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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
RINALDO DE CASTILHO ROSSI
DA FAZENDA AO LOTEAMENTO FORTIFICADO DA SAPOCA:
A URBANIZAÇÃO NA ORLA DE TUBARÃO (SALVADOR-BA)
Salvador
2016
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geociências - UFBA
R831
Rossi, Rinaldo de Castilho
Da fazenda ao loteamento fortificado da Sapoca : A urbaniza-
ção na orla de Tubarão (Salvador-BA) / Rinaldo de Castilho Rossi.- Salvador, 2016.
81f.
Orientador: Cristóvão Brito
– Universidade Federal da Bahia. Instituto de Geociências,
2016.
1. Geografia urbana - Salvador (BA). 2. Segregaçção urbana. 3. Habitação. I. Brito, Cristovão de Cássio da Trindade de . Univer-sidade Federal da Bahia. Instituto de Geociências
CDU: 911.375(813.8)
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AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente a minha família, em nome de minha mãe, por todo o
amor e suporte deles, o que me fez chegar até quem eu sou agora. Assim como
agradeço a Deus, que por meio dos espíritos e forças da natureza tem conduzido
minha caminhada.
Em seguida agradeço ao Colegiado e aos professores do Departamento de
Geografia da UFBA por todos os ensinamentos, em especial ao Prof. Dr. Cristóvão
Brito pela paciência e suporte fundamental para elaboração e conclusão deste
estudo. Os demais servidores técnicos e terceirizados, por sua vez, merecem igual
lembrança por serem decisivos para a boa fluidez das diversas etapas acadêmicas.
Devo gratidão especial a todos os colaboradores entrevistados por
subsidiarem a investigação científica, com destaque especial aos mais idosos por
sua disponibilidade e simpatia.
E para concluir, devo um agradecimento especial a todas as amigas e
amigos, assim como alguns colegas de curso, que, cada um ao seu modo, me
incentivaram e prestaram apoio nos momentos decisivos.
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Resumo
O presente estudo busca compreender o processo de formação e consolidação de
um enclave residencial fortificado em área de urbanização popular na periferia da
cidade do Salvador. O fenômeno em destaque refere-se a uma comunidade de
vizinhança conhecida como loteamento Sapoca, situada no bairro conhecido como
Paripe, no Subúrbio Ferroviário (Região Administrativa XVII), de modo que
compreender as suas características perpassa um estudo sobre os processos que
definiram a urbanização desses espaços. A transição dessas áreas de rurais para
suburbanas relaciona-se com demarcação do seu primeiro loteamento residencial,
batizado Fazenda Meirelles (1951), localizado nas vizinhas da estação ferroviária de
Paripe. A instalação de indústrias e de outros equipamentos sociais ocorreram a
partir da década de 1960, favorecendo a intensa atração populacional para o bairro,
caracterizado pelo baixo valor da terra, em decorrência da depreciação gerada pela
atividade industrial. Essa gênese possibilitou o surgimento de outros loteamentos
regulares e áreas de ocupação irregular (auto-construção popular), em localidades
como Bate Coração e na antiga Estrada da Fábrica de Cimento de Aratu (COCISA).
Neste contexto, desmembrou-se antiga fazenda de Manoel Rodrigues Pinto da
Costa, viabilizando empreendimentos residenciais, industriais e comerciais. A partir
do apanhando sobre a produção do espaço geográfico do Subúrbio Ferroviário, de
Paripe e Tubarão pôde-se refletir sobre a formação do loteamento da Sapoca,
residência dos herdeiros do antigo fazendeiro local, área que se desenvolveu como
enclave residencial fortificado de circulação, exemplo da auto-segregação em uma
área periférica da cidade.
Palavras-chave: urbanização, segregação, fortificação residencial, violência.
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[…] Distância faz desconhecer, desconhecer trás o medo
Medo faz agir... cê sabe como termina o enredo
Quantos se foram? quantos ainda vão?
será que eles que se foram mais cedo, foram em vão?
Mas eu te pergunto: quem que tornou as ruas trincheiras?
Emicida, em “Soldado sem Bandeira”
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Tabela 1: Evolução da população residente em domicílios particulares, por década -
Salvador - no período de 1960/2010..........................................................................27
Gráfico 1: Mortalidade por causas violentas na RA XVII de Salvador (2000-2004)...38
Figura 1: Delimitação do bairro de Paripe com visão aérea da rua Sapoca..............10
Figura 2: Município de Salvador: ocupação e uso do solo (1968).............................29
Figura 3: Preço médio de terrenos nas macroáreas residenciais de Salvador
(2004).........................................................................................................................34
Figura 4: Renda média dos chefes de família por macroárea residencial do município
de Salvador (2000).....................................................................................................35
Figura 5: Construção da ferrovia Calçada-Paripe no século XIX...............................39
Figura 6: Vizinhança do Bate-coração vista do loteamento Meirelles........................41
Figura 7: Fábrica da COCISA e a praia de Tubarão...................................................42
Figura 8: Foto aérea do terminal aquaviário da Gerdau (ano desconhecido)............43
Figura 9: Limites aproximados da Fazenda do Sr. Manoel Pinto Rodrigues da
Costa .........................................................................................................................47
Figura 10: Topografia da orla de Tubarão..................................................................48
Figura 11: Terreno da fazenda após seu desmembramento com a instalação da
COCISA......................................................................................................................50
Figura 12: Sede original da fazenda do Sr. Manoel adquirida pelo empresário
industrial Barreto de Araújo (2015).............................................................................53
Figura 13: Conjunto residencial popular no terreno da antiga indústria química na
orla de Tubarão..........................................................................................................53
Figura 14: Fortificação na rua Chácara de Manoel, orla de Tubarão (2015).............54
Figura 15: Fotografia aérea da rua da Chácara de Manoel.......................................54
Figura 16: Ocupação histórica do mangue em uma antiga foz na orla de
Tubarão......................................................................................................................56
Figura 17: Croquí dos primeiros anos da Rua e loteamento da Sapoca...................58
Figura 18: Sistema de drenagem de águas pluviais dentro do loteamento (2015)....59
Figura 19: Vala de drenagem fluvial na lateral da Rua Sapoca (2015)......................60
Figura 20: Entrada do loteamento da Sapoca pela orla de Tubarão (2015)..............61
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Figura 21: Portão de acesso à Rua Iriguaçu visto de dentro do enclave da Sapoca.63
Figura 22: Fortificação de residência com cerca elétrica dentro dos limites do
enclave (2015)............................................................................................................65
Figura 23: Cercamento leve dentro do enclave demonstra menor adesão à
fortificação (2015).......................................................................................................65
Figura 24: Fortificação de residência com cerca elétrica dentro dos limites do
enclave.......................................................................................................................66
Figura 25: Adesivo na parte interna sugere que já houve adesão a serviço de
segurança privado (2015)...........................................................................................68
Figura 26: Anúncio na internet para aluguel da casa de eventos Chácara Sapoca...69
Figura 27: Fotografia aérea revela caminho para a praia via Rua Sapoca (azul) ou Tv.
Bela Vista de Tubarão (vermelho)..............................................................................70
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................9
2. ESPAÇO URBANO NO BRASIL...........................................................................13
2.1 Da militarização à fortificação residencial................................................20
3. ESPAÇO GEOGRÁFICO DA PERIFERIA SOTEROPOLITANA..........................26
3.1 A industrialização na Região Metropolitana de Salvador........................30
3.2 A expansão urbana para o Subúrbio Ferroviário.....................................36
3.3 Urbanização e segregação residencial no bairro de Paripe....................38
4. A FORMAÇÃO DO ENCLAVE RESIDENCIAL FORTIFICADO DA SAPOCA.....46
4.1 O desmembramento da fazenda do Sr. Manoel Pinto.............................46
4.2 Loteamento da Sapoca: assentamento, gestão e fortificação.................57
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................73
REFERÊNCIAS..........................................................................................................77
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1. INTRODUÇÃO
O presente estudo busca compreender o processo de formação e
consolidação de um enclave residencial fortificado em área de urbanização popular
na periferia da cidade do Salvador.
O fenômeno em destaque refere-se a uma comunidade de vizinhança
conhecida como Loteamento Sapoca, situada no bairro de Paripe, no Subúrbio
Ferroviário.
O Subúrbio Ferroviário constitui atualmente uma extensa área residencial
popular na cidade do Salvador, demarcada em termos oficiais pelo Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano vigente como a Região Administrativa XVII. Os
levantamentos do IBGE (2010) registrando uma população de aproximadamente
500.000 habitantes dividdia entre bairros de ocupação antiga. O padrão das
habitacões esta distribuído entre loteamentos populares, conjuntos habitacionais e
ocupações espontâneas de terras públicas ou particulares para auto-construção de
residências. A pobreza da população e a infraestrutura precária, bem como a
instalação de industrias e equipamentos sociais (como a Escola de Menores)
produzem efeito negativo na produção do espaço local com a desvalorização dos
terrenos. No Subúrbio Ferroviário são registrados altos índices de violência
identificados por inúmeras pesquisas como os dados elaborados pelo Fórum
Comunitário de Combate à Violência, ligado a UFBA e por Espinheira (2004).
Neste contexto se encontra o 'bairro' de Paripe - localizado na parte extremo
Norte do município de Salvador, em seu limite com o município de Simões Filho –
conforme delimitação proposta na Figura 1. O censo de 2010 do IBGE aponta uma
população no 'bairro' de aproximadamente 50.000 habitantes, valor confirmado na
pesquisa bibliográfica, que também o aponta como o mais populoso de toda a
Região Administrativa. Considerando que cerca de 69% dos moradores recebem até
2 salários mínimos (REGIS, 2006), pode-se refletir a cerca da situação social
precária da ocupação local. A desvalorização do preço da terra local é o principal
fator de atração à habitação da população pobre, e decorre da distância do centro da
cidade, bem como da instalação de equipamentos depreciativos do valor da terra
urbana.
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Figura 1 Delimitação do bairro de Paripe com visão aérea da rua Sapoca
Fonte: SANTOS; PINHO; MORAES; FISCHER (2010).
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A transição de Paripe enquanto área rural para sua qualidade suburbanaa é
consequência da urbanização do bairro, iniciada com a consolidação de um dos
primeiros loteamentos populares da cidade, em 1951, por meio do desmembramento
da Fazenda Meirelles. A ampla urbanização, por sua vez, é consequência da
industrialização ocorrida às margens da Baía de Aratu por volta da década de 1970,
com a instalação de uma grande fábrica de cimento, uma de óleo de mamona, entre
outras, o que influenciou decisivamente a mudança do uso da terra em Paripe, de
suburbano, para urbano, tornando-se uma área de intensa atração de trabalhadores
e outros pobres urbanos. O 'bairro' Paripe e seu entorno se modificam a partir da
década de 1990 com o fechamento das fábricas e ampliação das atividades
comerciais, mais recentemente tem recebido atenção da Prefeitura de Salvador com
obras públicas na orla.
O contexto atual portanto é caracterizado pela pobreza e a segregação
residencial como elementos constituintes da reprodução espacial do bairro, de modo
que poucas unidades habitacionais possuem padrão construtivo bom; a
infraestrutura pública no geral é precária e o padrão de renda da maioria da
população é baixo. É neste contexto da urbanização local que foi constituído o
Loteamento da Sapoca como enclave residencial, fortificado pela construção de
muro e aquisição de equipamentos de segurança, além do que nas próprias
residências é comum a existência de cerca elétrica e cães de guarda.
Nesse sentido é que se busca responder as seguintes questões de pesquisa:
a) Em que medida a instalação de fábricas e equipamentos sociais depreciativos do
valor da terra urbana explica a urbanização de Paripe como área residencial
popular?; b) O que motivou a criação do Loteamento Sapoca no 'bairro' de Paripe
como enclave residencial fortificado?
A partir disso elaborou-se então os seguintes objetivos:
a) Identificar os principais fatores que contribuíram para a urbanização do
bairro Paripe;
b) Compreender consequências sociais, ambientais e espaciais da
instalação de indústrias e equipamentos sociais depreciativos do valor da terra
urbana, como a Fábrica de Cimento de Aratu (COCISA);
c) Analisar o processo de formação e desenvolvimento do Loteamento
Sapoca;
O presente estudo não seria possível sem o devido fundamento e orientação
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no âmbito metodológico que foram alcançados ao longo do curso de graduação.
Sendo assim , buscou-se alcançar os objetivos descritos e responder às questões
de pesquisa por meio do método materialista-histórico-dialético, sugerindo que o
produto da pesquisa social pode ser alcançado por meio da compreensão da
totalidade socioespacial, através do estudo dos processos sociais que implicaram as
respectivas formas espaciais ao longo do tempo. Baseando-se na utilização de
procedimentos histórico, corporativo e estatístico.
A pesquisa teve por base o levantamento bibliográfico; estudos de campo
com a aplicação de entrevistas aos residentes do bairro e do Loteamento Sapoca,
entre esses últimos alguns dos seus fundadores; foram realizados estudos
documentais e análise de imagens.
O resultado destes levantamentos sintetiza-se por meio deste texto, que se
inicia com a reflexão a cerca da produção e reprodução do espaço geógrafico,
especialmente no que tange o espaço urbano e as problemáticas relacionadas à
questão urbana atual. Em seguida é feita a contextualização a cerca do espaço
urbano de Salvador, Subúrbio e Paripe, com base na teoria e informações de campo,
o que permitiu entender a auto-segregação presente no enclave residencial citado,
confirmando proposições teóricas e permitindo um olhar diferenciado sobre a
segregação residencial na orla de Tubarão e em Paripe.
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2. ESPAÇO URBANO NO BRASIL
O entendimento sobre urbanização no estudo de caso proposto, no campo da
ciência, só é viável com a devida fundamentação teórica, no que tange as
formulações sobre a transformação do espaço geográfico e urbano. Especialmente
considerando as especificidades brasileiras e soteropolitanas, que compõem este
enredo.
A base filosófica e geográfica que permite entender como se processa a
transformação do espaço (antes natural) inicia-se na observação da própria
reprodução da vida humana, enquanto princípio de sobrevivência, o que possui
como consequência direta a produção do espaço, uma vez que a ocupação, assim
como “[...] o uso do solo é o produto da condição geral do processo de produção da
humanidade” (CARLOS, 2008: 90). A produção do espaço, por sua vez, é definida a
partir de vários processos sociais simultâneos, mas fundamentalmente pautada pela
divisão social do trabalho e da produção dados historicamente. A este respeito
escreve Carlos (2008):
O processo de produção do espaço fundado nas relações de trabalho entre os homens e a natureza coloca-se como uma relação que deve ser entendida em suas várias determinações, econômica, política, social, ideológica, jurídica, cultural, filosófica (CARLOS, 2008: 23).
Neste sentido é importante compreender a noção de apropriação, tendo como
marco jurídico atual a propriedade privada, e que se expressa nas mais diversas
formas de ocupação do solo e utilização dos equipamentos técnicos dispostos no
espaço. Assim o espaço geográfico pode ser interpretado como a relação dialética
entre sistemas de objetos e sistemas de ações, como explica Santos (2006):
O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá. No começo era a natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo com que a natureza artificial tenda a funcionar como uma máquina. Através da presença desses objetos técnicos: hidroelétricas, fábricas, fazendas modernas, portos, estradas de rodagem, estradas de ferro, cidades, o espaço é marca desses acréscimos, que lhe dão um conteúdo extremamente técnico (SANTOS, 2006: 12).
À ideia de objetos - que podem ser fixos ou móveis – soma-se a compreensão
dos fluxos e das ações; estas estão inscritas em normas, formais ou informais,
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subjacentes ao fato de que no contexto sócio-técnico e urbano muitas das ações
que atuam num lugar podem ser produto de necessidades de ordens alheias aos
objetivos dos agentes locais. Neste contexto as ações são realizadas com
“intencionalidades” definidas conforme os interesses dos agentes sociais envolvidos
nas distintas relações sociais e de produção (SANTOS, 2006). Esses são um dos
principais atributos da sociedade humana no capitalismo1, a capacidade de articular
e produzir o espaço, por meio da sua transformação técnica.
O papel e o lugar de cada “parcela do espaço” em relação à totalidade considerada terá sua articulação e consequente importância de acordo com sua determinação dentro do processo de produção espacial global, a partir da divisão espacial do trabalho, o que implicará necessariamente uma hierarquia espacial (onde cada uma desempenhará um papel específico quanto à produção, distribuição e apropriação do excedente gerado no espaço global) (CARLOS, 2008: 39-40).
O desenvolvimento do capitalismo e da acumulação de capital intensificou a
hierarquia espacial. Há uma crescente instalação de objetos técnicos, infraestrutura
urbana, distritos industriais, etc; de modo que a centralização e a concentração
intensificam-se em escala até então desconhecida. Disso decorre uma valorização
capitalista do espaço, de modo que a crescente instalação de objetos e o
aprofundamento da divisão territorial do trabalho produz o desenvolvimento desigual
em parcelas do espaço geográfico, geralmente segundo interesses dos agentes que
operam o sistema produtor de mais-valia, o que implica portanto a valorização do
espaço, com base no valor de troca, que é simultâneo ao valor de uso2 (COSTA;
MORAES, 1987).
A fixação implica, assim, uma efetiva produção do espaço, pois permite a realização de uma acumulação in situ. O excedente de trabalho de sucessivas gerações, sociedades, e mesmo modos de produção, vão se incorporando cumulativamente ao solo. […] Este já representa um momento superior do processo de valorização, aquele que se assenta no efetivo domínio do espaço, agora já plenamente concebido como espaço de reprodução da sociedade (COSTA; MORAES, 1987:137).
No processo de produção e de valorização do espaço, a cidade aparece
como o produto da mais antiga divisão do trabalho ‒ cidade/campo –, a partir da
acumulação do excedente agrícola e do aprofundamento da divisão social do
1Em todos os modos de produção; não apenas no capitalista.
2Harvey (1980) elabora uma discussão essencial sobre as categorias valor de troca e valor de uso
das mercadorias. O primeiro atende a perspectiva do mercado quando as mercadorias mudam de mãos e o segundo se realiza durante o uso.
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trabalho (os afazeres e ofícios das pessoas para que a sociedade pudesse avançar)
o que implicou também a localização de cada função no espaço urbano – gestão,
produção, lazer, residência, abastecimento, religião, etc.
Neste sentido entende-se a cidade como unidade de análise que agrega
edificações, populações, funções, etc; caracterizando-se especialmente pela alta
densidade de concentração desses atributos (CLARK, 1985). Assim,
A cidade aparece como a justaposição de unidades produtivas, através da articulação entre os capitais individuais e a circulação geral, integrando diversos processos produtivos; centros de intercâmbio e serviços, mercado de mão-de-obra etc.; implicando uma configuração espacial própria em função das necessidades de reprodução do capital, de modo a garantir fluidez do ciclo do capital (CARLOS, 2008: 98).
No contexto das cidades é válida a observação das formas de apropriação,
mediadas pela propriedade privada da terra e suas benfeitorias, onde o preço é
estabelecido como o principal condicionante do acesso e apropriação do lote e sua
construção principalmente no que se refere à moradia. Com base nos pressupostos
da valorização do espaço presentes em Costa; Moraes (1987), a definição do preço
da terra é influenciada por fatores da conjuntura nacional e mundial, bem como aos
aspectos políticos, sociais e ambientais do lugar. A terra nesse sentido é vinculada
ao conjunto ao qual pertence, e a partir desta inter-relação entre o todo e a parte se
processa a valorização real ou potencial das parcelas do espaço (CARLOS, 2008).
Sendo assim, a produção do espaço na cidade capitalista expressa as contradições
da sociedade através dos contrastes da riqueza e pobreza, cultura, mentalidade etc.
De modo que as pessoas se distinguem principalmente pelo que possuem, sua
condição enquanto proprietários de bens, o que possui consequências diretas nos
padrões de habitação das famílias, definido pelo contexto de trabalho e renda dos
moradores.
O homem vive onde ele pode morar, e onde pode morar será determinado pela renda que recebe e pelos sacrifícios que ele pode fazer. Como ele pode morar e em que condições vive, isso dependa da acessibilidade aos serviços coletivos produzidos (CARLOS, 2008: 134).
E assim, subjacente à cidade há o urbano que pode ser entendido como:
[...] um produto do processo de produção num determinado momento histórico, não só no que se refere à determinação econômica do processo (produção, distribuição, circulação e troca) mas também as sociais, políticas, ideológicas, jurídicas, que se articulam na totalidade da formação econômica e social. Desta forma, o urbano é mais que um modo de produzir, é também um modo de consumir, pensar, sentir; enfim, é um modo de vida.
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É, todavia, na materialização da divisão espacial do trabalho que aparecem as relações contraditórias do processo de reprodução do capital (CARLOS, 2008: 84).
A partir das motivações imbricadas em processos mais abrangentes que
orientam a produção do espaço da cidade, organizado pelos distintos agentes do
desenvolvimento urbano (CORREA, 1997), observa-se o processo de segregação
residencial que corresponde ao que Castells (1983) sugere:
A distribuição dos locais residenciais segue as leis gerais da distribuição dos produtos e, por conseguinte, opera os reagrupamentos em função da capacidade social dos indivíduos, isto é, no sistema capitalista, em função de suas rendas, de seus status profissionais, de nível de instrução, de filiação étnica, da fase do ciclo da vida etc. Falaremos, por conseguinte, de uma estratificação urbana, correspondendo ao sistema de estratificação social (ou sistema de distribuição de produtos entre os indivíduos e os grupos) e, nos casos em que a distância social tem uma expressão espacial forte, de segregação urbana. Num primeiro sentido, entenderemos por segregação urbana a tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade compreendida não só em termos de diferença, como também de hierarquia (CASTELLS, 1983: 249-250).
Essa segregação é, por sua vez, resultado do modo como no capitalismo as
pessoas ganham a vida segundo seu status social – se proprietários de meios de
produção, ou se vendedores da força de trabalho.
Esse padrão de moradia reflete e aprofunda a própria discriminação e
contrastes sociais, especialmente presentes no caso brasileiro, de modo que a
segregação residencial perpassa todos os patamares da pirâmide social
correspondendo precisamente ao interesse dos mais ricos em se diferenciar e
distanciar dos mais pobres (KOWARICK, 1993).
Souza (2000) argumenta que a “auto-segregação” passa a se consolidar no
Brasil a partir da década de 70, mas que se agrava mesmo depois dos anos 90,
referindo-se à estratégia das elites urbanas de residir em “espaços condominiais” ou
“público-privados”, áreas comuns de convivência social – em alguma medida
públicas – regidas por convenções privadas e mantendo controle nos acessos a fim
de privilegiar uma convivência supostamente segura às elites urbanas, profissionais
liberais e outros consumidores qualificados. Fenômeno cada vez mais encontrado
em contextos periféricos.
Sendo assim, a auto-segregação associa-se ao planejamento urbano para
consolidar a segregação residencial diferenciando zonas conforme classes e grupos
sociais, como descreve Carlos (2008):
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[…] tanto nas pessoas de maior rendimento financeiro, como também nas de menor poder aquisitivo. As primeiras tendem a localizar-se em bairros arborizados, amplos, com completa infra-estrutura, em zonas onde o preço da terra impede o acesso a “qualquer um”. Há também, os condomínios exclusivos e fechados, com grandes áreas de lazer e até shoppings com grande aparato de segurança. Os segundos têm como opção os conjuntos habitacionais, geralmente localizados em áreas mais distantes dos locais de trabalho da população que lá mora; os bairros operários com insuficiência ou mesmo com ausência, de infra-estrutura, e as áreas periféricas onde abundam as auto-instruções (CARLOS, 2008: 96).
A caracterização da cidade, a partir da leitura dos processos de produção
capitalista do espaço, não deve suplantar uma categorização de grande importância,
encontrada em Corrêa (1989), que se refere aos principais agentes sociais de
desenvolvimento urbano: proprietários dos meios de produção, proprietários
fundiários, promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos. Esses
agentes sociais possuem papel destacado, em especial na consolidação da
expansão periférica das cidades, sobretudo no Brasil.
Inúmeros fatores orientam o crescimento urbano para fora do centro das
cidades a partir da fase industrial do capitalismo, entre eles: a saturação do centro,
sua função informacional intensificada, benefícios para empreendimentos em novas
áreas, extensão de vias de transporte e infraestrutura, desconcentração urbana etc.
O surgimento de novas áreas urbanas, como expansão física da cidade, em geral
iniciaram-se com uma expansão do contorno da área central, criando a zona
periférica ao centro original que cumpria função complementar, estando elas
vinculadas a equipamentos urbanos centralizadores - como a localização de novos
terminais de transporte inter-regional (Corrêa, 1989) - fator que influenciou
decisivamente a urbanização no que se chama Subúrbio Ferroviário na cidade do
Salvador.
A relação entre o Estado e sobretudo os grupos privados é decisiva na
produção do espaço urbano nessas áreas periféricas, por meio das legislações,
isenções e empreendimentos urbanos, o poder publico promove a urbanização de
modo geralmente combinado com os promotores privados. Esse vínculo é
evidenciado por Seabra (1989):
O público e o privado caminham juntos na produção da cidade. A estruturação do setor público não pressupõe, em si mesma, a superação do privado. Pelo contrário, o viabiliza. A constituição do urbano como social nas condições históricas do desenvolvimento capitalista viabiliza um amplo espectro de atividades de produção e consumo privados. É pela via do Estado, através dos investimentos públicos, que se criam condições sociais
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gerais que, concretizando o fenômeno urbano, materializam-se no espaço da cidade. Por isso é de natureza do processo de produção capitalista da cidade, que se desenvolvam mecanismos que valorizam a propriedade fundiária, pois que os investimentos públicos nas obras públicas, que nada mais são do que trabalho materializado, elevem genericamente os preços das terra. A propriedade fundiária capta, privadamente pelo mecanismo do preço da terra sempre acrescido, frações do trabalho excedente. Em síntese, trata-se de uma dimensão da socialização contraditória do espaço da cidade (SEABRA, 1989: 15).
Com o crescimento das cidades, a noção de bairro ganha destaque, sendo
vista por Corrêa (1997) como área residencial diretamente composta por certa
uniformidade social, no que tange a ocupação profissional, etnia, renda e outras
características e funções. Nos bairros populares surgem modalidades da auto-
construção específicas, descritas pela bibliografia especializada como favelas. Esta
compõe o imaginário e a realidade da urbanização periférica brasileira com
ocupações em áreas, as vezes perigosas, mas que muitas vezes são escolhidas
pela proximidade com os locais de trabalho, o transporte coletivo, a infraestrutura
urbana e os serviços.
O fato de que muitos moradores das cidades brasileiras, em especial da
região Nordeste, não obtiveram sua moradia por meio de programa ou planejamento
público, nem receberam qualquer outro investimento para assegurar o mínimo direito
a habitação, demonstra uma intencionalidade objetiva para o modo de produção
capitalista:
[…] uma não-insignificante porcentagem das residências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o mutirão. Ora, a habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não-pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração de força de trabalho, pois o seu resultado – a casa – reflete-se numa baixa aparente no custo de reprodução da força de trabalho – de que os gastos com habitação são componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de economia natural dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho. […] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo (OLIVEIRA,1972: 32).
O quadro socioespacial das cidades brasileiras reflete a complexidade do
espaço urbano e suas problemáticas sociais, características de países de história
colonial como o Brasil, implicando a questão urbana, assim compreendida:
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A “questão urbana” pode ser entendida, em princípio, como o cadinho de tensões resultante da reação dos indivíduos e grupo afetados por problemas primários como a pobreza e a segregação sócio-espacial, por sua vez remissíveis a fatores de alcance menos ou mais geral atinentes à exploração de classe, ao racismo e vários outros. No entanto, qualquer reação pressupõe, para se realizar, uma certa predisposição cultural para se interpretarem tais males como graves e de uma maneira não-fatalista (SOUZA, 2000: 46).
Assim, a intensificação da segregação residencial e dos conflitos urbanos
entre os que construíram sua própria moradia, o poder estatal e os grupos privados
favoreceram a proliferação da fragmentação do tecido socioespacial (SOUZA, 2000)
que impõe imensos desafios ao planejamento e à gestão das cidades. Há de se
considerar, no entanto, que grande parte da falta de governança está associada às
próprias estratégias do poder econômico. O raciocínio lógico de alguns autores
sugere então que a gestão de medidas paliativas – em detrimento da resolução
aprofundada dos problemas – são mais rentáveis para a circulação dos bens de
consumo e manutenção de benefícios de classe, como na ilustração sobre o papel
do mercado da segurança, até hoje incapaz de garantir o fim da violência e da
criminalidade (SOUZA, 2000).
Refletindo então sobre o papel da população na definição de políticas
públicas observa-se que o engajamento popular nos movimentos sociais tradicionais
ao longo do século XX deram contribuições em diversos campos, como o orçamento
participativo municipal, algumas políticas habitacionais e a própria aprovação do
Estatuto das Cidades, que determina regras e parâmetros para políticas urbanas
minimamente participativas.
Porém há bastante adesão científica às formulações de que os chamados
grupos sociais excluídos não possuem efetivo direito a cidade, sendo negado a
significativa parcela da população o protagonismo na definição de políticas e leis
como os Planos Diretores e demais “operações de renovação” ou expansão urbana.
Sendo assim os conflitos expostos ao longo do processo de urbanização no Brasil
somados aos interesses de mercado sobre o planejamento urbano impõem a
militarização como inspiração simbólica e processo de transformação da cidade e do
cotidiano de vida nela, reproduzindo no espaço a violência urbana e a segregação
residencial, expressos também no surgimento de enclaves residenciais fortificados.
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2.1 DA MILITARIZAÇÃO À FORTIFICAÇÃO RESIDENCIAL
Esse item cumpre o papel de referenciar o fenômeno e as espacialidades
decorrentes da “militarização da questão urbana atual” (SOUZA, 2000), com os seus
processos sociais e espaciais subjacentes. Vale ressaltar que a ideia de militarização
é há muito utilizada na filosofia política e na sociologia, sendo assim verificada em
relação a vários contextos. Parte-se, porém, da definição proposta pelo sociólogo
Gayer (1989), que considera a militarização como “[...] o contraditório e tenso
processo social em que a sociedade se organiza para a produção da violência”3. A
militarização da vida urbana é conhecida desde as primeiras fases da civilização
humana na Terra, porém sua influência atual repercute no espaço urbano da
seguinte forma:
Fundamental, para a nova urbanização militarizada, é o processo paradigmático que rende os espaços comuns e privados das cidades, assim como sua infraestrutura – conjuntamente a sua população civil – como alvos e ameaças. Isso se manifesta em difundidas utilizações da guerra como metáfora dominante para descrever a perpétua e incessante condição das sociedades urbanas – em guerra contra as drogas, contra o crime, contra o terrorismo, contra a própria insegurança. Esse processo incorpora a sorrateira militarização de uma ampla gama de debates sobre políticas, espaços urbanos, e circuitos da infraestrtura urbana, bem como influencia comunidades de cultura popular e urbana (GRAHAM, 2011: 60).
4
O Estado, de modo geral, compõe, participa ou fomenta essa estratégia nas
políticas sociais e na reprodução do espaço urbano, até mesmo porque inúmeras
fontes apontam atuação sistemática dos agentes privados junto a dirigentes nas
diversas esferas do poder público nesse sentido. Essa participação estatal
consolida-se através de guerras internas no sentido de desarmar “enclaves de
controle do tráfico” (SOUZA, 2000), armando excessivamente o aparelho policial,
bem como utilizando as Forças Armadas para missões envolvendo civis.
3Nas palavras de Gayer (1989): “[...] the contradictory and tense social process in which civil society
organizes itself for the production of violence”. 4 “Fundamental to the new military urbanism is the paradigmatic shift that renders cities' communal
and private spaces, as well as their infrastructure - along with their civilian populations - a source of targets and threats. This is manifest in the widespread use of war as the dominant metaphor in describing the perpetual and boundless condition of urban societies - at war against drugs, against crime, against terror, against insecurity itself. This development incorporates the stealthy militarization of a wide range of policy debates, urban landscapes, and circuits of urban infrastructure, as well as whole realms of popular and urban culture” (GRAHAM, 2011: 60)
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Do ponto de vista espacial, essa militarização por parte do Estado confere
consequências diversas, pois o desmonte de gangues urbanas permite, muitas
vezes, outras apropriações econômicas e políticas dos espaços periféricos – objetivo
recorrentemente alcançado com utilização da “violência policial” abusiva (MESQUITA
NETO, 1999). Além disso a atuação do Estado no contexto brasileiro reforça o
aprofundamento da segregação espacial, abrindo mão do caráter público de muitos
espaços da cidade, dando a agentes privados a prerrogativa de limitar a presença e
usufruto das pessoas, o que contradiz diretamente os princípios do amplo direito à
cidade. A abordagem estatal a partir do paradigma do conflito estimula por sua vez a
sensação de insegurança generalizada na sociedade, que associada ao mercado
privado, promove outras mudanças espaciais.
Essa estratégia de “guerra interna” não é recente, exceto pelas suas
especificidades atuais. Algumas das conclusões de Foucault (1975) sobre a
constituição dos Estados modernos na Europa destacam o papel da “vigilância
hierárquica”, que passa a atuar como estratégia de controle socioespacial a partir do
século XVIII, inicialmente na Europa, mas influenciando inúmeros países. Esta
vigilância hierárquica favorece o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle
sobre o indivíduo, com a “disciplina” do corpo e mudanças no urbanismo.
Esta gênese resulta na estrutura da “cidade panóptica”, metáfora aquitetônica
utilizada por Foucault (1975) para sugerir o desenho urbano que favorece a “vigilância
hierárquica”, onde o cidadão é submetido a constante observação por parte das elites, seja
no âmbito da Estado, da organização do trabalho ou da segregação residencial. A vigilância
consolida-se com a inserção da disciplina e da forma de distribuição das unidades no
ambiente prisional, profissional, educacional, residencial, entre outros. Essa vigilância
sustenta-se também em cargas simbólicas, conforme definição a cerca da “violência
simbólica”, que impõe ao cotidiano das pessoas uma cultura dominante e
verticalizada, geralmente associada a algum “etnocentrismo” (BOURDIEU;
PASSERON, 1992).
As ideias de Arendt (1985) complementam esta importante reflexão a cerca de
como a vigilância hierárquica, pública ou não, associa-se à “violência mitigada”,
definida pela autora como o posicionamento dos instrumentos da violência (mesmo
não executada) ‒ armas de fogo e muros são o principais exemplos aplicáveis ao
caso em estudo. Estes objetos ajudam a assegurar a obediência, conforme leis de
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amplo respaldo público ou por coletividades especificas, por meio de suas
“representações sociais” (ALEXANDRE, 2004). Isso ajuda a compreender as
consequências e a efetividade da fortificação residencial como ferramenta de
segregação espacial e de ostentação de poder econômico.
A militarização e o interesse pela formação de enclaves residenciais fortificados são
favorecidas por um tipo de prática que surge como consequência do período colonial, a
“violência coletiva”, que se firma como uma forma de solidariedade social entres os pobres
(ARENDT, 1985). Esta relativa difusão da violência insere-se portanto como estratégia de
sobrevivência compondo o engajamento político-social nas periferias das sociedades urbanas,
especialmente aquelas segregadas e racistas, como aponta Fanon (1968). Esses fatos, - no
que tange o Estado, a sociedade e a segregação residencial - contribuem para a
pulverização da violência urbana:
Parece muito mais produtivo reservar a expressão violência urbana para as diversas manifestações da violência interpessoal explícita que, além de terem lugar no ambiente urbano, apresentam conexão bastante forte com a espacialidade urbana e/ou com problemas e estratégias de sobrevivência que revelam ao observador particularidades ao se concretizarem no meio citadino, ainda que não sejam exclusivamente “urbanos” (a pobreza e a criminalidade são, evidentemente, fenômenos tanto rurais quanto urbanos) e sejam alimentados por fatores que emergem e operam em diversas escalas, da local à internacional. Vista a partir deste ângulo, podem ser tomados como típicos exemplares da violência propriamente urbana a violência no trânsito, os “quebra-quebras”, os assassinatos debitáveis na conta de grupos de extermínio e os atos violentos perpetrados por quadrilhas de traficantes de drogas ou gangues de rua (SOUZA, 2000: 52).
Compreendendo a fortificação enquanto produtora de violência simbólica ou
mitigada, observa-se por meio das representações sociais um caminho importante
para verificar os impactos e as implicações socioespaciais desta forma de
apropriação privativa do espaço urbano. Enquanto conhecimento informal e coletivo,
a representação social sobre as barreiras desses enclaves residenciais impõem
'regras' para moradores, trabalhadores e transeuntes que circulam pelas
proximidades.
É uma modalidade particular porque não é todo “conhecimento” que pode ser considerado representação social, mas somente aquele que faz parte da vida cotidiana das pessoas, através do senso comum, que é elaborado socialmente e que funciona no sentido de interpretar, pensar e agir sobre a realidade. É um conhecimento prático que se opõe ao pensamento científico, porém se parece com ele, assim como aos mitos, no que diz respeito à elaboração destes conhecimentos a partir de um conteúdo simbólico e prático (ALEXANDRE, 2004: 127).
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O contexto de violência urbana imprime nas pessoas a sensação de
insegurança, fomentando, como dito, a segregação residencial por meio da
fortificação de enclaves residenciais, caracterizados pela restrição a circulação
interna, objetivando a homogeneidade dos moradores ou interesses de
empreendimentos econômicos. Estes limites físicos e simbólicos conformam-se na
construção de estruturas panópticas, que permitam vigilância e controle sobre
visitantes ou qualquer outro com interesse em adentrar aquele território cercado.
Essa intensificação da segregação residencial verificada ao longo da virada para o
século XXI no Brasil e em outros países está também relacionada à diversificação do
mercado de indústria e serviços voltados para a segurança. Souza (2000) considera
que a adesão a este mercado é uma opção de organização do espaço residencial
que encontra adeptos não apenas nas elites urbanas com alto poder aquisitivo, mas
também entre os outros grupos sociais de renda média e até baixa, em muitos casos,
desde que a relação custo/benefício seja compensadora.
A fortificação residencial difunde-se promovendo mudanças em cadeia nos
diversos bairros, obviamente, variando sua especialização técnica de acordo com as
características econômicas, políticas e culturais das localidades; de modo que a
fortificação pode ser produzida inclusive por meio da auto-construção. Na grande
cidade retratada por Souza (2000) transitam com maior frequência viaturas de
empresas privadas de segurança, erguem-se muros, instalam-se alarmes e portões
por toda a parte, muitas vezes apropriando-se de logradouros públicos.
[…] a nova síntese militar da arquitetura contemporânea insinua a violência e propaga na imaginação o perigo. Em muitas instâncias a semiótica do chamado 'espaço defensível' é sutil como um arrogante policial branco. A elite atual, os espaços pseudo-públicos – shoppings, centros de escritórios, aglomerados, e assim por diante – estão cheios de sinais de atenção contrários ao 'outro' oriundo da classe baixa. Mesmo os críticos da arquitetura frequentemente não percebem que a forma como se constrói um ambiente contribui para a segregação de grupos – tanto as famílias latinas pobres, jovens negros, ou senhoras brancas e sem-teto – reconhecem o significado imediatamente (DAVIS, 2006: 226)5
Esse princípio modelador tem promovido nas cidades do século XXI os
chamados “espaços condominiais” ou “público-privados”. São espaços regidos por
5 “[...]the neo-military syntax of contemporary architecture insinuates violence and conjures imaginary dangers.
In many instances the semiotics of so-called ‘defensible space’ are just about as subtle as a swaggering white cop. Today`s upscale, pseudo-public spaces - sumptuary malls, office centres, culture acropolises, and so on - are full of invisible signs warning off the underclass ‘Other’. Although architectural critics are usually oblivious to how the bult environment contributes to segregation, pariah groups - whether poor Latino families, young Black men, or elderly homeless white females - read meaning immediately” (DAVIS, 2006: 226)
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convenções privadas e mantendo controle nos acessos a fim de privilegiar uma
convivência para poucos. Com a intensificação dos conflitos urbanos, esta escolha
desesperada pela segregação tende a evoluir para enclaves sociais cada vez mais
fortificados. Fruto de iniciativas privadas, muitas vezes apoiada pelo Estado, os
“enclaves sociais fortificados” decorrem do mercado transformando decisivamente
também os bairros populares e operando concreta e simbolicamente na urbanização,
bem como no cotidiano das populações, como destaca Caldeira (1996):
Enclaves fortificados são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho. Esses espaços encontram no medo da violência uma de suas principais justificativas e vêm atraindo cada vez mais aqueles que preferem abandonar a tradicional esfera pública das ruas para os pobres, os "marginais" e os sem-teto. Enclaves fortificados geram cidades fragmentadas […] Consequentemente, nessas cidades o caráter do espaço público e da participação dos cidadãos na vida pública vem sendo drasticamente modificado (CALDEIRA, 1996: 115).
Os estudos sobre formação de enclaves residenciais em outros países também
identificam sua proliferação em áreas de baixa renda:
A vantagem do controle social das 'vizinhanças cercadas' tem chamado a atenção também de donos de terra em áreas densas, de baixa renda. Donos de apartamentos no bairro de Sepulveda do Vale associaram-se a um programa policial, lançado em Outubro de 1989, para fazer barricadas nas ruas afim de deter compradores de drogas e outros indesejáveis. A Polícia de Los Angeles quer a permissão do Conselho da Cidade para cercar permanentemente vizinhanças e garantir entrada restrita aos moradores, enquanto eles financiam a construção de uma estação de
guarita (DAVIS, 2006: 248)6
Deve-se ressaltar também que muitos bairros considerados periféricos abrigam
localidades, por variáveis históricas ou geográficas, que atendem à residência de pessoas
com maior renda ou escolaridade; mesmo sendo baixa, na maioria das vezes, essa variação
de estratos sociais tornam-se visíveis na segregação residencial dentro do mesmo bairro.
Desse modo, mesmo considerando certa homogeneidade nas áreas residenciais periféricas,
os espaços internos também atendem a diferentes objetivos, interesses e papéis na divisão
territorial do trabalho em âmbito residencial:
6 “The social control advantages of ‘gate hood’ have also attracted the attention of landlords in denser, lower-income areas.
Apartments owners in the Sepulveda barrio of the Valley have rallied behind a police program, launched in October 1989, to barricade their streets as a deterrent to drug buyers and other undesirables. The LAPD wants the City Council`s permission to permanently seal off the neighbourhood and restrict entry to residents, while the owners finance a guard station.” (DAVIS, 2006: 248)
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Atualmente, a favelização e a periferização, expressões espaciais mais marcantes da reprodução da pobreza urbana, impressionam não somente por sua magnitude, mas igualmente por sua complexidade. A antiga imagem das favelas como espaços formados por barracos feitos de materiais improvisados e completamente carentes de infra-estrutura há muito não se aplica mais à realidade, a não ser no caso de favelas bem recentes, pequenas e periféricas. Em quase todas as favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo (e, em menor grau, em Curitiba e Recife) casas de alvenaria, ainda que mal-acabadas, dominam a paisagem, e a dotação de infra-estrutura técnica varia bastante de acordo com o tamanho, a localização e a antiguidade e grau de consolidação do assentamento. A ideia geral como espaço residencial pobre e segregado permanece […]. A despeito de continuar sendo sinônimo, no geral, de pobreza urbana, muitas periferias, como a carioca, passaram a ser procuradas por setores pequeno-burgueses desejosos de escaparem dos aluguéis muito elevados do município-núcleo (SOUZA, 2000: 193).
Esta reflexão admite relação direta entre a difusão da violência e da militarização
como fatores de reprodução do espaço urbano, que contribuem diretamente na promoção
dos enclaves residenciais fortificados. Essa síntese conceitual ajuda no diagnóstico da
segregação residencial em sua etapa mais contemporânea. Essa compreensão viabiliza uma
melhor leitura a cerca das transformações do subúrbio soteropolitano, especialmente a
urbanização de Paripe e a formação do enclave residencial da Sapoca. O estudo de caso, por
sua vez, permite constatar a influência da militarização no espaço local, que somada a outros
processos urbanos, intensificam a auto-segregação em um bairro da periferia de Salvador.
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3. ESPAÇO GEOGRÁFICO DA PERIFERIA SOTEROPOLITANA
A cidade do Salvador foi fundada em 1549, como cidade-fortaleza, conforme
objetivo da Coroa portuguesa de instituir sede administrativa do Governo Geral do
Brasil. A esta função somavam-se especialmente as funções militar e religiosa,
porém a motivação econômica que justificava em grande medida a ocupação da
Colônia. Esta cidade deveria viabilizar os latifúndios de cana-de-açucar no
Recôncavo, o que se tornou fato em 1560 quando os índios foram considerados
oficialmente expulsos da região, restando alguns grupos que se associaram à cultura
colonial. Assim consolidou-se seu papel de cidade-região com função portuária, que
ao longo dos séculos XVI, XVII e parte do XVIII, tornou a cidade grande porta de
saída do açúcar e de entrada de escravos (SANTOS, 1959/2008).
O papel de Salvador enquanto “cidade-região” no empreendimento agro-
exportador dos engenhos de cana foi alterado com a decadência da atividade
canavieira e fumageira ao final da II Guerra Mundial, quando a economia baiana
passou a ser dominada pelo que convenientemente foi chamado de “enigma baiano”
no início dos anos 19507.
Este fenômeno, a integração econômica, sobretudo, favoreceu o processo de
migração em massa da população interiorana para fora do estado da Bahia e
também para a sua capital, tornando-se um dos principais causadores do
crescimento populacional da cidade de Salvador ocorrido na segunda metade do
século XX. Há que se considerar também o fenômeno da seco que se manifestava
com muita força no interior expulsando a maioria da população. Para se ter uma
ideia, em 1950, Salvador possuía 417.235 habitantes, sendo mais de 65% composta
de negros e pardos, onde quase metade da população era analfabeta. Apenas 10
anos depois a população do município cresce para 655.735 habitantes, sendo 61%
de origem migratória (BRITO, 2005). Conforme os dados pesquisados, entre 1960 e
1970, passaram a residir em Salvador 380 mil novos habitantes; crescimento ainda
7 Refere-se a aliança entre as oligarquias mercantil-financeiras e os coronéis, o que comprometeu as
bases econ micas para a reprodução futura dos capitais regionais na Bahia gerando certa “letargia econ mica” (BRITO, 2007).
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maior ocorreu entre 1970 e 1980 (novos 495 mil moradores). Até 1991 a população
municipal foi acrescida de 590 mil pessoas, sendo ampliada também no período final
do censo, entre os anos de 1991 e 2000, quando 370 mil novos habitantes
passaram a residir na capital. Esse cenário (Tabela 1) elucida a velocidade com que
cresceu a população municipal, o que originou o aglomerado urbano atual, com
expressiva ausência e má distribuição dos equipamentos públicos e infraestrutura
(BRITO, 2005).
O crescimento da população de Salvador posterior a 1960 deve-se sobretudo
ao fator de atração desencadeado pelo processo de industrialização na área
metropolitana com a instalação do Centro Industrial de Aratu (CIA) em 1968 e do
Complexo Petro-químico de Camaçari (COPEC), em 1978, ante a continuidade da
estagnação econômica no interior, concentração da propriedade da terra e os
problemas e os problemas agrários daí resultantes.
A pressão do mercado imobiliário iniciou em Salvador a partir de 1925,
quando a Prefeitura Municipal de Salvador passou a autorizar loteamentos em áreas
mais distantes que já possuíam algum nível de urbanização como Boca do Rio,
Cabula, Itapuã, Pau da Lima, São Caetano e Valéria. Essas áreas destinavam-se a
ocupação popular. Vale ressaltar que algumas áreas com infraestrutura para
incentivar empreendimentos imobiliários mantiveram-se durante anos desocupadas,
uma vez que os investimentos em lotes periféricos nesse período ainda não se
apresentavam rentáveis aos olhos do mercado imobiliário (BRITO, 2005).
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28
Parte das elites urbanas servida pelo mercado imobiliário formal ainda
preferia investir nas proximidades imediatas do centro, áreas como Dique do Tororó,
Comércio e Baixa dos Sapateiros, que foram alvo de valorização fundiária, com os
primeiros vestígios de verticalização, como aponta Santos (1959/2008), que registra
por volta dos anos 1950, a expulsão das hortas e dos moradores que ocupavam
prédios antigos nas mediações do Dique do Tororó e da Av J. J. Seabra (Baixa dos
Sapateiros). Tanto na moradia como na produção agrícola da periferia imediata do
centro da cidade, a resolução para o poder público nesse período foi a expulsão dos
pobres, afim de ceder lugar a construção de infraestrutura e novos prédios
residenciais para a população atendida pelo mercado imobiliário formal. Essas
desapropriações intensificaram o déficit habitacional e promoveram a expansão da
moradia popular para áreas mais distantes, com precárias condições de serviço e
infraestrutura.
Para se ter uma idéia desse fato, em 1950 a cidade de Salvador, com uma população de 417.235 habitantes, possuía 86.065 domicílios particulares (CPE, 1960, p. 25) e o déficit de habitação estimado era de 16.539 novas unidades — mais de 19%. Nessa cidade, a infra-estrutura urbana estava assim distribuída: a rede de abastecimento de água servia a apenas 32% de sua área; a rede de esgoto atingia 3%; e a rede de distribuição de energia elétrica, por ser explorada por particulares, atendia a 66% da população (BRITO, 2005: 58).
O processo de expansão física da cidade, a partir de meados do século XX,
ocorreu com a valorização das áreas centrais da cidade com novos
empreendimentos voltados para o mercado formal de habitações, de modo que parte
significativa da população que residia em cortiços na periferia imediata da cidade foi
removida e transferida para áreas periféricas, a partir das determinações estatais.
Nesse período, os poucos projetos de habitação popular para os expulsos do centro,
fomentaram o mercado imobiliário informal e a auto-construção em ocupações
precariamente assentadas; sendo eles localizados em áreas distantes, nos fundos
de vale encharcados, encostas de morros e inclusive na maré (BRITO, 2005). É no
contexto de criar a maior facilidade possível para a expansão do mercado imobiliário
urbano que em 1968 a legislação municipal pôs fim à efiteuse, primeiro regime de
propriedade e posse de terras vigente até então:
A estrutura fundiária do Município de Salvador só veio a ser modificada no final da década de 1960, através da Lei Municipal 2.181/6810 que, sob o fundamento da necessidade de desenvolver e expandir o tecido urbano da cidade permite a venda do domínio direto dos imóveis da Prefeitura
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aforados, arrendados ou ocupados a qualquer título, devendo a renda auferida com a alienação ser utilizada para a execução de planos urbanísticos e para ampliação do sistema viário. Esse fato se deu porque as velhas formas de uso do solo, que eram firmadas por contratos de enfiteuse, se apresentavam como um obstáculo ao capital imobiliário, na medida em que encontravam em mãos de velhos foreiros ou posseiros não-capitalizados excluíam a possibilidade de associação entre o capital e propriedade do solo (GORDILHO-SOUZA; LIMA, 2004: 10, 11)
Ao final dos anos 1960 o perímetro urbano contínuo seguia da orla de
Itapagipe até o Lobato, passando pelo São Caetano, Liberdade e Brotas até a orla
de Amaralina conforme aponta a Figura 2 (BRITO, 2005).
Figura 2 - Município de Salvador: ocupação e uso do solo (1968)
Fonte: Brito (2005).
Este é o contexto inicial que propiciará a formação da metrópole
soteropolitana e de sua região imediata ‒ a Região Metropolitana de Salvador
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30
(RMS)7. Vale ressaltar que as transformações urbanas ocorridas na segunda metade
do século XX estão diretamente relacionadas com a expansão dos mercados
internacionais e com a construção de uma agenda governamental de expansão da
infraestrutura, durante os governos militares do Brasil, para assegurar os seus
objetivos e projetos traçados na década de 1960. Na esteira da industrialização da
Bahia e da implementação do transporte rodoviário houve então uma significativa
expansão das áreas residenciais conforme padrões e vetores apontados pelos
estudos urbanos de Salvador.
Nesse sentido, a implantação do regime de exceção no Brasil pós-196 implicou de imediato em transformações substanciais na estruturação do espaço urbano das grandes cidades brasileiras a partir da criação do Banco Nacional da Habitação (BNH), em agosto de 196 , e de toda uma legislação especial com os respectivos fundos financeiros e órgãos gestores envolvidos no Sistema Financeiro da Habitação (SFH) para tentar equacionar a grave questão habitacional e urbana no Brasil (BRITO, 2005: 60)
As políticas de urbanização que procederam-se ao longo das últimas décadas
do século XX estão diretamente associadas ao planejamento estratégico do Estado
militar em seu objetivo de implementação de uma sub-centralidade industrial no
nordeste brasileiro, o que propiciou a inserção de capital, recursos e infra-estrutura
em antigas áreas suburbanas e rurais, realidade que esta diretamente relacionada
com o planejamento de Salvador acima exposto. O Estado, à época, preparava a
malha viária e o mercado imobiliário para o período do acúmulo de capital industrial
nordestino, que possuiu como um dos principais eixos o Recôncavo Baiano e a Baía
de Aratu.
3.1 A INDUSTRIALIZAÇÃO NA RMS
O Censo Industrial da Bahia (IBGE, 1960), apontava naqueles anos uma fraca
industrialização no estado, cenário que tende a ser modificado com a inauguração,
em 1950, da Refinaria Landulpho Alves (em São Francisco do Conde); e com a
criação da Petrobras em 1954, que passaria a ter suas atividades prioritárias na 7A Lei Complementar Federal n. 14 de 8 de junho de 1973 foi o marco legal que instituiu a RMS e mais sete
regiões metropolitanas: São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Curitiba, Belém e Fortaleza.
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31
Bahia concentradas no Recôncavo. Brito (2006) afirma que houve grande
expectativa de que os investimentos da Petrobrás na Bahia traria transformações
radicais à economia do estado, o que infelizmente não correspondeu à realidade
evidenciada, que mantinha a Bahia com uma economia fraca, com baixos salários e
precária infra-estrutura. A fim de reverter esse quadro, comum ao Nordeste brasileiro,
o governo federal criou em 1959 a Superintendência de Desenvolvimento do
Nordeste (SUDENE) promovendo, paralelamente ao Governo estadual, isenções e
outras políticas com fito de fomentar a instalação de indústrias. Essa conjuntura
viabilizou a criação do Centro Industrial de Aratu (CIA) em 1968, do Complexo Petro-
químico de Camaçari (COPEC) em 1978 e de uma série de novas indústrias:
fertilizantes, metalurgia, química etc.
A instalação do CIA, seguida do COPEC e do Complexo do Cobre, induziu o aumento exponencial da população, sobretudo, na cidade de Salvador, contribuindo para dar início ao processo de metropolização dessa cidade. Nessa perspectiva, na administração do então prefeito da capital, Ant nio Carlos Magalhães, foi implementado um plano de reestruturação da cidade, iniciado com a privatização das terras municipais, no sentido de dinamizar o mercado de habitação (reforma urbana de 1968) seguido da abertura das Avenidas de ale (proposta pelo urbanista Mário Leal Ferreira) e da localização seletiva de infra-estrutura pública em áreas específicas da cidade, entre outras ações, com o fim de buscar atender as novas funções urbanas demandadas pela industrialização nos municípios em seu entorno. As ações de reestruturação urbana da capital, de certa maneira, tiveram seq ência nas administrações posteriores (BRITO, 2007: 112)
As transformações econômicas nos anos 1960 e 1970 definiram os novos
vetores de expansão urbana, alicerçados através das novas avenidas construídas
nesse período, como por exemplo a Luiz Viana Filho (Paralela), a Otávio Mangabeira
(orla oceânica), a Afrânio Peixoto (Suburbana) e a própria BR 324. Neste momento
consolida-se a expansão periférica de Salvador com a valorização diferencial
segundo as funções dos vetores, segregando então as áreas destinadas a
urbanização de bairros pobres e ricos, por meio da carga simbólica empregada e
pelo nível de concentração de programas urbanísticos e equipamentos públicos em
cada um desses bairros. Em síntese, conformam-se a existência de 4 setores
residenciais, que merecem algumas considerações gerais, entre eles a periferia
imediata do centro, a Orla Atlântica, o Miolo e o Subúrbio Ferroviário.
Entre os vetores citados, a Orla Oceânica concentrava o mercado formal da
habitação, por meio de processos de incorporação de terras rurais à malha urbana,
terrenos onde predominavam fazendas e residências de veraneio. No início do
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século XX algumas começaram a ser convertidas em loteamentos, como a fazenda
Pituba com projeto aprovado em 1932 e ocupação iniciada nos anos 1960; a partir
de 1970 novos loteamentos são aprovados ao longo da orla e no STIEP (BRITO,
2005). Esses loteamentos possuíam infraestrutura urbana básica instalada e um
sistema viário mais complexo composto por diversas avenidas. Porém, contrariando
o mercado e o Estado autoritário, o planejamento deste vetor não conseguiu impedir
a auto-construção e as favelas, de modo que no entorno dos loteamentos regulares
e da auto-segregação de status foram produzidas áreas residenciais de grande
extensão e concentração populacional como Nordeste de Amaralina, Santa Cruz,
Bairro da Paz, entre outros (BRITO, 2005).
O setor conhecido como Miolo do município é limitado a Oeste pela rodovia
BR324, a leste pela Av Paralela e a sul pelo rio Camarajipe. Lá estão situados
equipamentos públicos e privadas que desvalorizaram a terra urbana, com destaque
para o aterro sanitário, dois presídios, fábricas e conjuntos residenciais populares
(Cabula, Cajazeiras etc.). Por meio da intervenção da Companhia de Habitação e
Urbanização da Bahia (URBIS) e do Instituto de Orientação às Cooperativas
Habitacionais (Inocoop) do Governo Federal foram construídos ao longo das últimas
décadas do século XX, os conjuntos de prédios, voltados para populações expulsas
do centro e funcionários públicos. Alguns dos terrenos públicos também foram
doados pela PMS para que o mercado imobiliário construísse moradias populares
(BRITO, 2005).
O quarto vetor, o Subúrbio Ferroviário, é também o mais antigo, de modo que
com a industrialização na RMS até as áreas mais distantes do centro, como Paripe,
foram incorporadas à malha urbana contínua, promovendo uma intensa
transformação daqueles espaços, antes rurais/suburbanos. Isso ocorreu em
decorrência da proximidade desses bairros com os centros produtivos situados na
Baía de Aratu, a exemplo da construção do Porto de Aratu na década de 1960.
No final da década de 1960, através do Governo do Estado são construídos os primeiros conjuntos habitacionais para populações de faixa de renda de 3 a 5 salários mínimos, tipologia que até a década de 1980, irá se expandir significativamente nessa área do subúrbio, sendo alguns deles implantados em glebas de loteamento que já estavam aprovados. A sua ocupação também foi impulsionada a partir da construção da Avenida Suburbana, a partir do final da década de 1960. Nesses processos, observe-se ainda a presença de Loteamentos Públicos, implantados pela Prefeitura Municipal para abrigar populações removidas de invasões e desabrigados em situações de risco (GORDILHO-SOUZA, 2004: 9, 10).
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33
A autora também aponta que ainda na década de 1950, já difundia-se nesta
área loteamentos formais nos modelos dos “subúrbios-jardins” originários da Europa,
a exemplo dos loteamentos: Jardim Lobato (1953), Jardim Itacaranha (1954) e
Jardim Praia Grande (1966). Ela também verifica que poucos “equipamentos
coletivos” foram efetivamente construídos conforme seus projetos iniciais. Os
autores são consensuais ao reconhecer que parte significativa da moradia neste
setor residencial foi acessada por meio de ocupações ilegais em terrenos públicos
ou privados, por famílias com baixa renda, com condições precárias de moradia e
predominância da auto-construção, com recorrente ocupação em áreas de
preservação ambiental, alguns exemplos são: oana D Arc (1969), Lagoa Encantada
(1978), Volta Redonda (1983), Rio Sena (1984).
Como aponta Brito (2005), o acesso a moradia é um fator que intensifica a
pobreza e os conflitos urbanos até hoje. O déficit de habitações em 2000 atingiu o
expressivo número de 91.170 habitações, que, segundo estimativas dos estudos
para elaboração do Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador, 98,8% são
demandadas por famílias das camadas sociais de renda de até três salários
mínimos. Soma-se a esta problemática todas as precariedades das áreas
residenciais periféricas, fator que passa por mudanças, por meio da ampliação do
acesso ao crédito imobiliário e aos novos programas habitacionais governamentais
nas últimas décadas.
A questão urbana em Salvador desenvolve-se em contexto de grande
desigualdade, com baixo acesso a moradia de qualidade e aos serviços públicos
para a maioria da população. Essa realidade fica exposta na Figura 3, que
demonstra uma nítida diferenciação na valorização das terras em cada um dos
setores urbanos do município. O Subúrbio Ferroviário e Tancredo Neves despontam
como macroáreas residenciais extremamente desvalorizadas por conta das
questões já expostas. A elas somam-se outras macroáreas periféricas com
valorização bem menor que os vetores onde estão estabelecidas das áreas
residenciais das famílias de renda alta e média. Essa situação sintetiza a valorização
diferencial dos espaços urbanos de Salvador.
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34
Figura 3 - Preço médio de terrenos nas macroáreas residenciais de Salvador (2004).
Fonte: Brito (2005).
A Figura 4, por sua vez, revela a desigualdade no que tange à renda das
famílias por bairros, o que reforça a tese desenvolvida sobre a relação entre os
vetores de expansão soteropolitana e a segregação residencial, demonstrando nítida
coincidência entre a presença de equipamentos depreciativos e a desvalorização da
terra urbana, que passa a ser destinado aos assentos populares, em sua maioria. O
exposto revela o Subúrbio Ferroviário como área residencial com péssimos índices
socioeconômicos, o que é resultado da valorização seletiva, reforçada pela omissão
do poder público, gerando consequências diretas nas unidades de vizinhanças da
cidade.
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35
Figura 4 - Renda média dos chefes de família por macroárea residencial do município de Salvador (2000).
Fonte: Brito (2005).
O estudo sobre o planejamento urbano de Salvador, na segunda metade do
século XX, permite identificar a valorização diferencial como fator decisivo na
conformação da divisão territorial do trabalho. A localização das instalações viárias,
produtivas e sociais possuía reflexo direto na valorização do solo urbano em cada
bairro, bem como repercutiu nas prioridades de investimentos públicos e privados. A
desigualdade social historicamente consolidada pelas diferentes possibilidades de
acesso a direitos sociais e trabalhistas pelas moradores da cidade, passava a se
associar ainda mais com os locais de moradia, de modo que nesse período as
antigas áreas suburbanas cederam espaço à segregação residencial, como no caso
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36
do Subúrbio Ferroviário com papel destacado na produção industrial e na moradia
popular.
3.2 A EXPANSÃO URBANA PARA O SUBÚRBIO FERROVIÁRIO
As margens da Baía de Todos os Santos sofreram uma das primeiras
ocupações produtivas baianas, por meio da instalação de engenhos de açúcar ainda
nos primeiros séculos da colônia. Porém a transição de espaço rural a suburbano,
constituindo o Subúrbio Ferroviário, inicia-se com a implementação da ferrovia, no
século XIX, quando houve um processo de industrialização em algumas localidades,
inicialmente ligado a confecção de produtos têxteis, alimentícios e de transporte
ferroviário. À semelhança do modelo de distritos industriais, estabeleceram-se as
primeiras vilas operárias na periferia de Salvador, alguns desses loteamentos feitos
por iniciativa privada dos industriais ou fazendeiros (FONSECA, 1991).
A partir do funcionamento da linha férrea, as ocupações em torno das estações de parada ao longo do percurso do subúrbio até o limite do município de Salvador, na Baia de Aratú, foram se desenvolvendo, contribuindo para a ampliação dos núcleos existentes e surgimento de novos como Escada, Praia Grande, Coutos entre outras localidades de referência. Os parcelamentos para habitação eram arrendados, por iniciativa dos donos das terras, tal qual aconteceu em Plataforma, com a implantação a instalação da fábrica de tecidos São Brás, em 1875, pela Companhia Progresso União Fabril, que viabilizou a moradia para os trabalhadores junto á fabrica, funcionando até meados do século XX (GORDILHO-SOUZA, 2004: 6)
O primeiro ciclo industrial deu origem as primeiras habitações proletárias,
organizadas a partir do desmembramento de fazendas ou de antigas chácaras em
loteamentos voltados à moradia popular, organizado segundo padrões técnicos
importados de organização de habitações, conforme os preceitos sanitários e de
segurança para vigilância hierárquica nas residenciais operárias descritos em
Foucault (1975). Esta relativa expansão periférica para o subúrbio ferroviário da
moradia popular formal na transição dos séculos XIX e XX, não alterou de forma
significativa o monopólio da posse da terra urbana. Com o enfraquecimento da
economia baiana e do município no início do século XX - tendo como símbolo o
fechamento da fábrica São Braz – houve um maior empobrecimento desses bairros
suburbanos.
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No bojo do projeto de cunho higienista, verifica-se também a idealização de um novo tipo de habitação para a emergente “classe proletária”. São produzidas por pequenos empreendedores, a partir de projetos pré-estabelecidos, sujeitos à formalização junto às instâncias municipais. São as “evoneas”, que serão seguidas pela construção de “vilas operárias”, das chamadas “avenidas” de casas, dos “grupos de casas” ou “correr de casas”. O primeiro ciclo industrial, surgido ainda em meados do século passado, deu origem a essas “habitações proletárias”, com a implantação das primeiras fábricas em locais mais afastados do centro, concentrando-se em Itapagipe. Seguindo os moldes europeus, essas primeiras fábricas, em Salvador, também promoveram a construção de vilas para seus operários, anexas à unidade de produção. Inspiradas nas normas de habitação proletária, essas vilas constituem as primeiras iniciativas de ocupação formalizadas previam ente para uso coletivo desses moradores. Construídas a partir da virada do século, obedecem a um plano de edificação para um agrupamento de casas geminadas, seguindo parâmetros técnicos (GORDILHO-SOUZA, 2004: 6).
Deve-se ressaltar que a habitação popular no subúrbio desenvolveu-se a
partir de diversas formas fruto de iniciativas dos agentes produtores do espaço
urbano em diferentes momentos e a partir de distintas condições sociais e
intencionalidades. Como exemplos dessa variedade, encontram-se os casos dos
conjuntos residenciais de Periperi e Vista Alegre, assim como os loteamentos
populares do mercado formal (já exemplificados no ítem anterior) que surgiram a
partir de desmembramentos de fazendas e terras públicas. Essa situação é
complementada como as extensas áreas de auto-construção popular, muitas vezes
assentadas sobre sítios considerados inadequados, em razão das péssimas
condições de insalubridade, exemplos: Parque São Bartolomeu, Nova Constituinte,
vale do Paraguari, Bate Coração etc.
O resultado desta urbanização excludente se expressa na análise dos dados
do censo demográfico do IBGE (2010) que registram, na Região Administrativa do
Subúrbio Ferroviário, uma população de aproximadamente 500.000 habitantes, onde
mais da metade dos chefes de família que sobrevivem com até 3 salários mínimos. A
pobreza e segregação imposta aos moradores do local resultam direta ou
indiretamente no aumento dos índices de morte violenta, como os expressos no
Gráfico 1.
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38
Gráfico 1 - Mortalidade por causas violentas na RA XVII de Salvador (2000-2004)
Fonte: Fórum Comunitário de Combate à Violência, UFBA.
3.3 URBANIZAÇÃO E SEGREGAÇÃO RESIDENCIAL EM PARIPE
Localizado próximo ao limite entre os municípios de Salvador e Simões Filho,
Paripe quer dizer curral, cercado ou viveiro de peixes. Compreende o vale até a foz
canalizada do rio Paripe e também sua extensão a Oeste, ao longo da orla de
Tubarão, que se estende até o limite com São Tomé de Paripe, na Ponta da Sapoca.
É uma das ocupações mais antigas da periferia da cidade, de modo que as
localidades herdaram as nomeclaturas do Tupi-Guarani, fato de conhecimento dos
antigos habitantes, como explica Garcia (2006): “aldeias dos tupinambás, de Ipiru
(Tubarão) e Paripe”. Os autores destacam que apesar das guerras e resistências, os
índios foram expulsos por volta de 1553. Vale ressaltar que na época, este território
era um julgado independente, o mais antigo do Recôncavo, que garantiu segurança
para a instalação de empreendimentos rumo ao interior.
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Figura 5 - Construção da ferrovia Calçada-Paripe no século XIX
Fonte: Gravura do Illustrated London News (1860).
Esse contexto rural só começa a ser modificado com a implantação da
ferrovia, trecho Calçada-Paripe, com 13,5 km, em 1860. Neste período Paripe passa
a compor a área suburbana de Salvador, tanto pela participação no seu cotidiano,
quanto pela mudança na jurisdição territorial (SANTOS; PINHO; MORAES;
FISCHER, 2010). A ferrovia estimulou ocupações próximas às estações ao longo do
percurso até as proximidades da Baía de Aratu. Isso contribuiu para a urbanização
de ocupações antigas, bem como o surgimento de novas. A Figura 5 retrata a
construção da Ferrovia que alcançava o vale do Paripe.
Afim de conhecer melhor a urbanização local, recorreu-se ao conhecimento
dos antigos moradores, a exemplo do Sr. Altino Arantes (79 anos), que apesar de ter
nascido no estado de São Paulo, começou a frequentar Paripe ainda na década de
1940 e para lá se mudou quando a família adquiriu um dos primeiros lotes vendidos
na Fazenda Meirelles em 1951. Desde então, por sua curiosidade e estudo, o Sr.
Altino se tornou um dos principais ativistas e conhecedores do bairro, participando
de várias associações e sindicatos. Atualmente ele participa da colônia de
pescadores e é membro do Conselho da Prefeitura-Bairro. O loteamento residencial
da Fazenda Meirelles é um dos mais antigos do subúrbio, descrito por Gordilho-
Souza (2004), como grandes glebas, totalizando 1.080 unidades.
A análise do processo de ocupação de Paripe a partir do século XX identifica como ponto de partida a fazenda Meirelles que em 1928, foi comprada pela Empresa de Amado Bahia, que posteriormente vendeu à
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40
Empresa de Carnes Verdes da Bahia Ltda. Após várias tentativas de desenvolvimento a empresa resolveu lotear a área, transformando-se na Imobiliária Martins Cia. Ltda., que a partir de 19 8 começou a operar (REGIS, 2007: 75).
Ele destaca que as imediações de Paripe sempre sofreram grande influência
dos militares, e que ao longo da Segunda Guerra a Base Naval era controlada por
norte americanos, que segundo ele, transitavam em “bugres” com mantimentos
pelas praias e com atitudes racistas e coloniais. Mesmo com a saída dos
estrangeiros, os militares e as fazendas tinham destaque na configuração espacial.
O cenário modifica-se quando uma parte da Fazenda Meirelles foi adquirida pela
Empresa de Carnes Verdes da Bahia Ltda, do empresário João Martins, que possuia
interesse na valorização da terra local, tendo promovido o mercado imobiliário local
ao longo das gerações, de modo que “[...] até hoje alguns moradores das
imediações da Rua Eduardo Dotto pagam aluguéis dos imóveis à família oão
Martins” (SOUZA, 2009). O Sr. Altino aponta também que parte significativa do
comércio local pertence aos herdeiros dos Martins. À época, os proprietários da
antiga Fazenda Meirelles cederam uma parte do lote para a construção do Conjunto
Residencial Almirante Tamandaré, voltado para servidores da Marinha.
A Empresa de Carnes Verdes pretendia criar loteamentos para população de melhor poder aquisitivo, que teria acesso às paisagens naturais e às áreas de potencial econômico. Entretanto, a valorização das áreas centrais de Salvador, juntamente com os processos migratórios, em virtude da implantação do CIA – Centro Industrial de Aratu e demais indústrias (como a Indústria de Mamona e a Fábrica de Cimentos de Aratu), levou a constituição de bairros segregados, como é o caso de Paripe. A construção da Av Suburbana (Afrânio Peixoto) na década de 1970 também possibilitou o aumento populacional e incrementou a economia local, principalmente quanto ao transporte rodoviário, ao comércio e aos serviços (SERPA; SOUZA, 2007: 70).
Em razão do início da extração de petróleo no Recôncavo Baiano e,
consequentemente, a diversificação da indústria baiana na segunda metade do
século XX, ocorre uma profunda metamorfose espacial no bairro, o que implicou a
disponibilidade de terrenos a baixo preço, ao longo das vias de acesso (ferroviária e
rodoviária) e nas proximidades do CIA e do Porto de Aratu. Este processo
consolidou uma ocupação do bairro de Paripe por trabalhadores da indústria e
outros sub-proletários que não possuíam acesso a terra e optaram pela auto-
construção, ocupando terras da Prefeitura e do Governo estadual, nesta última se
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estabeleceu a localidade chamada de Bate Coração, atualmente delimitada como
ZEIS-89.
Figura 6 - Vizinhança do Bate-coração vista do loteamento Meirelles (2015)
Fonte: Pesquisa de Campo (20/08/2015)
Esta favela que se desenvolveu nas vertentes e cumeadas a Leste do vale do
Paripe (Figura 6), às margens do núcleo inicial do loteamento Meirelles. No contexto
da urbanização merece destaque a instalação da Escola de Menores, instituição que
recebeu menores infratores da cidade que lá cumpririam a ressocialização, o que
trouxe fluxos de pessoas e novos moradores para o bairro.
A instalação do COPEC e do CIA promoveram a ampla migração residencial
para o bairro e favoreceram indiretamente a instalação de outras indústrias de porte
significativo, a exemplo da IMBASA e da Fábrica de Cimento de Salvador (COCISA),
ambas localizadas em Paripe, sendo que a segunda se tornou uma das maiores do
nordeste no ramo. A Figura 7 mostra a COCISA, atualmente desativada, instalada na
Ponta da Sapoca na praia de Tubarão, revelando impacto significativo desta
estrutura industrial no contexto do bairro, o que possuiu consequências diretas no
meio ambiente e na estrutura fundiária local.
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Figura 7 - Fábrica da COCISA e a praia de Tubarão
Fonte: Tito Garcéz (2009)
Ao longo da industrialização baiana entre as décadas de 1960 a 1980, a
transformação ocorrida no bairro de Paripe foi relevante, desfazendo resquícios da
estrutura rural herdada também ao longo da orla de Tubarão. De acordo com as
informações dos entrevistados e da bibliografia, pode-se concluir que a urbanização
foi ocorrendo rapidamente ao lado da instalação das fábricas e outros
empreendimentos como: terminal aquaviário da USIBA (atualmente de propriedade
da Gerdau), uma fábrica de blocos (CONDER, 1976) e a indústria de liquído
carbônico, localizada na orla de Tubarão (citada pelo Sr. Paulo) e observada no
mapeamento aéreo feito pela CONDER em 1976. Com base no levantamento aéreo
da CONDER e outras obras citadas, pode-se perceber uma extensa ocupação
residencial e atividades econômicas já ao final da década de 1970, definindo Paripe
como bairro urbanizado e de relevante função industrial.
Não se pode desconsiderar, por outra via, a intensificação da migração
populacional fomentada pela industrialização, mesmo considerada a distância do
bairro em relação às áreas centrais da cidade. Ambos constituíram-se como fatores
de desvalorização das terras do bairro, sendo a moradia de diversos pobres urbanos.
Nesse fato também reside o estimulo ao desenvolvimento do comércio local, uma
vez que com a distância do centro, as áreas próximas à estação ferroviária em
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Paripe tornaram-se propicias à instalação de comércio para as populações
suburbanas até hoje.
Figura 8 - Foto aérea do terminal aquaviário da Gerdau (ano desconhecido)
Fonte: Site Fotoimagem, acesso em Setembro de 2015.
A Figura 8 revela o terminal aquaviário da USIBA, utilizado inicialmente pela
COCISA. A USIBA é uma empresa siderúrgica de natureza pública que se instalou
na Ponta da Sapoca, no lado de São Tomé, mas que também foi responsável pela
reprodução do espaço paripense, especialmente de Tubarão. A fotografia tirada da
Baía de Todos Santos revela a Ponta da Sapoca onde também situava-se a COCISA,
bem como as cumeadas que dividem os bairros de Paripe e São Tomé. A ilustração
é reveladora do processo de urbanização atual, tendo nas cumeadas e vertentes à
direita do terminal áreas residenciais, fundadas através da auto-construção, e que se
proliferaram com a construção da antiga Estrada da COCISA, hoje Rua Iriguaçu.
Deve-se ressaltar que não foram poucas as consequências sócio-espaciais da
instalação da fábrica de cimento a beira mar, que foi fechada em meados dos anos
1990. Primeiro essas consequências referem-se ao próprio aglomerado populacional
que tende a se estabelecer nas proximidades industriais, com base na
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disponibilidade de mão-de-obra, fazendo com que muitos dos trabalhadores passem
a residir nas proximidades.
Esse contexto promove uma transformação do espaço natural e de inúmeras
atividades biológicas. Um exemplo é o impacto causado ao manguezal situado na
Ponta da Sapoca, reduzindo seu tamanho e biodiversidade, atingindo populações
que viviam dos mariscos, especialmente os residentes do Quilombo do Tororó
situado em São Tomé de Paripe (SANTOS; PINHO; MORAES; FISCHER, 2010). É
razoável considerar, como aponta o Sr. Paulo, que atualmente há uma diminuição
significativa dos peixes ao longo de toda a praia de Paripe e Tubarão, o entrevistado
registrou, ao longo da sua juventude, a recorrente aparição de pequenos cações no
mar local. Esses são consequências diretas da urbanização na redução da
biodiversidade daquelas terras.
O Sr. Altino ressalta, por outra via, que a comunidade local nunca foi passiva à
industrialização, de modo que a comunidade escolar teve papel destacado na
fiscalização e denúncias dos seus males. Ele reconhece que as fábricas geraram
muitos impactos, especialmente a IMBASA, que fez com que um odor tóxico e
incômodo tomasse o núcleo inicial do bairro, gerando consequências na saúde e
bem estar da população do loteamento Meirelles e adjacências.
A quebra da antiga estrutura rural por meio da industrialização e da auto-
construção caracterizaram a reorganização espacial no bairro entre 1970 e 1990. A
partir dos anos 90 houve fechamento da indústria local de modo que o poder público
passou a fortalecer o comércio e os serviços, setor local que é considerado como
“dinâmico” por Souza (2009) nos dias atuais:
Foi somente a partir da década de 1990 que as principais mudanças citadas pelos entrevistados começaram a ocorrer, dentre elas podem ser destacadas: a criação do sistema de esgotamento sanitário e a pavimentação da Avenida Afrânio Peixoto; a ampliação do comércio e dos serviços e a criação do Centro de Abastecimento; reforma da Praça João Martins; reforma da paróquia Nossa Senhora do Ó; organização da orla de Tubarão; Criação do Clube Zouk Dance; e a melhoria no sistema de transporte urbano (SERPA; SOUZA, 2007: 71).
A despeito da relativa vitalidade econômica e beleza litorânea, os diversos
autores citados identificam as áreas residenciais do bairro sendo formada
majoritariamente por pobres urbanos, especialmente algumas localidades
concentram maioria de residentes negros, que foram historicamente alijados de seus
direitos, também no âmbito do acesso a terra e ao trabalho:
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Dados do IBGE apontam que em 2000 a Área de Expansão Demográfica que abrange Paripe, São Tomé, Bate Coração e Tubarão possuia 85,8% de raça negra, especialmente aqueles com renda de até 1 salário mínimo (GARCIA, 2006: 71)
Demonstra-se razoável, portanto, considerar que a segregação residencial se
consolida na organização do bairro de Paripe, de modo que os estudos nos anos
2000 consideram algumas áreas com pobreza concentrada, (REGIS, 2007). Nestas
áreas residem trabalhadores formais, com renda entre 2 e 4 salários mínimos. Serpa;
Souza (2007) identificam muitas queixas entre moradores das áreas mais distantes
do núcleo inicial do bairro (Nova Canaã e Terra para Todos), pela falta de
infraestrutura e existência de casos graves de violência urbana. Alguns aspectos
problemáticos da questão urbana atual são relatados pelo Sr. Altino, quando
descreve a intensa pobreza, os impactos ambientais e a intensificação dos conflitos
entre gangues. Essas localidades de concentração da rivalidade civil e conflito do
crime, não por acaso, coincidem com áreas de concentração da auto-construção.
Os estudos sobre bairros de Salvador, através do estudo das bacias
hidrográficas, foram sintetizados na publicação intitulada “Caminho das guas” do
Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS-EA/UFBA) e
contou com a parceria de inúmeros órgãos governamentais e membros das
comunidades. A nova delimitação conta com adesão da Prefeitura Municipal de
Salvador, conforme informou o Coordenador de Prefeituras-Bairro da PMS em 04 de
abril de 2013. A nova delimitação proposta (Figura 1) difere-se de algumas outras
tentativas de delineamento do bairro, porém é de grande serventia na definição do
contexto de bairro utilizado por este trabalho.
O estudo bibliográfico somado aos levantamentos de campo permitem então
compreender as transformações espaciais ocorridas nesta parcela da cidade de
Salvador, que envolve Paripe e a orla de Tubarão. Essa leitura geohistórica permite
identificar o papel que exercem as diversas localidades na síntese da segregação
espacial presente no bairro, ideias reforçadas com o estudo um pouco mais
aprofundado sobre a auto-segregação em um dos terrenos privilegiados da orla,
denominado loteamento Sapoca.
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4. A FORMAÇÃO DO ENCLAVE FORTIFICADO DA SAPOCA
A criação do enclave residencial situado na rua Sapoca é resultado da opção
dos filhos de um fazendeiro local em, ao desmembrar sua fazenda, constituir um
loteamento residencial restrito a pessoas próximas, que pudesse aproveitar a beleza
e acessibilidade de Paripe e ao mesmo tempo resguardar o ambiente familiar de
moradores desconhecidos. A urbanização paripense, com a tendência de aumento
da população do bairro e utilização da praia, fortaleceu, entre os moradores do
loteamento, a ideia de fortificá-lo por meio de muros, portões e outros instrumentos
de proteção. Deste modo, a gênese e reprodução observada nesta localidade
constitui-se como parte da urbanização do bairro, o que não nega, por sua vez, sua
particularidade fundamental, de ser um espaço residencial restrito, com habitações
melhor estruturadas, reproduzindo o padrão de segregação oriundo da reprodução
do espaço no capitalismo.
4.1 O DESMEMBRAMENTO DA FAZENDA DO SR. MANOEL PINTO
Entre os autores que estudaram o bairro de Paripe é generalizada a
compreensão da orla de Tubarão como espaço que situou principalmente fazendas
ao longo dos anos. A industrialização e o êxodo rural intensificaram a ocupação
residencial do bairro como consequência. Apesar de não propor limite preciso para
Tubarão, o Sr. Paulo reconhece que esta orla começa nas praias próximas ao final
de linha e vai até as ruínas da COCISA, ao longo da Av. Dr Eduardo Dotto, onde
existia a fazenda de seu pai. Nas palavras dele:
nós somos uma parte de Paripe, Paripe mesmo eu diria que seria aonde era descarregamento do trem, trazia o gado do interior e descarregava ali junto a estação de trem e seguia até Valéria pela estrada de barro em que ia paro o abatedouro, isso era a vida de Paripe. [...] Tubarão seria depois da estação, quando a gente sai da influência da estação, até chegar em São Tomé. O fundo seria a gameleira e a Igreja Nossa Senhora do Ó (COSTA, Paulo. Entrevista 1, 2015)
A carta náutica da Baía de Aratu (escala 1:15000 - sem legenda) elaborada pela
Marinha do Brasil com base em levantamentos ocorridos até 1956 evidencia
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aspectos da paisagem de Tubarão até o referido ano, e dá uma visão privilegiada da
ocupação da fazenda (Figura 9) .
Figura 9 - Limites aproximados da Fazenda do Sr. Manoel Pinto Rodrigues da Costa
Fonte: Marinha do Brasil (1956).
A Figura 9 dá uma dimensão do trecho final da orla de Tubarão e apresenta
os terrenos que compunham a fazenda na época do levantamento. A fazenda
adquirida pela família do Sr. Paulo na mão de um português por volta de 1939
iniciava no contato da Ponta da Sapoca com a praia de São Tomé, seguindo até a
ponte na praia de Tubarão, tendo como limite Nordeste o Cemitério de Paripe e a
Norte os divisores de água. O Sr. Manoel Pinto Rodrigues Costa, pai do Sr. Paulo,
ao mudar-se para aquelas terras plantou coqueiros e implementou sua fazenda de
gado leiteiro, para engorda e revenda. Dentro da fazenda havia um núcleo de
ocupação residencial de trabalhadores locais. A comparação dos levantamentos
cartográficos do passado e imagem aéreas atuais sugere que a via ocupada na
porção sudeste da fazenda (observada na Figura 9) tenha sido a base para o
desenvolvimento de moradias populares ao longo das décadas.
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Do ponto de vista geomorfológico, a bibliografia e os depoimentos do Sr.
Altino e do Sr. Paulo destacam a existência de inúmeros pontos de inundação ao
longo da orla. Este último relata que em períodos de chuva chegava de barco às
localidades onde mais tarde assentaram-se as casas da rua Sapoca mais próximas
da praia. A análise geomorfológica define o bairro como majoritariamente de origem
sedimentar, com inúmeros córregos. A topografia da orla de Tubarão possui divisores
de água íngremes bem definidos a norte, como demonstra o levantamento
topográfico exposto na Figura 10.
Figura 10 - Topografia da orla de Tubarão
Fonte: Googlemaps (2015).
Sendo assim, um dos primeiros desafios enfrentados por Manoel e parentes
no novo ambiente residencial foi a inundação de pastos e proliferação de doenças
como o “empaludismo”, semelhante a Malária, transmitido por mosquitos, típico de
regiões quentes. Este problema foi resolvido por meio de uma parceria com os
órgãos de Governo que orientaram um projeto de drenagem das águas de parte
significativa da fazenda, viabilizando o empreendimento rural e a morada.
Essa bacia possui solo do tipo massapé, cuja característica é o aspecto pegajoso, textura argilosa, coloração escura e alto teor de fertilidade, porém, com alto grau de instabilidade em função da sua expansão sob as águas,
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tornando essa área vulnerável a deslizamentos de terra ou inundações. Portanto, as características pedológicas associadas aos processos de impermeabilização, tornam a área potencialmente propensa a riscos e a saturação dos canais de drenagem pluvial (SANTOS; PINHO; MORAES; FISCHER, 2010).
As lembranças do Sr. Paulo sobre Paripe e Tubarão antes da industrialização
remetem a ambientes externos à antiga fazenda, também presentes no mapeamento
da Marinha. Exemplo são a Ladeira de Pedra que atravessa a Ponta da Sapoca em
direção a São Tomé; e a estrada da Gameleira que segue a norte da Igreja do Ó,
correspondendo atualmente à rua João Martins. O Sr. Paulo descreve a moradia e
atividade dos pescadores que ocupavam a orla de Tubarão em direção ao centro de
Paripe: “casa de supapo, o fundo dando para o mar aonde eles saiam para pegar
marisco e siri-mole para fazer isca para pescar de manhã. […] do outro lado dessa
rua que ficavam os pescadores surgiram algumas casinhas também, já de barro e de
tijolo”.
Percebe-se que o contexto produtivo da orla de Tubarão permanece
estritamente rural, composto por essa e outras fazendas e lotes de veraneio, até as
transformações dos anos 1960-1970, período que o antigo proprietário faleceu
dividindo a propriedade entre seus oito filhos. Também nesse período o
planejamento estatal projeta a industrialização para a Ponta da Sapoca e sua
possível conectividade com os diversos vetores de escoamento. Estes objetivos
demandam implementação de infraestrutura e consequente urbanização,
intensificada pelos processos migratórios ao longo das novas vias de circulação
conectadas ao longo da rede em questão. As especulações comerciais para
aquisição da propriedade da Ponta da Sapoca e suas adjacências começaram a
ganhar corpo envolvendo propostas indenizatórias do Estado e ofertas de empresas
de grande porte. Sr. Paulo aponta que pela pressão e boa proposta financeira foi
selado um acordo, de modo que a COCISA se instalaria na Ponta da Sapoca
(terreno pertencente ao Sr. Paulo), enquanto outro terreno seria doado para a
USIBA.
Ao longo das vertentes a norte da praia, uma porção significativa das terras
foram vendidas para que a COCISA construísse sua estrada, atualmente nomeada
rua Iriguaçu, paralela à Av Dr. Eduardo Dotto. A via que foi aberta promoveu
transformações decisivas no trecho de Tubarão, garantindo fragmentação espacial
com consequente desenvolvimento de outras atividades industriais e comerciais e
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50
lotes residenciais. Portanto, como resultado dos processos expostos a antiga
fazenda foi cedendo espaço para novas ocupações organizadas seletivamente pela
estruturação urbana que se consolidava. Esse processo identificado em Tubarão
demonstra coerência com a abordagem sobre a industrialização segundo a
bibliografia consultada:
O desenvolvimento da indústria pressupõe não somente a produção e a consequente distribuição e venda em grande escala, como também necessita economias de aglomeração; infra-estrutura de transporte, mão-de-obra, proximidade de outras indústrias complementares, mercado diversificado. A produção em grande escala pressupõe um grande número de empregados, a concentração da população e do próprio capital em parcelas concentradas do espaço. Isto permite uma economia dos gastos de produção, uma das condições para que a empresa industrial aumente seu lucro (CARLOS, 2008: 28).
Figura 11 - Terreno da fazenda após seu desmembramento com a instalação da COCISA
Fonte: CONDER (1976)
Um exemplo significativo dessas transformações foi a venda de uma parte da
fazenda para a instalação de uma indústria química “Liquid. Carbon. S/A” (Figura 11)
na extremidade final da orla, aos pés da Ponta da Sapoca. Outras vias modificaram-
se com a urbanização crescente, como a antiga estrada da Gameleira, que na
antiguidade seguia a norte da Igreja do Ó, cedendo lugar à rua João Martins; assim
como a centenária Ladeira de Pedra que dava acesso a São Tomé que perdeu
relevância no contexto da mobilidade local. A Figura 11 apresenta a orla de Tubarão
posterior à industrialização deste período, destacando mudanças significativas se
comparadas ao levantamento cartográfico da Marinha. Esta comparação também
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permite validar as ideias de Carlos (2008), afinal, a industrialização da Ponta da
Sapoca viabilizou uma série de empreendimentos que transformaram decisivamente
esta orla, reproduzindo nela o espaço urbano.
Os limites a Sudeste e Nordeste da antiga fazenda foram os primeiros locus
de ocupacão popular mais antiga com a divisão de lotes não regularizados, destaca-
se nos depoimentos o surgimento de um loteamento na região da Gameleira, que
também sugerem que o desmembramento nas proximidades do Cemitério ocorreram
logo nos primeiros anos da industrialização local.
A antiga Estrada da COCISA é chamada na figura de rua Ipiguaçu
(atualmente possuindo nomeclatura pública como rua Iriguaçu); nela se estabeleceu
um novo vetor de ocupações residências auto-construídas. A antiga área de
inundação, em frente ao mar, cedeu lugar aos outros 7 lotes dos herdeiros do Sr.
Manoel, que ao serem vendidos, ao longo dos anos, passaram a sediar
empreendimentos residenciais e comerciais. Um dos lotes continha a sede da
fazenda, tendo ele sido vendido para o empresário Barreto de Araújo, que
conquistou notoriedade no bairro e na cidade, não apenas por ser um dos grandes
industriais baianos, mas também porque nesta propriedade foi organizada uma
espécie de Fundação filantrópica que promovia eventos sociais e garantia benefícios
para a população de Paripe. O terreno de Barreto de Araújo, à época, resistia como
um dos poucos lotes em forma de chácara ou sítio, enquanto que quase a totalidade
da antiga fazenda já assentava a urbanização. O levantamento de 1975 já apresenta
um grau de urbanização significativamente maior que aquele de 1956 e confirma
inúmeras evidencias apontadas pelos entrevistados e observadas em campo.
Sobre o desmembramento da antiga fazenda do Sr. Manoel, pode-se dizer
que em alguma medida ela seguiu um padrão comum ao desmembramento de
fazendas em outras áreas industriais, havendo assim uma apropriação da família
herdeira dos melhores terrenos:
Uma parte dos lotes é guardada como reserva. “Reserva lá para a família alguns lotes melhores, bem situados etc. que também têm uma valorização quando a família quiser vender, diz um entrevistado referindo-se aos loteamentos feitos pelas famílias (CARLOS, 2008: 153)
Um dos lotes familiares foi herdado pelo Sr. João, que optou por desmembrá-
lo como loteamento residencial, sendo o principal responsável pela idealização da
rua Sapoca, na Figura 11 identificada como “Chácara Tubarão”. Com o apoio de seu
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irmão engenheiro, promoveu a estruturação da rua Sapoca, tendo o apoio da
COCISA como contrapartida pela venda do terreno que cedeu lugar à rua Iriguaçu,
com a qual a rua Sapoca está ligada perpendicularmente; a Figura 11 permite
visualizar ocupação residencial à época. Deve-se registrar que o Sr. João optou por
transformar a sua parte da herança original em um loteamento para os familiares e
amigos poderem residir ou veranear: “essa parte ficou materializada como
condomínio Sapoca” indica o Sr. Paulo. Eram 10 lotes, sendo que neles residiam
irmãos e amigos de futebol do Sr. João, incluindo o Sr. Paulo, que teria vendido sua
parte da herança para a implantação da COCISA na Ponta da Sapoca. O loteamento
da Sapoca que se formava pode ser comparado, em nível teórico, com a formação
dos subúrbios de classe média em várias partes do mundo.
Eles são povoados por grupos de renda média que estão organizados em unidades familiares nucleares. […] A despeito do pequeno espaçamento entre as casas e dessas atividades integradoras, os suburbanistas de classe média não são comumente coesos em alto grau. A ênfase na privacidade familiar e a liberdade para almejar agressivamente mobilidade social ascendente não encoraja, o desenvolvimento de extremas ligações sociais locais. […] A casa insular unifamiliar e a dependência do automóvel para tudo atendem estas preferências e ajudam a congruência entre o estilo de vida e o arranjo espacial do ambiente residencial (CLARK, 1985: 115)
Mesmo não se constituindo objetivo central deste trabalho, vale observar
algumas modificações que ocorrem após o desmembramento da fazenda e posterior
saída das indústrias lá situadas. Curiosamente observa-se a manutenção da sede
original da Fazenda de Manoel, adquirida pelo Sr. Barreto de Araújo, e preservada
na forma de chácara, como aponta a Figura 12.
Em parte do terreno da antiga indústria química existente nas proximidades
da Ponta da Sapoca, hoje localiza-se a instituição de caridade que abriga crianças,
chamada lar Pérolas de Cristo e o conjunto habitacional Vila Solidária Mar Azul
direcionado a 236 famílias de baixa renda6. Esta mudança na ocupação do solo da
década de 1990 para cá é retratada com a comparação dos levantamentos de 1976
e 2015 expresso na Figura 13.
6 Este conjunto habitacional teve sua construção iniciada em 2008 por meio do programa “Crédito
Solidário”, sendo o primeiro projeto de multirão e autogestão na Bahia, organizado pela União por Moradia Popular, infelizmente o empreendimento vive um impasse judicial que colocou em prejuízo inúmeras famílias.
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Figura 12 - Sede original da fazenda do Sr. Manoel adquirida pelo empresário industrial Barreto de Araújo (2015)
Fonte: Pesquisa de Campo - Outubro, 2015.
Figura 13 - Conjunto residencial popular no terreno da antiga indústria química na orla de Tubarão
Fonte: CONDER (1976); Googlemaps (2015).
Outro caso curioso sobre a urbanização local é a consolidação de outro
logradouro público (além do loteamento estudado) como enclave residencial
fortificado, fechado por meio de portão e muro, com nome oficial de rua da Chácara
de Manoel, possivelmente remetendo ao antigo proprietário das terras. Esta rua
situa-se a sudeste da rua Sapoca. Apesar das características das habitações e da
fortificação neste loteamento serem menos sofisticadas que as da rua Sapoca, esta
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localidade distingue-se da maioria das habitações no bairro, pelo tamanho e
estruturação das casas.
Figura 14 - Fortificação na rua Chácara de Manoel, orla de Tubarão (2015)
Fonte: Googlemaps (2015).
Figura 15 - Fotografia aérea da rua da Chácara de Manoel
Fonte: Googlemaps (2015).
A Figura 14 revela a fortificação e cercamento da entrada da rua Chácara de
Manoel, enquanto a Figura 15 permite a visão área e da estruturação do loteamento
interno a este enclave.
Inúmeros impactos ambientais foram causados pela urbanização, como a
generalizada perda de biodiversidade e as mudanças no ambiente marinho. O Sr.
Altino relata que as dragas que retiravam calcário das primeiras faixas da plataforma
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continental para a indústria de cimento foram responsáveis por uma drástica
diminuição no quantitativo de peixes e mariscos, além de terem sido responsáveis
(mais de uma vez) pela morte de banhistas. A reprodução espacial da indústria,
como aponta Carlos (2008) “não contempla outras espécies”, de modo que o
“próprio homem tem muita dificuldade de sobreviver”. Segundo as informações
prestadas, houve protestos feitos por estudantes e professores do bairro na época,
mas a crítica não era um consenso entre os moradores, visto que muitos defendiam
a geração de emprego desses empreendimentos.
Outra localidade que teve seu bioma profundamente afetado foi o estuário
que antigamente limitava a fazenda de Manoel a Sudeste. Segundo Sr. Altino, o
manguezal servia de trabalho e alimento para muitos moradores e marisqueiros e
estendia-se da área de inundação na praia até as proximidades do cemitério, onde
curiosamente muitos gaiamuns iam alimentar-se. Os levantamentos estudados
demonstram a antiguidade do bioma e sua preservação até, pelo menos, a década
de 1970. O Sr. Altino relata que a sua ocupação não se deu apenas pela auto-
construção popular, de modo que parte do mangue foi apropriada indevidamente
pela família Martins e outra parte pela IMBASA, resultado que pois fim àquela flora e
fauna, como aponta a análise da evolução urbana do local.
Esse processo de ocupação do manguezal do estuário que desaguava na
praia de Tubarão pode ser melhor observado na Figura 16 que revela uma
comparação da existência do mangue e do estuário ao longo dos 3 levantamentos
apresentados (1956, 1976 e 2015). Assim como esse processo de transformação na
foz do rio pode ser analisado por analogia à ocupação dos rios em outras cidades. O
reseultado é uma perda da existência do rio na vida e no imaginário da população,
de modo que a urbanização ocupa seus espaços por meio da canalização das águas.
Enquanto os rios e as várzeas são tangíveis, reais concretos e como tal existiam na prática da vida têm-se deles uma percepção sensorial imediata, desenvolvem-se relações diretas por vezes, até afetivas. Mas o curso das transformações da sua existência natural levaria necessariamente também a uma existência abstrata, não tangível... os rios e as várzeas acabariam por serem transformados num espaço tecnológico. Nestas condições a representação possível será pensada, teórica, programada. Os habitantes da cidade já não dão conta da sua existência (SEABRA, 1989: 64-65)
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Figura 16 - Ocupação histórica do mangue em uma antiga foz na orla de Tubarão
Fonte: Comparação de documentos – MARINHA (1956); CONDER (1976), Googlemaps (2015).
Enquanto os rios e as várzeas são tangíveis, reais concretos e como tal existiam na prática da vida têm-se deles uma percepção sensorial imediata, desenvolvem-se relações diretas por vezes, até afetivas. Mas o curso das transformações da sua existência natural levaria necessariamente também a uma existência abstrata, não tangível... os rios e as várzeas acabariam por serem transformados num espaço tecnológico. Nestas condições a representação possível será pensada, teórica, programada. Os habitantes da cidade já não dão conta da sua existência (SEABRA, 1989: 64-65)
Muitas foram as mudanças nessas localidades ao final do século XX e início
do XXI. Deve-se ressaltar que Paripe, de modo geral, continuou sendo área de
ocupação de pobres urbanos, que passaram a assentar-se ao fundo da orla de
Tubarão, nas vertentes a norte da Rua Iriguaçu, compondo o espaço contínuo cada
vez mais extenso, posteriormente demarcada enquanto ZEIS-116, nomeada São
Tomé de Paripe. A partir daí evidencia-se também nos terrenos da antiga fazenda do
Sr. Manoel a auto-construção nos vazios urbanos e especialmente nas vertentes e
cumeadas citadas, fenômeno comum a diversos bairros de Salvador.
Não existem estudos sistemáticos que apontem para as razões que tornaram o Rio ou Salvador centros que agregam grande números de favelados. Uma das causas prováveis seria a existência, nas cidades litorâneas, de vastas glebas de propriedade do poder público, em particular do Exército e da Marinha, onde os favelados teriam se fixado em áreas pouco aproveitáveis para receber edificações ou menos sujeitas a valorizações (KOWARICK, 1993: 79-80)
Com o fechamento da COCISA e outras indústrias houve o fortalecimento do
comércio como atividade econômica prioritária. De modo que uma visita ao longo da
antiga orla do Sr. Manoel permite identificá-la como uma área propensa aos bares,
restaurantes e comércios voltados para o lazer, complementando o intenso comércio
nas vias principais. As diferenças sociais revelam também, dentro dos espaços da
antiga fazenda, a valorização diferencial no que tange as residências, com diferentes
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57
graus de segregação residencial e infraestrutura habitacional.
4.2 LOTEAMENTO DA SAPOCA: ASSENTAMENTO, GESTÃO E FORTIFICAÇÃO
Quando a família Pinto Rodrigues da Costa adquiriu aquelas terras, a principal
referência era a Ponta da Sapoca, que segundo o Sr. Paulo, significava “olho
grande” na língua indígena, local de onde se podia observar a extensão litorânea de
São Tomé e outras localidades ao longo da costa suburbana. Lá havia encontros da
família, como pequeniques e outras atividades. O fascínio que o Sr. Paulo apresenta
ao referir-se ao platô demonstra a importância desta localidade em relação a seu
entorno, fato que foi devidamente compreendido pelo Estado autoritário, que
pressionou o Sr. Paulo a vender o terreno – que era o seu lote de herança –, fato por
ele relatado com grande aceitação, mas não sem algum nível de pesar. O morro ou
ponta da Sapoca era um lugar privilegiado, e seu nome possuiu valor simbólico
significativo para a família, o que perpetuou o nome, agora também identificando a
rua e o loteamento que se consolidou em consonância com a estrada da COCISA.
O significado sugerido para Sapoca remete a um dos princípios simbólicos de
formação deste enclave residencial fortificado. Metaforicamente, o “grande olho”
representa a vigilância como elemento decisivo na permanência da família e na
produção e organização do loteamento ao longo do período de urbanização. Mesmo
não sendo grandes proprietários de terra, a família Pinto e os herdeiros dos 10 lotes
da rua Sapoca viviam como profissionais liberais, diferenciando-se da massa de
população pobre que ocupa as demais terras de Paripe e Tubarão. O ideário de
moradia que motivou a primeira geração de moradores também permeia a ideologia
dos mais recentes e encontra consonância com os objetivos de formação de boa
parte dos loteamentos suburbanos em outros países: “[...] a ideologia dos
loteamentos exalta a sabedoria, a segurança, o aconchego, a clausura e o retiro”
(CASTELLS, 1983, p 248).
A Figura 17 é um croqui elaborado com base no levantamento da CONDER
(1976) e revela as características iniciais do assentamento da rua Sapoca. Bem
como localiza algumas terras vizinhas que foram vendidas no processo de
desmembramento da antiga fazenda ali situada.
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Figura 17 - Croquí dos primeiros anos da Rua e loteamento Sapoca
Fonte: Produção própria com base no levantamento da CONDER de 1976.
No processo de consolidação da rua Sapoca, são relatadas algumas
intervenções estruturantes, sejam elas: demarcação dos lotes, adequação das valas
de drenagem (já existentes) à pista, construção pela COCISA de uma rampa de
acesso à rua Iriguaçu e a construção de um campo de futebol. Isto consolidou o
assentamento no início do loteamento, que para alguns moradores era apenas
destino de veraneio. Os dados da CONDER também permitem identificar a área de
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59
afloramento de água a Norte da rua Sapoca, local reconhecido pelas gerações que
viveram lá até a década de 1990. Essa área de acúmulo foi represada na época da
fazenda, servindo a vários moradores e estimulando alguma ocupação residencial
anos mais tarde. O acúmulo de água pode ser vista também nas fotografias aéreas
atuais. O sistema de drenagem, composto por valas paralelas e perpenticulares à
rua Sapoca são evidenciados na sua forma atual nas ilustrações 18 e 19.
Figura 18 - Sistema de drenagem de águas pluviais dentro do loteamento (2015)
Fonte: Pesquisa de campo – Outubro, 2015.
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60
Figura 19: Vala de drenagem fluvial na lateral da Rua Sapoca (2015)
Fonte: Pesquisa de campo – Outubro de 2015.
Deve-se ressaltar que a família Pinto Rodrigues da Costa ali conviveu pelo
menos mais algumas décadas, até os últimos remanescentes se mudarem em 2003,
de modo que conversando com Paulo e sua esposa Norma foi possível revisar a
história da rua e compreender o processo que intensificou a fortificação,
consolidando o enclave residencial. O bisneto do Sr. Manoel Pinto, de nome Thiago
aponta que a avó e outros tios “tomavam a frente” nas atividades de organização e
proteção do loteamento, confirmando papel decisivo daquela família na gestão
administrativa interna ao longo das primeiras décadas de consolidação da área
residencial.
Os primeiros anos do loteamento, no bojo da industrialização,
corresponderam a um período de migração populacional para Paripe, mas no início
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61
não havia qualquer preocupação com segurança. Porém já se notava um aumento
do público frequentador da praia, o que motivou a instalação da primeira cancela na
entrada da rua pela praia, sem uso de chave ou cadeado. O primeiro fechamento da
rua era justificado nas palavras do Sr. Paulo: “se eu não botasse um portão, seria o
que? o mictório deles? Então nós botamos o portão apenas para impor respeito só
(…) pra você ver que não tinha violência nem nada”. ale registrar que a saída norte
ao fundo da rua não foi fechada até a década de 1990. No aspecto interno, a divisão
entre as casas era feita por cercas simples, que cumpriam basicamente o objetivo de
resguardar quintais dos cães.
Figura 20 - Entrada do loteamento da Sapoca pela orla de Tubarão (2015)
Fonte: Pesquisa de campo, Outubro de 2015.
A intensificação da urbanização sugeriu ao Sr. Paulo e ao seu irmão Sr. João
a necessidade de intensificar a fortificação e a vigilância. Ao longo dos anos 70-80
ambos possuíam armas de fogo de pequeno porte, e optaram por construir uma
guarita e um portão realmente fortificado, que foi recuado 100 metros da Av Dr
Eduardo Dotto para que fosse possível “vigiar quem chegasse”. Mesmo optando
pelo fechamento do enclave e pela compra de armamentos, os familiares não
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62
registraram nenhuma ocorrência de violência e criminalidade de relevância. Ainda
assim, o povoamento intenso de Paripe e o imaginário do perigo já envolvia aqueles
moradores. Os casos relatados pela Sra. Norma (esposa do Sr. Paulo) restringem-se,
no entanto, aos chamados “ladrões de galinha”, sendo poucos e pequenos furtos,
alguns dos registros referem-se a crianças roubando coisas de baixíssimo valor. O
antigo recuo para construção do primeiro portão permanece até hoje na principal
entrada do enclave da Sapoca (pela orla), atualmente com uma fortificação mais
arrojada, como demonstra a Figura 20. Que revela a entrada do enclave residencial
da Sapoca como uma forma que destoa do padrão de habitação no bairro.
A entrevista com a Sra. Carmen (64 anos) e o Sr. Luciano Cason (75 anos),
por sua vez, permitiu visualizar o contexto de transformações do loteamento, desde
quando eles foram morar lá em 1996. Especialmente porque a Sra. Carmen foi
reconhecida como síndica internamente durante 8 anos, participando ativamente das
reuniões e decisões, de modo que ainda hoje são consultados pelo atual presidente
da associação local, o Sr. André (advogado). O casal resolveu viver no subúrbio
porque instalaram uma ONG no bairro de Escada. Além de que buscavam uma casa
com área verde e que fosse barata, de modo que a casa de madeira onde vivem
hoje, até pela sua degradação ao longo do tempo, cumpria os pré-requisitos do
casal.
Ao longo desses 20 anos que eles têm vivido lá não registraram nenhuma
ocorrência de violência ou criminalidade relevante dentro ou nas proximidades do
condomínio. Eles informam ter conhecimento de que algumas localidades do bairro
convivem com violência e assaltos mais intensos, mas reafirmam que nunca
sofreram diretamente com nenhum caso dentro ou fora. O único registro foi o roubo
da bicicleta do seu filho, quando ele passeava na orla de Tubarão, já nas
proximidades de Paripe no final dos anos 1990. Enquanto comentava sobre os
incidentes, Sr. Luciano afirmou que sua filha adotiva negra sofria “um outro tipo de
problema”, que era o racismo por parte de outros moradores. De qualquer modo,
eles ressaltam a violência como um forte estigma ligado ao bairro, admitindo
inclusive que a rua Iriguaçu é conhecida por ser “estrada de desova de cadáveres”,
o que não implica para eles um aumento direto da criminalidade dentro do enclave.
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Figura 21: Portão de acesso à Rua Iriguaçu visto de dentro do enclave da Sapoca (2015)
Fonte: Pesquisa de campo – Outubro de 2015.
O Sr. Thiago também confirma que ao longo da sua infância e adolescência
tinha o habito de transitar livremente pela orla de Tubarão e proximidades, como as
ruínas da COCISA. Quando ele se mudou para o loteamento em 1994 a entrada do
fundo já era isolada por meio de um portão velho fechado com “uma tora de
madeira”, a frente tinha um portão simples com tranca, que era vigiado pelo
“segurança do condomínio”, de modo que quando finalizava o seu turno de trabalho
ficava para os moradores o cuidado de manter a entrada principal fechada. Nesse
período foram plantadas árvores espinhosas nos muros da frente do enclave afim de
coibir ultrapassagem. O Sr. Thiago afirma que ainda novo já tinha conhecimento da
existência de tráfico e criminalidade fora dos limites do enclave, assim como ficou
sabendo de pequenos furtos ao longo da orla, mas não foi atingido diretamente. Nos
últimos anos que morou lá ele observou a troca do portão do fundo por outro maior e
mais estruturado, com cadeado, assim como inciaram-se as conversas sobre
incrementar o portão da frente com controle eletrônico. A Figura 21 revela o portão
do fundo do loteamento que liga a rua Sapoca à rua Iriguaçu, este é grande e
permanece trancado, mas não possui qualquer aparato eletrônico como interfone,
controle remoto ou cerca elétrica.
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Foram significas as mudanças internas ao longo da década de 1990, quando
a antiga cultura familiar de gestão do enclave foi completamente superada. Dando
lugar a um maior isolamento entre os próprios moradores. Esta é uma tendência
evidenciada em outros subúrbios de classe média e representa a segregação
residencial em nível de um mesmo bairro situado na periferia da cidade. A tendência
ao isolamento nos momentos de lazer e na esfera residencial observada no
loteamento a partir da pesquisa de campo revela-se destoante do lazer praticado na
praia e em outras áreas residenciais de Paripe. Este fenômeno é similar ao
encontrado em outros estudos urbanos sobre a formação dos subúrbios:
Enquanto os subúrbios de classe média dão ênfase à unidade familiar nuclear, socialização com amigos e mínimo contato local, as vizinhanças de classes trabalhadoras acentuam a família extensa, frequente entretenimento caseiro com os parentes, ao invés de conhecidos, e um grande número de interações sociais locais e informais fora da casa (CLARK, 1985: 115)
Por fatores internos e externos, os procedimentos de fortificação se
intensificaram ao longo dos anos 2000, quando os moradores resolveram instalar o
portão eletrônico na entrada principal com o interfone. O relato da família Cason
indica que há intervenção dos moradores sempre que é necessário assegurar o
isolamento e segurança do loteamento, como no recente caso em que os moradores
reuniram-se para reconstruir um dos muros do fundo, uma vez que o proprietário do
terreno o abandonou; sem a manutenção necessária pessoas externas passaram a
ter acesso, o que motivou a intervenção citada. Ao longo dos anos 2000 constatou-
se uma considerável fortificação das casas dentro do condomínio, o Sr. Luciano
relata que quando chegou existiam apenas pequenas cercas entre elas, essas foram
incrementadas com algumas cercas verdes,. Atualmente algumas residenciais
possuem muros muito altos, o que o Sr. Paulo afirma incomodá-lo.
As diferenças no grau de fortificação das casas dentro do perímetro do
enclave ressalta relativa falta de homogeneidade no pensamento ou possibilidades
econômicas dos moradores. As diferenças internas e a adesão diferencial ao
mercado da segurança ficam evidenciados na comparação das formas e
aparelhagem utilizadas nos lotes internos. Nesse sentido as Figuras 22 e 23
demonstram casas altamente fortificadas, com uso de cerca elétrica e portão,
enquanto a Figura 24 revela despreocução ou incapacidade de investir na
fortificação da própria casa.
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Figura 22 - Fortificação de residência com cerca elétrica dentro dos limites do enclave (2015)
Fonte: Pesquisa de campo – Outubro de 2015.
Figura 23 - Cercamento leve dentro do enclave demonstra menor adesão à fortificação (2015)
Fonte: Pesquisa de campo – Outubro de 2015.
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Figura 24 - Fortificação de residência com cerca elétrica dentro dos limites do enclave (2015)
Fonte: Pesquisa de campo – Outubro de 2015. Outro fator chama atenção por constar recorrentemente na fala de moradores
entrevistados de diferente gerações. Refiro-me ao primeiro fator que pesou na opção
pelo cercamento, o interesse de manter banhistas e transeuntes fora das mediações
das casas da rua Sapoca, o que também estimulou as primeiras etapas de
incremento do portão na entrada pela praia e pelo fundo. Essa barreira tão concreta
quanto simbólica perdura como elemento decisivo na representação social sobre o
fechamento, conforme o ponto de vista de diferentes entrevistados. O Sr. Thiago, por
exemplo, relata que o efetivo trancamento do portão do fundo no final dos anos 90
objetivava coibir pedestres e carros velozes que começavam a utilizar aquela via
para o acesso à praia, estes últimos colocando risco às crianças. A Sra. Norma
confirma a necessidade das barreiras afim de “manter o clima de tranquilidade” que
ela tanto preza naquela moradia.
Referente a gestão interna, Sra. Carmen informa que na atualidade os
moradores algumas vezes sofrem com as divergências, decorrentes da relativa
perda de relações de proximidade influenciada pela revenda das casas. Por outro
lado reconhece que as reuniões internas - que atualmente priorizam a legalização do
condomínio - contribuem muito com a gestão das áreas comuns.
Algumas interpretações no que tange a segurança e a gestão interna no
loteamento foram possíveis com a participação da professora de Letras Vernáculas
da Universidade Federal da Bahia, a Sra. Lavínia Neves dos Santos Mattos (30 anos)
reside no enclave da Sapoca desde 2010, escolhido como moradia por garantir, nas
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palavras da mesma, “casa espaçosa, ambiente arborizado, área para criação de
cachorros e tranquilidade”.
Destaco que a Sra. Lavínia e seu marido são muito ativos nas questões
internas, de modo que este último é o presidente da associação local criada para
gerir as áreas comuns aos moradores da Rua Sapoca. Apesar de ser chamado de
condomínio Sapoca, o fechamento do logradouro não está formalizado para o poder
público municipal, conforme ela relata: “Enquanto associação, estamos isentos da
constituição formal dos condomínios. Como já havia sinalizado, demos continuidade
a uma prática sócio-cultural do lugar, iniciada por seus antigos moradores. Contudo,
ao formalizarmos essa organização em vistas à manutenção do local, criamos a
associação, pela qual, conforme seu estatuto, todos os moradores são responsáveis
diretamente, reservando-se a alguns funções formais, como Presidência, neste caso
ocupada por meu marido. As reuniões são convocadas frente às demandas e
disponibilidade da maioria. Todas as decisões são tomadas de acordo com as
deliberações das reuniões e anuência da maioria dos condôminos. Atualmente,
estamos nos trâmites para a obtenção do CNPJ do condomínio, o que demandará a
constituição de outro tipo de gestão administrativa, certamente, gestada por um
síndico”.
Assim como os outros entrevistados, a Sra. Lavínia admite nunca ter sofrido
qualquer tipo de violência ou assalto nas áreas internas, mas reconhece que o
“acesso privativo” garante um sentimento de segurança, o que justifica o fechamento
em virtude da “realidade violenta” na cidade e no país, prática observada em
diversas realidades urbanas:
No limite, quando surgem tensões, e as cidades decaem, as elites se refugiam entre os muros das “comunidades fechadas”, fen meno importante no mundo inteiro em fins da década de 1990 (CASTELLS, 1999: 505, 506).
Apesar de não ter sofrido diretamente com a violência, ela informa que outros
moradores já foram vítimas de assaltos, e que se mantém “atenta” mesmo no
perímetro do enclave assim como em outros locais externos. Explica também que
atualmente os moradores não possuem contrato com nenhuma empresa para
segurança privada das áreas comuns do loteamento, o que certamente já foi
utilizado pelos moradores conforme identifica o adesivo encontrado nas
dependências internas (Figura 25).
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Figura 25: Adesivo na parte interna sugere que já houve adesão a serviço de segurança privado (2015)
Fonte: Pesquisa de campo, Outubro 2015.
Assim como a família Cason, a Sra. Lavínia identifica a orla de Tubarão como
foco de conflitos urbanos, no que tange especialmente o trânsito e as práticas de
lazer da população local. Como aponta Souza (2000), o trânsito é um dos principais
ambientes geradores da violência urbana, e nesse aspecto, a via estreita e a falta de
fiscalização/ordenamento por parte da Prefeitura – no trecho final da Av. Dr.
Eduardo Dotto, que dá acesso a praia - impede a livre circulação aos finais de
semana dificultando a acessibilidade dos moradores, o que para a Sra. Lavínia
constitui-se como o “principal problema do condomínio”. Devo ressaltar que o
aumento na utilização da praia foi o fator que motivou inicialmente o cercamento,
sendo que este persiste como principal locus de conflito entre moradores da Sapoca
e outros frequentadores. A insatisfação perante as práticas de lazer ao longo da orla
de Tubarão intensifica-se pois além dos limites à mobilidade, tem na poluição sonora
outro ônus, fator que foge a capacidade de gestão dos moradores e reside na esfera
de fiscalização e ordenamento da Prefeitura Municipal, que não atua nesse sentido,
segundo entrevistados, mesmo após a reforma recente da orla de Tubarão.
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Figura 26 - Anúncio na internet para aluguel da casa de eventos Chácara Sapoca
Fonte: Internet, acesso em Novembro de 2015.
As visitas a campo e conversas informais com os proprietários revelaram que
pelo menos duas casas (as primeiras da entrada da orla) não estão ocupadas com
moradores, sendo que uma esta totalmente vacante e a outra funciona como uma
casa de eventos chamada Chácara Sapoca, como aponta o anúncio (Figura 26).
Infelizmente o responsável pelo empreendimento não respondeu ao questionário a
ele enviado, dificultando a investigação sobre a relação estabelecida entre a casa de
eventos e a gestão interna do loteamento. De qualquer modo a Sra. Lavínia
reconhece a existência deste ponto, mas alega não saber como descrevê-lo, se
residencial ou comercial, reconhecendo que alguns dos eventos ocorridos têm
gerado transtornos que não são solucionados mesmo com as recorrentes
reclamações.
A análise do fechamento no passado e no presente possui intencionalidades
comuns, o que encontra respaldo nas explicações abordadas a nível teórico. Sendo
assim, é inegável considerar que o medo crescente da violência urbana e que o
movimento de militarização da sociedade promovem a fortificação e a auto-
segregação residencial em nível multi-escalar, conforme estudo de caso aqui
descrito. Esses fatores são recorrentes no imaginário dos entrevistados, que
identificam em muros e portões formas plausíveis de manter-se distantes da
criminalidade, bem como manter o seu perímetro residencial isolado de transeuntes
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indesejados, afim de garantir algum graus de homogeneidade (ou ao menos
restrição) na circulação interna no enclave. Estes fatores justificavam, em boa parte,
a adesão aos aparelhos técnicos de segurança e escolha da segregação como
modelo residencial. Inegavelmente o caso da fortificação do enclave do loteamento
da Sapoca, apesar das suas especificidades, não destoa de uma realidade já
analisada no plano teórico através de outros estudos de caso
Entre os vários elementos em transformação na cidade, os novos enclaves fortificados para moradia, trabalho e consumo das classes médias e altas são os que estão provocando as mais profundas mudanças. Apesar de terem diversos usos (alguns para moradia, outros para trabalho, lazer ou consumo; alguns mais restritos, outros mais abertos), todos os tipos de enclaves fortificados mantêm as mesmas características básicas. São propriedades privadas para uso coletivo; são fisicamente isolados, seja por muros, espaços vazios ou outros recursos arquitet nicos; estão voltados para dentro, e não para a rua; […] podem se localizar em quase qualquer parte, independentemente de seus arredores. Eles não mais dependem de um centro urbano com alta densidade de serviços, como as antigas zonas de escritórios e comércio. Na verdade, muitos dos novos enclaves instalaram-se na antiga periferia, tendo por vizinhos as favelas ou concentrações de casas autoconstruídas. Por fim, os enclaves tendem a ser ambientes socialmente homogêneos, na maioria das vezes formados por classes médias e altas (CALDEIRA, 1996: 5).
O estudo comparativo sobre renda e moradia no âmbito da segregação
residencial neste trecho de Paripe torna-se dificultada pela simples análise dos
números do IBGE. Isto porque a divisão dos setores censitários que compõem o
recenseamento da cidade não coincide com a divisão dos loteamentos residenciais,
dificultando uma avaliação mais apurada da renda dos moradores do loteamento e
seus vizinhos. Para obter um diagnóstico mais preciso sobre a segregação, a partir
do critério renda, seria necessário outro estudo, semelhante ao de Regis (2007),
onde foram aplicados questionários completos sobre as características
socioeconômicas das famílias (renda, escolaridade, trabalho). Esse estudo, por
exemplo, foi direcionado a determinadas ruas de Paripe, onde havia maior interesse
em questão, metodologia que poderia apresentar melhor quadro econômico dos
residentes do loteamento Sapoca e outros núcleos residenciais vizinhos. Porém,
dentro da metodologia aqui proposta, a pesquisa de campo pôde constatar padrões
distintos de consumo a partir das características habitacionais, bem como objetos
dispostos nas casas de dentro e fora do loteamento.
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Figura 27 - Fotografia aérea revela caminho para a praia via Rua Sapoca (azul) ou Tv. Bela Vista de Tubarão (vermelho)
Fonte: Googlemaps (2015).
Essa verificação confirmou a ideia de que o loteamento Sapoca possui
características muito distintas da maioria das áreas residenciais vizinhas, no que
tange o tamanho e tipologia dos lotes, bem como o padrão construtivo das casas. A
observação do padrão das casas revela presença de estruturas incomuns nas áreas
mais pobres, como piscinas, quadra (tênis e vôlei), campinho (futebol),
churrasqueiras, extensa área verde, entre outras. A evidencia de um ou mais carros
em praticamente todas as garagens habitadas revela também um maior acesso ao
consumo e a mobilidade. A observação dessas características reforça a ideia de que,
mesmo não se tratando de uma população de renda muito alta, os moradores do
Loteamento Sapoca possuem um padrão habitacional mais elevado que a média do
bairro.
A análise da Figura 27 apresenta a Rua Sapoca e seu entorno, revelando a
concentração de área verde e lotes relativamente grandes que compõem a área
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interna do enclave residencial fortificado. Na imagem aérea modificada pode-se
constatar que a Rua Sapoca é um dos poucos logradouros públicos na faixa da orla
que possibilitaria a conectividade entre boa parte do trecho da rua Iriguaçu e a orla
de Tubarão. Esta constatação demonstra que o cercamento da rua Sapoca,
enquanto enclave residencial fortificado, possui impactos diretos na mobilidade dos
moradores do vetor residencial popular que se expande pela rua Iriguaçu
(especialmente a Norte). A marcação das distâncias de acesso a praia para os
moradores da rua Iriguaçu e vizinhança (rua Fonte do Índio, Bela Vista da COCISA,
entre outras), presente na Figura 27, comprova que a mobilidade para esses
moradores é comprometida em pelo menos 1 km a mais no acesso à praia, o que
para pedestres, portadores de deficência e ou idosos possui implicação ainda maior.
Sendo assim, é inegável considerar que a rua Sapoca, caso fosse aberta, seria a
principal via de acesso da favela à movimentada praia. Esta circulação é indesejada
e não seria agradável para aqueles moradores que mantém sua suposta
tranquilidade por entre os portões.
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho refletiu sobre a metamorfose do espaço urbano, com ênfase
para a influência da industrialização e militarização na produção espacial, através do
estudo de caso da Rua Sapoca, em Paripe. O estudo cumpriu o objetivo de verificar
um caso de fortificação e auto-segregação residencial localizado na periferia de
Salvador, por meio de entrevistas com as gerações que residiram no loteamento
citado e do estudo bibliográficos e documentais dos processos de produção e
reprodução do espaço local e do “bairro” Paripe. De modo que, além de refletir sobre
a temática mais contemporânea, foi possível contribuir com novas informações que
podem auxiliar uma leitura mais ampla sobre a urbanização em Paripe, por meio da
repartição das antigas fazendas. Para orientar os presentes estudos foram
elaboradas duas questões de pesquisa que serão respondidas de forma sintética
nas linhas que seguem.
A abordagem concentrada no estudo do loteamento em questão permitiu
diagnosticar suas características internas como padrões habitacionais, da
infraestrutura e gestão interna; mas acima de tudo permitiu contribuir com novos
conhecimentos geográficos, a partir da investigação sobre mudança na estrutura
fundiária e reprodução do espaço urbano de Paripe e Tubarão como consequência
da industrialização assentada na Ponta da Sapoca e da migração populacional.
Deste modo, o estudo do loteamento permitiu também pôr em prova os
diversos conceitos teóricos da geografia urbana (e outras ciências afins) em sua
aplicabilidade em relação aos processos de transformação do espaço de Paripe,
especialmente nas localidades da orla de Tubarão. De modo que a segregação
residencial, a auto-segregação, a valorização diferencial e a espoliação urbana,
destacaram-se como conceitos úteis na elaboração de uma síntese a cerca das
transformações ocorridas no espaço de Tubarão.
Deve-se ressaltar que coube a esse trabalho observar então essas
transformações a partir do desmembramento da Fazenda de gado leiteiro de Manoel
Rodrigues Pinto da Costa, que com os seus filhos foi pressionado pelo Governo
militar a vender suas terras para a instalação de indústrias de interesse comum entre
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poder público e privado à época. Sendo assim, a incorporação da Ponta da Sapoca
ao contexto industrial da Baía de Aratu permitiu a produção e reprodução do espaço
urbano nas localidades de Tubarão, por meio da instalação de infraestrutura viária e
de outros empreendimentos nos setores industrial, comercial e residencial. Contexto
que põe fim às atividades rurais, promovendo mudanças na vida marinha e na
pesca.
A industrialização por sua vez deixa como rastro intensos impacto sócio-
ambientais. A nível de trabalho e sobrevivência, as antigas possibilidades como
pesca e maricultura sofrem danos praticamente irreversíveis prejudicando
comunidades tradicionais e ribeirinhas. Isso se comprova na ausência da
biodiversidade marinha, bem como a extinção do mangue do antigo estuário onde
hoje se situa o final de linha de Tubarão, exposto na comparação entre
levantamentos aéreos.
Em termos de impactos sociais, a industrialização no Brasil tem reproduzido
aglomerados urbanos marcados pela segregação residencial e pobreza urbana. Isto
porque a desvalorização do preço dos terrenos nessas áreas - que normalmente são
distantes, porém conectadas ao centro – favorece loteamentos populares muitas
vezes irregulares, bem como a ocupação de terras públicas. Além disso a
dinamização da economia nessas sub-centralidades industriais atrai diversos
trabalhadores urbanos ou rurais interessados em assumir postos de trabalho. Da
ausência quase que absoluta do Estado em promover moradia a essas populações
advém a problemática social, que define o espaço de Paripe como residência de
uma maioria pobre e propensa a auto-construção, como no caso do Bate Coração. A
ausência estatal também em nível de outros serviços básicos acaba por reproduzir a
pobreza e as péssimas condições de moradia.
No bojo dessa segregação sócio-espacial percebe-se outro fator decisivo ao
espaço urbano hoje, que é a propagação da violência urbana promovendo conflitos,
atividades criminosas e intensificação da auto-segregação e do cercamento de
espaços públicos. O que é verificado na localidade estudada, onde a apropriação
histórica das mediações da rua Sapoca, tornaram-na um logradouro mais privado do
que público, privatização essa que reduz a acessibilidade dos moradores da favela
que se desenvolve a Norte, no que tange o acesso a praia e à rua Dr. Eduardo Dotto.
Por outro lado esta apropriação garante a tranquilidade e segurança desejada pelos
moradores internos ao enclave, batizado ao longo das gerações como condomínio.
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Esse ambiente de militarização é promovido por agentes sociais que
compõem o poder público e privado, que atuam na esfera ideológica, promovendo a
sensação de insegurança, o que promove significativas mudanças no espaço urbano
associadas também a produtos do mercado de segurança, que visam promover a
vigilância de unidades residenciais de uma só família ou de condomínios, bairros,
ruas e loteamentos. De modo que esta militarização das relações sociais associa-se
à divisão territorial do trabalho compondo o quadro da auto-segregação, que se
refere nesse contexto específico ao loteamento Sapoca. Ou seja, o estudo
específico da fortificação residencial na Sapoca, revela a materialização, em Paripe,
de um fenômeno muito presente na urbanização brasileira, qual seja a auto-
segregação residencial, onde moradores privilegiados ocupam os melhores
assentamentos, mais estruturados, enquanto aos grupos sociais excluídos resultam
vertentes de morros ocupadas por meio da auto-construção, com piores condições
de mobilidade e serviços públicos.
Sem dúvidas a problemática apresentada acima é resultante de um
planejamento urbano não democrático, fortemente influenciado pelo mercado, que
impõe ao espaço urbano uma valorização diferenciada a partir da apropriação
desejada. Isso revela-se no fato de haver pouco ou quase nenhum planejamento
participativo e efetivo para as localidades em Tubarão e Paripe, fazendo com que a
população pouco tenha contribuído de forma oficial com a determinação de políticas
e programas que pudessem melhorar a qualidade da moradia e lazer para os
moradores mais pobres, diminuindo assim as desigualdades socioespaciais que
contradizem os princípios constitucionais e da legislação urbanística. A primeira
saída para a problemática exposta seria a realização de um planejamento
efetivamente participativo, que permitisse aos moradores dessas novas ocupações
residenciais opinar sobre suas carências no que tange moradia, serviços básicos e
mobilidade. Esse planejamento deveria ser acompanhado de investimento público
proporcional e de eventual desapropriação de áreas improdutivas (como a COCISA,
e o terreno da sede da antiga fazenda) para a instalação de equipamentos de
mobilidade, cultura, saúde e educação.
A falta de investimentos na infra-estrutura urbana local, revela-se por meio do
abandono de antigos prédios e terrenos, bem como pelo baixo investimento na
qualificação das vias para carros e pedestres. Essa desvalorização do solo
resultante de anos de exploração industrial das localidades sem dúvida é
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contraditória se observado o forte fator atrativo da praia local, considerada entre as
com melhor banho pela calma das águas e beleza natural da costa. Isso nos revela
a condição da área como reserva de mercado, que pode vir a ser valorizada com a
implementação de nova infraestrutura e outros empreendimentos que melhorem a
linha férrea e possibilite novas apropriações público-privadas de terrenos
privilegiados com o da Fábrica de Cimento, hoje abandonado. Apesar de não ser o
centro da discussão proposta, esta dimensão da produção do espaço urbano deve
ser considerada no estabelecimento de uma síntese sobre Paripe.
A amplitude do debate teórico e dos estudos práticos, possibilitou a
verificação dos conceitos científicos e a conclusão satisfatória desse trabalho
monográfico respondendo às questões de pesquisas grifadas sobre a cidade e a
militarização da questão urbana, contribuindo assim com uma pequena parte do
desenvolvimento da ciência no que tange o espaço urbano de Salvador.
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