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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA CARLOS HENRIQUE PINTO DA SILVEIRA A MISERICÓRDIA E OS CEMITÉRIOS: disputas pelos ritos de enterros frente à (re)organização do espaço público em São Luís (1830- 1870) São Luís 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA

CARLOS HENRIQUE PINTO DA SILVEIRA

A MISERICÓRDIA E OS CEMITÉRIOS: disputas pelos ritos de enterros frente à (re)organização do espaço público em São Luís (1830- 1870)

São Luís 2008

CARLOS HENRIQUE PINTO DA SILVEIRA

A MISERICÓRDIA E OS CEMITÉRIOS: disputas pelos ritos de enterros frente à (re)organização do espaço público em São Luís (1830-1870)

Monografia apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de graduação no Curso de História licenciatura plena da Universidade Estadual do Maranhão Orientador: Prof. Msc. Yuri Michael Pereira Costa

São Luís 2008

Silveira, Carlos Henrique Pinto da. A misericórdia e os cemitérios: disputas pelos ritos de enterros frente a (re) organização do espaço público em São Luís (1830-1870) / Carlos Henrique Pinto da Silveira. – São Luís, 2008. ...f.:il. Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual do Maranhão, 2008. Orientador: Prof. Msc. Yuri Michael Pereira Costa 1 Irmandade da misericórdia. 2. Cemitério. 3. Disputa. 4. Discurso higienista. I. Título 94 (812.1): 393

CARLOS HENRIQUE PINTO DA SILVEIRA

A MISERICÓRDIA E OS CEMITÉRIOS: Disputas pelos ritos de enterros frente à (re)organização do espaço público em São Luís (1855-1870).

Monografia apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de graduação no Curso de História licenciatura plena da Universidade Estadual do Maranhão. Orientador: Prof. Msc. Yuri Michael Pereira Costa

Aprovada em: ____/____/_____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Prof. Msc. Yuri Michael Pereira Costa (Orientador)

_________________________________________________

1ª examinador (a)

__________________________________________________

2ª examinador (a)

Em memória de Raimunda Barros da Silveira

AGRADECIMENTOS

À minha mãe, pois sem ela não estaria realizando este trabalho.

Ao professor Yuri Michel Pereira pela orientação e paciência no decorrer da produção dos

capítulos deste trabalho.

Ao meu amor Arlyndiane dos Anjos Santos pelo apoio e imensa ajuda.

A todos os professores do curso de história da UEMA, em especial ao professor Henrique

Borralho, por suas “viagens” esclarecedoras em sala da aula.

À professora Marivânia, e ao professor Josenildo, pois suas aulas foram importantíssimas para

minha formação acadêmica.

A meus colegas do curso pela amizade e respeito.

Aos funcionários da coordenação do Curso de História.

Aos funcionários da Biblioteca da UEMA.

Aos funcionários do Arquivo Público do Maranhão, pelo simpático atendimento.

Á todos que diretamente ou indiretamente contribuíram para este trabalho, minha mais

profunda gratidão.

Assim perguntamos, sem pensar.

Até um punhado de terra cobrir nossa boca Mas isso será uma resposta?

Heinrich Heine, “Lázaro” (1854).

RESUMO

Este trabalho tem por seu objetivo discutir as relações entre a Irmandade da Santa Casa de

Misericórdia com os órgãos administrativos da Província do Maranhão, assim como a política

de disputa pela construção e manutenção de cemitérios entre as irmandades religiosas da

cidade de São Luís, entre os anos de 1830 e 1870. Período de maior difusão de um discurso

médico higienista importado da Europa, que tinha como meta principal à urbanização e

higienização dos espaços das cidades, se configurando um dos grandes paradigmas das

autoridades médicas e políticas do Império brasileiro.

Palavras-chave: Irmandade da Misericórdia – cemitério – disputa - discurso higienista.

ABSTRACT

This work is your goal discuss relations between the Brotherhood of Santa Casa de

Misericordia with the administration of the Province of Maranhão, as the policy of dispute for

the construction and maintenance of cemeteries among the religious brotherhoods of the city

of St. Louis between the years 1830 and 1870. Period of wider availability of a medical

discourse hygienist imported from Europe, which had as main target for development and

cleaning of areas of cities, is setting up a major paradigms of medical and political authorities

of the Brazilian Empire.

Keywords: Brotherhood of Mercy - cemetery - dispute - speech hygienist.

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.................................................................................. 10

1. AS MISERICÓRDIAS: identidade filantrópica frente à intervenção

do governo......................................................................................................................... 16

1.1 Os leigos na fé: a organização da Santa Casa de Misericórdia em São

Luís.....................................................................................................................

16

1.2 O poder e os leigos: o governo provincial do Maranhão como

mediador de disputas........................................................................................

27

2. “MANDAI ANTES SECAR ESSES IMENSOS E IMUNDOS CHARCOS”:

espaço urbano e discurso médico higienista............................................................

34

2.1 O local da salvação: os enterros nas igrejas visto como garantia de

uma passagem segura para o além católico...................................................

34

2.2 “Nem relva para vestir o chão”: transferência dos enterros das

igrejas para o Cemitério Católico da Misericórdia......................................

38

2.3 Os ares da morte: epidemias e ritos de enterros sob o olhar do

discurso médico higienista................................................................................

45

3. OS CEMITÉRIOS: espaços de disputas e sociabilidades........................................ 55

3.1 O Cemitério dos Passos: quebra do monopólio da Irmandade da

Misericórdia.......................................................................................................

55

3.2 “Nem a ciência e nem a experiência”: disputa e concorrência entre

irmandades........................................................................................................

64

3.3 “Eis o dia de luto”: o Cemitério do Gavião no cotidiano

ludovicense.........................................................................................................

71

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 77

REFERÊNCIAS............................................................................................................... 79

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho aborda as relações da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia

com os órgãos administrativos da cidade de São Luís, atentando para a política de disputas

entre as irmandades religiosas para a aquisição de terrenos e construção de cemitérios.

Disputas estas inseridas em um contexto de emergência de um discurso médico higienizador

importado da Europa, principalmente da França, a partir da segunda metade do século XIX.

O recorte temporal escolhido abrange os anos entre 1830 e 1870, pois é nesse período

que os médicos e autoridades da cidade de São Luís começam a implementar e sistematizar

uma ordenação nos espaços públicos, nas condutas e costumes, difundindo com mais

propriedade um discurso reformista que veiculava propostas de reorganização, urbanização e

higienização do espaço urbano.

Dos espaços públicos que sofreram a intervenção da veiculação desse discurso

reformista, escolhemos os cemitérios da cidade, pois é na segunda metade do Oitocentos que

esses locais vão se destacando como referência importantíssima no cotidiano popular, após os

crescentes entraves contra os enterramentos no interior e terrenos adjacentes às igrejas

católicas.

A vinculação dos cemitérios com a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia se

sustenta pelo fato de que foi essa Irmandade religiosa, em suas relações com o governo

provincial, a instituição responsável pela construção dos primeiros cemitérios de São Luís.

Em meio às propostas de reorganização do espaço urbano, a Irmandade da Misericórdia se

colocava como reprodutora de um discurso higienista, adequando seus estabelecimentos

assistenciais como hospitais, Casa dos Expostos e o Cemitério, à legislação da Província do

Maranhão, tentando assim alinhar-se (ao menos no âmbito discursivo) ao projeto de civilidade

que se difundia nas principais cidades do Império Brasileiro.

O interesse por esta temática surgiu a partir da curiosidade de perceber as relações

sociais que permearam a construção dos cemitérios em São Luís. Obras como A morte é uma

festa: ritos fúnebres e revoltas popular no Brasil do século XIX (2001), de João José Reis

ajudaram a dar um direcionamento para a abordagem e análise preliminar dessas relações. No

livro, João José Reis trabalha com a dinâmica dos costumes associados à morte, com as

revoltas populares que acompanhavam a transferência dos enterros das igrejas para os

cemitérios e as disputas entre as irmandades religiosas envolvidas nesse contexto histórico.

No primeiro capítulo intitulado As Misericórdias: identidade filantrópica frente à

intervenção do governo, analisamos a Irmandade da Misericórdia e suas relações com os

órgãos administrativos da cidade de São Luís. Abordamos a organização dessa instituição a

partir do seu Compromisso1, utilizando também ofícios enviados pela Irmandade aos órgãos

administrativos da cidade, atentando para os discursos produzidos pelos membros da entidade

nessa documentação, entendendo esses indivíduos enquanto participantes de uma associação

vinculada às elites ludovicenses, compartilhando, portanto, de seus anseios e expectativas. A

teorização do sociólogo Pierre Bourdieu, em A economia das trocas simbólicas. (1974)

contribui para a análise desses discursos, quando trabalha com a noção de luta por

representações e identidade feita pelos agentes sociais dentro da lógica e dinâmica do espaço

social.

No segundo capítulo, “Mandai antes secar esses imensos e imundos charcos”: espaço

urbano e discurso médico higienista, tratamos da intervenção das autoridades médicas e

administrativas no cotidiano da cidade de São Luís com a difusão de um discurso higienista.

Usamos no trabalho a noção de discurso como a entende o filósofo e historiador francês

Michel Foucault (2002, p. 20), ao afirmar que os discursos são aquilo pelo que se luta,

constituindo-se como estratégias políticas de posicionamento dentro dos embates sociais.

Valendo-se das interpretações dos discursos documentados nas legislações e ofícios

produzidos pelas autoridades médicas, pelos membros da Irmandade da Misericórdia e pelos

administradores da cidade, percebemos as diferentes formas da manifestação dos discursos

enquanto estratégias de posições e legitimações inerentes às relações de poder, e também às

formas pelas quais os agentes sociais querem se apoderar desses discursos. Discursos que se

apóiam em um “estatuto de verdade” vinculado a uma instância institucional que tende a

exercer sobre outros discursos uma série de pressões e coerções (FOUCAULT, 2002, p. 17-

18).

1 Os compromissos de irmandades eram o principal documento regulador da organização e deveres dessas

instituições para com seus membros e para com os marginalizados da sociedade.

Os estudos empreendidos por Michel Foucault e Pierre Bourdieu são importantíssimos

para a teoria do conhecimento histórico, pois nos possibilitam exercer uma visão crítica sobre

o que seria a noção de poder, identidade e discurso, desnudando esses conceitos de qualquer

essência, natureza ou características universais, analisando essas noções como parte integrante

da dinâmica social e fruto de um determinado tempo histórico.

No terceiro capítulo, Os Cemitérios: espaços de disputas e sociabilidades, abordamos

as disputas entre a Irmandade da Misericórdia e a Irmandade da Santa Cruz do Bom Jesus dos

Passos pelas rendas provenientes dos ritos de enterros nos cemitérios de São Luís. As disputas

em torno da posse de terrenos para a realização desses enterros se davam em um momento de

reforma do espaço público citadino, já que uma das propostas do discurso médico, que se

colocava enquanto legitimador de uma série de atitudes higienizadoras, era o deslocamento

dos mortos do espaço sagrado das igrejas para cemitérios afastados do perímetro urbano. Esse

quadro criava novos embates, pois a prática de enterramentos dentro dos templos católicos era

uma das principais fontes de renda das irmandades religiosas, e uma das peças fundamentais

de legitimação da existência dessas instituições.

A relevância deste trabalho consiste no fato de que a maioria dos estudos sobre a Santa

Casa de Misericórdia e outras irmandades religiosas se concentram entre os séculos XVII e

XVIII, período de maior esplendor e relevância social dessas entidades. Ainda são poucos os

estudos que têm como foco essa temática, e quando existem são vistos constantemente como

mero apêndice na maioria das obras na historiografia brasileira.

Autores como Charles Boxer (2007) e Russel-Wood (1981), contribuíram com estudos

sobre a organização das Misericórdias no Império português, mas ainda pautados pelo viés de

análise que mostrava essas instituições como uma entidade essencialmente filantrópica e

autônoma, com deveres salvacionistas para com os carentes. Procuramos neste trabalho

construir uma narrativa que abordasse os interesses que faziam parte desse discurso

salvacionista, recriando as motivações de uma associação que se entrelaça com o governo

provincial do Maranhão, atuando por vezes como uma extensão deste. O livro de Caio César

Boschi, Os Leigos e o Poder: Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais

(1986) foi de grande relevância, pois é uma importante referência quando se trata da análise

das atuações das irmandades religiosas no meio urbano e as relações de poder inerentes às

articulações e disputas com os governos provinciais.

A historiografia maranhense reserva pouco espaço para análises relacionadas à

Irmandade da Misericórdia. O historiador Mário Meireles é um dos poucos autores que se

ocuparam em apontar dados para o assunto. Em Dez Estudos Históricos (1994), o autor

apresenta no capítulo oito de seu livro pequenas informações sobre a Irmandade da

Misericórdia, desde sua suposta chegada em São Luís em 1623, até os anos iniciais da

República. Trabalhos monográficos elaborados para o curso de História da UEMA e UFMA

ajudam a compor um quadro que ainda é muito reduzido.

Partindo do pressuposto que o conhecimento histórico se enquadra em uma série de

regulamentos e domínios de perspectivas e de lugares de interpretação que legitimam a

narrativa histórica como um saber com estatuto de cientificidade, usamos para a composição

deste trabalho a chamada História Social como um desses lugares de interpretação. Georges

Duby coloca a dificuldade de pensar um caráter especifico para a História Social, já que todas

as narrativas históricas estão imbricadas de um cunho social em que o homem (entendido

como ser que se forma em sociedade) constitui o objeto final da pesquisa histórica. Mesmo

assim, pode-se pensar os atributos específicos de pesquisa desse campo de abordagem como

sendo os grupos sociais, e suas relações inerentes aos modos e conflitos das formações sociais

(DUBY apud CASTRO, 1997, p. 45-46).

É importante lembrar que os campos de abordagens de que se vale a narrativa histórica

não se fecham em si, mas são campos com fronteiras tênues e fluídas. Não se pode separar as

abordagens sociais, da política, economia, cultura e do imaginário, pois, para dar conta do

entendimento da experiência humana essas perspectivas estão intrinsecamente relacionadas.

Pelo viés da História Social estamos pensando a Irmandade da Santa Casa de

Misericórdia enquanto espaço de sociabilidades, de disputas e diferenciação social, atentando

para a importância de compreender as relações, acordos e conflitos entre os vários grupos

sociais, e não só privilegiando o direcionamento de estudos dos grupos que expressam formas

padronizadas de organização, como sindicatos, partidos políticos, associações, etc., dando

enfoque às estratégias ocultas de subordinação, resistência e controle (VIEIRA et al, 2002, p.

18-19).

Para o conceito de marginalizados e excluídos sociais usamos os estudos de Jean

Claude Schimitt (1998, p. 88) onde são caracterizados como grupos que chamam a atenção

pela quantidade de pessoas alcançadas pela injustiça social, e por seu comportamento

considerado desviante das normas impostas pelos outros agrupamentos de indivíduos da

sociedade. São entendidos na pesquisa enquanto pobres livres, condenados da justiça e

escravos, que constituem parcelas significativas da formação social ludovicense do século

XIX, da qual a Irmandade da Misericórdia aparentemente dirigia suas preocupações.

A chamada História Cultural nos auxiliou neste trabalho monográfico no sentido de

entender a cultura como uma totalidade de práticas que homens e mulheres inseridos na

experiência social significam, ressignificam os sentidos criados. Só recentemente o

conhecimento histórico se desvinculou de uma noção de cultura monolítica, em que as

relações com as formas e práticas culturais seriam específicas de grupos sociais particulares,

entendidos como artistas, intelectuais e a chamada elite. Os historiadores já estão atentos à

importância da abrangência que a noção de cultura tem na vivência humana, já que qualquer

individuo nasce envolvido em um mundo repleto de signos culturais, inserindo-se como

produtor de cultura através da linguagem, gestos e demais formas de se expressar (BARROS,

2004, p. 57).

Os estudos de Roger Chartier nos ajudaram, no sentido que esclarecem em suas

teorizações que a cultura está vinculada ao mundo social e suas representações. É a partir das

relações, posições, interesses e conflitos que os indivíduos traduzem “e descrevem a

sociedade como pensam que ela é ou como gostariam que ela fosse” (CHARTIER apud

FALCON, 2002, p.74). Entendemos, portanto, que a Irmandade da Misericórdia constituía-se

enquanto uma organização que se valia de uma identidade filantrópica e religiosa, composta

pela elite ludovicense, e seus membros davam sentido às suas práticas, construindo uma

identidade vinculada a um projeto assistencial direcionado aos excluídos e marginalizados da

cidade de São Luís no século XIX, não perdendo de vista os interesses e privilégios que os

membros da Misericórdia retiravam dessa prática assistencial.

Para a teoria da narrativa histórica autores como Michel de Certeau (2007), Paul

Veyne (1988) e Keith Jenkins (2000) são importantes para lembrar que o que estamos fazendo

neste trabalho é um discurso narrativo a partir de outros discursos, que se propõe a ter um

estatuto científico e, portanto está condicionado a um lugar social.

A abordagem metodológica deste trabalho consiste na tentativa de interpretação de

discursos produzido pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia e pelos órgãos

administrativos da Província do Maranhão voltados para a regulamentação da cidade de São

Luís, entendendo a documentação na forma de Leis, Ofícios, Requerimentos, Posturas2 e

Compromissos como discursos que são produzidos historicamente e vinculados a uma

determinada região. Nesse sentido, as legislações de São Luís regulamentadas pela Câmara

Municipal são encaradas na pesquisa como um discurso de algo que se pretende e não algo

pronto e acabado, mas como noções fluídas, passíveis de adequação à realidade ludovicense.

O Compromisso da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia e os ofícios referentes à

Irmandade da Santa Cruz do Bom Jesus dos Passos, enviados ao Presidente da Província do

Maranhão são usados para estabelecer um entendimento sobre a organização e

regulamentações dessas ordens religiosas, e sua interação com os órgãos administrativos da

província, percebendo suas expectativas, necessidades e disputas em uma época em que a

relevância social dessas associações estava diminuindo.

O acervo documental usados na composição deste trabalho pode ser encontrado no

Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). No Setor de Avulsos contamos com os

ofícios de outras irmandades religiosas e da Santa Casa de Misericórdia enviados ao

Presidente da Província e os ofícios da Câmara Municipal de São Luís. No Setor de Códices

encontramos a Legislação Provincial, com as Regulamentações e Posturas da cidade No

mesmo Setor também contamos com o Arquivo da Arquidiocese, onde encontramos os

Compromissos de Irmandades.

Na Biblioteca do APEM, além do auxílio de obras raras como o Dicionário

Histórico e Geográfico da Província do Maranhão de autoria de César Augusto Marques

publicado em 1870, trabalhamos também com os jornais, O Estandarte, e o Jornal do

Comércio, selecionados para a pesquisa entre os anos de 1830 a 1870.

2 Os Códigos de Posturas foram instrumentos legislativos da administração maranhense que tinham o intuito

de regulamentar a ordenação do uso e ocupação do espaço urbano, intervindo ainda nos costumes e práticas da população.

1 AS MISERICÓRDIAS: identidade filantrópica frente à intervenção do governo

1.1 Os leigos na Fé: a organização da Santa Casa de Misericórdia em São Luís

Em suas viagens pelo litoral brasileiro entre os anos de 1817 e 1820, os naturalistas

estrangeiros Johann Spix e Carl F. P. Von Mathius registraram a imagem de uma São Luís

próspera e populosa. Segundo os naturalistas, que tinham como projeto para suas viagens

mostrar um modelo para se escrever uma “História” para o Brasil, a cidade de São Luís se

colocava no quarto lugar na hierarquia das mais importantes cidades do Império brasileiro,

ficando atrás apenas de cidades como Salvador, Recife e Rio de Janeiro (SPIX e MATHIUS

apud BORRALHO, 2000, s/p). A população da cidade contava, por estimativa do censo

realizado em 1821, com 19.611 pessoas (MEIRELES, 2001, p.215). Entre esses números,

estava uma maioria escrava, homens e mulheres pertencentes a uma elite3 política e

comerciária, além de pobres livres, indivíduos envolvidos nas mais variadas relações sociais.

Segundo Raimundo Gaioso, descrevendo a cidade por volta de 1813, São Luís tinha

seu núcleo antigo dividido entre dois bairros. Na Praia Grande, ou Freguesia de Nossa

Senhora da Vitória, a cidade contava com vários edifícios construídos que acompanhavam a

forma irregular do terreno, onde as casas se entrecruzavam com “ruas mal calçadas”. Nesse

espaço se situava a Praça do Comércio, o Palácio do Governo edificado pelo governador

Joaquim de Melo, a Câmara Municipal e a Cadeia Municipal. A Freguesia de Nossa Senhora

da Vitória contava, portanto, com um número maior de pessoas, apesar de ser menos extensa

que o bairro de Nossa senhora da Conceição (GAIOSO apud AMARAL, 2003, p.63-64).

A outra parte correspondia à Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, mais extensa

e com pequenas e esparsas povoações. Tinha como ponto mais importante o Quartel Militar

no Campo de Ourique, “um edifício na figura de um paralelogramo, edificado no tempo do

Governador Fernando Antonio de Noronha, com todas e oficinas necessárias”. Fora do limite

urbano da cidade de São Luís existiam “vários sítios de recreio e frutíferos”, com chácaras e

3 O termo elite esta sendo utilizado no sentido de enquadrar uma minoria de indivíduos que se encontram no

topo da hierarquia social, e que se apropriavam de várias formas de poder (econômico, político e ideológico) em contraponto a uma minoria dele privada (BOBBIO, 1995, p. 385).

uma enorme quantidade de espaços a serem preenchidos por edificações e pessoas nos anos

que se seguiriam (GAIOSO apud AMARAL, 2003, p. 63-64).

As mudanças que o Brasil vivenciou com a chegada da família real (1808), removendo

o estigma colonial do plano político e simbólico, seguido pelo processo de Independência

política (1822), alteraram de forma significativa a experiência cotidiana de muitos grupos

sociais existentes no país. A Independência coloca para uma elite política e intelectual,

questões relacionadas à construção de uma identidade para a nação, pautada em um signo de

civilidade importado da Europa. Readequando essa proposta de civilidade para a realidade

brasileira, as autoridades políticas implementaram uma série de medidas para a organização

do espaço citadino no intuito de obter controle maior sobre o ordenamento dos indivíduos e

de suas práticas.

Pouco a pouco essas autoridades vão afirmando um discurso de poder, controle e

vigilância sobre o espaço urbano e a vida cotidiana. Nesse cenário os intelectuais criam

simbolismos de diferenciação e identidade, em uma tentativa de mostrar um elemento de

singularidade em relação às outras províncias, exemplo disso em São Luís é a invenção do

mito de “Atenas Brasileira” e a invenção da idéia da fundação francesa da cidade (LACROIX,

2002, p. 120).

As instituições religiosas passaram por reformas, adaptando-se a uma perspectiva

regalista4 de subserviência de suas práticas ao Estado (OLIVEIRA, 1995, p. 147). A idéia de

nação, de urbanização das cidades e dos costumes adotados como civilizados são ficções

inventadas e constituídas por regras de elites letradas, visto que as instituições e grupos

sociais mantedores de relações e interações com o meio urbano se enquadravam em um

projeto maior de busca por identidade e civilidade que aos “trancos” tentava se afirmar no

Império Brasileiro.

Dentre essas instituições inseridas no paradigma de construção da nação brasileira, a

Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, enquanto entidade aglutinadora de valores e

indivíduos pertencentes à elite, adequava sua lógica a esse objetivo. Ao se manter ao lado das

autoridades provinciais na construção de hospitais, cemitérios e outros estabelecimentos de

4 Doutrina que preconiza a defesa das prerrogativas do Estado em face das pretensões da Igreja.

cunho assistencialista, e mantendo em seu discurso a preocupação com a higienização das

práticas e a urbanização dos espaços, a Irmandade se apropria e reproduz um discurso

reformista.

Desde o chamado período colonial5 a Irmandade da Misericórdia integrava a

experiência cotidiana de muitas cidades brasileiras, levando sua influência tanto para os

grupos pertencentes às elites brasileiras quanto para aqueles menos privilegiados

economicamente.

As Misericórdias eram incrivelmente numerosas e integravam várias localidades do

Império português. Por conta das particularidades desses vastos territórios, essas entidades

não se distribuíram de maneira uniforme por todas as posses do Império marítimo de

Portugal. O historiador português Nulo Gonçalo Monteiro (1993, p.308-309), ao analisar as

Misericórdias na Portugal do século XVII, afirma que apesar dessas particularidades, essas

instituições tinham como características em comum uma forte relação com os órgãos do

governo, funcionando como grandes centros de poder e influência nos círculos

administrativos do Império e dos seus territórios ultramarinos. As Misericórdias se

configuravam então como instituições fundamentais na estruturação das elites locais, e na

América Portuguesa, as Misericórdias funcionavam enquanto traduções locais de uma

entidade européia. Até o final do Oitocentos, essas características evidenciadas por Monteiro,

ainda persistiam.

Dentre as outras irmandades religiosas que se organizaram nas cidades brasileiras, a

Irmandade da Misericórdia, além de se ater aos deveres comuns que legitimavam uma

irmandade religiosa, tais como dar de comer e beber a quem tem fome e sede, vestir os nus,

visitar os presos e enfermos, abrigar os desamparados, resgatar os cativos e enterrar os

mortos, também se valia de contatos com os órgãos administrativos das cidades para a

construção de obras com aspectos assistencialistas como hospitais, Casas dos Expostos,

cemitérios, etc. (BOXER, 2002, p. 300).

Não há como negar um caráter assistencial da Misericórdia para os chamados

marginalizados da sociedade, os presos da justiça, escravos e pobres livres. Na cidade de São

5 Segundo o historiador Mário Meireles (1994 p.259), não se sabe ao certo quando a Irmandade da Misericórdia

foi criada na cidade de São Luís, especula-se que o ano fosse 1623.

Luís, a Misericórdia até a segunda metade do século XIX já tinha construído, por meio de

esmolas, doações testamentárias e subsídios do governo, um hospital, uma casa para os

expostos e para os lázaros, farmácia e cemitério (MARANHÃO, 1849, p.32-33). O ofício

redigido pelo secretário da Misericórdia ao Presidente da Província acentua bem a

reivindicação de uma identidade filantrópica.

[...] que nos Hospitais da Santa Casa fossem recolhidos aquelles miseráveis infelizes que as dês horas tivesse necessidade de soccorro medicinal por occazião d`algum repentino ferimento. Esta mesa se compraz por houverem sido os desejos e Philantrópico zelo daquelles magistrados d’a muitos annos prevenidos e satisfeitos por quanto jamais em tempo algum os membros do Hospital da Santa Casa da Misericórdia desta cidade deixarão de estar patentes a qualquer hora do dia ou da noite á pobreza desvalida, e enferma a quem hum sinistro acontecimento tenha construído na necessidade de implorar o seo socorro do que são inumeráveis os factos que se poderão refletir [...] o zelo patriótico pelo bem ser dos miseráveis indigentes, foi o que os animou a solicitar a providência requerida, e de longos anos executada, como hum dos fins primeiros deste estabelecimento (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA,1842, doc.23).

A existência desses estabelecimentos proporcionava aos membros da Irmandade

construir e legitimar uma imagem da entidade enquanto um local que voltava suas

preocupações para as carências dos indivíduos e, portanto, a inseria em um discurso

filantrópico que diferenciava a Irmandade da Misericórdia e a revestia com grande prestígio

em detrimento das outras irmandades religiosas.

Embora tivesse sido padronizada pela Coroa Portuguesa, a Misericórdia foi criada para

ser uma instituição autônoma, conduzida por homens em iniciativa particular 6. Tinha sua

própria administração, eleições, receitas e despesas que eram realizadas pelos irmãos

membros. Apesar de suas regras internas, seus membros interagiam com as entidades civis,

eclesiásticas e administrativas da cidade (RUSSEL-WOOD, 1981, p. 10).

Charles Boxer, citando o antigo provérbio português “Quem não está na Câmara está

na Misericórdia,” exemplifica bem as relações de interação entre a Irmandade e as instâncias

do poder local. Os indivíduos que procuravam visibilidade política, “viver bem, à larga, e com

liberalidade”, tinham de alcançar o cargo de vereador da Câmara Municipal ou ser irmão

6 As Misericórdias definiam-se enquanto irmandades leigas, pois não estavam diretamente subordinadas ao

poder eclesiástico, ficando sob imediata proteção régia, correspondendo-se diretamente com o rei, diferente das confrarias religiosas que deviam subserviência ao poder eclesiástico. Era o rei que aprovava os compromissos, conferia privilégios e arbitrava os conflitos existentes dentro da instituição e com outras irmandades (AZEVEDO, 2001, p.200).

mesário da Irmandade da Misericórdia. Alcançar ambas as atribuições era o ideal (BOXER,

2001, p. 299).

Ser membro da Irmandade da Misericórdia significava ser integrante de um espaço

que conferia trânsito livre para prestígio, privilégios e diferenciação social. Um lugar onde os

indivíduos pertencentes às elites podiam compartilhar anseios e preocupações comuns. Boxer

(2001, p. 305) a comparava a um “jóquei clube religioso”, onde a seleção de membros

passava por critérios de cor, “pureza de sangue” e de renda financeira.

Em São Luís, o Compromisso da Irmandade da Misericórdia de 1841 rezava que para

poder ser membro, o indivíduo deveria “ser temente a Deus, modesto e caritativo, maior de 21

anos, ter bom entendimento e saber”. Um caráter de exclusão dos indivíduos que pertenciam

às camadas ditas populares pode ser percebido nas cláusulas do Compromisso, atestando que

não seriam admitidos aqueles que não soubessem ler, escrever e contar. “Era necessário ser

abastado em fazenda, de maneira que possa acudir ao serviço da Irmandade sem cair em

necessidade e sem incorrer na suspeita do que correr por suas mãos” (COMPROMISSO DA

MISERICÓRDIA, 1841, fl. 05).

A vida do candidato a irmão-membro da Irmandade deveria ser investigada, no intuito

de confirmar se o individuo tinha faltas anteriores. Essas prerrogativas procuravam impedir o

ingresso de pessoas não afortunadas com posses de bens, validando assim a crença de que

quem não pertencia às famílias consideradas nobres pela hierarquização da sociedade seriam

mais propensos a roubos e à “indecência moral” (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA,

1841, fl. 05).

Depois de verificadas e avaliadas todas as informações pelo provedor da Irmandade, o

candidato passava por uma eleição de aprovação por parte da Mesa Administrativa da

entidade Se fosse aprovado, tinha de se submeter ao juramento que era pronunciado perante a

Mesa, e tal juramento dizia respeito ao atendimento imediato dos deveres da Irmandade para a

caridade e para a manutenção dos segredos que se desenrolavam nas reuniões. Alguns dos

trechos do juramento expõem essa preocupação: “debaixo do mesmo juramento prometto

guardar segredo em todas as cousas que diante de mim se tratarem em mesa ou em junta,

eleição ou qualquer outro acto que debaixo de segredo se fizer para o serviço de Deus e bem

da Irmandade” (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA, 1841, fl. 07).

Um membro-irmão deveria sempre estar de prontidão ao chamado do provedor,

comparecendo a todas as obrigações que a Irmandade necessitasse. Era prioridade que o

membro estivesse presente no dia da festa do Senhor São José e na Procissão dos Ossos,

ambas as comemorações realizadas pela entidade. A obrigatoriedade da presença dos irmãos

se baseava nos laços de solidariedade que conferiam identidade e legitimavam a existência da

entidade.

Era na hora da morte que esses laços de solidariedades se acentuavam. Enterrar os

mortos fazia parte das obrigações que estipulava o Compromisso da Misericórdia, e todos os

membros deveriam acompanhar de perto os ritos fúnebres do irmão falecido, dando sepulturas

para as esposas e filhos dos mesários. Enterravam em lugares privilegiados seus membros e

quem podia pagar, cedendo espaços no interior dos templos e ostentando o enterro com

estandartes e bandeiras. Os que não podiam pagar eram encontrados nas cadeias, nos poços e

estradas, e os membros iam procurar os pobres e enfermos largados na indigência e distantes

do que era considerada uma “boa passagem” para o “além”.

A “missão” que era destinada aos membros da Misericórdia, com bases na criação de

uma identidade religiosa e filantrópica, era integrar o indigente ao convívio social. O

Compromisso da Irmandade da Misericórdia, portanto, girava em torno da idéia de

religiosidade atrelada a uma missão salvacionista. Era sob esse véu religioso que os

integrantes da entidade, enquanto membros de uma associação que em suas mentes tinham a

missão de levar caridade material e espiritual aos grupos menos favorecidos, construíam e

reconstruíam suas identidades, seus propósitos e motivações (COMPROMISSO DA

MISERICÓRDIA,1841, fl.07 ).

[...] os leigos não esperam da religião apenas justificativas de existir capaz de livrá-los da angustia existencial, da contingência e do sofrimento de abandono ou mesmo da miséria biológica, da doença, do sofrimento ou morte, mas também e, sobretudo justificativas sociais de existir enquanto ocupantes de uma determinada posição na estrutura social (BOURDIEU, 1974, p.48).

Apropriando-se do discurso de Pierre Bourdieu para a temática da Irmandade da

Misericórdia, podemos compreender como a religião perpassa a experiência individual e

coletiva no que se refere às relações sociais. O culto ao redor de São José, santo protetor da

Misericórdia, legitimando a construção de um templo7 em sua homenagem e oferenda, as

procissões e os atos de suposta caridade aos marginalizados da sociedade ludovicense são

práticas que refletem a significação que os indivíduos da Irmandade davam a sua fé religiosa,

montando assim toda uma dinâmica rede de sociabilidades.

As festas e procissões marcavam essa busca constante por uma identidade que fosse

reconhecida, legitimada e estivesse em harmonia com os componentes do grupo e com os

grupos formadores da sociedade. Onde houvesse uma Misericórdia eram realizados ritos

festivos para homenagear santos de devoção ou ao culto dos mortos. Eram nesses momentos

que a Irmandade podia com mais facilidade angariar fundos para suas obras de caridade e para

o sustento da instituição. Todas as irmandades religiosas participavam das solenidades, mas o

lugar de destaque nas festividades era da Irmandade da Misericórdia, com seus membros

levando os estandartes e bandeiras com as insígnias da entidade, exibindo toda uma

capacidade organizadora, disciplinando a multidão e reafirmando a partir disso seu poder de

aglutinação de grupos (ARAÚJO, 2006, p. 164).

Essas redes de sociabilidades compõem um quadro de compreensão das relações entre

os membros da elite que compunham a Misericórdia e os outros grupos da sociedade. Vemos

a Irmandade não como um grupo isolado com suas características, regras e lógicas internas,

mas em sua interação dinâmica e constante com a sociedade da qual pertencia. Suas

estratégias de alianças, suas disputas e jogos de interesses refletem os objetivos dos

indivíduos ou dos grupos que se configuravam e se reconfiguravam ao redor dessas relações.

As eleições para mesários, os mais altos cargos da hierarquia da Irmandade, eram

realizadas perante todos os irmãos da Santa Casa de Misericórdia, a Mesa apresentava os

nomes dos candidatos que seriam votados pela administração vigente. Após a conclusão e

apuração dos resultados, tomaria posse uma nova Mesa administrativa no dia de São José,

data escolhida para as festividades da Santa Casa. Para concorrer ao cargo de mesário era

exigido que o indivíduo fosse maior de 21 anos e que tivesse em suas “características muita

probidade e inteligência” (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA, 1841, fl. 11).

7 O terreno para a construção de um templo em honra a São José foi doado por Pantaleão Rodrigues de Castro à

Irmandade da Misericórdia em 1798. Inaugurado em 1817 o templo ficou conhecido popularmente pelo nome de São Pantaleão (MEIRELES, 1994, p. 264-265).

A Mesa Administrativa englobava a Junta Definidora, que apesar de constar no

Compromisso que foram instâncias distintas, na prática tinham as mesmas atribuições.

Partiam delas as medidas que estruturavam o funcionamento da Misericórdia. Era, portanto,

obrigação da Junta Definidora:

Interpretar o compromisso e addicionar-lhe os artigos que julgar convenientes no que for de mera administração dos bens e rendas da Casa, de modo que não offenda as Leis gerais e provinciais em vigor [...] Autorisar a venda que mais vantajosa for dos bens raiz, que a Casa não poder conservar na forma das Leis existentes [...] Autorizar a compra dos bens de raiz, que forem necessários para completar o patrimônio legitimamente concedido ou tendo obtido licença do poder competente (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA, 1841, fl. 13).

As decisões que eram tomadas por uma administração não poderiam ser revogadas por

outra eleita, assim não podiam tomar decisões contrárias aos valores e interesses herdados

pela “tradição dos irmãos anteriores,” sob pena de perda do cargo e pagamento de indenização

por conta dos possíveis prejuízos (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA, 1841, fl.12).

As sessões só aconteciam se houvesse sete mesários, incluindo o provedor ou seu

representante, pois seriam nulas todas as decisões tomadas em número menor ao estipulado

no Compromisso. Os membros da Mesa tinham seus encargos distribuídos no intuito de

viabilizar a administração tanto do funcionamento interno da Irmandade, como de suas

propriedades.

Na hierarquia dos cargos da Santa Casa de Misericórdia, o provedor era tido como o

mais importante. Era esse indivíduo que convocava e presidia as sessões e colocava em pauta

todas as discussões. O secretário se responsabilizava pelos livros de registros, promovendo a

arrecadação de finanças, fiscalizando as receitas e despesas de todos os estabelecimentos e

apresentando os balanços e relatórios, além de presidir a mesa na falta da presença do

provedor (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA, 1841, fl. 14-15).

O tesoureiro era o único membro que poderia receber e distribuir as finanças da Santa

Casa. Todo domingo prestava conta das arrecadações semanais ao secretário e podia, em

casos extraordinários, convocar a Mesa, exercendo as vezes de provedor. Dentre todos os

cargos que compunham a Mesa, eram esses os de maior importância e confiabilidade na

Irmandade, era para esses três indivíduos que eram entregues as chaves do cofre com os

saldos da Misericórdia (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA, 1841, fl. 16-17).

O procurador-geral representava a Irmandade externamente nos contratos da Santa

Casa, entretanto, não podia receber dinheiro das negociações sem autorização especial da

Mesa. Os outros mesários que ficavam a cargo dos estabelecimentos da Misericórdia eram

chamados de mordomos e tinham a função de inspecionar a manutenção do Hospital de

Caridade, da Casa dos Expostos e dos Lázaros e o Cemitério, fazendo observações sobre os

empregados, limpeza do ambiente e atendimento aos hospitalizados, apresentando relatórios

do funcionamento dos estabelecimentos ao provedor (COMPROMISSO DA

MISERICÓRDIA, 1841, fl.18)

O mordomo dos presos tinha atribuições diferentes do restante dos mordomos, pois a

cadeia municipal não ficava sobre a administração da Irmandade da Misericórdia, sendo

assim, não havia preocupação com maior controle das dependências do lugar, ficando sob sua

responsabilidade “prestar aos padecentes aquelles socorros espirituais e corporais que estão

em prática convidando dois irmãos e confessores virtuosos para o ajudarem n’este trabalho,

fazendo companhia ao padecente até execução da sentença”(COMPROMISSO DA

MISERICÓRDIA, 1841, fl. 19).

Duas vezes ao ano formava-se uma comissão de exame composta pelo provedor,

procurador-geral, os mordomos dos presos e visitadores no intuito de inspecionar todas as

repartições da Santa Casa:

[...] examinando o que diz respeito a cada uma delas [...] um proveitoso exame do estado da Casa, legalidade e boa applicação das despesas e estado da arrecadação, estado das demandas, novidades que tiveram ocorridos relativamente aos contractos, fallecimento ou fallencia dos devedores e hypothecarios (COMPROMISSO DA MISERICÓRDIA, 1841, fl. 20).

As rendas da Misericórdia eram provenientes de um extenso patrimônio imobiliário.

No inicio do século XIX, a entidade passava por uma fase áurea, que acompanhava a

prosperidade econômica que a cidade de São Luís se inseria. Contava, nesse período, com

grandes doações testamentárias de pessoas pertencentes às famílias de renome da cidade, isso

em conjunto com o apoio de verbas do governo provincial, o que propiciou à Misericórdia a

acumulação de várias edificações nas principais ruas da capital.

Os edifícios voltados para a assistência de seus membros e aos marginalizados de São

Luís tinham como ponto central a Igreja de São Pantaleão, pois ao redor do templo se

localizavam as casas para as sessões da Mesa Administrativa, o Cemitério Católico da

Misericórdia, a Casa dos Expostos, o Hospício dos Lázaros e o Hospital de Caridade

(LISBOA, 1991, p.328). Além desses edifícios a Irmandade possuía, conforme balanço de seu

patrimônio em 1849, edifícios próprios e casa de aluguel na Rua da Paz e Rua Grande,

terrenos de lavras, dinheiro em caixa e escravos (MEIRELES, 1994, p. 273).

Vemos a relação intrínseca entre a Misericórdia e o meio urbano, pois no intuito de

estreitar suas relações com a administração da cidade de São Luís e obter mais rendas para

seus cofres, a irmandade se colocava como agente constitutivo na composição do espaço

citadino com a construção e manutenção de seus prédios.

Por serem responsáveis pela ereção e manutenção das igrejas e capelas, as irmandades tiveram papel fundamental na configuração do solo urbano, não apenas no que diz respeito a sua materialidade, mas também no que se refere aos encontros sociais, à demarcação simbólica da territorialidade e aos ritos católicos. As cidades expandiam-se à medida em que os fiéis procuravam embelezar os templos dos santos de devoção, alinhar, aplainar as ruas e construir resistências nas imediações da moradas de seus padroeiros (NASCIMENTO, s/d, p. 3).

Imbricada com os ritos católicos, a cidade se expandia e embelezava seus contornos, à

medida que, pelas ações dos fiéis, procurava-se cuidar de templos, cemitérios e outros

estabelecimentos. Alinhavam o patrimônio imobiliário da Irmandade a um discurso de um

projeto urbano que começa a se afirmar com mais propriedade a partir da década de 20.

Exemplo disso é percebido nas constantes requisições de auxílio financeiro ao governo

provincial para a construção e reforma de vários prédios que faziam parte do patrimônio da

Irmandade. Em 1870, o mordomo da Misericórdia encarregado pela manutenção do terreno

do Cemitério do Gavião, expõe no ofício a vantagem da reconstrução do terreno para o

embelezamento da cidade. Pronta a reforma, o terreno contava com um muro com enfeites de

ferro, calçada e cobertura para os portões, além de “bancadas de pedra e cal desde o portão da

entrada até a frente da capela”. Essas medidas de embelezamento e estruturação do cemitério

postas pela Misericórdia, tendo verbas subsidiadas pelo governo, estão concatenadas com o

objetivo de se inserir no projeto e discurso de edificar a cidade sob os ares da civilidade. “[...]

conseguia-se dar ao cemitério com alguns melhoramentos feitos n’estes últimos annos serão o

aspecto desejável e condiano do estado de andamento e civilização dessa província ao

menos o apropriado ao respeito e veneração a morada dos mortos” (SECRETARIA DA

MISERICÓRDIA,1870, doc.02) [grifo nosso]

As convergências temporárias de interesse com os órgãos administrativos e

eclesiásticos e a aquisição de um patrimônio territorial eram as estratégias básicas da

Irmandade da Misericórdia no sentido de assegurar estabilidade e reprodução de poder.

O capital e o poder político de um individuo correspondiam não apenas ao seu status, mas ainda relacionavam-se à sua capacidade de oferecer e retribuir benefícios, em um amplo esquema de trocas cuja função estruturante, no entanto verifica-se em um nível básico das relações de poder, nas negociações cotidianas, nas ações normativas regulares, nas nomeações regulares e concessões de privilégios (MARTINS, 2007, p.421).

Apropriando-se da citação da historiadora Maria Fernanda Martins, podemos

estabelecer toda uma gama de relações que faziam parte da dinâmica de sociabilidades de

poder dentro da Irmandade da Misericórdia com os outros grupos da sociedade ludovicense.

Para os que compunham as mesas administrativas da instituição, o poder econômico e

a influência política eram mais um dos pilares da diferenciação e prestígio social, pois o status

também estava ligado à capacidade que essa associação tinha (valendo-se da ajuda do Estado)

de conferir serviços assistenciais, homenagens e concessões de qualquer tipo a outros

indivíduos.

O aumento das doações e das receitas da Misericórdia entre o final do século XVIII e a

primeira metade do século XIX, é evidência tanto de um próspero alargamento da economia

da capital, quanto de maiores rendas para uma elite comerciaria, e a vontade de obter prestígio

com o status de doador. Ser doador da Misericórdia significava também ser visto como

benfeitor e zeloso pelo bem da comunidade. Quanto maior o valor da doação,

indubitavelmente seria maior o destaque e prestígio daquele que doava.

Se no âmbito simbólico, doadores mereciam grande ostentação de sua figura como

cidadãos preocupados com os pobres e desvalidos da cidade, o cargo de mesário da

Misericórdia era um posto de vital importância para a reprodução financeira e social. Não era

incomum as disputas por esse “local de prosperidade”, que se acirravam ainda mais à medida

que o patrimônio da Irmandade aumentava. Segundo Meireles (1994, p.276) citando o

Almanak do Maranhão de 1849 de autoria de Antonio Rego, as despesas com o

funcionamento de seus estabelecimentos eram cobertas facilmente com as receitas dos

próprios. Somados esses valores com as arrecadações de esmolas e os subsídios enviados pelo

governo da Província do Maranhão, a Irmandade acumulava uma renda significativa para os

padrões da época.

1.2 O poder e os leigos: o governo provincial do Maranhão como mediador de disputas

As crescentes disputas pelos cargos de mesário da Irmandade da Misericórdia eram

mal vistas por uma grande parcela da população que enxergava a Irmandade como uma

instituição que tinha o “papel religioso e fraternal” de levar (com espírito desinteressado) a

caridade aos pobres e necessitados. Esse descrédito da imagem filantrópica que a Irmandade

se esforçara em construir só aumentava à medida que as disputas pelos cargos mais

importantes (e mais rentáveis) da Misericórdia se tornavam mais acirradas.

Na obra Geografia do Maranhão: a terra, os produtos, as instituições (1822), Fran

Paxeco8 expôs que já havia muito tempo que a Misericórdia se desvirtuava de seu caráter

“puramente” assistencialista, e se envolvia com os interesses políticos das autoridades

provinciais, deixando se levar pela ganância, que segundo Paxeco era própria das interações

com a política (PAXECO apud MEIRELES, 1994, p. 275). De fato, desde o século XVIII o

protetor da Santa Casa de Misericórdia era o Governador da Capitania do Maranhão. Após as

transições políticas ocorridas com a adesão do Maranhão ao processo de independência do

Brasil, a responsabilidade de proteger a auxiliar as empreitadas da Irmandade da Misericórdia

ficava a cargo do Presidente da Província e os poderes da administração provincial se

confundiam com os da Misericórdia. Apesar disso, a Irmandade construiu uma imagem de

autonomia a partir de seus compromissos, documentos e relatórios enviados às autoridades

administrativas da cidade de São Luís.

8 Fran Paxeco foi cônsul português e fundador do Instituto de Assistência à Infância. Como intelectual, se

destacou pela escrita de livros como Maranhão: subsídios históricos e corográficos (1998) e Geografia do Maranhão: a terra, os produtos, as instituições (1922) (NASCIMENTO, 2007, s/p).

As eleições para os cargos da Mesa Administrativa da Misericórdia ocorridas no ano

de 1843 deram margem para agressões físicas e verbais envolvendo os irmãos na disputa pelo

privilégio de compor a Mesa.

Ainda estão na memória de todos as cenas escandalosas que se deram em 1843 por ocasião da eleição da mesa, cuja conquista aspiravam os diferentes lados políticos que existiam na província, cenas escandalosas não só de palavras como de vias de fato, entre irmãos e mesários (MARQUES, 1970, p. 482) [grifo nosso]. 9

Com os conflitos ocorridos nas eleições para mesários, as doações legadas à

instituição diminuíram, agravando um quadro de déficits que já vinha se desenrolando nas

ultimas décadas da primeira metade do Oitocentos. Toda a imagem construída de

organização, hombridade e preocupação com o processo eletivo dos componentes da mesa

postas no Compromisso da Misericórdia, que no âmbito discursivo validava o caráter da

Irmandade como sinônimo de uma instituição fraterna, foi posta em xeque.

Para o Vice-Presidente e desembargador Aires do Nascimento (apud MARQUES,

1970, p. 482).

“As influências políticas tem sido desde 1837 as causas primarias dos danos e dos transtornos, que há sofrido êste estabelecimento [...] ninguém mais lhe deixou legado algum de valor, sendo que alguns capitalistas até desmancharam seus testamentos feitos para cortarem esses legados a Santa Casa”.

Após os escândalos das eleições para mesários de 1843, o Presidente da Província do

Maranhão formulou outro Compromisso para regulamentar a realização de eleições para

mesários. Por esse documento o número de irmãos-membros seria ilimitado visando assim

aumentar as rendas da Irmandade. O processo de eleição seria feito publicamente, sendo

presidida pelo protetor da instituição, ou seja, o Presidente da Província. Qualquer membro

que estivesse em dúvida quanto à veracidade da apuração poderia apelar para o Juiz das

Capelas para exame das cédulas (MARANHÃO, 1843, p. 14).

9 César Augusto Marques foi um dos mais influentes médicos de São Luis, exerceu vários cargos na Província do

Maranhão, a maioria ligado às juntas médicas da cidade. Seu livro mais conhecido foi o Dicionário Histórico Geográfico da Província do Maranhão, publicado em 1870, onde expõe diversas informações sobre a Província maranhense.

O novo Compromisso da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de 1843 é

entendido como a tentativa do Presidente da Província do Maranhão de implementar um

controle e normalização das condutas da entidade, tendo como conseqüência as disputas

envolvendo as eleições de 1843. O intuito era combater a corrupção de mesários oportunistas

que se valiam do patrimônio, poder e influência da Misericórdia para alcançar posições

privilegiadas na hierarquia social.

Para assegurar esse controle, ficava estabelecido que todas as arrecadações feitas pelo

tesoureiro da Irmandade passariam pelo aval do Presidente da Província. Ficariam fixadas

assim taxas de dez mil réis de entrada e mensalidades de quinhentos réis para os irmãos, que

só poderiam se candidatar se estivessem em dias com essas obrigações. Também só eram

candidatáveis os membros que pertencessem à Irmandade em um espaço de tempo de seis

meses. Com essas medidas a administração da Província do Maranhão tinha o objetivo de

barrar mesários que se aproveitavam unicamente dos rendimentos que o cargo oferecia, sem

mostrar maiores comprometimentos com os objetivos institucionais da Irmandade. Passados

dois anos sem pagamentos das mensalidades o membro era riscado da lista de associados.

Para evitar situações prejudiciais à imagem da Misericórdia, os irmãos que fossem

“despedidos duas vezes, embora seja, por causas diversas, nunca mais pertencera a Irmandade

da Misericórdia” (MARANHÃO, 1843, p. 16).

Ficaria sob a responsabilidade da Assembléia Legislativa Provincial “nomear uma

comissão de três deputados, para executar os livros, as contas, e os trabalhos da Santa Casa de

Misericórdia”. Na tentativa de controlar as ações dos mesários essa comissão enviaria

relatórios à Assembléia Provincial “denunciando os abusos, se houverem, e propondo as

reformas necessárias, e os melhoramentos possíveis” (MARANHÃO, 1843, p.16).

Com a intervenção do Presidente da Província do Maranhão, a Irmandade não poderia

fazer qualquer transação comercial sem o consentimento da Assembléia Provincial. O

secretário da Misericórdia que ficava a cargo dos livros e contas da instituição era obrigado a

prestar contas e resultados de todos os livros para as comissões enviadas pelo governo

provincial. Os membros da Mesa Administrativa tinham de repassar rigorosamente todas as

informações referentes ao andamento das atividades da instituição.

Diante de alguma irregularidade, o Presidente da Província, exercendo a função de

protetor da Irmandade, poderia suspender por três meses o provedor e qualquer outro mesário,

“mandando logo responsabilizá-los pela autoridade competente”. As penas aplicadas aos

mesários envolvidos em alguma prática desaprovada pela administração da Província

geralmente era a suspensão de suas atividades na entidade, sendo então substituído por algum

suplente, previamente escolhido (MARANHÃO, 1843, p 17).

Se antes dos eventos de 1843, o Presidente da Província era descrito nos

Compromissos da Irmandade da Misericórdia como uma figura importante na hierarquia da

instituição, com a promulgação da Lei provincial n° 148, ele seria o árbitro das disputas entre

os irmãos e mesários. A partir de 1850 as mesas que eram eletivas passaram a ser nomeadas

pelo Presidente da Província (MARQUES, 1970, p.481).

No intuito de mudar esse quadro, a Irmandade da Misericórdia vai se tornando uma

extensão do aparelho administrativo, pois no que se refere aos dirigentes da Mesa

Administrativa da entidade, todos faziam parte dos grupos de confiança do governo. Essa

estratégia, apoiada na relação intrínseca entre a Misericórdia e o governo da Província, rendia

bons dividendos para ambas as instâncias.

O governo provincial deixava a cargo dos irmãos da Misericórdia levar adiante os

projetos de cunho assistencialista para a cidade, que teoricamente seriam obrigações do

governo, em troca a Irmandade ficava na folha de pagamento das despesas provinciais.

Contando com uma soma de 1:500$000, dada pelo poder público, renda que aumentaria nos

anos subseqüentes à década de 40, eram também doados terrenos para a construção de

edifícios para a prestação de serviços à população ludovicense (MEIRELES, 1994, p.278).

Com diminuição dos atritos pelos cargos de mesários e da influência dos partidos

políticos na disputa para gerenciar a Irmandade, a Misericórdia aumentou seu patrimônio. Sob

a tutela do Presidente da Província, a partir da segunda metade do século XIX, a Irmandade

constrói o Hospital dos Lázaros e o Cemitério do Gavião, ambos os terrenos doados com o

financiamento e apoio governamental.

Segundo o historiador Mário Meireles (1994, p.280), sob a tutela do Presidente da

Província do Maranhão a credibilidade da Irmandade aumentou, tendo doações maiores a

partir de 1855. Nos relatórios enviados ao Presidente da Província referentes às despesas e

receitas da Misericórdia, faz-se menção às “heranças e legados a receber”. Esse aumento de

credibilidade é seguido pela reforma e ampliação dos edifícios e estabelecimentos que

pertenciam ao patrimônio da instituição.

Os subsídios do governo foram importantíssimos na estruturação das obras realizadas

pela Irmandade da Misericórdia e consequentemente para a ampliação e embelezamento do

espaço urbano de São Luís. Para João Francisco Lisboa10 (1991, p. 328), a reforma da Igreja

de São Pantaleão é um bom exemplo desse embelezamento:

Não sei de arquitetura e não obstante ouso afirmar que é um dos nossos mais belos templos: as suas torres airosas, esbeltas e delgadas se arrojam gentilmente aos ares e dominam todo o Maranhão com tanta graça senhorial, que não tem essas outras moles de pedras e cal, rudes e indigestas.

Com a reforma da fachada e do interior do templo, a Igreja de São Pantaleão tornou-se

um centro importante das atividades religiosas de São Luís, tanto a procissão de Corpus

Christi como a Procissão dos Ossos tinham início e organização em torno do local do templo.

Ao Hospital de Caridade foi acrescentado outro pavimento, tornando-se um prédio de

destaque na cidade. A criação do Cemitério do Gavião em 1855 e as subseqüentes reformas

de seu terreno nas décadas vindouras, acompanharam as aprimorações do espaço urbano em

conformidade com a proposta de inserir a cidade de São Luís em um ideal de modernização e

civilidade, que abrangia outras partes do Império brasileiro.

Apesar da intervenção do Presidente da Província no funcionamento da Irmandade da

Misericórdia, a entidade ainda tentava manter uma identidade de uma associação, que tomava

suas decisões com autonomia em relação ao governo. Essa tentativa de consolidar uma

imagem de entidade filantrópica, auxiliada de longe em suas empreitadas pelo governo, por

vezes causava confusão nas atribuições e encargos de seus funcionários e membros.

[...] Que a meza da Mizericórdia informe, si o engargo do medico do Hospital da mesma Santa Casa, para que foi nomeado o doutor Allonso Faulnier de Pierre Leree por deliberação dos mesários, e é por elle exercido, tem caráter de público, ou o constitue empregado do governo do Brasil (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1860, doc. 05).

10 João Francisco Lisboa nasceu em Pirapemas, no Maranhão, em 1812, vindo a falecer em Lisboa no ano de

1863, foi jornalista, crítico, historiador, orador e político, responsável por vários folhetins, entre eles o Jornal

de Tímon.

O ofício descrito foi enviado ao secretário da Irmandade da Misericórdia que

respondeu o seguinte:

Tem a meza a informar a V. Exª. Que sendo a Santa Caza da Misericórdia um estabelecimento pio, fundado pela beneficência dos particulares, em que o governo apenaz exerce inspecção, nenhum dos seus empregados tem caracter público, e muito menos o medico que ahi exerce a sua profissão em virtude de tracto (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1860, doc.05).

As cláusulas do Compromisso da Irmandade da Misericórdia faziam menção à

contratação, pelos mordomos, de funcionários que desempenhassem serviços nos vários

edifícios de cunho assistencial para as pessoas da cidade, e muitos deles eram pagos com o

dinheiro público. Percebe-se que, com intervenção do Presidente da Província no

funcionamento da entidade, ditando as decisões dos mesários, regulamentando as eleições e

financiando a maioria de seus estabelecimentos caritativos, não se sustenta o discurso

veiculado nos ofícios da Irmandade, documentos esses que nos mostram uma associação, que

se considerava uma entidade privada, reivindicando uma identidade filantrópica e benemérita

que a caracterizou ao longo de séculos de existência em terras brasileiras. A Irmandade se

revestia e fortalecia um discurso do esforço e da “missão salvacionista” levadas por homens

pios e aos carentes da cidade de São Luís.

A segunda metade do século XIX tem em sua dinâmica uma série de transformações

na forma como os grupos sociais significavam sua existência. No que se refere às

sociabilidades, novas agremiações não-religiosas vão surgindo: grêmios literários, esportivos,

políticos, jornalistas, vão tomando espaços que antes eram das irmandades religiosas. As

impressões sobre a morte, vistas nas práticas dedicadas a “boa morte” também são afetadas

pelas mudanças de hábito e comportamentos em curso no fim do século (REIS, 1997, p. 141).

Os enterros antes realizados nos terrenos das igrejas, que eram responsáveis por boa

parte das rendas das irmandades religiosas e grande motivo para a filiação nessas associações,

já estavam sendo realizados em cemitérios a cargo da administração municipal. Nesse

cenário, as irmandades religiosas, consideradas como as bases da união de indivíduos em

torno de um ideal católico e entidade de distinção e prestígio para seus participantes, vão

perdendo importância no cotidiano das pessoas.

Uma série de questões e interesses levava as pessoas a serem membros de uma

irmandade religiosa. Aqueles que pertenciam às famílias privilegiadas economicamente

procuravam diferenciação, distinção e acúmulos de privilégios, com possibilidade de trânsito

entre os postos administrativos da cidade. Para os africanos e seus descendentes escravizados,

as irmandades negras funcionavam como um espaço de relativa autonomia para realização de

cultos, no qual os membros podiam construir uma identidade solidária a partir das eleições,

missas, funerais e assistência mútua.

Apesar de serem construções de uma elite branca como o objetivo de vigiar as

atividades desse grupo, a estratégia de construir irmandades religiosas foi apropriada pelos

escravos como um instrumento que ajudava a manter vínculos de solidariedade, de

pertencimento e recriação de identidades étnicas africanas. Os pobres e demais

marginalizados da sociedade ludovicense viam nas irmandades uma chance de “conforto

espiritual” sob as indulgências das rezas e ritos fúnebres, além de alivio físico, mesmo que

temporário, na forma de doação de alimentos, hospedagem e roupas (REIS, 1996, p. 40).

Essas combinações de interesses legitimavam a existência das irmandades, que por sua

vez, tinham como principal intuito a acumulação de privilégios e patrimônios que lhe rendiam

uma posição de destaque na sociedade brasileira. A Irmandade da Misericórdia soube, ao

longo de sua existência no Brasil, atender a vários interesses em suas relações com as elites,

poderes eclesiásticos e com os grupos carentes da cidade, nutrindo-se de variadas relações que

fortaleciam seu poder e influência.

E foram as interações e relações que os membros da Irmandade da Santa Casa de

Misericórdia mantinham com o governo que propiciou sua existência e manutenção até

meados da segunda metade do século XX, enquanto outras irmandades religiosas, que não

tiveram o mesmo apoio, foram obrigadas a encerrar suas atividades diante das transformações

na mentalidade das pessoas.

2 “MANDAI ANTES SECAR ESSES IMENSOS E IMUNDOS CHARCOS”: espaço

urbano e discurso médico higienista

2.1 O local da salvação: os enterros nas igrejas visto como garantia de uma passagem segura para o além católico

Após o processo de independência do Brasil as elites políticas, principalmente os

grupos localizados no Rio de Janeiro ligados à Corte, que se orgulhavam de se considerarem

representantes e continuadores do “refinado sistema europeu” no Brasil, tinham como

paradigma construir uma nação, tendo como referência o ideal do que estava sendo

considerado civilizado na Europa, principalmente na França. Segundo João José Reis (1997,

p. 133) os médicos fluminenses se achavam representantes das idéias iluministas e de suas

aplicações no que se referia à organização do espaço público, levando um discurso de

propostas e práticas higienizadoras para as áreas urbanas das cidades brasileiras.

Durante todo o século XIX11 o Brasil foi alvo de sucessivas epidemias. Um discurso

médico apropriando-se da busca por um modelo civilizador e do medo que as doenças

endêmicas provocavam na população, começa a afirmar práticas que iam de encontro ao

costume antigo de enterrar os mortos dentro das igrejas.

As igrejas eram instituições integradas à experiência cotidiana dos indivíduos, eram

locais familiares, que estruturavam uma série de relações de interação e sociabilidades que os

diversos grupos sociais mantinham por toda vida.

As igrejas brasileiras serviam como sala de aula, de recinto eleitoral, de auditórios para tribunais de júri e discussões políticas. Ali se celebravam os momentos maiores da vida, batismo, casamento e morte, ali no interior daquelas altivas construções coloniais, os mortos estavam integrados a dinâmica da vida (REIS, 2001, p. 172).

Com a inevitabilidade da morte física, as igrejas eram consideradas o local adequado

onde o corpo poderia repousar e sua alma fazer uma “passagem sem traumas” para o paraíso

presente no imaginário católico. Acreditava-se que cercados de imagens de anjos e santos

11 Desde o século XVI, o que viria a ser configurado como território brasileiro sofria com a presença de doenças

endêmicas e epidêmicas. O primeiro registro de epidemia de varíola foi na região da Bahia e data de 1563 (ALMEIDA, 2004, p. 232).

católicos a transição entre o “mundo material” e o “mundo espiritual” aconteceria de forma

menos dolorosa.

Morrer em embarcações no mar, ou ser largado morto no meio das estradas sem ser

enterrado era o grande temor das pessoas. A crença difundida dizia que a alma não teria

descanso longe dos entes queridos e da santidade dos espaços considerados sagrados. Pelos

testamentos12 redigidos no começo do século XIX percebemos a extrema preocupação com o

destino do corpo após a morte (REIS, 1997, p.98). A leitura dos testamentos expõe as relações

que os indivíduos pertencentes aos vários grupos sociais, e mais notadamente das elites (pois

tinham posses a legar), mantiveram entre si e com os outros, bem como a forma pela qual

esses grupos significavam seu mundo material e se relacionavam com o poder político e

econômico e a cultura católica, dentro da hierarquia social.

Até boa parte do século XIX, os testamentos permaneceram ligados aos preparativos

dos ritos de fúnebres, deixando em segundo plano questões de divisão de bens,

proporcionando aos indivíduos uma organização de práticas necessárias para o que era

considerada uma “boa morte”. Os testamentos faziam parte dos diversos mecanismos de

“salvação da alma”. Os preparativos eram referentes aos pedidos de missas, uso de mortalhas

adequadas, aos cortejos, confissões de arrependimentos, boas ações de última hora,

geralmente relacionadas à libertação de escravos, doações a irmandades religiosas e

principalmente ao local do enterro (FARIA, 1998, p. 265-266).

No início da segunda metade do século XIX, a cidade de São Luís apresentava um

relativo crescimento econômico que se refletia em sua arquitetura permeada por sobrados com

fachadas de azulejos trazidos de diversas partes do continente europeu. As casas que antes

eram feitas de barro e cobertas com palhas foram substituídas por edifícios mais firmes de

pedra e cal. A cidade já contava com a Biblioteca Pública, livrarias, gráficas, teatro e salões

de beleza que atraiam uma elite comerciária e política que imitava os gostos franceses

(ABRANTES, 2002, p. 18-19).

12 No que diz respeito a trabalhos com testamentos, uma boa referencia é o livro da professora Antonia Mota em

conjunto com Kelcilene Rose Silva e José Dervil Mantovani, Cripto Maranhense e seu legado (2001). Nessa obra os autores transcreveram uma série de testamentos, particularmente em São Luís entre 1676 a 1799.

A relativa prosperidade econômica favoreceu que famílias abastadas enviassem seus

filhos para serem educados nos países europeus, principalmente Inglaterra e França. Esses

estudantes tinham suas idéias influenciadas pelo estilo de vida europeu, e ao retornar à cidade

de São Luís tentavam adequar as novas idéias, hábitos e costumes aprendidos no exterior a

realidade local. Esse requinte que as elites ludovicense adotavam contrastava com uma cidade

que sofria problemas sociais como falta de infla-estrutura e de uma política de higienização

direcionada ao espaço público, ou seja, carência em abastecimento de água, de redes de

esgotos, iluminação, transportes e saúde pública (PALHANO, 1988, p. 142).

O paradigma civilizatório seria a grande busca dessa geração. O aumento da

população e a conseqüente ocupação dos terrenos impunha a necessidade de ordenação do

ambiente urbano. Já que estava na pauta de preocupações dos administradores, a estética e

limpeza da cidade, começando de forma mais sistematizada a intervenção do governo nos

espaços de intersecção entre o público e o privado. Ruas, becos praças, monumentos, igrejas,

cemitérios, edifícios privados, comportamentos e hábitos teriam de se enquadrar no esforço

civilizatório (ABRANTES, 2002, p.16-20).

A partir de meados do Oitocentos a cidade de São Luís contava, segundo estimativa de

Candido Mendes, autor do Atlas do Império do Brasil, com uma população de 35 mil

habitantes (MEIRELES, 2001, p. 216). Essa crescente população tinha seus enterros

realizados dentro dos terrenos próximos, ou de acordo com a condição econômica dos

indivíduos na hierarquia social, no interior das igrejas, contudo, mesmo dentro dos templos

religiosos havia uma hierarquização dos ritos de enterros. Para separar os mesários da

Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, autoridades políticas e eclesiásticas e os que

detiveram certo prestígio e poder econômico do restante dos indivíduos pobres, enfermos e

escravos, foram construídos os chamados “carneiros”, catacumbas individuais que geralmente

se localizavam nas paredes do subsolo das igrejas (REIS, 1997, p.128-129).

Em 1828, a Lei Imperial de Estruturação Municipal coloca, pelo menos no papel, a

preocupação com a urbanização e medidas higienizadoras para a organização do espaço das

cidades. Pelos pressupostos do discurso reformista aplicável em todo Império, os indivíduos

da cidade de São Luís teriam de se enquadrar em uma série de regulamentos para acompanhar

as medidas de urbanização que se afirmavam em outras localidades do Brasil.

No século XIX, o poder que se exercerá na vida cotidiana [...] será constituído por uma rede fina, diferenciada, contínua, em que se disseminam as diversas instituições da justiça, da política, da medicina, da psiquiatria. E o saber que se irá se produzir sobre este cotidiano tem a pretensão da neutralidade, da objetividade, da cientificidade [...] O costumes passam a ser pensados como fatos da civilização, ao lado dos fatos técnicos, das idéias religiosas e dos conhecimentos (ALBUQUERQUE JR, 2005, p. 122).

Entre os anos de 1855 e 1869 existia uma preocupação crescente das elites

ludovicenses de se inserirem em um projeto civilizador, revelada nas Leis e Posturas relativas

à organização do espaço citadino. Em adequação a essas novas propostas os proprietários

teriam de reformar os terrenos que estivessem em estado de abandono, sendo notificados a

manter os espaços “cercados por muros de taipa ou mais adequadamente de pedras e cal

rebocados.” Exigia-se limpeza dos terrenos “sendo obrigados a consevalo-os sempre

capinados ou limpos de outra qualquer imundícias”. Os artigos das Posturas mencionam a

obrigação dos proprietários embelezarem suas fachadas, colocando vidros nas janelas de seus

prédios, proibindo-se “ainda assoar roupas nas janelas e praças da cidade”(SÃO LUÍS,1864,

art. 1º-3º).

Seguindo a tendência normatizadora do espaço público, os ritos fúnebres teriam de se

inserir em um jogo de adequação e ressignificações diante das mudanças vindas com a

transferência dos enterramentos das igrejas para cemitérios afastados dos limites das cidades,

mudanças que se inseriam nas dinâmicas das propostas reformadoras do espaço urbano.

Os primeiros entraves postos aos enterramentos nos recintos das igrejas datam do final

do século XVIII. De acordo com César Augusto Marques (1970, p.192) em 1788 o capitão

general Fernando Perreira Leite de Foios em ofício à Câmara Municipal de São Luís

manifestou a seguinte preocupação:

Como a todos os corpos se dão sepulturas no estreito recinto do adro da matriz da mesma capital, sucedendo encontrar-se ao abrir das sepulturas vestígios de não estarem bem consumidos os cadáveres. [...] em vista da presente epidemia de bexigas em que se têm perdido infinitas pessoas, elegessem um cemitério, e cerca-lo de madeira, ficando em estado de se poder benzer e habitar para sepultura de católicos.

Tal preocupação não passou de uma reivindicação diminuta frente a um costume tão

arraigado na tradição e crença católica, difundido principalmente pelas irmandades religiosas

que lucravam muito com as vendas de lugares privilegiados dentro de seus templos para

realização de enterramentos. Mesmo assim as discussões em torno da idéia da construção de

um cemitério aumentavam à medida que crescia a preocupação com as possíveis

contaminações que os ares das igrejas poderiam causar às pessoas.

2.2 “Nem relva para vestir o chão”: transferência dos enterros das igrejas para o

Cemitério Católico da Misericórdia

Em 1805, a Câmara Municipal de São Luís cedeu um terreno para o funcionamento de

um cemitério sob a administração da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia. O Cemitério

Católico da Misericórdia13, como foi denominado, vinha com a proposta de atender às

exigências das legislações que proibiam “expressamente que continuasse a enterrar nos largos

das igrejas e beira das igrejas e beira das estradas, como até aqui se fazia” (MARQUES, 1970,

p. 193).

Por força do costume de manter os enterros nos terrenos das igrejas, o Cemitério

Católico da Misericórdia foi relegado ao abandono, ficando “em completo desprezo, servindo

até de pastoradouro aos animais e todo o edifício em ruínas e indecência” (MARQUES, 1970,

p. 193). A Irmandade da Misericórdia tinha seus interesses voltados para a arrecadação de

finanças pelos enterros realizados dentro da Igreja de São Pantaleão e nos espaços adjacentes

ao templo.

João Francisco Lisboa (1991, p. 329) também acrescenta um depoimento referente ao

público a que era destinado à construção do Cemitério:

Ia só gente mais humilde e desamparada da fortuna, os escravos, a quem os senhores e parceiros não queriam ou não podiam dar mais honrada sepultura. Havia ali um espaço reservado para os pagãos ou pretos novos, que os traficantes da Costa d’África nos traziam, então cada ano aos milhares, e que aos milhares também escapam à escravidão pela morte.

13 A edificação do Cemitério Católico da Misericórdia tinha em seu intuito substituir o chamado Cemitério

Velho, também instituído pela Irmandade da Misericórdia no século XVII e localizado onde atualmente é a Rua de Nazaré, ao que parece foi o primeiro cemitério da cidade de São Luís. Além desse terreno existia o Cemitério Municipal erguido pela Câmara Municipal, onde hoje está localizado o Canto da Viração (MEIRELES, 1994, p. 265). É discutível se esses locais tiveram grande fluxo de enterramentos, visto que o costume de sepultamento nas igrejas fazia parte dos mecanismos de uma “boa morte” e as primeiras proibições contra os enterramentos nos templos datam da década de 20 do século XIX.

Entre os anos de 1820 a 1830, no Cemitério Católico da Misericórdia foram sepultados

apenas 14 indivíduos, um número pequeno em comparação com os enterros na Igreja Nossa

Senhora do Carmo, com 155 sepultamentos, na Igreja Nossa Senhora das Mercês com 83

sepultamentos e na Igreja de Santo Antônio com 88 sepultamentos. (COE, 2005, p. 53).

Com a Lei Imperial de 1828 a Misericórdia teve de adequar seu Cemitério às

exigências da legislação, começando com uma reabilitação do terreno. Em ofício datado de 15

de janeiro de 1831, a Irmandade apresentava o Regulamento para o novo Cemitério Católico

da Misericórdia. Por esse documento pretendia-se levar a cabo uma normatização dos ritos de

enterros no que se refere ao funcionamento de seu Cemitério.

No Regulamento percebe-se de imediato a preocupação com práticas higienizadoras

que seriam usadas no cotidiano do Cemitério. A cada sete meses o terreno seria reparado de

algum dano que por ventura sofresse. As entradas e saídas do local “teriam de ser pintadas

para conservação e asseio da madeira, ferros e ornamentos”. Ao capelão ficaria a

responsabilidade da limpeza dos livros de registros do Cemitério (REGULAMENTO DO

CEMITÉRIO DA MISERICÒRDIA, 1831, fl. 01).

Tudo deveria ser tomado nota, as despesa e receitas ficavam em um livro que era de

inteira responsabilidade do capelão e logo depois averiguadas pela Mesa Administrativa da

Misericórdia, que recolhia as arrecadações para os cofres da Irmandade. Para as despesas, o

capelão tinha de fazer requisições por escrito ao procurador geral da entidade, sendo que essa

conta seria de responsabilidade da Mesa Administrativa (REGULAMENTO DO

CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA, 1831, fl. 01).

Todas as tardes ficavam seis sepulturas abertas, com cinco palmos de fundo, atitude

em conformidade com as preocupações dos médicos de enterrar os corpos o mais rápido

possível para que não houvesse contaminação de doenças provenientes da exposição ao

cadáver. Nos enterramentos também seriam usados “cal empaneirada para botar com água nos

caixões (se não trouxerem de casa) e sem isso não consentirá entrar caixões nas sepulturas”

(REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA, 1831, fl. 06).

Os cuidados com a manutenção do Cemitério são reforçados a cada artigo do

Regulamento. Os africanos escravizados eram postos no trabalho de concerto da estrutura do

terreno, “retirando pedras que forem aparecendo nas covas [...] tendo tudo ao redor capinado e

varrido, tratarão das plantas e flores, reformando as que forem precisas e no tempo neceçario

serão molhadas duas vezes ao dia” (REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA

MISERICÓRDIA, 1831, fl. 06).

São emblemáticas as cláusulas do Regulamento que tentam fazer do Cemitério um

local de aceitação pública. O embelezamento e as medidas higiênicas propostas no documento

tinham o intuito de apresentar um lugar aceitável para a população não escrava que teria de se

sujeitar aos enterros no Cemitério14. Nesse sentido o documento expõe “que no serviço ou

qualquer ajuntamento dentro do cemitério se conservara o maior silêncio e decência para

merecer do público atenção e respeito” (REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA

MISERICÓRDIA, 1831, fl.05) [grifo nosso].

As reformas propostas para o terreno não passavam apenas pela questão da

higienização do espaço e padronização dos ritos de enterros, mas também pela preocupação

de sacralizar o local do Cemitério.

O Regulamento para o Cemitério faz referência a essa preocupação:

Segundas feiras as oito horas da manhã dirá huma missa pelas almas dos que estiverrem sepultados no cemitério, e ás seis para as sete horas da tarde no mesmo dia, com seo sacristão e povo que ajuntar, rezará na capella a novena das almas, tudo com muita decência e seriedade (REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA,1831,fl.05).

O Cemitério Católico da Misericórdia deveria ser encarado como um local que

remetesse à sensação de segurança, no intuito de certificar uma passagem tranqüila e certa

para o “paraíso” presente no imaginário católico. Para consolidar o Cemitério como uma

referência no cotidiano das famílias ludovicenses, devia-se no âmbito simbólico e discursivo

apropriar-se da “essência sagrada” das igrejas para esses terrenos. Isso só seria possível

14 As propostas para o fim dos enterramentos nas igrejas do Rio de Janeiro foram seguidas de protestos verbais

por uma parte dos eclesiásticos e por membros das irmandades, reivindicavam a manutenção da tradição católica e acusavam as reformas de anti-religiosas e atéias. Em Salvador no ano de 1835 os movimentos a favor dos enterros nos templos tiveram um cunho mais violento, com indivíduos pertencentes a vários grupos sociais saindo às ruas para protestar contra o funcionamento do cemitério, com esse protesto a população conseguiu adiar a proibição de sepultamento nas igrejas por mais 20 anos. Esse movimento foi conhecido como Cemiterada (REIS, 1997, p.135,139). A documentação usada nesta pesquisa e os autores estudados não faziam referência a protestos em São Luís contra a proibição dos enterros realizados nos terrenos das igrejas. Para mais informações da Cemiterada, Cf. REIS, 2001.

incorporando aspectos das simbologias católicas15 que permeavam os templos e inserido-os

no Cemitério. Daí a importância das orações, da construção de uma capela para os ritos de

enterros e da figura do capelão.

No Regulamento o capelão é tido como o cargo de maior importância para a

administração dos deveres religiosos do cemitério. Para o funcionamento dos ritos, o capelão

poderia apelar para a Mesa Administrativa da Misericórdia a admissão de empregados, entre

eles estava o sacristão, tido como braço direito do capelão nas realizações dos ritos religiosos,

auxiliando também na limpeza dos objetos usados na missa (REGULAMENTO DO

CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA, 1831, fl. 08).

Além daqueles que se ocupavam dos ritos religiosos, o Cemitério contava com

homens que realizavam o trabalho de manutenção do espaço físico de seu terreno. Seriam eles

o porteiro e quatro escravos forros, alugados ou pertencentes à Irmandade da Misericórdia. Os

escravos teriam de morar dentro do Cemitério, tendo seus serviços subordinados à apreciação

do porteiro, que por sua vez prestava contas para o capelão e para a Mesa Administrativa

(REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA, 1831, fl.04).

Os negros escravizados tinham seus hábitos e condutas vigiadas de perto pelo porteiro,

e tinham de estar de vestes padronizadas. “Quando ordenados deveriam os quatro negros de

capa e calças pretas [...] buscar o corpo onde o portador do bilhete for mostrar [...] o dito

porteiro examinará se os negros conduzem com seriedade e decência pública”

(REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA, 1831, fl. 04).

O Regulamento do Cemitério Católico da Misericórdia se configura como uma série

de regras e medidas para o funcionamento do terreno de forma considerada adequada pelas

autoridades engajadas em uma proposta de organização do espaço público. Mesmo

apresentando um discurso reformista posto no Regulamento de 1831, as possíveis mudanças

na estrutura do Cemitério, não foram sentidas como medidas de aproximação de um modelo

de civilidade que a capital do Maranhão queria se enquadrar. Em folhetim veiculado no Jornal

15 Usamos o nome Cemitério Católico da Misericórdia, para acentuar o caráter do terreno ligado ao catolicismo,

pois existia também um cemitério em São Luís reservado para os chamados protestantes, que foi criado por iniciativa de Robert Heskerth, primeiro-cônsul britânico nomeado para a Província do Maranhão. Chamado popularmente de Cemitério Inglês, se localizava nos terrenos em frente à Igreja de São Pantaleão (MARQUES, 1970, p. 199).

O Publicador Maranhense de 1851, João Francisco Lisboa (1991, p. 329) mostra suas

impressões sobre o Cemitério Católico da Misericórdia:

Penetrei o recinto consagrado; o âmbito estreito, as catacumba empilhadas algumas delas rasgadas e esbroadas, o chão nu, escavados e removidos todo de fresco, denotando a precipitação com que prematuramente se arrancam á terra os seus despojos, ofereciam um espetáculo de desolação e miséria, que me contristou no íntimo d’alma. Nem relva para vestir o chão, nem sombras protetoras e amigas-Apenas algumas raras plantas, poucos arbustos pelados e encolhidos, três ou quatro gravatás e outros tantos tristonhos mandacarus, espectros vegetais, que se estendem os longos braços nus, como ossos sem carne.

O relato de Lisboa no folhetim traz uma perspectiva diferente da apresentada na

proposta do Regulamento assumido pela Irmandade da Misericórdia. O jornalista denuncia

todo o desleixo com que a entidade tratava o terreno do Cemitério.

A escrita de João Francisco Lisboa é pautada pela descrição irônica e bem humorada

dos costumes sociais da cidade de São Luís. Atravessado por pressupostos duais de bem e

mal, civilização e barbárie, seu discurso se propõe a mostrar um mundo de falsas aparências

que as elites ludovicenses tentavam simular (SOARES, 2002, p. 6-7). Lisboa desmistifica

toda a pretensa imagem de organização do Cemitério Católico da Misericórdia vista no

Regulamento da Irmandade:

De ambos os lados da capela, e arrimadas a elas, estão duas casinhas abertas, à feição de varandas que, ao que me pareceu, serve de morada aos escravos tumbeiros e coveiros, e de armazém ao mesmo tempo dos instrumentos e utensílios do seu lúgubre oficio. Ali vi confundidos e de envolta, os aparelhos da vida e da morte, fogões apagados, tições dispersos, panelas e caldeirões, meaçabas, cofos de roupas dos negros, ferros de cavar, tumbas, padiolas, e a cal que devora os cadáveres. (LISBOA, 1991, p.330)

Sua escrita mostra um terreno sem estrutura suficiente para atrair ou convencer

visualmente as pessoas que o terreno era seguro, do ponto de vista da crença católica nos

espaços sagrados como passagens para o “paraíso”. Para ter aceitação o Cemitério também

deveria apresentar-se adequado para os indivíduos das elites ludovicense que tinham seus

sepultamentos realizados com toda pompa possível e em lugares destacados dos templos

católicos.

Na tentativa de dialogar com o discurso médico, que propunha a reforma

higienizadora dos espaços urbanos, os membros da Misericórdia, por meio de práticas

também reformistas regulamentadas em seus compromissos, regulamentos e ofícios

produzidos para as autoridades administrativas da cidade, reproduziam e se legitimavam

enquanto participantes de um projeto civilizador.

Os entraves postos pelas legislações para a continuação dos enterros nas igrejas

obrigavam parte significativa da população a ter seus enterros feitos no solo do Cemitério. As

mesmas diferenciações que existiam na “cidade dos vivos” se reproduziam na “morada dos

mortos”, já que o Cemitério contava com uma parte de seu terreno reservados para os enterros

dos indivíduos detentores de rendas mais elevadas.

Em suas observações Lisboa (1991, p.330) noticia a existência de alguns túmulos que

foram de pessoas que faziam parte de famílias de pessoas mais abastadas:

Notei a sepultura de uma mulher e três filhinhos [...] ceifados pela peste [...] a cova, cercada em torno de uma paredinha branca e de grades verdes, estava pintada, iluminada, e ornada de vasos de flores e verduras; à cabeceira sob um dossel de seda, um crucifixo, e aos pés, em mostradores envidraçados, as madeixas, vários objetos do uso e alguns lavores das mãos dos diletos finados.

Os médicos que tanto defendiam o fim do costume dos enterros na igreja também

tinham seus entes queridos enterrados no Cemitério. Citado por Lisboa no folhetim, o doutor

Soares16, médico influente da capital teve sua filha enterrada no terreno do Cemitério e em

sua homenagem ergueu um mausoléu de mármore branco. Mesmo tendo indivíduos de

famílias privilegiadas enterradas no terreno, pelos depoimentos de Lisboa percebe-se um

chocante contraste entre os espaços do Cemitério. Túmulos com epitáfios feitos de ouro e

mausoléus de mármore branco em meio à desolação do terreno sem “nem relva para vestir o

chão”, cruzes mal fincadas e covas rasas para a “morada final” dos mais humildes (LISBOA,

1991, p. 329-330).

De acordo com Lisboa até o aspecto sagrado do terreno era deixado em desleixo. O ato

de construir ornamentos religiosos e uma capela para que se rezasse em favor dos mortos

estaria em conformidade com a necessidade de apresentar o terreno para o público mais

abrangente que teria seus enterros realizados no Cemitério. A sacralização do terreno com

16 O doutor Soares é citado por João Lisboa (1991, p. 331) como sendo pai do ministro de estrangeiros, o

visconde d’ Uruguai, acredita-se que tenha sido um membro respeitado e distinto da sociedade da época pelo destaque que Lisboa faz do doutor no folhetim.

imagens dos santos católicos tornaria mais aceitável o “incômodo espiritual” de ser enterrado

fora do terreno das igrejas.

Pelo Regulamento que normatizava o funcionamento dos ritos de enterros, uma das

principais preocupações dos mordomos do Cemitério dizia respeito aos atos religiosos,

mostrando o zelo dos funcionários com a decoração da capela. João Lisboa (1991, p.330)

relata um quadro diferente do exposto no Regulamento ao colocar que “no fundo do cemitério

está à capelinha, onde se encomendam os corpos; notei apenas a imagem do redentor

crucificado: quanto mais, as paredes e o altar estão despidos de todo e qualquer ornato e

decoração”.

Pelo discurso de João Lisboa se percebe que a estruturação dos cemitérios com

objetivo de levar os enterros para longe do espaço citadino e os cuidados com a higiene e a

sacralização desses terrenos não eram concretizados para além dos projetos e regulamentações

registradas nos papeis da entidade. O ato de construir uma regulamentação para a

normatização do Cemitério revela muito da teatralização de práticas e medidas dos grupos da

elite que fizeram parte da mesa administrativa da Irmandade da Misericórdia desejosa em se

inserir em um projeto civilizador.

Desde 1846 com a Lei provincial nº. 225 “fica proibido, depois de construído os

cemitérios o enterramento de pessoas no recinto das igrejas.” Por essa lei as punições para

quem não cumprisse as determinações se estenderiam não só aos populares, mas também a

todas as autoridades, sendo elas eclesiásticas ou de outra ordem (MARANHÃO, 1846, p. 44).

Para o entendimento deste trabalho, nos apropriamos de um dos aspectos das

legislações, no caso, a implementação de normatizações de condutas desviantes do que se está

considerando e se afirmando enquanto “correto” em dado momento histórico. Sendo assim as

leis são encaradas como construções discursivas daquilo que se propõe e não de algo pronto e

acabado e posto em funcionamento assim que é formulada. Nesse sentido entende-se a

necessidade da Câmara Municipal de São Luís em editar Posturas de tempos em tempos

reafirmando as obrigações e punições referentes ao ordenamento do espaço urbano.

Mesmo com a vigência da Lei nº. 225 os enterramentos nas igrejas prosseguiam, pelo

menos para as pessoas integrantes das esferas políticas e indivíduos pertencentes às camadas

mais privilegiadas da sociedade ludovicense. Assim, no artigo 1° da Postura da Sala da

Câmara Municipal de 14 de agosto de 1855 foi concedido ao então Presidente da Província do

Maranhão Eduardo Olimpio Machado17, que seu corpo fosse enterrado na Catedral da Sé e

acrescenta: “Esta disposição se estenderá a todos os presidentes desta província, que por

ventura houverem de fallecer durante o período de sua administração, até quando durarem as

honras que lhes cabem ainda depois de deixarem à administração” (SÃO LUÍS, 1855, Art.1º-

2º).

Eduardo Olimpio Machado, enquanto foi Presidente da Província do Maranhão,

assinou a maioria das disposições referentes à proibição de enterramentos dentro das igrejas,

mesmo assim para seu “descanso final” não abriu mão de ter seu corpo sepultado dentro de

uma das igrejas da capital. Além dos templos serem considerados portais para o “paraíso”

católico, eram lugares familiares onde os indivíduos partilhavam todos os ritos de passagens

pela vida. Ainda persistia no plano simbólico a imagem dos templos enquanto espaços de

proteção para as almas e, portanto, preferidos como locais de enterros por indivíduos

socialmente privilegiados, sendo ainda locais que remetiam a prestígio e diferenciação que

legitimavam as hierarquias sociais no “plano terreno”.

2.3 Os ares da morte: epidemias e ritos de enterros sob o olhar do discurso médico

higienista

Entre as décadas de 50 e 60 do século XIX, o território brasileiro foi assolado de

forma mais intensa por sucessivas epidemias. Decorrentes da falta de saneamento básico nas

cidades brasileiras, essas doenças não se restringiam aos grupos sociais menos privilegiados

no que se refere à qualidade de vida, pois as elites brasileiras se viram também afetadas pelos

sintomas e mortalidade que as epidemias traziam (REIS, 1997, p. 140).

Em várias localidades do Império brasileiro as epidemias desestabilizaram o cotidiano

das pessoas. As famílias detentoras de posses abandonavam as cidades buscando fugir dos

efeitos destrutivos das doenças e aqueles que não podiam abandonar seus lares tinham de

conviver e tentar sobreviver aos sintomas.

17 Eduardo Olimpio Machado nasceu na Bahia, assumindo o governo do Maranhão em 5 de junho 1851, vindo a

falecer em 14 de agosto de 1855.

Com as repercussões da febre amarela no Rio de Janeiro em 1849, o governo Imperial

começou a intervir nas questões referentes à saúde pública de forma mais sistematizada e

abrangente. Para construir a imagem de uma nação civilizada e salubre, as epidemias

deveriam ser extirpadas (ALMEIDA, 2004, p. 233).

Doenças como a febre amarela causava um número maior de vítimas entre a

população estrangeira aportada no Brasil, dificultando tanto as relações comerciais como o

projeto de imigração que tinha entre um dos seus objetivos:

Substituir o trabalho negro e mestiço e pobre pelo europeu, o que significava, a médio e longo prazos, a possibilidade de embranquecer a população, notadamente as camadas mais populares. Junto a isso, intentava-se pretensamente prover essas camadas populares brasileiras, no mesmo prazo, de certa cultura, de valores, de práticas religiosas à moda européia. Os imigrantes italianos, portugueses e espanhóis, de tradição católica, eram os preferidos, mais também chegaram em grande quantidade os alemães e, mais tarde, os japoneses. Era o perfil populacional e cultural que se queria para o Brasil do futuro século XX (PAIVA, 2002, p. 67).

É fundamentada na preocupação de tornar o país atrativo para os estrangeiros que as

políticas imperiais para higienização e urbanização do espaço público vão se impondo de

forma mais concreta.

Em São Luís, com a grande quantidade de mortes por conseqüência da epidemia de

varíola em 1855, o temor da morte se abateu entre os populares. Famílias carentes que tinham

seus membros atingidos pela pestilência, deixavam seus corpos para os escravos da

Misericórdia recolhê-los e o enterro deveria ser realizado o mais rápido possível para não

haver perigo de contaminação. O badalar dos sinos das igrejas foram proibidos, com exceção

da Catedral da Matriz e da Igreja de São Pantaleão, pertencente à Irmandade da Misericórdia.

A Lei provincial, regulamentava o “dobrar dos sinos pelos defuntos, devendo os sinais ser

breve e distinctos, e em número de nove por homens, seis por mulheres, e três occasiões

differentes: na do falecimento, na ocasião de ser levado o corpo a enterrar, e quanto o

sepultarem” (MARANHÃO, 1850, p. 32-33).

Ao que parece a lei não teve êxito, levando o Jornal O Estandarte a protestar contra as

práticas que colocavam em evidência os ares da morte: “Ainda não houve uma auctoridade

que mandasse cessar [...] os dobres dos sinos; nem os acompanhamentos e encomendações

dos defunctos em altas vozes, nem desviar sobre os enfermos o expetaculo da extrema-unção,

morte e mortalha” (O ESTANDARTE, 1 de fevereiro de 1855, p. 03).

Com a população assustada com a grande mortalidade trazida pela varíola, primava-se

pelo silêncio dos sinos e das vozes que anunciavam o inevitável destino dos enfermos.

Deveria se afastar toda lembrança da possibilidade da morte no intuito de diminuir o temor

que se abatia sobre a cidade.

O número de vitimas18 da epidemia de varíola, foram suficientes para interditar o

Cemitério Católico da Misericórdia. O estado calamitoso do terreno se agravou ainda mais

com a série de enterros aumentados pela doença.

Fica proibida a inhumação de cadáveres no cemitério da Santa Casa da Misericórdia desta cidade durante o espaço de cinco anos [...]. Em quanto se não procede á construção de um cemitério provisório terá lugar a inhumação no cemitério á cargo da irmandade do bom Jesus dos passos, cuja permissão será previamente solicitada [...]. a junta de hygiene publica desta cidade passará quanto antes a tomar as medidas hygienicas necessárias para o desinfectamento do cemitério da Santa Casa e indicar o lugar mais conveniente para o estabelecimento de um novo cemitério (MARANHÃO, 1854, p. 173).

Antes mesmo da interdição do Cemitério Católico da Misericórdia a Irmandade já

tinha, por meio de pedidos à Câmara Municipal, adquirido um terreno para construção de um

novo cemitério. Doado por Januário Martins Pereira, o terreno se localizava “em uma chácara

em um lugar chamado Gavião”, e foi posto em funcionamento em 6 de setembro de 1855

(MARANHÃO, 1856, p. 32).

Diferente do Cemitério Católico da Misericórdia, que tinha seu terreno em conjunto

com a Igreja de São Pantaleão 19 (LIMA, 2002, p. 160), o Cemitério de São José ou do

Gavião, como ficou conhecido, se colocava para os médicos e autoridades como um exemplo

18 Segundo César Marques (1970, p. 194), o total de mortos pela varíola entre os meses de janeiro e abril de 1855

foi de 677, esse número somado a quantidade de sepultamentos desde sua criação em 1805, propiciou a saturação e conseqüente interdição do terreno do Cemitério Católico da Misericórdia em 1855. Os dados apresentados por Marques no que dizem respeito aos enterramentos no Cemitério são discutíveis, sua estimativa é que entre os anos de 1805 e 1831 foram enterrados um total de 17.420 pessoas, soma exagerada se levarmos em conta o costume da realização de enterros nas igrejas, e que entre esses anos os indivíduos que eram enterrados no Cemitério eram africanos escravizados recém chegados a São Luis e pobres indigentes.

19 O Cemitério Católico da Misericórdia estava localizado onde atualmente corresponde ao terreno do Hospital Djalma Marques, conhecido popularmente como Socorrão I (LIMA, 2002, p. 159).

a ser seguido. Ficando fora dos limites da cidade, seguia as especificações das juntas médicas

ávidas por colocarem em prática as idéias higienizadoras.

Em quanto ao Cemitério da Misericórdia, o que diremos nós? Ocupando umas das mais belas posições topográficas, construído debaixo de tôdas as condições higiênicas, colocado sobre um terreno onde abundam matérias calcárias e com um sistema de enterramentos sofrivelmente bom, seria absurdo da minha parte o acreditar que ele seria prejudicial à salubridade pública (José Maria Farias de, 1 de Maio de 1854. apud: MARQUES, 1970, p. 197).

O corpo de idéias que dava sustentação ao discurso médico, tinha sua origem na vasta

literatura médica francesa. Era desses estudos que os médicos brasileiros tiravam suas

preocupações e anseios, justificando assim as reformas higienistas para o espaço urbano.

Por essa literatura, muito comum nos círculos de médicos do Oitocentos, a

necessidade do afastamento dos cemitérios dos centros urbanos se dava pela crença de que os

cadáveres em decomposição exalavam gases pestilentos que debilitavam os indivíduos

expostos, levando-os na maioria das vezes à morte. O cemitério ideal seria aquele que

estivesse longe das rotas dos ventos e das fontes de água potável.

O medo cada vez mais crescente das epidemias vai afastando os indivíduos do contato,

“convivência” e familiaridade com os mortos que caracterizava os ritos fúnebres antes do

discurso médico higienista eleger como causa das doenças a exposição aos gases emanados

dos cadáveres que se concentravam nas igrejas. A preocupação com a “saúde espiritual”,

vinculada aos enterros nos espaços sagrados com intuito de obter uma passagem segura para o

paraíso, vai dando lugar à preocupação com a “saúde física”, que significava se enquadrar no

discurso médico para afastar as causas das doenças. Nas palavras de João José Reis (1997, p.

140) “salvar a pele tornava-se mais importante que salvar a alma”.

O filósofo francês Michel Foucault (1979, p. 88-89), analisando a normatização das

práticas médicas na realidade francesa do século XIX, coloca que com o desenvolvimento das

cidades os indivíduos são tomados por um “medo urbano”, medo das aglutinações, dos

espaços considerados perigosos. Essa “atividade de medo” diante das cidades justificou a

necessidade de um controle do poder político aos espaços citadinos, começando então a

vigilância dos costumes e dos espaços.

O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isola-los, individualiza-los, vigia-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos (FOUCAULT, 1979, p. 89).

Os médicos brasileiros adequaram os pressupostos da chamada medicina social

francesa no controle e vigilância dos espaços dos centros urbanos do Império à procura de

possíveis focos endêmicos. Os lugares considerados perigosos pelas autoridades médicas

teriam de se manter afastados do perímetro das cidades.

Preocupar-se com estas questões significava efetivamente, para os médicos atuar no esquadrinhamento do espaço público, com apoio do Estado. Instituições como hospitais, prisões, matadouros, cemitérios, vistos como frutos do crescimento das cidades e, portanto indispensáveis ao seu funcionamento, estavam segundo eles servindo como focos de doenças, representando um perigo para o todo urbano não podiam nem deviam, entretanto ser abolidas era necessário, porém expulsa-las do centro da cidade (RODRIGUES, 1999, p. 61).

É possível perceber essa atitude, na tentativa de controle que as autoridades

ludovicense implementavam nos espaços considerados perigosos e aos indivíduos da cidade.

Os Relatórios e Mapas informando sobre o estado das prisões, hospitais, cemitérios,

matadouros, quantidade de presos, quantidade de mortos e variedade de epidemias fazem

parte dessa vigilância que vai se impondo no cotidiano da cidade e nos costumes das pessoas.

Não só os espaços e indivíduos eram vigiados e inspecionados, mas também os

fenômenos. Segundo Foucault (1979, p. 92-93):

a medicina urbana não é verdadeiramente uma medicina dos homens, corpos e organismos, mas uma medicina das coisas: ar, água, decomposições, fermentos; uma medicina das condições de vida e do meio de existência [...] A medicina passou da análise do meio à dos efeitos do meio sobre o organismo e finalmente à análise do próprio organismo.

Ao se valer do controle e vigilância dos espaços, fenômenos e indivíduos, a medicina

social afirma e reproduz um discurso preocupado em impedir o aparecimento da doença, e a

enfermidade não é o objetivo, mas sim a prevenção, atingindo-a no nível das causas. As

intervenções e fiscalizações se justificavam, segundo as autoridades médicas, em prol da

salubridade púbica (MACHADO, 1978, p. 28).

Há uma relação intrínseca entre o projeto de civilidade produzido nos discursos das

autoridades e o discurso cientifico produzido no século XIX. A justificativa para o

esquadrinhamento e controle de áreas do centro urbano de São Luís consideradas perigosas e

a intervenção nos costumes encontram respaldo nesse discurso científico. É a partir dos

pressupostos desse discurso que se pensava um modelo ideal para a organização e concepção

de uma cidade salubre.

Percebe-se no discurso do Presidente da Província, Eduardo Olímpio Machado,

expressões próprias do ideário científico do século XIX em conformidade com os

pressupostos da medicina social francesa, como a busca pelas causas perpassadas pelo

paradigma da teoria miasmática, e os temores vindo dos fenômenos climáticos, do ar e das

águas:

Se um dos fins a que se propõe a hygiene publica, é, como acredito, de extinguir e remover as cauzas, que, directa ou indirectamente podem influir para a alteração da saúde publica, fora, entretanto, demasiado exigir que ella podesse affastar de nós todas as enfermidades que flagellão a humanidade. As cauzas, se não estou em erro, do apparecimento e do desenvolvimento das queixas que soffremos na saúde, a maior parte das vezes, permanecem, a despeito dos esforços da sciencia, occultas ao homem, e na generalidade dos casos de moléstia endêmicas, esporádicas, ou epidêmicas, são elles devidosa causa telluricas ou atmosfhericas (MARANHÃO, 1855, p. 7).

A apropriação de um discurso científico como explicação para os fenômenos da

natureza, mostra uma busca por segurança, de saber que o conhecimento científico poderia

trazer certa aparência de controle. Conhecer os movimentos dos ventos, a tipologia dos

terrenos, os cursos das fontes, as estações climáticas fazia parte dos mecanismos de prevenção

dos médicos ludovicense que se configuravam enquanto uma tradução local das leituras e

idéias da medicina francesa e de seus pressupostos científicos. É dessa literatura e de seus

pressupostos que os médicos e autoridades tiravam seus anseios e temores.

A teoria miasmática era o mais forte elemento do discurso científico, vista como causa

para as epidemias, impondo a imediata modificação nos espaços propagadores de miasmas20.

Era uma crença antiga que o ar tinha influência sobre os corpos dos indivíduos, por sua

capacidade de veiculação de miasmas, o ar por si só já era visto como agente patológico, por

20 Os miasmas eram gases emanados de material orgânico, a proliferação desses gases era mais comum em

lugares como as igrejas, cemitérios, pântanos e matadouros por estarem vinculados a corpos em estado de decomposição.

suas propriedades que variavam com as estações quentes e frias e atingiam os organismos. O

ar contaminado por exalações pestilentas deveria ser evitado a todo custo (FOUCAULT,

1979, p. 90).

Essa crença, ao ser difundida na literatura médica do século XIX, foi alcançando o

status de explicação cientifica para as origens das epidemias que assolavam a cidade de São

Luís. A preocupação com os fenômenos climáticos relacionados ao ar e as chuvas fizeram

parte dos Relatórios enviados para o Presidente da Província do Maranhão.

Mandai antes secar esses imensos e imundos charcos, a que chamamos pântanos, sobretudo os da Bacanga, onde nascem, vivem e morrem animais e vegetais de toda a espécie, e acabareis com essas febres de mau caráter, que se hão tornado endêmicas na nossa Capital, e suas funestas conseqüências tais como irritação do aparelho digestivo, hipertrofias do baço e fígado, hidropisias de que é vitima talvez a terça parte de nossa população ( José Farias de Matos, 1de maio de 1854 apud MARQUES, 1970, p. 196 ).

Para o secretário do Presidente da Província do Maranhão José Maria Farias de Matos,

não bastava só modificar os espaços considerados propagadores de miasmas, mas também

modificar o comportamento e o modo de vida dos indivíduos.

Derramai o batismo da instrução sobre a cabeça do povo, aboli a mendicidade, melhorai o seu estado de finanças e regulareis essas afecções morais, essas nevroses terríveis que começam de aparecer entre nós debaixo das formas mais bizarras. Estabelecei medidas enérgicas, violentas mesmo, de repressão contra a imoralidade pública, que há tocado o seu apogeu de intensidade, e diminuireis pelo menos a soma de sífilis que infecciona a nossa população (José Farias de Matos, 1 de maio de 1854 Apud MARQUES 1970, p. 196).

Por excelência os lugares de concentração e propagação desses gases perigosos à

saúde seriam as igrejas, pois, ao servir como espaços de enterramentos, acumulavam corpos

que ao se decomporem produziam “gases emanados dos corpos que jazem sob a sua

superfície, e os indivíduos que ai se demoram são atacados de febres de mau caráter”

(MARQUES, 1970, p.196). João José Reis (1997, p.135) ao estudar o cotidiano das pessoas e

suas atitudes perante a morte no Brasil oitocentista aborda o grande receio que os indivíduos

tinham de penetrar no recinto das igrejas. A documentação estudada pelo autor faz menção à:

Histórias de gente desmaiando ou morrendo por freqüentar igrejas onde se sepultavam os mortos, histórias de doenças graves provocadas por cadáveres em putrefação que minavam através das paredes, pelo interior de casas vizinhas as

igrejas, histórias de epidemias terríveis causadas por corpos mal enterrados em povoações do interior.

Em São Luís, essas histórias também povoavam o imaginário das pessoas. No ofício

enviado para o Presidente da Província do Maranhão, o secretário José Maria Farias Matos

(apud MARQUES, 1970, p. 196), expõe esse medo partilhado pela maioria da população

brasileira.

A nocuidade ou inocuidade das emanações pútridas, sendo uma questão puramente de concentração, só aspirando diretamente as exalações cadavéricas, é que poderão haver lugar alguns acidentes fatais. Corion inclinando-se sobre o cadáver, na ocasião em que fazia uma observação na faculdade de Paris, cai em síncope, e morre 70 horas depois – O célebre Fourcroy é acometido de uma grave erupção exantematosa; Languirene e Dufresnoy ficaram lânguidos por muito tempo, e o ultimo nunca se restabeleceu.

Esses relatos fortaleciam o discurso médico higienista, dando credibilidade aos

médicos e autoridades ludovicense como portadores do conhecimento das causas e prevenção

das doenças, pois para esses médicos, as causas das doenças eram provenientes do ar,

considerado assim o principal inimigo da saúde pública. Não podia ser contido, mas era

imperativo que estivesse em constante vigilância para impedir que fosse alvo e propagador de

contaminações.

Com as proibições de enterros nas igrejas, os cemitérios ficaram sendo os lugares mais

perigosos pela sua capacidade de acumular gases pestilentos que contaminavam o ar. Daí a

necessidade da vigilância e controle desses terrenos, promovendo o afastamento gradativo

desses espaços para longe da cidade. Dessa forma, o medo fomentado pelo discurso médico

vai aos poucos consolidando o Cemitério do Gavião como um local apropriado para a

realização dos enterramentos.

Apesar da formulação de Posturas referentes à melhoria das condições sanitárias do

espaço urbano de São Luís e da criação de órgãos de saúde como a Repartição da Vacina e a

Junta de Higiene Pública, com o intuito de descentralizar as propostas e medidas para a saúde

pública, as epidemias não cessaram de assolar a população ludovicense e se mantiveram de

forma regular até a segunda metade do século XX (MEIRELES, 1994, p. 225).

A política de hierarquização do combate às doenças, colocada em prática quando a

varíola atacou a cidade na década de 50, levou os órgãos administrativos a direcionarem todas

as medidas para o combate a essa doença, deixando de lado outras inúmeras doenças que

atormentavam a vida da maioria da população. Junto a isso, o fato das autoridades médicas ao

aprovarem legislações para o combate das infestações, se apropriarem de medidas de

localidades diferentes, não levando em conta as especificidades da realidade vivida em São

Luís, piorava ainda mais a situação já agravada pela falta de higienização da cidade

(ALMEIDA, 2004, p. 241).

No intuito de diminuir a ação das epidemias, a normatização dos ritos fúnebres foi

colocada com mais rigor pelas autoridades. Todos os enterros feitos em São Luís deveriam

passar pela aprovação do secretário de polícia por meio da distribuição de atestados. Tudo

deveria ser anotado, o número de mortos, se era livre ou escravo, homem, mulher ou criança,

declarando-se os nomes, idades e categoria social a que pertencia. Para as autoridades essas

medidas tinham por objetivo “tomar providencia contra o mau estado da saúde pública”

(JORNAL DO COMÉRCIO, 8 de janeiro de 1859, p. 4).

Com a criação de um sistema de atestados, as pessoas só poderiam ter seus enterros

realizados no Cemitério do Gavião mediante a apresentação de atestados assinados pelos

familiares. O sistema de atestados era mais um controle, principalmente sobre os pobres.

Nesse documento constava a declaração da causa da morte, se fosse por motivo de

enfermidade com origem nas epidemias, deveria haver uma investigação sobre a causa da

doença. Os motivos da morte eram todos registrados nos mapas e relatórios, dando a

possibilidade para as providencias necessárias. Sendo importante saber se a morte do

individuo “resultou, ou não de violência, descrevendo de forma affirmativa os indícios que

notar, e dando immeddiatamente parte à autoridade policial, para fazer proceder ao

competente corpo de delicto” (JORNAL DO COMÉRCIO, 8 de janeiro de 1859, p.4).

Os motivos das mortes deveriam ser esquadrinhados e apurados. Temos na

documentação casos como do corpo de uma escrava de 50 anos de idade encontrada asfixiada

por submersão às margem do igarapé do Rio das Bicas. Mesmo com a ordem dos mesários da

Misericórdia para ser realizado o enterramento o mais rápido possível, devido ao adiantado

estado de decomposição do corpo, em cova rasa como era de costume, o mordomo do

Cemitério, Adriano Duarte Coutinho, preferiu informar as autoridades policiais. Em ofício de

16 de setembro de 1874, destinado ao secretario de polícia o mordomo expõe suas duvidas:

Convem pendurar a VSª que a Lei nº.1829 de 9 de setembro de 1870 não exceptua do registro de obtos esses cadáveres encontrados mortos - pelo menos é o que minha fraca inteligência colige- e o cadaver de que tracto não veio acompanhado da respectiva certidão. Na duvida devo ou não, em igual caso sepultar esses cadáveres? E se achar em verdadeiro estado de putrefação como devo proceder? Assim também, se me aresentarem um cadáver vindo do interior da ilha em caso de corrupção o que muitas vezes acontece devo sepultar independente de certidão e do atestado de policia (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1874, doc. 09).

Se os médicos da Câmara Municipal não estivessem disponíveis, a Santa Casa de

Misericórdia deveria conduzir o falecido para ser examinado no Hospital de Caridade. Os

médicos “que não cumprissem essa disposição, ficão sujeitos à mulcta de dez a trinta mil reis.

Na mesma mulcta incorrerá o encarregado do hospital, que recusar receber os cadáveres nas

circunstancias e pelo modo indicado” (JORNAL DO COMÉRCIO, 8 de janeiro de 1859, p.

4).

Outro caso emblemático desse controle sobre os cadáveres diz respeito à escrava

Sabrina que teve seu corpo encontrado jogado no fundo do cemitério. Após notificar e pedir o

atestado de óbito das autoridades, o capelão João Luiz Martins foi posto a depor na Secretaria

de policia como testemunha em inquérito contra José Carlos de Burgos pela morte de sua

escrava (PAÇO EPISCOPAL, 1869).

Todos esses exemplos apontam para a tentativa das autoridades ludovicenses de

controlar os aspectos possíveis dos fenômenos da morte, em um momento de afirmação de

um discurso médico higienista, que se propunha a difusão de idéias de civilidade que se

apoiavam em conceitos de bons costumes, urbanização, salubridade, progresso e

desenvolvimento.

3 OS CEMITÉRIOS: espaços de disputas e sociabilidades

3.1 O Cemitério dos Passos: quebra do monopólio da Irmandade da Misericórdia

Os ritos fúnebres consistiam em uma série de práticas que tinham o intuito de adequar

o indivíduo falecido à chamada “boa morte”. Um conjunto de práticas como o uso de

mortalhas, redação de testamentos, rezas e principalmente o local de enterro asseguravam

uma passagem bem sucedida para o “além-morte”.

O local para a realização do sepultamento tinha de acontecer em um espaço

consagrado pelos ritos católicos. Até a metade do século XIX, em São Luís, esses locais eram

as igrejas da cidade. A crescente difusão de um discurso médico higienista, que afirmava

propostas do ideário científico da época, colocou em xeque a prática de enterramentos dentro

das igrejas, consolidando como espaço adequado para os enterros, os cemitérios afastados das

áreas próximas à cidade.

Das vendas de sepulturas no interior dos templos provinham os principais recursos

financeiros das irmandades religiosas existentes na cidade de São Luís. Era dessa prática que

essas entidades fortaleciam seu patrimônio, legitimando assim sua existência e, além de

possibilitarem trânsito em espaços de aglutinação e sociabilidades a muitos grupos da cidade,

um dos motivos mais fortes para ser membro de uma irmandade era a concessão que os

membros tinham a lugares privilegiados nos templos para a realização dos ritos de enterros,

com toda a pompa necessária.

Os entraves dos sepultamentos nos templos levaram a uma diminuição do acúmulo

financeiro e patrimonial das irmandades religiosas e conseqüente desaparecimento de muitas

delas. A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia tinha um grande patrimônio consolidado,

fruto de relações políticas e econômicas estabelecidas com os órgãos administrativos da

Província do Maranhão. Tais relações propiciaram à Irmandade oferecer serviços assistenciais

que extrapolavam os Compromissos das outras irmandades religiosas.

Os serviços prestados aos seus membros e, por extensão, à população carente da

cidade de São Luís, revestiam a Misericórdia de grande importância e prestígio diante do

poder público. Mesmo assim a proibição dos enterros nas igrejas forçou os membros da

Misericórdia a enquadrarem-se nas propostas reformistas e adotar um terreno para a

construção de um cemitério.

Outras irmandades, julgando-se prejudicadas pelo monopólio da Irmandade da

Misericórdia na extração de rendas com a construção de cemitérios, reivindicaram ao governo

imperial licença para estabelecer cemitérios, mas não foram atendidas (MARQUES, 1970, p.

193).

Em 1829, uma comissão organizada pela Câmara Municipal discutiu sobre a criação

de pequenos terrenos em conjunto com as igrejas para a construção de cemitérios. Os terrenos

escolhidos faziam parte da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, da Igreja de Santana, de São

João, Conceição, Remédios, Carmo e na Igreja de Santo Antonio. Mas segundo César

Marques (1970, p. 139):

Cremos que ficou tudo em projeto, lembrando-nos apenas de uns muros que guardavam certo terreno na cerca de Santo Antonio [...] Julgamos, porém que o estabelecimento do Cemitério da Santa Casa convenceu a todos da inutilidade dêsses projetos.

A Irmandade da Misericórdia continuava a se valer do monopólio dos ritos de enterros

na capital. Em 1854, o subsídio dado pelo governo da Província do Maranhão durante o ano

financeiro chegava a 5.350$000 réis, no mesmo ano a Irmandade contava com uma receita de

17:000$072 réis, vinda de alugueis de casas, da cobrança de diárias de enfermos e de

sepulturas no Cemitério Católico da Misericórdia. A arrecadação com o Cemitério chegava à

soma de 3: 246$466, e parte dessa renda era gasta com uma despesa de 1:045$666 réis

(MARANHÃO,1854, p.54). Mesmo com as receitas em progressão, a perda de maiores

rendimentos com a proibição dos sepultamentos nos templos católicos abalou financeiramente

a Irmandade. Nesse clima, os cemitérios foram vistos como chance de continuar com as

arrecadações.

No ano de 1841, o monopólio de enterramentos no Cemitério Católico da Misericórdia

foi rompido, pois, em outubro desse ano, foi autorizada pela Câmara Municipal de São Luís, a

construção do Cemitério dos Passos, sob a administração da Irmandade da Santa Cruz do

Bom Jesus dos Passos.

A Irmandade da Santa Cruz do Bom Jesus dos Passos foi criada em São Luís no ano

de 1722, e caracterizava-se, principalmente por ser uma associação de pessoas pertencentes à

elite comerciante ludovicense. Os perfis dos irmãos congregados eram de pessoas brancas, de

famílias com grande prestígio, em sua maioria compostas por portugueses (MARANHÃO,

1997, p. 141).

As reuniões dos irmãos dos Passos se realizavam em uma capela ereta na igreja de

Nossa Senhora do Carmo. De acordo com César Marques (1970, p. 228), a capela dos

membros da Irmandade dos Passos “rivaliza em luxo, asseio e ordem” com a Igreja do Carmo,

“patenteando assim os cuidados e zelo da sua mesa administrativa”. A posse de um templo

próprio era evidência do poder aquisitivo de que se valia a Irmandade dos Passos, num

momento que um grande número dessas associações mantinha-se em templos compartilhados

por outras irmandades e revezavam suas reuniões sob concessões do poder eclesiástico.

A Irmandade dos Passos, além de possuir templo próprio, ainda administrava o Asilo

de Santa Tereza, possuindo outra capela no terreno em conjunto ao dito asilo (BELTRAMI,

1994, p.131). A licença para estabelecer esse espaço foi alcançada quando o Presidente da

Província do Maranhão Eduardo Olímpio Machado propôs à Irmandade dos Passos criar um

asilo para abrigar aos órfãos e desvalidos que a Irmandade da Misericórdia não pudesse

comportar em seus estabelecimentos caritativos. A despesa da Província repassava a

Irmandade dos Passos a quantia de 15 mil réis mensais, enquanto os particulares pagavam 16

mil réis. A Irmandade dos Passos também era responsável pela organização da Procissão da

Quaresma (MORAIS, 1995, p. 56-57).

Na Procissão da Quaresma, só os membros que pertenciam às famílias mais

importantes da capital carregavam as bandeiras da Irmandade dos Passos. A procissão

acontecia à noite, saindo da Igreja do Carmo em direção a Igreja da Sé. Terminado o sermão

na igreja, a multidão subia a Rua da Paz seguindo os pontos importantes da cidade que

estivessem ligados à liturgia. A Procissão da Quaresma tinha seu fim ao retornar para a Igreja

do Carmo. No livro Memória de velhos (1997) encontramos o depoimento de Augusto Aranha

Medeiros, antigo presidente da Irmandade Bom Jesus dos Navegantes que acompanhou as

manifestações mais recentes (primeira metade do século XX) da Procissão da Quaresma, e ao

falar sobre organização da procissão deixa transparecer a disputa que existia entre as

irmandades religiosas por um lugar destacado na realização das festas religiosas da cidade de

São Luís, “Essa é a Irmandade dos Passos. Mas como tudo que é coisa de vaidade, de

prepotência, Deus não gosta” (MARANHÃO, 1997 p. 141-142).

A Irmandade da Santa Cruz do Bom Jesus dos Passos existia em outras localidades do

Império brasileiro. O Compromisso da Irmandade dos Passos da Província do Piauí 21 ajuda-

nos a compor informações sobre o perfil dos membros que faziam parte dessa associação.

Admitia-se na Irmandade “pessoas de ambos os sexos”, apesar da presença das mulheres

serem praticamente inexistentes enquanto membros.

Exigia-se também uma “jóia de entrada com a quantia de cinco mil réis mensais com

anuidade de mil réis”. O pagamento de “jóias de entrada” para ingressar em uma irmandade

religiosa tinha como objetivo separar o “joio do trigo”, afastando de antemão aqueles que

eram considerados “sem decente substância e bons costumes”, ou seja, aqueles não tinham

posses e que não professavam a crença na religião católica (LIVRO DE COMPROMISSOS

DE IRMANDADES, 1859, fl. 2).

Além da Irmandade da Misericórdia, somente a Irmandade dos Passos conseguiu

adquirir um terreno para a construção de um cemitério. Entrando em acordo com a Câmara

Municipal em 1841 a Irmandade dos Passos obteve, após muita relutância, licença para erigir

um cemitério para serem realizados os enterros dos irmãos congregados a Irmandade

(MARANHÃO, 1870, p. 22).

Foram feitas uma série de investigações no sentido de procurar um lugar adequado

para a instalação desse cemitério (MARQUES, 1970, p. 194). Teria de ser um local afastado

dos limites urbanos, que não ameaçasse a população da cidade com os perigos da propagação

de miasmas, ou contaminação das fontes e infecções por epidemias.

21 Na composição da pesquisa não encontramos o Compromisso da Irmandade dos Passos da cidade de São Luís,

o único Compromisso encontrado dessa Irmandade foi o da Freguesia de Nossa Senhora da Victória de Oeiras, na Província do Piauí. De modo geral os Compromissos das irmandades religiosas não apresentavam modificações radicais em relação a outras partes do Império, sendo assim usamos as informações do Compromisso de Oeiras para completar as informações que temos do perfil dos membros da Irmandade dos Passos em São Luís.

O local escolhido foi o “lugar denominado Quinta do Machadinho” 22 (MARQUES,

1970, p. 194). Uma série de investigações foram feitas no terreno, antes da instalação do

Cemitério dos Passos A comissão de exames da Câmara Municipal concedeu licença

favorável a Irmandade dos Passos atestando que sua localização se adequava às propostas do

discurso médico higienista.

Este edifício de forma quadrilonga, de dezoito braças de largo sôbre quarenta de comprido, de uma arquitetura simples e agradável, é mais um monumento solene, que atestará aos nossos vindouros e gênio empreendedor da nossa época. [...] A sua posição geográfica, portanto não pode ser mais útil e sábiamente escolhida (MARQUES, 1970, p. 194 ).

Para os médicos que sustentavam o discurso higienista, não só a localização era

importante, mas a capacidade do terreno de reter gases pestilentos que poderiam assolar a

cidade de São Luís, causando vários tipos de epidemias.

O terreno sobre o qual ele esta construído é bastante seco e arenoso, e possui todas as condições químicas necessárias para retardar a fermentação pútrida ou amoniacal, isto é a putrefação de cadáveres, o que não permite tão facilmente a acumulação de vapores e gases (MARQUES, 1970, p. 194).

O terreno foi aprovado pelos doutores José Miguel Pereira Cardoso e Veríssimo dos

Santos Caldas com a conclusão de que o novo cemitério não oferecia nenhuma influência

sobre a saúde dos que habitavam as imediações. Desfeito todos os temores à “luz da ciência”,

a Lei provincial de 3 de dezembro de 1849 autorizou a fundação do Cemitério dos Passos.

(MARANHÃO, 1849, p. 33).

João Lisboa, descrevendo os cemitérios da capital, deixou sua opinião sobre o

Cemitério dos Passos nas páginas do jornal Publicador Maranhense:

O Cemitério dos Passos fica a beira do Caminho Grande [...] é um asilo, não direi risonho, mas sombreado, protegido e perfumado pelas flores e folhagens, saudoso e melancólico, não terrível e ingrato aos olhos. Ainda em setembro um soberbo pau d’arco, que esta à frente como rei das pequena floresta, desdobrara e ostentara a magnífica cabeleira cor de ouro. Este sim, estimara mais vê-lo em jardins de diversa natureza. O interior do cemitério, que, aliás, não tenho tempo para descrever aqui miudamente, não me descontentou tanto como o da Misericórdia; pareceu-me mais decente e bem ordenado; os mortos ali não se atropelam, nem são perturbados antes de tempo nos seus leitos de argila. Seria no entretanto conveniente que os

22 Segundo Carlos Lima (2002, p. 161), o Cemitério dos Passos se localizava onde atualmente é o Canto da

Fabril no terreno ocupado pelo estádio Nhôzinho Santos e da Vila Passos.

administradores não o deixassem converter em pátio de criação de patos e galinhas. (LISBOA, 1991, p.332)

A descrição agradável de Lisboa chama a atenção em dois pontos. As comparações

que estavam sendo feitas, entre o Cemitério Católico da Misericórdia e o Cemitério dos

Passos, deixavam implícito que exista espaço para disputas e intrigas entre as duas

irmandades religiosas. Outro ponto a ser discutido é a critica feita pelo cronista em relação às

condições as quais se encontrava o Cemitério da Misericórdia, sugerindo aos mesários da

Irmandade dos Passos que não relegassem o mesmo descaso ao Cemitério pertencente à

entidade.

Os médicos encarregados na investigação do Cemitério tiveram impressão parecida

com a de João Lisboa mostrada no folhetim. No que se refere ao aspecto físico e visual do

terreno os médicos concordavam que a imagem do Cemitério não traria desconforto a quem

por ventura por ali passasse.

Em quanto a influencia moral diremos que longe de infundir terror aos viandantes, ou de considerá-los como objeto de receio, como alguém pode crer, o novo cemitério apenas despertará idéias pias e religiosas [...] um monumento, que faça lembrar ao homem ímpio e desprezador de todos os cultos os sagrados deveres impostos pela religião de nossos pais (MARQUES, 1970, p. 195).

O Cemitério dos Passos começou a funcionar em 3 de dezembro de 1849, passando a

atender os irmãos congregados a Irmandade dos Passos, principalmente os mesários da

entidade. Por se tratar de uma Irmandade formada por indivíduos pertencentes às famílias

privilegiadas da cidade, o cemitério se tornou um espaço elitizado.

Os mordomos da Irmandade da Misericórdia já vinham tendo dificuldade em

administrar os ritos de enterros no Cemitério Católico da Misericórdia, pois seu terreno já se

encontrava bastante saturado de sepultamentos desde sua criação em 1808. Mesmo que a

quantidade de enterramentos em seus primeiros anos fosse ínfima comparada aos

sepultamentos nas igrejas, a partir da década de 20, com os entraves aos enterros nos templos

católicos, o número de sepultamentos no cemitério tornou-se mais constante.

Era freqüente nos ofícios enviados ao Presidente da Província do Maranhão a

preocupação que os mesários tinham com a ocupação dos espaços do cemitério, e a Mesa

Administrativa tentava criar novas estratégias para aproveitar todo espaço possível. Os

mesários apelavam ao governo provincial que o prazo de três anos para abertura de

catacumbas fosse reduzida, pois trazia “desvantagens aos interesses da Santa Casa [...] na

actualidade, em que ella luta com falta de lápides” (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA,

1854, fl. 01).

Os enterros de indivíduos indigentes atingidos por alguma enfermidade, deveriam ser

realizados “em catacumbas que fossem construídas de topo, com abertura por cima somente

preciza d’ collocação dos cadáveres ao comprido, por ser mais higgienico, e precizar de

menos parede no ato do enterramento” (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1854, fl.1).

Com aumento da população ludovicense na segunda metade do século XIX, agravou-se ainda

mais o quadro que se tornaria insustentável com a grande epidemia de varíola da década de

50.

Essa estratégia de poupar espaços, baseada na redução do tempo de permanência das

ossadas nas catacumbas não agradava a população ludovicense que, no plano simbólico e

religioso, concebia a sepultura como a “morada final” do indivíduo. Esse sentimento está

sintetizado na frase do secretário do Presidente da Província José Maria Farias Matos:

“Respeitemos, portanto a habitação dos mortos e veneremos a imagem sagrada, que os seus

tristes despojos [...] deixemos, pois os mortos dormir o sono da paz em seu quietismo eterno”

(MARQUES, 1970, p.196).

Conforme já mencionamos, na década de 50 a cidade de São Luís foi assolada um

surto epidêmico de varíola. A precariedade das condições higiênicas da cidade aliada a

políticas de saneamento ineficazes agravou ainda mais esse quadro. No ano de 1855, a força

com que a epidemia se abateu sobre a população ludovicense culminou com uma quantidade

considerável de vítimas. O grande número de enterros que foram realizados no Cemitério

Católico da Misericórdia nesse ano tornou a situação de falta de espaço do terreno

insustentável, levando a interdição do Cemitério (MARQUES, 1970, p.194).

O Cemitério dos Passos seria então a única alternativa para os enterros na cidade. Nos

anos que se seguiram, houve um crescimento na taxa de enterramentos no Cemitério dos

Passos, “devido ao aumento de irmãos que tem a confraria, pelo oferecimento de sepulturas

grátis à pessoas que faleceram na Casa dos Educandos, no Asilo de Santa Tereza, e também

desvalidos que morreram no Hospital da Real Sociedade Humanitária 1° de dezembro”23

(MARQUES, 1970, p.198).

Com a interdição de seu Cemitério, a Irmandade da Misericórdia logo começou a

sentir-se prejudicada com a perda dos rendimentos que os ritos de enterros proporcionavam.

Em ofício enviado à Assembléia Legislativa, o provedor da Irmandade da Santa Casa de

Misericórdia expõe a causa da baixa dos rendimentos: “Nestes últimos meses tem apparecido

alguns deffict [...] por ter sido privada a Santa casa, por 6 mezes, do rendimento do cemitério”

(MARANHÃO, 1855, p. 21).

Eduardo Olímpio ao assumir a presidência da Província do Maranhão em 1851,

mandou formar nova comissão para investigar o Cemitério dos Passos, após denúncias que o

Cemitério estava mal localizado. Os motivos de Eduardo Olímpio, que era um respeitado

médico, muito provavelmente articulavam-se com as estratégias do discurso médico para

manter a cidade de São Luís longe dos perigos das contaminações pelas epidemias.

Ainda assim, podemos conjecturar que, como membro da Irmandade da Misericórdia e

ocupando a posição de protetor da instituição, os interesses de Eduardo Olimpio também

estavam em sintonia com os interesses da Misericórdia, já que a construção do Cemitério dos

Passos provocou uma queda nos rendimentos da Irmandade, e retirou da entidade o status de

única provedora em São Luís dos ritos de enterros, considerados apropriados segundo as

regras católicas.

Os laudos da comissão médica nomeada pelo Presidente da Província, não chegaram a

um consenso. Alguns médicos não concordaram se a posição do terreno era prejudicial ou não

à saúde pública. Após uma série de resultados contraditórios a comissão optou em dar aval

positivo para o funcionamento do Cemitério dos Passos.

Pelo que ainda estivesse o terreno completamente saturado de restos cadavéricos, jamais poderia ser-lhes nocivo, visto que em tão grande a filtração torna-las perfeitamente puras [...] concluímos 1º que posição do Cemitério dos Passos não é nociva quer em relação aos ventos, quer em relação às fontes” (MARQUES, 1970, p. 195).

23 A Sociedade Humanitária 1º de Dezembro foi uma associação caritativa que funcionava na Rua dos Afogados,

canto da Rua da Alegria, seus membros tratavam de portugueses enfermos. Em seu começo no ano de 1862, contava com 16 camas, 2 enfermeiros, 1 escrava e cozinheira (PAXECO, 1922, p. 648).

José Maria Farias Matos, secretário do Presidente da Província, fez parte da comissão

de exame que investigou o terreno do Cemitério dos Passos expondo um resultado parecido

com os laudos da comissão que examinou o terreno em 1848. Farias Matos afirmou que

“ainda nenhum fato veio depor em contrario e asseguraram sem mêdo, que o Cemitério da

Santa Cruz dos Passos de Nosso Senhor Jesus Cristo nenhuma influência pode ter a

salubridade pública”. Para o médico a interdição da edificação do Cemitério, resultaria em um

retrocesso “no caminho do progresso e civilização que tanto se tem adiantado” (MARQUES

1970, p. 196).

Em 1853, três anos antes da interdição do Cemitério Católico da Misericórdia, os

mesários da Irmandade já previam a saturação do terreno. Enquanto os mesários não

negociavam outro terreno para substituição do Cemitério, o Cemitério dos Passos se fazia

necessário para servir aos ímpetos civilizatório e ao ordenamento do espaço urbano que as

autoridades tanto almejavam.

Era imperativo para a Irmandade da Misericórdia a aquisição de um novo terreno para

a construção de um cemitério. Este terreno foi comprado pela mesa administrativa “por

7:000$000 réis, sendo 4:500$000 réis por troca de casa térrea na Rua da Paz, e 2:500$000 réis

em moeda”. A partir de 1855 “passarão-se a fazer alli os enterramentos” (MARANHÃO,

1861, p.133).

O terreno do Cemitério do Gavião, funcionando no terreno adquirido pelos membros

da Irmandade da Misericórdia, estava em fase de construção, ainda precisando de vários

reparos em sua estrutura, apresentando “um quadro repugnante ao visitante mais indiferente,

porque consistia em uma tosca planície semeada de cruzes, indicando sepulturas [...]

catacumbas sem números, sendo apenas amurado pelo lado de oeste e pela frente ao

norte”(SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1970, fl. 02).

Os mordomos da Irmandade da Misericórdia necessitavam de verbas para tornar o

Cemitério do Gavião um lugar com atrativos para assegurar o aumento da taxa de

enterramentos, tirando assim a Misericórdia do déficit que acometia suas rendas

(SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1870, fl.02). Um cemitério em condições de abrigar

os restos mortais das famílias importantes da cidade de São Luís, atraindo aquela pequena

parcela da população que, por seu destaque econômico, ainda tinha seus sepultamentos

realizados nos templos católicos.

3.2 “Nem a ciência e nem a experiência”: disputa e concorrência entre irmandades

Nas décadas de sessenta e setenta do século XIX, o Cemitério do Gavião passou por

várias modificações e reformas para atingir o patamar de um terreno com condições para

chamar a atenção e apreciação dos grupos abastados. A meta a ser atingida era o ideal de

embelezamento, de condições de higiênicas exemplares, no intuito de fazer frente à

concorrência imposta pelo funcionamento do Cemitério dos Passos.

Quando em 1867, parte do muro do Cemitério do Gavião veio abaixo, a Mesa

Administrativa da Misericórdia imediatamente solicitou ao governo da Província “a

realização de crédito de oito contos de réis” para a construção do muro para “evitar a

constante migração dos animais” (SÃO LUÍS, 1867, doc.12).

Em ofício de 1876, o mordomo da Irmandade da Misericórdia expôs ao Presidente da

Província do Maranhão, as carências que o terreno sofria, “caiadura e pintura gerais [...]

conclusão dos parapeitos d’alvenaria com as competentes pilastras por toda frente do

cemitério, desaparecendo por isso o muro de adobos que alli existia”. Outras aperfeiçoações

se faziam necessárias como “a construção de 56 catacumbas para adultos [...] em uma só

ordem de 1º classe” (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1876, fl. 03).

Os melhoramentos teriam de ser providenciados com rapidez para não perder rendas

de enterros para o Cemitério dos Passos. “Com muito trabalho, muita perseverança, dedicação

e vigilância e severa economia se obtiveram os seguintes: fechou-se o cemitério pelos lados

este e sul com um muro de pedra e cal [...] sendo de verdadeiro interesse e de importância

reconhecida os melhoramentos, que se fizeram no cemitério” (SECRETARIA DA

MISERICÒRDIA, 1870, fl.02).

As reformas no Cemitério do Gavião justificavam várias solicitações dos mesários

pelo aumento dos subsídios do governo provincial à Irmandade da Misericórdia.

Indubitavelmente, que ainda se recente elle de falta [...] houvem proseguir-se na empreza com a mesma actividade e dedicação. É para que nella não haja desalento prduzido pela escassez dos recursos da Santa Caza, ou zombando de seus esforços, traz muitas vezes a suspensão ou a paralização de obras urgentes recorre a meza administrativa, a V. Ex.ª a fim de que appelando para a Assembléia Provincial solicitte d’ella que faça incluir no orçamento da província com a clauzula desde já o auxilio de oitocentos de reiz (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1870, fl.03).

Enquanto os membros da Irmandade da Misericórdia apelavam para as doações e

subsídios do governo para melhor estruturação do Cemitério do Gavião, o Cemitério dos

Passos era alvo de novas investidas por parte dos órgãos administrativos da cidade de São

Luís.

Em 1869, rondou um boato entre os populares, que as causas de alguns falecimentos

na cidade “eram provenientes da má qualidade da água potável da fonte do Apicum”

(MARQUES, 1970, p.197). O Presidente da Província do Maranhão, Brás Florentino

Henrique de Souza, médico influente e professor da faculdade de direito de Recife, nomeou

uma comissão em 25 de novembro de 1869 para averiguar novamente se o terreno do

Cemitério dos Passos afetava de forma negativa a salubridade pública.

Faziam parte dessa comissão os médicos José Ricardo Jauffrett, Antonio dos Santos

Jacinto, Luis Miguel Quadros, Fabio Augusto Baima e César Augusto Marques. Apesar de

alguns encontros entre os membros da comissão, os médicos não chegaram a fazer a análise

do terreno e “emitir com segurança seu parecer” por conta de problemas pessoais envolvendo

os participantes da comissão de exame (MARQUES, 1970, p. 197). Mesmo sem um relatório

conclusivo que justificasse medidas contra o funcionamento do Cemitério dos Passos, o

médico José da Silva Maria, na figura de vice-presidente da Província do Maranhão, abriu a

Assembléia Provincial em 1870, expondo que a Câmara Municipal de São Luís pedia a

extinção do Cemitério dos Passos “em conseqüência de sua posição, torna-se elê prejudicial à

fonte do Apicum” (MARQUES, 1970, p. 197).

César Marques, que participou da comissão de investigação, expõe um discurso de

indignação diante da imposição da Câmara Municipal de fechar o cemitério. “É própria à

ocasião para admirar-se como a Câmara Municipal, composta de indivíduos alheios

inteiramente ao estudo da higiene pública, animasse a combater opiniões emitidas por pessoas

profissionais de várias épocas” (MARQUES, 1970, p. 197).

Mesmo com os apelos da Irmandade dos Passos ao governo provincial para que

fossem revistos as decisões da Assembléia Provincial de encerrar o funcionamento do

Cemitério dos Passos, com a Lei provincial nº. 924 foi decretado o fim dos enterros no

Cemitério dos irmãos da Irmandade dos Passos. Essa lei estabelecia que: “ficava autorizado a

desapropriar, desde já, o terreno em se acha o Cemitério da Irmandade da Santa Cruz do

Senhor Jesus dos Passos, podendo recorrer a qualquer operação de crédito para tal”. Após o

prazo de cinco anos o terreno seria totalmente arrasado “para ser plantado de arvores, a fim de

conservar e melhorar as águas da sobredita fonte”. (MARANHÃO, 1870, p. 191).

Segundo César Marques, a Lei provincial que regulamentava o fechamento do

Cemitério dos Passos, foi organizada sem o terreno ter passado pela análise da comissão de

exames. A ordem do Presidente da Província “foi bastante para a Assembléia Provincial, em

sua maioria, sem exame e sem aguardar o parecer da comissão, que estudava a questão,

fizesse, e o Presidente da Província sancionasse a lei” (MARQUES, 1970, p. 197). Marques,

ao escrever o Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão, obra de suma

importância na historiografia sobre o Maranhão, dedicou alguns parágrafos sobre a avaliação

feita no Cemitério dos Passos, comentando o caso “pra que o Público conheça a injustiça de

tal disposição legislativa” (MARQUES, 1970, p. 197).

O referido autor e o doutor Antonio dos Santos Jacinto se propuseram a examinar o

terreno, mesmo após o decreto da lei e chegaram a seguinte conclusão:

Observamos tudo minuciosamente, ora tomando medidas com uma fita dividida em metros, ora inspecionando as paredes das escavações para conhecer a natureza física do terreno, ora finalmente percorrendo tôda a distância desde cemitério até às fontes públicas do Apicum, e voltamos tão convencidos de que êle não influi contra a saúde publica, nem por intermédio dos ventos e nem das fontes (MARQUES, 1970, p. 197).

Marques afirmava que o Cemitério dos Passos não poderia afetar a fonte, por estar a

“212 metros até o principio do Apicum, isto é, 14 vezes a distância em que se pode abrir um

poço junto a um cemitério sem o inconveniente para a saúde publica” (MARQUES, 1970,

p.198). O autor depunha contra a arbitrariedade da decisão da Assembléia Provincial valendo-

se de um discurso médico ligado ao cientificismo e noções higiênicas produzidos no século

XIX.

Apesar de ser membro da Irmandade da Misericórdia, pois seu nome consta na lista de

membros da entidade no ano de 1870, o médico se considerava “um homem da ciência”, e os

testes que ele fez no terreno do Cemitério dos Passos foram legitimados pelo entendimento

cientifico que tinha o autor. Para ele: “não foi a ciência que aconselhou a extinção deste

cemitério” (MARQUES, 1970, p.198)

É interessante perceber que os membros da Assembléia também se apropriaram de um

discurso higienista para condenar o Cemitério dos Passos:

As águas de infiltração deste cemitério não têm, pois outro logar para o seu escoamento subterrâneo, senão o Apicum com suas vertentes. Daqui receia-se com todo o fundamento o perigo da damnificação das águas potáveis desta fonte pública, perigo tanto maior quanto o cemitério (MARANHÃO, 1870, p. 21).

O discurso fomentado pelos membros da Assembléia Provincial se utilizava do medo,

para justificar suas decisões para a população ludovicense e para os membros da Irmandade

dos Passos.

Em tal conjuctura, ameaça a população capital de um grande, que de perto se antolhava, cumpria prevenir o mal, que mais tarde se apresentaria impreterivelmente, e não esperar que as águas se tornassem fétidas e cobertas de partículas gordurentas, por que em tal caso não haveria mais remédio, estavam a fonte perdidas (MARANHÃO, 1870, p. 21).

Evocava-se uma imagem de uma população aflita que apelava para os administradores

da cidade para livrar-lhes do perigo trazido pelo funcionamento do Cemitério. As comissões

de exames do terreno viriam então em favor do “clamor público que contra elle se ergueu”.

Segundo informações que constam no Relatório da Província do Maranhão de 1871, desde

1853, quando a comissão da Junta de Higiene examinou o Cemitério dos Passos, o terreno já

era considerado perigoso à salubridade pública, e a população não estava contente com a sua

localização. O Presidente da Província Eduardo Olimpio só voltou atrás da decisão de fechar

o Cemitério pelas “solicitações detidas e incessantes da Irmandade dos Passos”

(MARANHÃO, 1871, p.21).

Uma decisão acertada, pois coincidentemente, o Cemitério Católico da Misericórdia

estava em vias de interdição. Sem a concessão de funcionamento para o Cemitério dos Passos,

a cidade de São Luís ficaria sem um local para realização de sepultamentos, pelo menos até os

membros da Misericórdia negociarem outro terreno.

Percebe-se que após a construção do Cemitério do Gavião os órgãos administrativos

de São Luís apertaram o cerco contra a permanência dos enterros no Cemitério dos Passos. As

atividades e resultados contraditórios da comissão de exames do ano de 1869 refletem o

caráter arbitrário na decisão de encerrar as atividades do cemitério. Tendo em vista que “a

comissão não chegou a dar seu parecer”, o redator do Relatório admitiu que: “não sei se o

cemitério de que se tracta é ou não prejudicial à salubridade pública, se danifica ou não as

fontes do Apicum. Sustentam o pró e o contra, médicos de reconhecido credito, a custa de

opiniões tão divergentes quanto illustradas não posso emitir juízo seguro” (MARANHÃO,

1871, p. 54).

Por conta de toda a desorganização dos laudos sobre os exames do terreno do

Cemitério, César Marques (1970, p. 198), afirmava que a justificativa das decisões contra a

Irmandade dos Passos não foi de caráter cientifico: “nem a ciência e nem a experiência pedia

a remoção ou extinção dêste cemitério”. Para o médico a questão toda passava pela

concorrência que a Irmandade da Misericórdia sofria em suas rendas com a existência do

Cemitério dos Passos.

Segundo o autor, o Presidente da Assembléia Provincial, doutor Fernando Vieira de

Souza, em fala de encerramento de uma sessão da Assembléia, teria dito que as causas para a

proibição estavam “fundadas em naturais escrúpulos que se prendem ás questões de higiene”,

mas ao concluir sua fala no encerramento da Assembléia, teria exposto que “ademais à

Assembléia cumpre proteger a Santa Casa de Misericórdia, como estabelecimento de

caridade; ora com a concorrência daquele cemitério, vê-se esta privada de uma importante

renda do seu orçamento” (MARQUES, 1970, p.198).

Em 1851, em sessão da Assembléia Provincial, o Presidente da Província do

Maranhão, Eduardo Olimpio, colocava que a causa principal dos déficits nas rendas da Santa

Casa de Misericórdia era a concorrência que sofria com parte dos sepultamentos da cidade

sendo realizados no Cemitério dos Passos (MARANHÃO, 1851, p.15).

Para Marques, após os resultados desconexos da comissão de exame e a decisão da

interdição do Cemitério dos Passos, ficava claro que o cerne da questão não passava de

intrigas com a intenção de preservar os interesses da Irmandade da Misericórdia.

Assim o Sr. Dr. Vieira de Souza traindo-se involuntariamente e impelido pela verdade, explicou êste ato impensável e injusto da Assembléia Provincial. O testemunho de pessoa tão autorizada para nos indicar o fim que teve a Assembléia quando tal deliberou, não pode ser mais valioso e mais verdadeiro. Foi simples questão de proteção a um cemitério. Foi apenas o desejo de matar a concorrência. Foi finalmente vontade de aumentar as rendas d Irmandade da Santa Casa da Misericórdia (MARQUES, 1970, p. 198).

Os irmãos da Irmandade da Santa Cruz do Senhor Jesus dos Passos ainda tentaram

reivindicar perante a Assembléia Provincial a suspensão da lei, mas os membros da

Assembléia colocaram que o Ato Adicional “não permitte à presidência suspender a execução

de uma lei sanccionada e publicada” (MARANHÂO, 1871, p. 55).

Vendo que os esforços para o embargo da lei não surtiriam efeitos, a Irmandade dos

Passos reivindicou pagamento de indenização, mas não obtiveram resultados positivos. Tanto

a Assembléia Provincial como a Câmara Municipal de São Luís alegaram que não poderia

haver indenização, pois não existia nenhuma lei que regulasse um termo de desapropriação de

terrenos na capital.

Os membros da Assembléia Provincial alegaram que na legislação para licença de

terrenos para a fundação de cemitérios na Província, ficava subtendido que os cemitérios

seriam “fechados quando, pelo desenvolvimento da população se tornarem inconvenientes e

perigosos”. Os irmãos da Irmandade dos Passos não poderiam ser indenizados sob a

justificativa que o Estado “não chama a sí a propriedade privada [...] apenas proíbe o usar

della de modo prejudicial à saúde pública” (MARANHÃO, 1871, p. 54-55).

O privilégio que tinha a Irmandade da Misericórdia nas decisões dos órgãos

administrativos da cidade transparece, quando se compara as atitudes da Câmara Municipal e

Assembléia Municipal para com a interdição do Cemitério Católico da Misericórdia em 1855,

quando o governo facilitou a aquisição do terreno, e acrescentou nas despesas da Província

subsídios para a construção do Cemitério do Gavião.

Com as recusas da Assembléia Provincial em atender às reinvidicações da Irmandade

da Santa Cruz do Bom Senhor Jesus dos Passos, para a continuação do funcionamento do

Cemitério dos Passos, os irmãos se viram desapropriados de suas rendas com a realização dos

ritos de enterro, sendo negado inclusive o pedido de indenização e mesmo ajuda financeira do

governo para a construção de outro cemitério.

Na época da construção do Cemitério do Gavião, algumas vozes se voltaram contra a

realização de enterramentos no terreno. O doutor João Diogo Duarte elaborou um parecer

contra o funcionamento do Cemitério, alegando má posição em relação aos ventos que

sobrevoavam a cidade. A Junta de Higiene respondeu o parecer colocando ser “insustentável a

idéia de que o lugar fora má”, embora a Lei provincial n° 427 que autorizou o funcionamento

do Cemitério do Gavião, não mencionasse nada sobre comissões para examinar o terreno do

Cemitério (MARANHÃO,1855, p. 12).

Joaquim Luiz Simões Lírio24 entrou com uma representação contra “damnos causados

com a edificação do cemitério da Santa Casa de Misericórdia”, em razão disso, o governo da

Província enviou dois avaliadores, sendo que um deles era o procurador fiscal da fazenda

provincial, no intuito de “arbitrar quantia necessaria para a satisfação dos damnos”. Depois da

avaliação foi firmado um contrato entre o governo e Joaquim Luiz Simões Lírio “no qual este

se obrigara a nunca mais exigir quantia alguma à Província acerca da satisfação dos damnos, e

outro sim o não poderão fazer os seus herdeiros” (MARANHÃO, 1861, p. 133).

Enquanto o Cemitério dos Passos passava ao longo da segunda metade do Oitocentos

por várias comissões que examinaram a integridade de seu terreno, culminando com a

interdição dos enterros em seu terreno, o Cemitério do Gavião apesar da existência de fatos

que depusessem contra o seu funcionamento, não houve nenhuma pressão por parte dos

órgãos administrativos a favor de investigações do terreno ou embargo dos enterramentos.

A Santa Casa de Misericórdia teve várias vantagens com o resultado desfavorável do

processo de investigação do Cemitério pertencente à Irmandade dos Passos, pois a mesma lei

que obrigava a desapropriação do terreno do Cemitério dos Passos, conferia a Irmandade da

Misericórdia vários privilégios. Os mausoléus que serviram para abrigar os restos mortais dos

24 A documentação não informa a ocupação de Joaquim Luiz Simões Lírio, nem a natureza dos danos

provocados pela construção do Cemitério do Gavião.

irmãos congregados a Irmandade dos Passos foram transferidos para o Cemitério do Gavião

pela despesa do tesouro provincial e os irmãos fundadores do terreno, que tivessem comprado

“catacumbas e carneiros e iguais porções de terreno” teriam de reclamar a Santa Casa de

Misericórdia (MARANHÃO, 1870, p. 191). Ficava autorizada ainda, a obrigação do governo

da Província do Maranhão a:

“emprestar sem juros até a quantia de dez contos de reis em apólices [...] para serem applicados pela maneira seguinte para a conclusão de obras das obras de seu cemitério, e seis contos de reis para a construção do muro que tem de rodear a quadra contígua ao hospital” (MARANHÃO, 1870, p. 191-192).

Esses exemplos denotam uma grande intervenção do governo provincial no sentido de

favorecer as empreitadas da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, visto que com a

interdição do Cemitério dos Passos, a entidade pôde obter créditos no sentido de ampliar suas

atividades no que se refere aos ritos fúnebres. Com a promulgação da Lei Provincial N° 1.020

de 1873, “ficam absolutamente prohibidos em toda a Província os enterramentos no recinto

das igrejas, n’aquellas localidades, que possuírem cemitérios”, por essa lei até os Presidentes

da Província do Maranhão teriam seus ritos fúnebres realizados nos terrenos dos cemitérios

(MARANHÃO,1873, p.10). O Cemitério do Gavião, construído pelos membros da

Misericórdia se consolida então como o centro oficial de enterramentos da cidade de São

Luís.

3.3 “Eis o dia de luto”: o Cemitério do Gavião no cotidiano ludovicense

O monopólio da realização de enterros em seu Cemitério proporcionava para os

membros da Irmandade da Misericórdia mais do que a possibilidade de aumento de suas

rendas, significava também uma continuidade de intervenção na vida dos habitantes da cidade

de São Luís.

O Cemitério do Gavião foi se configurando como um espaço de suma importância na

estrutura urbana de São Luís. Perpassava esse espaço atitudes de coletivismo e associativismo

caracterizados nas aglutinações de pessoas para a construção e manutenção desses locais.

Respeito religioso, temor e resignação diante da morte, eram os sentimentos que a população

nutria diante da função desses terrenos que estavam sendo incorporados ao cotidiano das

pessoas.

Em São Luís, após a proibição dos enterramentos realizados no interior ou nos

terrenos próximos às igrejas católicas, o Cemitério do Gavião passa a ser o palco principal

para a realização de homenagens em memória dos mortos. Na véspera do dia de finados, data

que ocorria a Procissão dos Ossos, quando a noite caia na cidade as pessoas se agitavam,

colocavam seus melhores trajes e saiam às ruas. Com “semblantes entristecidos” os

participantes da procissão rumavam ao Cemitério, lembrando de algum ente querido que por

ventura já tivesse falecido (LISBOA, 1991, p. 332).

A Procissão dos Ossos percorria as principais ruas da cidade, aglutinando uma

multidão que iria “nesse momento solene” fazer sua homenagem ao culto aos mortos. As

irmandades religiosas participavam ativamente, carregando “círios, lanternas e archotes”,

ocupando lugares de destaque na multidão que se enfileirava. Na frente da procissão, figurava

“como em troféu a imagem do senhor crucificado e vários painéis de santos”. Ao fim da

multidão enfileirada ia “o sarcófago que encerrava os ossos, coberto de um pano negro com

uma cruz de galões mortuários, e carregado aos ombros pelos irmãos da Misericórdia”

(LISBOA, 1991, p 332).

Todo o percurso da procissão era marcado pela participação da banda militar que

tocava “uma música chorosa e sentida”. Os sinos das igrejas dobravam enquanto a multidão

“vestida de negro e branco, e a tropa com armas em funeral”, passavam em direção ao

Cemitério (LISBOA, 1991, p. 332-333).

A Procissão dos Ossos, por volta de meados da década de quarenta do Oitocentos,

tinha como ponto principal a Igreja de São Pantaleão, anos depois, com a construção do

Cemitério do Gavião, essa solenidade religiosa usaria como lócus privilegiado, o espaço do

Cemitério. Essa relação entre a realização da procissão e o terreno do Cemitério, acabava por

vincular o espaço da “morada dos mortos” à experiência cotidiana dos indivíduos,

ressignificando um sentimento de familiaridade e segurança que as pessoas sentiam com os

ritos fúnebres outrora realizados nos templos católicos.

A multidão rumava em direção ao caminho que separava os limites do perímetro

urbano da cidade do Cemitério do Gavião. Dentro do Cemitério “junto à porta de ferro, erguia

o púlpito”. “A multidão esperava atenta e ansiosa” o sacerdote começar a missa, cumprindo

assim os desígnios da fé católica e do culto aos mortos (LISBOA, 1991, p. 334-335).

O sermão era preparado de forma que os participantes se resignassem do fim

inevitável. Lisboa, relatando sua presença em uma das missas realizadas na Procissão dos

Ossos, afirmava que o ouvinte pensaria sobre “a inanidade transitória da vida; e da reunião

dos mortos e dos vivos naquele ponto e prazo dado, [e] tirará lições e ensinos tremendos, com

que comova, aterre e enterneça alternativamente” (LISBOA, 1991, p.335). A Procissão dos

Ossos, por sua temática ligada à morte, proporcionava sentimentos ambíguos em seus

participantes, pois a constante lembrança do fim inevitável da existência se confundia com a

agitação de uma multidão cheia de vida e cores.

A obrigação com a memória dos mortos na procissão durava até sete horas da noite,

onde se desenvolviam atividades com missas precedidas “de matinas e laudes de defunctos,

cantadas”. Os mesários da Santa Casa de Misericórdia, que eram responsáveis pela realização

da Procissão dos Ossos, convidavam às figuras mais importantes da cidade, incluindo o

Presidente da Província do Maranhão, com o objetivo de dar mais respeitabilidade à procissão

e “torna-la mais solenne”. A mesa administrativa da Misericórdia organizava todos os

preparativos para que a procissão fosse realizada com sucesso, enviando solicitações ao chefe

de policia para enviar soldados com objetivos de assegurar que não houvesse nenhum

transtorno no desenrolar da festividade (SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1863, doc.

44).

A Procissão dos Ossos era inserida nos quadros das despesas que os mordomos da

Santa Casa de Misericórdia tinham com o Cemitério do Gavião. O governo da Província

financiava parte da realização da festa com os subsídios que o Presidente da Província,

enquanto protetor da entidade destinava à Irmandade.

Os empregados do Cemitério do Gavião ficavam atentos à movimentação da multidão

para impedir a danificação da estrutura do terreno, das sepulturas e dos monumentos em favor

dos mortos. Eram eles que cuidavam do embelezamento do local cuidando da arrumação dos

mausoléus, impedindo que o mato crescesse ou que animais adentrassem as catacumbas

(REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA, 1831, fl. 03).

O Mordomo encarregado pelo Cemitério frequentemente tinha problemas com a falta

da permanência dos empregados durante a noite. O regulamento para os cemitérios sob a

administração da Irmandade da Misericórdia, estipulava que os empregados, em sua maioria

escravos, eram obrigados a passar a noite dentro do cemitério para vigiar e proteger o lugar.

Não era incomum, corpos de indigentes vindos do Hospital de Caridade e escravos mortos

(geralmente por não resistirem a castigos impostos por seus senhores), serem deixados no

portão do Cemitério, ou mesmo jogados por cima do muro dentro do terreno.

(REGULAMENTO DO CEMITÉRIO DA MISERICÓRDIA, 1831, fl. 03).

Em ofício enviado ao Presidente da Província, datado de 1871, o secretário da Santa

Casa de Misericórdia avisava que “resolveu a respectiva meza administrativa que se não se

fação enterramentos à noite, senão em caso de força maior” (SECRETARIA DA

MISERICÓRDIA, 1871, doc. 22). Essa medida teve sua justificativa pela falta de escravos

que a Irmandade dispunha para o serviço do Cemitério, e para suprir a falta de mão-de-obra, o

Mordomo da Igreja e do Cemitério apelou para a contratação de homens livres para vigiar o

lugar durante a noite. A contratação não trouxe resultados satisfatórios, pois “estes [os

homens livres contratados] não querem permanecer no cemitério além das seis horas da tarde”

(SECRETARIA DA MISERICÓRDIA, 1871, doc. 22).

Podemos especular que uma das causas da dificuldade que o Mordomo do Cemitério

tinha em encontrar homens para permanecer cuidando do terreno após o crepúsculo estava

atrelada ao temor associado aos cemitérios como lugares tenebrosos, cercados de

significações ambíguas. O ideário cristão reinventou o cemitério como um local sagrado, onde

os mortos poderiam descansar em paz, idéia que era constantemente reforçada pelos cultos

fúnebres anuais e orações em interseção da alma. Mesmo assim persiste no imaginário

coletivo ocidental a noção de que os cemitérios são lugares sinistros, agourentos e perigosos

que remetem a uma idéia de cidade estranha e insondável, a “morada dos mortos” que

lembrava a todos que cedo ou tarde teríamos de nos curvar à sua acolhida.

Evitava-se adentrar pelos seus portões ou passear por seus arredores em horários

carregados de significações. De dia era um espaço de convivência, onde pessoas trabalhavam,

cuidavam das plantas que embelezavam o Cemitério e dos monumentos em memória dos

mortos, trocando relações de estima com aqueles que perderam algum ente-querido. À noite,

quando o sacristão e os encarregados dos serviços manuais do Cemitério deixavam o terreno

em direção à cidade, o lugar assumia um aspecto ligado ao sombrio e ao sobrenatural.

Quando as comissões de exames fizeram seus laudos a respeito da localização do

Cemitério dos Passos levaram em conta se o local poderia trazer aflições nas pessoas que

passassem pelos seus arredores.

O Cemitério dos Passos [...] está na frente da única estrada que existe para os subúrbios da cidade, e por onde necessariamente tem de passar o bom, como o convalescente, em seus passeios higiênicos, pelo que terá de despertar neste idéias bem lúgubres, sobretudo se ali existir algum objeto que lhe seja caro, como pai, mãe, mulher, filhos e irmãos (MARQUES, 1970, p. 195).

A imagem do Cemitério trazia desconforto. Os médicos preocupavam-se ainda mais

com os enfermos, e em como essa imagem poderia afetar seu estado de saúde.

E o que será do convalesceste, que tendo a ventura vencer longa e perigosa enfermidade, que o poz visinho do túmulo [...] encontra só procurava saúde um cemitério com todas as suas idéias de passamento, e agonia ou sem querer, escuta o entoar sublime, mas pavoroso do canto divino com que nos despedimos que é já ido para a presença do senhor (MARANHÃO, 1871, p. 45)

A imagem da morte se confundia com a do cemitério, e para muitos era uma coisa só,

refletindo significações que se cruzavam com o divino e o soturno, imagens duais de bem e

mal, luz e trevas, em permanente confronto e interação. Junto a esses signos coexistia a

imagem do cemitério atrelado aos ideais civilizatórios almejados pelos médicos e

administradores da cidade. Os ímpetos reformistas criaram a imagem de um cemitério

higienizado, tendo como modelo os cemitérios-monumentos existentes na Europa.

O desejo de normatizar os ritos de enterros no intuito de inserí-los em um projeto

reformador para alcançar um patamar civilizado, unido ao medo das contaminações pelas

epidemias, põe em curso alterações em antigos costumes. Exemplo disto era o costume de

transportar o morto em uma rede, que se colocava enquanto uma prática de proximidade entre

os vivos e os mortos. Como um dos objetivos do discurso médico era o término desse contato

direto, em abril de 1856 a Câmara Municipal baixou uma Postura referente à utilização de

carros de tração animal no transporte de cadáveres para o Cemitério. “Dora em diante a

condução para os cemitérios nesta capital será feita em veículos” (SÃO LUÍS, 1856, fl. 02).

No funcionamento do Cemitério do Gavião, a Irmandade da Misericórdia já contava

com o serviço de carros puxados a cavalo como estipulava a Postura. Os carros se tornaram

uma fonte a mais na renda da Irmandade que hierarquizava a qualidade e o preço dos serviços.

Os carros descritos como de 1º classe, por exemplo, contavam com espaço “forrado por

viludilho preto, ricamente agaloada, puxado a 2 cavalos coberto de preto, com galões entre-

finos, um boleiro vestido de casaca e chapéu de plumas, e 4 lacaios decentemente vestidos

para hirem ao lado do carro”. Esse luxo saia por 50$000 réis. (SÃO LUÍS, 1856, fl. 02).

A Lei provincial de julho do mesmo ano ainda acrescenta que em tempos de epidemia

“em que a mortalidade por esta causada exceda o dobro da ordinária serão os cadáveres

conduzidos em carros apropriados, decentemente preparados, e os caixões fechados e

cobertos” (MARANHÃO, 1856, p. 24). Mesmo quando a cidade não estivesse sendo atacada

por epidemias os caixões que fossem levados a braço deveriam estar lacrados. Deveria ser

tomado todo o cuidado para afastar o perigo à saúde pública.

No ofício descrevendo a qualidade dos carros, podemos perceber certos aspectos

“propagandistas” na tentativa de atrair a parcela abastada da população, tornando assim o

cemitério um local seguro e distinto para o “descanso eterno”. Na prática, o funcionamento do

Cemitério de Gavião se colocava como uma continuidade e pretensa ampliação das atividades

de inserção nos discursos reformistas do espaço da cidade e da higienização dos ritos de

enterros esboçados pelo velho Cemitério Católico da Misericórdia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas leituras preliminares para a produção deste trabalho tínhamos uma noção da

Irmandade da Santa Casa de Misericórdia como uma instituição que tinha essencialmente a

função de levar assistência às camadas excluídas e marginalizadas da sociedade. Essa “missão

salvacionista” exaltada na historiografia sobre a Irmandade geralmente deixava em segundo

plano as análise dos diversos interesses por trás dessas práticas caritativas

Na documentação trabalhada percebemos que os membros da Irmandade da

Misericórdia criaram, a partir de atitudes caritativas, uma identidade filantrópica que a

revestia com uma imagem de uma instituição que direcionava seus esforços e preocupações

aos carentes da cidade de São Luís. Por outro lado, as ações filantrópicas da Irmandade da

Misericórdia não estavam destituídas de interesses diversos, interesses estes que abrigavam

acordos, conflitos, negociações e disputas no cenário político da São Luís de meados do

Oitocentos.

A análise dos ofícios produzidos pelos membros da Misericórdia e autoridades

administrativas da Província do Maranhão nos permitiu perceber como os membros da

entidade se valiam da construção de edifícios assistenciais, como hospitais, cemitérios, asilos

de recolhimentos para os expostos e para os enfermos do mal de Lázaro, a fim de acumular

rendas provenientes de subsídios deixados para a entidade pelo governo provincial do

Maranhão.

Era de grande interesse dos mesários da Irmandade da Misericórdia manter edifícios

assistenciais para justificar os pedidos de verbas ao governo provincial. Para além das

questões financeiras, a manutenção de obras caritativas refletia-se em status para os

participantes da entidade. Os que faziam parte da Misericórdia e ajudavam aos mais

necessitados com “espírito desinteressado”, compartilhavam da imagem de prestígio que a

Irmandade se esforçava em construir ao longo de sua existência em São Luís. Concluímos, no

entanto, que a imagem de honra e prestígio desses indivíduos como membros “caridosos” da

Misericórdia facilita suas tentativas de alcançar benesses e privilégios nos assuntos políticos.

Mesmo se esforçando em difundir na produção de Compromissos, Relatórios e

Regulamentos que normatizaram o funcionamento interno da entidade, uma idéia de

filantropia e autonomia em relação ao governo provincial, esse discurso não se sustentava

diante da forte intervenção do governo nas decisões internas da Irmandade, principalmente a

partir de 1843, quando os mesários começaram a serem nomeados pelos presidentes da

Província, extinguindo assim as eleições para esses cargos e diminuído as conseqüentes

disputas que se travavam para assumir um posto que garantisse a possibilidade de acúmulo de

rendas.

Outro ponto que abordamos foi a tentativa da Irmandade da Misericórdia em adequar a

lógica de funcionamento de seus estabelecimentos à emergência de um discurso higienizador,

difundido principalmente pelos médicos em conjunto com os órgãos administradores das

províncias. Na documentação analisada percebemos, pelo menos no âmbito discursivo, o

engajamento da Misericórdia às propostas de reforma do espaço público de São Luís,

principalmente no que se refere ao funcionamento do seu Cemitério.

O chamado discurso higienizador objetivava, portanto, a urbanização e ordenação dos

espaços considerados perniciosos à salubridade pública, esse discurso, porém, não deixou de

veicular interesses que se adequaram ora a um grupo da sociedade, ora a outro, como ficou

claro nas disputas apresentadas envolvendo a Irmandade da Misericórdia e a Irmandade dos

Passos pela construção e obtenção de lucros com seus respectivos cemitérios.

Ressaltamos, por fim, o nosso interesse em prosseguir com esta temática e explorá-la

mais detidamente em trabalhos posteriores, por entendermos que o referido tema possui boas

chances de desenvolvimentos futuros.

REFERÊNCIAS

FONTES

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