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Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas Departamento de Psicologia
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANO: UM ESTUDO DE CASO COM A PROVA DE RORSCHACH
Aluna: Marina Meirelles Horta
Orientadora: Profa. Marília Gonçalves
Julho / 2004
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Universidade Federal de São Carlos Centro de Educação e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia
Monografia de Conclusão de Curso apresentada à UFSCar como um dos requisitos obrigatórios para a obtenção do
Diploma de Bacharel em Psicologia - Área de Saúde, sob orientação da
Prof ª Marília Gonçalves
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Dedico esse trabalho à tia Igraine, Uther, Morgause e a todos ex-eternos-alunos-companheiros
desse mundo de fantasia que foi o Kinder!
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Agradeço: À família, pelo amor, compreensão e apoio incondicional de sempre! Aos amigos queridos, flores na minha vida, por tudo compartilhado: Matheus, Lau, Mariana, Re, Lara, Fê, Ju, Marcelo, Zé, Du e Daniel! À Melina, e demais amigos dançarinos, por me darem chão, centro e equilíbrio - mas sempre dançando! À Ilza, Marol, Carol, Ju, Milena e crianças da Musicalização, pelo prazer de todo dia e pelo trabalho em que mais acredito! À Denise, por toda transformação! Às professoras, Rose e Georgina, por me acolherem de alguma forma! Especialmente À tia Igraine, por muito do que sou hoje! À Morgause, pela contribuição, disposição e todo apoio do mundo - tudo com muito carinho! À Marília, por intuitiva e pacientemente deixar-me seguir meu caminho, no meu ritmo de amadurecimento, compreendendo-me, muitas vezes, até sem palavras! A essas pessoas, que moram desde sempre em meu coração, serei eternamente grata!
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SUMÁRIO
RESUMO------------------------------------------------------------------------------------------------6 MONDO-VIDA----------------------------------------- ------------------------------------------------7 INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------------9 I. Um lugar chamado Kinder------------------------------------------------------------------10 II. Arte e Educação: Augusto Rodrigues-----------------------------------------------------13 III. Gnose e Educação: Samael Aun Weor----------------------------------------------------18 IV. Breve histórico do conhecimento gnóstico-----------------------------------------------23 V. A educação, a criança e a arte--------------------------------------------------------------27 VI. Uma escola exotérica------------------------------------------------------------------------36 MÉTODO----------------------------------------------------------------------------------------------47 RESULTADO-----------------------------------------------------------------------------------------66 DISCUSSÃO------------------------------------------------------------------------------------------85 CONCLUSÃO----------------------------------------------------------------------------------------89 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA----------------------------------------------------------------94 ANEXOS-----------------------------------------------------------------------------------------------97
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RESUMO
A ciência moderna, pautada nos princípios positivistas da racionalidade,
objetividade, neutralidade, universalidade e quantificação, produz e determina a concepção
de homem e de mundo, o tipo de conhecimento e prática educacional vigente.
A escola, de um modo geral, seguindo esse modelo científico, acaba priorizando o
aspecto racional do pensamento, ficando o desenvolvimento do raciocínio reduzido a
práticas de memorização e reprodução de conhecimento. O conhecimento torna-se
dicotomizado já que outros aspectos tais como a criatividade, a vida emocional, entre
outros, que fazem parte da vida humana tanto quanto a razão, são negligenciados no ensino.
Motivada pela minha trajetória educacional, como de muitas outras pessoas marcada
por essa dicotomização do homem (seja privilegiando a razão ou a emoção), nosso objetivo
foi investigar a dinâmica afetivo-emocional e cognitivo-intelectual de uma ex-aluna de um
sistema educacional o qual objetivava desenvolver o lado direito do cérebro (o lado não-
verbal, da não-forma, da criatividade e sensibilidade).
Para fundamentar nossa investigação, escolhemos a pesquisa qualitativa,
principalmente por resgatar a subjetividade do sujeito-pesquisado. Através da articulação
dos dois referenciais utilizados no procedimento diagnóstico – a entrevista clínica e a Prova
de Rorschach – pudemos ter uma visão mais abrangente do fenômeno investigado.
A participante tinha 27 anos. Foram realizadas duas entrevistas e Prova de
Rorschach aplicada uma única vez.
Os resultados levam a pensar que qualquer tipo de educação que não leva em conta
o homem na sua inteireza como ser físico, emocional, racional e social pode trazer algum
tipo de prejuízo em sua vida futura.
Este estudo nos proporcionou dados sobre a dinâmica afetivo-emocional da
participante e nos forneceu indicadores que apontam para o encaminhamento de
psicoterapia, na linha do psicodrama ou com enfoque corporal. Isto irá facilitar o contato
dela com suas angústias, e a tomada de consciência do seu funcionamento dinâmico
possibilitando um desenvolvimento mais amplo do seu potencial afetivo-emocional e
cognitivo intelectual.
Palavras chaves: Educação, Pesquisa Qualitativa, Prova de Rorschach.
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MUNDO-VIDA
Em 1996, no segundo colegial, eu participei de atividades realizadas por uma
psicóloga na escola onde eu estudava, junto com todos os alunos daquele ano. Dentre as
atividades, realizamos um teste vocacional. O resultado desse teste não era o nome do curso
específico no qual seguiríamos carreiras, mas áreas nas quais mais nos identificávamos (ou
características de nossa personalidade) para seguir nosso caminho – ou não. O resultado do
meu teste foi AIS – sigla das áreas artística, investigadora e social.
Minha vontade na época era justamente prestar Artes Plásticas, mas a falta de
confiança nos meus “dotes artísticos” foi mais forte que minha vontade. Por uns instantes
veio Psicologia na minha cabeça e me agarrei a essa idéia. Tia Igraine (idealizadora e
professora de artes do ateliê que freqüentava, o Kinder) dizia: “Marina, não vai fazer
Psicologia..”; E eu dizia: “Não tia, vou fazer uma psicologia revolucionária”. Passei - sem
saber muito bem onde e nem quais as características do curso no qual ingressei.
Nos primeiros anos da faculdade senti-me bastante perdida porque a minha idéia de
psicologia não correspondia à realidade a qual eu vinha experimentando. Antes de entrar
na faculdade, mais ou menos durante um ano, eu passei por um processo de psicoterapia
junguiana e, a partir de então, a minha compreensão da psicologia passou a ser influenciada
por essa experiência de terapia. Jung era o autor da minha escolha, mas eu não o encontrava
em meio aos trabalhos e disciplinas desenvolvidas.
Terceiro ano. Monografia. “E agora?” Na eu época fazia uma disciplina optativa na
área de saúde na qual me identificava bastante com as idéias expostas, me sentia um pouco
em casa (de volta ao lar!).
Um dia na aula discutíamos o conceito de sincronicidade da Psicologia Analítica de
Jung. O conceito foi exposto e explicado de forma tão clara, simples e objetiva, que mesmo
aqueles não “apreciadores” da psicologia junguiana puderam compreender esse fenômeno.
E ai, toda essa simplicidade para lidar com temas geralmente vistos e explicados como
“bicho de sete cabeças”, me faz escolher essa professora para minha orientação. Meio
caminho andado!
Começaram as reuniões. Como eu não tinha nenhum tema em mente para meu
trabalho, as primeiras reuniões foram de muita conversa. Em uma delas, respondendo a
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uma pergunta, eu disse que acreditava no poder de transformação de cada individuo e que
gostava do Kinder (Ateliê de Artes).
Ah, o Kinder! O Kinder era o lugar onde nos imaginávamos no fundo do mar,
achando lindos tesouros perdidos; ou onde quando aguávamos o jardim víamos fadas e
gnomos; ou onde criávamos histórias incríveis de Morganas e um povo que morava no sol;
ou onde tocávamos flauta, desenhávamos ou simplesmente ouvíamos boa música,
conversávamos, brincávamos, olhávamos o céu, a lua e as estrelas...Nunca me esquecerei
de Castro Alves, o poeta dos escravos, Adélia Prado ou Egberto Gismont e Dércio
Marques, pessoas que coloriram com sua arte nossas exposições, saraus, festas...
Sair deste mundo e entrar no cursinho e depois no curso de Psicologia da UFSCar
não foi nada fácil. Morria de saudades de tudo aquilo e precisava falar, falar, chorar, rir...e
Marilia me acolheu prontamente. Foi um processo bastante difícil, porém necessário. Vejo
o Kinder com outros olhos hoje (mais de longe): ainda com saudade, mas com a certeza que
outros Kinder – diferente, mas com alguma coisa daquele - hão de vir...
Hoje, revendo toda minha trajetória educacional (graças a esse trabalho), pude
perceber que passei pelos dois extremos opostos da educação: um totalmente voltado para o
aspecto sensível, da criatividade – o ensino para o lado direito do cérebro; e outro voltado
para razão e o mundo do pensamento – o ensino para o lado esquerdo do cérebro. Mas se
possuímos dois hemisférios, com um corpo caloso que os interligam, acredito que seja para
ambos serem usados e desenvolvidos, e o mais importante, que se comuniquem. Só assim
poderemos ser inteiros. E é sobre isso que gostaria de falar!
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INTRODUÇÃO
"Foi então que vi, através do sonho, a Criação. Criar é deixar fluir as energias divinas que nos impregnam. Criamos pela dança, multiplicando as formas do corpo em infinitos gestos
e perfis; pela poesia, balbuciando a linguagem paradoxal dos anjos; pela ficção, dando vida ao imaginário. Criar é um ato religioso, mesmo dentro de um laboratório. Uma forma
sutil e dinâmica de oração, na qual o que há em nós de mais feroz e sublime se funde em matéria de ofertório. Todo artista é um clone de Deus. E toda arte, uma pálida tentativa de
expressar a linguagem do Absoluto que ressoa no mais íntimo de nós, permitindo-nos mirar o real pela ótica da estética. Só assim transcendemos a realidade e nos tornamos
capazes de reinventá-la, modificando-a, humanizando-a, fazendo dela espaço de amorização. Comum união de todos e de tudo"1
Frei Betto
1 BETTO, Frei. A obra do artista - uma visão holística do Universo. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995
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I - Um lugar chamado Kinder
"Casarão, casarão, chorarás quem te conheceu Casarão, coração, teu carinho me acolheu Lembrarei, levarei, falarei de ti com amor
Tuas velhas portas se abriram E acolheram a quem chegou"2
O Kinder foi criado por Igraine numa cidade do interior de São Paulo, em 1986.
Antes, porém, em 1984, sua semente já havia sido plantada: Igraine foi responsável pela
primeira Escola de Artes da cidade, o NAAC. Essa primeira escolinha existiu por apenas
um ano, sendo reinaugurada dois anos mais tarde como Ateliê de Artes Kinder. A palavra
kinder vem do alemão e significa infância.
O Ateliê de Artes Kinder é uma instituição sem fins lucrativos, onde toda a
arrecadação financeira proveniente das mensalidades dos alunos é investida na própria
instituição, em materiais ou na remuneração de seus professores e funcionários.
A filosofia educacional do Ateliê era fundamentada no conhecimento gnóstico, mais
precisamente nos ensinamentos de Mestre Samael Aun Weor (como é conhecido por seus
seguidores gnósticos), que foi o pioneiro e divulgador do Movimento Gnóstico Cristão e da
gnósis contemporânea. Segundo as palavras de Igraine:
“O Kinder (...) é, portanto uma atividade gnóstica totalmente voltada para atender as crianças, adolescentes e jovens filhos de participantes desta instituição ou não. Tem como objetivo educá-las para que aprendam a viver, adquirindo hábitos necessários para sua adaptação ao meio natural, social e espiritual. Para que desde pequenos sejam estimulados a desenvolverem o altruísmo, a justiça, a ordem, a livre iniciativa, a caridade, etc.”3
De acordo com Samael Aun Weor, na essência (ser divino, a mônada, o íntimo)
temos nossas qualidades inatas que devem ser alimentadas com ternura, carinho, amor,
2 Canção de ninar com letra de Dércio Marques (CD: Monjolear) 3 HERMANA, Suze. Um lugar chamado, Kinder, 1988, p.1. (Monografia para o 30° Curso de Missionários – Centro de Capacitação “Samael Aun Weor”, Caldes de Malavella, Gerona, Espanha)
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música, flores, beleza, harmonia etc. Assim, o trabalho com as crianças do Kinder era
realizado através da arte, sendo esta entendida como uma forma de despertar as
potencialidades humanas. Sobre a arte do ponto de vista gnóstico Igraine diz:
“O pilar gnóstico da arte nos ensina a sermos plenamente humanos buscando desenvolver as virtudes artísticas inatas em todos os homens. Reavivar nossa adormecida capacidade de assombro e admiração pela beleza. Investigarmos e chegarmos a decifrar intuitivamente a mensagem oculta em cada obra de arte (pintura, escultura, música, etc.)” 4
As atividades realizadas no Kinder englobavam as mais diversas expressões
artísticas, como artes plásticas, teatro, história da arte, origami, canto e flauta-doce, além do
yoga; todas com o objetivo de: desenvolver a sensibilidade, como parte integrante do
raciocínio, o lado direito do cérebro (hemisfério responsável pela criatividade e expressão
não-verbal) e cultivar a essência. A criatividade e sensibilidade eram incentivadas em
detrimento da técnica em si de qualquer expressão artística. O importante era muito mais o
“fazer arte”, do que o “como fazer arte”.
Todas as atividades eram coordenadas e acompanhadas por Igraine – que, além
disso, era também responsável direta pelas atividades que englobavam as artes plásticas - e
Uther - responsável pela prática de yoga, aulas de flauta e origami.
As turmas eram divididas por faixa etária e cada uma tinha um nome: Os
Templários, Cavaleiros da Távola Redonda, Cavaleiros da Luz, Os Últimos Anjos etc. As
atividades do Kinder ocupavam seus alunos durante aproximadamente três horas em um
único dia fixo da semana. Igraine e Uther preparavam e planejavam as aulas de cada
semana, sendo que os alunos nunca sabiam a priori qual atividade seria realizada, era
sempre uma surpresa! A única atividade fixa era, no início de cada encontro, uma prática de
meditação.
Pode-se dizer, portanto, que o trabalho no Kinder unia a gnose (um conhecimento
de caráter esotérico) e a Arte.
A influência da gnose veio dos ensinamentos de Samael Aun Weor, principalmente
de seu livro Educação Fundamental (1980), o qual enfatiza com maiores detalhes e
4 Ibidem, p.2
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aprofundamento a importância e a visão de educação na perspectiva da gnose. Igraine
entrou em contato com esse conhecimento através de uma amiga e desde então passou a
estudar e praticar os ensinamentos de Mestre Samael. O Kinder foi uma forma que
encontrou de realizar o que na gnose denomina-se de terceiro fator, que é o sacrifício pela
humanidade, isto é, passar os ensinamentos do Mestre para outras pessoas.
O trabalho com a Arte teve uma grande influência de Augusto Rodrigues, fundador
da Escolinha de Artes do Brasil, no Rio de Janeiro. Igraine acompanhou de perto o trabalho
de Augusto Rodrigues, fazendo parte de cursos e absorvendo todo o conhecimento do
homem-artista-educador por vários anos, na Escolinha de Arte no Rio de Janeiro. Da
Escolinha e dos ensinamentos de Rodrigues o Kinder herdou a liberdade de expressão no
fazer arte, nas brincadeiras, privilegiando a criatividade e o ser-criança.
O Kinder hoje não é mais esse caracterizado acima. O conhecimento gnóstico não
tem mais tanto espaço. Morgana já com seus 66 anos perdeu bastante da energia que
dedicava ao Kinder; sente-se cansada e com a saúde frágil. Uther, seu companheiro de
conhecimento e realizações, também não está mais ao seu lado na direção do Ateliê. O que
antes era papel das artes plásticas, a expressão artística mais forte no Kinder, hoje é a
música; com professores específicos para cada instrumento.
No entanto, apesar do cansaço, Igraine ainda está lutando para que seu ideal seja
conservado, mesmo com todas as transformações necessárias para que sobreviva.
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II – Arte e educação: Augusto Rodrigues
“Foi quando inventou uma das invenções mais bonitas e sérias deste país: sua ‘Escolinha de Arte’. Depois de viver na terra dos homens, Augusto navegou para a terra das crianças (...). De repente, na intimidade das
crianças, entre mãos miúdas que faziam sapos de asas e elefantes mais leves que borboletas, sentiu que havia descoberto o maravilhoso. Voltava a ouvir as arquivadas vozes dos bichos, como na época em que os bichos
falavam. E voltava a encontrar velhos e perdidos heróis, deuses e mágicos. Como em seus dias de menino” José Cândido Carvalho5
Augusto Rodrigues nasceu em Recife, Pernambuco, no dia 21 de novembro de
1913. ZOLADZ (1990), tornando-o objeto de estudo, logo no começo da entrevista - ou
melhor, da conversa - conclui que Augusto Rodrigues apresentava um modo de ser voltado
mais para sentir as coisas e os seres do que um envolvimento voltado aos aspectos racionais
de compreendê-los, pois, como artista plástico, era a intuição que o movia constantemente.
Começa, então, sua biografia dando preferência a uma reflexão sobre as experiências
vividas, deixando fluir a sensibilidade e simplicidade:
“As coisas guiadas pela sensibilidade são extraordinariamente emocionantes, ainda que venha insistindo em refletir sobre as formalidades que, inclusive, me perturbaram; mas elas me ensinaram que devem ser respeitadas, porque tomam sentido quando tempo e espaço são vizinhos, um e outro, sem serem, muitas vezes, contemporâneos. (...) Toda a minha experiência me levou a coisas simples e sou incapaz de falar de coisas complicadas” (ZOLADZ, 1990, p.18)
De acordo com a autora, durante suas conversas, os percalços da vida escolar
tornaram-se o assunto predileto. Augusto Rodrigues, desde menino, enfrentou problemas
nas escolas que freqüentava, sendo sempre expulso de todas elas. Chegou a dizer certa vez
a um repórter que o entrevistava:
“Em Recife, onde nasci e passei a infância, a escola era um suplício. Metiam à força na cabeça dos meninos tudo o que eles não queriam nem estavam interessados em aprender. E nunca me adaptei. Acabei sendo expulso. Detesto, até hoje, a escola repressiva. (...) A escola não coube em mim” (ZOLADZ, 1990)
5 Citado por ZOLADZ, Rosza W. Vel. Augusto Rodrigues: o artista e a arte, poeticamente. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1990, p.54
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Rodrigues empenhou-se muito em descrever como era concebida essa escola e
como sua função socializadora era ineficiente, porque era distanciada de mecanismos
capazes de darem acolhida à capacidade criativa. Por isso, tinham, conseqüentemente, de se
exprimir de maneira enviesada, direcionando para fora dela todos aqueles que não seguiam
os caminhos já pré-determinados para a adaptabilidade.
Ao relatar sobre sua infância, Augusto Rodrigues atribui papel fundamental às
brincadeiras e ao lúdico, dizendo que sua infância “era de brinquedo”. E logo cedo
percebeu as contradições presentes no ensino, como por exemplo, ao refletir sobre as
comemorações do Dia da Árvore, perceber o quanto era falsa aquela forma de reverenciar a
natureza numa data marcada, onde não se compreendia nem que o terreno não fora
preparado e, ainda, que época era desfavorável para o plantio.
Atribui à vida que teve em família, o aprendizado, desde cedo, da importância que
tem o privilégio de se conviver com as pessoas. Vivia mais na rua, e essa passa a ter uma
grande importância para ele, pois era nela que se davam as relações entre pessoas de forma
mais natural, fora de uma estrutura controlada que altera toda a forma de comunicação.
Tinha um grande interesse pelas pessoas, o que faziam, como viviam etc (não por
acaso, já consagrado como artista, seus desenhos são fundamentalmente de gente,
principalmente nus femininos). Da mesma forma, é possível dizer que a vivência e as
relações que eram mantidas no âmbito familiar contribuíram, de certa forma, para sua
incompatibilidade com uma escola mais voltada para uma ética inibidora, a qual, se
contrapunha a experiência vivida em casa. Augusto Rodrigues nos fala de seu pai como
uma pessoa que tinha como prática propor uma relação pouco rígida aos seus filhos.
Augusto Rodrigues, em suas conversas com ZOLADZ (1990), faz reflexões sobre o
artista, sobre o processo criativo e sobre como se deu sua própria experiência de artista,
detendo naquelas que ele recebeu para iniciar essa trajetória. Quando era criança e ia para
o engenho no interior, Rodrigues recebia, não se sabe de quem, material de desenho,
pincéis e lápis de todos os tipos. Seu pai, ao mesmo tempo em que não aceitava que
desenhasse, não tinha coragem de priva-lo do material com o qual podia se exprimir e ter a
alegria de criar.
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Havia em seu pai, assim como diz, uma disposição ambígua em aceitar que se
definisse como artista; tinha o costume de colocar os filhos sentados em cadeiras para
admirar um quadro.
Augusto Rodrigues quando jovem, “passou” pela Escola de Belas Artes de
Pernambuco, pelo desejo de estar junto de uma namorada. No entanto, não conteve sua
necessidade de manter as teias que o ligava solidamente à rua de Recife, e abandonou a
academia. Mas foi ainda quando menino, conversando com um psiquiatra, que encontrou
um incentivo para, realmente, fazer o que gostava. Ao contar da sua incompatibilidade com
a escola, o médico, então, lhe pergunta: “Do que você gosta? Há de ter alguma coisa!”. E o
menino Augusto Rodrigues lhe respondendo que gosta de Arte, ouviu do psiquiatra: “Então
faça Arte”. Daí por diante, não mais quis saber da educação sistemática e repressora das
escolas tradicionais de sua época. E se transformou no homem Augusto Rodrigues:
caricaturista, jornalista, fotógrafo, desenhista, educador – um artista.
Ao chegar no Rio de Janeiro no começo de 1935, então com vinte e dois anos,
Rodrigues foi sócio do artista plástico Percy Lau, que tinha uma pequena empresa onde
faziam retratos de formaturas, de estudantes que concluíam o ginásio e retratos de crianças.
Além disso, Rodrigues teve também experiência como pintor de paredes.
O educador Augusto Rodrigues surge quando, em 1948, vários trabalhos de crianças
são recusados e impedidos de participar de uma exposição internacional de arte infantil, em
Milão, por “falta de espontaneidade”. Junto com outros artistas e educadores Augusto
Rodrigues funda, no mesmo ano, a Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro, onde o
objetivo não era simplesmente fazer da criança um artista no sentido formal da palavra, mas
antes permitir a expressão espontânea através da Arte. Sobre a Escolinha o próprio
Rodrigues relata:
“Na época em que estava fora da escola me sentia um marginal. Isso se modificou com a Escolinha de Arte do Brasil (...) que se atém sobretudo a respeitar a criança. (...). Se a Escolinha pôde se consolidar, devo muito aos intelectuais, aos artistas, educadores que se lançaram sobre essa idéia. Isso fez com que as idéias se juntassem e ficássemos bastante próximos daquilo que idealizara. A idéia veio por um processo de reminiscência de viver numa escola repressiva, onde a palavra liberdade estava destituída pela monotonia de memorização, de repetição e da imposição de tudo já preestabelecido (...). A lei da gravidade, por exemplo, só tem encanto para mim por causa da história da maçã. Eu posso mesmo imaginar que,
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antes da maçã, Newton estava já cansado de saber da lei da gravidade. Então, eu vinha de uma escola onde o mundo era explicado num círculo de giz no quadro-negro frio e vazio, enquanto dentro da criança havia a inquietação do saber através da vivência. Deve ter sido uma das razões da Escolinha de Arte” (ZOLADZ, 1990, p.)
De acordo com Augusto Rodrigues (citado por ZOLADZ, 1990), o mais importante
na Escolinha era evitar equívocos, ou seja, o falso encaminhamento. Para ele, se no
processo educativo se desse o desenvolvimento de amplas capacidades criadoras,
certamente surgiriam, por exemplo, químicos encontrando na química o processo criador,
ou em qualquer outra atividade humana. Não acreditava ser fundamental ter talento,
“ fundamental é, dentro do que se é, realizar o que se pode e, se possível, bem. A meta é
fazer bem”.
E, a repercussão da Escolinha foi tão grande que o Educador Augusto Rodrigues
ficou conhecido nacional e internacionalmente e outras escolas como aquela do Rio foram
fundadas em outros países, como Paraguai (1960) e Argentina (1963).
É interessante notar que mesmo tendo passado por experiências traumáticas em
relação à escola, Augusto Rodrigues soube transformar essas experiências negativas em
positivas. Suas experiências o levaram a fazer reflexões importantes do que acredita que
seja fundamental na educação e no desenvolvimento saudável da criança, dando um valor
primordial ao lúdico (à brincadeira) e à arte.
Para Augusto Rodrigues (e para muitos outros estudiosos renomados do assunto,
como Piaget, por exemplo) é muito importante o fazer para a criança, porque essa ação se
liga ao seu processo de crescimento:
“Observando-a mais de perto, vemos que a criança começa a agir, sem que nesta ação esteja presente, aparentemente, uma atitude analítica daquilo que cria. No entanto, a criança revela uma consciência crítica enquanto realiza a sua ação, levando-nos a duas vertentes na avaliação do ato que concretiza. (...) A primeira delas: ao ingressar na criação, eu diria, na arte do fazer, a criança participa de um processo que é, na verdade, uma necessidade vital para ela. Acrescentaria que o fazer é tão importante para uma criança como é o movimento. A riqueza dos gestos no qual flui a ação de uma criança lhe dá a dimensão da sua vitalidade, porque a vida é, para ela, mover-se. E aí, numa segunda vertente, mover-se não tem uma única expressão, mas sim uma variedade de expressões que mostra a dimensão que era dada pelos gregos ao fazer, POEIO que quer dizer fazer algo, criar” (ZOLADZ, 1990, p.53).
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Rodrigues via que os valores de uma sociedade poderiam ser enunciados na
solidariedade, na luta pela paz, na convivência fraterna entre os homens. Ele considerava
que a arte, como um valor e junto com os demais, também definiria uma qualidade de vida.
Na posse dos valores, o homem é outro homem, porque os valores conduzem a um
enriquecimento e à transformação de sua capacidade imaginativa. Acrescenta, que o ato de
criar exige uma operação conjunta da inteligência, emoção e imaginação, e seu produto
final, a obra, é apenas uma das determinantes do processo, no qual esses três fatores estão
envolvidos (ZOLADZ, 1990).
Por fim, ressaltaria o papel fundamental (dentre outros, é claro) das experiências de
sua infância e, principalmente, as relações estabelecidas dentro da família para todo esse
caminho percorrido.
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III – Gnose e educação: Samael Aun Weor
“Para os ocidentais, o estudo começa aos seis anos de idade, ou seja, quando se estima que já se tenha em uso a razão.
Para os orientais, sobretudo os hindus, a educação começa desde a gestação. Para os gnósticos, desde o namoro,
isto é, antes da concepção”6
Samael Aun Weor nasceu no dia seis de março de 1917, no seio de uma família
aristocrática em Bogotá, Colômbia. Desde muito cedo demonstrou talentos e capacidades
incomuns, como a de se lembrar de suas vidas passadas e a de se desdobrar em astral
conscientemente. E, apesar de sua pouca idade, nunca abandonou a meditação. Assim como
Augusto Rodrigues, o menino Samael também enfrentou uma certa incompatibilidade com
a escola. Ele acreditava que os estudos intelectuais passados nos colégios, universidades ou
escolas em geral, não guardam concordância alguma com o Ser Interior (o mesmo que
essência, mônada, íntimo, ser divino) do homem.
Aos 12 anos de idade Samael Aun Weor empreende um trabalho de minucioso
estudo sobre diferentes escolas espirituais, como Espiritismo, Yoga, Rosa-Cruz e Teosofia.
Entra em contato com o conhecimento de grandes mestres (assim reconhecidos dentro do
que pode-se chamar de filosofia mística e espiritual), tais como Gurdjieff, Ouspenski,
Krum-Heller, Max Heindel, Eliphas Levi, Rudolf Steiner, Jorge Adoum, Helena Blavatsky
e outros mais.
Suas capacidades e sabedoria logo se tornaram marcantes. Ficou conhecido, no
círculo esotérico de seu país, ao final dos anos 40, como “o jovem Mestre Aun Weor”.
Todo esse seu percurso fez de Samael Aun Weor o fundador e divulgador do Movimento
Gnóstico Internacional.7
A educação no Kinder procurava seguir os ensinamentos deixados por Samael Aun
Weor em diversos livros, principalmente um deles intitulado “Educação Fundamental”, o
qual trata a educação – de acordo com seus preceitos - mais profundamente.
6 WEOR, Samael Aun. Educação Fundamental. Porto Alegre: Editora Gnose, 1989 (Prefácio da edição colombiana) 7 http://www.fundasaw.org.br e http://www.gnosisonline.org
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A Educação Fundamental, segundo WEOR (1989), é baseada numa Ética e numa
Psicologia Revolucionária, ou seja, numa psicologia de caráter esotérico (referente ao
mundo interno psicológico e espiritual) e que estuda o homem do ponto de vista da
revolução da consciência. Essa psicologia tem como objetivo o despertar da consciência e o
autoconhecimento dos alunos. Portanto, não guarda nenhuma relação com o que, hoje,
denomina-se ensino fundamental, que seria o ensino de primeira a oitava série.
De acordo com o autor a psicologia revolucionária (que guarda semelhanças com as
filosofias orientais) é uma ciência muito antiga que tem sua origem nas Escolas de
Mistérios Arcaicos. Nessas antigas Escolas de Mistérios (como na Grécia, Peru, México,
Índia, etc.) a psicologia sempre esteve ligada à filosofia, à arte, à ciência e à religião.
Atualmente esses conhecimentos se separaram e a psicologia como a conhecemos hoje se
restringiu a estudar, principalmente, o comportamento humano, não guardando mais
nenhuma ressonância com essas antigas escolas.
Por outro lado, a Psicologia Revolucionária, preservando os ensinamentos mais
antigos das Escolas de Mistérios Maiores, tem como objetivo estudar o homem do ponto de
vista da Revolução da Consciência. A consciência aqui é entendida como “uma capacidade
muito particular de apreensão do conhecimento interior completamente independente de
toda atividade mental” (WEOR, 1989, p. 189).
Para o autor, há diferentes graus de consciência: 1) quanto ao tempo – quanto
tempo permanecemos conscientes? 2) quanto a freqüência – quantas vezes despertamos a
consciência? e 3) quanto a amplitude e penetração – do que se estava consciente? E através
da faculdade da consciência é possível o conhecimento de nós mesmos. Para o autor, o
autoconhecimento é fundamental se o homem quiser ser um indivíduo, com o significado
literal da palavra: aquele que é um, indivisível.
Para Psicologia Revolucionária existe uma distinção precisa entre ego, essência e
personalidade. Os egos são o mesmo que defeitos psicológicos ou eu-pluralizado (por
exemplo, ciúmes, inveja, preguiça etc.) e por isso devem ser compreendidos e eliminados.
Eles se manifestam nos cinco centros do homem (intelectual, emocional, motor, instintivo e
sexual) de diferentes formas – são multifacetários.
O autor considera que a essência (o ser divino, a mônada, o íntimo) não guarda
nenhuma relação ou semelhança com o ego. Na essência temos nossas qualidades inatas
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que devem ser alimentadas com ternura, carinho, amor, música, flores, beleza, harmonia,
etc. A personalidade, por outro lado, deve ser criada e desenvolvida harmoniosamente com
a essência (não nascemos com ela). Durante os três ou quatro anos de idade a criança é
simplesmente essência, depois o ego (defeitos psicológicos) começam a se manifestar e a
controlar a personalidade infantil. A personalidade é apenas um veículo que através dela
pode se manifestar o ego ou o real ser – dependendo exclusivamente do tipo de material
psicológico com o qual foi alimentada e formada.
Esse tipo de Psicologia (WEOR, 1989) distingue, ainda, mente e cérebro. A mente é
energética, sutil, podendo se tornar independente da matéria (como, por exemplo, na
hipnóse ou no sono). Ela apresenta muitas profundidades e regiões e seu centro é a
essência, a consciência. O cérebro é simplesmente o instrumento da mente, onde o
pensamento é elaborado. A diferenciação entre objetivo e subjetivo está relacionada à
consciência, que estando desperta produz conhecimento objetivo, estando adormecida,
subconsciente, produz conhecimento subjetivo.
Para a Psicologia Revolucionária o homem possui três cérebros distintos: 1)
encerrado na caixa craniana – centro pensante; 2) espinha dorsal (medula central e nervos)
– centro motor e 3) plexos nervosos simpático e centros nervosos – centro emocional.
Qualquer abuso em um deles há um gasto excessivo de energia – emocional, motor ou
intelectual. Toda doença ou enfermidade tem sua origem numa supervalorização de um dos
três cérebros, portanto o funcionamento equilibrado e harmonioso deles significa economia
de energia e conseqüentemente uma vida mais longa e saudável.
Esses três cérebros distintos produzem três tipos de associações independentes e
distintas, nos dando três personalidades diferentes. De acordo com WEOR (1989) todas
elas devem ser desenvolvidas e cultivadas com métodos e sistemas especiais em todas as
escolas:
“O cultivo inteligente dos três cérebros é Educação Fundamental. Nas antigas Escolas de Mistérios da Babilônia, Grécia, Índia, Pérsia, Egito, etc., os alunos recebiam informação integral e direta para os três cérebros mediante o preceito, a dança e a música inteligentemente combinados” (WEOR, 1989, p. 116).
Um ponto muito importante na Educação Fundamental refere-se à vocação do
aluno, ou seja, ter um respeito e atenção especial para aquilo que é da essência do
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indivíduo, pois o sentido de vocação é algo que pertence à própria essência interior. Achar
a própria vocação, de acordo com WEOR (1989), é o mais grave problema social e está na
base de todos os outros, porque na sua grande maioria as pessoas não entram em contato
com sua real vocação, estando em postos de trabalho que não fazem eco com a vocação real
do indivíduo.
Dessa forma, descobrir a real e verdadeira vocação de seus alunos é também um dos
objetivos da Educação Fundamental. Segundo o autor, a vocação se manifesta nos cinco
centros psíquicos do homem (intelectual, emocional, motor, instintivo e sexual), sendo um
erro, portanto, querer descobrir a verdadeira vocação examinando apenas o centro
intelectual (fazendo uma crítica aos testes vocacionais atuais).
Para esse autor, a experiência do real é fundamental se quisermos nos autoconhecer
e, isso só é possível, segundo ele, através da meditação. A transcendental ciência da
meditação tem como base o lema Nosce Te Ipsum, que significa “conheça-te a ti mesmo e
conhecerás o universo e os Deuses”.
O autor nos explica que, a princípio, durante a prática da meditação, todos os nossos
defeitos psicológicos vão passando pela tela da mente. Com a prática, chega um momento
em que o fluxo de pensamentos e idéias cessa. Ele diz:
“(...) a mente fica quieta e em profundo silêncio, vazia de todo tipo de pensamentos. A irrupção do vazio em nossa própria mente permite experimentar, sentir, vivenciar um elemento que transforma. Esse elemento é o real” (WEOR, 1989, p.162). Pode-se dizer, então, que esse método de educação se dá da seguinte forma:
1) desenvolvimento equilibrado e harmonioso dos 5 centros da máquina humana (motor,
instintivo, sexual, emocional e intelectual) e dos 3 cérebros (centro pensante, motor e
emocional);
2) experiência e compreensão do real / verdade. Segundo o autor e a gnose
A gnose de Samael Aun Weor é bem mais complexa, no entanto, para este trabalho,
nos interessa apenas aquilo que tem ressonância na educação das crianças.
Esse conhecimento era transmitido formalmente para quem mostrasse interesse
independente do trabalho com as artes desenvolvido no do Ateliê de Artes Kinder, ou seja,
havia dia específico e separado. No entanto, a concepção gnóstica do mundo e do homem
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de Igraine e Uther influenciava claramente as atividades (meditação e exercícios de yoga,
por exemplo) e o modo de lidar com as crianças que freqüentavam o Kinder.
23
IV – Breve histórico do conhecimento Gnóstico
A palavra gnóstico (ou mesmo gnosticismo), não tão usual ultimamente, é antônimo
de agnóstico, que literalmente, significa um desconhecedor ou ignorante, mas em sentido
figurado descreve uma pessoa sem fé religiosa. Em oposição aos não-conhecedores, os
gnósticos se consideravam conhecedores – gnostikoi, em grego – denotando aqueles que
possuem a gnose ou o conhecimento. Os gnósticos tinham a convicção de que o
conhecimento direto, pessoal e absoluto das verdades autênticas da existência é acessível
aos seres humanos e, mais ainda, que a obtenção de tal conhecimento deve sempre
constituir a suprema realização da vida humana (HOELLER, 1990).
Há um certo desentendimento entre os acadêmicos e eruditos para se definir o que é
uma literatura gnóstica ou se reconhecer autores gnósticos. Morton Smith (citado por
HOELLER, 1990), descobridor do “Evangelho Secreto de Marco”, afirma que o termo
gnostikoi em geral se aplica a pessoas de tendência pitagórica e/ou platônica e que os
membros da suposta comunidade gnóstica do Alto Egito provavelmente teriam definido a
literatura gnóstica como qualquer escritura de valor espiritual, capaz de produzir gnose no
leitor.
No entanto há uma certa concordância entre todos de que o conhecimento gnóstico
não era (e ainda não é) concebido como um saber racional de natureza científica, ou um
saber filosófico da verdade, mas um conhecimento que vem do coração de forma intuitiva
(chamado na obra gnóstica “O Evangelho da Verdade” de Gnosis Kardias, o conhecimento
do coração); sendo a definição léxica do termo gnóstico igual a conhecedor, mas não
seguidor de alguém, e sim conhecedor de si mesmo.
Para CARDOSO8, a gnose atua sempre como uma subcorrente em relação ao
pensamento vigente. Ela é o que se mantém oculto, representando do ponto de vista da
compreensão do homem e do mundo, a contracultura e as heresias em cada época, e
possivelmente a semente do novo, do que está por vir. A missão gnóstica é a de revelar o
saber oculto, substituindo as trevas pela luz que amplia os níveis de consciência da
humanidade.
8 Artigo "As bases gnósticas do pensamento de Jung" da internet: http://www.ajb.org.br/jung-rj/artigos/gnose.htm (Heloisa Cardoso é Livre-Docente e Doutora em Ciências pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); e Pesquisadora da obra de Jung)
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Segundo a autora, a gnose pode manifestar-se de diferentes formas, de acordo com a
época em que emerge e as circunstâncias que lhe dão origem e significância. Assim, pode-
se falar em gnoses pré-cristãs e pós-cristãs; em gnoses ascendentes e descendentes,
intelectualistas ou pseudo-gnoses. Para CARDOSO, pensadores como Goethe, Marx,
Nietzsche, Heidegger estruturaram sistemas gnósticos, tanto quanto Helena Blavatski e
Rudolf Steiner.
Corroborando com a autora, HOELLER (1990) acrescenta que os gnósticos
diferiam da maior parte da humanidade na sua visão mais essencial e fundamental da
existência e de seu propósito, e não apenas no que confere a crenças e preceitos éticos. Eles
conheciam algo que ameaçava o poder vigente, secular e religioso, que sempre lucrou com
os sistemas estabelecidos da sociedade: a vida humana não alcança sua realização dentro
das estruturas e instituições da sociedade, as normas e regras pré-estabelecidas, a moral e a
ética, na realidade, não conduzem ao verdadeiro bem-estar espiritual da alma humana, ao
contrário, com maior freqüência, nos distanciam de nosso real destino espiritual.
Para HOELLER (1990), exatamente por isso os gnósticos foram sempre
perseguidos e reprimidos e, como muitos deles se sentissem abandonados, alguns se
retiraram para comunidades à margem da civilização; outros continuaram nas grandes
cidades, como Alexandria e Roma. Por serem perseguidos, o conhecimento gnóstico
tornou-se restrito a poucas escolas de caráter esotéricas, estritamente secretas, sendo
retomado mais tarde por algumas tradições, como o Movimento Teosófico (ou Tradição
Pansófica) no fim do século XIX e início do XX.
De acordo com o autor, C.G. Jung (1875-1961), certamente, não foi um seguidor
literal de nenhum dos antigos mestres da Gnose; por outro lado, ele formulou pelo menos
os rudimentos de um sistema de transformação ou individuação, que se baseava não na fé,
numa fonte exterior, mas na experiência interior, natural da alma, que sempre representou a
fonte de toda verdadeira Gnose. O livro de Jung, "Os Sete Sermões aos Mortos” é um
documento importante no qual é possível encontrar as fontes da psicologia de Jung.
Esse documento foi escrito num curto período, entre quinze de dezembro de 1916 e
dezesseis de fevereiro de 1917 e, de acordo com HOELLER (1990), foi escrito com base no
gnosticismo do século II, utilizando a terminologia daquela época. Dentre as tradições do
pensamento gnóstico, Jung destacou dois representantes principais, a Cabala judaica e o
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que chamou de “alquimia filosófica”. Ele chegou a conclusão que, fundamentada na
filosofia natural da Idade Média, a alquimia formava, de um lado, a ponte em relação ao
passado com o gnosticismo e, do outro, ao futuro, com a moderna psicologia profunda.
Desde o princípio de sua carreira psicanalítica Jung sempre manteve um interesse e
uma simpatia profunda pelos gnósticos. Em doze de agosto de 1912 ele escreveu uma carta
a Freud a respeito dos gnósticos, na qual qualificou a concepção gnóstica de Sofia ??? de
reaproveitamento de uma antiga sabedoria que poderia aparecer uma vez mais na moderna
psicanálise. Em 1940, quando lhe perguntaram se o gnosticismo era filosofia ou mitologia,
ele respondeu que os gnósticos lidavam com imagens reais e originais. Ele reconheceu que
imagens gnósticas surgem ainda hoje nas experiências interiores das pessoas, ligadas à
individuação da psique; e nisso ele via evidência do fato de que os gnósticos expressavam
imagens arquetípicas reais que persistem e existem independentemente do tempo ou
circunstâncias históricas.
Sobre isso, Hoeller colabora:
“O gnosticismo não constitui um conjunto de doutrinas, mas a expressão mitológica de uma experiência interior. Em termos de psicologia junguiana, poderíamos dizer que os gnósticos deram expressão em linguagem poética e mitológica às suas experiências dentro do processo de individuação. Ao fazê-lo, eles produziram uma profusão do mais significativo material, contendo profundas percepções da estrutura da psique, do conteúdo do inconsciente coletivo e da dinâmica do processo de individuação. Como o próprio Jung, os gnósticos não descreveram apenas os aspectos conscientes e pessoais inconscientes da psique humana, mas exploraram empiricamente o inconsciente coletivo e forneceram descrições e formulações das várias imagens e forças arquetípicas” (HOELLER, 1990, p. 57).
De acordo com HOELLER (1990) e CARDOSO, a gnose como gnosticismo cristão,
ocorreu entre os séculos II a V d.C. Como maniqueísmo, ele se revela em todas as visões de
mundo que promovem o embate entre as forças da luz e a das trevas, entre o Bem e o Mal,
em seu sentido metafísico e absoluto. Como alquimia, na Idade Média européia, empenhou-
se sobre uma tarefa que era verdadeira reviravolta em relação à visão cristã oficial: não era
mais Deus a salvar o homem de seus pecados, mas sim o homem a resgatar Deus da
matéria. Como Cabala, a gnose era um conhecimento reservado a poucos iniciados nos
mistérios da língua hebraica e de seus símbolos revelados metaforicamente no Antigo
Testamento, constituindo seu aspecto místico.
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É bem verdade que houve diversas manifestações de gnose, tornando difícil falar
desse movimento como uma unidade. Várias seitas iniciáticas se constituem em outras
tantas gnoses, a saber: o templarismo, o catarismo, a maçonaria, o rosacrucianismo, a
teosofia, a antroposofia, etc. Entretanto todas entendem a gnose como auto-iluminação, até
mesmo, a gnose de Samael Aun Weor.
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V – A educação, a criança e a arte
Etimologicamente a palavra educação tem origem no latim, educare, significa
“conduzir”. Para os gregos, a idéia de educação estava diretamente relacionada com
algumas expressões. Paidéia, por exemplo, seria a cultura para a qual o jovem deveria ser
educado. Ou seja, esse termo referia diretamente ao processo formativo do homem grego,
na qual incluía uma visão de mundo, em termos cognitivos, práticos, estéticos, religiosos e
filosóficos. Anagogéin seria o processo de conduzir o ser humano para a vida, para receber
a Paidéia, tornando-se um cidadão de bem, sábio e digno. Daí a palavra pedos-gogéin, que
quer dizer “conduzir a criança”, origem do nosso termo “pedagogia” (MORAES, 1998).
De acordo com JEAGER (1995) educação é o princípio por meio do qual a
comunidade conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual.
Para o autor, toda Educação é o resultado da consciência viva de uma norma que
rege uma comunidade humana, não sendo, portanto, uma propriedade individual, mas
pertencente por essência à comunidade. A Educação participa na vida e no crescimento da
sociedade, tanto no seu destino exterior como na sua estruturação interna e
desenvolvimento espiritual. E, uma vez que o desenvolvimento social depende da
consciência dos valores que regem a vida humana, a história da educação está
essencialmente condicionada pela transformação dos valores válidos para cada sociedade,
sua concepção de mundo e homem.
No passado, nas culturas ágrafas, a Educação consistia basicamente no aprendizado
informal a respeito do que era essencial e costumeiro em termos da sobrevivência do grupo.
A comunidade tinha determinadas tradições, ritos, costumes, hábitos coletivos, cânticos etc,
os quais eram essenciais para a sua sobrevivência física e espiritual. O aprendizado se dava
através da convivência e imitação dos mais velhos e a visão de mundo era passada através
dos mitos. A Educação dos povos ágrafos, ou Educação Primitiva, portanto, foi
essencialmente prática, empírica e mitológica, dirigida à integração da sociedade
(MORAES, 1998).
No entanto, a história daquilo a que podemos com plena consciência chamar de
cultura (totalidade das manifestações e formas de vida que caracterizam um povo) só com
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os gregos começa. Foram eles que estabeleceram pela primeira vez de modo consciente um
ideal de cultura como princípio formativo, a saber, a idéia de Paidéia.
Para JEAGER (1995), a importância universal dos gregos como educadores deriva
da sua nova concepção do lugar do indivíduo na sociedade. O início da história grega surge
como princípio duma valorização nova do homem, a qual não se afasta muito das idéias
difundidas pelo cristianismo sobre o valor infinito de cada alma humana nem do ideal de
autonomia espiritual que desde o Renascimento se reclamou para cada indivíduo. Foi, a
partir do problema da individualidade colocada pelos gregos, que principiou a história da
personalidade européia.
O educador polonês Bogdan Suchodolski (1907–1992), citado por MORAES
(1998), elaborou uma divisão da Educação em dois tipos distintos: 1) “Educação da
Essência” e “Educação da Existência”.
Para ele, na “Educação da Essência” o processo educativo é conduzido visando um
ideal de ser humano, sem uma preocupação muito presente com algum treinamento para as
necessidades imediatas de sobrevivência.
A Educação no mundo grego, por exemplo, era direcionada para a formação de um
elevado tipo de homem. A idéia de Educação representava o sentido de todo esforço
humano, tendo em Aquiles e Ulisses o exemplo mais sublime de homem: que tem a
destreza física, a força e a coragem de um guerreiro e é astuto e tem o dom da oratória.
Mais tarde, com a Renascença e o racionalismo que acompanhou a ascensão da
burguesia a “Educação da Essência” caracterizou-se por um ideal de homem racional e
erudito, capaz de dominar as letras e de pensar cientificamente, entender o mundo através
das categorias que o então moderno pensamento iluminista e positivista produziam.
Até este período, no século XIX, o processo educacional foi caracterizado pela
Educação da Essência e, sob outro aspecto, bastante autoritária. Muitos teóricos, levando
isso em consideração, denominaram este tipo de educação que atravessou os séculos, sob
diversas variantes, de “Escola Tradicional”. Esta tinha como características a centralidade
absoluta do professor, a disciplina rígida e disposta ao castigo (palmatória e outras punições
físicas). O método de aprendizagem baseava-se em decorar e repetir mecanicamente. A
Escola Tradicional típica legitima a figura do professor autoritário, disciplinador e distante
e cria elementos burocráticos que institucionalizam a sua mentalidade. Ele representa o
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autoritarismo da sociedade, a hierarquia, a obediência, a submissão, a coação, o poder, e o
dever por obrigação e não por prazer (MORAES, 1998).
De acordo com o autor, a Escola Tradicional foi perdendo sua hegemonia quando, a
partir do século XX aproximadamente, passou-se a dar maior atenção ao processo de
desenvolvimento da criança, sendo o foco da atenção desviado do professor para o aluno.
Surgiu assim a chamada “Escola Nova”, que correspondeu também ao que Suchodolski
denominou de “Escola da Existência”.
De acordo com esse autor, ao contrário da escola Tradicional (ou da essência), a
Escola Nova tem como característica o ensino centrado na criança, valorizando a
descoberta que esta pudesse realizar das nuances do mundo, através de seus sentidos e de
sua inteligência. O mestre seria agora apenas um facilitador deste processo e não mais a
figura central. E, o que deveria ser ensinado seria o que é mais fundamental para que a
criança se torne cidadão eficaz e bem orientado na sociedade, capaz de sobreviver e viver
bem, conforme as necessidades sociais comuns.
Para o autor, a maioria das escolas atuais, contudo, realiza uma mistura entre
tendências da Escola Tradicional, ainda sobrevivente, e tendências liberais da Escola Nova.
A ciência moderna, pautada nos princípios positivistas da racionalidade, objetividade,
neutralidade, universalidade e quantificação, produz e determina a nossa concepção de
homem e de mundo, o tipo de conhecimento e prática educacional vigente, legitimando
muito dos aspectos do ensino tradicional - muito mais do que uma abertura para concepções
novas que não se inserem dentro dessa perspectiva.
A escola seguindo esse modelo científico, geralmente acaba priorizando o aspecto
racional do pensamento infantil, ficando o desenvolvimento do raciocínio reduzido a
práticas de memorização e reprodução de conhecimento. O conhecimento torna-se
dicotomizado já que a criatividade, a afetividade entre outros elementos que fazem parte da
vida humana tanto quanto a razão, são negligenciados no ensino.
Entretanto, SILVEIRA (2000) nos lembra que o verdadeiro conhecimento vem de
uma integração do sentir, intuir, pensar, agir e querer, unindo qualidades de adulto e
criança. Enquanto o pensamento adulto tem, em geral, formalidade, logicidade,
intelectualidade, a criança pensa com intuição, simbolizando a realidade conforme os
vínculos afetivos que estabelece com os objetos de conhecimento, ou seja, as funções
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cognitivas e emocionais são interdependentes. Todas as crianças (em condições normais de
vida) começam cantando, pintando, dançando – são suas primeiras formas expressivas, bem
como são também os primeiros modos de linguagem manifestos na história do homem.
DUARTE JR. (1998), acrescenta que o conhecimento dos sentimentos e a sua
expressão só podem se dar através de uma consciência distinta daquela que se observa no
pensamento racional. Para o autor, o conhecimento advém de um processo onde o sentir e o
simbolizar se articulam e se completam.
De acordo com PIAGET (1969), citado por WADSWORTH (1984), as crianças
adquirem conhecimento de objetos e raciocínio através de atividades que são úteis para
elas. Significado e compreensão não podem ser adquiridos somente através de leitura e de
ouvir exposições; a sala deve ser ativa. A ênfase reside na experiência com as coisas que
devem ser conhecidas. O professor impõe a estrutura através das regras estabelecidas e dos
materiais colocados no ambiente; e as crianças precisam de liberdade suficiente que lhes
permita a construção do conhecimento.
Esse autor concebeu o desenvolvimento mental como uma forma de adaptação ao
meio ambiente, adaptação intelectual moldada nos conceitos da adaptação biológica. Isto é,
o desenvolvimento da inteligência é definido e conceituado como resultante da eficácia
progressivamente maior de interação da criança com o seu meio ambiente. Para ele tanto os
dotes genéticos quanto a ação da criança sobre o meio ambiente são necessários para o
desenvolvimento, mas sozinho, nenhum deles é suficiente para assegura-lo. O importante é
a interação da maturação, experiência ambiental, experiência social e equilíbrio. Dessa
forma, a chave do desenvolvimento da criança, no que diz respeito à prática educacional, é
a atividade da criança: sua ação sobre os objetos, acontecimentos e outras pessoas. Assim,
para Piaget, o desenvolvimento mental é visto como resultante da interação do organismo
(a criança) com o ambiente.
PIAGET e INHELDER (1999) distingue quatro períodos no desenvolvimento das
estruturas cognitivas, que estão intimamente ligadas ao desenvolvimento afetivo e social:
(1) Período sensório-motor, de 0 a 2 anos;
(2) Período pré-operacional ou "simbólico", de 2 a 6-7 anos;
(3) Período das operações concretas, de 7 a 11 anos; e
(4) Período das operações formais ou proposicionais, de 11 a 15 anos.
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De acordo com PIAGET e INHELDER (1999), o primeiro período sensório-motor
ou da inteligência-motora, é assim denominado porque ainda não tendo configurado a
função simbólica, o bebê ainda não apresenta pensamento, nem afetividade ligada a
representações que permitam evocar pessoas ou objetos ausentes. No entanto esse período,
apesar de rápido, é importante para que a criança elabore as subestruturas que servirão de
apoio para o seu desenvolvimento cognitivo e afetivo futuro.
Para esses autores, esse período é caracterizado por uma inteligência prática: tudo o
que é sentido e percebido será assimilado à atividade própria da criança; assim, a
construção do mundo, que se efetua exclusivamente apoiada em percepções e movimentos,
é também uma construção de si mesmo.
WADSWORTH (1984) acrescenta que a maior parte do comportamento do recém-
nascido é de natureza reflexa. Nesta fase as “experiências” da criança, suas ações motoras e
perceptivas sobre o mundo físico que a rodeia, começam a influenciar seu
desenvolvimento. Através da maturação (referindo-se aqui ao conceito de Piaget
concernente principalmente ao crescimento fisiológico e ao desenvolvimento do sistema
nervoso, inclusive o do cérebro) e da interação com o meio ambiente, os reflexos sensórios-
motores se modificam e começam a aparecer comportamentos que não estavam presentes
ao nascimento – ex. a diferenciação, através do reflexo de sucção, entre o bico do seio, que
lhe fornece leite, e outros objetos.
Por volta do final do período sensório-motor, que normalmente ocorre entre dezoito
meses e dois anos, a criança começa a representar internamente os objetos e
acontecimentos experimentados no seu meio. Isto é, a criança começa a manipular
mentalmente os objetos e acontecimentos através da representação, desempenhando
mentalmente seqüências de ações e tentando soluções ocultas (em sua cabeça). Assim, ao
invés de ter que se empenhar num movimento de tentativa e erro para encontrar soluções
aos problemas, a criança começa a solucionar problemas através de representação interna,
ou do pensamento.
Para PIAGET e INHELDER (1999), essa função geradora da representação, a
função "simbólica" ou "semiótica", consiste em poder representar alguma coisa (um objeto,
acontecimento ou um esquema conceitual e etc, chamado em semiótica de significado) por
meio de um "significante" diferenciado e que só serve para essa representação: linguagem,
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imagem mental, gesto simbólico, desenho etc. O desenvolvimento dessa função, de acordo
com os autores, é fundamental para a evolução das condutas ulteriores da criança. se realiza
sob a forma de atividades lúdicas, no jogo das situações que a impressionaram e na
reprodução das situações vividas.
SILVERA, (2000) acrescenta que os símbolos lúdicos desses jogos têm um caráter
muito pessoal e subjetivo e é, de acordo com a autora, um meio de adaptação tanto
intelectual quanto afetivo.
Nesse período, a criança frente às experiências concretas usa o pensamento intuitivo
com base na percepção, pois não pode ainda associar os diferentes aspectos da realidade
percebida, nem integrar em um só ato do pensamento as fases sucessivas do fenômeno
observado - seu pensamento é pré-lógico ou parcialmente lógico. E é graças aos múltiplos
contatos sociais e as trocas verbais com o seu meio que, se constrói na criança, durante este
período, os sentimentos frentes às demais pessoas, principalmente daquelas que respondem
aos seus interesses.
O pensamento, nesta fase, tem uma tendência lúdica e é carregado de afetividade
em função da ausência de esquemas operatórios conceituais. Há predomínio de um sistema
neurológico mais primitivo no sentido da maturidade fisiológica que só responde com
funções básicas adaptativas e de sobrevivência incluindo emoções, mas incapaz do
processamento de informações, flexibilidade, simbolização, consciência.
WADSWORTH (1984) acrescenta outra característica do pensamento pré-
operacional, considerado na teoria de Piaget, e que é de suma importância: o egocentrismo.
A criança acredita que todas as pessoas pensam do mesmo modo e as mesmas coisas que
ela e, logicamente, que tudo que pensa está “certo”. Conseqüentemente, a criança na fase
pré-operacional raramente questiona o seu pensamento e tem dificuldade em aceitar os
pontos de vista de outras pessoas. Literalmente, ela não acredita que haja pontos de vista
diferentes do seu. O egocentrismo do pensamento na fase pré-operacional diminui
lentamente quando a criança lida com os pensamentos de colegas que estão em conflito
com o seu próprio pensamento
Nos períodos subseqüentes – o das operações concretas e o das operações formais,
começa a se organizar uma estrutura de pensamento operacional – de agrupamento e
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composição proposicional, que definem a lógica e abstração do período formal
(SILVEIRA, 2000).
Ainda segundo SILVEIRA (2000), durante os primeiros anos (no qual são
importantes os movimentos e as percepções) no desenvolvimento da inteligência e
consciência de si, já existem alguns pequenos esquemas simples, que indicam que a ação
artística, na música, na linguagem e no desenho fazendo emergir a sensibilidade. No
entanto, esta expressão torna-se predominante quando, em torno dos dois anos – entrando
no período que Piaget denominou pré-operatório ou simbólico - a criança começa a
representar a realidade, formando esquemas simbólicos. Neste momento, a criança “é um
artista”, porque representa tudo: desenha, canta, joga misturando a realidade com fantasia
numa tendência lúdica.
Para PIAGET e INHELDER (1999), na criança, a imitação e o gesto constituem o
início da representação. Há em seguida o jogo simbólico, ou jogo de ficção, que consiste,
em geral, nas brincadeiras de "faz-de-conta" das crianças que dam mamadeira ou fazem
dormir suas bonecas. O desenho ou imagem gráfica, nos seus primórdios, é intermediário
entre o jogo e a imagem mental, essa surgindo como representação interiorizada. Por fim,
surge a linguagem, permitindo a evocação verbal de acontecimentos atuais.
Todas essas atividades são formas relativamente simultâneas no desenvolvimento da
função simbólica. Portanto, na construção desta função é indispensável à criança dispor de
um meio de expressão própria, ou melhor, um sistema de significantes construídos por ela,
com o qual possa manejar e atender ao egocentrismo, mas que, por outro lado, mais tarde
prestará para a socialização do pensamento e ao equilíbrio do organismo no meio social.
Para RAPPAPORT e col (1981), expondo a teoria de Piaget, existe na criança,
durante o período simbólico, uma comunhão de idéias, sentimentos, pensamentos e a
realidade externa física e social. Esse fato decorre pela própria característica de sua visão
de mundo: caracterizada pelo egocentrismo, ou seja, ela não funciona realmente no mundo
real, mas brinca com ele através da imaginação e fantasia. Dessa forma, a função simbólica
e as funções cognitivas e emocionais são interdependentes e incluem, além dos aspectos
essencialmente cognitivos, elementos afetivos e estéticos.
Levando esse fato em consideração, SILVEIRA (2000) diz que com a arte,
resultado simbólico de estados afetivos, deflagrados individualmente ou em grupo, a
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criança chega a conceituar, formalizar e socializar o pensamento; concluindo, portanto, que
não é preciso promover a cisão entre o sentir e o pensar para educar.
De acordo com SILVEIRA (2000), as crianças, especialmente no período simbólico,
têm um sentimento natural de beleza. Para a criança pequena, a arte em si é uma forma de
transformar o desagradável em algo possível de conviver – que permita um sentimento
estético, que integra as dimensões querer, sentir, pensar e dá confiança para agir.
GARDNER, citado pela autora, enumera autores que fizeram tentativas de conciliar
as abordagens cognitiva e afetiva (Carmichael, Wolff, Gouin – Decarie ) e conclui que
esses estudos sugerem que é mais provável conseguir-se integração do afeto e da cognição
se buscarmos atividades em que o sentir e o saber são reconhecidos como estando
entrelaçados, como ocorre na arte.
Uma das características das artes é ser uma linguagem simbólica e, como sistema de
símbolos, são instrumentos para interpretar o mundo, transformando informações
sentimentos e sensações em experiência. O que caracteriza o comportamento do homem é
também sua capacidade de simbolizar, recriando e reconstruindo a realidade através das
formas simbólicas.
De acordo com a autora, o ser humano tem necessidade de simbolizar, de dar
significado ao próprio mundo, para o que vive, para o que conhece; buscando dar sentido à
sua existência. E para a autora, o ato de conhecer é justamente o ato de dar significado às
coisas e aos fatos. No entanto a autora salienta:
“(...) o conhecimento só se dá quando resultar de vivências, se este se referir às experiências de vida do indivíduo ou se estiver apoiado em simbolizações de experiências já vividas e não só a partir do pensamento” (SILVEIRA, 2000, p.74)
Dessa forma, acreditamos que a educação através da arte pode ser a forma mais
elevada de se trabalhar com a criança porque: 1) respeita a natureza da criança que pensa
predominantemente com a emoção e intuição, e a realidade é fantasiada e simbolizada;
levando em consideração que o trabalho da criança pequena é brincar e 2) possibilita a
integração do sentir e pensar; da comunicação entre hemisfério direito e esquerdo do
cérebro, propiciando melhores chances de adultos mais íntegros e com boa saúde mental.
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Contudo, a arte em si, não é suficiente para que isso ocorra. É fundamental que haja
um método norteador do processo ensino-aprendizado, que garanta que todas essas funções
expostas acima sejam garantidas do contrário, incorreremos no mesmo erro que as Escolas
Tradicionais e daquelas que não levam em consideração os aspectos formais do
conhecimento, na devida complexidade em cada fase do desenvolvimento humano e sendo
cada ser, único nas suas necessidades e manifestações.
Gostaríamos de finalizar com Moraes, citando Platão e sua idéia e significado do
que seja Educação:
“Platão dizia que a Educação é algo que transcorre durante toda a existência de um homem, e não somente na infância. Educação, em Platão, era o mesmo que ‘Amor à Sabedoria’ (Philo-sophia), o que também queria dizer para ele ‘Iniciação’ ou ‘Metanóia’, isto é, as mudanças, aprendizados e aprimoramentos que todo homem deve realizar, ao longo de sua vida terrestre, para atingir a plena consciência de Anthropos, ou seja, tornar-se, a cada dia, através da Escola da Vida, um Anthropos-Sóphos, um ‘Homem Sábio’. Na Escola se acerta, se erra, se tenta, se faz, e, enfim, se aprende” (MORAES, 1998, p. 48).
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VI – Uma escola exotérica
A Pedagogia Waldorf criada por Rudolf Steiner, assim como o Kinder, tem uma
visão ampla do ser humano, na qual engloba uma esfera que não é física. Na escola Kinder
a idéia de essência que vem da gnose de Samael Aun Weor e na pedagogia Waldorf o eu ou
ego, conceito da Antroposofia.
Todo o processo de ensino-aprendizado nas escolas Waldorf é construído em cima
da arte. Assim, é uma escola que une um conhecimento de caráter esotérico, a
Antroposofia, e o trabalho artístico, criando um sistema próprio de ensino pedagógico. É
uma forma de se fazer divulgar o conhecimento Antroposófico, e por isso, STRUCHEL
(1988), denominou a escola Waldorf de “uma escola exotérica”.
É considerando tudo isso que guarda semelhanças com o Kinder.
No final do século XIX e início do século XX na Europa, numerosos pensadores e
reformadores do sistema educacional rebelaram-se contra o ensino tradicional, a estrutura e
outras enfermidades das escolas, propondo uma nova perspectiva pedagógica para o ensino
e acreditando que uma nova educação poderia acabar com todos os problemas sociais
(UHRMACHER, 1995).
Embora essas reformas pedagógicas divergissem no propósito e na finalidade do
ensino, muitas delas enfatizavam:
1) A criança como sendo o centro do ensino (“child centered” instruction);
2) O desenvolvimento total da personalidade e, conseqüentemente, a rejeição da excessiva
intelectualização do ensino; e
3) O que chamaram de “Eros pedagógico” (Pedagogical Eros) que inclui amor, confiança
e intensidade como parte do processo de aprendizagem.
Esse movimento de transformações no processo educacional foi o que originou o
que Bogdan Suchodolski (citado por MORAES, 1998) denominou de “Educação da
Existência” ou “Escola Nova”.
A Educação Waldorf foi uma dessas escolas que, na época, incorporou muitas
mudanças decorrentes do movimento da escola nova, tornando-se conhecida mundialmente
até os dias atuais, inclusive no Brasil.
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O responsável e idealizador da Educação Waldorf foi Rudolf Steiner. A primeira
escola foi fundada em 1919, em Stutgart, na Alemanha, para os filhos de funcionários de
uma fábrica de cigarros, a Waldorf-Astoria (daí o nome da escola).
Rudolf Steiner nasceu em 1861 na Áustria e quando criança, de acordo com relatos
biográficos (Easton 1980; Hemleben 1975; Shepherd 1954; Wilson 1985), citados por
UHRMACHER (1995) teve diversas experiências “supersensíveis” (aparições) fazendo
com que acreditasse, desde muito cedo, que a realidade do mundo espiritual é tão real
quanto do mundo físico. Talvez, essas experiências tenham sido fundamentais para o rumo
que levou sua vida: Steiner em 1912 funda o Movimento Antroposófico, fazendo parte
desde 1902 até então da Sociedade Teosófica em Berlim.
A palavra Antroposofia é derivada de antropos (homem) e sofia (sabedoria). A idéia
central desse pensamento é que o mundo espiritual se entrelaça com o mundo físico-visível,
ou seja, que a realidade espiritual tem, de alguma forma, um impacto sob o mundo material
e que o homem tem o potencial para perceber e entrar nesse outro mundo não visível.
LANZ (1990), expondo o pensamento de Steiner, diz que o homem é constituído
por corpo físico, corpo etérico, corpo astral e eu.
O corpo físico é constituído pelas substâncias ou elementos químicos que também
formam o mundo externo, ou seja, é constituído por substâncias físicas. O corpo físico
reconhecido como uma aglomeração individualizada de substâncias químicas, as mesmas
encontradas nos minerais, nas plantas, nos animais e nos homens.
Para a Antroposofia, os seres orgânicos (plantas, animais e homens) possuem, além
de seu corpo mineral ou físico, um conjunto de forças vitais, individualizado e delimitado.
Ou seja, um segundo corpo não físico que permeia o corpo físico e que da vida ao ser e
impedem a matéria de seguir suas leis químicas e físicas normais. Steiner chamou esse
segundo corpo de corpo plasmador ou também de corpo etérico. Assim como o corpo
físico é construído por substâncias físicas, o etérico tira sua substância de um plano etérico
geral e, conseqüentemente, não é perceptível aos nossos sentidos comuns. O corpo etérico
somente pode ser “visto” pelos indivíduos que desenvolveram seus sentidos superiores e
atingiram um certo grau de clarividência, sendo capazes de vivenciar experiências supra-
sensíveis.
38
De acordo com LANZ (1990), o esoterismo hindu, egípcio, tibetano ou grego e o de
várias correntes mais recentes conhecem esse corpo etérico e suas funções. A Antroposofia
apenas traduz esse conhecimento em formulações conceituais modernas de acordo com o
grau de evolução alcançado pelo homem do século XX.
O corpo astral, também chamado de corpo de sentimentos, é o veículo que permite
ao animal ter sensações e reflexos, simpatias e antipatias, instintos e paixões. No homem
ele torna possível toda a gama do sentir, desde o instinto primitivo até os sentimentos mais
nobres e sublimes. É constituído por uma substância ainda mais sutil e refinada do que a do
corpo etérico, que faz parte do plano astral. Esse corpo astral é superior ao corpo etérico e
domina-o. Segundo o autor, a clarividência de algumas pessoas revela que seu “aspecto”
depende dos sentimentos que prevalecem no indivíduo.
Além e acima dos três “corpos” inferiores (físico, etérico e astral) o homem (e
apenas ele) possui um quarto elemento constitutivo da sua entidade: o eu ou ego; um centro
autônomo de sua personalidade, o qual constitui o âmago da sua consciência, e do qual ele
tem uma experiência direta e evidente. É esse eu ou ego, verdadeira parcela espiritual, que
o distingue do animal. O eu lhe da a sua personalidade, o eu pensa, sente e deseja através
dos seus corpos inferiores. Por meio do eu, o homem pode dominar e purificar seus
sentimentos, instintos e paixões.
Do convívio do eu com o corpo astral (veículo das sensações e sentimentos,
instintos e atividades psíquicas conscientes e inconscientes) e com os outros corpos
inferiores (físico e etérico), origina-se um conjunto autônomo de atitudes e faculdades, a
alma (ou conjunto de forças anímicas). A alma, distinta da corporalidade e do eu, constitui,
pois, como que um elemento de ligação entre o eu e o mundo. O eu sente e age através
desse instrumento.
De acordo com Steiner, a alma se manifesta de três formas; ou, para simplificar,
existem três almas:
1) Alma sensível ou alma da sensação: ela traz a consciência das sensações, a vivência
de uma impressão sensorial, por exemplo, de uma cor, de uma obra musical, de uma
dor. A través da alma sensível o homem vivencia o mundo.
2) Alma do intelecto ou do sentimento: por meio dela o homem formula pensamentos.
Ele põe em ordem as sensações recebidas, compreende o mundo, constrói o
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universo interno de sentimentos e de idéias. A abstração, o pensar conceitual, são
resultados da existência dessa alma do intelecto. Ciência e filosofia são os seus
frutos.
3) Alma consciente ou alma da consciência: traz ao homem a consciência da sua
própria individualidade e o choque entre o seu ego e o mundo. Ele se sente
distanciado, abandonado; em conseqüência, sofre por seu isolamento, duvidando de
tudo e não se dando mais por satisfeito com explicações fornecidas pela alma
racional.
Procurando analisar as várias atividades anímicas do homem, Steiner (LANZ, 1990)
chegou à conclusão de que seu número pode ser reduzido a três: a) o pensar – ao qual se
deve juntar a percepção sensorial e a memória; b) o sentir; e c) o querer.
Essa divisão, porém, não se limita às atividades anímicas. Ela tem um reflexo na
constituição física e nos graus de consciência da mente humana.
De acordo com Antroposofia, o corpo humano pode ser considerado como
composto da cabeça, do tórax e do abdome mais membros. Essa divisão não é casual. A
cabeça e o sistema abdome-membros formam uma polaridade.
Na cabeça está concentrado o sistema neuro-sensorial: ela contém o cérebro e a
maior parte dos sentidos, como também o cerne do sistema nervoso central. Identifica-se,
portanto, a cabeça com a percepção e com o pensamento, já que é o ponto de maior
concentração dessas atividades.
Da mesma forma, o metabolismo está centralizado na parte abdominal, onde os
movimentos peristálticos (inconscientes) e os processos de transformação, ajudados pelo
trabalho preparatório dos membros, têm por finalidade “incorporar” o mundo material ao
organismo através da alimentação e de todos os processos correlatos (digestão, secreção
etc.). É nessa região do corpo que se concentra essas atividades.
Entre esses pólos, o sentir constitui uma atividade intermediária. É dentro de si que
o homem avalia as impressões recebidas, os conteúdos dos pensamentos e até a qualidade
dos alimentos ingeridos. Entre os dois extremos do pensar e do querer, o sentir ocupa uma
posição mediadora. Na prática essa posição é sublinhada pela presunção de que o sentir está
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ligado ao coração à circulação (sangue) e à respiração, ou seja, aos processos rítmicos que
têm sua origem na região torácica, mas que abrangem o corpo inteiro.
O sistema rítmico do meio é caracterizado por um estado de intermediário entre a
consciência de vigília (cabeça – pensar) e a inconsciência (abdome – metabolismo). É uma
semiconsciência. A partir disso pode-se estabelecer o seguinte paralelo (LANZ, 1990):
Sistema Principal localização no corpo
Estado de consciência
Atividade anímica
Neuro-sensorial Cabeça Consciência total: vigília
Pensar (intelecto)
Rítmico-circulatório Tórax Semiconsciência: sonho
Sentir (sentimento)
Metabólico-motor Abdome e membros Inconsciência: sono Querer (metabolismo)
Dessa forma, mesmo quando estamos plenamente acordados e conscientes (vigília),
sonhamos em nossos sentimentos (circulação-respiração) e dormimos profundamente em
nossa vontade (metabolismo-motricidade). A vontade é vista aqui como energia instintiva
orientada não pela inteligência, mas por forças naturais (que para Steiner não deixam de ter
uma origem espiritual), visando à conservação da vida e continuidade da espécie.
Esses três “sistemas” têm, portanto, cada um seu centro, mas que se interpenetram.
O próprio corpo humano é uma imagem dessa trimembração, na qual constitui um dos
fundamentos do conceito do homem de Steiner e da pedagogia que dele decorre.
A evolução do homem, conforme Steiner, caracteriza-se por ciclos de sete anos;
cada um dos quais tem predominância de uma configuração anímico-espiritual, sendo que
um determinado membro do homem se desenvolve de maneira mais pronunciada. A
personalidade, isto é, o eu, “vive” então principalmente nesse membro. Embora essa
divisão em setênios possa ser observada durante a vida inteira, para a educação no sentido
comum, os três primeiros são de maior importância e fundamentais para todo o
desenvolvimento sucessivo do ser humano.
Primeiro Setênio: Infância (0 a 7 anos): nesse período o corpo etérico constitui o elemento
mais importante e está intimamente ligado ao corpo físico, o qual se desenvolve através das
forças plasmadoras daquele. É uma fase de maturação do corpo físico que se desenrola a
partir da cabeça, do sistema neurossensorial, para os processos de crescimento do corpo,
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tais como a ossificação e o desenvolvimento dos órgãos. Por isso, diz-se que o processo
maturacional se dá no sentido crânio-caudal, ou seja, da cabeça para as extremidades.
De acordo com LANZ (1990), enquanto o corpo etérico estiver agindo no corpo
físico da criança (até os sete anos de idade), ela estará entregue aos seus processos vitais
(alimentação, metabolismo, sono, movimentos descontrolados); e, por isso, a criança é
inconsciente nessa fase. Ela é permeável a todas as influências do mundo ambiente (“um
grande órgão sensório”) e, por sua vez, transmite diretamente tudo o que se passa dentro
dela.
Para o autor, a permeabilidade da criança ao meio externo é um fato que todo
educador deveria conhecer, pois o aprendizado nesse período não se dá por meio de
exortações, de preceitos morais ou de conscientização, mas pelo exemplo e pelo ambiente.
A imitação e o exemplo são os motivos básicos de todo comportamento infantil. Dessa
forma, um dos princípios pedagógicos que se revelará mais importante não só nessa fase,
mas em todas outras, é que: os educadores, inclusive os pais, devem trabalhar
constantemente sobre si mesmos a fim de eliminar unilateralidades, falhas ou excessos que
possam ter efeitos negativos sobre as crianças.
O que toda criança deveria ter em primeiro lugar, na idade pré-escolar, é um
ambiente cheio de carinho e amor. A figura da mãe (não necessariamente a mãe física)
protege-o contra a frieza do ambiente, dando-lhe calor e aconchego. Toda criança nessa
idade deveria sentir que “o mundo é bom” e essa sensação deveria permeá-la,
inconscientemente, e constituir-lhe um sentimento quase religioso – o que Steiner chamou
de “religiosidade corporal”, por ser uma fase de maturação do corpo físico.
Do ponto de vista da atividade anímica, nessa fase a criança desenvolve
predominantemente a esfera do “querer-agir”. Embora inconsciente, a criança pequena é
um ser no qual prepondera a vontade e, toda vontade nela, conduz a movimentos. Podemos
observar que toda criança sadia é um ser móvel.
Para o autor, essa dinâmica da criança deve ser conduzida, pouco a pouco, a uma
regularidade rítmica, sem, no entanto, ser inibida brutalmente. Certas regularidades no
decorrer do dia, a observação de um horário rítmico pra jogos e refeições, para o descanso e
pequenas cerimônias, harmonizam uma vontade que, sem isso, tende a ficar caótica.
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Do nascimento até os sete anos, o corpo etérico vai se tornando cada vez mais
autônomo e, à medida que isso vai ocorrendo, a memória e a inteligência vão-se
desenvolvendo. A partir da metade do terceiro ano de vida, uma parte do corpo etérico, que
corresponde à cabeça, começa a libertar-se e torna-se disponível para a memória e para o
desenvolvimento da inteligência. Aparece uma cisão entre o imediatismo da vivência e a
conservação do fato sob forma da representação mental, imagem da memória etc. Ao
mesmo tempo, a continuidade das imagens gravadas faz surgir a primeira consciência do
próprio eu. No entanto, essa primeira memória e inteligência das crianças são bastante
rudimentares (LANZ, 1990). Estabelecendo comparação com a teoria piagetinana podemos
dizer que esta fase é equivalente àquela que Piaget denominou de pré-operacional, em torno
dos 2 a 6-7 anos de idade, quando encontramos as mesma característica descritas pelo
autor ao expor a visão Steiner a respeito do desenvolvimento da criança
Segundo Setênio: Juventude (7 a 14 anos): nesse período haverá o desenvolvimento do
corpo astral, até a sua autonomia ao fim deste ciclo. Daí um desenvolvimento intenso das
qualidades a ele ligadas: sentimento, fantasia, emotividade. O próprio pensar e memória
evoluem rapidamente, embora imbuídos de sentimentos e emoções.
As diversas matérias do currículo escolar e a metodologia do seu ensino são
instrumentos importantes para facilitar, em cada momento do desenvolvimento do jovem, o
surgimento da personalidade de forma harmoniosa. Por exemplo, se o eu permeia o corpo
astral e o resto do organismo de uma forma excessiva, a criança se tornará pragmática, em
todos os sentidos da palavra (para Jung, uma pessoa do tipo extrovertido). No seu contrário,
a criança será um sonhador desligado da realidade (para Jung, uma pessoa do tipo
introvertida). De acordo com LANZ (1990), a harmonização entre esses dois extremos, no
âmbito escolar, pode ser obtida dando-se maior ou menor ênfase a certas matérias:
enquanto a geometria, a aritmética, a linguagem e, de forma geral, a ocupação com idéias
abstratas favorecem o contato com a realidade e a forma; o desenho, a história, a geografia
e as atividades artísticas tendem a incentivar uma vida sentimental menos realista.
Embora a capacidade de aprender e a memória estejam bem desenvolvidas após a
libertação do corpo etérico, isso não significa que a assimilação de informações e o
raciocínio possam funcionar sem que se leve em conta o predomínio da vida emocional e
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sentimental. A criança não aprende e nem conhece qualquer fato sem que esteja engajada
emocionalmente. Portanto, a educação nessa fase se dá através do trabalho com os
sentimentos e fantasia criadora da criança. A música, o canto, a fala, a eurritmia (arte do
movimento criada por Steiner e sua mulher) e o próprio corpo humano, são atividades em
que o elemento musical (característico do corpo astral) se expressa mais diretamente.
À medida que o mundo fala à criança não pelo seu conteúdo conceitual, mas pelo
seu aspecto e pela configuração dos seus fenômenos, podemos chamar essa atitude de
“estética”. Nessa fase a criança deve sentir que “o mundo é belo” através de imagens. A
própria criança evolui durante esse período em direção a um pensar cada vez mais abstrato,
mas a transformação das imagens e fenômenos em conceitos e regras deve-se processar
paulatinamente.
De acordo com Lanz, emoções e vivências intensas devem acompanhar o ensino de
todas as matérias. O autor diz:
“O professor deve ser um artista, no sentido mais amplo da palavra, e todo ensino deve ser uma obra de arte. Assim como o artista se dirige aos sentimentos do seu público, o professor alcançará suas metas exclusivamente apelando aos sentimentos e à fantasia dos seus discípulos” (LANZ, 1990, p.42). Assim, para STEINER (1988) todo ensino deve partir de uma certa formulação
artística para que o ser humano total, principalmente com sua vida volitiva, seja solicitado.
A função do professor é basicamente a de trazer o mundo para dentro da sala de aula.
Além disso, o sentimento do belo deve ser cultivado por atividades artísticas e artesanais,
isto é, pelo “fazer”. A relativa passividade do aprender será, dessa forma, completada por
uma atividade criadora. Assim, o autor conclui:
“Entre o endurecimento do pensar abstrato e a volatividade da vontade, o elemento artístico pode estabelecer a harmonização e o equiíbrio que garantem o desenvolvimento sadio do jovem. Não se deve tratar, evidentemente de arte alheia à vida, com finalidades puramente ‘decorativas’ mas sim de um enfoque e de um cultivo do ‘belo’ que esteja, dentro da realidade da vida prática” (LANZ, 1990, p.43). Durante o segundo setênio, em particular, a educação deve ter como princípio
pedagógico a autoridade. De acordo com MORAES (1998), a criança, principalmente a
pequena, precisa de um referencial e também de um elemento que lhe dê apoio, amor e
atenção; esse referencial de apoio é o adulto ou o educador. De acordo com ao autor, para
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Steiner, há a “Autoridade Natural Amada” a e “Autoridade Natural Admirada”. Autoridade,
aqui, significa o referencial cultural que todo adulto pode ser para a criança e para o jovem.
A autoridade do adulto se dá pelo que ele é como pessoa, e não pela figura institucional e
burocrática que ele representa.
Terceiro Setênio: Adolescência (14 a 21 anos): esse período é marcado pelo pleno
desenvolvimento das faculdades mentais e morais e autonomia do eu, o qual se liberta de
seus vínculos com o corpo astral e com o resto do organismo – desde de que o
desenvolvimento anterior à puberdade tenha sido normal.
O pensar e o querer nessa fase podem funcionar sem interferência de motivações
oriundas do corpo físico e dos sentimentos. O despertar do julgamento próprio conduz o
adolescente a um espírito crítico em relação ao mundo e ás idéias e opiniões dos outros. O
princípio pedagógico do terceiro setênio é o reconhecimento das reais qualidades do
educador, e em particular da sua capacidade intelectual e da integridade moral.
Aos catorze anos, o eu provoca no adolescente a consciência do seu próprio existir,
sendo a autoconsciência uma das características mais incisivas nesta fase. O que no jovem
de sete a catorze anos era apenas fantasia, transforma-se no adolescente em criatividade
consciente e em perseverança na busca de um ideal.
Nesse período, a tarefa principal do professor é síntese harmoniosa de todas as
qualidades de seus alunos. Isso significa a harmonização das forças anímicas do pensar, do
querer e do sentir, permeado com sentimentos fortes, mas não egoístas. Além disso, o
professor deve almejar a perfeita integração destes no mundo, incentivando seus alunos na
participação ativa no mundo:
“Ora, o indivíduo não existe por si só. Ele faz parte da comunidade social e toda verdadeira educação deverá desenvolver no ser humano o respeito ao próximo – corolário da afirmação do próprio eu – e o senso da responsabilidade social de cada um. Estas são as metas de toda a educação – ao mesmo nível dos conhecimentos exigidos pelos regulamentos escolares” (LANZ, 1990).
O autor completa que toda educação deve conduzir o ser humano à capacidade de
determinar-se a si próprio e de fixar as metas da sua vida. No entanto, essa capacidade
pressupõe o pleno desenvolvimento do eu, o qual só tem condições totais para se realizar á
partir dos 21 anos, se todas as fases anteriores foram bem sucedidas. Nesse período, as
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qualidades do professor possibilitaram que ele assuma o princípio da “autoridade”, pois o
adolescente anseia ainda por encontrar alguém a quem admirar. Assim, o bom educador
saberá dosar, conforme a idade e personalidade do aluno, quanta liberdade poderá
consentir. E, sobretudo, fará sentir ao adolescente que a liberdade não é apenas um direito,
mas implica em muitas responsabilidades; que existe a “liberdade de...”, mas também a
“liberdade para...”.
De acordo com LANZ (1990), de fato, a Antroposofia elaborada por Rudolf Steiner
tem por objetivo o homem como indivíduo. Mas a Pedagogia Waldorf não se limita a essa
visão; baseia-se, fundamentalmente, no encontro entre homens: em primeiro lugar, aquele
entre o professor e o aluno. Toda a pedagogia está, pois, centrada nesse fenômeno
arquetípico, ao mesmo tempo humano e inter-humano: a relação aluno-professor – ela é o
cerne da Pedagogia Waldorf.
Para Steiner (LANZ, 1990), embora cada ser humano leve o marco indelével do seu
eu, existem tipos humanos baseados na constelação dos seus componentes; trata-se dos
quatro temperamentos: sanguíneo, melancólico, colérico e fleumático. Cada criança tem um
tipo específico de temperamento, levando consigo as características, o tipo físico e o
funcionamento do temperamento em questão. A disposição dos alunos na sala de aula leva
em consideração os temperamentos das crianças, facilitando o processo de ensino-
aprendizagem.
Em geral, o professor terá em sua classe um equilíbrio entre os quatro
temperamentos. Sua arte consistirá em atingi-los todos de maneira igual. Dessa forma, o
conhecimento dos vários temperamentos se faz necessário para que o professor compreenda
seus alunos e seus comportamentos.
Como todo ensino na Pedagogia Waldorf está centrado na relação aluno-professor,
esse último deve ter, entre as inúmeras, as seguintes qualidades:
1) Um conhecimento profundo do ser humano, o que envolve, automaticamente, o
conhecimento da Antroposofia e do desenvolvimento do ser humano através dos
setênios. No entanto, esse conhecimento não é algo definitivo, mas deve ser
constantemente exercitado, através de estudos pessoais e dos seminários para os
professores (seminários para professores que desejam fazer parte de uma escola
Waldorf).
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2) O amor como base do comportamento social em relação aos alunos, que decorre
automaticamente do fundo espiritual da pedagogia Waldorf.
3) Qualidades artísticas, o que significa a presença de uma maleabilidade da fantasia e
da criatividade, características do verdadeiro artista. O professor deve encarar cada
aula como uma obra de arte e, portanto, ter como fonte de inspiração não só os
livros, mas seu próprio mundo interno.
Para finalizar, MORAES (1998) diz que a Educação pautada na Antroposofia, ou
seja, a Pedagogia Waldorf, tem um aspecto da “Educação da Essência” e da “Educação da
Existência”. Dessa primeira é a dimensão utópica, a qual coopera para o desenvolvimento
das potencialidades humanas ainda em devir – e que, portanto, ainda não se encontram
plenamente existindo no aqui e no agora do mundo atual. Da segunda, é o processo de
condução da criança à sua plena integração com o mundo concreto, tanto no sentido de
orientação psico-espacial, quanto no sentido de uma completa socialização.
Desse ponto de vista, a Pedagogia Waldorf, ao menos teoricamente, está no
caminho do meio.
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MÉTODO
"(...) o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. (...) Isso que me alegra, montão"9
Guimarães Rosa
9 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.
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A escolha da pesquisa qualitativa para fundamentar e orientar nosso trabalho está
diretamente relacionada com o resgate da condição de sujeito das pessoas pesquisadas, isto
é, a inclusão da subjetividade (assim como as diferentes vias para chegar a ela) no fazer
ciência humana.
Fazendo uma crítica as crenças que, junto com a ciência, geraram a epistemologia
positivista, REY (2002) ressalta que a ciência não é só racionalidade, é também
subjetividade em tudo o que o termo implica: é emoção, individualização, contradição,
enfim, é expressão íntegra do fluxo da vida humana, que se realiza através de sujeitos
individuais. A representação da ciência como atividade supra-individual, que supõe a não-
participação do pesquisador e o controle de sua subjetividade, ignora o caráter interativo e
subjetivo do nosso objeto (o homem), o qual é condição de sua expressão comprometida na
pesquisa.
Na opinião do autor, a subjetividade é um sistema complexo de significações e
sentidos subjetivos produzidos na vida cultural humana, e ela se define ontologicamente
como diferente dos elementos sociais, biológicos, ecológicos, entre outros, mas que, no
entanto, estão relacionados entre si no complexo processo de seu desenvolvimento. E,
diferentemente da ciência tradicional - que tem como objetivos a predição, a descrição e o
controle -, a abordagem qualitativa no estudo da subjetividade volta-se, exatamente, para a
elucidação e o conhecimento dos complexos processos que constituem essa subjetividade.
O qualitativo na pesquisa psicológica, essencialmente como definição
epistemológica, se define, segundo o autor, pelos processos implicados na construção do
conhecimento, pela forma de se produzir o conhecimento. Assim, a epistemologia
qualitativa é um esforço na busca de formas diferentes de produção de conhecimento em
psicologia que permitam a criação teórica acerca da realidade plurideterminada,
diferenciada, irregular, interativa e histórica, que representa a subjetividade humana.
A epistemologia qualitativa se apóia em três princípios de importantes
conseqüências metodológicas. São eles: 1) o conhecimento é uma produção construtiva-
interpretativa, isto é, o conhecimento não é uma soma de fatos definidos por constatações
imediatas do momento empírico, mas sim uma interpretação do pesquisador; 2) caráter
interativo do processo de produção do conhecimento, enfatizando que as relações
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pesquisador-pesquisado são uma condição para o desenvolvimento das pesquisas nas
ciências humanas, e essencial para a produção de conhecimento; e 3) significação da
singularidade como nível legítimo da produção do conhecimento, ou seja, o conhecimento
científico, a partir do referencial qualitativo, não se legitima pela quantidade de sujeitos a
serem estudados, mas pela qualidade de sua expressão.
Considerando esse último ponto, a atenção ao caráter singular do estudado se
expressa na legitimidade atribuída ao estudo de casos. O curso da pesquisa pressupõe o
estudo de caso não como via de obtenção de informação complementar, mas como
momento essencial na produção de conhecimento. Tal curso não se dá de modo linear,
contínuo e previsível, mas constitui um processo irregular e diferenciado que se ramifica à
medida que o objeto se expressa em toda a sua riqueza.
Outra conseqüência metodológica advinda da epistemologia qualitativa, é o lugar
ativo do pesquisador e do sujeito pesquisado como produtores de pensamento. O sujeito, na
epistemologia adotada é um sujeito ativo, interativo, motivado e intencional, que adota uma
posição em face das tarefas que enfrenta. Do outro lado, o pesquisador, além de ser um
sujeito participante, também ativo, converte-se em sujeito intelectual, o qual utiliza-se da
teoria, não como um conjunto de categorias a priori, mas como instrumento para sua
interpretação e construção do conhecimento.
A consideração da natureza interativa do processo de produção do conhecimento
nos leva a atribuir um valor especial aos diálogos, os quais assumem uma função nova e
imprescindível para a qualidade da informação produzida na pesquisa (além daquela de
favorecer o bem-estar emocional dos sujeitos pesquisados): é fonte essencial para o
pensamento. É no diálogo que se criam várias características que favorecem níveis de
conceituação da experiência (como climas de segurança, tensão intelectual, interesse e
confiança), que raramente aparecem de forma espontânea na vida cotidiana.
Atribuir um caráter interativo no processo de produção de conhecimento, implica
também em compreendê-lo como processo que assimila os imprevistos como situações
significativas para o conhecimento, além da aceitação dos momentos informais que surgem
durante a comunicação, como produtores de informação relevante para a produção teórica.
Desse modo na pesquisa qualitativa, os instrumentos também adquirem lugares
diferenciados do tradicional: passam a ter uma característica interativa, sendo importante as
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conversações que suscita, as expressões do sujeito diante dele, as perguntas que formula
durante sua execução, as características da execução entre outras.
REY (2002) define instrumentos, como todos os procedimentos encaminhados a
estimular a expressão do sujeito estudado. Assim, por exemplo, serão instrumentos de
pesquisa psicológica as lâminas dos testes projetivos, as frases a serem completadas, as
situações de diálogos, as redações, as análises de filmes, os jogos, as situações de execução,
o desenho, as formas de relação grupal e outros.
A reação do sujeito diante dos instrumentos desestruturados inviabiliza o seu
controle sobre a prova, provocando respostas mais aproximadas daquelas que ele produz no
cotidiano. Esse tipo de instrumento facilita a expressão do sujeito em toda a sua
complexidade.
Dessa forma, o autor conclui que, a significação atribuída à comunicação desloca o
centro de atenção dos pesquisadores dos instrumentos para os processos interativo-
construtivos que se constituem dinamicamente no curso da pesquisa. A pesquisa, a partir
dessa perspectiva, deixa de ser uma rota crítica fixada a priori e se converte em processo
interativo que segue os altos e baixos e as irregularidades de toda relação humana.
Para esse trabalho, escolhemos dois instrumentos de investigação: a entrevista
clínica (anamnese) e um teste projetivo, a Prova de Rorschach.
De acordo com TRINCA (TRINCA, 1984, citado por GONÇALVES, 1997), a
investigação diagnóstica tem como objetivo estudar fatos que não estão claramente visíveis
e que, portanto, é necessário um espírito investigador que não se satisfaça apenas com o
que é aparente e que não se apresse em dar explicações aos fenômenos observados.
REY (2002) colaborando com essa compreensão reflete e entende o diagnóstico
psicológico como aquele processo orientado na tentativa de conhecer o sujeito ou espaço
social estudado em sua singularidade, na constituição subjetiva de seus sintomas ou de
qualquer processo ou capacidade que se pretenda estudar. Nesse aspecto o diagnóstico é um
processo de produção de conhecimento diferenciado, que pode ser utilizado na pesquisa
científica. Pesquisa e diagnóstico não têm a princípio nenhuma incompatibilidade; ao
contrário, o diagnóstico é uma pesquisa dirigida ao conhecimento de um caso. Para ele, no
exercício do diagnóstico como processo de conhecimento são legítimos os mesmos
princípios gerais da epistemologia qualitativa: o diagnóstico é um processo de relação
51
constituído por meio da comunicação, o qual não representa um reflexo do sujeito estudado
nos termos de um resultado final, mas um processo orientado para produzir conhecimentos
que facilitem a inteligibilidade daquele em termos de nossos recursos conceituais, o que
não significa dissolver o sujeito nas categorias usadas para seu diagnóstico.
A entrevista clínica, para TRINCA (TRINCA , 1984, citado por GONÇALVES,
1997) é o principal recurso para a realização da investigação psicológica, sendo importante
que tanto a entrevista quanto a observação clínica sejam seletivas e focalizem os pontos
relevantes para a elucidação do caso.
REY (2002) ressalva: a entrevista não deve ser usada na perspectiva qualitativa
como um instrumento fechado, na qual a resposta seja utilizada como unidade objetiva de
análise. E, corroborando com a afirmação de Trinca, esse autor defende que ela tem sempre
o propósito de converter-se em um diálogo, em cujo curso as informações aparecem
conforme o sujeito as experimenta em seu mundo real. Através da entrevista surgem
inumeráveis elementos de sentido, sobre os quais o pesquisador não havia pensado, que se
convertem em elementos importantes do conhecimento e enriqueceram o problema inicial
planejado de forma unilateral nos termos do pesquisador.
Alguns fatores levantados por esses dois autores nos levaram a incluir um segundo
instrumento de investigação – no caso, a Prova de Rorschach.
Apesar da ressalva de REY (2002) às técnicas ou testes projetivos, considerando-os
limitados pelos mesmos conceitos de validade, confiabilidade e padronização que guiaram
a construção e uso dos testes objetivos (apesar do esforço para a superação de todos esses
aspectos), concordamos com TRINCA (TRINCA, 1984, citado por GONÇALVES, 1997)
que a utilização de uma técnica projetiva auxilia o diagnóstico, tornando possível o acesso
aos recursos intrapsíquicos. Além de nos propiciar os dados obtidos da sua aplicação, esse
tipo de técnica possibilita, ainda, a observação das manifestações de comportamento do
sujeito frente a uma situação semi-estruturada, a qual exige sua organização para a
realização da tarefa.
Mesmo fazendo essa ressalva a esse tipo de técnica, REY (2002) não a exclui com
uma das formas possíveis de investigação; até mesmo porque, o próprio autor lembra que a
pesquisa sobre a subjetividade expressa sempre uma contradição inerente: a contradição
entre a constituição subjetiva dos fenômenos na personalidade e a representação que o
52
sujeito tem desses fenômenos; processos que nem sempre coincidem e que, com freqüência,
são contraditórios. Sendo, portanto as técnicas projetivas uma das formas de se explicitar
essas possíveis contradições.
Dessa forma, através da articulação dos dois instrumentos utilizados no
procedimento da investigação diagnóstica – a entrevista clínica e a Prova de Rorschach –
foi possível ter uma visão mais ampla do fenômeno humano que nos propusemos a
investigar: a dinâmica afetivo-emocional de uma pessoa que passou por um processo
educacional com determinadas características específicas.
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I – Sujeito e procedimento
Dois aspectos influenciaram na escolha da participante desse trabalho: 1) ter
freqüentado um mínimo de cinco anos o Ateliê de Artes Kinder; e 2) estar ainda na cidade,
o que facilitaria o contato.
Há um terceiro aspecto, que não foi determinante para a escolha, mas que contribuiu
de forma secundária, que foi o fato da participante ter como escolha uma profissão
relacionada às artes.
O convite foi feito por telefone e um primeiro encontro foi marcado para a
realização da entrevista. Nesse primeiro encontro, antes de dar início à entrevista, todo o
trabalho – objetivo e procedimento - foi explicado detalhadamente para participante. Um
segundo encontro foi marcado para a aplicação da Prova de Rorschach.
Além desses dois encontros, já previstos como procedimento da pesquisa, foi
necessário um terceiro encontro, no qual foi realizada uma segunda entrevista com o
objetivo de buscar mais informações importantes para a compreensão do fenômeno e que
não foram explicitadas na primeira entrevista.
As entrevistas foram realizadas pela presente autora e a Prova de Rorschach foi
aplicada por uma aluna da graduação (acompanhada pela autora) que já havia passado pela
experiência de aplicação da referida prova.
54
Prova de Rorschach
Desde fins do século XIX começam a aparecer com maior freqüência pesquisas que
utilizavam manchas de tinta visando obter dados sobre a imaginação e criatividade. No
entanto foi um psiquiatra suíço, Hermann Rorschach, o primeiro a utilizar-se das manchas
com fins diagnósticos.
A prova de Rorschach pode ser considerada um método de investigação da
personalidade a partir do qual podemos levantar hipóteses quanto a estrutura e dinâmica da
personalidade do indivíduo. Seu material, constituído de manchas ambíguas e pouco
estruturadas, propicia o acesso a conteúdos conscientes e inconscientes. Esta possibilidade
advém da suposição de que quanto mais ambíguo o estímulo é menos provável que
provoque reações defensivas por parte do sujeito (PUC-SP, 1995)
O próprio Hermann Rorschach (PUC-SP, 1995), na época, devido à abrangência e
complexidade do teste, nos alertou para o uso adequado e produtivo do instrumento que
requer por parte do profissional, além de conhecimento técnico, uma base teórica,
experiência profissional e vivência pessoal. Nesse sentido, corroborando com a
epistemologia qualitativa, a relação sujeito-aplicador é primordial para se obter resultados
adequados do instrumento, uma vez que só a técnica de aplicação é insuficiente.
Basicamente o material da Prova de Rorschach (PUC-SP, 1995) se resume a dez
pranchas ou cartões onde estão impressas as manchas de tinta sobre um fundo branco. As
pranchas podem ser: monocromáticas, ou seja, as manchas são em tons de cinza e preto
(pranchas I, IV, V, VI e VII); ou cromáticas, sendo que duas delas, além dos tons de cinza e
preto, apresentam partes vermelhas (pranchas II e III) e outras três são multicoloridas
(pranchas VIII, IX e X).
Do ponto de vista técnico, a aplicação do teste consiste em duas etapas:
a) Associação
b) Inquérito
Na primeira etapa – associação – as pranchas são apresentadas ao sujeito e ele é
orientado a dizer “tudo aquilo que ele vê nas manchas”. As pranchas são apresentadas uma
por vez e suas associações e reações são anotadas literalmente pelo aplicador.
55
Na segunda etapa – inquérito – as respostas são retomadas pelo aplicador, que as
repete para o sujeito apresentando-lhe novamente as pranchas. O aplicador faz algumas
perguntas objetivando entender as percepções do indivíduo e esclarecera compreensão das
respostas de acordo com aquilo que o sujeito desejou comunicar assegurando a coleta de
informações importantes e imprescindíveis à classificação e interpretação dos dados.
Basicamente o aplicador procura saber a da localização da resposta na mancha (Onde você
viu...?) e o que determinou a associação do sujeito (O que te fez pensar em...; ou O que lhe
deu impressão de...?).
A aplicação e avaliação da prova de Rorschach foram realizadas de acordo com o
sistema desenvolvido por KLOPFER (1942). De acordo com esse autor (citado por
GONÇALVES, 1997), o material resultante da análise qualitativa e quantitativa da prova
revela uma interação entre os fatores intelectuais e emocionais dos sujeitos. Nessa interação
podemos constatar:
1) O grau e a maneira com os quais o sujeito tenta regular suas experiências e suas
ações;
2) A responsividade emocional aos estímulos provocada pelo meio externo e a
prontidão para essa responsividade;
3) A capacidade mental para solucionar problemas e situações;
4) A capacidade criativa e o uso que é feito desta;
5) Uma análise do nível de inteligência e as capacidades qualitativas dos processos
do pensamento.
No estudo individual do caso os critérios para a escolha dos índices da prova de
Rorschach foram a possibilidade de reconhecimento da: 1) potencialidades afetiva; 2) modo
de funcionamento cognitivo-intelectual; 3) grau de controle do ego ; e 4) nível do
funcionamento mental (nível primário ou secundário).
Para a verificação das potencialidades afetivas, os índices escolhidos foram:
I. Ressonância Afetiva (RA): o resultado dessa equação é obtido através do número de
respostas dadas nas últimas pranchas (VIII, IX e X) sobre o total de respostas dadas. A
porcentagem de respostas às três últimas pranchas, que são completamente cromáticas,
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indica a responsividade geral da pessoa a estímulos do meio. Além disso, serve de valor
comparativo para a confirmação do tipo de exteriorização da afetividade. Os valores
considerados foram:
a) RA < 30% → inibição afetiva
b) 30% < RA < 40% → responsividade normal
c) RA > 40% → impulsividade
II. Exteriorização da Afetividade: o resultado dessa equação é a somatória de respostas
de movimento (Msum) sobre somatória de respostas cromáticas (Csum). A exteriorização
da afetividade indica o tipo de vivência do sujeito, isto é, qual seria o tipo de reação frente
ao impacto emocional provocados pelos estímulos do meio; podendo ser:
a) 2Msum: 1Csum → Introversivo
b) 1Msum: 2Csum → Extratensivo
c) Msum: Csum → Ambigual
Os indivíduos caracterizados como introversivos têm uma vida interior rica,
são reflexivos e criativos. Mantêm contatos humanos mais profundos que numerosos e
demonstram dificuldades na vida social e em adaptar-se à realidade.
Aqueles considerados extratensivos são hábeis em adaptar-se à realidade;
mostram-se mais pragmáticos, com facilidade para concretização de seus objetivos, no
entanto são pouco originais. Ao contrário dos introversivos, mantêm relações superficiais e
em grande quantidade.
A introversão extrema pode indicar, junto com a análise geral dos dados,
uma defesa frente às emoções provocadas pelos estímulos do meio. Em contrapartida, a
extratensão extrema também pode refletir uma defesa que busca ajuda no engajamento total
com a realidade para evitar o contato com a consciência as necessidades afetivo-emocinal.
O indivíduo que apresenta um tipo de vivência ambigual conserva um
equilíbrio entre as características introversivas e extratensivas: tem a habilidade de manter
contatos afetivos profundos e, ao mesmo tempo, tem o domínio do ambiente que o cerca.
Entretanto se esse indivíduo não souber responder aos diferentes movimentos da energia
libidinal de acordo com a exigência desta a ele, ora introversiva ora extratensiva,
possivelmente haverá a presença de conflito emocional.
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III. Tipo de Exteriorização: essa equação refere-se ás proporções relativas à reatividade
emocional ao meio. O tipo de exteriorização da afetividade indica a presença ou não de
exteriorização e o tipo de controle de que o sujeito dispõe para exteriorizar seus afetos. Os
valores considerados foram:
a) FC = 0 e CF + C = 0 → sem exteriorização
b) FC < CF + C → impulsividade
c) FC > CF + C e CF + C > 0 → normal
IV. Organização das Necessidades Afetivas: nesse índice considerou-se duas equações,
usando as repostas de sombredo, difererenciado (FK, Fk e Fc) e indiferenciado (KF, kF e
cF). Esse índice demonstra a presença de sinais de ansiedade e se aquelas são passíveis de
reconhecimento, ou ainda se são tão primitivas que se tornam indiscriminadas. Os valores
considerados foram:
1) (FK + Fk + Fc) : (KF + kF + cF + c), onde
a) 0 : 0 → inconsciência
b) 0 : x, onde x ≠ 0 → consciência
c) y : x, onde x e y ≠ 0 → consciência e inconsciência
2) F : FK + Fc, onde
a) ¾ F < FK + Fc → necessidade de afeto em excesso
b) ¼ a ¾ F = FK + Fc → necessidade de afeto integrada com o resto da
personalidade
c) ¼ F > FK + Fc → necessidade de afeto sub-desenvolvida ou negada e reprimida
As respostas de sombreado nos indicam como os sujeitos manipulam as
necessidades básicas de segurança, de afeição e do sentimento de pertencer a alguém. As
respostas K e KF indicam a presença de ansiedade de natureza vaga: o sujeito está
consciente dessa ansiedade, embora não faça uso de defesas eficazes. A presença de
ansiedade faz parte da vida, no entanto, se há um aumento para 3 no índice dessas respostas
de natureza vaga, e assim excedem as respostas de sombreado diferenciado, podemos supor
58
que o grau de ansiedade é alto o suficiente para perturbar o cotidiano do sujeito. A ausência
de respostas dessa natureza indica uma falta de consciência das necessidades afetivas ou a
presença de defesas que protegem o sujeito dessa consciência.
V. Recursos da Personalidade: esse índice é calculado através das respostas de
movimento (M, FM e m). Os recursos da personalidade indicam o tipo de vivência do
sujeito, a capacidade de reflexão, de imaginação e a energia psíquica existentes. Foram
consideradas duas equações:
1) FM : M, onde
a) FM > 2M → necessidade de gratificação imediata
b) M > FM → normal
c) M < FM < 2M → desfavorável
2) M: FM + m, onde
a) 1 ½ M < FM +m → tensão excessiva
b) 1 ½ M ≈ FM + m → impulso vital integrado
O significado das respostas M é bastante complexo e implica basicamente três
conceitos: a) processo imaginativo, isto é, ver na mancha uma cinestesia que não existe; b)
da empatia, isto é, ver na mancha a presença humana; c) da percepção em nível altamente
diferenciado e integrado.
A quantidade de respostas M é indicativa da presença de energia vital. Nos
introversivos, espera-se um mínimo de cinco respostas dessa categoria. Abaixo de três,
podemos supor um rebaixamento da energia vital disponível do indivíduo, ou ainda uma
baixa tolerância do ego aos impulsos arcaicos.
As respostas FM, comparadas com as M, requerem um menor grau de diferenciação
intelectual, não implicam empatia pelos seres humanos e sugerem impulsos que necessitam
de gratificação imediata.
As respostas m indicam tensão e conflito: conflito entre o impulso e metas a longo
prazo e tensão devido ao esforço para inibir o impulso. Em muitos casos, a presença de m
parece indicar uma necessidade de repressão; por outro lado, pode refletir um sentimento de
59
desamparo em face de forças ambientais ameaçadoras fora do controle. Sua presença em
número elevado, relativo ao número de respostas evocados em todas as pranchas é um
reflexo de consciência de forças fora do controle do indivíduo, que ameaçam a integridade
da organização de sua personalidade.
Assim, a relação entre a quantidade dessas respostas aliadas ao tipo de
exteriorização dos afetos, analisada em conjunto com outros dados do psicograma, poderá
auxiliar-nos na avaliação da participante.
É freqüente na análise do Rorschach estimar, também, os modos de funcionamento
cognitivo-intelectual e eficiência do sujeito. No entanto, como já foi dito, ao contrário do
tipo de situação apresentada pelos testes usuais de inteligência, uma situação estruturada, a
Prova de Rorschach mostra a performance do sujeito numa situação não estruturada. Assim,
essa estimativa no Rorschach é baseada principalmente no modo de organização do
processo perceptual, que depende dos conhecimentos assimilados durante a experiência de
vida.
Para a estimativa da capacidade intelectual da participante os seguintes aspectos da
performance na prova de Rorschach foram considerados:
I. Grau de Esteriotipia e Identidade: o grau de esteriotipia (calculado através da
proporção de respostas de conteúdo animal) indica a capacidade de concentração, o
controle dos processos de pensamento e a amplitude de interesse que o sujeito apresenta. A
identidade (resultado obtido através da porcentagem de respostas de conteúdo humano)
indica o grau de empatia do sujeito, ou seja, a habilidade do sujeito aceitar ou se identificar
com os outros. Os valores considerados, respectivamente, foram:
1) A%, onde
a) A% < 30 → dispersão do pensamento
b) 30 < A% < 50 → normal
c) A% > 50 → controle rígido do pensamento
2) H%, onde deve ser aproximadamente 20%
60
II. Quantidade de respostas (Produção): esse índice é referente ao número total de
respostas dadas pelo sujeito na prova. A produtividade indica a capacidade de produção
intelectual. Os valores considerados foram:
a) R < 15 → baixa produtividade
b)15 < R < 25 → normal
c) R > 25 → excesso de produtividade
A produtividade do indivíduo deve ser avaliada à luz da qualidade dessa produção.
Se a responsividade for baixa, mas estiver associada a um bom número de respostas, cujo
determinante é global do tipo secundário, poderemos supor que a capacidade de produção
intelectual desse sujeito se caracteriza por uma abordagem mais elaborada, que implica
percepção discriminativa e integração das partes, o que lhe possibilita realização e
compreensão de experiências complexas. Entretanto, se o sujeito demonstrar baixa
produtividade, associada a um número exagerado de respostas globais primárias,
poderemos supor uma superficialidade de relacionamento com as experiências do meio que
pode levar a generalizações simplórias.
III. Número de repostas populares e quantidade e qualidade de respostas originais: o
número médio de respostas esperadas para a população brasileira, encontra-se entre 15 e
25, sendo, nesse caso, o número médio de respostas populares igual a cinco. Um grande
número de respostas originais caracteriza o uso livre de recursos e um alto nível de
eficiência intelectual. A escassez de respostas originais principais, com bastante adicionais,
é sinal de cautela e modéstia do indivíduo na exploração de sua capacidade intelectual.
(Respostas populares, de acordo com ADRADOS (1973), são aquelas que estatisticamente
aparecem com grande freqüência nos protocolos, e respostas originais, ao contrário, são
aquelas que, estatisticamente, raramente aparecem – uma em cada 100 pessoas).
IV. Manutenção da Objetividade: esse índice refere-se à porcentagem de respostas
determinadas pelas respostas de forma dada pelo sujeito. A manutenção da objetividade
indica a capacidade de formação de conceitos objetivos. Os valores considerados foram:
a) F% < 20 → objetividade rebaixada
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b) 20 < F% < 50 → manutenção da objetividade normal
c) 50 < F% < 80 → constrição neurótica
d) F% > 80, onde 1) nível formal alto – constrição neurótica
2) nível formal baixo – limitação natural
V. Classificação do nível formal (Dado de Realidade): leva-se em consideração que o
nível formal varia diretamente com a qualidade do funcionamento intelectual. A percepção
acurada (F+) resulta de uma integração das características estruturais do material
estimulador (as manchas) e do significado atribuído pela pessoa, à luz de suas necessidades
presentes e sua experiência passada. Enquanto considera-se que, um nível formal menos (F-
), é devido a um exagero da contribuição pessoal à percepção, às custas de um
reconhecimento adequado da estrutura “realidade”, que é representada pelas manchas,
indicada pela análise estatística da prevalência dessas respostas na população em geral.
A qualidade formal (F+) indica a capacidade de objetivação adequada do indivíduo,
segundo os padrões sociais. Os valores considerados foram:
a) F+% < 75 → sinal de desajuste às normas
b) 75 < F+% < 80 → normal
c) F+% > 80 → rigidez, vida afetiva comprometida
VI. Quantidade e qualidade das respostas globais (G1ª + G2ª): um alto nível da função
intelectual é indicado por um bom número de respostas globais de boa qualidade. Isto
implica num nível formal suficientemente alto para indicar boa diferenciação e organização
da percepção (G2ª), com ênfase no reconhecimento das relações inerentes entre as partes
diferenciadas do material percebido. A implicação inversa é dada por um grande número de
respostas globais não diferenciadas (G1ª) que indicam, ou um baixo nível de capacidade
diferenciação ou uma considerável interferência emocional na eficiência da função.
VII. Quantidade e qualidade das repostas de movimento humano (M+ : M-):
considera-se que a função imaginativa e de empatia revelada pelas respostas M (bem como
suas variações - quanto menos óbvias elas são) é aparentemente característica de
capacidade intelectual superior. A qualidade dessas respostas é importante na interpretação:
62
níveis formais menos (representado por M-) tendem a indicar uma séria falta de controle
sobre a função imaginativa – falta esta que, por si mesma, apresenta um sério rebaixamento
da eficiência intelectual.
VIII. Relação de Respostas Globais e Movimento (G : M): pode dar uma indicação da
extensão em que o indivíduo é capaz de mobilizar suas energias criativas ou produtivas
para manter seus interesses intelectuais e ambições. A própria relação em conjunto com a
qualidade das respostas G e M envolvidas, esclarece-nos a respeito do nível de aspiração e
aspectos da personalidade relacionados. Os valores considerados foram:
a) G : M = 2 : 1 → organização, com potencial criativo, para a realização intelectual
b) G > 2M → nível alto de aspiração intelectual
c) G < 2M → potencial criativo sem objetivação adequada.
IX. Variedade de conteúdo: considera-se ótimo um resultado da proporção de respostas
animais (A%) entre 20 e 35, levando-se em consideração a proporção entre as respostas (H
+ A) : (Hd + Ad) e que as respostas de conteúdo estejam espalhadas (no mínimo 25%)
através de pelo menos três outras categorias de conteúdo, fora essas já citadas. Os valores
considerados para a proporção foram:
a) (H + A) < 2(Hd + Ad) → hiper-crítica
b) (H + A) = ½ (Hd + Ad) → normal
X. Tempo médio por reposta (T/R): o tempo médio é calculado pela somatória do tempo
total nas 10 pranchas dividido pelo número de respostas. Os valores considerados foram:
a) T/R > 60s → processo mental lento
b) T/R < 30s → processo mental rápido e apressado
XI. Sucessão: refere-se à ordem em que as categorias de localização são usadas, podendo
ser: 1) sistemáticas, que seria uma ordem de respostas equivalente a G – D – d – Dd ou S,
ou o inverso dessa, Dd ou S – d – D – G (nem todos os quatro tipos de localização precisam
ser usados, mas se forem usados devem seguir essa ordem); ou 2) assistemática, ou seja,
qualquer violação á seqüência sistemática. Assim, a sucessão pode ser classificada em:
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a) sucessão rígida = 10 sucessões sistemáticas e 0 assistemática → rigidez.
b) sucessão ordenada = 7 a 9 sucessões sistemáticas e o resto assistemática →
flexibilidade.
c) sucessão relaxada = 3 a 6 sucessões sistemáticas e o resto assistemática →
enfraquecimento do controle.
d) sucessão confusa = sucessões sistemáticas menor que 3 → indivíduo excêntrico ou
confuso.
Considerando que o conceito de controle é importante na interpretação do
Rorschach, como um critério da efetividade do ajustamento geral à situação de vida (o
indivíduo precisa ter controle suficiente sobre seus impulsos e manipulação dos mesmos, a
fim de ser capaz de evitar perigos apresentados pela situação de realidade e descobrir
modos adequados para satisfazer suas necessidades), quatro equações (ou índices),
especificamente, foram consideradas:
I. Controle Externo:
a) socializado → FC : (CF + C)
b) através do afastamento ou isolamento
Acromáticas : Cromáticas
(FC’+ C’F + C’ + Fc + cF + c) : (FC + CF + C), onde:
Acromática = 2 x cromática → retraimento; hipótese da “criança queimada”
Acromática = ½ cromática → normal
Acromática < ½ cromática → forte reatividade emocional
II. Controle Interno: o sinal principal de controle interno é M, sendo necessário, pelo
menos 3 respostas M para a média das pessoas e pelo menos 5 M para o tipo introvertido.
III. Controle constritivo ou repressivo: uma ênfase exagerada em controle constritivo é
indicada por um F% maior do que 50, com respostas de bom nível formal (F+).
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Por fim, para a constatação do nível do funcionamento mental foi utilizado um
esquema auxiliar proposto por PENNA, (PENNA, 1987, citada por GONÇALVES, 1997).
A autora considera que os elementos introversivos representados pelas respostas de
movimento FM e m são indicadores de energia potencial, com possibilidade de serem
transformadas em energia M integrada e criativa.
M FC
FM CF
No eixo vertical, as respostas de movimento (M e FM) estão relacionadas a
qualidade da energia psíquica no mundo interno, indicando (junto com outras condições,
como cor e sombra) a conscientização e organização dos impulsos primitivos, a orientação
e disponibilidade dos recursos internos, a construção dos valores pessoais e processos
imaginativos; sendo que essa energia vital pode estar orientada para a gratificação imediata
(FM>M) ou para as metas a longo prazo (FM<M).
Já as respostas de cor (ainda no eixo vertical) estão relacionadas ao mundo externo e
demonstram como as pessoas reagem ao impacto emocional das relações interpessoais e
com o mundo em geral. As respostas FC são indicativas de um rápido domínio dos
impactos emocionais e sem perda de responsividade, indicando um funcionamento
emocional que se integra e adapta-se ao meio externo. As respostas CF representam uma
reação de baixo controle ao impacto ambiental, demonstrando impulsividade.
Levando em consideração os dois eixos verticais do psicograma, se houver uma
predominância de respostas FM sobre M, associadas a uma tendência maior para respostas
de cor do tipo CF ou C, superando FC, então, o indivíduo terá uma energia interna
organizada no nível primário do funcionamento mental. Caso contrário, se a predominância
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for de respostas M e FC, o indivíduo terá sua energia interna elaborada no nível do
processo secundário.
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RESULTADO Inicialmente serão apresentados os resultados obtidos nos índices afetivos (ver tabela 1),
classificados e analisados de acordo com KLOPFER (PUC-SP, 1998).
I) Ressonância Afetiva
RA = 36,11% . Esse resultado indica que a participante apresenta uma responsividade
normal aos estímulos afetivos do meio externo.
II) Exteriorização
M : Csum = 7 : 1,5. Essa relação indica que a participante é do tipo introversiva.
III) Tipo de Exteriorização
FC : CF + C = 3,5 : 3. Esse resultado é um sinal de controle sobre a expressão impulsiva da
emocionalidade. A participante é capaz de uma responsividade controlada em relação ao meio
social, respondendo apropriadamente tanto com sentimentos, como com ação. Além disso, é
capaz de respostas profundas e genuínas sob forte impacto emocional, não havendo controle
excessivo nesse caso.
IV) Organização das Necessidades Afetivas
(FK + Fk + Fc) : (KF + kF + cF + c + K + k) = 12 : 5, o que é indicativo de consciência e
inconsciência em relação às suas necessidades afetivas.
F : FK + Fc = 17 : 3. Há indicação de negação, repressão ou necessidade de afeto sub-
desenvolvida.
V) Recursos da Personalidade
M : FM = 7 : 7. Esse resultado nos fala que o impulso vital não está em conflito com o
sistema de valores e vice-versa. Isso pode indicar uma espontaneidade amadurecida da
participante, com um sistema de valores bem desenvolvido, que lhe favorece o controle, mas que
apesar deste controle, o sujeito tende a uma aceitação fácil de seus impulsos, apresentando uma
auto-imagem feliz e fácil.
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M: FM + m = 7 : 19,5. O resultado obtida nessa equação, indica que a tensão é muito forte
para permitir que a participante utilize seus recursos internos para a solução construtiva de seus
problemas cotidianos.
Os resultados obtidos nos índices do funcionamento cognitivo-intelectual e eficiência da
participante podem ser vistos na tabela 2. Esses índices foram, alguns, analisados segundo
KLOPFER (PUC-SP, 1998) e, outros, segundo ADRADOS (1973).
I) Grau de Esteriotipia e Identidade
A% = 22,23%. Esse resultado indica, segundo ADRADOS (1973), di6spersão do
pensamento.
H% = 27,78%. Essa porcentagem sugere bom grau de empatia, ou seja, a participante tem
habilidade em aceitar ou se identificar com os outros.
II) Quantidade de respostas (Produção)
R = 36. De acordo com ADRADOS (1973), o valor encontrado indica um excesso de
produtividade.
III) Número de repostas populares e quantidade e qualidade de respostas originais
Respostas Populares = 5. A participante apresentou um valor médio de respostas
populares, para um número médio de respostas entre 15 e 25 (ADRADOS, 1973).
Respostas Originais = 0. A escassez de respostas originais principais, com bastante
adicionais, é sinal de cautela e modéstia da participante na exploração de sua capacidade
intelectual (ADRADOS, 1973).
IV) Manutenção da Objetividade
F% = 88,89%. Esse resultado indica a hipótese de constrição neurótica: embora a
participante seja intelectualmente capaz de uma resposta mais ricamente diferenciada para o
mundo, ela está inibida para tal resposta, tendo reprimido suas tendências para conhecer e
responder às próprias necessidades interiores e agir de acordo com suas próprias reações
emocionais.
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V) Classificação do nível formal (Dado de Realidade)
F+% = 76,56%. A porcentagem encontrada indica para a capacidade de objetivação
adequada da participante, segundo os padrões sociais (ADRADOS, 1973).
VI) Quantidade e qualidade das respostas globais (G1ª + G2ª)
G1ª : G2ª = 11 : 7. O resultado sugere que a participante apresenta um alto nível da função
intelectual, no entanto com uma considerável interferência emocional na eficiência da função.
VII) Quantidade e qualidade das repostas de movimento humano
M+ : M- = 4 : 3. A relação encontrada indica um rebaixamento da qualidade de algumas
resposta M, que falam em favor da criatividade, rebaixamento provocado provavelmente pela
presença de ansiedade difusa, kF.
VIII) Relação de Respostas Globais e Movimento
G : M = 23 : 7. Essa relação sugere que a participante apresenta um nível de aspiração
nitidamente alto, com uma ambição que supera os recursos criativos que dispõe no momento.
Nessa relação as considerações do nível formal são importantes. Sendo o nível formal
alto e havendo uma produção normal de M com superacentuação de G, tratar-se de um caso de
pessoa de nível superior com um impulso muito grande para realizações, muito embora com um
excesso de realizações, mas às custas satisfações importantes.
IX) Variedade de conteúdo
(H + A) : (Hd + Ad) = 2 : 1. O valor encontrado indica que a participante não apresenta
atitude extremamente crítica.
X) Tempo médio por reposta (ver tabela 3)
T / R = 45,7s. Esse resultado revela que a participante apresenta um funcionamento mental normal.
XI) Sucessão (ver tabela 4)
A participante apresentou uma sucessão confusa, típica de pessoas confusas ou
excêntricas.
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Os resultados encontrados nos índices referentes ao controle da participante, avaliados
segundo KLOPFER (PUC-SP, 1998), podem ser vistos na tabela 5.
I) Controle Externo:
a) socializado → FC : (CF + C) = 3,5 : 3. (Mesmo resultado atribuído ao índice Tipo de
Exteriorização, relado a cima – tabela 1)
b) através do afastamento ou isolamento
(FC’+ C’F + C’ + Fc + cF + c) : (FC + CF + C) = 10 : 7,5. Essa relação indica a presença
de conteúdos afetivos de natureza traumática que precisam ser elaborados.
II) Controle Interno
M = 7. Esse valor sugere que a participante possui recursos internos suficientes para
capacita-la a adiar a ação ganhando controle sobre a expressão externa do comportamento.
Entretanto parte da produção de M (M-) sinaliza a presença de fraqueza de controle dos
processos imaginativos e de sua integração com a realidade.
III) Controle constritivo ou repressivo
F% = 88,89% e F+% = 76,56%. Essas porcentagens encontradas sugerem “constrição
neurótica”: a participante consegue controlar a expressão controlando seus sentimentos, emoções
e impulsos.
O nível de funcionamento mental da participante está indicado no esquema proposto por
Penna (1987), no quadro 1.
A participante apresentou um número de respostas M (7) e FC (8) superior (ou igual no
primeiro caso) às respostas FM (7) e CF (4), indicando um funcionamento mental tanto no nível
primário quanto no nível secundário dos processos psíquicos, com predominância no segundo
nível.
Os valores brutos dos índices de localização estão representados na tabela 6.
I) G% = G1˚ + G2˚ + G/ = 63,89%.
R
70
A porcentagem encontrada indica que parece haver uma necessidade compulsiva de fazer
grandes coisas, no sentido intelectual, de super-impor generalizações aos fatos, sendo elas
adequadas ou não. Parece haver uma ambição intelectual hipertrofiada sem a capacidade para
mantê-la, devido a interferências emocionais na sua capacidade para sentir as inter-relações
essenciais que existem entre vários fatos da experiência.
II) D = 4 → D % = 11,11%
Há uma superacentuação em globais vagas e relativamente indiferenciadas – G primária.
Nos faz supor falta de consideração com suas necessidades pessoais e a presença de um núcleo de
conflito importante e ainda não reconhecido.
II) Dd = 8 → Dd% = 22,22%
O valor encontrado indica um interesse diferenciado nos aspectos factuais, mas também
uma insegurança da qual a participante se defende apegando-se a áreas limitadas de segurança
por medo de perder seus pontos de referência se ela as deixar.
71
Síntese da história de vida da participante Datas das entrevistas: 22/06/2002 e 23/12/2003
Morgause tem 28 anos, é arquiteta (como o pai), casada e tem dois filhos pequenos,
um com 1 ano e outro de 3 anos de idade. Atualmente mora com o marido e os filhos na
casa de seu pai. O local onde Morgause reside existem três casas. Uma das casas serve
como escritório e trabalho dela e de seu pai. As outras duas casas servem como residência,
uma para o pai e outra para sua família atual.
Morgause é a segunda filha de três irmãs, sendo a diferença de dois anos entre elas.
Considera que sempre foram muito amigas, tendo amigos e atividades em comum quando
crianças e adolescentes, apesar de serem muito diferentes. Sobre essas diferenças ela diz:
“A minha irmã mais velha, é escorpião, ela é um pouco nervosa, é um pouco tensa, extremamente séria, extremamente organizada, perfeita no que faz, corretíssima. Se prende a detalhes, ela é dentista (risos). Um pouco fechada nas suas emoções. As crenças dela, ela é católica, freqüenta a igreja, vai a missa toda semana, casada e tal (...) A vida toda dela ela foi mais séria, das três ela era a mais séria, a única que colocava ordem na bagunça (risos)”. “Eu sou totalmente, sou mais emotiva, mais expansiva, mais rebelde, desorganizada (risos), adorava mexer nas coisas dela (...) Eu sou de câncer e ascendente em aquário, aquário que é assim, meio aéreo. (...) A Vivi (irmã mais nova) é libra e câncer. Então toda viagem que eu faço é com a Vivi (risos), a gente que faz o roteiro, a gente que inventa tudo”. “A mais nova (...), ela é mais insegura, totalmente ar, totalmente fora do mundo, até hoje ela não conseguiu se fixar em nenhuma atividade, já fez faculdade, já fez um monte de coisa, ela não consegue fazer uma atividade por muito tempo, vive voando, cada hora ela que fazer uma coisa, instável, insegura, emotiva. (...) eu acredito que ela é espírita (risos), (...). Faz, freqüenta as coisas dela, acredita, lê, lê muito Chico Xavier, ela gosta tal. (...) vai ter nenê acho que semana que vem, vai ser o Francisco”. Por serem em três, relata que sempre houve uma polaridade: às vezes se relacionava
mais com uma, às vezes com outra. Atualmente diz estar mais próxima da mais velha por
compartilharem uma realidade semelhante: casamento e filhos (a mais nova está morando
no exterior; casou e teve filho apenas recentemente).
Sua família chegou na cidade onde mora atualmente, quando ainda eram crianças;
uma cidade do interior, “muito tranqüila” e que por isso tinham “uma vida muito livre”.
Conta que sua casa vivia cheia de amigas.
Sempre procurou fazer tudo o que desejou dentro dos limites que sua vida foi
impondo. Paralelo a escola, sempre teve uma atividade de arte (proporcionadas pelos pais),
da qual sempre gostou muito. Fez balé, piano, violão e freqüentou o Kinder, um ateliê de
artes na cidade. Começou a freqüenta-lo (ainda quando era NAAC) com 7-8 anos, porque
72
na época seu pai realizava o projeto de reforma da casa da idealizadora e fundadora do
ateliê, tornando-se, seu pai e sua mãe, amigos de Igraine. E, quando esta criou o ateliê seus
pais colocaram as três filhas para freqüenta-lo. Morgause considera até a possibilidade de
sua mãe ter sido colaboradora na implantação da escola. Conta:
“(...) foi muito legal, era uma atividade muito legal. Bem semelhante ao que é aqui hoje (referindo-se ao Kinder), tinha tudo, tinha teatro, não tinha música, não me lembro de flauta, só um pouco depois, (...). Tinha teatro, tinha arte, tinha tudo. E sempre foi muito importante na minha formação, não só profissional, mas de caráter, isso que eu acho importante, acho que a escola é fundamental nesse sentido, não pode ser uma coisa somente mecânica, tem que ter uma coisa mais profunda um pouco, de ideais, passar ideal e fazer crescer seres humanos. Eu era bem novinha e como sempre teve esse contato sempre foi uma relação muito maior do que professor e aluno, a gente sempre esteve muito ligado, de amizade e tudo, sempre que eu precisei, a Igraine sempre muito presente, sempre me ajudou muito, me passou muito conhecimento, nossa, me encheu de energia sempre que eu precisei. E eu devo muito isso a ela”. E fala do que foi mais marcante para ela no Kinder: “(...) nessa primeira fase aí de criança eu lembro muito dessa coisa do teatro que a gente fazia, que era uma coisa muito cômica. Tinha um camarim, um milhão de fantasias, e cada um incorporava um tipo físico, a gente treinava e inventava peça e tinha uma seqüência, era uma coisa organizada. Todo dia tinha a parte de arte e parte de teatro, todo dia, então era uma atividade muito legal. O que eu mais me lembro nessa primeira fase foi que a gente apresentava peça. E era muito lúdico, muito gostoso. Sempre o que me passou foi isso, um ambiente muito alegre, de muita felicidade; assim, felicidade em coisa sem ter grandes luxos e fazer uma coisa alegre. E é uma coisa que eu procuro sempre transferir para os meus filhos, tenho lá em casa um quartinho, eu fiz um quartinho da bagunça, então tem tudo, tem tudo, tudo que você pensar tem, tudo que eu acho que é um objeto meio curioso eu ponho lá para eles brincarem, o Gawaine (filho mais velho) ama. Aí é muito engraçado, e são as coisas mais simples, de repente um brinquedo não precisa ser aquele super brinquedo, Uma peneira velha que você não usa mais...”. Durante um período (correspondente ao ginásio) Morgause e suas irmãs precisaram
abandonar as atividades do Kinder por dificuldades financeira. Foi um período em que seus
pais estavam construindo a casa na qual moram até hoje, e nessa época, também, sua mãe
ficou doente, com câncer no seio, precisando se aposentar por invalidez. A mãe de
Morgause faleceu quando ela estava na faculdade.
Sua mãe era professora, e seu pai é arquiteto:
“Então, em casa meu pai é arquiteto, então sempre via ele pra cima e pra baixo falando de coisa de arquitetura (risos), acompanhei o que ele fez e tal. Minha mãe era professora; então a minha mãe era mais metódica, era mais correta, mais certa; professor tem isso, (...) as coisas tem sempre um ciclo, tudo tem horário, então sempre tive que fazer todas as tarefas muito corretas (risos). Ela revisava minha tarefa, tinha tudo isso, porque ela é professora”. Ainda durante o segundo grau, Morgause retomou as atividades no Kinder, já com a
determinação exclusiva de aprender a desenhar para passar no vestibular e cursar
arquitetura. Essa sua escolha foi bastante determinada pela influência do pai, que trabalhava
73
em casa, e estava sempre com vários projetos e Morgause acompanhava de perto e “achava
tudo perfeito”. Além disso, teve uma influência da arte através do Kinder que, junto,
deixava a “coisa mais viva”. Ela e mais três amigos freqüentavam o Kinder com o mesmo
objetivo: passar no vestibular. Além disso, os quatro passaram a freqüentar outras aulas de
desenho.
Morgause conseguiu passar no vestibular e começou a cursar arquitetura numa
faculdade fora da cidade. Relata que mesmo entrando na faculdade, ela e seus amigos que
também estavam cursando arquitetura, não se desligaram mais do Kinder. Era, para ela, um
ambiente muito positivo e importante, tanto pessoal como profissionalmente.
Em relação ao aspecto profissional, Morgause diz:
“E na faculdade foi extremamente interessante, porque eu tinha os dois processos: um absolutamente teórico e técnico da faculdade e essa parte de arte do Kinder, a gente podia fazer workshop, um monte de coisa, sempre essa coisa da criação, do ideal, dos conceitos mais simples. Isso tudo tem sempre que estar ativo no seu dia-a-dia, porque para você criar uma coisa nova tem que vir de uma coisa assim, se você não tem essas criações as coisas começam a ficar repetitivas, e isso se refere muito à arquitetura”. Morgause conta, ainda, que muitas das atividades práticas que realizava na
faculdade, relacionada a desenho e observação, ela já desenvolvia no Kinder:
“Tinha uma matéria na faculdade de DO, desenho de observação, que era assim, como você observar o objeto de uma maneira diferente, e é o lado direito do cérebro. Ao invés de você observar a forma, você observar a não-forma: se você está olhando lá e vê aquele forno, você tem que ver a linha que deixa de ser o forno e que é outra coisa (...). Isso era igualzinho, era a mesma coisa, a gente já conhecia essa história do lado direito”. Além disso, eles estudavam no Kinder a arquitetura de geometria sagrada, que são
as construções baseadas na medida áurea e que por isso têm uma harmonia física e são
perfeitas. Estudavam isso através dos livros de Igraine, analisando projetos que são
considerados importantes e especiais no mundo inteiro.
Em relação ao aspecto pessoal Morgause refere-se principalmente a todo
conhecimento esotérico adquirido no Kinder e a influência na formação de seu caráter e
valores. Nessa época, de início de faculdade, já namorava Lancelote - seu atual cônjuge.
Conheceram-se na cidade onde moravam, mas ele já estudava fora, na mesma cidade onde
Morgause passou no vestibular. Era uma pessoa de realidade totalmente diferente da dela,
técnico (ele é formado em engenharia química) e não gostava de arte. Relata que ele é o
oposto dela, mas, no entanto, que nesse oposto sempre teve um complemento:
74
“(...) eu vivo voando e ele me põe os pés no chão (...)”.
Morgause conta que Lancelote começou a freqüentar o Kinder com ela e passou a
participar mais de sua vida, tanto em relação ao lado profissional, quanto de suas relações
afetivas.
Passaram a freqüentar juntos o Kinder, participando de grupos de estudos e práticas
(meditação, rituais etc.) da gnose de Samael Aun Weor. Morgause, apesar de atualmente
reclamar de não conseguir colocar em prática o que acredita, tem esse conhecimento, e o
próprio Kinder, como ponto de referência e apoio - para sua vida e para a educação dos
filhos. Morgause diz:
“Tudo que a gente faz aqui, toda a filosofia que existe aqui, isso é muito importante na minha vida. Eu acho que são essas coisas que sempre me deu apoio, sempre me ajudou a relacionar com o futuro, e me ajudou a descobrir o meu caminho”. “(...) a gnose depois que comecei a estuda-la, ela acaba fazendo parte da sua vida, você não consegue separar mais, o que é um conhecimento do resto da vida. Às vezes você não consegue colocar em prática o que você acredita e o que você acredita que é o ideal, mas eu acredito na gnose, acredito que é uma coisa muito profunda (...) Então eu acredito na gnose eu só não consigo vivenciar tão bem como eu gostaria”. Lancelote é cinco anos mais velho que Morgause. Ela relata que ele é super
exigente, trabalhador, correto, fixado num objetivo e “tem uma coisa de vencedor, tem que
vencer na vida a todo custo”. (.... ) Que ele veio de uma família humilde, de quatro irmãos
e seu pai sempre teve que trabalhar muito para sustentar os filhos; que não tinha seu
próprio negócio, que tinha que trabalhar para os outros até muito tarde para conseguir
sustenta-los. Então, conta que Lancelote sempre lutou para nunca ser empregado e abrir seu
próprio negócio. Logo que se formou, voltou para a cidade onde moravam antes de saírem
para estudar e abriu seu próprio negócio.
Emocionalmente, Morgause relata que ele é muito afetivo e sempre a apoiou em
tudo, tanto emocionalmente (principalmente quando sua mãe faleceu, chegando até a ir
morar na sua casa) quanto profissionalmente. Ele gosta de atividade física e esporte
(chegou a ser corredor profissional e a jogar no time oficial da cidade) e, por isso, montou
uma academia em casa: chega do trabalho, come e vai para a academia.
Lancelote não tem grandes amigos, apenas um irmão e três ou quatro amigos (as
outras amizades são superficiais); são amizades sempre ligadas a algum tipo de trabalho.
75
Na verdade, ele é mais ligado à família do que aos amigos. No entanto Morgause queixa-se
de que o marido trabalha muito não conseguindo tempo para se relacionar com ela, com os
filhos e, também, com os outros:
“ Hoje, a nossa vida está muito corrida, eu acho, a gente não tem muito tempo pra gente, agente já teve mais. (...) Essa coisa de atividade de meditação, a gente sempre tinha, era muito legal. Eu acho que na verdade é uma fase que a gente está passando, que está difícil de criança, tem sempre essa coisa de que criança vai resolver o casamento, mas no nosso caso complicou um pouco (risos). Porque você acaba tendo muito menos tempo para curtir”.
“ Chega da empresa todo dia oito, nove horas e vai brincar com os meninos. Quer dizer, vamos falar, ele tem que ficar lá até as nove? Não, ele não tem que ficar. Eu acho que é excessivo o trabalho, porque se ele conseguisse realmente trabalhar um pouco menos, ele ia ver os filhos dele crescerem, que ele não consegue; fica muito pouco tempo do dia perto dos filhos. Hoje não é todo dia que ele vai almoçar em casa, quer dizer, é sempre um contato muito rápido (...)”. “(...) e uma das questões minha com ele que a gente estava tentando resolver é a seguinte: já que tem está estabilidade financeira legal, vamos fazer alguma coisa para os outros, legal, bem feita (...) que não seja uma coisa que seja voltada pra você. Então agente está estudando uma coisa legal pra fazer, uma fundação ou fazer projetos sociais legais, sabe, que saia dessa empresa aí (referindo-se a empresa de Lancelote) alguma coisa legal, pra humanidade, que eu acho mais importante (...)”.
Na segunda entrevista, Morgause relata que conseguiu colocar em prática um pouco
desse seu desejo: vinha, durante o ano, realizando atividades artísticas (como as atividades
que tinha no Kinder) para crianças de sete a nove anos, em um artesanato da cidade. Tinha
duas turmas, uma de manhã e outra à tarde, e contava com a colaboração da professora
regular das turmas que relata estar bastante envolvida com o trabalho na época.
Morgause e Lancelote ficaram quatro anos casados sem filhos até nascer o primeiro
que hoje tem três anos. Depois desse primeiro filho, eles começaram a questionar se não
seria bom ter um segundo filho para aquele não crescer sozinho. Ela diz:
“(...) vai ser tão legal ele ter irmãos, se eu não tivesse irmã, imagina, já não tenho mãe, não tenho irmão; a gente não sabe o que a vida traz para gente, quer dizer, então vamos ver se a gente quer realmente ter outro filho ou não... a família está completa (risos)”. E tiveram o segundo filho depois de dois anos do primeiro. Atualmente Morgause
relata enfrentar muita dificuldade para conseguir conciliar sua rotina, de trabalho, de
cuidados consigo mesma, com os cuidados e educação dos filhos:
“(...) depois que nasce o filho, a tua preocupação com ele é tão grande, que as vezes você deixa de preocupar com você mesmo. Não acho bom, acho péssimo isso, acho que é uma falta de estrutura e você deve se corrigir. Você não sabe o que você faz primeiro. E é muito engraçado, na hora que os filhos nascem você deixa de pensar em você, é automático: porque é uma coisa tão pequenininha, tão dependente, tão indefeso,
76
que você não sabe nem por onde começa (risos). É intuitivo, na mulher, que tem essa transformação, porque o homem acaba passando por isso tudo como uma outra questão na vida dele, não a mais importante porque não foi o corpo dele que se transformou, a passagem não foi por ele, não é ele que alimenta; então é muito diferente. Acho uma experiência incrível, muito legal; não é fácil, mas eu acho que se é o que você quer então faça bem feito, sabe, então, seja bem feito e a gente se doa para isso, e as outras questões ficam um pouco de lado (risos). Assim que eles tiverem as próprias pernas para poder fazer alguma coisa por eles aí a gente vai cuidar um pouco da gente”. Morgause diz que sua dedicação para com os filhos tem um pouco da influência de
sua mãe. Relata uma lembrança da mãe sempre muito dedicada às filhas, muito afetiva,
sempre fazia o possível e o impossível. E hoje, ela se vê se relacionando da mesma forma
com os filhos. Quando está com algum problema com eles, ela pensa: “o que será que a
minha mãe faria nessa situação?”.
Além disso, relata perceber uma outra influência da sua mãe no seu modo de ser e
que a sente como sendo negativa:
“(...) teve uma parte negativa também, tem uma coisa negativa, porque eu tenho muito isso, e aí a consciência tem muita coisa de culpa: sempre quando eu não consigo fazer uma coisa, eu sempre fico me culpando, ‘mas não é possível, isso tinha que ter acontecido assim, será que eu não deveria ter agido assado’. Tem isso, e isso é da minha mãe. Minha mãe era assim também, uma coisa perfeccionista ao extremo, mais do que você consegue levar as coisas”. Ao contrário da relação com sua mãe, Morgause relata uma relação com pai
delicada. Ele teve uma criação muito séria e é uma pessoa muito séria, difícil e fechada
(igual a seu pai, avô de Morgause). Ela relata que seu pai era ausente do cotidiano da casa
(a não ser financeiramente): trabalhava muito, raramente almoçava em casa e jantava em
horários diferentes. E percebe nela essa influência do pai:
“Profissionalmente tem essa extrema exigência, que é o que eu estou te falando. (...) do meu pai tem uma influência (risos) que não é boa, que é assim: só trabalho. ‘Nossa, eu sou doente’, ele fala, ‘não consigo ficar sem trabalhar’. (...) ele não passa um dia da vida dele sem trabalhar, nem que não tenha nada pra fazer, ele começa inventar alguma coisa, só pra trabalhar. E como eu trabalho em casa, nosso escritório é em casa, eu pego isso; às vezes é meia-noite, ‘nossa, tenho que fazer um negócio pra manhã’. Aí vou lá, deixo tudo lá em casa, ponho todo mundo pra dormir, e vou para o escritório trabalhar. Entende, é uma coisa absolutamente inusitada, porque agora com duas crianças eu tenho que parar, e é aquela luta constante: ‘como é que eu vou deixar de fazer isso’. Não é bom, mas tem”. Morgause relata que seus pais sempre foram pessoas corretas, de princípios morais e
responsáveis com os compromissos. E também conta que eles nunca tiveram um
relacionamento feliz, mas, por outro lado, não tiveram muito tempo para resolverem a vida
deles, porque logo que elas e suas irmãs cresceram (que tinham 12 – 15 anos) sua mãe
adoeceu e eles se prenderam nisso. Morgause acredita até que o câncer de sua mãe veio de
77
um desgaste emocional decorrente do excesso de trabalho (em casa, com os cuidados das
filhas e fora, na escola onde trabalhava) e das dificuldades no relacionamento amoroso
mantinha com o marido.
De acordo com Morgause, o câncer de sua mãe começou no seio e logo depois se
espalhou por outras partes do corpo. Ela permaneceu o tempo todo em casa sob os cuidados
da família, sem nenhuma enfermeira. Na época, Morgause e sua irmã mais nova estavam
no colégio e, apesar da mais velha já ter saído de casa para estudar, sempre estavam
presentes.
A mãe se afastou do trabalho e ficava em casa. De tempos em tempos ia fazer a
quimioterapia e nos dias seguintes passava muito mal e vomitava (...era horrível.). Ela
precisou ser internada várias vezes e tinha que fazer transfusão de sangue. Morgause, suas
irmãs e o pai faziam da melhor forma para que ela não sofresse. E Morgause conta que ela
escondia muita coisa (exames que mostravam novas manchas e nódulos) para que eles não
sofressem.
A mãe de Morgause faleceu por volta dos 39, 40 anos, permanecendo doente
durante seis anos Apesar de todo o sofrimento, ela conta que foi uma fase da vida de sua
mãe e de seus relacionamentos (principalmente com as filhas) diferente de tudo aquilo que
ela tinha vivido:
“(...) na hora do desespero, eu acho que dá sempre uma grande mudança na vida. Depois que ela ficou doente ela se aproximou mais dos filhos, da vida dos filhos inclusiva e, na vida dela, ela deu uma guinada totalmente diferente, (...) ela se apegou em religião, freqüentou o grupo de oração essas coisas, mas era uma coisa de tanta fé, tanta força, que eu não sei te explicar. Ela virou professora de catecismo, abriu uma obra do berço que fazia roupinha de nenê para mulher que precisava. (...) Isso foi muito bonito, de ver a luta dela pela vida sabe, ela passava muito mais isso do que a dor da doença. (...) Então era assim, ela era muito forte, ela acordava, fazia as obrigações dela e vivia aquele dia intensamente, era incrível. Lógico, o dia que tomava os remédios era um horror, mas quando tinha força ela vivia. Fazia caminhada quando dava pra fazer, quando dava para ir para o centro tomar um suco ela ia, tomava o suco (risos). Isso foi legal, foi a época que eu mais viajei com ela foi quando ela ficou doente. Acho que ela falou: ‘agora que eu tenho pouco tempo de vida tenho que viver’, e viveu. Mas foi isso (...), teve momentos tristes mas teve essa coisa que ela deixou pra gente bem bonita. Eu acho que nada vem por acaso e ela encarou essa doença como renovação total, mandou ver, batalhou até quando ela pôde. Tinha uma época que não tinha jeito de fazer mais nada e aí parou de fazer quimioterapia e desistiu, porque aí já não dava mais, mas até quando ela pôde ela foi tentando”. Morgause conta que seus pais sempre estiveram juntos, ele foi o único namorado
dela e vice-e-versa. Então, até hoje seu pai é afetado emocionalmente com toda essa
história:
78
“(...) e ele ficou com isso entendeu (risos), ele acha que qualquer coisa que ele tem é um câncer, porque é um horror, é uma coisa que te persegue; a pessoa faz o exame, você melhora um pouquinho mas depois volta. É uma loucura, porque não depende de você. As células ficam loucas. E meu pai pegou isso, ele ficou muito mal. Já tem dez anos que ela faleceu esse ano e até hoje ele não arrumou uma nova companheira, e eu acho que ele não arruma (...) foi uma queda na vida dele. A gente vive junto, eu trabalho com ele e tal; a gente tenta ter uma vida legal, fazer alguma coisa alegre pra ele, mas existe um vazio, que eu acho que aí é dele, não tem jeito. Tem os netos aí fazendo uma bagunça incrível, mas a noite ele está sozinho, aí não tem jeito. Então existe, é muito difícil, muito difícil, tem uma depressão, tem tudo, tem remédio, tem tudo (risos), remédio para dormir, pra tudo quanto é coisa tem”. Quando a mãe de Morgause faleceu, ela estava na faculdade, Lancelote (então
namorado) já havia voltado para cidade de origem de ambos e estruturara um negócio na
cidade. Seu pai estava morando sozinho e ela percebia uma condição de abandono do
mesmo quanto aos cuidados consigo mesmo. Sua irmã mais nova estava no exterior. Sobre
toda essa situação, ela diz:
“(...) aí eu já não sabia, o que eu quero dizer, se eu continuava na faculdade ou se eu vinha morar com meu pai. Minha casa estava uma bagunça, porque tinha Vivi (...) Então vários fatores me levaram a vir pra cá, com oportunidades aqui, meu pai tinha uma estrutura aqui, de família de trabalho e tudo, eu tinha uma oportunidade de aprender bastante coisa com ele (...).E isso já tem uns 6 que eu me formei e que estou aqui. Desse tempo pra cá, de formada, tem a adaptação profissional que foi em 2 anos mas que também aconteceu tudo junto: foi a adaptação profissional, voltar para casa, (...) Aí eu acabei casando, fui morar lá junto com o meu pai, juntei tudo e comecei uma vida nova (risos)...Por outro lado foi positivo? Foi. Eu não sei avaliar, eu acho que alguma coisa eu devia ter sido mais, mais forte e não abandonar, sabe. Mas, as coisas foram acontecendo e tem coisa que você acaba não controlando muito; eu acabei sendo uma pessoa muito mais prática do que eu era: as coisas tinham que dar resultado; o trabalho tinha que sair, a casa tinha que acontecer, tinha que tocar, tinha que fazer compra, tinha um monte de coisa, não era brincadeira. Tinha que ajudar meu pai na vida dele, dar uma mão. Então quer dizer, as minhas questões de vida acabaram ficando um pouco de lado”
Morgause demonstra uma certa angústia pela condição de abandono do pai, da irmã
e do namorado, sentiu que poderia estar colaborando mais para que a vida dessas pessoas
que ela tanto ama pudesse ficar um pouco melhor (parece ter consciência de seu papel
como mediadora das relações na família nuclear e da sua presença mais perto do
namorado). Esses fatores acabam por configurar uma situação que pressionou Morgause a
deixar a cidade onde estudava, seus planos de carreira e voltar a sua cidade natal para
organizar sua vida junto às pessoas que eram e ainda são muito importantes para ela.
E, hoje, sua queixa principal é de estar um pouco distante de seus ideais anteriores e
de estar levando uma vida muito corrida. Ela gostaria de “ter uma vida um pouco mais
tranqüila”.
79
80
Tabela 3 - Tempo de Reação e Tempo Final das respostas fornecidas pela participante na aplicação da Prova de Rorschach Tabela 4: Sucessão das respostas quanto sua localização
Prancha Tempo de Reação Inicial
(Tri) Tempo Total
(T)
1 9s 80s
2 25s 105s
3 15s 72s
4 31s 113s
5 21s 88s
6 24s 113s
7 10s 82s
8 20s 270s
9 50s 227s
10 55s 495s
Pranchas Sucessão 1 G1, S - Dd - G/ - G1, S 2 D - D - G1 3 G/ - S - G2, S - Dd, S 4 G2 - Dd 5 G1 - G/ - G1, S 6 G1, S - G1 - G/ - G2 7 G1 - G2, S - G/ 8 G1 - Dd - G2 - G1 - Dd, S 9 G2 - G1 10 G2 - Dd - Dd - D - D, S - Dd, S
81
Tabela 5 – Pontuações obtidas nos índices referentes ao controle da participante, avaliados segundo Klopfer (1948)
Controle Externo
Socializado
Controle Externo
através do Afastamento ou
Isolamento
Controle Interno
Controle
Constritivo ou Repressivo
FC : CF + C
Acromáticas : Cromáticas
M
F% / F+%
3,5 : 2 + 1
10 : 7,5
7
88,89% / 76,56%
Quadro 1: Nível do funcionamento mental em esquema proposto por Penna (1987)
M FC
FM CF
7 8
7 4
82
83
84
85
DISCUSSÃO
Através dos índices da Prova de Rorschach foi possível constatar que Morgause tem um
funcionamento afetivo do tipo introversivo, ou seja, ela reage às situações por meio da reflexão e
tende a reestruturar o mundo em termos de seus próprios valores e necessidades.
De acordo com JUNG (1991).tanto a introversão como a extroversão estão presentes em
toda a personalidade. Na medida em que a adaptação consciente se move em direção a uma, a
outra opera de uma maneira compensatória se externalizando (no caso do introversivo) de modo
primitivo e inadaptado. Podemos dizer que o introvertido instintivamente se afasta do mundo
externo; as pessoas e os objetos têm um modo peculiar de fazê-lo tropeçar.
Isso nos ajuda a compreender, em parte, porque Morgause tem encontrado bastante
dificuldade em aliar, em seu dia-a-dia, todos os papéis sociais exigidos: esposa, mãe,
profissional, filha, mulher. Apesar de Maria apresentar um funcionamento introversivo, as
condições de sua vida atual têm lhe exigido estar e agir predominantemente no mundo externo:
dois filhos pequenos, o marido, o pai, o trabalho. E como esta não é sua adaptação consciente, ela
não consegue ser eficiente em tudo o que faz e acaba, muitas vezes, “tropeçando” nos afazeres.
Isso acaba gerando cobrança, culpa e angústia exageradas.
Levando em conta as inúmeras tarefas que Morgause considera que deve cumprir, parece-
nos impossível que ela possa realiza-las de modo adequado e satisfatório, pela sobrecarga de
atividades. Fato este comum entre as mulheres que compartilham da mesma condição
socioeconômica e cultural. O modo de elaboração da realidade predominante no funcionamento
mental de Morgause não ajuda para que ela resolva essa condição, já que ela é caracterizada
como introversiva e isso lhe traz um sentimento de inadequação. É possível perceber este
sentimento nos seguintes trechos da sua fala:
Agora você está na faculdade, daqui a pouco você começa a trabalhar, não é você, é você e o mundo. Então o mundo te exige mil coisas, que se você não proporcionar pelo menos a metade delas você não consegue conviver com o mundo. Então a onde termina essa relação e essas exigências de coisas dos outros pra começar as tuas? Onde está esse limite? (...) Talvez alguns projetos que eu tenho feito ultimamente estão muito repetitivos, e eu tenho consciência disso, porque eu não estou conseguindo ter um tempo pra mim de absorver idéias novas para passar para as coisas, sabe. Então eu não consigo, por exemplo, sentar, fazer uma coisa legal sem ter
86
que pensar em filho que está chorando, que o outro está doente, que tem que pagar...Você tem que estar um pouco mais livre pra poder fazer coisas legais.
Morgause apresenta uma responsividade normal aos estímulos do meio externo,
demonstrando ter controle sobre a expressão impulsiva da emoção, respondendo
apropriadamente tanto com sentimentos, como com ação. Pode-se dizer, então, que seu impulso
vital está subordinado ao sistema de valores e que a função egóica é capaz de utilizar os recursos
intrapsíquicos para o controle e para a estabilidade emocional.
No entanto, ela demonstra inconsciência (como necessidade de afeto sub-desenvolvida) e
consciência das suas necessidades afetivas, o que pode estar gerando certa ansiedade. Morgause
faz uma na tentativa de manipular suas ansiedades afetivas e objetivar seus problemas através do
esforço instrospectivo utilizando uma capacidade inerente ao seu funcionamento mental,
colocando estes à distância de si mesma para poder encara-los com menos emoção. O excesso de
material inconsciente que provoca angústia esta sendo mantido sob controle através dos
mecanismos de negação e repressão.
Negação, segundo Freud (LAPLANCHE e PONTALIS, 1995) é o “processo pelo qual o
sujeito embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos até então
recalcado, continua a defender-se dele negando que lhe pertença”. E, repressão é definida por ele
como “operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo
desagradável ou importuno: idéia, afeto etc.”.
Dessa forma, seu domínio emocional frente ao meio externo, esta sendo realizado graças a
essas defesas, pois há indícios de que a tensão é muito forte para permitir que ela utilize seus
recursos internos para a solução construtiva de seus problemas cotidianos.
Consideramos, além disso, que para esta dinâmica permanecer desse modo, contribui o fato
de Morgause não ter elaborado o luto da perda da mãe. E para não entrar em contato com
experiência tão dolorida ela mantém um excesso de atividades no mundo exterior. Ela sente
muita falta da mãe, principalmente em relação à educação dos filhos, ela percebe também que a
superdedicação e exigência consigo mesma é influência de sua mãe:
(...) e aí a consciência tem muita coisa de culpa: sempre quando eu não consigo fazer uma coisa, eu sempre fico me culpando, “mas não é possível, isso tinha que ter acontecido assim, será que eu não deveria ter agido assado (...) eu tinha pena da minha mãe às vezes, ela era muito dedicada pra gente, sempre fazia de tudo, o possível e o impossível. E a gente faz, a gente acaba fazendo igualzinho. (...) a gente sempre tem aquela imagem “o que será que a minha mãe faria
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nessa situação?”. Seu filho tá la doente, você não sabe pra onde você vai correr, você sempre pensa “o que a minha mãe faria?”Agora, ela morreu muito nova...
O desenvolvimento da dinâmica afetivo-emocional atingiu parcialmente o processo
secundário do funcionamento mental. Isso significa que ela consegue transformar parte de suas
necessidades de gratificação em metas de longo prazo, podendo canalizar suas energias de forma
criativa, produtiva e integrada. Entretanto, existe um quantum libdinal significativo que se
concentra no processo primário e, em virtude disso, solicitam realização imediata. As respostas
do tipo FM indicam esse potencial de energia que pode vir a ser elaborado.
Foi possível perceber também que, embora Morgause seja intelectualmente capaz de
respostas mais ricamente diferenciadas para o mundo, ela está inibida para tal resposta, tendo
reprimido suas tendências para conhecer e responder às próprias necessidades interiores e agir de
acordo com suas próprias reações emocionais. Há uma considerável interferência emocional na
eficiência de seu processo cognitivo-inetlectual, o que contribui para a dispersão de seu
pensamento.
Como uma forma de compensar essa interferência, no seu protocolo apareceu um excesso
de produtividade, ou seja, Morgause apresenta um nível de aspiração nitidamente alto, com uma
ambição que supera os recursos criativos de sua personalidade no momento. Essa dinâmica
sustenta a imagem que Morgause tem de si mesma, uma pessoa emotiva, expansiva, rebelde,
desorganizada e aérea:
Eu sou totalmente, sou mais emotiva, mais expansiva, mais rebelde, desorganizada (...) Eu sou de câncer e ascendente em aquário, aquário que é assim, meio aéreo. Morgause demonstrou no seu relato estar passando por um período difícil no casamento.
Ela percebe Lancelote, apesar de afetuoso, muito distante da família, vivendo apenas para o
trabalho. Essa é exatamente a queixa que tem do pai, quando era criança: o pai era distante da
família porque só trabalhava. E Morgause, apesar de mostrar não reconhecer, ou melhor, não
querer olhar, para algumas de suas necessidades internas, demonstra claramente saber do que
necessita através dessa sua fala:
Então quer dizer, as minhas questões de vida acabaram ficando um pouco de lado. (...) e tenho, assim, alguns anseios nesse sentido, que eu gostaria de ter uma vida um pouco mais tranqüila desse aspecto material (...) o dia-a-dia realmente é muito corrido. Ele chega em casa (referindo-
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se à Lancelote) as crianças ainda estão acordadas, aí nós vamos brincar com eles, quando eles vão dormir já são 10 horas da noite (...) Então a gente não está conseguindo ter um costume junto que a gente tinha e era legal. Essa coisa de atividade de meditação, a gente sempre tinha, era muito legal.
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CONCLUSÃO
“Ontem um menino que brincava me falou Que hoje é a semente do amanhã
Para não ter medo que esse tempo vai passar Não se desespere nem pare de sonhar
Nunca se entregue nasça sempre com as manhãs Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar
Fé na vida, fé no homem, fé no que virá Nós podemos tudo, nós podemos mais
Vamos lá fazer o que será”10 Gonzaguinha
10 Música: “Nunca para de Sonhar” (Música de Gonzaguinha)
90
Num mundo orientado pela ciência positivista e todos seus determinantes, no qual a
concepção de homem é um ser racional e pensante, quase não há espaço para o homem
emocional muitas vezes, e que não é nem um pouco previsível. Restam aos artistas, aos
sensíveis e aos loucos, que se sentem conectados com as sensações e sentimentos, viverem
e reafirmarem essa manifestação social e individual que permanece, de forma geral no
sistema educacional, subdesenvolvida.
As escolas, de um modo geral, funcionando sob esse paradigma, privilegiam no
ensino todas as características desse tipo de ciência: a produtividade, a objetividade, a
racionalidade, a extratensão etc. É nitidamente um ensino que é orientado para o
desenvolvimento do lado esquerdo do cérebro humano, que é o lado da razão, do verbal e
da forma.
O Ateliê de Artes Kinder, nesse contexto, passa a ter um papel social fundamental, à
medida que cria um espaço para o desenvolvimento de todas as características e potenciais
do homem que são negligenciadas, freqüentemente, no sistema educacional de nosso país
de modo geral. O objetivo do Kinder é justamente desenvolver o lado direito do cérebro, o
lado não-verbal, da não-forma e, portanto, da criatividade e da sensibilidade. Proporciona à
criança o mundo da fantasia e do lúdico, como a Escolinha de Arte de Augusto Rodrigues e
da Escola Waldorf de Rudolf Steiner.
Entretanto, o Kinder, assim como a escola tradicional, traí seus objetivos por
enfatizar em excesso apenas algumas das potencialidades humanas. São modelos
educacionais que se ocupam de pontos extremos, opostos: uma com um ideal de realização
do homem racional, objetivo e extratensivo (escolas tradicionais) e outra com um ideal d
realização do homem sensível, subjetivo e introvertido (Kinder). Dois homens distintos que
não se comunicam.
Como sabemos, o homem não é só emoção ou só razão. Essas duas qualidades
intrinsecamente humanas, coexistem dentro de nós e devem ser desenvolvidas.
Há sim, diferenças de temperamentos ou modo de funcionamento dinâmico-afetivo.
Dessa forma, nosso sistema educacional está, na verdade, criando seres pela metade. Esse
fato pode trazer conseqüências futuras, como por exemplo, adultos encontrando
dificuldades para guiar suas próprias vidas de forma satisfatória; com grandes prejuízos
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tanto na esfera do concreto, da vida prática, do dia-a-dia, ou na esfera do emocional e de
suas necessidades internas.
Há vários métodos e sistemas educacionais, havendo aquele que mais se adequa à
cada indivíduo. Os introversivos, por exemplo, embora se sintam em casa no Kinder podem
precisar de uma educação mais pragmática e objetiva. Naturalmente esse tipo de pessoa já
tem familiaridade com tudo que é interno e subjetivo, com a não-forma; o que precisam é
exatamente o contrário: aprender a lidar com o mundo objetivo, o mundo concreto da
forma. E assim também para aquelas pessoas do tipo extratensiva que se identificam com o
ensino das escolas tradicionais, porque naturalmente funcionam de acordo com aquele tipo
de ensino: racional e objetivo e que tem familiaridade com o mundo concreto da forma.
Tudo que é subjetivo, da esfera do emocional, lhe é estranho, no entanto, por isso mesmo,
pode e deve ser desenvolvido.
Morgause, nossa colaboradora, tem o funcionamento dinâmico-afetivo introversivo,
fazendo-nos pensar que o tipo de educação que teve no Kinder pode ter contribuído para
potencializar sua facilidade em relação ao mundo interno e subjetivo. Conseqüentemente
houve um distanciamento do mundo concreto e objetivo; de um funcionamento pragmático
tão essencial para a organização tanto interna quanto externa. Ela mesma relata apresentar
certa dificuldade em conciliar suas obrigações (de esposa-mulher, mãe, filha e profissional)
com seus ideais e necessidades internas. Por outro lado, o Kinder foi um ambiente no qual
aprendeu a acolher sua capacidade de reflexão e criação. Isto é de extrema importância para
o tipo introversivo que, freqüentemente, se sente deslocado do mundo. Assim o Kinder se
tornou, conforme ela mesma afirma, um lugar de apoio para sua vida de uma forma geral.
O fato de Morgause ter seguido carreira como arquiteta foi fundamental para um
possível equilíbrio entre a sua capacidade de objetivação do mundo (elemento terra, mundo
concreto) e sua capacidade de respostas profundas, criativas e originais (elemento ar,
mundo subjetivo). Mas, no momento ela encontra-se com dificuldade de dar atenção ao
trabalho e de ter momentos de introspecção necessários ao processo criativo, portanto
distante da tentativa de um possível equilíbrio.
Acreditamos que seria importante para Morgause buscar a ajuda de uma
psicoterapia, na linha do psicodrama em grupo ou com enfoque corporal. O Psicodrama ou
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a psicoterapia corporal podem auxiliar Morgause a elaborar o luto da morte da mãe, como
também na elaboração da aceitação de limites e de necessidades pessoais.
Essas linhas possuem características que facilitariam a expressão de Morgause, a
dramatização e a experimentação corporal, já que ela tem recursos internos para
simbolização, e treino na prática meditativa. Morgause apresenta também disposição e
necessidade de convivência grupal o que lhe abre um leque amplo de acesso ao
conhecimento de outros modos de organização emocionais e de outros valores sociais e
morais que poderão vir a enriquecer seu mundo pessoal.
Um trabalho desse tipo pode também vir a proporcionar a Morgause uma melhor
aceitação ao seu tipo de funcionamento, possibilitando que ela venha a diminuir o grau de
exigência consigo mesma e se sinta mais confortável diante das suas capacidades e limites.
E, ela provavelmente, desenvolveria todo seu potencial que ainda não está integrado
conscientemente, mas que está latente.
Com tudo isso, concluímos que a arte só é arte se concretizada e a produção (seja
ela qual for) só existe se houver material interno que lhe sirva de estímulo e impulso
criador. Assim, embora a arte seja um instrumental extremamente rico para o
desenvolvimento do potencial humano, é necessário um conhecimento da técnica bem
fundamentado para expressa-la. Não existe arte sem forma.
Fica uma interrogação: é possível uma educação em que, unindo lado direito e
esquerdo do cérebro, coexistam, lado a lado, o homem racional, reprodutivo e objetivo e o
homem emocional, criador e subjetivo? Essa é a proposta inicial da Pedagogia Waldorf:
unir os opostos através de um ensino artístico, no qual respeita e considera-se o
temperamento de cada indivíduo. STEINER (1988) reconhece que o que propõe é um ideal,
mas também que é possível caminhar em direção ao ideal o que se faz de concreto.
JUNG (1973), nos diz que a grande dificuldade do homem é ser e se aceitar
exatamente o que é por natureza. No entanto, muitas vezes não sabemos, mesmo, como
somos porque o ambiente não nos proporciona esse tipo de conhecimento. E a educação,
então, se torna uma prática não só de ensinar coisas à criança, mas também um processo de
desenvolvimento da personalidade, do caráter, dos valores, das aptidões e do modo de ser.
E o mais fundamental, de auto-conhecimento, “como eu funciono?”. Nesse sentido,
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educação é saúde e, portanto, fundamental na escola a presença de profissionais da área
com esse tipo de olhar.
Como diria STEINER (1987): “Educar é auto-educar-se”.
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http://www.fundasaw.org.br
http://www.gnosisonline.org
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ANEXO 1 - Classificação geral dos elementos segundo os critérios para a apuração da Prova de Rorschach de acordo com Bruno Klopfer (1942) LOCALIZAÇÃO G – Global
1. Primária (G1˚) - associação que ocupa a mancha toda e se constitui num conceito único, sem que suas partes possam ser destacáveis ou desmembradas.
2. Secundária (G2˚) - associação onde o sujeito se utiliza da mancha toda, percebendo-a como sendo composta de vários elementos independentes, que se organizam formando um todo.
G/ - associação onde o sujeito se utiliza mais de 2/3 da mancha. D – Detalhe usual Dd – Detalhe inusual S – Espaço DETERMINANTES (forma, cor, sombreado, movimento) I - Forma
1. F+ : Forma definida bem vista 2. F- : forma definida mal vista 3. F+- : forma indefinida
II - Cor (cromática e acromática) Cor Cromática (C) - pranchas II, III, VIII, IX e X.
1. FC: forma definida e cor 2. CF: forma indefinida e cor 3. C: cor sem forma
Cor Acromática (C’, branco, preto e cinza) – pranchas I, IV, V, VI e VII
1. FC’: forma definida e cor acromática 2. C’F: forma indefinida e cor acromática 3. C’: cor acromática sem forma
III - Sombreado (textura, bidimensional, tridimensional) Textura ( c )
1. Fc: forma definida e textura diferenciada 2. cF: forma indefinida e textura 3. c: textura sem forma
Redução e Sombreado bidimensional (k)
1. Fk: redução com forma definida 2. kF: redução com forma indefinida 3. k:: sem forma alguma
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Difusão e Sombreado tridimensional (K)
1. FK: tridimensão ou reflexo 2. KF: difusão com alguma forma 3. K: difusão sem forma
CONTEÚDO (as principais categorias de conteúdo: animal e humano) I - Humano H: figuras humanas inteiras e reais Hd: parte da figura humana (H): figuras humanas desvitalizadas (Hd): partes de figuras humanas desvitalizadas II – Animal A: figuras animais inteiras e reais Ad: parte do corpo do animal (A): animais desvitalizados (Ad): parte de animal desvitalizado MOVIMENTO M: movimento humano FM: movimento animal m: movimento inanimado
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ANEXO 2 – Entrevistas Entrevista 1 Nome: Sexo: Idade: Local de Nascimento: Profissão: Religião: Estado Civil: 1) Levantamento da história de vida - dados sobre a infância (fato relevante quanto ao parto - normal ou não - como, onde, foi
planejada(o), etc.) - educação formal (ensino fundamental, ginasial e universitário); como se sentia - quantos irmãos, idade, profissão, estado civil - como é o relacionamento com eles 2) Sobre a mãe e pai - está viva(o) ou morta(o) - profissão - educação formal e informal - descrição das características emocionais - saúde física e emocional (sono e hábito alimentar) - como é (era) o relacionamento com ela 3) Como era o relacionamento dos pais 4) De que maneira os pais influenciaram suas escolhas de vida 5) Sobre o cônjuge - quantos anos - profissão - características emocionais - saúde física e emocional (sono e hábito alimentar) - como se relaciona com ela, com os filhos e com as pessoas em geral - quais são as expectativas dele frente a vida 6) Como se descreve emocionalmente 7) O que determinou a escolha do Kinder para estudar 8) Quais as lembranças que você tem do Kinder 9) Quantos anos estudou lá
100
10) Como avalia a importância do Kinder na sua vida 11) Como foi a escolha das escolas subseqüentes que freqüentou e o que a determinou 12) Como você avaliaria hoje sua trajetória educacional 13) Quais suas expectativas para o futuro 14) Tem alguma informação que considere relevante para nosso trabalho
Entrevista 2
1) Você conhece a gnose? 2) Quais são seus fundamentos? 3) O que a gnose tem a ver com o Kinder? 4) A gnose está inserida na sua vida? De que forma? 5) O que o Kinder tem a ver com a sua vida emocional (geral) e com seu relacionamento
amoroso? 6) Você diz que paralelo ao conhecimento teórico de faculdade você teve o conhecimento
do Kinder: que conhecimento é esse? De que forma era transmitido tal conhecimento? 7) O que está acontecendo agora com o Kinder sob o ponto de vista dos fundamentos
educacionais e gnósticos? 8) Como você descreveria em poucas palavras as características psicológicas das suas
irmãs (como reagem emocionalmente, a emoção predominante, quais crenças que definem seus comportamentos, etc.)?
9) Qual o motivo do falecimento de sua mãe? Por quanto tempo permaneceu doente?
Quem cuidava? 10) Como você se sentiu com a doença e passagem da sua mãe? E seus familiares - irmãs e
pai?
101
ANEXO 3 - Consentimento informado A aluna Marina Meirelles Horta do curso de Psicologia da Universidade Federal de São
Carlos vem realizando um estudo de caso, como parte dos requisitos obrigatórios para
obtenção do Diploma de Bacharel em Psicologia.
O objetivo geral deste trabalho é descrever o Ateliê de Artes Kinder, suas atividades e
proposta educativa; sendo o objetivo específico descrever a dinâmica afetivo-emocional de
uma pessoa que freqüentou o Kinder.
Tal objetivo será alcançado através da realização de uma entrevista clínica e aplicação de
um teste projetivo – a prova de Rorschach.
Sua participação é muito importante, mas é necessário que você saiba que: 1) durante a
entrevista, as questões estarão relacionadas à sua vida pessoal, sua família, seu trabalho, e
principalmente às suas vivências no Kinder; 2) a entrevista será gravada e transcrita,
entretanto, apenas uma síntese da história relatada será apresentada no trabalho; 3) seu
depoimento será utilizado apenas neste estudo; 4) você não precisa falar de situações que
lhe tragam constrangimento; 5) não há nenhum risco em participar deste estudo, seu nome e
características possíveis de identificação não serão publicados e 6) os resultados do teste
projetivo poderão ser-lhe apresentados após conclusão do estudo, prevista para agosto de
2004.
Considerando as questões acima, aceitei participar deste estudo, sabendo que minha
participação é voluntária e não remunerada. Recebi uma cópia deste termo e a possibilidade
de lê-lo.
Data das entrevistas: 22/06/2002 e 23/12/2003
Aplicação do Teste Projetivo: 31 de janeiro de 2003
_________________________________ Assinatura da aluna
_________________________________ Assinatura da participante