, de forma

alegórica, os desejos, os sentimentos, os planos, a felicidade, os projetos do homem sem fazer

referência a quem sonhou.

O onírico é uma forma de dizer o não-dito, o maravilhoso é o não-dito. Portanto, a

literatura oral, de qualquer país ou região, é plena de elementos do maravilhoso e do

fantástico. O espaço de devaneio do maravilhoso é o de um mundo (trans)figurado,

(sub)vertido, o que proporciona uma quase arbitrariedade na intriga da narrativa. Para

Todorov (1975), a questão da verossimilhança inverossímil é peculiar aos contos das águas,

uma vez que os seres imaginários, criados pelos ribeirinhos, surgem na intriga das narrativas

para o embate com a personagem principal. O narrador cria os seres sobrenaturais à

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semelhança de um Kafka que foi considerado o escritor mais maligno por ter justamente

desvelado um jeito próprio de subverter os ditames da literatura, da sociedade, do mundo

visto pelo viés da racionalidade

Os ribeirinhos amazônicos, de acordo com o que diz Bachelard (1989), tem o rio e os

lagos como grandes mestres. O alegórico é traduzido pelo conjunto de imagens do mundo

encantado das águas; os seres imaginários pertencem ao reino dos encantados, mas aqui

maravilhoso e encantado são tomados como sinônimos. Além disso, esses monstros humanos

são os companheiros dos pescadores, porque coabitam os mesmos espaços aquáticos. O rito

de passagem do natural para o sobrenatural ganha vida quando as gentes das águas exploram

os recursos naturais existentes na ilha do Careiro. Dialogando com Perzoldt, esses seres

imaginários são a verosimilhança do inverossímil (Apud. TODOROV, 1975, p. 41), visto que

para os ribeirinhos da Amazônia fazem parte da sua realidade.

A artesania do narrador ribeirinho e de seus contos imaginários, semelhante ao ato de

criação de um poeta, tem seu rito iniciado nos regimes diurno ou noturno das águas que

embalam o homem amazônico. O seu demiurgo é o rio, sua “imaginação falante” consiste o

falar líquido e a gíria das águas, pois a voz é a dominante e projeta imagens e “coloca as

coisas no seu lugar” (BACHELARD, 1989, p.195, 197). A imaginação falante se apropria da

voz em forma de figuras de linguagem para expressar o feérico numa dimensão poética da

racionalidade.

Tomando a expressão supracitada de Bachelard “coisas no seu lugar” refere-se a

instrumentos de trabalho, tais como: a malhadeira de pesca, a canoa, a linha, o espinhel, e

outros, os quais compõem bacias semânticas, porque estão carregadas de sentido poético. A

canoa é a metáfora “da porta mágica” que se abre/conduz à travessia para os locais encantados

onde moram os seres imaginários, onde estão os nichos melhores de pesca. Na Amazônia a

canoa é primordial para quem mora nas encostas dos rios; ela é o meio de transporte do

homem amazônico, servindo tanto para trabalhar, quanto para passear.

Metáforas das águas

Neste leito do rio, o narrador constrói um lençol de metáforas do mundo dos

encantados, as quais estão explicitadas abaixo:

Cobra Grande: metáfora do homem do lago, do rio; lago que na seca é apavorante e

na cheia está em hibernação; monstro; cobra é arvore, ou seja, floresta; morte noturna

na floresta; vida em fertilização. Essas representações da cobra são visíveis pelas falas

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dos narradores das histórias. Nota-se que a cobra tem mobilidade dinâmica e pertence

aos vários espaços aquáticos, ao mesmo tempo como bem ou mal.

A Canoa: essa metáfora já faz parte da literatura, pois a barca remonta à época bíblica

de Noé; O Auto da barca do inferno, de Gil Vicente; A Divina Comédia, de

Dante. Os exemplos mencionados têm a barca como a metáfora da travessia, da vida

ou da morte. Seria infinito o número de obras cuja barca ou canoa configura a

simbologia da travessia. E, para conclusão, faz-se a seguinte analogia à ideia de

Bachelard (1989) de que a água é a realidade poética, sendo assim, a canoa também é

realidade poética.

Boto ou “Bota”14

: metáfora do homem encantador, do pai do lago, do protetor; o

adereço do chapéu feito de imbaúba é a metáfora do príncipe e cavaleiro, presente nos

contos de fadas e, ao mesmo tempo, a imbaúba, folha grande, típica da imbaubazeira,

é própria dos espaços aquáticos e sugere a força da natureza amazônica; já o cavaleiro,

que geralmente é branco e usa roupa branca, representa o homem de fora e explorador.

O chapéu de imbaúba serve para encobrir a cabeça do cetáceo. O boto encantador

noturno sai das águas, transforma-se num charmoso rapaz, comumente aparece nas

festas típicas para dançar; beber, encantar e mergulha em boto nas águas quase sempre

no período da meia noite.

Feras da Água: metáfora dos seres aquáticos, tais como: jacaré, peixe piraíba, peixe

surubim, cobra grande; esses seres geralmente ocupam uma dimensão meio ambígua,

pois ora são físicos, ora são sobrenaturais. A captura da piraíba e do surubim faz

desadormecer o medo nos pescadores, mesmo porque eles sabem que há uma força

sobrenatural a ser enfrentada nas águas dos lagos de pesca e dos rios. O enfrentamento

dos pescadores se dá porque as feras são grandes e temidas “Era um peixe tão grande

que só de se lembrar dá medo quando foi boiá” (Cf. Conto XVII). Por esse exemplo é

possível compreender que a captura das feras, embora sejam as presas mais cobiçadas

pelos pescadores, exige coragem para o enfrentamento, pois o que vem do fundo das

águas é sempre uma surpresa para os pescadores.

Pau da Careta: metáfora do guardião do lago de pesca. A função de guardião é dada

pelos pescadores quando justificam que sua existência é desde a época dos mais

14 A palavra “Bo[ô]ta” é o feminino de “Bo[ô]to” termos muito utilizados na Amazônia e também do

vocabulário ribeirinho.

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velhos, como mostra o conto “A gente conta porque já vem de outros mais velhos,

quando eu cheguei aqui já ouvia falar desse pau... porque tem a caricatura de uma

pessoa” (Cf. Conto XXI). O Pau da careta é o guardião antes de entrar no lago do

Juanico para capturar os peixes. Relataram alguns narradores “[...] meu irmão fez um

cigarro e meteu lá na boca, porque tem a caricatura de uma pessoa” (Cf. Conto XXI).

O cigarro é uma espécie de amuleto mágico e tem o poder de burlar o feérico e

adentrar o lago de pesca.

Homem da Mata: metáfora do guardião da floresta, com características específicas,

tais como: “[...] Ele é alto, moreno, barbado, bem pretão [...]” (Cf. Conto XXV). Essa

divindade surge no período noturno e interdita a floresta, principalmente os locais

abandonados, de difícil acesso e de exploração para cultivo de hortaliças em época de

seca. O homem da mata é uma divindade que surge para as pessoas, mas que não as

ataca, é apenas uma presença assustadora.

Pai do Lago: metáfora do guardião do lago e do rio ou mesmo da mata. No lago

Juanico há a existência de um homem “[...] branquinho, branquinho, tava no lago

puxando uma canoinha [...]” “Tem aquele horário pra você pescar, e você sair de

dentro do lago, que senão ele le encanta” (Cf. Conto XXVIII). No rio também há uma

divindade que encanta os ribeirinhos e, principalmente, atrai as mulheres ou crianças

que brincam nas águas. Observa-se um respeito à divindade, como mostra no trecho:

“[...] ele ia levá ela pro fundo do mar pra mostrá as coisa mais cristalinas que tinha no

fundo do mar” (Cf. Conto XXIX). O mar para os ribeirinhos é o rio.

Panema: metáfora da oposição natureza/cultura; nessa perspectiva do maravilhoso o

estado de empanemação é compreendido como um estado de encantamento e requer

do pescador o afastamento dos espaços de pesca. O encantamento interdita a pesca em

lagos e rios, pois emana de forças do sobrenatural. Cf. o Conto XVIII, a voz de um

homem-narrador reforça que a história de panema é do pai dele, cuja personagem

ficou panemado por ter dado um pedaço de peixe a uma vizinha. O ritual para

despanemar necessitou que o pescador capturasse os ossos do peixe na terra embaixo

de um fogão de barro. Nota-se que a figura feminina exerce poder controlador sobre

as relações do homem com os recursos naturais, pois ela é tida como um ser maligno

“ruim”. O processo para despanemar foi orientado por uma mulher que detém o saber

sobre o universo feminino, neste caso, exerceu a função de feiticeira. Neste mesmo

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conto, além desta forma, o narrador descreve outras várias formas de pegar panema,

tais como: “Passar por cima da tarrafa não pode. Mijar por cima da escama também dá

panema”. Já Cf. Conto XXVI, a voz é de uma mulher-narradora. Esta justifica que a

mulher não pega panema, embora empaneme os homens. No trecho “Eu separo tudo,

só que pra mim é proibido passar por cima dos materiais de pesca quando estou nos

meus dias. Lá no rio eu sei fazer tudo”. Isso mostra o quanto a mulher ainda encontra

resistência para também exercer as atividades que comumente são atribuídas

socialmente aos homens. Para Matta (1997), as mulheres desordenam as relações

sociais porque são “venenosas”, ou melhor, carregam o fado de profanas, elas são uma

ambiguidade: meio mãe, meio bruxas. Portanto o encantamento estabelece o controle

sobre natureza e sociedade e desfaz o sistema social dicotômico, porque está regido

sob o maravilhoso como sistema de regras que opera na natureza e que o diferencia do

sistema que regulamenta a sociedade humana.

3.2 A metamorfose: eixo temático nos contos maravilhosos

A metamorfose é tema explorado na literatura desde Ovídio, poeta latino, nascido em

Salmona. A sua produção capital, porém, são as metamorfoses, obra mitológica composta de

15 cantos. Vê-se que, não só na literatura romana de Ovídio, como também na literatura

contemporânea, o tema das metamorfoses ainda seduz tanto autor quanto leitor. Os contos

maravilhosos amazônicos contêm a metamorfose como eixo temático que responde a

singularidades da cultura amazônica.

As narrativas aqui analisadas foram esmiuçadas com o mesmo desvelo de um ourives

que escolhe o ângulo certo para fazer o corte no diamante. Várias são as imagens carregadas

de símbolos que percorrem o desenrolar dos acontecimentos ou o desenvolver psíquico das

personagens. Esta análise compreende os contos do mundo das águas; contos do mundo da

floresta; contos das profundezas das águas. Desses universos, as metamorfoses asseguram as

ações das personagens nos espaços aquáticos.

Os seres imaginários: cobra,boto, pau da careta são transfigurados em forma humana.

O desenrolar dos acontecimentos, nos contos, leva as personagens às ações que desencadeiam

mudanças no enredo.

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As transfigurações nos contos

Cf. Conto IV: transfiguração cobra-homem-cobra: surge o “homem (velhinho)”. Os

pescadores são surpreendidos com a presença humana da cobra-homem, ocasionando o

retorno do barco de pesca ao ambiente terrestre. A presença da cobra-homem mostra a ação

proibitória ao local de pesca, como está no trecho hiperbólico: “...ninguém pesca lá, todo

mundo tem medo”.

Cf. Contos XXI, XXII, XXIII, XXIV: transfiguração árvore-homem-árvore, apresentam

“Pau da careta”, ou seja, uma árvore que guarda o lago em forma humana, ou mesmo, para os

pescadores é obra de Deus, porque essa metamorfose não é fenômeno do homem, mas

divindade de Deus. Ainda apresenta a floresta personificada, atribuindo-lhe características

humanas, ou seja, os pescadores reiteram que o Pau da Careta existe desde a época dos índios

que habitavam na localidade chamada “Terra Preta”, próximo do lago Juanico. A passagem

do sobrenatural ocorre quando os pescadores atravessam a floresta de igapó para chegar ao

lago. O Pau da Careta é guardião do lago do Juanico, também permite a aventura dos

personagens no mundo encantado. A forma humana perpassa o imaginário como certeza de

resguardar o lago da presença de depredadores da pesca.

Cf. Contos X “O Boto”; XI O Boto Vermelho”; XII “O Boto”; XIII “Boto Vermelho”;

XIV “Boto de Cavalo”; XV Lenda de Boto”; XXVII “Encanto de Boto: transfiguração boto-

homem-boto. O Boto se transforma em homem ou mulher (nova ou velha), rapaz novo,

cavaleiro de chapéu de imbaúba, velho barbado de canoa. Nos lagos ou rios, a transmutação

acontece no ato da pesca quando o pescador, ao recolher a rede de pesca, sabe que é proibida

a captura de boto ou bota. Em terra firme, a transmutação acontece quando o boto sai da água

e vem seduzir as mulheres; o encanto acontece quase sempre no regime noturno das águas,

quando o homem-boto joga seu charme de sedução e tenta puxar a mulher para o mundo

aquático. O retorno do homem-boto à figura de boto acontece no ápice do embate ao se

aproximar do período da meia noite.

Nestes contos, em sua maioria, a metamorfose ocorre devido à força do pensamento

que desencadeia uma criação psicológica que até chega a tomar aspecto físico. As ações das

personagens provocam mudanças no desfecho das narrativas. O desejo de explorar os espaços

aquáticos requer, das personagens, a transformação física que depois se desfaz quando o medo

se dissolve pela ação de fuga dos pescadores. O regresso à forma física original acontece no

desfecho da narrativa. Essas transmutações estão na dimensão do imaginário.

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O maravilhoso é uma encantaria amazônica porque os contos imaginários desvelaram

um universo aquático e poético da comunidade São José, Costa da Terra Nova, Careiro da

Várzea. Os pescadores navegam num rio de fluxo contínuo, que comporta significação

simbólica, em que o medo e o mal são elementos que compõem o universo e subvertem as leis

reguladoras da relação homem/natureza. A partir das ações das personagens, que habitam o

“Reino dos Encantados”, ocorrem as metamorfoses como mentoras de regras às mudanças

sociais necessárias, às quais explicam o quanto o imaginário é uma forma racional que norteia

um pensamento capaz de sustentar um sistema de regras da natureza e comumente não tem

explicações iguais às da sociedade humana. O medo estabelece a comunicação com os

encantados, por meio do Mal, por meio da linguagem onírica e das formas simbólicas do

maravilhoso.

O medo do desconhecido provoca a criação imaginária. Para os pescadores da

Comunidade São José, as monstruosidades são reais e necessárias para a manutenção da

relação do homem com a natureza.

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ÚLTIMAS PALAVRAS

As áreas de conhecimento das ciências podem ser distintas, mas é salutar a tentativa de

minimizar ao máximo a distância que, porventura, exista entre algumas, tais como: literatura,

sociologia e antropologia. Além do mais, a tentativa de conciliar pesquisa de campo e

pesquisa bibliográfica exigiu escolhas de autores e obras dessas áreas que melhor norteassem

na compreensão da categoria Imaginário das águas como objeto deste estudo. A metodologia

conduziu o trabalho de modo a assegurar o princípio e o fim, ou melhor, a desvendar os

mistérios epistemológicos e os desafios que a pesquisa de campo apresentou a fim de garantir

o caráter científico ao objeto em questão. A controvérsia sobre o contraponto oral/escrito são

aqui atenuados pelo viés do imaginário em suas múltiplas faces. De sobremaneira, para

revelar essas faces, a literatura dialogou com as outras áreas do conhecimento e também

aventurou-se na realização da pesquisa empírica e tomou-a como objeto que forneceu bases

conceituais e analíticas para esta compreensão do mundo dos ribeirinhos da comunidade São

José, Costa da Terra Nova, município do Careiro da Várzea, Amazonas, e dele chegar a esta

abordagem científica do lugar de quem fala. Ao tomar as vozes desse lugar, percebeu-se o

quanto o imaginário faz parte da realidade universal porque também está em outras culturas.

A comunidade São José configura espaço de reprodução econômica, das relações

sociais, assim como, lócus do imaginário. O homem possui uma intimidade relacional com o

seu ambiente, dessa relação emanam força e criação imaginária como singularidades da

cultura do homem ribeirinho da Amazônia. A amálgama do ribeirinho-pescador com o mundo

natural lhes é tão importante que faz com que ele seja poeta do seu lugar e do seu tempo,

porque possui um saber dos ciclos das águas, dos regimes diurno e noturno das águas, dos

seres aquáticos, dos seres das matas, dos períodos do plantio em terras firmes, dos lagos de

pesca, dos rios, dos espaços de conflitos sociais, da energia que emana das águas, da floresta e

das terras firmes. Certamente, é difícil até sintetizar o saber do ribeirinho-pescador, já que

para ele, isso é tão natural. Mas resta aqui reconhecer que esse saber se diferencia tanto assim

de outros porque essa lógica acaba criando, no campo da subjetividade humana, a categoria

do interdito tão aflorada nas Narrativas Imaginárias, Contos Imaginários ou Narrativas

Maravilhosas, termos sinônimos neste trabalho.

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O interdito diviniza os espaços aquáticos até mesmo os de terra firme, pois para o

pescador não há separação entre o mundo da água e o mundo da terra firme, onde sempre há

um fio de água sobre os espaços. De certo modo, se a interdição subjaz proibição, alerta,

cautela, advertência, sua função é de controle do meio ambiente, do grupo social. Ainda nesta

ideia, Matta diz o seguinte:

A natureza, entretanto, ao mesmo tempo que limita as relações externas da

comunidade, reforça sua solidariedade. Assim, é fácil entender por que os

habitantes de Itá concebem suas relações com o mundo natural como

equilibradas e, provavelmente, como cíclicas. Tomando-se como referência esta

oposição, verificamos que ela tende a diminuir as diferenças entre os homens.

Diante da natureza, e do sistema que serve para ordená-la [...]. (MATTA, 1977, p.92-93).

A “solidariedade” é entendida nesta pesquisa como relação de interesses e isso é

visível pela criação poética do feérico, que está moldado sob uma estrutura individual e

coletiva como espécie de contrato social. Esse contrato é visível quando os ribeirinhos-

pescadores criam as narrativas imaginárias e nelas imprimem reinos encantados das águas

como lugares simbólicos onde habitam seres imaginários que atuam como divindades que

resguardam lagos e rios como nichos de pesca e espaços de luta. Essa relação, tão diluída ao

mesmo tempo que ambígua, mostra que as leis do mundo natural não se explicam do mesmo

modo que as utilizadas na sociedade.

A literatura aqui dialogou com a sociologia e a antropologia para compreender e

interpretar os narradores ribeirinhos e suas narrativas para mostrar que os seres imaginários,

tais como: feras da água (onça d‟água); cobra grande; boto; seres imaginários do fundo das

águas: pai do lago; seres imaginários da floresta; homem da floresta ou espírito do mau;

encanto em águas profundas; e a criação panema, pertencem à categoria Maravilhoso e

disciplinam as relações com a natureza. Coube à literatura tomar a “linguagem humana” e

dela desvelar sua “liquidez” nas vozes dos ribeirinhos que contam, cantam, encantam e

desencantam debates, cujo fio discursivo polemiza com a certeza de que “a linguagem das

águas é uma realidade poética direta” (BACHELARD, 1989, p.17). Visto por este ângulo,

coube à literatura explicitar o quanto o ribeirinho, em seu processo criativo, bebe na fonte das

águas de um saber sobre seu mundo e entender que todo esse processo elaborativo racional

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legitima a categoria maravilhoso não como existência concreta, mas como inerente às

narrativas imaginárias da comunidade São José. Desse debate acadêmico a literatura também

não se manteve à margem, travou esse diálogo com as outras áreas do conhecimento.

O maravilhoso ganha abordagem como encantaria das águas, porque mostra que o

medo ora mais intensificado, ora mais atenuado serve de elemento de comunicação com o

mudo dos encantados, mundo da floresta e o mundo das profundezas das águas. O medo

ativa o processo criativo do ribeirinho para a criação do reino encantado à semelhança de uma

cidade. Os habitantes são sobrenaturais transfigurados em criaturas humanas que utilizam

artifícios mágicos no embate contra o pescador que deseja explorar os espaços aquáticos. As

metamorfoses norteiam o eixo temático em todas as narrativas dos ribeirinhos. As narrativas

também denominadas contos imaginários conduzem a vida dos pescadores a um plano mais

ambíguo, indeterminado, impreciso, incerto; ademais são estados de equilíbrio social pelas

formas simbólicas, o que desfaz a dicotomia natureza/sociedade.

A mão que se fechou para percorrer este trabalho é a mesma que desadormece e se

abre, nesta oportunidade, para reconhecer que muito ainda pode ser dito, mas uma pesquisa

que pulula tempo não se governa. Então, o ponto final dado inicialmente é ao texto, outrossim

aponta apenas para mais um horizonte, até em nível de doutorado, porque o imaginário das

águas é um rio de águas que correm ao encontro de diálogos científicos.

Para finalizar, convém não esquecer que o ato criativo ou onírico de um escritor

consagrado, como um Kafka, como uma Emily Brontë, como um Baudelaire, como um

Michelet, como um Georges Bataille, como um Edgar Allan Poe, como um Ovídio, à

semelhança também o fazem os ribeirinhos-pescadores, porque imprimem, entre muitos

aspectos, também em suas criações: “aspecto social, familiar e sexual, e finalmente o aspecto

religioso” (BATAILLE, 1989, p. 145). Encerrar uma discussão acadêmica sobre a cultura e a

sociedade amazônica desconsiderando suas singularidades é também retirar seus atores

sociais e deles sequestrar-lhes o direito de sonhar, de poetizar, de construir sua lógica racional

numa outra dimensão, e isso, como diz Baudelaire “O mundo prosaico da atividade e o mundo

da poesia” (BATAILLE, 1989, p. 34) estão aqui equilibrados, ou seja, integram os mesmos

universos.

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ANEXOS

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DOCUMENTAÇÃO DA PESQUISA DE CAMPO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS (INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – PPGSCA)

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Convidamos o (a) Sr(a) para participar do Projeto de Pesquisa Imaginário das Águas: narrativas

“maravilhosas” da comunidade São José, no Careiro da Várzea, Amazonas, que é desenvolvido pelos

pesquisadores: mestranda Edivânia Hosana da Silva e pelo Prof. Dr. Marcos Frederico Krüger por meio do

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia - PPGSCA da Universidade Federal do

Amazonas.

Este estudo tem por objetivo deslindar como o imaginário das águas se manifesta nas práticas do

mundo insular na comunidade São José, Careiro da Várzea, AM.

Os benefícios da pesquisa serão em estudar cientificamente as narrativas insulares, contemplando o

imaginário por meio dos contos, mitos, lendas elaborados no cotidiano dessa comunidade e assim garantir o

capital simbólico dessa cultura que permeia os espaços aquáticos na Amazônia.

Os instrumentos de pesquisa são aparelhos eletrônicos tais como: máquina fotográfica e gravador de

áudio; também caderno de anotações, e roteiro de entrevista. Assim como as técnicas de coleta de dados que

serão aplicadas, tais como: entrevista semi-estruturada, fotografias, e observação participante.

O sujeito da pesquisa que desejar não mais fazer parte pode se retirar da pesquisa sem prejuízo algum e

nem pagará nem receberá nenhuma quantia em dinheiro, de acordo com a resolução 196/96.

Minha contribuição será voluntária e, a qualquer momento, posso ter acesso aos dados ou tirar dúvidas

através da Universidade Federal do Amazonas situada na Avenida General Rodrigo Octávio Jordão Ramos,

3000, Campus Universitário, Bairro Coroado I, no Instituto de Ciências Humana e Letras - PPGSCA. (092)

3647-4381 - Secretaria (fax) (092) 3647-4380. Diante do exposto acima, fui informado sobre o que o

pesquisador quer fazer e porque precisa da minha colaboração, e entendi a explicação. Por isso, eu concordo em participar do projeto.

____________________________________ ou ____ - _______ - _______

Assinatura do participante

Impressão do dedo polegar

Caso não saiba assinar

______________________________________ ______- _______ - _______

Pesquisado

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ROTEIRO DE ENTREVISTA

T1 DADOS BIOGRÁFICOS DO ENTREVISTADO

1.1 Nome, idade, formação escolar, profissão, tempo que reside na comunidade, parentesco

T2 MUITAS HISTÓRIAS “PRA CONTAR”

2.2 Quais histórias o senhor (a) tem “pra contar” e que vocês costumam contar quando estão na lida do pescado?

2.3 Elas são importantes por quê? Quem gosta de contar?

T3 MOBILIDADE NA ENCHENTE E NA CHEIA 3.1 Como é andar com os pés no seco em terra firme em época de enchente e em época de

cheia? 3.2 Como é andar de canoa em época de enchente e em época de cheia?

T4 O MUNDO DA CASA 4.1 A quem são delegadas as tarefas da casa na época da enchente e na da cheia?

4.2 Qual é o papel da mulher em casa na época da enchente e na da cheia?

4.3 Qual é o papel do homem em casa na época da enchente e na da cheia?

T5 VESTIMENTA 5.1 Como é a vestimenta da mulher em época de enchente e de cheia? (O homem responde) 5.2 Como é a vestimenta do homem em época de enchente e de cheia? (A mulher responde)

T6 ENCONTRO DAS ÁGUAS 6.1 Como é a água da enchente? E a da cheia?

6.2 O que significa o encontro das águas dos lagos com as do rio Amazonas?

T7 O MUNDO DO LAZER

7.1 Como é o lazer de você (s) em época de enchente? 7.2 Como é o lazer de você (s) em época de cheia?

T8 O MUNDO DOS ADOLESCENTES

8.1 Como mantêm as amizades em época de enchente?

8.2 Como mantêm as amizades em época de cheia?

T9 FLORESTA E ÁGUA

9.1 O que é a floresta em época de enchente?

9.2 O que é a floresta em época de cheia?

T10 AS ÁGUAS: O REGIME DIURNO E NOTURNO

10.1 O que são as águas da enchente no regime da noite? E no regime diurno? 10.2 O que são as águas da cheia no regime da noite? E no regime diurno?

10.3 Quais são as cores do inverno e do verão?

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