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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas LETÍCIA GRAZIELE DE FREITAS LEMES VIVENDO UM “ESPETÁCULO DE MISÉRIAS”: A EXPERIÊNCIA DOS ESCRAVOS TRAFICADOS PARA CAMPINAS, 1860-1888. CAMPINAS 2016

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

LETÍCIA GRAZIELE DE FREITAS LEMES

VIVENDO UM “ESPETÁCULO DE MISÉRIAS”:

A EXPERIÊNCIA DOS ESCRAVOS TRAFICADOS PARA CAMPINAS, 1860-1888.

CAMPINAS

2016

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LETÍCIA GRAZIELE DE FREITAS LEMES

VIVENDO UM “ESPETÁCULO DE MISÉRIAS”: A EXPERIÊNCIA DOS

ESCRAVOS TRAFICADOS PARA CAMPINAS, 1860-1888.

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e

Ciências Humanas da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos para

obtenção do título de Mestra em História, na Área

História Social.

Supervisor/Orientador: Profa. Dra. Silvia Hunold Lara

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA

PELA ALUNA LETÍCIA GRAZIELE DE FREITAS

LEMES E ORIENTADA PELA PROFA. DRA.

SILVIA HUNOLD LARA.

______________________________________

CAMPINAS

2016

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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta

pelos Professores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 27 de setembro de 2016,

considerou a candidata Letícia Graziele de Freitas Lemes aprovada.

Profa. Dra. Silvia Hunold Lara

Prof. Dr. José Flávio Motta

Prof. Dr. Ricardo Figueiredo Pirola

Profa. Dra. Maria de Fátima Novaes Pires

Prof. Dr. Robert Wayne Andrew Slenes

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica da aluna.

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Para meus pais, Raquel e José.

E para meu filho, Marcos Gabriel.

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AGRADECIMENTOS

É chegada a hora dos agradecimentos, e como é bom saber que há tantas pessoas a

agradecer. A começar por Deus, que é o princípio de tudo, me possibilita sonhar e concluir

tantos projetos de vida e me cerca de pessoas maravilhosas todos os dias. Muitas delas foram

essenciais para a realização deste trabalho. Espero não me esquecer de mencionar nenhum

nome, mas se o fizer aqui, não os esquecerei em minhas orações.

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, e

também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, pelo

apoio financeiro a esta pesquisa.

Agradeço, imensamente, à Prof.ª Dr.ª Silvia Lara, que me orientou na realização deste

trabalho, com muita dedicação e paciência em nossas reuniões, na leitura dos textos, nas

sugestões e correções ao longo de todo o percurso, sendo criteriosa e ao mesmo tempo

acolhedora, especialmente nos momentos mais necessários. A admiração que sempre tive por

sua excelência acadêmica cresceu ainda mais nos últimos anos.

Estendo minha gratidão também aos professores Ricardo Pirola e José Flávio Motta,

que gentilmente aceitaram o convite para estar presente na banca de avaliação desta

dissertação. Ao primeiro, agradeço ainda pela leitura cuidadosa e importantes sugestões feitas

por ocasião da qualificação. Ao segundo, sou grata também pelo aprendizado no curso de

Demografia Histórica que acompanhei na USP e pelo seu grande incentivo. Agradeço também

ao professor Robert Slenes, que fez observações essenciais a partir do texto da qualificação.

Aos colegas da Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, que estiveram

presentes desde o início de meus dias na Unicamp, sempre com gentileza, carinho e alegria.

Também aos funcionários do Arquivo Edgard Leuenroth e do Centro de Memória da

Unicamp, em especial o Emerson, no AEL, a Aline e o Fernando Abraão, no CMU, sempre

dispostos a me ajudar em tudo, além da amizade e alegria com que sempre me receberam.

Minha gratidão também à Flávia, do Cecult, que sempre me auxilia em todas as questões

burocráticas.

Aos colegas que me fizeram companhia na empreitada acadêmica e são tão valiosos,

Cássia, Liliana, Priscila, Tarsila e, em especial, Ana Laura, Beatriz, Daniel, Jéssica, João,

Joice, Marina e Miriam, que contribuíram de modo singular para que este trabalho fosse

realizado. À minha irmã, Mábile, e sua filha, Nathália, agradeço pela companhia e auxílio,

principalmente no último ano. À minha sogra, dona Aparecida, por todo cuidado e carinho.

Agradeço ao meu companheiro Samuel, pessoa espetacular, com a qual tenho o prazer de

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dividir o dia-a-dia, os planos, as angústias, as conquistas. Devo a ele mais do que gratidão,

todo meu coração.

Também quero fazer lembrança das comadres Camila, Angélica, Consolação e dos

compadres Nilson, Ademir e Valdir, que dividiram tantos momentos importantes nos últimos

anos, dando-me apoio e carinho incalculáveis.

Aos meus pais, agradeço por tudo. De modo especial, à minha mãe, mulher simples e

guerreira, cujo apoio foi essencial para concluir esta pesquisa e com quem tenho aprendido

cada dia mais. Agradeço também ao pequeno Marcos Gabriel, que tem sido paciente e

amoroso vendo sua mãezinha sentada por tantas horas em frente ao computador. Quando

achei que eu já era muito feliz, ele chegou e me mostrou que tudo poderia ser ainda melhor.

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RESUMO

Nesta dissertação discutimos as relações entre a intensificação do comércio interno de

escravos no Império do Brasil, após o fechamento do tráfico atlântico em 1850, e a crescente

mobilização escrava nas décadas finais da escravidão no Sudeste. Com foco no município

paulista de Campinas e no período de 1860 a 1888, examinamos processos cíveis e criminais

envolvendo pessoas escravizadas, anúncios de fuga de cativos e registros do pagamento do

imposto sobre as transações de compra e venda de escravos. Nessa documentação, atentamos

para as múltiplas experiências vividas e escolhas feitas pelos cativos trazidos ao município

campineiro por meio do tráfico interno, ressaltando a formação de novas redes familiares e de

solidariedade, bem como as estratégias para sair do cativeiro (por meio de alforrias, fugas ou

crimes).

Palavras-chave: tráfico interno de escravos, Campinas, século XIX, criminalidade escrava,

fuga de escravos, ações de liberdade, experiência escrava.

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ABSTRACT

In This monograph we discuss the relationship between the intensification of the

internal slave trade in the Empire of Brazil, after the end of the Atlantic slave trade in 1850,

and the growing mobilization of slaves in the final decades of slavery in the Southeast Brazil.

Focusing on the city of Campinas and in the period 1860-1888, we examine civil and criminal

trials involving enslaved people, runaway captives’ announcements and records of tax

payments on transactions of purchase and sale of slaves. In this sources, we look at the

multiple experiences and choices made by slaves brought to the city of Campinas through the

internal trade, emphasizing the formation of new family and solidarity networks, as well as

strategies to get out of bondage (through manumission, flights or crimes).

Key words: internal slave trade, Campinas, XIX century, slave crime, slave runways, freedom

lawsuits, slave experience.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Origem dos escravos em Processos Criminais, Ações de Liberdade e anúncios de

fuga (Campinas, 1860-1888) .................................................................................................... 39

Tabela 2 – Localidade de origem dos crioulos réus em Processos Criminais (Campinas, 1860-

1886) ......................................................................................................................................... 47

Tabela 3 – Origem dos escravos crioulos réus em Processos Criminais, por década

(Campinas, 1860-1886) ............................................................................................................ 48

Tabela 4 – Origem dos Réus com informação de compra e venda (Campinas, 1860-1886). .. 49

Tabela 5 – Ocupação dos escravos adultos do sexo masculino em Processos Criminais

(Campinas, 1860-1886). ........................................................................................................... 52

Tabela 6 – Tipos de crimes cometidos por escravos em Campinas, por origem (1860-1886). 60

Tabela 7 – Tipos de conflitos envolvendo os réus forasteiros (Campinas, 1860-1886). .......... 61

Tabela 8 – Tipos de conflitos envolvendo os réus nascidos em Campinas (Campinas, 1860-

1886). ........................................................................................................................................ 61

Tabela 9 – Tipos de conflitos envolvendo os réus escravos, por décadas (Campinas, 1860-

1886). ........................................................................................................................................ 88

Tabela 10 – Tempo de moradia dos escravos nas fazendas onde cometeram crimes, por

origem (Campinas, 1860-1886). ............................................................................................. 101

Tabela 11 – Escravos em anúncios de fugas, por década e origem (Campinas, 1860-1888). 105

Tabela 12 – Localidade de origem dos escravos crioulos em anúncios de fuga (Campinas,

1860-1888). ............................................................................................................................ 107

Tabela 13 – Origem dos Fugitivos com informação de compra (Campinas, 1860-1888)...... 107

Tabela 14 – Sexo dos escravos em anúncios de fuga (Campinas, 1860-1888). ..................... 108

Tabela 15 – Ocupação dos escravos adultos em anúncios de fuga, segundo a origem

(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 109

Tabela 16 – Anúncios com suspeita de que os fugitivos tenham tentando voltar para os locais

de origem, por localidade de origem (Campinas, 1860-1888). .............................................. 111

Tabela 17 – Distribuição dos escravos em fugas coletivas e individuais, segundo a década

(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 115

Tabela 18 – Tempo de moradia dos escravos nos anúncios de fuga, por origem dos fugitivos

(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 123

Tabela 19 – Fugitivos que aparecem em crimes e Ações de Liberdade, por origem (Campinas,

1860-1888). ............................................................................................................................ 125

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Tabela 20 – Sexo e estado conjugal dos escravos em Ações de Liberdade, por décadas

(Campinas, 1860- 1888). ........................................................................................................ 138

Tabela 21 – Idade dos escravos em Ações de Liberdade, de acordo com o sexo, por décadas

(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 138

Tabela 22 – Localidade de origem dos crioulos libertandos em Ações de Liberdade

(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 141

Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com

a origem (Campinas, 1860-1888). .......................................................................................... 142

Tabela 24 – Distribuição dos escravos em Ações de Liberdade coletivas e individuais, por

origem (Campinas, 1860-1888). ............................................................................................. 149

Tabela 25 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram Ações de

Liberdade, por origem (Campinas, 1860-1888). .................................................................... 157

Tabela 26 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram Ações de

Liberdade, por tipo de processo (Campinas, 1860-1888). ...................................................... 158

Tabela 27 – Distribuição dos escravos réus, vítimas, fugitivos e litigantes por origem e tempo

de moradia no momento da ação (Campinas, 1860-1888). .................................................... 166

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Origem dos escravos comercializados em Campinas (1860-1884)....................... 37

Gráfico 2 – Origem dos crioulos réus em Processos Criminais, por década (Campinas, 1860-

1886). ........................................................................................................................................ 48

Gráfico 3 – Estado conjugal dos escravos na matrícula de 1873 e em Processos Criminais. .. 51

Gráfico 4 – Escravos em anúncios de fugas: distribuição percentual por décadas ................ 105

Gráfico 5 – Origem dos escravos crioulos em anúncios de fugas, ......................................... 106

Gráfico 6 – Origem dos escravos crioulos em Ações de Liberdade, por década (Campinas,

1860-1888). ............................................................................................................................ 140

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ABREVIATURAS E SIGLAS

AEL – Arquivo Edgard Leuenroth

ACI – Seção Processos Crimes do Interior

CMU – Centro de Memória da Unicamp

CRC – Fundo da Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas

CSP – Fundo Autos Crimes em São Paulo

TJC – Fundo do Tribunal de Justiça de Campinas

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SUMÁRIO

RESUMO ........................................................................................................................ 8

ABSTRACT ................................................................................................................... 9

LISTA DE TABELAS .................................................................................................. 10

LISTA DE GRÁFICOS ................................................................................................ 12

ABREVIATURAS E SIGLAS ..................................................................................... 13

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 16

CAPÍTULO 1 – O tráfico interno de escravos para Campinas .................................... 27

1.1. O mercado interno de escravos na segunda metade do século XIX .................. 27

1.2. Forasteiros para Campinas ................................................................................. 33

1.3. Os forasteiros em Campinas .............................................................................. 40

1.4. De forasteiros e desenraizados ........................................................................... 44

CAPÍTULO 2 – Forasteiros criminosos ....................................................................... 46

2.1. Os crimes e os criminosos ................................................................................. 46

2.2. Cúmplices e aliados ........................................................................................... 62

2.3. Vítimas ............................................................................................................... 81

2.4. Momento do crime ............................................................................................. 87

CAPÍTULO 3 – Forasteiros fugitivos ........................................................................ 102

3.1. As fugas e os fugitivos ..................................................................................... 102

3.2. Aliados nas fugas ............................................................................................. 114

3.3. Momento da fuga ............................................................................................. 123

CAPÍTULO 4 – Forasteiros em busca da liberdade ................................................... 134

4.1. As Ações de Liberdade e os libertandos .......................................................... 134

4.2. Alianças pela liberdade .................................................................................... 148

4.3. Momento de início do litígio ........................................................................... 157

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 165

FONTES ..................................................................................................................... 171

a) Fontes manuscritas ............................................................................................. 171

b) Fontes impressas ................................................................................................. 171

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c) Fontes digitalizadas ............................................................................................ 171

BIBLIOGRAFIA CITADA ........................................................................................ 172

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INTRODUÇÃO

Eram os idos de 1874 quando o agente comercial Antônio Teixeira Marinho trouxe

do Rio de Janeiro um comboio de 19 escravos para ser vendido no município paulista de

Campinas.1 Chegaram à cidade no fim do dia e passaram a noite em uma casa “destinada para

isso”. Nessa casa, um grande número de escravos dormiu em comum na sala, enquanto

Marinho e duas escravas dormiram em um quarto. Ao amanhecer, o agente comercial foi

chamado pelos cativos Antônio Baiano e Francisco mulato para verificar um escravo que

estaria enfermo a um canto do dormitório.

“apenas Marinho chegou-se ao enfermo, saltou, de improviso, o referido Francisco,

de machado alçado, e deu-lhe alguns golpes que o lançara por terra com o crânio

fraturado (...). Feito isso, correu Antônio Baiano a fechar a porta, Francisco foi

também à outra porta, e ambos intimaram a todos – que dali não saíssem (...). Então

Antônio deu mais uma pancada de machado em Marinho, certamente com esse

mesmo machado com que Francisco o ferira e deixara no lugar”.2

Em seguida, os dois escravos foram ao aposento de Marinho em busca do que

pudessem lá encontrar e convidaram as duas raparigas que ali estavam para fugir com eles,

mas elas não aceitaram. Depois, enquanto Francisco e Antônio guardavam as saídas para que

os demais escravos não fossem avisar ninguém, um terceiro cativo, chamado Guilherme,

pegou os papéis que o agente comercial guardava em suas canastras e levou-os para fora, para

destruir as provas da propriedade dos cativos adquiridos por Marinho para a venda.

Enquanto avaliava os papéis que encontrara entre os pertences do comerciante,

Guilherme não se deu conta da fuga do cativo Luís, que conseguiu sair da casa e avisar as

autoridades. Guilherme ainda conseguiu evadir-se,3 mas todos os outros escravos foram

levados à delegacia, onde os depoimentos foram tomados e um processo criminal teve início

com o indiciamento dos escravos Francisco, Antônio e Guilherme.

Narrativa semelhante a esta foi contada pelo historiador Sidney Chalhoub na obra

Visões da liberdade, segundo a qual o comerciante José Moreira Veludo foi atacado pelos

1 Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de José Júlio de Barros, Campinas,

1874. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP), Seção Processos Crimes do

Interior – Campinas (ACI), Microfilme CSP 231, Documento 004. 2 “Denúncia do Promotor Público”. Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de

José Júlio de Barros, Campinas, 1874, AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 231, Documento 004. 3 “Assassinato”, Gazeta de Campinas, nº 467, 14 de junho de 1874.

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escravos que ele dispunha para vender em sua loja na Corte do Rio de Janeiro.4 Diferente de

Veludo, no entanto, o agente comercial Marinho não sobreviveu ao ataque.

Outros aspectos, todavia, são semelhantes nas duas histórias e ajudam a desvendar

alguns aspectos da escravidão no Sudeste na segunda metade do século XIX.

Assim como os escravos da loja de Veludo, o grupo de cativos que pernoitaram com

Marinho em Campinas estava destinado à venda e era nascido em diferentes províncias do

Império. A maioria deles, nos dois casos, era formada por cativos oriundos das províncias do

Norte e Nordeste.5

Em sua análise, Chalhoub apontou para a importância que o contexto de

intensificação do tráfico interno de cativos na segunda metade do século XIX teve para a

história do levante na loja de Veludo.6 Os escravos que participaram desse ato criminoso na

Corte, assim como os que assassinaram Marinho em Campinas, haviam sido trazidos ao

“local do crime” por meio do tráfico interprovincial e buscavam interferir em seus destinos

para além do arbítrio dos negociantes.

Junto com eles, muitos outros cativos foram trazidos das províncias do Norte,

Nordeste e Sul para o Sudeste na segunda metade do século XIX, quando o fechamento do

tráfico transatlântico de escravos, a partir de 1850, causou o reajuste dos negócios da

escravidão. Pelo menos 200 mil cativos foram transacionados dentro do Império para suprir a

necessidade de mão-de-obra nas crescentes regiões cafeeiras do Sudeste no período.7

No delito ocorrido em Campinas, parece evidente que os escravos indiciados pelo

assassinato do agente comercial Marinho estavam tentando evitar sua venda no município.

Pelo depoimento dos outros escravos que estavam em poder do comerciante, podemos saber

que pelo menos um dos suspeitos lutou para não ser embarcado no Rio de Janeiro8 e outro

teria dito “que aqui não seria vendido, por que ao sair a [sic] rua havia de fazer um

espalhafato tal que o tornasse invendável”.9

Além desse caso, a documentação criminal de Campinas está recheada de

assassinatos e ofensas físicas graves praticadas por cativos aos seus senhores ou feitores,

especialmente no ambiente das fazendas de café.

4Sidney Chalhoub. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo:

Companhia das letras, 1990, capítulo 1, p. 29-94. 5Sidney Chalhoub. Visões da liberdade..., op. cit., p. 43.

6Sidney Chalhoub. Visões da liberdade..., op. cit., p. 47-9.

7Robert Slenes.The demography and economics of Brazilian slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford

University, Stanford, 1976, p. 138. 8 “Auto de perguntas a Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.

9 “Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.

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Ao analisar uma extensa documentação criminal de dois municípios paulistas ao

longo do século XIX, incluindo Campinas, Maria Helena Machado concluiu que houve “uma

tendência ascendente das transgressões escravas, tanto daquelas relacionadas diretamente à

vigilância e disciplina do trabalho, quanto às correlacionáveis indiretamente ao sistema de

dominação escravista”.10

Por outro lado, Jonas Marçal de Queiroz chamou a atenção para a dificuldade de se

determinar esse aumento da resistência escrava de forma confiável, haja vista a incompletude

e parcialidade das fontes disponíveis e destacando que “os próprios contemporâneos estavam

divididos a este respeito”.11

Queiroz constatou que os boatos alarmantes sobre insurreições

gerais de escravos que proliferaram na documentação policial e na imprensa no período

exageravam nas proporções dos acontecimentos, ora com o objetivo de criticar a incapacidade

das autoridades policiais de manter a ordem, ora para exaltar seu mérito ao sufocar uma

tentativa de insurreição.12

Além do debate historiográfico em torno do questionamento se houve ou não, de

fato, um recrudescimento das ações violentas dos cativos na segunda metade do século XIX,

estes estudiosos discutiram se isso esteve diretamente ligado à expansão do tráfico

interprovincial de escravos para o Sudeste no mesmo período e se ele teria tido um efeito

determinante para o fim do escravismo.

Para Maria Helena Machado, não foi o aumento do tráfico interno o catalizador da

ampliação dos atos criminosos de escravos contra senhores e feitores, mas sim a rigidez cada

vez maior do sistema disciplinar das fazendas, que solapava as margens de autonomia

escrava, gerando tensões em torno daquilo que os cativos entendiam como direitos.13

Jonas Marçal de Queiroz tenta divisar a importância do comércio interno para o fim

da escravidão analisando o que motivou a Assembleia Provincial de São Paulo a instituir um

alto imposto sobre a importação de cativos para a província em 1881, pondo fim ao tráfico

interprovincial. O autor destacou, então, a importância das divergências político partidárias no

período, salientando que não basta olhar apenas a clivagem da relação senhor-escravo para

compreender aquela sociedade:14

10

Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão: trabalho, luta, resistência nas lavouras paulistas (1830-

1888). São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 32-3. 11

Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-

1889). Dissertação (Mestrado em História), Campinas, Unicamp, 1995, p. 180. 12

Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República...,op. cit.,p. 181. 13

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.

São Paulo: Edusp, 2010, p. 25. 14

Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República..., op. cit., Segunda parte, p. 39.

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19

“De um lado, os setores interessados em promover a imigração europeia

visualizavam na medida uma maneira de canalizar recursos e esforços nesse sentido;

de outro, os grupos escravocratas, que temiam as consequências de um aumento

excessivo da oferta de escravos na Província, por força da decretação de medidas

idênticas no Rio de Janeiro e Minas Gerais, passaram a apoiar a medida para que sua

valiosa mercadoria não fosse depreciada”.15

Também Ricardo Tadeu Caíres Silva estudou o intenso comércio de escravos da

Bahia para o Sudeste e verificou a resistência individual dos escravos durante a vigência do

tráfico interno.16

Todavia, o historiador concluiu que isso não foi determinante para o fim do

escravismo:

“Isto porque (...) nesse período nenhum levante coletivo foi tramado ou realizado

pelos escravos traficados, além do que seus atos de resistência e rebeldia individual

circunscreveram-se a ações direcionadas a seus opressores mais imediatos, (...)

sendo que na maioria destas ações seus autores receberam punições exemplares, pois

quando se tratava de contestações violentas da ordem a Justiça apoiava sem sombras

de dúvidas os escravocratas. Além disso, os atos extremos de violência contra

senhores e feitores só se tornaram expressivos a partir de meados da década de 1870,

quando os cativos já encontravam forte apoio em suas ações no movimento

abolicionista”.17

Caíres Silva vê no incremento do tráfico interno um efeito apenas potencializador

das tensões entre senhores e escravos, “gerando conflitos nem sempre solucionáveis no

âmbito privado, como antigamente acontecia”.18

Célia Maria Marinho de Azevedo19

e Richard Graham20

, por outro lado, retomaram

os discursos do século XIX relacionados ao epíteto de “negro mau vindo do Norte” ou à

“onda negra”, numa alusão ao protagonismo dos cativos comercializados no tráfico

interprovincial nos crescentes atos de rebeldia escrava no Sudeste. Esses estudiosos

destacaram a tendência à violência dos escravos transferidos à força para a região cafeeira,

como uma reação às situações de dor e desenraizamento causados pelo rompimento dos laços

familiares e dos acordos e negociações com os senhores nos locais de origem.

15

Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República..., op. cit.,p. 179. 16

Outra análise sobre a resistência dos cativos da Bahia a serem vendidos no tráfico interno para o Sudeste pode

ser visto em Maria F. N. Pires. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima (1860-

1920). São Paulo, Annablume, 2010. Para estudo semelhante sobre os escravos do Ceará, ver José H. F.

Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século

XIX (1850-1881). Fortaleza: SECULT/ CE, 2011. 17

Ricardo Tadeu Caíres Silva. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas últimas

décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Paraná,

Curitiba, 2007, p. 136. 18

Ricardo T. Caíres Silva. Caminhos e descaminhos da abolição..., op. cit.,p.136. 19

Célia Maria Marinho de Azevedo. Onda negra, medo branco: O negro no imaginário das elites século XIX,

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 20

Richard Graham. “Nos Tumbeiros Mais Uma Vez? O Comércio Interprovincial de escravos no Brasil”, Afro-

Ásia, 27, Salvador, UFBA, 2002, p. 121-160.

Page 20: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

20

Considerando as conclusões de uma série de estudos sobre o tráfico interno, Richard

Graham sublinhou que ele significava reviver as experiências do tráfico transatlântico para os

africanos que já estavam em solo brasileiro e eram vividas pela primeira vez pelos crioulos

aqui nascidos. Para Graham, a relação entre o tráfico interprovincial e a criminalidade escrava

no Sudeste foi determinante para o fim da instituição escravista. Isto porque, de acordo com o

historiador, os escravos que passavam pela dolorosa experiência do tráfico interprovincial

traziam consigo um sentimento de desenraizamento, uma vez que tinham rompidos seus laços

de família e solidariedade no local de origem, além de experimentarem formas de trabalho e

relações com os novos senhores muito distintas das que estavam acostumados. Assim, esses

indivíduos desenraizados estariam mais propensos ao crime e às fugas: “o crescimento da

resistência daqueles escravos que tinham sido arrancados de seus contextos familiares e

antigos laços sociais minou a autoridade dos senhores e encorajou-os a forçar sua própria

libertação através da ação direta”.21

O grande número de escravos “forasteiros”22

, isto é, não nascidos no município de

Campinas, que aparece na documentação criminal pode ser um indício que comprova essa

argumentação. Pelo menos 83,7% dos cativos réus nos processos julgados em Campinas após

1860 eram oriundos de outros municípios de São Paulo ou de outras partes do Brasil ou da

África.23

No entanto, Maria Helena Machado argumenta que essa evidência numérica não é

suficiente para confirmar a importância do tráfico interno para o aumento das ações escravas

contra o poder senhorial no período, nem para justificar o declínio do escravismo. A

historiadora pesquisou o tempo de moradia24

dos cativos nas fazendas, e constatou que a

maioria dos réus escravos em Campinas não era formada por recém-chegados do “Norte”,

como a tese do desenraizamento faria pensar, mas sim indivíduos enraizados, integrados há

certo tempo nas escravarias da qual faziam parte e que, por isso, já eram conhecedores da

região e das “margens de acomodação do sistema ao qual estavam submetidos”.25

Todavia, apesar de o tempo de residência ser um dado valioso para esse debate, não o

consideramos suficiente para discutir a influência que a experiência do tráfico poderia ter

21

Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, op. cit.,p. 122. 22

Emprestamos esta expressão de Joice Fernanda de Souza Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista: Escravos no

Comércio Interno de Cativos e suas Experiências em Campinas, 1850-1888. Dissertação (Mestrado em História),

Unicamp, Campinas, 2013. 23

Percentual calculado sobre o total de réus com origem conhecida. Processos Crimes do Interior – Campinas

(ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP. 24

O tempo de moradia mencionado por Machado era informado pelos próprios cativos no interrogatório nos

processos criminais, indicando a quanto tempo estavam em poder dos proprietários. 25

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit.,p. 25.

Page 21: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

21

sobre a ação cativa.26

Afinal, quanto tempo era necessário para que um cativo forasteiro

deixasse de ser um “desenraizado”? Ou, dito de outra forma, quanto tempo era necessário

para um cativo recém-chegado se tornar parte da comunidade escrava, de modo a não viver

mais uma situação de desenraizamento? Até que ponto tal cálculo temporal pode ser válido

para determinar as motivações de um crime ou de uma fuga?

Portanto, discutir a relevância do tráfico interno para as mobilizações escravas nas

décadas finais da escravidão exige que se vá além de uma observação quantitativa das origens

dos cativos criminosos ou do tempo de sua integração nas escravarias do Sudeste.

Não pretendemos com este trabalho dar uma resposta final para essas questões sobre

o recrudescimento das ações violentas dos escravos na segunda metade do século XIX, mas

acreditamos que é possível aventar algumas hipóteses que ajudem a discutir se há, de fato,

uma relação – direta ou indireta – entre tais ações escravas e sua experiência no tráfico

interno.

Embora seja relevante a análise quantitativa dos crimes de escravos em uma região

de expansão da cafeicultura como Campinas, é importante também aprofundar uma análise da

experiência da reconstrução das vidas dos escravos traficados que foram indiciados por atos

criminosos. Destaca-se, nessa linha de análise, o trabalho de Hebe Mattos, em que a autora

observa a importância dos laços familiares dos escravos e da troca de experiências entre os

cativos já residentes nas fazendas e os oriundos do tráfico para mudanças nas ações de

liberdade e crimes dos escravizados após 1850.27

Como observa a historiadora, o mais

importante não é contabilizar um aumento numérico dos atos de resistência à escravidão ao

longo do Oitocentos, mas sim a diferença nos discursos a eles ligados, que teriam contribuído

fortemente para o declínio do escravismo:28

“A originalidade da argumentação dos cativos

negociados no trafico interno, nas ultimas décadas da escravidão, está no sentido genérico que

atribuíam ao ‘mau cativeiro’ e na positividade que emprestavam ao ‘bom cativeiro’, sem o

qual o senhor não merecia obediência”.29

Dessa forma, consideramos importante a análise conjunta de outras fontes que

registrem as experiências desses indivíduos forasteiros, para observá-los além do crime, isto é,

em litígios pela liberdade e em fugas, o que possibilita apreender outros elementos da vida e

da luta desses cativos para sobreviver aos impactos do tráfico interno.

26

Essa questão também foi levantada por Cristiany M. Rocha, em:Histórias de Famílias Escravas. Campinas:

Editora da Unicamp, 2004, p. 248-251. 27

Hebe M. Mattos de Castro. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In: Fernando Novais (coord.).

História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,p. 359. 28

Hebe M. M. de Castro, “Laços de família...”, op. cit.,p. 357. 29

Hebe M. M. de Castro, “Laços de família...”, op. cit.,p. 359.

Page 22: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

22

Além disso, cabe discutir melhor, à luz dessas diferentes fontes, o que é

“desenraizamento” e qual seu significado para as ações cativas. Ou seja, cabe indagar se, por

um lado, os crimes e fugas foram motivados por sentimentos ou situações causadas pelo

rompimento de laços e anseios construídos na terra natal e, por outro lado, se é a constituição

de novas sociabilidades e projetos de vida em Campinas que permitiu que tantos desses

cativos demandassem judicialmente por sua liberdade ou se juntassem a outros escravos para

cometer crimes e fugas. Afinal, quem são esses “desenraizados”? Indivíduos trazidos de

muito longe para Campinas, por exemplo, ou também podemos assim considerar os que

vinham de outras partes da própria região Sudeste? Possuem sentimentos de desenraizamento

aqueles recém-chegados ou é possível observar um período de tempo determinado para que o

desenraizamento seja vencido, com formação de novos laços e solidariedades na escravaria de

destino?

Nas páginas que seguem pretendemos discutir essas questões, analisando as histórias

de vida de alguns desses indivíduos por meio do cruzamento dos dados encontrados em

processos criminais envolvendo escravos (como réus e/ou vítimas), Ações de Liberdade e

anúncios de fugas de cativos, com os registros do pagamento do imposto da meia sisa.30

Essas

fontes nos permitem encontrar os escravos comercializados em Campinas já inseridos nas

escravarias de destino, ou seja, possibilitam a apreensão de suas vidas após a experiência da

venda.

Considerando algumas variáveis ao longo do tempo, fizemos a análise da

documentação em dois movimentos: um quantitativo e outro micro-histórico. Ou seja, ao

mesmo tempo em que buscamos olhar para os dados numéricos obtidos por meio das fontes

de uma maneira mais geral, observando padrões, também realizamos uma abordagem mais

detalhada e particularizada de alguns casos específicos, de modo a reconstruir suas histórias e,

assim, aprofundar as discussões propostas.

Além do tempo de moradia e da origem, examinamos a integração desses indivíduos

na comunidade escrava de destino com a observação de dados sobre o estado conjugal e a

ocupação do cativo na fazenda, por exemplo. Também buscamos levar em consideração o tipo

de comércio que trouxe o cativo a Campinas, isto é, se a compra e venda se deu entre

senhores do próprio município, ou por meio do tráfico intra ou interprovincial, denotando

30

Campinas. AEL, CSP, Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886; Centro

de Memória da Unicamp (CMU), Fundo Tribunal de Justiça de Campinas (TJC), Ações de Liberdade, Campinas,

1860-1888; Gazeta de Campinas, 1869-1884; CMU, Fundo Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas

(CRC), Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. A meia sisa era um imposto

devido sobre as transações de compra, venda e permuta de escravos e a exigência para seu registro nos livros

cartoriais só foi regulada no Império a partir de 1860.

Page 23: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

23

uma distância maior ou menor de seu local de origem. Em alguns casos é possível ainda saber

se o cativo já havia passado por outras vendas e estado em outras partes do Império.

Essas informações são problematizadas de modo a entender se a dimensão da

distância do local de origem ou os diferentes momentos de venda foram fatores motivadores

ou inibidores para as ações dos cativos. Buscamos discutir se é possível afirmar, por exemplo,

que escravos oriundos de municípios vizinhos a Campinas tinham maior motivação para

fugir, uma vez que poderiam encontrar facilmente o caminho de volta para suas famílias. Ou,

ao contrário, se para esses cativos seria mais fácil manter contato com as pessoas da terra

natal e, portanto, não teriam vivenciado o desenraizamento de modo tão drástico. Cito aqui a

fuga como um exemplo, mas essa análise deve ser feita também em relação à prática de outros

crimes registradas nas fontes judiciais disponíveis.

De modo análogo, o desenraizamento pode ser problematizado não apenas pela

observação do isolamento do cativo a partir do rompimento das relações pessoais do local de

origem ou da não incorporação no corpo da comunidade escrava de destino, mas também pela

dificuldade de adaptação às formas de domínio empregadas por seus novos senhores em

Campinas. Observamos esse tipo de informação nos depoimentos presentes nos processos

criminais, em que, como já apontou Maria Helena Machado, é possível verificar que a rigidez

do trabalho e as condições de vida a que os cativos eram submetidos foram importantes

elementos ligados aos seus crimes. Além dos depoimentos nos processos criminais, as

condições de vida e tipo de escravaria no qual esses cativos foram inseridos nas fazendas de

Campinas foram verificadas a partir da análise de inventários post mortem de alguns senhores.

Outro detalhe bastante importante observado na análise das fontes é o momento

específico da ação do escravo, seja na história mais geral da escravidão no Império e das

dinâmicas do tráfico interno, seja na própria trajetória de vida do cativo e da escravaria onde

então residia. Observamos, assim, os períodos em torno dos regulamentos que proibiram a

separação das famílias escravas pela venda. O primeiro deles data de 1869, o Decreto nº

1.695, que previa a nulidade de vendas de escravos que separassem “o marido da mulher, o

filho do pai ou mãe, salvo sendo os filhos maiores de 15 anos”.31

Em 1871, o parágrafo

sétimo do quarto artigo da lei 2.040 confirmou essa proibição e diminuiu a idade dos filhos

31

Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, artigo 2º. Disponível em:

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1695-15-setembro-1869-552474-

publicacaooriginal-69771-pl.html (consultado em 15/08/2016).

Page 24: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

24

que não poderiam ser separados do pai ou da mãe para 12 anos.32

Além disso, a lei 2.040 de

1871 regulou o direito do escravo de comprar sua alforria.

Buscamos com isso apreender se os escravos traficados, atentos às mudanças

jurídicas do período, tentaram exigir que essas disposições fossem cumpridas. Além disso,

questionamos quais fatores lhes possibilitaram essas demandas, como o tempo de moradia, a

proximidade com o local de origem, e consequentemente, com relações familiares e/ou de

solidariedade anteriores, novos laços de solidariedade em Campinas, ou o tipo de ocupação

exercida.

Outro tipo de conjuntura analisada diz respeito à dinâmica do tráfico interno para o

Sudeste. Na década de 1860, houve em grande medida um comércio de escravos dentro da

mesma província, ou dentro da mesma região, caracterizando um tráfico intrarregional ou

intraprovincial.33

Nos anos 1870, o número de escravos comercializados em Campinas que

eram naturais de outras províncias teve um aumento exponencial,34

assinalando um tráfico

interprovincial, com um grau de impacto muito maior sobre a população cativa. Na década de

1880, os debates sobre o tráfico interno de escravos redundaram no estabelecimento de altas

taxas administrativas para a importação de cativos nas províncias do Sudeste já em 1881, e

uma proibição desse comércio em nível imperial em 1885.

Também procuramos divisar em que momento específico de sua trajetória de vida o

escravo cometeu ou sofreu um crime, fugiu ou deu início a um litígio para obter sua liberdade.

Esse tipo de observação foi feita em um trabalho anterior realizado com as Ações de

Liberdade julgadas na corte do Rio de Janeiro, e foi possível perceber a importância dos

momentos de venda, ameaça de venda e morte do senhor para a decisão do cativo de ir aos

tribunais e demandar judicialmente por sua alforria.35

Além disso, outros momentos

relacionados a mudanças na senzala também se mostram importantes para as ações cativas,

como a chegada de novos escravos na fazenda ou a venda de parceiros, o que observamos por

meio dos registros de meia sisa.

Neste estudo, procuramos também valorizar a singularidade de cada uma das fontes

examinadas e seus elementos internos, como a história em torno dos crimes, fugas e alegações

para liberdade, bem como as relações entre vítimas, réus e testemunhas. Ressaltamos, por

32

Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 7º. Disponível

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 10/08/2016). 33

Robert Slenes. The demography...,op. cit.,p. 135. Slenes verifica esse movimento nas décadas de 1850 e 1860,

mas, devido ao baixo número de fontes disponíveis para a década de 1850, trabalhamos apenas a partir da década

de 1860. 34

Robert Slenes. The demography..., op. cit.,tabela 3-3, p. 136. 35

Letícia Graziele Basílio de Freitas. Escravos nos tribunais: o recurso à legislação emancipacionista em ações

de liberdade do século XIX. Monografia (Graduação em História), Unicamp, Campinas, 2012.

Page 25: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

25

exemplo, que, diferente da formação de um litígio para a liberdade, um crime ou uma fuga

nem sempre eram cuidadosamente planejados pelos cativos, podendo ser consequência de um

desentendimento imprevisto. Por outro lado, os cativos que decidiam demandar sua alforria

judicialmente assumiam um risco bastante calculado.36

O resultado da análise realizada segue pelas próximas páginas, dividido em quatro

capítulos. No primeiro traçamos um panorama do tráfico interno de escravos na segunda

metade do século XIX, destacando suas características mais gerais já aventadas pela

historiografia e também aquelas que podem ser visualizadas por meio da análise quantitativa

das fontes utilizadas neste estudo, apontando as principais considerações que permeiam a

análise do tema. Descrevemos também características gerais do local de destino dos

indivíduos que vamos investigar, isto é, o município de Campinas e as fazendas de café da

região.

A partir do segundo capítulo, procuramos investigar cada uma das séries

documentais de modo autônomo, buscando observar as particularidades de cada fonte e as

características dos indivíduos nelas registrados. Além de observar as histórias em torno dos

crimes, fugas e alegações para liberdade, exploramos as possibilidades de adentrar os

ambientes sociais em que esses eventos ocorreram e onde os cativos habitavam, possibilitando

visualizar relações entre escravos, libertos e livres, e as múltiplas vivências dos sujeitos

históricos que procuramos encontrar, isto é, os forasteiros.

No segundo capítulo, analisamos uma extensa documentação judicial produzida entre

1860 e 1886 que registra os crimes envolvendo escravos como réus ou vítimas.37

A série

inclui inquéritos policiais, corpos de delito, autos de apreensão, habeas corpus, processos e

apelações criminais, autos de execução de sentenças crimes e autos de fiança. Em primeiro

lugar, observamos o crime ali retratado, buscando compreender como e em quais

circunstâncias se deu o ato criminoso, e qual o motivo ou razões alegadas para sua execução.

Em um segundo momento, por meio de variados depoimentos (do acusado, das testemunhas

e, algumas vezes, das vítimas) investigamos aspectos mais gerais da vida desses indivíduos

nas escravarias em Campinas. As características específicas dos forasteiros são analisadas por

meio das informações fornecidas pelos “autos de qualificação”, presentes nos processos

criminais, ou pelo cruzamento com outras fontes documentais, para tentar identificar os traços

36

Elciene Azevedo. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo.

Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p. 220. 37

Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP.

Page 26: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

26

do tráfico interno na vida dos cativos ou a constituição de novas redes de solidariedade nas

escravarias em Campinas.

No terceiro capítulo, analisamos anúncios de fuga de escravos publicados na Gazeta

de Campinas, entre 1869 (ano de fundação do jornal) e 1884 (ano em que se inscreve o último

anúncio publicado). Mais uma vez, a fonte permite dois tipos de análise: um relacionado

diretamente ao tema central da fonte, isto é, apresenta a data e o local de onde o cativo fugiu

(da casa ou da fazenda do senhor, ou de locais onde estava alugado). Todavia, os anúncios de

fuga também permitem vislumbrar outros aspectos da vida desses indivíduos, como os locais

de origem ou onde vivem membros de suas famílias, detalhes sobre sua aquisição pelo senhor,

ocupação, marcas de castigo, e, algumas vezes, até mesmo preferências ou aspectos singulares

da vida do fugitivo. Além disso, a observação de fugas coletivas (em duplas ou grupos

maiores) permite conjecturar a respeito de parcerias e laços de solidariedade entre os

escravos.

O quarto capítulo traz a análise das Ações de Liberdade julgadas pelo Tribunal de

Justiça de Campinas entre 1866 e 1888.38

Nelas são analisados os tipos de processo e as

alegações para a liberdade, além de algumas características dos litigantes, como origem,

estado conjugal e ocupação. Exploramos também as relações dos libertandos com outros

escravos, bem como com indivíduos livres e libertos. Atentamos, por exemplo, para as

pessoas livres que assinaram seus requerimentos ou participaram de seus litígios pela

liberdade como curadores ou depositários. O foco se dá principalmente sobre os indivíduos

que buscaram a justiça para a compra da alforria, haja vista que o acúmulo de um pecúlio era

facultado, de modo geral, aos escravos que exerciam uma ocupação especializada ou que

dispunham de auxílio financeiro de outras pessoas, o que pode revelar as adaptações

alcançadas pelos cativos forasteiros.

No último item desta Dissertação fazemos nossas considerações finais, retomando

pontos discutidos ao longo dos capítulos para arrematar nossa argumentação em torno da

questão das relações entre o tráfico interno e a crescente mobilização escrava nas décadas

finais da escravidão.

38

Ações de Liberdade, Campinas, 1860-1888. CMU, TJC.

Page 27: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

27

CAPÍTULO 1 – O tráfico interno de escravos para Campinas

1.1. O mercado interno de escravos na segunda metade do século XIX

O comércio dos escravos entre as localidades do Brasil já ocorria desde a época da

colônia para redistribuição dos africanos desembarcados nos portos, no entanto, não

correspondia ao volume nem tinha a importância econômica que passou a ter após 1850. Com

o fechamento definitivo do tráfico transatlântico de escravos africanos pela Lei Eusébio de

Queirós, os negociantes se reorganizaram em torno da possibilidade de suprir a necessidade

de mão-de-obra nas fazendas cafeeiras do Sudeste por meio da importação de cativos de

outras regiões do Brasil.

Nas primeiras décadas após o fechamento do tráfico atlântico (1850 e 1860), os

cafeicultores puderam encontrar dentro da própria região Sudeste outros proprietários

dispostos a vender seus cativos, transferindo-os, desse modo, das áreas urbanas para suas

fazendas. A partir da década de 1870, todavia, os negociantes de escravos do Sudeste

passaram a buscar a mercadoria nas províncias ao Sul e ao Norte do Império.1

Herbert Klein e Robert Slenes apontaram que o mercado interno de cativos na década

de 1870 foi ainda maior do que nos dois decênios anteriores, quando o preço internacional do

açúcar decaiu e o do café disparou, e quando o valor dos escravos nas províncias cafeeiras

ficou mais alto do que em qualquer outro lugar do Brasil.2 Slenes destacou ainda o período

entre 1873 e 1881,3 sendo provável que 10 mil pessoas tenham sido comercializadas

anualmente para o Sudeste cafeeiro nesse intervalo.4

Olhando para o outro lado dessas transações, isto é, para as províncias exportadoras

de escravos, José Hilário Ferreira Sobrinho observou, por exemplo, um alto fluxo de cativos

enviados do Ceará para o Sudeste em fins da década de 1870. Entre 1850 e 1869, um total de

5.127 cativos foi exportado dessa província para o Sudeste ou para o Norte, perfazendo a

1 Robert Slenes. The demography and economics of Brazilian slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford

University, Stanford, 1976, p. 126-132. Sobre as diferentes dimensões do tráfico interno de escravos ao longo da

segunda metade do século XIX, ver também José Flávio Motta. Escravos daqui, dali e de mais além. São Paulo:

Alameda Editorial/FAPESP, 2012. 2 Herbert Klein."The Internal Slave Trade in Nineteenth- Century Brazil: A Study of Slave Importations into Rio

de Janeiro in 1852." The Hispanic American Historical Review, v. 51, n. 4, 1971, p. 579, notas. Robert Slenes.

The demography…, op. cit., p. 123. 3Robert Slenes. The demography…, op. cit., p. 133.

4 Robert Slenes. The demography…, op. cit., p. 126, 136, 139.

Page 28: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

28

média de 256 cativos por ano.5 Em contrapartida, entre os anos 1877 e 1879, houve uma

média de exportação de 2.186 cativos ao ano.6 O autor explicou essa variação no volume de

escravos exportados por um longo e devastador período de seca que assolou a província do

Ceará entre 1877 e 1879, obrigando os pequenos proprietários a vender seus escravos na

tentativa de quitar suas dívidas.7 Herbert Klein e Robert Slenes também ressaltaram o

protagonismo dos pequenos e médios proprietários de escravos do Norte e Nordeste, em geral

endividados, entre os senhores que vendiam escravos para o Sudeste nesse período.8

A historiografia não tem dúvidas de que o tráfico transatlântico teve um volume

muito maior do que o comércio interno de cativos, mesmo depois de 1850.9 Mais de quatro

milhões de africanos foram trazidos da África para o Brasil no curso de três séculos.10

No

entanto, ainda que observada essa diferença, não se pode desconsiderar o volume de pelo

menos 200 mil pessoas traficadas das províncias do Nordeste e Sul para as da região Sudeste

nesse período.11

Além disso, se contabilizarmos o mercado de escravos intrarregional, isto é,

entre as províncias e municípios da própria região Sudeste, é provável que os números do

mercado interno alcancem o dobro.12

Estudos de Herbert Klein, Robert Slenes, José Flávio Motta e Rafael da Cunha

Scheffer13

têm contribuído para a compreensão do funcionamento e do impacto demográfico

do mercado interprovincial. Suas análises mostraram os atributos, dinâmicas e formas de

operação do tráfico, bem como as redes e perfis dos comerciantes envolvidos e suas

5 José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no

Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza: SECULT/ CE, 2011, p. 104. A forte presença das províncias do

Norte-Nordeste como fontes de escravos no mercado interprovincial também foi destacada por Robert Slenes,

que também chamou a atenção para a importância da queda nos preços do algodão para determinar essa

dinâmica. Cf.: Robert Slenes, The demography…, op. cit. 6 Ao todo foram exportados 6.559 cativos nesses três anos, assim divididos: 1.725 em 1877, 2.909 em 1878, e

1.925 em 1879. Dados referentes ao quadro VIII, em José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., p.

104. 7 José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., p. 117. O autor explica detalhadamente essa relação

entre o tráfico de escravos e a seca nas páginas 116-126. Graham também chama atenção para a importância da

seca de 1877-79 no Nordeste para o aumento do fluxo de escravos para o Sudeste. Richard Graham. “Nos

tumbeiros mais uma vez...”, op. cit., p. 131. 8Herbert Klein, “The internalslave trade...”, op. cit.; Robert Slenes, The demography…, op. cit.

9 Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”,op. cit., p. 129.

10 Os números estimados são 4.864.374 africanos desembarcados no Brasil entre 1501 e 1856. Cf.:

http://www.slavevoyages.org (acesso em 19/04/2013). Ver também LOVEJOY, Paul E. “The Volume of the

Atlantic Slave Trade: A Synthesis”, Journal of African History, 23, 4 (1982), p. 473-501. ELTIS, David. “The

Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade: An Annual Time Series of Imports Into the Americas Broken

Down by Region”, Hispanic American Historical Review, 67, 1 (1987), p. 109-38. 11

Conforme estimado em Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 138. 12

Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 135. 13

Herbert Klein, “The internal slave trade...”, op. cit.; Robert Slenes, The demography…, op. cit.; José Flávio

Motta. Escravos daqui, dali e de mais além, op. cit.; Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul para o

Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado

em História), Unicamp, Campinas, 2012.

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29

estratégias para burlar a burocracia e os impostos sobre o comércio dos cativos, visando

melhores lucros. Os estudos a partir de procurações e escrituras de venda de escravos

mostraram que o mercado interno se organizava na forma de uma complexa rede de

negociantes.14

Através de uma “procuração bastante” com vários substabelecimentos para os

diversos intermediários envolvidos no processo de venda do Norte, Nordeste ou Sul para as

regiões cafeeiras, as taxas e a burocracia eram dribladas, já que o imposto devido pela compra

do cativo só seria pago pelo comprador final.15

Outra maneira de burlar o fisco era o

transporte dos escravos por terra, em geral com longas caminhadas, evitando a passagem

pelas autoridades portuárias.16

No entanto, Slenes destacou que a maior parte das

transferências de escravos foi feita por mar, pois esta forma era mais rentável e previsível do

que por terra.17

O perfil das pessoas transacionadas também foi analisado por esses historiadores, e

conclui-se que, assim como no tráfico atlântico precedente, era dada preferência aos homens

jovens e sadios nessas transações, sendo a maioria vendida sozinha, sem seus familiares.18

Apesar dessas semelhanças com o mercado transatlântico, é preciso ressalvar, como

chamou a atenção Rafael Scheffer, a especificidade do comércio interno de cativos nesse

contexto, uma vez que os escravocratas e negociantes lidavam a partir de então com uma

oferta limitada dessa mão-de-obra, restrita aos africanos que restavam no território do Império

e àqueles que aí tinham nascido. Em paralelo, o crescente desequilíbrio da posse escrava entre

as regiões do Império, o acirramento dos discursos abolicionistas e os debates em torno da

14

Ver, por exemplo, Robert Slenes. The demography…, op. cit.; Robert Slenes. “Grandeza ou Decadência. O

mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888”, p. 106, in Iraci Del Nero

Costa (org.), Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, USP,

1986, pp. 103-156; Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, op. cit.; Eduardo Spiller Pena. “Burlas à

lei e revolta escrava no tráfico interno do Brasil meridional, século XIX”, in: Silvia Hunold Lara e Joseli Maria

Nunes Mendonça (orgs.). Direitos e Justiças no Brasil: Ensaios de História Social. Campinas: Editora da

Unicamp, 2006, p. 161-197;José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit.; Rafael C. Scheffer.

Comércio de escravos do Sul..., op. cit.; 15

Robert Slenes, “Grandeza ou Decadência...”, op. cit., p. 118. 16

Robert Slenes, The demography…, op. cit., p. 144;Ver também Erivaldo F. Neves. “Sampauleiros traficantes:

comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o oeste cafeeiro paulista”. Afro-Ásia, 24 (2000), p. 108-110; e

Maria F. N. Pires. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima (1860-1920). São Paulo,

Annablume, 2010, p. 49-61;José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., p. 177-9. 17

Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 150.Vertambém: Herbert Klein. "The Internal Slave

Trade…”,op. cit., p. 569. 18

Herbert Klein,“The Internal Slave Trade…”,op. cit.; Robert Slenes. The Demography…, op. cit.; Robert

Slenes. "The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888: Regional Economies, Slave Experience, and the Politics

of a Peculiar Market". In: Walter Johnson (Ed.). The Chattel Principle: Internal Slave Trades in the Americas.

New Haven & London: Yale University Press, 2004, p. 325-370; José Flávio Motta. Escravos daqui, dali..., op.

cit., p. 67-8; Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul...,op. cit. Cabe ressalvar, todavia, que há

evidências de que algumas pessoas foram transacionadas na companhia de membros da família. José Flávio

Motta, por exemplo, verificou que 51,3% do total de escravos negociados no município de Constituição

(Piracicaba), entre 1870 e 1873, estava com pelo menos um familiar, cf.: José Flávio Motta. Escravos daqui,

dali...., op. cit., p. 235.

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30

introdução de trabalhadores imigrantes no Brasil traziam novas questões a circundar a

instituição escravista na segunda metade do século XIX.19

Em 1881 os legisladores do Sudeste determinaram um aumento exponencial das

taxas administrativas relativas à importação de cativos, decretando, na prática, o fim ao tráfico

interprovincial.20

Na província de São Paulo, por exemplo, em 27 de janeiro de 1881 foi

regulamentado o pagamento do imposto de dois contos de réis para cada escravo importado.21

Um regulamento em nível imperial para proibir a mercancia humana entre as províncias,

todavia, só foi estabelecido em 1885 com a Lei Saraiva-Cotegipe – ou Lei dos Sexagenários,

como ficou conhecida – que determinou que “o domicílio do escravo é intransferível para

província diversa da em que estiver matriculado ao tempo da promulgação desta lei”.22

Essas observações acerca da organização do comércio interno nos mostram que sua

lógica era determinada por fatores essencialmente econômicos e que os negociantes de

escravos se reajustavam quando necessário para que seus lucros não fossem prejudicados.

Ferreira Sobrinho analisa debates parlamentares no Ceará sobre a exportação de cativos, e sua

conclusão é de que a defesa do fim da escravidão na província estava ligada a uma

preocupação com o que consideravam ser a modernização do trabalho no Ceará.23

Quando as províncias do Sudeste determinaram as altas taxas proibitivas para a

importação de cativos, o que inquietava os legisladores era que a crescente perda de escravos

nas províncias exportadoras levasse à diminuição do apoio à defesa da escravidão no

Parlamento.24

Segundo Graham, outra preocupação dos fazendeiros era que a visibilidade que

o comércio interno de cativos dava aos “horrores” da escravidão levasse à perda de apoio

social à instituição e ao acirramento dos ânimos abolicionistas. 25

Jonas Marçal de Queiroz

concluiu, por sua vez, que o alto imposto proibitivo foi decretado em São Paulo como fruto de

uma “convergência de interesses” entre os setores interessados em promover a imigração

europeia e os grupos escravocratas, que temiam as consequências de um aumento excessivo

19

Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit., p. 24. Ver também: Célia M. M. de Azevedo,

Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987;

Maria Helena P. T. Machado, O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.

São Paulo: Edusp, 2010. 20

Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 124-5; Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p.

140. 21

José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, p. 249. O valor do imposto era quase o mesmo do preço médio

do escravo em Campinas nesse ano. Cf.: Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 183. 22

Lei Imperial nº 3270, de 28 de setembro de 1885, Art. 3º, Parágrafo 19. Disponível em:

http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66550 (acessado em 10/08/2016). 23

O autor analisa, em especial, o discurso de um parlamentar que defendia a diminuição do imposto sobre a

exportação de escravos com o objetivo de “esvaziar” a província da presença do trabalho escravo. José H. F.

Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, p. 235-242. O Ceará aboliu a escravidão na província em 1884. 24

Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 124-5. 25

Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, op. cit., p. 140.

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31

da oferta de escravos na Província, uma vez que o Rio de Janeiro e Minas Gerais já haviam

decretado tais impostos.26

Além disso, generalizava-se no Sudeste a denominação do escravo traficado como

“negro mau vindo do norte”, numa alusão à percepção de seu protagonismo nos crimes e

ações violentas de cativos nas províncias cafeicultoras. Vários historiadores têm afirmado que

a resistência escrava aumentou na segunda metade do século, o que tornou ainda mais visível

– e temível – para os senhores do sudeste, a cada vez maior concentração de escravos na

região.27

Logo, a intensificação do tráfico interno em meio a um contexto de crescente

mobilização nacional e internacional contra a escravidão fez com que ele se transformasse “no

foco da luta ‘política’ em torno do futuro do trabalho escravo, envolvendo senhores, cativos e

outros grupos sociais interessados”, nas palavras de Robert Slenes.28

As escolhas de escravocratas, negociantes de escravos e legisladores influíram

diretamente na vida de milhares de pessoas escravizadas. É imprescindível apreender melhor

os efeitos que o comércio inter e intraprovincial teve na experiência de vida dos escravos, já

que a possibilidade de ser vendido para o café era cada vez maior ao longo da segunda metade

do século.29

O tráfico foi uma experiência particularmente traumática para os indivíduos

comercializados. Como reconheceu o contemporâneo Barão de Cotegipe, o mercado interno

de escravos impressionava com “o espetáculo de tantas misérias!”: “crianças arrancadas das

mães, maridos separados das mulheres, os pais dos filhos!”.30

A venda para as fazendas de

café do Sudeste representava a desestabilização das condições de cativeiro nas quais esses

trabalhadores escravizados estavam inseridos há certo tempo, com alterações nas políticas de

domínio e na relação com o senhor a que estavam sujeitos. Além disso, teriam que lidar com a

separação de familiares e a desestruturação de redes de solidariedade consolidadas nos locais

em que residiam.31

26

Jonas M. de Queirós. Da senzala à República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-

1889). Dissertação (Mestrado), Unicamp, Campinas, 1995, p. 179. 27

Célia M. M. de Azevedo. Onda negra, medo branco..., op. cit., p. 113-114; Hebe M. M. de Castro. “Laços de

família e direitos no final da escravidão”. In: Fernando Novais (coord.). História da vida privada no Brasil:

Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 337-383; Maria Helena P. T. Machado. O plano e o

pânico... 28

Robert Slenes. “The Brazilian internal slave trade…”, p. 327. 29

Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p. 122, 141-144. 30

Barão de Cotegipe, Discurso, 01/09/1854, citado em Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p.

143. 31

Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade…”, op. cit.; Hebe M. M. de Castro, “Laços de família...”, op.

cit.; Silvia Hunold Lara. “Trabalhadores escravos”. In: Trabalhadores, n.1, Campinas, Fundo de Assistência à

cultura, 1989, p. 09; Sidney Chalhoub. “Costumes senhoriais: escravização ilegal e precarização da liberdade no

Brasil Império”, In: Elciene Azevedo et al. (org.) Trabalhadores na cidade: Cotidiano e cultura no Rio de

Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas, Editora da Unicamp, 2009, p. 55.

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32

Sidney Chalhoub sublinhou as investidas escravas para interferir nas transações que

decidiam seus destinos e verificou que, para evitar serem vendidos para lugares indesejáveis,

os escravos poderiam agir de várias formas, desde estratégias para levar o comprador a

desistir da compra, até tentativas (ou a realização, de fato) de fugas, agressões e

assassinatos.32

Estudos centrados nas regiões exportadoras de escravos para o mercado destacaram a

agitação que o incremento do comércio de escravos para o Sudeste causou àquela população,

bem como suas formas de resistência às vendas.33

Ferreira Sobrinho apontou para a resistência dos negros do Ceará a serem submetidos

ao tráfico e arrancados de suas famílias, amigos e locais de origens, por meio de tentativas de

fugas ou de compra da alforria antes do embarque para o Sudeste, bem como agressão ou

assassinato de pessoas envolvidas nesse negócio.34

O historiador identificou ainda escravos

que acionavam a justiça para impedir a separação da família quando suspeitavam que seriam

vendidos, com base na Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871.35

Também verificou a formação

de redes de solidariedade e de informações, constatando que os escravos criaram “um

conjunto de ações que visavam à propagação das informações como meio de alertar o cativo,

e não cativo, dos perigos e vantagens de determinados acontecimentos, nas cidades, ou nas

fazendas, de temas relativos ao tráfico para o Rio de Janeiro”.36

Mas, apesar de todas essas estratégias e tentativas, muitas vezes, a venda para o

Sudeste era efetivada, e uma vez desembarcados nestes portos, esses homens e mulheres

teriam que enfrentar novos desafios. Richard Graham atentou para as longas caminhadas ou

trajetos de navio, os maus-tratos por parte dos comerciantes, a presença de vários

32

Sidney Chalhoub centra sua análise na Corte do Rio de Janeiro, que, sendo uma área urbana, perdia escravos

para as áreas rurais da Província do Rio de Janeiro nesse período. Cf.: Sidney Chalhoub. Visões da liberdade:

uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das letras, 1990, capítulo 1, p.

29-94. Como Chalhoub, outros historiadores, apesar de não terem abordado o tráfico interno como objeto central

de análise, chamaram a atenção para a importância dos momentos de compra e venda na vida dos escravos e para

as suas reações diante dessas situações. Ver, por exemplo, Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: Escravos e

Senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988; Hebe M. M. de Castro,

“Laços de família...”; Cristiany M. Rocha. Histórias de Famílias Escravas. Campinas, Editora da Unicamp,

2004; Eduardo S. Pena, “Burlas à lei e revolta escrava...”; entre outros. 33

Sobre o Ceará ver: José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”. Sobre a Bahia ver: Maria de F. N.

Pires. Fios da vida...; Ricardo T. C. Silva. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos

nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do

Paraná, Curitiba, 2007. 34

José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., capítulo 3, p. 193-304. 35

O parágrafo 7º do quarto artigo da Lei determinava que “Em qualquer caso de alienação ou transmissão de

escravos, é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de 12 anos, do pai ou da

mãe.” Cf.: Brasil. Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 4º, parágrafo 7º. Disponível

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 10/08/2016). 36

José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit.,p. 195.

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33

intermediários e o desconhecimento do destino final como elementos que faziam desse um

agonizante processo.37

O terrível percurso até as fazendas do Sudeste, feito algumas vezes por terra, foi

ressaltado por Erivaldo Neves: “Pelo interior, os comboios de cativos dos dois gêneros e

diversas idades marchavam pelos tórridos caminhos dos sertões baianos e mineiros,

acorrentados, com gargalheiras ao pescoço para evitar fugas e sob ameaça de chicotes para

manter a disciplina”.38

Contudo, como veremos ao longo deste estudo, a luta escrava contra o tráfico não

terminava com a chegada ao destino final. Esses homens e mulheres continuavam buscando

formas de interferir em seus destinos para além do arbítrio de negociantes e senhores.

1.2. Forasteiros para Campinas

Além de entender o funcionamento do mercado interno de escravos para o Sudeste

na segunda metade do século XIX, é pertinente analisarmos mais detidamente as

características dos escravos que chegaram ao município de Campinas por meio dessas

transferências.

Analisando os registros do pagamento do imposto devido sobre a compra, venda e

permuta de escravos – chamado de meia sisa – em Campinas, de 1860 a 1884,39

é possível

verificar uma série de variáveis a respeito do perfil da população escrava que foi negociada no

município.40

Com esses dados podemos delinear de modo mais amplo o universo dos sujeitos

que queremos investigar, conhecendo, na medida do possível, quais suas origens, perfil etário

e sexo. Cabe advertir, todavia, que os registros de meia sisa têm uma limitação de

informações que não permite grande aprofundamento no exame das transações e dos

indivíduos nelas envolvidos. Esse limite se dá pela própria natureza da fonte, uma vez que, ao

registrar o pagamento do imposto, o escrivão não anotava os locais de residência dos

envolvidos na transação, nem os dados referentes à matrícula do escravo comercializado,

37

Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”. 38

Erivaldo F. Neves. “Sampauleiros traficantes...”, p. 110. 39

O pagamento do imposto só passou a ser registrado em cartório em 1860. Cf.: José F. Motta, Escravos daqui,

dali…, p. 89. As fontes para este estudo se encontram em: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de

Campinas, Livros 29 a 31, 33, 35, 38, 39, 42, 43, 46, 49, 51, 52, 53, 54, 57, 59 e 62. Centro de Memória da

Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC). Vale ressaltar que os livros de

registro da meia sisa para os anos fiscais (que iam de julho de um ano a junho do outro) de 1871-74, 1876-77 e

de 1880 a junho/1881 não foram encontrados. 40

O historiador Rafael C. Scheffer analisou essa mesma fonte em sua tese de Doutoramento. Rafael C. Scheffer.

Comércio de escravos do Sul...; Outro interessante estudo do mesmo autor, sobre tema semelhante pode ser visto

em Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Dissertação (Mestrado em

História), UFSC, Florianópolis, 2006.

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34

informações que permitiriam determinar o tipo de comércio que estava sendo realizado, se

local, intra ou interprovincial.41

Para nossos objetivos, essa imprecisão compromete a análise

da experiência escrava porque fica difícil determinar há quanto tempo um escravo nascido no

Norte do Império, por exemplo, se encontrava em Campinas quando a venda registrada nos

livros da meia sisa ocorreu. Ele poderia ter sido matriculado em localidade diferente de seu

nascimento, antes mesmo de chegar a Campinas, dado que possibilitaria perceber as

diferentes experiências de venda vivenciadas pelo cativo.

Essa fonte foi também utilizada por Rafael da Cunha Scheffer em análise sobre as

transferências de escravos do Sul para Campinas. Para contornar essas limitações e outras

atinentes a seus objetivos específicos de pesquisa, Scheffer utilizou uma amostra de

procurações e escrituras de compra e venda de escravos. Com isso, levantou dados bastante

contundentes a respeito do tipo de comércio e da natureza das transações que ocorreram no

período e local considerados.42

Em nosso estudo, realizamos o cruzamento dos dados encontrados nos registros do

pagamento da meia sisa com os presentes em outros corpos documentais analisados

(processos judiciais e anúncios de fuga de escravos), para conhecer mais detalhadamente as

experiências vividas por alguns dos indivíduos que chegaram à Campinas pelo tráfico

interprovincial. Por ora, nos debruçaremos sobre os registros de meia sisa para conhecer

melhor o perfil dos indivíduos transacionados no município.

Dispomos do registro de pagamento do imposto de meia sisa para transações de

compra, venda e permuta envolvendo mais de 12.300 escravos, entre os anos 1860 e 1884.43

A maior parte das transações de cativos em Campinas ocorreu na década de 1870, totalizando

49,7%, contra um percentual de 46,5% transacionado na década de 1860, e apenas 3,8% na

década final da escravidão.

Com relação ao perfil demográfico das pessoas transacionadas, o primeiro dado que

salta aos olhos nessa documentação é a presença massiva de crioulos. Nada menos que 93,3%

dos cativos negociados em Campinas nesse período eram nascidos no Brasil, contra apenas

6,7% de africanos.44

Esses números se explicam, ao menos em parte, pelo envelhecimento da

população africana no Brasil, uma vez que o mercado de escravos dava preferência aos

41

Esse tipo de análise foi desenvolvido em José F. Motta. Escravos daqui, dali…,op. cit. com o estudo de

escrituras e procurações para compra e venda de escravos. 42

Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit. 43

Registro minha gratidão a Joice Fernanda de Souza Oliveira, por ter me permitido acesso à Base de Dados por

ela elaborada, denominada “Meia Sisa de escravos em Campinas, 1865-1880”, onde estão indexados os registros

correspondentes a cerca de oito mil escravos. 44

Percentuais calculados sobre o total de cativos com origem informada, o que corresponde a 86,5% de todos os

registros.

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35

jovens. Por outro lado, número significativo de escravos não teve sua nacionalidade

informada no registro (13,5%), o que permite conjecturar a possibilidade de que a massa

africana fosse pelo menos o dobro do que está explicitado. A não declaração da origem do

escravo poderia ser apenas desconhecimento, mas também poderia ser voluntária, para

esconder evidências do contrabando de escravos após 1831. Cabe frisar que no período em

que o pagamento do imposto foi registrado, isto é, a partir de 1860, multiplicavam-se os

questionamentos jurídicos a respeito da importação ilegal, com cativos africanos entrados

ilegalmente no Império indo aos tribunais para alegar seu direito à liberdade em vista do

primeiro artigo da Lei de 1831.45

Com isso, é plausível que alguns escravos não tenham tido sua origem declarada

pelos escravocratas e comerciantes envolvidos nessas transações para esconder a importação

ilegal. Desnecessário dizer que esta é apenas uma elucubração, pois nunca saberemos quais

nem quantos escravos presentes nesta fonte eram africanos registrados sem sua origem, nem

quantos registrados como crioulos eram, na verdade, africanos.

Por outro lado, alguns dados impressionam pela indiscrição. Uma análise rigorosa da

origem desses cativos aliada a suas idades mostra que pelo menos 15 deles foram nitidamente

importados no período de ilegalidade, pois apresentavam menos de 29 anos na década de

1860, idade limite para alegação de que tivessem sido importados antes de 1831. Encontramos

até mesmo cativos africanos com idade menor que 14 anos, o que sugere terem sido

importados mesmo depois da Lei Eusébio de Queirós. Não avançaremos mais nessas

hipóteses por não acreditar que a fonte permita mais do que conjecturas, uma vez que o

escrivão pode ter querido anotar 40, ao invés de 04 anos. De qualquer modo, historiadores

como Beatriz Gallotti Mamigonian têm realizado importantes estudos a esse respeito,

demonstrando o grande volume de africanos entrados de maneira ilegal no Brasil após 1831.46

As informações de que dispomos confirmam o perfil sexual e etário já explicitado

pela historiografia. De todos os indivíduos comercializados no período analisado, 73,1% eram

do sexo masculino e 68,2% tinham entre 15 e 39 anos de idade, ou seja, estavam em idade

plenamente ativa.

45

Esse artigo previa a liberdade aos cativos africanos que fossem importados para o Brasil após a promulgação

da lei. Para um estudo das ações de liberdade impetradas por escravos com a alegação do tráfico ilegal ver

Elciene Azevedo. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo na segunda

metade do século XIX. Campinas, Editora da Unicamp, 2010. 46

Beatriz G. Mamigonian. Tobe a liberatedAfrican in Brazil: labourandcitizenship in thenineteenthcentury. Tese

(Doutorado em História), Universityof Waterloo, Canadá, 2002.

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36

Há poucos dados sobre o estado conjugal dos homens e mulheres transacionados,

porém, é possível saber que pelo menos 23,3% deles era solteiros e apenas 1,6% casados.47

Levando em consideração apenas a população cativa adulta, isto é, com 15 anos ou mais, esse

percentual sobe para 29,4% solteiros e 2% casados. A proporção de casados era também um

pouco maior entre as mulheres adultas: 3,3%.

A venda conjunta com algum membro da família (marido, mulher, filhos ou irmãos)

aconteceu para 148 cativos, o que corresponde a 1,2% das pessoas registradas. Nesse conjunto

apenas 43 cativos foram comercializados junto com sua mãe (0,35% dos cativos negociados

no período) e 64 em companhia do cônjuge (0,52% dos escravos registrados). Apesar da

existência de dois regulamentos proibindo a separação de marido e mulher e dos pais dos

filhos menores nas transações de venda,48

os registros da meia sisa mostram que pelo menos

553 crianças escravas de até 12 anos foram vendidas em Campinas após 1871, e em apenas

seis desses registros é mencionada a venda em companhia de um dos pais. Verificamos

também que apenas 23,7% dos cativos descritos como casados na fonte foram

comercializados juntamente com seus cônjuges. Ou seja, 76,3% dos escravos casados que

tiveram sua venda registrada nesses anos foram negociados separados de seus esposos, o que

confirma o panorama já explicitado pela historiografia sobre o grande impacto que o mercado

nacional de cativos causou às famílias escravas na segunda metade do século XIX.49

Contudo, há exceções. Em estudo sobre o mercado interno de escravos em alguns

municípios paulistas, José Flávio Motta verificou uma frequência bem maior da venda de

pessoas acompanhadas de pelo menos um membro da família, chegando a 51,3% dos cativos

negociados no município de Piracicaba, por exemplo, entre os anos 1870 e 1873.50

47

Consideramos aqui somente os casamentos sancionados pela Igreja, não sendo possível identificar as uniões

consensuais nessa documentação. 48

Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, artigo 2º. Disponível em:

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1695-15-setembro-1869-552474-

publicacaooriginal-69771-pl.html (consultado em 15/08/2016); e Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo

3º, parágrafo 7º. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em

10/08/2016). 49

Diversos estudos assinalaram a desestruturação que o comércio interno de escravos causava às famílias cativas

e a frequência com que crianças foram envolvidas nesse mercado. Ver, por exemplo: Maria F. N. Pires. Fios da

vida..., op. cit., p. 43-6; Rafael C. Scheffer. “Lares partidos: famílias no comércio interno de escravos (1865-

1880)”. 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), 2015. Anais completos do

evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/; José F. Motta. “Crianças no apogeu do tráfico

de escravos (Piracicaba, Província de São Paulo, 1874-1880)”. 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil

Meridional, Curitiba (UFPR), 2015. Anais completos do evento disponíveis em

http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. Cabe mencionar, todavia, que houve também a ocorrência de venda de

famílias, ainda que em menor escala, cf.: José Flávio Motta, Escravos daqui, dali..., op. cit. 50

José Flávio Motta. Escravos daqui, dali..., op. cit., p. 235.

Page 37: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

37

O gráfico 151

explicita outro aspecto dos efeitos do tráfico interno sobre a vida de

homens e mulheres escravizados, isto é, a dimensão da distância que estavam de seus locais

de origem, tendo sido submetidos ao tráfico inter ou intraprovincial, ou ainda, ao comércio

local. Nele verificam-se os dados referentes às províncias de origem dos escravos registrados

nos livros da meia sisa. Observamos que os escravos nascidos fora da Província de São Paulo

respondem por 75,3% dos dados. O principal local de origem desses sujeitos foi as províncias

do Norte e Nordeste (44,6%), índice maior do que o de nascidos na província paulista

(24,7%). Os escravos nascidos no próprio município de Campinas e, desse modo, negociados

em comércio local, perfazem 9% de todos os registros.

Não é possível saber o local exato onde foram comprados os escravos negociados em

Campinas no período estudado, uma vez que poderiam, por exemplo, ter sido transportados

do Norte até outra província do Sudeste e só depois vendidos em Campinas.52

No entanto,

podemos perceber que estavam bastante longe de suas terras natais e, decerto, de suas

51

Os números absolutos para os percentuais apresentados no gráfico 1 são: 709 pessoas nascidas em Campinas;

1.949 na Província de São Paulo, excluindo os campineiros; 1.233 nas outras províncias da Região Sudeste,

excluindo as pessoas nascidas na Província de São Paulo; 3.517 oriundas da Região Norte/Nordeste; 51 da

Região Centro-Oeste; e 1.129 provenientes da Região Sul; totalizando 7.879 escravos com origem informada.

Fonte do gráfico: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. Centro de Memória da

Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC). 52

Esse tipo de informação pode ser encontrado nas notas cartoriais de compra e venda de escravos, das quais não

dispomos neste estudo. Alguns estudos que trabalharam essa fonte: José Flávio Motta. Escravos daqui, dali e de

mais além..., op. cit.; Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit.

9,0%

24,7%

15,6%

44,6%

0,6% 14,3%

Campinas

Província de São Paulo

Região Sudeste

Região Norte/Nordeste

Região Centro-Oeste

Região Sul

Gráfico 1 – Origem dos escravos comercializados em Campinas (1860-1884).

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38

famílias. Vale destacar que a proporção de cativos negociados que nasceram fora da província

paulista caiu para 29% após 1881, quando já vigorava o imposto provincial sobre a

importação de escravos. Esse percentual, provavelmente, corresponde a indivíduos que foram

trazidos para a Província de São Paulo antes de 1881 e estavam sendo renegociados no

comércio intraprovincial, ou local.

Como já apontado pela historiografia a respeito da relevância dos escravos oriundos

do tráfico interno entre as preocupações de escravocratas e legisladores do Sudeste na

segunda metade do século XIX,53

as fontes por nós inquiridas mostram que, de fato, há uma

enorme proporção dos escravos nascidos em outros locais do Império entre os envolvidos em

processos criminais ou de liberdade, ou que fugiram de seus senhores em Campinas nesse

período (tabela 1.1).54

Apenas 9% dos cativos crioulos presentes nessas fontes nasceram no

município paulista. Isto posto, podemos considerar que 91% das pessoas escravizadas que se

envolveram em crimes, ações de liberdade ou fugas nesse período eram forasteiros que

haviam chegado à Campinas através do comércio intra ou interprovincial.55

O percentual de

cativos nascidos no Norte, Sul ou Centro do Império chega a 61,8% de todos os nascidos no

Brasil. Essa gente certamente viveu experiências de grande afastamento de familiares e outras

redes de solidariedade constituídas na terra natal.

A busca nominal dos cativos réus, vítimas, litigantes e fugitivos nos registros de meia

sisa mostra ainda que o tráfico interno ou comércio local foram importantes também para a

experiência de cativeiro dos escravos nascidos em Campinas, uma vez que 46,2% deles

passaram por transações de compra e venda na segunda metade do século XIX.

53

Célia M. M. de Azevedo, Onda negra, medo branco...; Richard Graham. “Nos tumbeiros...”; José H. F.

Sobrinho. “Catirina, minha nega...”. 54

Temos informação de origem para 54,1% dos cativos encontrados nessa documentação. Os percentuais

mostrados a seguir foram calculados com base no total de cativos com origem informada. Ações de Liberdade,

Campinas, 1860-1888. CMU, TJC; Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886.

AEL, CSP; Anúncios de fuga de escravos em Gazeta de Campinas, 1869-1884; Registros da Meia Sisa de

escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. CMU, CRC. Os dados mostrados a seguir estão baseados nestas

mesmas fontes. 55

Vale ressaltar que é possível que parte desses cativos tenha chegado ao Sudeste junto com senhores que

migraram para estas paragens. Não deixa de se tratar, todavia, de indivíduos submetidos à migração forçada.

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Tabela 1 – Origem dos escravos em Processos Criminais, Ações de Liberdade e

anúncios de fuga (Campinas, 1860-1888)

Localidade de origem56

Número de escravos com

origem informada % sobre o total de crioulos com origem informada

Campinas 39 9,0

Província de São Paulo57

68 15,8

Região Sudeste58

58 13,4

Outras regiões 267 61,8

Total de crioulos com

origem informada 432 100

Fontes: Ações de Liberdade, Campinas, 1866-1888. Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de

Justiça de Campinas (TJC); Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886.

Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP); Gazeta de Campinas, 1869-1884.

Além disso, algumas das fontes permitiram saber que a venda para Campinas não

havia sido a primeira a acontecer na vida do cativo, tendo ele sido traficado de outro local que

não o do seu nascimento.59

Nos anúncios de fugas na Gazeta de Campinas, há algumas vezes

a suspeita de que tais fugitivos teriam se dirigido aos lugares onde nasceram ou tinham algum

parente, o que denota a percepção de que as fugas estavam ligadas ao comércio interno. Essas

informações, assim como a menção nos processos de liberdade sobre o local onde os cativos

foram matriculados, permitem conhecer os lugares onde o escravo esteve antes de chegar a

Campinas. A quantidade de informações é pequena, mas permite saber que pelo menos 12

escravos passaram pelo Rio de Janeiro antes de serem vendidos para Campinas, bem como 4

passaram por Minas Gerais, 3 estiveram na capital de São Paulo e 1 chegou a residir em

Santos. A maior parte dos cativos com informação disponível, isto é, 21 deles, residiram em

cidades vizinhas a Campinas antes de vir parar no município, segundo as fontes que temos em

mãos. Como se vê, tanto os anúncios de fuga quanto a referência ao local de matrícula do

escravo nas ações de liberdade mencionam apenas localidades próximas a Campinas, sendo as

mais distantes ainda dentro da região Sudeste (Minas Gerais e Rio de Janeiro). Isso pode

denotar que os senhores só considerassem a suspeita de que a fuga escrava se daria como

retorno a locais em que reencontrariam familiares quando estes não eram tão distantes, ou que

apenas tivessem conhecimento do local de matrícula do cativo quando se tratava de uma

56

Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi

informada. Não estão descritos, portanto, 48 africanos (9,1% dos dados informados), 45 crioulos para os quais

não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 445 cativos com origem não identificada. 57

Não inclui os nascidos em Campinas. 58

Não inclui os nascidos na Província de São Paulo. 59

Um importante trabalho de rastreamento dessas múltiplas transações foi feito por Rafael da Cunha Scheffer,

com análise de escrituras e procurações para compra de escravos. Ver: Rafael da Cunha Scheffer. Comércio de

escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência

cativa. Campinas, Unicamp (tese de Doutorado), 2012. Análise de material semelhante pode ser encontrada

também em José Flávio Motta. Escravos daqui, dali e de mais além..., op. cit.

Page 40: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

40

província mais próxima. Mas, além de suscitar conjecturas a respeito do entendimento dos

escravocratas, esses dados facultam supor que a experiência de ser traficado dentro da mesma

região trazia possibilidades diferenciadas daquelas de quem havia sido comercializado no

tráfico interregional. Voltaremos a essa questão em momento oportuno. Por ora, cabe frisar

que a experiência de compra e venda foi vivida mais de uma vez por esses sujeitos. Desse

modo, podem ter vivenciado mais de uma vez as situações de rompimento de laços familiares

e de solidariedade, bem como de práticas costumeiras na relação com os senhores,

constituídos em diferentes lugares. A dimensão do desenraizamento sofrido por essas pessoas

é um importante aspecto a ser considerado, isto é, devemos levar em conta os diferentes tipos

de experiência vividos por cativos vindos de localidades diversas e em momentos distintos.

É também bastante improvável que ser um escravo recém chegado em Campinas no

começo da década de 1860 tenha sido a mesma coisa que em fins da década de 1870, por

exemplo, já que havia então uma crescente entrada de novos forasteiros no município, como

visto nos dados sobre a meia sisa.

1.3. Os forasteiros em Campinas

Parte considerável dos cativos que foram trazidos ao Sudeste nas malhas do tráfico

interprovincial tiveram como destino as fazendas cafeeiras de Campinas. O município do

Centro-Oeste Paulista sofrera profundas transformações em sua dinâmica populacional e

econômica desde os fins do século XVIII e, na segunda metade do XIX, vivia uma conjuntura

de grande progresso das lavouras de café, com constante demanda por mão-de-obra. Além de

ter grande destaque na produção cafeeira, Campinas possuía a maior população escrava de

todos os municípios da província de São Paulo em 1872, contando com 14 mil cativos, e

ainda nos anos finais da escravidão possuía mais que o dobro do número de escravos que

qualquer outro município paulista, salvo Bananal.60

Tendo se tornado um local de atração para migrantes das regiões vizinhas e, ao longo

do século XIX, também para os originários de outras províncias, Campinas possuía uma

60

Peter Eisenberg. “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX.” In: Homens esquecidos: escravos e

trabalhadores livres no Brasil – século XVIII e XIX. Campinas, Editora da Unicamp, 1989, p. 259. Para análise

sobre os não-proprietários de escravos em Campinas, em vários períodos, ver Iraci D. N. Costa. Arraia-Miúda:

um estudo sobre os não-proprietários de escravos no Brasil. São Paulo, MGSP, 1992, p. 16-18. Para mais

informações sobre a evolução na dinâmica populacional de Campinas ver Paulo E. Teixeira. Mulheres,

domicílios e povoamento: Campinas, 1765-1850. Dissertação (Mestrado em História), UNESP, Franca, 1999; e

Robert Slenes. Na senzala, uma flor: Esperanças e Recordações da Família Escrava (Brasil Sudeste, Século

XIX). 2ª ed. Campinas, Editora da Unicamp, 2011, p. 78-82.

Page 41: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

41

grande heterogeneidade em sua população livre. Segundo estudo feito por Paulo Eduardo

Teixeira com registros de casamento no município, o número de noivos livres nascidos fora

de Campinas foi sempre crescente, em especial após 1850.61

No caso dos noivos escravos,

Teixeira observou um crescimento no número dos nascidos no município de Campinas,

apesar de o número de localidades de origem aumentar proporcionalmente ao crescimento da

própria população cativa em consequência do tráfico interno. Comparando os dados

encontrados para a população livre e escrava, o estudioso concluiu que:

“se a partir de 1850 há uma queda no número de noivos livres nascidos em

Campinas, o mesmo fato não ocorre entre os noivos cativos, e o aumento tanto de

mulheres (22%) quanto de homens (10,8%) segue uma tendência crescente. Estas

informações corroboram com a existência da família escrava em certas condições

favoráveis não apenas ao casamento, como também para a sua multiplicação,

gerando filhos que vieram a se casar em sua terra natal”.62

Mesmo depois da libertação dos nascituros pela lei 2.040, promulgada em 1871, a

população escrava de Campinas continuou a crescer. Rafael da Cunha Scheffer aponta para

um crescimento de quase 10% no espaço de apenas cinco anos entre 1872-73 e 1878, o que só

pode ter ocorrido de duas formas: “a migração de senhores com seus cativos ou a compra

destes, de outras localidades brasileiras”, já que os escravocratas não poderiam mais contar

com a reprodução natural da população escrava.63

Como vimos no tópico precedente, foi na

década de 1870 que o mercado de escravos mais se aqueceu em Campinas.

Em uma análise das escrituras e procurações para compra e venda de cativos em

Campinas, Scheffer observou que o município também exercia grande importância como

entreposto de negociação de escravos. Ou seja, senhores de outras localidades se dirigiam à

Campinas para adquirir cativos, alguns dos quais trazidos ao município pelo comércio

interprovincial.64

De acordo com estudos de Robert Slenes, em Campinas, os escravos vindos pelo

tráfico interno encontravam um ambiente de crescente concentração da posse cativa. Se no

começo do século XIX, 27,2% de todos os escravos estavam em propriedades com até nove

cativos, e os fogos com 50 ou mais trabalhadores escravizados respondiam por 10,2% do

61

Paulo E. Teixeira, “De onde eles vieram: Estudo sobre origem e migração dos noivos para Campinas, 1774-

1888”. In: Rosana Baeninger; Claudio Dedecca. (Org.). Processos Migratórios no Estado de São Paulo -

Estudos Temáticos. Campinas: Núcleo de Estudos de População - NEPO/UNICAMP, 2013, v. 10, p. 21. Mais

informações sobre a atração exercida por Campinas para a migração interna pode ser vista em Robert Slenes.

“Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”. In: Fernando A. Novais (Cord.); Luiz F. de Alencastro (org.).

História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das

Letras, vol. 2, 1997, p. 239. 62

Paulo E. Teixeira. “De onde eles vieram...”, p. 22. 63

Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit., p. 29. 64

Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit., p. 43-8.

Page 42: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

42

total, essa realidade se modificou drasticamente na segunda metade do século. Em 1872,

apenas 9% dos cativos estavam em propriedades pequenas (com 1-9 pessoas), enquanto

64,4% se concentravam em posses de 50 ou mais.65

Por meio dos inventários post mortem de alguns escravocratas de Campinas, é

possível verificar o ambiente mais específico no qual esses forasteiros foram inseridos. Na

busca por tais documentos entre os processos julgados pelo Tribunal de Justiça de Campinas,

encontramos os inventários correspondentes aos senhores de apenas 134 dos escravos

envolvidos em crimes, ações de liberdade ou fuga (15,7% do total de cativos arrolados em

nossos bancos de dados). Desses 134 escravos, 64,9% não haviam nascido nessas escravarias.

Como na época esse tipo de processo judicial só era realizado quando o finado

possuía bens a inventariar, essa amostragem revela que pelo menos 15,7% dos cativos fazia

parte da propriedade de senhores com algum poder econômico.66

Cerca de 60% dos senhores

cujos inventários foram abertos ainda no período escravista, tinham uma propriedade de mais

de 50 cativos.

Como demonstra Slenes, essa estrutura mais concentrada da posse cativa teve

importantes implicações para a família escrava, uma vez que era nas maiores propriedades

que os cativos encontravam mais possibilidades de se casar e construir famílias conjugais

relativamente estáveis.67

Nas posses médias e grandes (com dez ou mais escravos), a

proporção casada ou viúva entre mulheres acima de quinze anos variou em Campinas entre

60% e 69% nos anos de 1801, 1829 e 1872.68

De acordo com esses dados levantados por

Slenes, os índices de casamentos cativos no município apresentam uma surpreendente

continuidade ao longo do século XIX, mesmo após o decreto de 1869, em que foi proibida a

separação de casais por vendas, o que poderia ter desmotivado os senhores a permitir a

oficialização das uniões cativas.

Essa continuidade nos índices de casamento escravo no contexto de intensificação do

tráfico interno ao longo do século também surpreende se considerarmos que, como concluiu

Joice F.de Souza Oliveira, não era simples o processo de integração desses homens e

mulheres que chegavam às escravarias de Campinas pelo tráfico:

65

Vale lembrar que esses dados foram verificados em fontes diferentes, a saber, recenseamentos e inventários

post mortem. Cf.: Robert Slenes. Na senzala, uma flor..., op. cit., p. 79-80. 66

Pelo menos 70% dos inventários que analisamos apresentam a avaliação dos bens do falecido perfazendo

montantes maiores que 100 contos de réis. CMU, TJC, Inventários post mortem, Campinas, 1860-1888. 67

Robert Slenes. Na senzala, uma flor..., op. cit., p. 80. Robert Slenes. “Escravidão e família: padrões de

casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX)”. In: Anais do IV Encontro

Nacional de Estudos Populacionais. São Paulo: ABEP, 1984, p. 2120-2124. 68

Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 274.

Page 43: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

43

“Nas fazendas já estabelecidas, ou seja, naquelas em que a comunidade escrava se

constituirá [sic] ao longo de muitos anos, os laços de parentesco e solidariedade

entre os escravos, as possibilidades de o forasteiro conseguir se integrar eram

pequenas, principalmente devido à discriminação dos escravos campineiros em

relação aos forasteiros. Nas propriedades de formação recente, por sua vez, havia

poucos núcleos familiares e a maioria da escravaria era composta por homens

adultos e solteiros, de modo que eram pequenas as chances para os cativos

procedentes do comércio interno de constituir famílias e criar uma rede de

parentesco”.69

O fato de que os índices de casamento escravo formal não tenham diminuído com a

crescente entrada de novos cativos nas fazendas de Campinas pode indicar que, apesar de tais

dificuldades, os forasteiros tenham conseguido também formar suas famílias e tê-las

sancionadas pela igreja. Essa hipótese, contudo, só pode ser corroborada com uma análise dos

registros de casamento de escravos do município, a qual não foi realizada no presente estudo.

As altas taxas de mortalidade da localidade atestam, por outro lado, a instável

situação de saúde dos cativos:

“As taxas de mortalidade escrava em Campinas no período sugerem uma

expectativa de vida, ao nascer, de dezenove a 26 anos, ou de mais de 34 a 38 para

quem conseguisse chegar aos dez anos de idade”.70

A cidade tinha má fama entre os escravos no Império, sendo o envio a Campinas

usado como ameaça de punição para os mais insubordinados.71

José Hilário Ferreira

Sobrinho, ao analisar a resistência dos escravos do Ceará a serem embarcados para o Sudeste,

observou que as informações sobre “a vida de trabalho duro, nas fazendas de café, corriam

largamente entre os cativos”.72

Vindos em geral de áreas urbanas ou de pequenas propriedades em regiões diversas

do Império, os homens e mulheres submetidos ao tráfico interno encontravam uma realidade

deveras diferente nas grandes lavouras campineiras, com o trabalho intensivo no cultivo e

colheita do café, realizado em grupo e com supervisão constante do feitor.73

Além das más condições de vida dos cativos em Campinas, a taxa anual de alforrias

no município também não era nada alentadora, já que correspondia à metade da registrada no

69

Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista: Escravos no Comércio Interno de Cativos e suas

Experiências em Campinas, 1850-1888. Dissertação (Mestrado Em História), Unicamp, Campinas, 2013, p. 195. 70

Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 259. 71

Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p. 151. 72

José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, p. 194. Maria F. N. Pires também sugere que “as notícias do

tráfico interprovincial circulavam através de tropeiros e de escravos que conseguiam fugir das fazendas paulistas

e voltar a Caetité para junto dos seus.” Cf.: Maria F. N. Pires. Fios da vida..., op. cit., p. 12. 73

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 26. Sobre as mudanças no relacionamento entre

senhor e cativo nas transferências das pequenas para as grandes propriedades em consequência do tráfico

interno, o mesmo foi observado em Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional

economies, slave experience, and the politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel

principle: internal slave trades in the Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70.

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44

Império como um todo no início da década de 1870.74

Apesar de Peter Eisenberg ter

evidenciado que houve um crescimento no número de alforrias em Campinas nas décadas de

1870 e 1880, no bojo do acirramento de movimentos abolicionistas, 75

sabe-se que os escravos

novos originários de outras regiões eram preteridos pelos senhores na hora de alforriar ou

possibilitar o pecúlio com ocupações especializadas ou com o cultivo de pequenas roças.76

Todavia, como verificamos por meio do estudo das Ações de Liberdade, os cativos trazidos

ao município pelo tráfico lutaram constantemente para conseguir sua liberdade, recorrendo,

por exemplo, aos tribunais. Voltaremos a isso com maiores detalhes no capítulo 4.

=

1.4. De forasteiros e desenraizados

Até aqui viemos utilizando a expressão “forasteiro”, emprestada de Joice F. de Souza

Oliveira,77

de modo genérico. A princípio, definimos esse termo como o cativo encontrado

nas fazendas de Campinas após 1860, mas que não era nascido no município.

No entanto, para uma reflexão sobre o desenraizamento como um efeito do tráfico

interno e como possível motivador de ações cativas que questionaram o poder senhorial no

período, é indispensável que definamos melhor quem eram esses forasteiros. Precisamos

entender, por exemplo, se havia alguma diferença acerca da integração na comunidade

escrava e das possibilidades de mobilidade social, mesmo que dentro do cativeiro, entre os

cativos nascidos nos municípios vizinhos a Campinas e os vindos de regiões longínquas do

Império. Se a palavra “forasteiro” carrega o peso do “estranho” ou “externo” à comunidade,

quais escravos eram assim tratados pelos já residentes nas fazendas de Campinas? Ou

devemos considerar forasteiros todos aqueles não nascidos em Campinas, incluindo aí

também os africanos?

Poderemos adentrar melhor essas questões a partir dos capítulos que vêm a seguir.

Além da análise quantitativa a respeito do perfil dos cativos criminosos, litigantes pela

liberdade e fugitivos, tencionamos dar nome e rosto a esses sujeitos. Por meio de uma

descrição densa das diversas experiências de cativeiro que podem estar relacionadas com os

eventos retratados nas fontes, examinaremos as diferentes motivações e possibilidades que se

74

Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 277. 75

Peter Eisenberg. “Ficando livre...”, p. 260. 76

Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 236 e 272. 77

Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista...

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45

apresentaram aos cativos envolvidos em crimes, ações de liberdade e fugas que haviam

chegado a Campinas via comércio intra ou interprovincial.

Por ora, faremos uma escolha: não incluir os africanos na análise. Eles também

foram objeto do mercado interno da segunda metade do Oitocentos, assim como estão

presentes nos atos criminosos, ações de liberdade e fugas que inquietaram os escravocratas do

Sudeste nesse período. Todavia, suas experiências de cativeiro têm particularidades

importantes que exigiriam outra abordagem, o que ainda não consideramos possível fazer em

nosso estudo.

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46

CAPÍTULO 2 – Forasteiros criminosos

2.1. Os crimes e os criminosos

Os crimes cometidos por escravos em Campinas ao longo do século XIX foram

analisados detidamente por Maria Helena Machado, na obra Crime e Escravidão.1 A

historiadora observou que, por meio de atos criminosos, os cativos tentavam impor

determinados limites ao sistema disciplinar das fazendas, defendendo certa margem de

autonomia e tratamento aceitável no cativeiro:

“(...) os grupos de escravos passavam a reivindicar, mais e mais abertamente, o

cumprimento daquilo que se percebia como obrigações senhoriais. Um ritmo de

trabalho próprio ao grupo, a injustiça dos castigos, os direitos à folga semanal, a

alimentação e o vestuário, o recebimento de estipêndios pelo trabalho realizado a

mais e a manutenção de uma economia independente na forma das roças e do

pequeno comércio foram, muitas vezes, os argumentos que em seu conjunto

justificavam os ataques violentos dos plantéis contra os senhores e seus feitores.”2

Maíra Chinelatto retomou a análise dessa documentação recentemente, em sua

Dissertação de Mestrado, intitulada Quando falha o controle: crimes de escravos contra

senhores.3 A historiadora analisou comparativamente os crimes de escravos contra senhores

ocorridos na primeira e na segunda metade do século XIX (décadas de 1840 e 1870),

acompanhando as transformações políticas e legislativas que a instituição escravista sofreu ao

longo do século.

Chinelatto observou a predominância de africanos entre os criminosos da primeira

metade do século e de crioulos de diversas regiões do Império, na segunda. Verificou, então,

que nos dois casos, os cativos tentavam se defender contra os abusos dos senhores e o

desrespeito ao que eles consideravam como seus direitos, assim como já observara Machado.

No entanto, “de forma geral,” concluiu Chinelatto, “os crimes da década de 1870 ocorreram

1 Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão: trabalho, luta, resistência nas lavouras paulistas (1830-

1888). São Paulo, Brasiliense, 1987. 2 Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.

São Paulo: Edusp, 2010, p. 25; ver também Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 125-

6. 3 Maíra Chinelatto. Quando falha o controle: crimes de escravos contra senhores. Campinas, 1840/1870.

Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

Page 47: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

47

em propriedades maiores, envolveram mais escravos, os quais combinaram de antemão para

cometer o crime”.4

O foco do nosso estudo na experiência do tráfico interno torna pertinente que

voltemos a analisar esses crimes, agora com um olhar diferente, isto é, verificando nessas

histórias a importância que o fato de ser forasteiro pode ter tido para as atitudes ou discursos

dos cativos.

Comecemos com alguns números. Entre os 134 escravos indiciados como réus no

período de 1860 a 1886, a proporção dos crioulos não nascidos em Campinas é de 80,2%5

(vide tabela 2), o que demonstra a relevância do tráfico interno para o município e o

protagonismo dos indivíduos traficados na criminalidade escrava.

Tabela 2 – Localidade de origem dos crioulos réus em Processos Criminais

(Campinas, 1860-1886)

Localidade de origem6 Número de escravos % sobre o total de crioulos com origem informada

Campinas 17 19,8

Província de São Paulo7 09 10,5

Região Sudeste8 13 15,1

Outras regiões 47 54,6

Total de crioulos 86 100

Fontes: Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886. Arquivo Edgard

Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP); Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de

Campinas, 1860-1884.Centro de Memória da Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas

(CRC).9

Na tabela 3 podemos ver como a proporção de réus nascidos em diferentes

localidades do Império variou ao longo do tempo. O gráfico 2 ajuda a visualizar melhor essa

dinâmica.

4 Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 127.

5 Percentual calculado sobre o total de crioulos cujo município ou província de origem puderam ser

identificados. 6 Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi

informada. Não estão descritos, portanto, 20 africanos (18,5% dos dados informados), 2 crioulos para os quais

não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 26 réus com origem não identificada. 7 Não inclui os nascidos em Campinas.

8 Não inclui os nascidos na Província de São Paulo.

9 Todas as tabelas e gráficos deste capítulo foram elaboradas com base nessas fontes.

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48

Tabela 3 – Origem dos escravos crioulos réus em Processos Criminais, por

década (Campinas, 1860-1886)

Década Número de réus

escravos crioulos10

Número de réus

escravos campineiros

Número de réus

escravos forasteiros

1860 22 08 14

1870 50 09 41

1880 14 - 14

Total 86 17 69

Como se vê na tabela 3 e no gráfico 2, a proporção de réus nascidos em Campinas é

um pouco maior na década de 1860 – ainda que continue sendo menor que o percentual de

forasteiros, e decai nas décadas em que houve maior entrada de cativos do mercado

interprovincial no município, chegando a zero na década final da escravidão.

Essa desproporção se mostra ainda mais marcante quando comparamos as

características dos cativos de nossa amostra (em autos criminais) com o perfil demográfico da

população escrava em Campinas. De acordo com dados colhidos por Robert Slenes em uma

amostra para os anos 1872 a 1874, 56,3% da população escrava crioula com origem

10

Incluímos nesta tabela e no gráfico seguinte (2.1) somente os crioulos que tem informação da localidade de

origem dentro do Império (município e/ou província).

36,4%

18%

0%

63,6%

82%

100%

1860 1870 1880

Campineiros Forasteiros

Gráfico 2 – Origem dos crioulos réus em Processos Criminais, por década

(Campinas, 1860-1886).

Page 49: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

49

conhecida não havia nascido no município de Campinas,11

proporção bem menor do que a que

foi indiciada como réu na segunda metade do século.

Além disso, 54,6% dos réus crioulos vieram de fora da região Sudeste, ou seja, foram

submetidos ao tráfico inter-regional, estando bastante distantes de seus locais de origem

(tabela 2). Mesmo entre os escravos réus nascidos em Campinas, 41,2% não havia nascido nas

escravarias onde se envolveram nos crimes, tendo sido comprados pelos atuais senhores na

segunda metade do século (tabela 4). Em geral, 68,1% dos cativos crioulos indiciados como

réus no período haviam passado pelo tráfico interno ou comércio local. Desse modo, ao

menos a princípio, a relevância dessa experiência para o volume de cativos criminosos no

período não pode ser descartada.

Tabela 4 – Origem dos Réus com informação de compra e venda (Campinas,

1860-1886).

Origem Número de escravos réus com

informação de compra e venda %

12

Campineiros 07 41,2

Forasteiros 50 73,5

Ainda comparando os dados de nossa mostra com o perfil demográfico da população

escrava de Campinas, podemos observar quem eram esses criminosos e quais diferenças

podem ter sido determinadas pela sua origem.

A grande desproporção entre homens e mulheres réus chama atenção independente

da origem. Enquanto os dados do censo de 1872 e das matrículas de 1873 e 1887 variam em

torno de 56% para os escravos do sexo masculino,13

esse percentual se eleva para 96,3% entre

os réus. Ao invés de tentarmos explicar por que as mulheres se envolveram menos em crimes,

devemos ponderar que poucas foram as indiciadas. Em sua análise sobre a revolta escrava de

1832 em Campinas Ricardo Pirola observou um esforço dos cativos em proteger as mulheres

envolvidas na trama, não citando seus nomes em nenhum dos vários depoimentos que

arrolaram uma série de detalhes sobre o planejamento da revolta.14

Como afirmou o

historiador, é bastante improvável que as mulheres e filhas dos revoltosos realmente não

soubessem dos planos de insurreição.

11

Robert Slenes. The demography and economics of Brazilian slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford

University, Stanford, 1976, tabela 3-2, p. 133. 12

Percentual calculado sobre o total de cativos réus com essa mesma origem. 13

Robert Slenes. The demography..., tabelas B-2, B-3 e B-7, p. 690-1 e 697. 14

Ricardo F. Pirola. Senzala Insurgente: malungos, parentes e rebeldes nas fazendas de Campinas (1832).

Campinas, Editora da Unicamp, 2011, p. 147.

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50

Em um processo criminal que julgou o homicídio de um feitor em 1868, vemos

também um esforço de manter a participação feminina velada. O réu Epifânio afirmou a

participação de todos os companheiros que estavam no eito no assassinato do feitor, com

“exceção das negras que estavam no eito”15

. As três escravas presentes na cena do crime eram

Jacinta, Damásia e Maria das Dores, sendo as duas últimas casadas. Epifânio também contou

que a morte do feitor havia sido combinada pelos cativos da fazenda algum tempo antes, o

que torna improvável que as mulheres não soubessem e compactuassem com o plano, uma

vez que não houve delação e ele foi executado com sucesso.

Ricardo Pirola observou um número significativo de escravos casados entre aqueles

que foram indiciados pelo plano de revolta de 1832, com uma proporção de 38% entre os que

tiveram o estado conjugal informado no processo crime. Entre aqueles apontados como

líderes do levante, a proporção se mostrou ainda maior: 57,1%.16

No caso dos réus da segunda metade do século XIX, observamos que, enquanto

20,3% dos escravos da província de São Paulo estavam casados por ocasião da matrícula de

1873,17

esse percentual sobe para 22,6% no caso dos réus em geral e para 26,7% no caso dos

réus nascidos em Campinas (gráfico 318

). No entanto, essa proporção é bem menor quando se

trata de réus forasteiros: 12,1%. Isso pode significar, em primeiro lugar, que poucos

forasteiros tenham tido acesso ao casamento sancionado pela Igreja nesse período; mas essa

suposição só pode ser corroborada com uma análise sistemática das certidões de casamento de

escravos na segunda metade do século XIX, o que não pudemos fazer neste estudo. No

entanto, antes de nos apoiar nessa suposição, devemos considerar que muitos desses

forasteiros (41,7%) cometeram crimes nos cinco primeiros anos após sua chegada em

Campinas, sendo, então, pouco provável que já tivessem conseguido se unir a uma parceira e

ter a permissão do novo senhor para a oficialização da união em tão pouco tempo.19

Além

disso, em acordo com as preferências do mercado de escravos, esses forasteiros trazidos à

15

AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio,

escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas, 1868. “Auto de perguntas ao réu Epifânio”, p. 7.

“Auto de perguntas ao réu Epifânio”. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa

Maria de Jesus Paula, Campinas, 1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. p.7. 16

Ricardo Figueiredo Pirola. Senzala Insurgente..., op. cit., p. 107. 17

Robert Slenes. The demography..., tabela B-4, p. 692. 18

Fonte dos dados sobre estado conjugal dos escravos na matrícula de 1873: Robert Slenes, The demography...,

tabela B-4, p. 692. 19

Esta informação, bem como outros dados relacionados ao tempo de moradia dos réus escravos está constante

na tabela .

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. CMU, CRC.

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51

Campinas eram em sua maioria solteiros.20

Vale ressaltar ainda que o índice de casamentos

formais (sancionados pela Igreja) nas outras províncias era muito baixo.21

Gráfico 3 – Estado conjugal dos escravos na matrícula de 1873 e em Processos

Criminais.

Por outro lado, se a maioria dos forasteiros envolvidos em crimes não tinha relações

conjugais formalizadas, é bastante interessante observar as respostas dos cativos réus quando

foram perguntados sobre o nome de seus pais. Enquanto 29,4% dos réus nascidos em

Campinas mencionaram o nome do pai e/ou mãe, 46,4% dos forasteiros informaram o nome

de pelo menos um dos progenitores. Esses dados dão pistas a respeito do convívio familiar,

podendo indicar uniões consensuais estáveis nos locais de origem, bem como o impacto do

tráfico sobre essas famílias.

As preferências do mercado de escravos também influenciaram o perfil etário dos

cativos indiciados nos processos criminais que temos em mãos: enquanto 78,6% dos cativos

com origem em Campinas estavam em idade plenamente produtiva, isto é, tinham entre 15 e

39 anos, esse percentual sobe para 90,8% quando se trata dos réus forasteiros.22

É preciso

levar em consideração que esses dados são amostrais, ou seja, essas idades correspondem

apenas aos cativos que foram indiciados por algum crime entre 1860 e 1886. Assim,

20

José F. Motta. Escravos daqui, dali e de mais além. São Paulo: Alameda Editorial/FAPESP, 2012, p. 67ss. 21

Robert Slenes, The demography..., tabela B-4, p. 692. 22

Percentuais calculados sobre o total de informações disponíveis sobre a idade dos réus.

76,2% 73,3% 86,2%

58,3%

20,3% 26,7% 12,1%

41,7%

3,5% 0,0% 1,7% 0,0%

Todos os escravos da

Província de São

Paulo (matrícula de

1873)

Réus campineiros Réus forasteiros Vítimas

Solteiros Casados Viúvos

Page 52: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

52

ponderamos que os forasteiros estavam causando grande prejuízo aos senhores, uma vez que

sua prisão ou as sequelas dos castigos recebidos como sentença por esses crimes atrapalhavam

o bom andamento das produções nas fazendas.

Por outro lado, a menor idade do escravo réu poderia ser um fator amenizador da

pena, o que era benéfico para o cafeicultor que não desejava ter seu cativo na prisão por muito

tempo. Esse subterfúgio foi utilizado, por exemplo, em 1868, no julgamento do réu Epifânio

que, acusado de ser o principal responsável pelo assassinato do feitor Malaquias na fazenda de

sua senhora, dona Teresa Maria de Jesus Paula, teve a idade menor de 21 anos alegada pela

defesa como forma de diminuir a severidade da pena prevista.23

Outro fator a influenciar o tamanho do prejuízo sofrido pelo senhor que tinha seu

escravo envolvido em um processo criminal era a ocupação, cujas diferenças relativas à

origem são bastante interessantes e podem ser observadas na tabela 5. A proporção dos

homens adultos (com 15 anos ou mais) nascidos fora de Campinas que estava em ocupações

especializadas ou domésticas é de 35,1%. Entre os escravos nascidos em Campinas, 25% dos

réus estavam nessas ocupações.

Tabela 5 – Ocupação dos escravos adultos do sexo masculino em Processos

Criminais (Campinas, 1860-1886).

Tipo de

ocupação

Vítimas24

Réus Réus forasteiros Réus campineiros

N % N % N % N %

Atividades

especializadas

ou domésticas

05 50% 25 32,5% 20 35,1% 03 25%

Lavoura 05 50% 52 67,5% 37 64,9% 09 75%

Total 10 100 77 100 57 100 12 100

A ocupação em uma atividade doméstica ou especializada conferia certos privilégios

aos cativos, como maior autonomia e mobilidade espacial, bem como a possibilidade de

formação de um pecúlio para compra da liberdade. Além disso, possibilitava ao cativo ter

contatos múltiplos com gente da casa grande, com a escravaria em geral e com pessoas livres

e/ou libertas.25

Assim, a maior proporção de cativos forasteiros com esse tipo de ocupação

traz duas implicações. Primeiro, confirma a presença de cativos oriundos de áreas urbanas de

23

“Sentença do Juiz de Direito”, 25/05/1868. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de

Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas, 1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008, p. 152.

Para um estudo bastante detalhado sobre o uso do argumento da menoridade no julgamento de crimes de

escravos, ver: Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de

junho de 1835. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2015, p. 125-141. 24

Não diferenciamos o tipo de ocupação das vítimas por origem devido ao baixo número de informações. 25

Ricardo Figueiredo Pirola. Senzala Insurgente..., op. cit., p. 95.

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53

diversas regiões do Império, que, ao serem traficados para as fazendas de Campinas, se viram

muitas vezes privados de exercer tais atividades especializadas e delas usufruir os privilégios

de antes. É possível verificar casos em que o escravo diz que “sabe ofício de pedreiro, mas era

trabalhador de roça”,26

bem como casos em que a qualificação do réu mencionava duas

ocupações, como “cozinheiro e trabalhador de roça”27

. Esse pode ter sido um fator agravante

das tensões relativas ao sistema disciplinar das fazendas, não reconhecido como razoável

pelos cativos, em especial por aqueles que traziam uma experiência de cativeiro anterior

muito diferente.

Em segundo lugar, esses dados evidenciam que exercer uma atividade doméstica ou

especializada não garantia ao cativo o não envolvimento em conflitos, o que parece ter sido

ainda mais marcante quando se tratava de forasteiros.

O envolvimento de um escravo com ocupação especializada em atos criminosos era

um fator que tornava ainda maior o prejuízo do senhor, uma vez que estes se veriam privados

do serviço daqueles que tinham o valor mais alto. De modo geral, pode-se observar que, pelo

menos entre os forasteiros, os cativos com valores mais altos, seja pela faixa etária em que se

encontravam ou pelas ocupações que exerciam, eram o que mais se envolviam em

“problemas”. Os preços de escravos homens entre 14-28 anos variou em torno de 2:200$000

réis em Campinas ao longo da década de 1870, exatamente no mesmo período em que o

número de crimes foi maior.28

Em ambos os casos, todavia, os escravos que trabalhavam nas lavouras foram a

maioria dos que se envolveram em atos criminosos após 1860: 64,9% dos homens adultos

forasteiros e 75% dos nascidos em Campinas. Além de se aproximar da realidade demográfica

do município, esse dado permite confirmar o que já foi dito por Maria Helena Machado sobre

a relevância do sistema disciplinar nas fazendas que, ao solapar as margens de autonomia

escrava, adicionava calor ao barril de pólvora das relações escravistas nas últimas décadas do

século XIX.29

Passemos, agora, a uma análise mais interna dos autos criminais que envolveram

esses escravos como réus, procurando divisar as semelhanças e diferenças entre os crimes

cometidos por cativos nascidos em Campinas e aqueles em que os forasteiros foram

indiciados.

26

“Auto de qualificação de Manuel”. Processo Crime. Réu: Manuel, escravo de João Ferreira da Silva Gordo,

Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 006. 27

“Auto de qualificação de Emiliano”. Processo Crime. Réus: Anísio, Benedito, João e Emiliano, escravos de

Manuel Inácio de Camargo, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 237, Documento 001. 28

Robert Slenes. The demography..., gráfico 5-1, p. 241. 29

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 25.

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54

Um caso bastante interessante pode nos tirar por um momento da frieza dos números

e nos apresentar alguns detalhes sobre as expectativas e dificuldades vivenciadas pelos

forasteiros em Campinas, não só nas fazendas de café.

O baiano Francisco, que era sapateiro e cozinheiro, trabalhava na cozinha do Hotel

do Comércio, onde estava alugado ao proprietário José de Sousa Teixeira. Numa noite,

Francisco saiu do Hotel logo após o jantar para ir à venda comprar fumo e beber aguardente,

sem comunicar Teixeira. Quando chegou encontrou o locador deveras furioso pela sua saída

sem permissão e foi castigado. Em depoimento, o cativo contou então que,

“(...) tendo ele sofrido isto de Teixeira, saltou o muro, e foi ter com seu

senhor Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, e lhe deu parte do ocorrido, e

seu senhor lhe disse que voltasse para o hotel que ele viria falar com

Teixeira, e chegando ele respondente de novo ao hotel Teixeira lhe disse

[ilegível] que já lhe tinha dito que não queria que ele saísse de casa sem lhe

pedir licença e lançou mão de uma racha de lenha e com ela começou a dar-

lhe pancadas, e ele respondente lhe dizia fugindo das pancadas que não lhe

batesse [?] a perder, e corria de Teixeira por de trás do fogão, e Teixeira o

perseguia e nesta ocasião ele respondente lançando mão de um canivete de

mola que consigo tinha, com ele ofendeu a Teixeira”.30

Francisco mostrou em juízo os ferimentos que José de Sousa Teixeira lhe causara

com as pancadas na cabeça e no braço, e sua recusa em ser castigado pelo proprietário do

Hotel é marcante em todos os pontos do processo. Ao senhor do escravo, Antônio Jesuíno de

Oliveira Barreto, foi perguntado pelo advogado do réu se quando alugou Francisco a Teixeira

autorizou-o a castigar o escravo, e ele respondeu negativamente, mas que “(...) recomendara a

Teixeira que o avisasse logo de qualquer falta que por ventura o Réu praticasse”.31

Logo,

Francisco não aceitava os castigos que Teixeira tentava lhe infligir, provavelmente por estar a

par da combinação que seu senhor fizera com o locador, tanto que sua reação ao ser castigado

pela primeira vez foi ir procurar o próprio senhor.

A negação de Francisco aos castigos aplicados por Teixeira também fica implícita

nas informações prestadas pelo escravo Vitalino, que estava na cozinha na hora do conflito e

contou que Francisco dissera a Teixeira “pelo amor de Deus, deixe-me trabalhar”.32

A vítima,

José de Sousa Teixeira, também disse que, ao tentar repreender o réu por sua saída do Hotel

30

“Auto de perguntas ao escravo Francisco”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de Antônio Jesuíno de

Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 003.

31

“Auto de perguntas ao informante Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto”. Processo Crime. Réu: Francisco,

escravo de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229,

Documento 003. 32

“Auto de perguntas à testemunha 4ª informante”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003.

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55

sem avisar, ele lhe dissera “faz o favor de não me incomodar, pelo amor de Deus, não me

aborreça, retire-se”.33

Outro ponto da expectativa de cativeiro que Francisco trazia – e é perceptível no

processo – é que ele considerava perfeitamente aceitável que saísse do hotel sem avisar o

locador, para ir à venda comprar fumo e beber aguardente.34

Mas Teixeira pensava de modo

diferente.

O processo permite conhecer um pouco do local onde o cativo estava trabalhando: na

cozinha, juntamente com outro escravo cozinheiro alugado, de nome Vitalino, pertencente a

Antônio Egídio de Sousa Aranha. Enquanto isso, vários homens se encontravam numa sala

próxima onde existia um bilhar. Havia, também, no hotel, pelo menos uma escrava de

propriedade de Teixeira, chamada Fortunata, que foi quem gritou por socorro quando viu o

senhor sendo agredido por Francisco.

A participação do escravo Vitalino no conflito é bastante interessante. Apesar de não

ter ajudado Francisco a agredir Teixeira, ele tão pouco tentou impedir que a agressão

ocorresse, sendo que o socorro à vítima só veio depois que a escrava Fortunata entrou na

cozinha e, presenciando a cena, gritou pelos homens que estavam na sala do bilhar. Isso

chamou a atenção do próprio Teixeira, que afirmou desconfiar “que Vitalino estivesse

combinado com o Réu porque assistiu impassível a luta desde o princípio até o fim, sem que

de modo algum procurasse prestar qualquer socorro, não obstante ele respondente tê-lo

chamado por diversas [vezes] para que o acudisse”.35

Como observou Maíra Chinelatto, a passividade dos escravos que testemunhavam

crimes contra senhores e seus prepostos sem tentar impedi-los foi um fator curiosamente

comum.36

Em depoimento, esses informantes alegavam estar distantes do local do crime, em

outro ponto da roça, por exemplo, ou então terem ficado petrificados de medo diante da cena.

É possível, porém, que fossem coniventes com o ato criminoso ou que não ousassem se

arriscar ao enfrentar os parceiros criminosos para defender seus senhores, feitores ou, como

no caso de Vitalino, seu locador.

Não encontramos entre os registros de pagamento da meia sisa, a compra de

Francisco por Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, mas o forasteiro depôs que residia há

apenas três anos em Campinas quando o crime aconteceu.37

Tendo nascido na Bahia,

33

“Auto de perguntas ao ofendido José de Sousa Teixeira”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. 34

“Interrogatório ao réu Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. 35

"Auto de perguntas ao ofendido José de Sousa Teixeira”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. 36

Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 232. 37

“Interrogatório ao réu Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003.

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56

Francisco tinha 35 anos, era solteiro e apontou o nome de ambos os pais em depoimento. Seu

senhor, Oliveira Barreto, era poucos anos mais velho que seu escravo, com 39 anos e também

não era natural de Campinas. Nascido na província do Rio Grande do Sul, exercia ofício de

farmacêutico na cidade paulista. Seu inventário post mortem, datado de apenas três anos após

o processo criminal de Francisco, mostra um senhor jovem, cujo filho mais velho tinha 16

anos na ocasião de sua morte, e detentor de uma propriedade modesta, com apenas três

escravas e um monte-mor de pouco mais de 29 contos de réis.38

A lista de matrícula anexa ao inventário mostra a posse de nove escravos em 1872,

entre eles Francisco, descrito como apto para qualquer trabalho e sem informação sobre a

filiação. Ao lado de seu nome consta a anotação “vendido”, assim como outros dois cativos:

Paulina, de 05 anos, natural de São Paulo, e o pardo José, de 30 anos, baiano como Francisco

e boleeiro. 39

Outras duas escravas estavam presentes na lista de matrícula, mas já haviam

falecido na ocasião do inventário do senhor, com 17 e 19 anos de idade. A lista de matrícula

traz ainda outras informações interessantes sobre a pequena escravaria de Antônio Jesuíno em

período próximo à prisão de Francisco. Ela era formada em geral por cativas jovens (seis

mulheres com idades entre 05 e 28 anos e uma com 45 anos) e com ocupações domésticas

(uma cozinheira, duas engomadeiras e duas costureiras), todos eram solteiros e, com exceção

da africana Maria Luísa, advindos do tráfico interno.40

Francisco tinha chegado a Campinas há apenas três anos e vivia em uma pequena

escravaria, talvez algo semelhante àquela da qual foi retirado na sua terra natal, e certamente

não estava se habituando ao domínio do locador José de Sousa Teixeira e ao ambiente do

Hotel do Comércio. Além das reclamações a respeito do castigo aplicado por Teixeira, o réu

mencionou o excesso de trabalho, como a limpeza das pacas poucas horas antes do jantar. Por

outro lado, aparentemente, tinha uma relação diferente com o seu senhor, Antônio Jesuíno de

Oliveira Barreto, considerando que ele o defenderia dos excessos de Teixeira.

O modo como o processo foi julgado é singular quanto à expectativa das relações

entre senhores e escravos e entre estes últimos e os locadores de serviço. O promotor tentou

pronunciá-lo “como incurso no artigo 192 do Código Penal combinado com o artigo 34 do

mesmo código em relação à tentativa de morte contra José de Sousa Teixeira, visto que estava

38

Inventário post mortem de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1876. CMU, Tribunal de Justiça

de Campinas (TJC), 3º Ofício, Processo 7278, Caixa 450. 39

Condutor de carros de bois. Hoje se utiliza mais frequentemente a palavra cocheiro. 40

"Lista de matrícula de escravos”. Inventário post mortem de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas,

1876. CMU, TJC, 3º Of., P. 7278, Cx. 450.

Page 57: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

57

este constituído na posição de superior do denunciado”.41

O senhor tentou recorrer dessa

pronúncia, com o argumento de que Teixeira não estava em posição de senhor do acusado “e

que o ofendido nem ao menos estava autorizado a castigar o Réu, como se vê da informação

de seu senhor e já se inferia do fato de haver o Réu ido se queixar dos castigos, que dizia ter

sofrido”.42

O juiz de Direito, no entanto, sustentou a pronúncia do promotor, concluindo que:

“O réu é escravo, nesta qualidade estava alugado e ao serviço do ofendido Teixeira,

que já pela diferença de condições, e já por tê-lo sob as suas ordens, se constituía seu

superior; não devendo ser somente o direito de castigá-lo corporalmente, que o

devesse colocar nessa qualidade de superioridade”.43

A questão foi retomada em audiência no júri, e não foi reconhecida “(...) no ofendido

a qualidade de superior do delinquente de modo a constituir este em respeito àquele como de

filho a pai”.44

O júri ainda declarou uma circunstância atenuante: Francisco “cometeu o crime

com as circunstâncias atenuantes do artigo 18 parágrafo 3º e 6º por tê-lo feito em defesa de

sua pessoa, e ter precedido a agressão da parte do ofendido”.45

Assim, o Juiz de Direito,

confirmando a decisão do júri, condenou Francisco no grau mínimo do artigo 193 do Código

Penal, ficando a dita pena comutada em quatrocentos açoites e o réu obrigado a trazer ferro ao

pescoço por espaço de três anos. Como se vê, apesar das atenuações dadas à pena, ela não foi

menos cruel para Francisco.

Mas a história do baiano Francisco não termina por aí. As elevadas custas do

processo, que somam um total de quase 500$000 réis,46

obrigaram o senhor Antônio Jesuíno a

vender o cativo antes mesmo que a pena fosse cumprida e ele pudesse sair da Cadeia de

Campinas e retornar a seu poder. Francisco soube na prisão que seria entregue a um novo

senhor,47

e contou que “(...) por mais de uma vez aparecia na Cadeia o escrivão Joaquim de

Pontes perguntando se o queria servir”, ao que ele respondia que “não podia servir se não o

senhor de sua escolha e que obrigado não sairia da cadeia para ser seu escravo nem para sê-lo

de Teixeira ou de outro que não fosse da sua vontade”.48

41

“Vista ao Promotor Interino José Francisco dos Santos Maia”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de

Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 003. 42

"Vista ao procurador Antônio Carlos de Moraes Salles”, 31/12/1872. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc.

003, f. 118. 43

“Conclusão do Juiz de Direito”. CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. f. 132. 44

“Decisão do Júri”, “5º quesito”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003, p. 178. 45

“Decisão do Júri”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003, p. 179. 46

“Custas”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003, p. 187. 47

“Interrogatório do réu na Sessão do Júri”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira,

Campinas, 1873. , CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 004. p. 82. 48

“Interrogatório do réu na Sessão do Júri”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira,

Campinas, 1873 , CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 004. p. 82-3.

Page 58: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

58

Pouco tempo depois, no entanto, o antigo locador José de Sousa Teixeira, efetuou a

compra do cativo.49

Desnecessário dizer que a notícia em nada agradou a Francisco, que via

em Teixeira um homem cruel e desmedido ao castigar. Assim, cerca de dez meses após as

ofensas cometidas contra Teixeira, quando um oficial de justiça tentou retirar Francisco à

força da cadeia para entregá-lo ao novo senhor, o cativo defendeu-se agredindo o oficial com

uma faca, o que gerou um novo processo.50

Condenado no grau médio do artigo 205 do Código Criminal,51

Francisco teve sua

pena substituída de quatro anos e meio de prisão com trabalho para 200 açoites e ferro ao

pescoço por oito meses. Após o cumprimento da pena, foi finalmente entregue a Teixeira.

Porém, ainda não estavam terminados os problemas que Teixeira teria com Francisco

e este não se resignaria facilmente a aceitar um cativeiro que não lhe parecesse razoável.

Alguns meses depois, já no ano de 1875, Francisco fugiu do poder de José de Sousa Teixeira.

52

No anúncio de fuga foi possível identificar características que podem revelar marcas

de castigos sofridas por Francisco: “com algumas cicatrizes no rosto, mal encarado, e com

falta de um dedo da mão esquerda”.53

A recompensa oferecida por sua entrega foi um valor

acima da média para o mesmo ano: 200$000 rs. Esse valor era também o dobro do oferecido

pelo mesmo senhor pelos escravos Domingos, Vicente, Jovino e Antônio que haviam fugido

juntos no ano anterior.54

A história de Francisco é um exemplo emblemático da dificuldade de um escravo

forasteiro em se adaptar às relações de cativeiro encontradas em Campinas. Apesar de ter sido

inicialmente inserido em uma pequena escravaria e não em uma fazenda de café, a locação

dos serviços de Francisco a um terceiro o colocou diante de um tratamento que ele julgou

inadequado. Suas habilidades como cozinheiro e sapateiro devem ter pesado na decisão de

Teixeira de comprá-lo de Oliveira Barreto, mesmo após as ofensas cometidas, uma vez que o

preço pago por ele deve ter sido bem abaixo do valor de mercado, devido às circunstâncias.55

49

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1873. CMU, CRC. 50

Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI,

Microf. CSP 229, Doc. 004. 51

“Se o mal corpóreo resultante do ferimento, ou da ofensa física produzir grave incomodo de saúde, ou

inabilitação de serviço por mais de um mês. Penas - de prisão com trabalho por um a oito anos, e de multa

correspondente á metade do tempo.” Código Criminal do Império do Brasil, artigo 205. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm (acessado em 11/08/2016). 52

Anúncio de fuga do escravo Francisco. Gazeta de Campinas, nº 554, 1875. 53

Anúncio de fuga do escravo Francisco. Gazeta de Campinas, nº 554, 1875. 54

Anúncio de fuga dos escravos Antônio, Domingos, Jovino e Vicente. Gazeta de Campinas, nº 444. 20 de

março de 1874. 55

O valor pago pelo escravo não foi informado no registro de meia-sisa.

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59

A venda para o novo senhor, todavia, significou uma perda de autonomia muito maior para

Francisco, pois passou então a fazer parte de uma escravaria diferente. Não foi possível

encontrar o inventário post mortem de José de Sousa Teixeira. No entanto, os registros de

meia-sisa e anúncios de fuga de escravos publicados na Gazeta de Campinas dão algumas

pistas sobre como se compunha ao menos uma parte de sua propriedade escrava,

provavelmente ocupada em diferentes atividades no Hotel do Comércio. Entre os anos 1868 e

1875, Teixeira adquiriu seis novos cativos, cinco deles vindos da região Nordeste. 56

Eles

tinham entre oito e 40 anos e havia apenas uma mulher. Ainda havia pelo menos outros quatro

escravos sob a propriedade de Teixeira no ano de 1874, um deles oriundo do Maranhão.57

E

pelo menos um de seus escravos esteve trabalhando na construção da Matriz Nova.58

Assim,

verifica-se que Francisco encontrou no novo cativeiro um ambiente composto por outros

escravos forasteiros. Apesar de haver elementos em comum, no entanto, isso não seria razão

suficiente para fazê-lo “servir senão o senhor de sua escolha”.59

Observando os tipos de crimes cometidos por escravos entre 1860 e 1888 em

Campinas, verificamos que 88,1% foram crimes contra a pessoa, isto é, homicídios, tentativas

de homicídio e ofensas físicas (vide tabela 6). Desses crimes 46,2% foram julgados a partir do

1º artigo da lei de 10 de junho de 1835, que previa a punição de delitos contra senhores e seus

prepostos, feitores e administradores.60

Quando olhamos esses dados levando em conta a

origem dos criminosos, verificamos que 88,4% dos réus forasteiros cometeram crimes contra

a pessoa (tabela 6), a maioria deles, isto é, 52,3%, contra senhores e seus prepostos, feitores e

administradores (tabela 7). No caso dos réus nascidos em Campinas, essa proporção é de

82,4% que cometeram crimes contra pessoa (tabela 6), e 31,3% dos quais inclusos no 1º

artigo da lei de 10 de junho de 1835 (tabela 8).

56

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1868-1875. CMU, CRC. 57

Anúncio de fuga do escravo Antônio. Gazeta de Campinas, nº 444, 20 de março de 1874. 58

Anúncio de fuga do escravo Jovino. Gazeta de Campinas, nº 444, 20 de março de 1874. 59

Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 229, Documento 004. 60

Um estudo sobre esse tipo de crime, bem como as implicações em torno da lei de 10 de junho de 1835 pode

ser conferido em Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit.

Page 60: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

60

Tabela 6 – Tipos de crimes cometidos por escravos em Campinas, por origem

(1860-1886).

Tipos de crimes Campineiros Forasteiros

N % N %

Crimes contra

a pessoa

Homicídio e

tentativa de

homicídio

13 76,5 52 75,4

Lesões

Corporais

01 5,9 08 11,6

Imprudência - - 01 1,4

Subtotal 14 82,4 61 88,4

Crimes contra

a propriedade

Furto ou Roubo 01 5,9 06 8,8

Falsificação 01 5,9 - -

Fraude - - 01 1,4

Violação de

contrato de

serviços

01 5,9 - -

Subtotal 03 17,6 07 10,2

Crimes contra

a ordem

pública

Resistência à

autoridade

- - 01 1,4

Total geral 17 100 69 100

Como pode ser observado nas tabelas 7 e 8, um percentual considerável de cativos

nascidos em Campinas cometeu crimes contra pessoas livres (37,5%) e também contra outros

escravos (31,3%), o que não se observa entre os forasteiros, que dirigiram suas agressões mais

comumente aos senhores ou representantes da autoridade senhorial (52,3%). Aliás, o

percentual de crimes dos campineiros contra outros escravos foi igual ao dos atos dirigidos

contra senhores, feitores e administradores: 31,3%. Há muitas lacunas na caracterização das

vítimas nos processos criminais, mas sabemos que pelo menos 40% dos escravos com origem

informada que foram vítimas de atos criminosos cometidos pelos nascidos em Campinas eram

forasteiros. Todavia, apesar de observar essa diferença proporcional entre as vítimas dos atos

criminosos cometidos por forasteiros e campineiros, não vamos avançar nessa análise, em

razão do ínfimo tamanho da amostra para os últimos.

Page 61: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

61

Tabela 7 – Tipos de conflitos envolvendo os réus forasteiros (Campinas, 1860-

1886).

Período

Vítimas enquadradas no

art. 1º da lei de 10 de

junho de 183561

Outras vítimas

Vítima

não

informada

Total geral S

enh

or

Fei

tor/

adm

./lo

cad

or

Su

bto

tal

Liv

re

Esc

rav

o

Lib

erto

Ing

ênu

o

Su

bto

tal

1860-69 - 07 07 05 02 - - 07 - 14

1870-79 14 06 20 12 04 - 01 17 04 41

1880-86 01 06 07 04 03 - - 07 - 14

Total 15 19 34 21 09 - 01 31 04 69

% sobre o total 23,1 29,2 52,3 32,3 13,8 - 1,5 47,7 - -

Tabela 8 – Tipos de conflitos envolvendo os réus nascidos em Campinas

(Campinas, 1860-1886).

Período

Vítimas enquadradas no

art. 1º da lei de 10 de junho

de 183562

Outras vítimas

Vítima não

informada

Total

geral

Sen

ho

r

Fei

tor/

ad

m./

loca

do

r

Su

bto

tal

Liv

re

Esc

rav

o

Lib

erto

Ing

ênu

o

Su

bto

tal

1860-69 - 03 03 03 02 - - 05 - 08

1870-79 02 - 02 03 03 - - 06 01 09

1880-88 - - - - - - - - - -

Total 02 03 05 06 05 - - 11 01 17

% sobre

o total 12,5 18,8 31,3 37,5 31,3 - - 68,8 6,3 -

Por ora, destacamos que os forasteiros não só representavam a maioria dos escravos

indiciados nos processos criminais na segunda metade do século XIX, como também foram

eles os que mais se envolveram em ataques a senhores e seus prepostos, feitores e

administradores. No entanto, cabe observar que esses forasteiros não estavam sozinhos em

seus crimes. Como concluiu Maíra Chinelatto, os crimes de escravos dos últimos anos da

61

Os números inteiros se referem ao total de réus envolvidos nesse tipo de conflito e não ao número de autos

criminais. 62

Os números inteiros se referem ao total de réus envolvidos nesse tipo de conflito e não ao número de autos

criminais.

Page 62: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

62

escravidão reuniram em geral grande número de criminosos.63

Passemos ao próximo tópico,

para discutir mais profundamente essa questão.

2.2. Cúmplices e aliados

Ao tratarmos dos cúmplices e aliados dos cativos em seus atos criminosos, nosso

primeiro pensamento se volta para os crimes coletivos, que envolveram dois ou mais escravos

para seu planejamento e/ou execução. Todavia, queremos começar este tópico com a história

de um crime diferente, que foi cometido por um cativo campineiro e executado apenas por

ele.

Severiano nasceu em Campinas, na comunidade do sítio do Saltinho, propriedade de

Felipe Antônio Franco, convivendo com seu pai Salvador e sua mãe Isidora, escravos do

mesmo senhor.64

Era carreiro e trabalhador de roça e também exercia a ocupação de caseiro

do sítio. O fato de ser um membro da antiga comunidade da senzala e ter ocupações

diferenciadas não impediu que Severiano se envolvesse em uma confusão que o levou à

cadeira dos réus em 1876.65

Pouco antes do Natal de 1875, Severiano estava dormindo em sua senzala, quando

por volta das três horas da madrugada foi despertado pelo escravo Antoninho que, ao passar

pelo armazém de açúcar viu que ele estava aberto e julgou lá estar um ladrão. Severiano foi ao

armazém verificar, munido de uma foice e acompanhado do mesmo Antoninho e também do

escravo Adriano. Ao chegar, viu uma pessoa sair do armazém carregando um saco de açúcar e

o atacou com a foice. Com o suposto ladrão já caído ao chão, Severiano então reconheceu ser

Honorato, também escravo daquela fazenda. Com medo de reprimendas, e vendo que o

parceiro já estava quase morto, deferiu-lhe uma facada a fim de matá-lo definitivamente,

atirando o corpo no Rio Atibaia, na expectativa de ocultar o trágico acontecimento.

De acordo com os depoimentos tanto de Antoninho e Adriano, quanto do réu

Severiano, ele tentara defender a propriedade do seu senhor e cometera um engano. Ao longo

do processo há, no entanto, a suspeita de que Severiano teria rixas mal resolvidas com a

vítima, o que tornaria o crime premeditado, aumentando a severidade das penas a que estaria

63

Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 127. 64

Joice Fernanda de Souza Oliveira analisou minuciosamente a comunidade escrava do Saltinho e a propriedade

de Felipe Antônio Franco. Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista..., capítulo 1, p. 25-99. 65

Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 239, Documento 002.

Page 63: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

63

sujeito. Essa suspeita, todavia, não foi confirmada pelo processo criminal, com Severiano

sempre alegando que tinha amizade com Honorato e que qualquer rixa que tenham tido teria

sido já passada. Ao fim da audiência diante do Júri, Severiano foi julgado culpado pelo

assassinato, mas ao crime não foi acrescida nenhuma circunstância agravante, sendo

condenado no grau médio do artigo 193 do Código Criminal, com uma pena, ao final, de 200

açoites e trazer ferro ao pescoço por quatro anos.66

O esforço de Severiano para esconder o corpo não era despropositado. Honorato não

era apenas um parceiro de escravaria. Em seu depoimento, o réu disse que os dois

trabalhavam juntos na roça e eram tratados de igual maneira, no entanto, alguns pontos

encontrados na documentação evidenciam que Honorato tinha um lugar de destaque na

comunidade do Saltinho. Além de fazer parte de uma das famílias fundadoras da senzala,67

suas três filhas foram as únicas escravas da comunidade que ganharam liberdade no

testamento da senhora Ana Rufina,68

falecida no mesmo ano do crime. Honorato era

provavelmente um homem respeitado na senzala. Voltaremos a falar dele adiante.

O crime cometido por Severiano demonstra que fazer parte de laços familiares

relativamente estáveis e ter uma posição diferenciada na senzala não eram garantias para

evitar conflitos, nem para o réu nem para a vítima.

Observamos que 41,8% dos cativos indiciados como réus citaram alguma relação

familiar ao longo do processo. Esse percentual sobe para 52,2% no caso dos réus forasteiros.69

Ainda que não possamos considerar essas pessoas como aliadas diretas desses réus, até

porque não é possível saber com certeza se residiam próximos a eles, é importante ponderar

que não se tratam aqui de indivíduos isolados nas senzalas ou que tenham deixado para trás as

lembranças de suas vidas na terra natal. Esses dados evidenciam também o grande impacto

que o tráfico causou sobre as famílias escravas nas regiões exportadoras, como a

historiografia já vem mostrando.70

66

“Se o homicídio não tiver sido revestido das referidas circunstâncias agravantes [citadas no artigo 16 do

mesmo Código]. Penas - de galés perpetuas no grão máximo; de prisão com trabalho por doze anos no médio; e

por seis no mínimo.” Código Criminal do Império do Brasil, artigo 193. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm (acessado em 11/08/2016). O júri declarou

que o réu não havia procurado a noite de propósito para o delito, o que seria uma circunstância agravante.

“Decisão do Júri” e “Sentença do Juiz de Direito”, 21/03/1876. Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de

Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 239, Doc. 002. 67

Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 73-4. 68

Testamento de Dona Anna Rufina. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160, p.158 e 159. Fonte citada em

Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 72-3. 69

Campinas, 1860-1886. AEL, CSP, ACI. 70

José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no

Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza, SECULT/ CE, 2011, p. 45; Cristiany M. Rocha. Histórias de

famílias escravas. Campinas, Editora da Unicamp, 2004, p. 126-7; Rafael C. Scheffer. “Lares Partidos: Famílias

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64

Severiano não teve um cúmplice ativo no seu crime, mas Antoninho e Adriano o

auxiliaram com as informações que prestaram em juízo, sempre confirmando a versão de que

tudo não passou de um engano. A atitude desses cativos de chamar por Severiano àquela hora

da madrugada demonstra que viam nele uma figura de respeito, pois o consideravam pessoa

capaz para defender a propriedade do senhor. Se esta versão não fosse verdade, ao menos era

verossímil para aquela sociedade, uma vez que acabou sendo bem aceita pelo júri.

Em alguns processos, todavia, foi possível identificar cúmplices diretos dos

criminosos: 44% dos indiciados nos autos criminais de Campinas não cometeram seus crimes

sozinhos, mas pelo menos com outro escravo como cúmplice.71

Esse percentual apresenta

uma diferença significativa, no entanto, quando observamos a origem dos réus. Entre os

nascidos em Campinas, a proporção dos cativos envolvidos em crimes coletivos (com dois

réus ou mais) é de 23,5%, enquanto para os forasteiros o percentual é de 47,8%.

Esses dados colocam em questão a hipótese de que os cativos forasteiros estariam

isolados nas senzalas, sendo tratados como estrangeiros pelos membros mais antigos da

comunidade. Não descartamos que houvesse diferenciações entre os cativos já enraizados nas

senzalas, com laços familiares e redes de solidariedade, e aqueles recém-chegados, que teriam

um longo caminho pela frente até construir também esses laços e desfrutar das vantagens

deles provenientes. Contudo, em especial quando uma pessoa representava uma figura

indesejada para toda senzala, como foi o caso de alguns feitores e senhores, os cativos se

uniram, independente de suas origens e do tempo que residiam nas escravarias.

O assassinato do feitor Malaquias, empregado de dona Teresa Maria de Jesus Paula,

por exemplo, teve, entre os 16 escravos que se apresentaram à polícia, nove africanos, um

baiano, um pernambucano, dois nascidos em Campinas, um em Santa Catarina, um em Porto

Feliz – Província de São Paulo e um no Rio de Janeiro.72

Malaquias era um homem branco que foi empregado em 1868 como feitor no sítio de

dona Teresa Maria de Jesus Paula, e menos de dois meses depois foi assassinado durante o

trabalho de capina no cafezal. Dezesseis escravos se entregaram com suas enxadas à delegacia

de polícia, para confessar o crime e “apadrinhar-se com a Justiça”.73

Três deles foram

no comércio interno de escravos (1865-1880)”, 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,

Curitiba (UFPR), maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em

http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. 71

Quando calculado sobre o número de autos criminais, o percentual de crimes coletivos é de 17%. 72

Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,

1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 73

O fato de terem ido à polícia munidos de suas enxadas pode ter tido o objetivo de proteção, como sugere

Ricardo Pirola ao analisar os cativos que se entregavam à justiça após cometer crimes contra senhores e feitores.

Também é bastante sugestivo que tenham usado a expressão “apadrinhar-se com a justiça” (grifo nosso).

Page 65: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

65

indiciados como réus e contaram diversos detalhes sobre a vida no sítio de dona Teresa M. de

Jesus Paula e a relação com as autoridades ali instituídas.

O réu Epifânio afirmou que o administrador do sítio tinha rixas com os escravos por

causa de “raparigas da casa”, e por isso, eles consideravam que ele tinha contratado o feitor

Malaquias com o propósito de maltratá-los, uma vez que este os castigava muito.74

Outros

depoimentos confirmaram a imagem do feitor como “malino”, o que teria sido a razão

principal para o delito.75

A motivação mais imediata do crime, todavia, se deu após o

desenrolar de um conflito entre o feitor e o cativo Rafael, com quem Malaquias parecia ter

“tomado muita birra”.76

No dia anterior ao crime, os escravos estavam capinando o café, quando o feitor

Malaquias chamou a atenção do escravo Rafael sobre um trabalho “mal feito”. De acordo com

o administrador do sítio, o feitor teria lhe pedido que castigasse Rafael quando todos voltaram

do eito porque, na ocasião em que ralhou com ele, o cativo o teria enfrentado, faltando-lhe

com respeito.77

Assim, Rafael foi preso ao tronco e os outros escravos tentaram interceder por

ele diante do administrador, tendo mesmo um deles, de nome Manuel Baiano, tentado

apadrinhar Rafael para que não fosse castigado.78

Mas nada funcionou e Rafael foi surrado no

tronco.

No dia seguinte, segundo o feitor escravo Moisés, os escravos não queriam responder

ao feitor branco no eito e ele “entendeu que a gente estava com má tenção [sic]”.79

Quando a

escravaria estava sozinha com Malaquias no cafezal, Epifânio atacou o feitor com a enxada

que usava no trabalho da capina. Após isso, a descrição dos acontecimentos varia nos

depoimentos, entre a versão em que todos passaram a dar enxadadas no feitor caído ao chão,

contada inicialmente pelo próprio Epifânio, e a de que somente outros dois cativos teriam

também participado do assassinato: Romualdo e Manuel Baiano.

Como já mencionado, após o crime, 16 cativos foram presos e prestaram depoimento

no inquérito policial. Além deles, outros quatro escravos de Teresa de Jesus Paula depuseram

Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit. , p. 225. "Auto de perguntas a

Sebastião”. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula,

Campinas, 1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008, p. 38. Informação semelhante pode ser

encontrada também em “Auto de perguntas a Beneditinho”, p. 49. 74

“Auto de perguntas a Epifânio.” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. p. 6-11. 75

“Auto de perguntas a Faustino” e “Auto de perguntas a Severino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc.

008, p. 39-40. 76

“Auto de perguntas a Romualdo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p.12. 77

“Testemunha Joaquim de Oliveira Penteado” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 71. 78

“Interrogatório ao réu Manuel Baiano” 25/04/68, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 104. 79

“Auto de perguntas ao informante Moisés”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 83.

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como informantes: o feitor Moisés, e as cativas que também estavam no eito quando o delito

aconteceu, Damásia, Jacinta e Maria das Dores.

O inventário da senhora, aberto quatro anos após o assassinato do feitor Malaquias,

listou 95 cativos,80

que formavam uma comunidade bastante familiar na senzala da Fazenda

Samambaia. Entre as 22 mulheres adultas, 16 eram casadas (72,7%), e 11 tinham pelo menos

um filho vivendo junto com elas na fazenda. Os percentuais são um pouco menores para o

sexo masculino, mais ainda assim acima da média para o município: 34% dos homens adultos

eram casados, e 68,75% deles conviviam com pelo menos um filho na senzala. A comunidade

contava ainda com 26 crianças, 25 das quais conviviam com ambos os pais, perfazendo

96,2%. Os solteiros ainda eram maioria, respondendo por 53,6% dos adultos, mas alguns

deles também tinham os pais na mesma fazenda (8,1%).

Logo, a comunidade da Fazenda Samambaia era provavelmente bastante antiga,

podendo ao longo do tempo formar muitos laços matrimoniais e se reproduzir naturalmente.

Apesar da possibilidade de reprodução natural, todavia, dona Teresa Maria de Jesus Paula não

deixou de fazer aquisições no mercado escravo. Os registros de meia-sisa revelam pelo menos

quatro compras feitas em arremate da herança de seu finado esposo José Francisco de Paula,

em novembro de 1866.81

Entre essas aquisições, estão dois dos cativos que estavam no eito na

ocasião do assassinato do feitor e prestaram depoimento na cadeia, mas não foram indiciados:

Eleutério e Eleuterinho.

Eleutério aparece ainda mais uma vez nos registros de meia-sisa, quando foi

arrematado da herança de Antônio Rodrigues Barbosa por José Francisco de Paula, em

1863.82

Africano e casado à época do processo criminal, Eleutério já havia passado por dois

processos de partilha, mas, ao menos em um deles, permaneceu na mesma comunidade

escrava. No entanto, no inventário da senhora Teresa de Jesus, não consta o seu nome. Não

encontramos registro de venda de dona Teresa de nenhum de seus escravos, todavia, há um

anúncio referente à fuga de Eleutério em 1870.83

É provável então que a ausência de Eleutério

no inventário se deva ao fato de nunca ter sido encontrado após essa fuga, ou também pode

indicar que tenha falecido entre 1868 e 1872. A esposa de Eleutério, porém, permanece um

mistério, uma vez que nenhuma mulher foi descrita como viúva no inventário e todas as

casadas foram apresentadas com o nome do marido. Pode ser que ela tenha falecido nesse

80

Entre as 95 pessoas listados no inventário, havia cinco ingênuos e duas mulheres forras. Inventário post

mortem de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas, 1872. CMU, TJC, 3º Ofício, Processo 7182, Caixa 432. 81

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 82

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1863. CMU, CRC. 83

Anúncio de fuga do escravo Eleutério. Gazeta de Campinas, nº 632, 1870.

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período, ou que não residisse na Fazenda Samambaia. Vale observar que todas as esposas dos

escravos de dona Teresa Maria foram descritas no inventário, até mesmo as libertas.

Em depoimento no processo criminal pela morte do feitor Malaquias, Eleutério

alegou não ter presenciado o delito, estando em um canto separado no eito naquele momento

e tendo somente ouvido de Bonifácio que Epifânio teria sido o assassino.84

Contou também

que foi apresentar-se à polícia junto com os outros cativos devido às ameaças de Epifânio.85

A afirmação de que Epifânio teria ameaçado os outros cativos do eito para que se

apresentassem todos à justiça foi repetida em vários depoimentos. Pelo que é possível

reconstituir das informações prestadas em juízo, após o assassinato do feitor, os escravos

fugiram do eito e, no caminho, encontraram com o senhor moço, Luís Francisco de Paula, que

já tinha sido avisado pelo feitor escravo Moisés de que havia algo errado no cafezal. O senhor

moço ordenou então aos cativos que seguissem para casa, enquanto ele se dirigia até o local,

onde encontrou o cadáver, mandando recolhê-lo e depositar “no corredor das senzalas dos

escravos”.86

Os cativos, todavia, desobedeceram as ordens do senhor moço para voltar para casa e

rumaram para a cidade. Faustino afirmou que assim agiram porque “Epifânio assim exigiu,

dizendo que aquele que não fosse para a Cidade se apresentar à Justiça ele botava a enxada”.87

O fato de que os cativos obedecessem Epifânio ao invés do senhor moço é bastante curioso. A

alegação de que temeram as ameaças do cativo assassino é no mínimo estranha, uma vez que

estavam em 15 contra um. Pode, talvez, significar que esse cativo tivesse alguma ascendência

sobre os companheiros, causada por medo ou algum outro motivo que não foi possível

identificar nos autos. Não podemos descartar, todavia, a possibilidade de que todos os passos

dados pelos cativos durante e após o crime tenham sido minuciosamente planejados, inclusive

a imputação de Epifânio como principal responsável.

Epifânio depôs que, uma vez que já haviam reclamado sem sucesso com o

administrador a respeito dos maus tratos do feitor, ele e seus companheiros tinham combinado

“que pegassem o feitor de uma vez na primeira ocasião em que ele bolisse [sic] com algum

deles”.88

Afirmou então que, estando no trabalho da capina do cafezal, e tendo o feitor

ameaçado surrá-lo,

84

“Auto de perguntas a Eleutério”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 46. 85

“Auto de perguntas a Eleutério”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 47. 86

“Auto de perguntas à testemunha Luís Francisco de Paula”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p.

70. 87

“Auto de perguntas a Faustino”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. , p. 39. 88

“Auto de perguntas a Epifânio”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 10.

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“ele respondente gritou pelos companheiros, e estes acudiram-no, e logo ele

respondente deu-lhe uma enxadada com a qual o feitor caiu e continuou a

dar enxadadas no feitor que estava no chão, e então os parceiros dele

respondente rodearam o feitor e lhe deram enxadadas, a exceção das negras

que estavam no eito”.89

Os outros cativos que depuseram, no entanto, negaram veementemente qualquer

participação no homicídio, ou a existência de algum plano anterior para pegar o feitor. Assim,

somente Epifânio, Romualdo e Manuel Baiano tiveram seus nomes lançados no rol dos réus.

Portanto, mesmo que Epifânio tenha sido capaz de convencer os parceiros a se entregarem

todos à justiça, não teve o mesmo sucesso na intenção de que eles dividissem com ele a culpa

pelo crime.

Comparando a composição da senzala em geral com o perfil dos cativos que se

entregaram na justiça, verificamos que, entre os que prestaram informações à polícia, 56,25%

eram africanos, 12,5% nascidos em Campinas e 31,25% eram nascidos em outras localidades

do Império. Quanto ao estado conjugal, há nesse grupo um percentual de casados maior do

que o da senzala em geral, com 37,5%. Eram todos trabalhadores de lavoura, com exceção de

Manuel Baiano, que também domava animais e trançava couro.

Entre os indiciados como réus no processo, temos dois forasteiros (Manuel,

proveniente da Bahia e Epifânio, do Rio de Janeiro) e um africano (Romualdo, oriundo do

Congo), que estavam na Fazenda Samambaia há 6, 3 e 2 anos, respectivamente. Romualdo,

todavia, afirmou que residia em Campinas há bastante tempo e, pela idade, é possível verificar

que foi trazido ao Brasil no contexto do contrabando vigente na década de 1840. Na Fazenda

Samambaia, casou-se com a forasteira Damásia (proveniente de São Sebastião) e tiveram pelo

menos um filho. Outro detalhe interessante é que, apesar de forasteiros e não terem,

aparentemente, nenhum familiar na senzala, tanto Manuel quanto Epifânio mencionaram os

nomes dos seus pais e dos senhores deles.

Como já mencionado, Manuel Baiano domava animais e trançava couro, além de

trabalhar na lavoura com os outros companheiros. A ocupação especializada não era o único

diferencial desse cativo. Ele não estava entre os que se apresentaram imediatamente à justiça

após o crime, aparecendo apenas algum tempo depois. Perguntado por que havia fugido,

respondeu que “dirigiu-se ao Belém [para] chamar padrinhos com um genro da casa, lá

residente, este o apadrinhou e o remeteu a Dona Teresa, a qual o mandou entregar a [sic]

Justiça”.90

89

“Auto de perguntas a Epifânio”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 9. 90

“Interrogatório do réu Manuel Baiano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 140.

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O fato de ter procurado um padrinho entre os membros da família de dona Teresa

demonstra que tinha, ao menos em sua expectativa, uma boa relação com a casa grande. Isso é

verificado também quando acrescentou em seu depoimento que os parceiros que haviam

testemunhado contra ele, dizendo que ele auxiliara Epifânio no crime, o faziam por ciúmes,

pelo “fato de ser estimado pelo feitor tanto que pela semana santa lhe deu uma calça branca,

razão por que os outros escravos diziam que ele adulava o feitor”.91

A afirmação pode ser uma dupla estratégia: negar o depoimento dos outros cativos e

também construir a imagem de proximidade com o feitor, diminuindo as suspeitas sobre sua

participação no assassinato deste.

Mas a aparente proximidade de Manuel com a casa grande não para por aí. Ele

contou que, quando Rafael Moçambique estava preso ao tronco para ser surrado, pouco antes

do homicídio cometido no cafezal,

“os outros seus parceiros disseram a ele respondente que o

Administrador lhe estimava muito, que o Administrador perdoaria a

Rafael se ele respondente o apadrinhasse: ele respondente por

contentar seus parceiros prostrou-se de joelhos [diante do]

Administrador pedindo-lhe que perdoasse a Rafael, ao que respondeu-

lhe o Administrador, também, digo, Administrador – vai-te embora”. 92

Assim, é possível perceber que, apesar de vindo de outra região há pouco tempo

(cerca de seis anos), Manuel Baiano foi capaz de construir laços com as autoridades da

fazenda, para o que pode ter contribuído o fato de ter habilidades especiais, como a doma dos

animais e o trabalho com o couro, tirando-o, algumas vezes, do serviço de roça. E, mesmo que

seu depoimento aparente, talvez estrategicamente, que não tenha conseguido ainda criar laços

horizontais com seus companheiros, o fato de ele ter tentado interceder por Rafael e ter estado

ao lado de Epifânio enquanto dava enxadadas no feitor, demonstra que mantinha proximidade

também com seus parceiros de eito.

Ao fim do processo judicial, no interrogatório diante do júri, Epifânio mudou seu

depoimento e confessou ter sido o único a efetivamente dar enxadadas em Malaquias. Com

isso, a decisão final do Juiz de Direito condenou somente Epifânio no artigo 1º da lei de 10 de

junho de 1835, porém, como ele foi considerado menor de 21 anos pelo júri, a pena prevista

de prisão com trabalho foi substituída por oitocentos açoites e ferro no pé por espaço de um

ano.93

91

“Interrogatório do réu Manuel Baiano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 141. 92

“Interrogatório do réu Manuel Baiano” 25/04/68. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p.104. 93

“Decisão do Juiz de Direito” 25/05/1868, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 152.

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As informações prestadas pelos cativos ao longo de todo processo são bastante

interessantes no que diz respeito à cumplicidade no crime. Primeiro Epifânio afirmou que,

além de ter sido auxiliado pelos companheiros na execução do crime, eles o tinham planejado

com antecedência, o que caracterizaria um crime coletivo premeditado contra um feitor cruel.

Os outros depoentes, porém, afirmaram que o assassino era apenas Epifânio, com incentivo de

Manuel Baiano e Romualdo. Estes dois últimos negaram qualquer participação, direta ou

indireta, no delito e, por fim, Epifânio assumiu sozinho toda a culpa. Não é possível saber

qual versão é a verdadeira, mas toda essa variação mostra que a escravaria não estava disposta

a assumir o crime, apesar de que, mesmo em grande número, nenhum dos cativos tenha

tentado impedir Epifânio de cometê-lo. Além disso, ainda que ele tenha convencido os

parceiros a se entregarem todos à polícia, não foi capaz de induzi-los a amenizar sua situação

perante a justiça. Não podemos descartar também a possibilidade de que a mudança no

depoimento de Epifânio diante do júri tenha sido combinada entre os cativos e talvez com

orientação do curador, levando em conta a probabilidade de sua menoridade ocasionar a não

aplicação da pena de morte – prevista pela lei de 10 de junho de 1835.

Outro caso de assassinato de feitor no eito, com diversos cativos por testemunha,

indica o que talvez tenha acontecido no caso dos escravos de dona Teresa Maria, ao menos

como possibilidade.

Em 1879, o feitor Joaquim Bento da Gama foi ferido durante o retorno ao trabalho

no eito logo após o almoço, na fazenda São João da Atibaia, de propriedade de José Maria da

Costa Wilk. O escravo Vitorino confessou o crime contando que:

“(...) há quatro semanas, mais ou menos, antes do almoço o feitor

tinha judiado muito dele respondente, até mandando abanar café,

serviço que ele não podia fazer; que tendo almoçado ficou muito

aborrecido e então passando rente com o feitor arrancou a faca deste e

com ela deu-lhe três facadas, com o que o feitor caiu”.94

Vitorino afirmou que nenhum dos parceiros que testemunhou o fato tomou parte no

crime. Ele fugiu em seguida, mas voltou depois de três dias, tendo se apadrinhado com o

escravo Félix.95

Este é o segundo caso que contamos de um escravo que buscou

apadrinhamento com outro cativo, o que pode dar pistas sobre as relações de poder dentro das

senzalas. Não conseguimos obter nenhuma informação sobre Félix, o escravo de José Maria

da Costa Wilk com quem Vitorino se apadrinhou. Todavia, vimos na análise do assassinato do

94

“Auto de perguntas ao indiciado”, Processo Crime. Réu: Vitorino, escravo de José Maria da Costa Wilk,

Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 242, Documento 009, p. 33. 95

“Auto de perguntas ao indiciado”, Processo Crime. Réu: Vitorino, escravo de José Maria da Costa Wilk,

Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 242, Documento 009, p. 33.

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feitor Malaquias que o cativo Manuel Baiano, que teria tentado apadrinhar Rafael

Moçambique para que não fosse castigado, parecia ter alguma posição de destaque na

propriedade de dona Maria Teresa de Jesus Paula.96

Os outros cativos consideravam-no como

alguém estimado pelo administrador e o feitor, e, após o assassinato deste último, ele buscou

se apadrinhar com um membro da família senhorial. O fato de ser forasteiro não pesou

negativamente em sua integração na fazenda, uma vez que, vindo de Salvador, estava na

propriedade de dona Maria Teresa há seis anos, o que podemos considerar como um tempo

considerável.

Voltando ao delito na fazenda São João da Atibaia, sabe-se que na cena do crime

estavam somente o feitor assassinado e os escravos que trabalhavam no eito. Onze desses

cativos foram chamados para prestar informações à justiça e disseram ter visto apenas

Vitorino dando facadas no feitor. Alguns contaram ainda que outros cativos fugiram junto

com Vitorino após o crime, mas por medo.97

Já o escravo Francisco disse ter dado uma

bordoada em Vitorino em defesa do feitor, o que o fez cair e o impediu de completar a morte

do homem no momento.98

Dois dias depois, todavia, Joaquim Bento da Gama morreu dos ferimentos causados

pelas facadas, não tendo sido possível tomar seu depoimento para confirmar a autoria do

crime.

Levado novamente a depor, Vitorino contou mais detalhes sobre os motivos que o

levaram a ferir o feitor Gama:

“(...) respondeu que a fazenda de seu senhor é aquela em que há mais

trabalho e que ele praticou o delito vendo-se descorçoado pois que já não

podia mais com tanto serviço, alguns dos quais ele não sabia fazer sem

deixar por isso de ser castigado, e que já por estas razões, já porque eram

muitos os maus tratos, já porque no mesmo dia do delito, e antes dele ser

praticado havia dito ao feitor que ele se achava doente, e que não podia

trabalhar ao que lhe respondeu o feitor: que negro e burro eram para

trabalhar e que havia de trabalhar e senão, não lhe faltaria o chicote, já

porque no dia do delito e logo ao começar o serviço pela manhã foi

chicoteado pelo feitor, vendo-se então como disse descorçoado tomou a faca

e feriu a este, e fugiu, não se lembrando das bordoadas que se diz lhe terem

sido dadas pelo seu parceiro Chico”.99

Talvez orientado pelo curador para tentar convencer o júri de que não teve a intenção

de matar o feitor, minimizando assim a sua pena, Vitorino acrescentou ao seu depoimento no

96

“Interrogatório ao réu Manuel Baiano”, 25/04/68. CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 104. 97

“Auto de perguntas a Benedito Sorocabano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p. 45. 98

“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p. 38. 99

“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.75.

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Tribunal do Júri que “ele viu o feitor ralhar ainda com vida e não o acabou de matar, sendo

que o podia fazer pois que não havia alguém que lhe obstasse”.100

O promotor público pronunciou o crime como incurso no artigo 1º da lei de 10 de

junho de 1835. 101

A discussão entre as partes girou em torno da gravidade dos ferimentos

cometidos contra o feitor e se a morte teria sido causada diretamente por eles ou por falta de

cuidados da própria vítima. A decisão do júri, quase três meses após o fato, foi de que “o

paciente não morreu por ser mortal o mal causado” e de que ele “não aplicou toda necessária

diligência para removê-lo”. Assim, Vitorino foi sentenciado em 200 açoites, com o crime

incurso na segunda parte do artigo primeiro da lei de 10 de junho de 1835, como sendo apenas

ofensas físicas.102

Este processo demonstra mais uma vez o cuidado da justiça em minimizar as penas

cativas, especialmente livrando o criminoso da pena de morte, prevista pela lei citada pelo

promotor público, mas não aplicada efetivamente, resguardando o senhor da perda de sua mão

de obra.103

A motivação de Vitorino ao matar o feitor é bastante típica de crimes desse tipo, isto

é, traz reclamações a respeito do excesso de trabalhos e castigos. Vitorino chegou àquela

fazenda junto com outros seis escravos crioulos comprados do procurador Carlos Talomei,

pelo menos 16 anos antes do crime.104

Nesse grupo de escravos, Vitorino era o mais velho,

com 28 anos, enquanto os demais tinham entre 13 e 19 anos de idade. A única naturalidade

que conseguimos confirmar foi a do próprio Vitorino, nascido em Pernambuco,105

os outros

aparecem apenas com a anotação “crioulos” no registro do pagamento da meia sisa.

Mesmo depois de tantos anos em Campinas, Vitorino foi detalhista em suas

recordações de família no processo criminal, informou o nome de ambos os pais e do senhor

dos mesmos: “Antônio e Rosa, escravos do coronel Francisco Jacinto”.106

Com idade entre 40

e 50 anos, não sabia ler e escrever, como a imensa maioria dos réus escravos.

O tempo na fazenda e a provável adaptação ao novo cativeiro, todavia, não fizeram

com que Vitorino se habituasse ao ritmo de trabalho da lavoura cafeeira ou que aceitasse os

castigos infligidos na forma e quantidade com que eram dados.

100

“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.149. 101

“Vista ao promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.77. 102

“Sentença do Juiz de Direito”, 17/09/1879. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.161-2. 103

Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão..., op. cit., p. 70. Para uma discussão mais completa sobre a

aplicação da lei de 10 de junho de 1835, vale a pena ver Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do

Império..., op. cit. 104

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, maio/1863, livro 33. CMU, CRC. 105

“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.75. 106

“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.75.

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Não foi possível localizar o inventário post mortem de José Maria da Costa Wilk,

mas verificamos que, entre 1860 e 1879, ele adquiriu pelo menos 70 escravos, 64,3% deles

comprados também em grupos de quatro ou mais cativos e 51,3% dos que tem registrado sua

origem foram adquiridos no comércio interprovincial.107

Wilk comprou inclusive alguns

escravos do comboio trazido pelo negociante Antônio Teixeira Marinho, assassinado em

1874, caso que contamos no início deste trabalho.108

Não é de se estranhar que todos os cativos que prestaram informações à justiça

fossem solteiros, mesmo que alguns estivessem naquela mesma fazenda há quase 20 anos. O

estado conjugal dessas pessoas não significa apenas que, por serem solteiros, estariam mais

propícios ao crime.109

Há também que se considerar neste caso que mesmo o longo tempo de

residência dentro de uma grande escravaria não foi suficiente para que esses cativos

conseguissem construir laços matrimoniais, o que dá indícios de como era a vida na Fazenda

São João da Atibaia, em especial para os forasteiros.

Antes que a sentença do Juiz de Direito completasse um mês, o caso foi retomado

com um Inquérito Policial, pois o réu condenado, Vitorino, fez novas declarações à polícia.110

Afirmou que foi induzido a assumir o crime sozinho por ordem do senhor, que prometera

livrá-lo sem castigo, ou mandar um escravo da casa para dar-lhe os castigos determinados

pelo júri, mas de forma moderada. Como nada disso foi cumprido, Vitorino resolveu contar à

Justiça que os escravos Francisco (Chico), Antônio, Benedito Sorocaba, Felisbino e Faustino

também estavam envolvidos no crime, como cabeças da combinação para matar o mau feitor.

Vitorino denunciou também a morte de escravos na Fazenda por castigos excessivos.111

É então que toda uma nova história aparece, tornando o caso cada vez mais intrigante

para o historiador. Em novo depoimento, Benedito Sorocaba (ou Sorocabano) disse que havia

sido convidado a praticar o crime pelo próprio Vitorino, enquanto ele e os outros escravos

citados estavam almoçando na mesma gamela, afastados do restante da escravaria. Contou

ainda que mentiu no primeiro depoimento por ordem do senhor José Maria da Costa Wilk e

do senhor moço, Antônio Maria, e que “já tinha sido castigado antes de vir na presença da

justiça, e por tempo de quatro dias seguidos”112

por ter ajudado Vitorino a ferir o feitor.

107

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1879. CMU, CRC. 108

Ver p. 15-6. 109

Uma discussão sobre as relações entre parentesco e criminalidade escrava pode ser vista em Ricardo

Figueiredo Pirola, Senzala Insurgente..., op. cit. 110

Inquérito Policial. Réu: Francisco, escravo de José Maria da Costa Wilk, Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 296, Documento 014. 111

“Auto de perguntas a Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014. 112

“Auto de perguntas a Benedito Sorocaba”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014.

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Antônio mulato, Faustino, Felisbino e Francisco continuaram negando envolvimento

no crime. Todavia, Antônio mulato e Faustino contaram que foram castigados antes de irem

depor no primeiro processo, mas alegaram que isso se deu porque eles fugiram quando viram

Vitorino ferir o feitor. Ainda tentando se afastar da suspeita de envolvimento no delito,

Antônio afirmou não ter almoçado com os outros na mesma gamela.113

Com a nova versão dos fatos apresentada por Vitorino e confirmada por Benedito,

podemos compreender um pouco melhor os complexos meandros da cumplicidade escrava

presente no assassinato do feitor Gama. E que pode ter sido parte de uma série de outros

crimes que se encontram em meio à documentação judicial.

Sendo a Fazenda São João da Atibaia “aquela em que há mais trabalho” e o feitor

Joaquim Bento da Gama bastante cruel, os seis cativos teriam planejado não só feri-lo, mas,

de fato, combinaram sua morte. As conversas para planejar o delito se deram à hora da

refeição, feita de modo comunitário, na “mesma gamela”, mas afastados dos outros escravos

da fazenda, uma vez que se tratava de matéria grave a ser partilhada apenas pelos parceiros de

confiança. Forasteiros, eles vinham de perto e de longe: as localidades de origem variavam

entre Itatiba, Jundiaí e Franca, na Província de São Paulo, até Maranhão e Ceará, ao Norte, e

Santa Catarina, ao Sul; e estavam na Fazenda por períodos que variavam entre quatro e 20

anos. Existia aí também um africano, que, em algum momento, foi feitor da fazenda.114

Além de Antônio, citado por Vitorino como um dos “cabeças”, outros três desses

cativos chegaram ao município no comboio no qual estavam os escravos que assassinaram

Antônio Teixeira Marinho, em 1874.115

José, Lázaro e Agostinho não foram indiciados e nem

mesmo prestaram depoimento no processo que se formou na ocasião da morte do negociante,

mas o fato de que já vinham de uma experiência de luta contra o cativeiro em Campinas não

pode passar despercebido ao historiador.

Não pudemos saber o porquê de Vitorino ter sido o escolhido para assumir a culpa

pelo crime com vista a evitar grande prejuízo econômico ao senhor, mas o conhecimento

dessa lógica pode ter sido crucial para a decisão cativa de executar o plano de morte do mau

feitor.116

Mesmo os cativos que não foram condenados pela justiça, todavia, receberam a

punição privada pelo delito, uma vez que foram castigados pelo senhor dentro das cercas da

própria fazenda.

113

“Auto de perguntas a Antônio”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014. 114

A informação sobre a ocupação do africano Faustino aparece em “Auto de perguntas a Vitorino”. AEL, CSP,

ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014. 115

Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de José Júlio de Barros, Campinas,

1874. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 116

Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 70.

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75

É possível que lógica semelhante tenha guiado os cativos de dona Teresa Maria de

Jesus Paula. Diante de um feitor “malino”, eles também podem ter ajustado a morte dele na

expectativa de que somente um dos parceiros (Epifânio) sofresse a punição em defesa de toda

a escravaria, ainda levando em conta que esse companheiro poderia ter sua pena amenizada

por sua menor idade.

Apesar de todos os que prestaram depoimento pela morte do feitor Gama serem

forasteiros, podemos perceber certa posição diferencial do cativo Francisco, proveniente de

um município bastante próximo de Campinas, Itatiba. Ele teria sido o cabeça da combinação

para matar o feitor e também aquele que ia à Cadeia de Campinas executar a sentença do Juiz

de Direito, açoitando Vitorino. É provável que ele estivesse tentando se sobressair dentre os

outros cativos. Primeiro como líder da empreitada para neutralizar o feitor, depois se

colocando, nos depoimentos perante a Justiça, como aquele que defendeu a vítima.

Vitorino, por sua vez, mostrou-se bastante insatisfeito por ver o próprio Francisco lhe

aplicar os castigos na prisão, e de modo nada moderado como o senhor havia prometido.

Apesar de serem companheiros na experiência do tráfico interno e no desejo de se livrar de

um mau feitor, Francisco e Vitorino tinham seus próprios anseios no cativeiro.

Por fim, o inquérito policial não foi levado adiante, sendo paralisado após envio ao

Promotor Público, por ausência de provas.

Mais um caso de crime coletivo vale a pena ser explorado, especialmente no que diz

respeito à cumplicidade dos sujeitos envolvidos e a sua heterogeneidade.

A Fazenda do Castelo, que ficava próxima à estação de trem Jaguari, foi tomada por

um levante escravo na noite de 31 de outubro de 1882.117

O que transparece do processo é que

o senhor Luís Antônio de Pontes Barbosa teria tido suspeitas quanto à organização de uma

revolta escrava em sua propriedade e, então, reuniu um pequeno exército naquela noite com

alguns camaradas de sua fazenda e de fazendas vizinhas para prender os escravos e “os

chamar à ordem”.118

No caminho para a senzala, prendeu o feitor escravo Eleutério e,

seguindo para a senzala, verificou:

“que estavam todos agrupados em um só dos quarteis, tendo deixado vazios os

outros, que primeiro foram abertos e examinados pelo senhor; e logo que este, ao

abrir o quartel, no qual estavam todos, começou a dar as providências, que julgou

oportunas, ouviu-se dentro o grito de – mata branco -, e em ato contínuo,

precipitaram-se os negros para a porta de saída, abrindo passagem com machados e

foices, dando tiros com garruchas e levantando vivas à liberdade. Houve um

horroroso conflito, no qual ficaram feridas várias pessoas, segundo consta dos

117

Processo Crime. Réu: Severo, Benedito e Jesuíno, escravos de Luiz Antônio de Pontes Barbosa, e Felipe

Santiago (liberto), Campinas, 1883. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 162, Documento 004. 118

“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004.

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76

respectivos autos de corpo de delito, e morto por uma foiçada um dos camaradas –

José Frutuoso. Depois, sobraçando suas armas e trouxas vieram todos – escravos e

escravas – a esta cidade, apresentar-se à autoridade”.119

O plano da revolta escrava da Fazenda do Castelo foi bem analisado por Maria

Helena Machado,120

mas merece que retornemos a ele com especial atenção quanto à presença

dos forasteiros envolvidos no plano.

Na delegacia de polícia, 74 escravos se entregaram após o conflito na fazenda e

foram recolhidos na cadeia. Somente seis escravos foram indiciados e, destes, três condenados

como cabeças do levante: os baianos Benedito e Jesuíno e o maranhense Severo. No entanto,

o plano de revolta envolvia muitos mais cativos, pelo menos 120 da Fazenda do Castelo, 121

e

mais escravos das fazendas vizinhas, uma vez que o objetivo era levantar a escravaria de

todas as fazendas do Bairro Jaguari, “menos de Antônio Américo, e Capitão Bento

Bicudo”.122

Outro envolvido na trama como um dos principais chefes, se não a principal

liderança, foi o liberto Felipe Santiago, também maranhense.123

Os primeiros depoimentos dos escravos mostram uma tentativa de amenizar a

gravidade dos fatos e esconder o plano de revolta que envolvia todo o bairro, com argumentos

bastante tradicionais em crimes contra feitor. O feitor escravo Eleutério, que foi preso pelo

senhor no início do conflito, mas depois solto pelos companheiros antes de rumarem para a

cidade, disse que os cativos respondiam somente a ele no eito, e não ao feitor branco

Jacinto.124

Outro feitor escravo, Pedro, afirmou que o feitor Jacinto maltratava os escravos a

ponto de “montá-los como em cavalos”125

e que ele tinha saído da fazenda há tempos, mas

acabou voltando, o que desgostou muito os escravos. Pedro contou ainda que o senhor moço

João foi quem informou ao pai que os escravos não respondiam ao feitor Jacinto, o que o teria

levado a cercar os cativos na senzala naquela noite.126

O senhor Luís Antônio de Pontes Barbosa declarou que o cerco à senzala se deu

porque ele soube que “alguns escravos seus [tinham] feito roubos na estação ferroviária e

pelas respostas insolentes deles e indícios que demonstravam que esses escravos estavam se

119

“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 120

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., capítulo 3, p. 91-127. 121

Esse número não aparece no processo criminal, mas foi apontado na Fala dirigida à Assembleia Legislativa

Provincial de São Paulo na abertura da 2ª sessão da 24ª Legislatura em 10/01/1883 pelo Presidente da

Província Conselheiro Francisco de Carvalho Soares Brandão. São Paulo: Typ. Do Ypiranga, 1883, p. 6.

Citado em Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., nota 4, p. 122. 122

“Auto de perguntas a Benedito”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 123

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 96. 124

“Auto de perguntas a Eleutério”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 125

“Auto de perguntas a Pedro” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 126

“Auto de perguntas a Pedro”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004.

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77

preparando para fazerem desacatos na pessoa dele depoente e mais pessoas livres da

fazenda”.127

Contou também que, em um dos quartéis, encontrou “(...) todos os escravos

reunidos e armados de garruchas, foices e porretes”.128

O saldo do conflito foi de pelo menos três mortos: dois escravos (um na senzala e

outro no caminho que faziam para se entregarem à justiça) e um feitor da fazenda vizinha, de

Antônio Teixeira, chamado José Frutuoso.

A continuação do processo criminal revelou um plano de cunho religioso muito bem

elaborado, congregando muitos cativos em torno do objetivo de sublevar todas as fazendas do

bairro para alcançar a liberdade e matar todos os brancos.129

Não tivemos acesso ao inventário do senhor Pontes Barbosa, mas sabe-se que a

Fazenda do Castelo reunia uma escravaria de pelo menos 120 cativos.130

Os registros de meia

sisa revelaram a compra de pelo menos 97 cativos entre 1861 e 1879,131

caracterizando a

senzala como bastante heterogênea no que diz respeito à origem dos cativos que residiam na

propriedade. Os registros de compra e venda não permitem que tracemos um perfil

demográfico de toda a escravaria de Barbosa, já que não trazem informações sobre os cativos

nascidos na própria fazenda ou que tenham sido adquiridos pelo senhor antes da década de

1860. Ainda assim, vale a pena observar algumas características dos indivíduos adquiridos

pelo escravocrata nesse período, uma vez que formavam a grande maioria de sua propriedade.

Luís Antônio de Pontes Barbosa adquiriu muito mais homens (79) do que mulheres

(19) no mercado de escravos, numa proporção de 4,2 homens para cada cativa.132

Com isso,

não é de estranhar que todos os principais indiciados pela insurreição – para os quais temos

dados mais detalhados – fossem solteiros, com exceção do feitor escravo Eleutério. Além

disso, pelo menos 97,4% de todos os crioulos com origem informada que foram comprados

entre as décadas de 1860 e 1880 não eram nascidos em Campinas. Ainda que não possamos

assegurar que todos esses cativos estivessem vivos e presentes na fazenda do Castelo quando

da insurreição em 1882, podemos sugerir que uma proporção bastante grande da senzala era

composta por indivíduos forasteiros.

127

“Auto de perguntas a Luís Antônio de Pontes Barbosa”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p. 20. 128

“Auto de perguntas a Luís Antônio de Pontes Barbosa”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p. 20. 129

Informações prestadas pelos escravos Benedito, Severo e Jesuíno, e pela testemunha Jacinto Rodrigues de

Godoy. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 130

Esse número foi apontado na Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial de São Paulo na abertura da

2ª sessão da 24ª Legislatura em 10/01/1883 pelo Presidente da Província Conselheiro Francisco de Carvalho

Soares Brandão. São Paulo: Typ. Do Ypiranga, 1883, p. 6. Citado em Maria Helena P. T. Machado. O plano e o

pânico..., nota 4, p. 122. 131

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1861-1879. CMU, CRC. 132

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1861-1879. CMU, CRC.

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78

Assim como os citados pela morte do feitor Joaquim Bento da Gama na Fazenda São

João da Atibaia, nenhum dos doze cativos indiciados que prestaram depoimento no processo

pela insurreição e informaram sua origem havia nascido no município de Campinas, e, neste

caso, nem mesmo em qualquer outra localidade da região Sudeste. Objetos do tráfico

interprovincial, alguns desses sujeitos haviam chegado à Fazenda do Castelo há cerca de vinte

anos, enquanto outros lá estavam há pouco mais de três anos.

Em consonância com o costume de proteger a propriedade dos senhores de grande

prejuízo econômico, a justiça apontou três dos indiciados como líderes do projeto revoltoso.

O que transparece dos autos é que foram escolhidos pelos depoimentos de testemunhas que

disseram ter percebido no conflito que a liderança da revolta recaia sobre os três réus,

especialmente sobre Severo: “os autores mais encarniçados foram os escravos Severo, Sérgio

e Jesuíno”.133

Seus nomes acabam aparecendo também nas informações prestadas pelos

outros cativos, nas quais Benedito também é citado. Sérgio, por outro lado, acaba não sendo

incluído entre os cabeças da insurreição, assim como os cativos Manuel Belmiro, Raimundo

Ferreiro e Lino que, apesar de serem citados nos depoimentos dos cativos, não foram lançados

no rol de culpados. Outro escravo que também apareceu nas falas dos revoltosos como um

dos principais líderes de todo o movimento, mas não foi condenado foi José Furtado, feitor

escravo na fazenda vizinha à do Castelo, pertencente a Francisco Paulino de Morais.

Diferente dos cativos de Barbosa que foram indiciados, José Furtado era casado,

tinha 56 anos e um cargo de confiança na fazenda de seu senhor. Além disso, era o único que

havia chegado a Campinas através do comércio intraprovincial, sendo natural de São José dos

Campos.134

Essas características, somadas ao fato de estar sob o poder de Paulino de Morais

há 27 anos,135

talvez tenham, em conjunto, sido relevantes para sua posição de chefia do

movimento insurrecional. Além disso, sua posição de feitor permitia que tivesse maior

mobilidade espacial e mais possibilidades de estar em contato com escravos das fazendas

vizinhas, articulando o plano de revolta.

Os três cativos de Barbosa que acabaram sendo condenados como líderes eram, por

outro lado, bastante jovens – entre 16 e 25 anos –, solteiros e estavam na Fazenda do Castelo

entre oito (Severo e Jesuíno) e vinte anos (Benedito).136

Mesmo sendo relativamente jovens e

forasteiros, esses sujeitos foram importantes para articular um forte movimento insurrecional.

133

“Auto de perguntas a Luís Antônio de Pontes Barbosa”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p.38. 134

“Interrogatório ao réu José Furtado”, 25/02/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p.185. 135

“Interrogatório ao réu José Furtado”, 25/02/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p.185. 136

“Interrogatório aos réus Severo, Jesuíno e Benedito”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc.

004.

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79

Interessa observar que tinham ocupações distintas, que os colocavam em diferentes ambientes

na fazenda: Severo era pajem e quitandeiro, 137

o que lhe possibilitava contato com outros

escravos domésticos e recolher informações da casa grande, além da mobilidade por outros

espaços da cidade, como a estação ferroviária. Jesuíno era carpinteiro,138

o que lhe dava

ascendência sobre os cativos da lavoura, por lhe conferir certa autonomia e mobilidade

espacial. Benedito, por sua vez, era trabalhador de roça, 139

podendo, portanto, articular as

ideias da revolta com a maioria da escravaria, que com ele convivia no trabalho da lavoura.

A liderança principal do movimento, todavia, foi atribuída ao liberto Felipe Santiago,

que não foi encontrado durante o andamento do processo criminal. Felipe seria líder religioso

dos cativos do bairro, organizando reuniões secretas e distribuindo artigos e preparados

mágicos aos escravos em troca de dinheiro, milho, feijão e arroz furtados por eles.140

Ele

também era forasteiro, natural do Maranhão, e filho de africana, morador em Campinas há 12

anos e proprietário de um sítio em Atibaia.141

Mais uma vez, um forasteiro que se mostra não

só adaptado ao ambiente social de Campinas, como capaz de tecer relações profundas com os

cativos da região, sendo respeitado e seguido como líder e até mesmo conseguindo adquirir

um pedaço de terra em município da vizinhança.

Observa-se assim que, reunindo uma grande heterogeneidade de cativos, residentes

nas fazendas do Bairro Jaguari, o plano insurrecional de 1882 teve como centro, na Fazenda

do Castelo, cativos que tinham o tráfico interno como experiência em comum. As

expectativas e experiências que esses sujeitos traziam de suas terras natais não podem ser

ignoradas. Nascidos no Maranhão, Felipe Santiago e Severo traziam recordações e

conhecimentos das casas religiosas de candomblé e vodum que ali tiveram grande sucesso.142

Da Bahia, Jesuíno e Benedito traziam também suas crenças religiosas, que eram

provavelmente compartilhadas por boa parte dos outros 25 baianos adquiridos por Pontes

Barbosa no mercado de escravos.143

Tais expectativas e experiências certamente pesaram de

forma relevante na elaboração do plano de revolta.

Ainda que forasteiros, esses sujeitos tinham alguma preponderância sobre as senzalas

daquele bairro. Ao invés de serem tratados como estrangeiros pelo restante da senzala, ou

137

“Interrogatório ao réu Severo”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 138

“Interrogatório ao réu Jesuíno”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 139

“Interrogatório ao réu Benedito”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 140

Informações prestadas pelos escravos Benedito, Severo e Jesuíno, e pela testemunha Jacinto Rodrigues de

Godoy. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 141

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 96-7. 142

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 97. 143

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1873-76. CMU, CRC.

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viverem isolados por causa de sua origem, eles foram importantes articuladores da

insurreição.

Os depoimentos iniciais do processo apresentaram argumentos típicos dos crimes

relativos à disciplina do trabalho nas fazendas em expansão. Todavia, o andamento da ação

judicial mostrou que a insurreição tinha um objetivo maior, que congregava diferentes

fazendas, com diferentes feitores e senhores. A capacidade dos revoltosos de solidificar

relações de modo a articular um movimento tão bem elaborado, gestado ao longo de grande

tempo e reunindo pessoas tão diversas dá mostras de um tipo de cumplicidade que não pode

ser deslindada nas fontes. O objetivo unificador desses sujeitos, qual seja, a liberdade, era

desejo que não dependia da origem ou do tempo de residência.

Ainda que o projeto original de levante de todas as senzalas do Bairro Jaguari não

tenha sido possível aos revoltosos, é bastante significativo que ele tenha sido combinado ao

longo de certo tempo e não tenha sido delatado, e que, ao descobrirem os planos do senhor de

armar o cerco à senzala,144

toda a escravaria de Pontes Barbosa tenha se reunido armada em

um dos quartéis à sua espera.

A análise desses crimes coletivos contribui para entendermos as múltiplas formas

que a cumplicidade poderia se dar e as redes que os cativos construíam para se proteger, ora

dos maus tratos de um feitor cruel, ora de uma pesada condenação na justiça após a execução

dos delitos.

É relevante observar nesses crimes coletivos a confluência de interesses apesar das

diferenças (de ocupações, de origem, de idade, etc.), com o objetivo de construir uma

cumplicidade em torno do que eram entendidos como direitos coletivos, isto é, castigos justos,

ritmo moderado de trabalho, etc.145

A presença marcante dos cativos forasteiros nesses casos

pode ter dois significados. Primeiro, é interessante verificar que eles faziam parte, às vezes em

posição de destaque, de projetos comuns aos integrantes das senzalas, os quais estavam

assentados em uma sólida parceria, uma vez que a delação era sempre um grande risco.146

Segundo, é presumível que as experiências de cativeiro trazidas das terras de origem tenham

sido importantes para constituir os limites que procuravam impor ao sistema disciplinar das

fazendas em Campinas.

Como expôs Hebe Mattos de Castro, o cativo negociado no tráfico:

144

Segundo depoimentos, o feitor escravo José Furtado teria visto Luís Antônio de Pontes Barbosa desembarcar

pela manhã na estação ferroviária de Jaguari e avisou os cativos da Fazenda do Castelo. “Interrogatório ao réu

Severo” e “Interrogatório ao réu Benedito”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 145

Maíra Chinelatto, Quando falha o controle..., op. cit., p. 236. 146

Maíra Chinelatto, Quando falha o controle..., op. cit., p. 234.

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“tinha concepções preestabelecidas de castigo justo ou injusto, de ritmos de trabalho

aceitáveis ou inaceitáveis, das condições que deveriam dar acesso ao pecúlio e à

alforria, que podiam ser distintas das que encontrara nas fazendas de café do

Sudeste”.147

Vale ressaltar também que os indiciados nos autos criminais eram apenas a ponta do

iceberg de muitos desses crimes, uma vez que somente um pequeno número dos envolvidos

era de fato condenado. Em parte, isso se coadunava com a necessidade da sociedade

escravista de não privar os senhores do serviço de seus escravos, ainda que estes tivessem

cometido crimes dentro da própria fazenda. Maria Helena Machado verificou que os crimes

contra feitores tendiam a ter as penas diminuídas, ainda que fossem inclusos no artigo 1º da

lei de 10 de junho de 1835; diferentemente do que acontecia quando as vítimas eram senhores

e sua família.148

A defesa da propriedade escrava falava mais alto. E é possível que o

planejamento dos crimes acontecesse com certo conhecimento sobre essa lógica,149

isto é,

considerando que nem todos seriam condenados, muitos desses cativos criminosos se

entregavam conjuntamente à polícia como vimos nos casos mencionados.

Por outro lado, Ricardo Pirola argumenta que a ida dos cativos à polícia após esse

tipo de crime se dava como forma de proteção, uma vez que as represálias vindas de forma

privada dentro das cercas da fazenda poderiam ser ainda piores do que as punições previstas

por lei. O autor identificou, por exemplo, que todos os casos de cativos que se entregaram na

polícia após cometerem crimes enquadrados na lei de 10 de junho de 1835 se deram após

1860, quando as comutações da pena de morte prevista nesse regulamento ultrapassaram 90%

das causas julgadas pelo Conselho de Justiça.150

Como vimos no caso do assassinato do feitor

Gama, os cativos que participaram do crime junto com Vitorino foram castigados brutalmente

no tronco, apesar de não terem sido indiciados pelo delito.151

2.3. Vítimas

Passemos agora à análise das vítimas escravas que encontramos nos autos criminais.

Infelizmente, as informações sobre elas são muito mais escassas do que para os réus, uma vez

que muitas nem chegaram a prestar depoimento (nos casos de homicídio) e, quando o fizeram,

147

CASTRO, Hebe M. Mattos de. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In: NOVAIS, Fernando

(coord.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 355. 148

Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 70. 149

Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 70. 150

Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit., p. 224-5. 151

“Auto de perguntas a Benedito Sorocaba”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014.

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a justiça não se preocupava em fazer perguntas que não estivessem diretamente ligadas aos

fatos do crime. Assim, para as 69 vítimas escravas nos autos criminais julgados entre 1859 e

1886, temos informação da localidade de origem, por exemplo, para somente 14.152

Apesar

dessa limitação, buscaremos observar as características que são possíveis de identificar nesses

sujeitos e traçar um perfil mínimo para os crimes contra os escravos que foram levados à

justiça na segunda metade do século XIX.

Em primeiro lugar, observa-se que, entre as 14 vítimas crioulas com localidade de

origem informada, 78,6% eram nascidas fora do município de Campinas, dos quais 27,3%

eram oriundos da região Sudeste.153

Assim, enquanto os dados colhidos por Robert Slenes

mostram uma proporção de 43,7% de cativos nascidos em Campinas na população do

município,154

uma proporção muito menor (21,4%) foi vítima de crimes na segunda metade

do século. Ou seja, mais uma vez, os forasteiros são maioria e, nela, predominam os oriundos

do Nordeste do Império.

Quanto ao sexo, verifica-se que as mulheres escravas aparecem em proporção muito

maior como vítimas (21,7%) do que como rés (3,7%). Além do que já comentamos sobre o

fato de os cativos omitirem a participação de suas companheiras em crimes, essa diferença

proporcional evidencia o grande número de crimes passionais que também fizeram parte da

realidade do cativeiro em Campinas. Em pelo menos 53,3% dos delitos cometidos contra as

escravas, as motivações parecem ter sido de cunho amoroso.

Outro dado curioso relacionado ao sexo das vítimas é que entre os autos que temos

em mãos, uma maior proporção de suicídios se deu entre as mulheres (20%) do que entre os

homens escravos (16,7%). É difícil indicar alguma relevância do tráfico interno nesses casos

de suicídio, uma vez que há informação de origem para somente quatro dessas vítimas. Pode-

se observar, contudo, que metade delas era proveniente do Sul e Nordeste do Império.

Conforme pode ser observado na tabela 2.3,155

a proporção dos cativos casados é

igual a 41,7%, percentual muito maior do que o encontrado entre os réus (22,6%) ou entre a

população escrava da província de modo geral (20,3%).156

Dessa forma, verifica-se, mais uma

vez, que, apesar da inegável importância dos laços familiares para a vida em cativeiro, eles

152

Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP. 153

Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP; Registros da Meia Sisa

de escravos, Campinas, 1860-1884. CMU, CRC. Todos os dados a seguir foram pesquisados nestas fontes. 154

Robert Slenes. The demography...,op. cit.,tabela 3-2, p. 133. 155

Vide página 38. 156

Segundo dados da matrícula de escravos de 1873. Robert Slenes. The demography...,op. cit.,tabela B-4, p.

692.

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não eram garantia de não envolvimento em conflitos, os quais talvez estivessem até mesmo

relacionados à tentativa de proteção da família.157

Pelo menos 37,5% das vítimas tinha entre 20 e 29 anos, e somente uma pessoa tinha

idade abaixo de 20 anos e uma estava acima dos 60 anos de idade.158

Aqui, o prejuízo dos

senhores fica latente, uma vez que se tratava da perda de uma parcela importante de sua mão

de obra, em idade produtiva e, por isso, com altos valores no mercado de escravos.

Outro item que mostra o prejuízo dos senhores com esses crimes é que 50% das

vítimas com informação sobre a ocupação exerciam funções administrativas, domésticas ou

especializadas (vide tabela 2.4),159

tendo, portanto, um alto custo para sua substituição.

Apesar de escravos feitores estarem entre as vítimas, eles respondem por apenas 4,3% delas.

Os casos em que o réu era também escravo são os mais abundantes: 34,8% de todas

as vítimas escravas se envolveram em conflitos com outros cativos, 75% deles com parceiros

da mesma escravaria. Como já exposto, há poucas informações sobre a origem desses

indivíduos, mas é curioso notar que todos os identificados como nascidos em Campinas

(apenas dois escravos e um livre, filho de escrava) tenham sido vítimas em conflitos com

pessoas livres. A este fato, soma-se o que já foi observado sobre os réus escravos nascidos em

Campinas: a maior proporção deles, isto é, 37,5% cometeram crimes contra indivíduos livres.

Entre os forasteiros, a proporção dos que foram vítimas em conflitos com pessoas

livres é menor: 27,3%. Essa quantidade foi sobrepujada por aqueles ocorridos com outros

cativos, que somam 36,4%. Comparando com os dados para os réus forasteiros, verifica-se

que os conflitos dos forasteiros com livres também era bem menor do que no caso dos

nascidos em Campinas: 32,3%.

Pode-se inferir, portanto, que a origem teve papel significativo no tipo de conflito em

que se envolveram esses cativos. Isso talvez signifique, em primeiro lugar, que os cativos

nascidos em Campinas tinham maior contato com indivíduos fora do cativeiro do que os

forasteiros. E, em segundo lugar, pode-se conjecturar que tenham tido mais interesses em

comum que gerassem disputas, como o trabalho em determinada terra, ou objetos que os

cativos desejassem adquirir, lembrando que foi também entre os réus nascidos em Campinas a

maior proporção de roubos e furtos.

157

Maíra Chinelatto. Quando falha o controle...,op. cit., p. 121. 158

Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), 1859-1886. AEL, CSP. 159

Percentual calculado sobre as vítimas adultas do sexo masculino. Quando observado o tipo de ocupação

independente do sexo, esse percentual sobe para 60% das vítimas exercendo ocupações administrativas,

especializadas ou domésticas.

Page 84: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

84

Contudo, a pequena quantidade de dados que temos para a origem das vítimas

dificulta que sejamos mais incisivos nessas conclusões, sendo então apenas especulações que

ajudam a pensar os diferentes espaços e experiências dos cativos nascidos fora do município

paulista. Passemos então à análise das histórias de crimes que vitimaram essas pessoas, de

modo a nos aproximar o mais minuciosamente possível dessas experiências.

Retornemos ao caso do assassinato de Honorato, cometido por Severiano em alta

hora da madrugada pouco antes do Natal em 1875.160

Segundo Severiano e os companheiros

que depuseram em juízo, ele havia cometido o crime por engano, ao atacar uma pessoa que

via saindo do armazém do seu senhor com um saco de açúcar nas costas, achando ser um

ladrão.

Honorato nascera no Maranhão, mas estava no Sítio do Saltinho, de propriedade de

Felipe Antônio Franco, há muitos anos. Ser forasteiro não o impediu de constituir família e ter

uma relação bastante próxima com a casa grande. Casou-se com a cativa Brígida, neta do

casal fundador da comunidade escrava no Sítio do Saltinho,161

entrando assim para uma

importante rede familiar da senzala. Com ela teve quatro filhos: Guilherme, Úrsula,

Leopoldina e Gertrudes. Honorato era trabalhador na lavoura, mas suas filhas, assim como a

esposa Brígida, tinham uma ocupação doméstica: as meninas eram “carregadoras de crianças”

e a mãe exercia a função de costureira.162

Quando o testamento da senhora Ana Rufina foi

aberto em 1875, apenas três escravos foram alforriados pelas disposições testamentárias: as

três filhas de Honorato.163

Se a história do engano contada por Severiano for verdadeira, podemos imaginar

que, mesmo com essa posição diferencial, Honorato furtava o saco de açúcar do senhor para

suprir necessidades diante dos recursos escassos inerentes à realidade do cativeiro. Por outro

lado, a suspeita de que houvesse rixas entre os dois cativos não pode ser descartada pelo

historiador, ainda que o tenha sido pela Justiça. A posição diferencial de Honorato na

comunidade escrava pode ter despertado desavenças com o caseiro Severiano, uma vez que

este último provavelmente buscava se impor diante dos outros cativos por sua função de

confiança no sítio (caseiro).

160

Ver mais detalhes sobre essa história nas páginas 60-2. Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de Felipe

Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 239, Documento 002. 161

Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 73-4. 162

“Lista de matrícula de escravos”, 1872. Inventário post mortem de Ana Rufina de Almeida, Campinas, 1875.

CMU, TJC, 3º Of., P. 7256, Cx. 450. 163

Testamento de Dona Anna Rufina, p.158 e 159. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160. Citado em Joice F.

de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 72-3.

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85

Outra vítima forasteira que tinha posição de destaque na fazenda onde foi ferido foi o

feitor escravo Joaquim, proveniente do Ceará.164

O crime ocorreu em 1886, quando Joaquim

já estava em poder do major João Francisco de Andrade Franco há 14 anos,165

e foi cometido

por outro escravo de seu senhor, de nome Paulo.

Outro escravo, de nome Celso, dividia com Joaquim a função de olhos vigilantes do

senhor na fazenda. Ele também fora adquirido pelo senhor no mercado interno, e estava na

fazenda há ainda mais tempo, cerca de 24 anos.166

Os feitores estavam castigando os cativos

no eito, pelo atraso na capina, quando Paulo reagiu com uma facada em Joaquim.

As diferenças nas informações prestadas pelo réu e pela vítima são marcantes. Paulo

não negou em nenhum momento ter ferido Joaquim, mas contou uma historia detalhada de

como ocorrera o castigo ao qual reagiu:

“achavam-se os escravos trabalhadores da fazenda formados no eito, isto havia em 7

horas da manhã mais ou menos, quando sem ele interrogado saber o motivo, seu

senhor Major João Francisco de Andrade Franco, mandara formar a escravatura e

tirar a camisa de cada um ordenando aos feitores Joaquim e Celso, ambos escravos,

que tocassem da direita um e da esquerda outro, sendo que os pacientes todos,

inclusive ele interrogado, levaram 6 relhadas cada um; que novamente seu dito

senhor mandou reproduzir mais seis relhadas em cada um; que alguns ele

interrogado viu apanhar seis, como disse, e não seis, (...) que ao chegar novamente

sua vez ele interrogado saiu da fila e ajoelhou-se perante seu senhor para que ele

perdoasse essas seis relhadas; que a resposta que ouviu do seu senhor foi ordem ao

feitor Joaquim para aplicar nele interrogado cem relhadas; que tomado de medo de

apanhar tão grande número de relhadas, puxou da faca e agrediu o feitor, não para

matá-lo, que o poderia fazer se quisesse, quando o feitor caiu, mas tão somente para

fazer sangue no feitor como meio de se livrar do excessivo castigo que, se não fosse

esse fato das facadas, por certo que ainda hoje estaria sofrendo”.167

A vítima, por sua vez, afirmou a presença do senhor somente depois que Paulo já o

teria ferido, não estando no eito quando os cativos estavam sendo castigados. Contou também

que o réu o perseguiu na tentativa de dar-lhe mais facadas.168

Assim, a presença do senhor no

eito no momento do castigo aos escravos é uma contradição que pode indicar a tentativa do

feitor de evitar atribuir crueldade ao senhor, na tentativa de confirmar sua imagem de aliado

do escravocrata.

As vantagens da proximidade com a casa grande podem ter deixado Joaquim no lado

oposto ao dos parceiros de cativeiro. Assim, era visto pelos outros cativos como aliado do

senhor, especialmente na aplicação dos castigos, como o depoimento de Paulo deixa

vislumbrar. Apesar de forasteiro, era feitor e tinha uma família constituída pelo casamento

164

Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 259, Documento 006. 165

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1872-1873. CMU, CRC. 166

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1862. CMU, CRC. 167

“Auto de perguntas ao réu Paulo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 006. 168

“Auto de perguntas ao ofendido Joaquim”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 006.

Page 86: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

86

sancionado pela Igreja. Certamente, o longo tempo que estava na fazenda – 14 anos –

colaborou para essas conquistas.

Enquanto isso, o outro forasteiro, Paulo, nascido na Província do Rio Grande do Sul,

que estava na fazenda há oito anos, continuava solteiro e no duro trabalho da lavoura.169

Ambos haviam vivido a experiência do tráfico interno, em épocas diferentes, mas trazidos

para bastante longe de suas terras de origem.

A história dos dois evidencia os diferentes destinos que os forasteiros poderiam ter

nas escravarias em Campinas, e como suas experiências se entrelaçaram pelo crime, em

última instância devido ao duro sistema de trabalho e disciplina nas fazendas de café do

município, que fazia vítimas e réus aos montes, como se vê na documentação.

Para terminar as histórias das vítimas escravas forasteiras, vamos conhecer o baiano

José. Em 1871, ele fugiu da fazenda de seu senhor Francisco Bueno de Lacerda e foi

apadrinhar-se com o Barão de Atibaia.170

Em depoimento, José contou que fugiu devido aos castigos excessivos e com

motivação frívola que o feitor da fazenda, Amaro Ferreira da Silva, aplicara nele. O objetivo

da fuga era pedir ao Barão que o comprasse. Então, “o Barão de Atibaia prometendo-lhe

comprá-lo escreveu a seu senhor mas este não anuindo no negócio mandou buscá-lo pelo dito

seu feitor e o camarada João de tal”.171

“O Barão de Atibaia despediu-o”, continuou José,

“dizendo lhe que a vista da resposta do seu senhor não podia comprá-lo mas que

fosse sossegado porque iria apadrinhado e não sofreria castigo. Que nesse suposto

saiu ele informante seguido por Amaro e logo depois João de tal, e dirigiu-se para a

casa de seu senhor de braços cruzados e com toda a humildade, porém logo que

encobriu-se [sic] a casa do mesmo Barão, Amaro assuntou de amarrá-lo. Que ele

requerente observou que estava apadrinhado, e que por isso devia seguir solto”.172

Não obstante a observação de José, os condutores amarraram e surraram o cativo,

causando-lhe ferimentos que foram tratados por um curandeiro, em cuja casa foi levado logo

que chegou à fazenda ferido, onde permaneceu por 16 dias.

Não foi possível encontrar o registro da compra de José nos livros da meia sisa, e ele

não informou o tempo de moradia no seu depoimento. O inventário do senhor também não

auxiliou a descobrir mais informações sobre esse cativo, uma vez que foi aberto apenas em

1897. No entanto, sabemos pelo processo criminal que ele era baiano, mulato, tinha 30 anos

de idade, era solteiro e trabalhador de roça. O fato de que tenha ido se apadrinhar com um

169

“Auto de qualificação do réu Paulo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 006. 170

Processo Crime. Réus: João Lico de Camargo e Amaro Ferreira da Silva, Campinas, 1871. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 225, Documento 006. 171

João “de tal” refere-se a João Lico de Camargo, camarada do senhor da vítima. “Auto de perguntas ao

ofendido” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 006. 172

“Auto de perguntas ao ofendido” AEL, CSP, ACI, CSP 225, Doc. 006.

Page 87: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

87

homem tão importante quanto o Barão de Atibaia indica que o cativo estava há algum tempo

no município e que, apesar de ser trabalhador de roça, tinha certa mobilidade, podendo ter

contato com outros escravocratas da região. Apesar de o apadrinhamento não ter sido

respeitado pelo feitor e o camarada, ele o foi pelo senhor, que, além de não castigar o cativo

quando este chegou à fazenda, “despediu a Amaro de seu serviço em consequência daquele

fato”.173

Esta punição, pelo visto, não foi considerada suficiente por José, uma vez que se

decidiu a levar o caso à justiça, denunciando as ofensas físicas cometidas pelo feitor e o

camarada em sua pessoa.

Vemos aqui o caso de um forasteiro que, apesar de, aparentemente, não ter alguma

posição de destaque na escravaria, buscava também impor seu código de direitos ao cativeiro,

o que incluía castigos justos e o respeito à prática do apadrinhamento. Ser forasteiro pode ter

sido um fator amplificador do desejo de impor esses limites, como já observamos sobre a

experiência que trazia de cativeiro anterior em sua terra natal, Bahia.

2.4. Momento do crime

Avaliemos agora o momento na trajetória de vida dos cativos em que esses crimes

ocorreram. Na tabela 9 podemos observar as vítimas dos crimes cometidos por escravos em

Campinas ao longo da segunda metade do século XIX. Verificamos que a década de 1860 foi

a em que houve, proporcionalmente, mais crimes contra feitores (55,6%), todos eles casos de

homicídio. Foi também a única década em que cativos nascidos no próprio município

cometeram crimes contra o feitor, respondendo por 30% dos réus com origem conhecida

nesse tipo de conflito.174

É nessa década, aliás, que verificamos a maior proporção de cativos

nascidos em Campinas entre os réus crioulos com localidade de origem conhecida, que é igual

a 36,4%. Na década de 1870, esse percentual cai para 18% e é igual a zero no decênio

seguinte.

173

“Auto de perguntas ao ofendido” AEL, CSP, ACI, CSP 225, Doc. 006. 174

Percentual calculado sobre o total de cativos com origem informada. Os números para essa cifra são: 20

escravos assassinaram feitores na década de 1860, sete deles eram forasteiros e três campineiros. Levando-se em

consideração todos os réus que cometeram crimes contra feitor na década de 1860, inclusive os que não têm

informação de origem, a proporção de nascidos em Campinas cai para 15%; e os réus forasteiros respondem por

35% desses casos.

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88

Tabela 9 – Tipos de conflitos envolvendo os réus escravos, por décadas

(Campinas, 1860-1886).

Décadas

Vítimas enquadradas no art. 1º da

lei de 10 de junho de 1835175 Outras vítimas

Total geral

Senhor Feitor/adm. Subtotal Livre Escravo Liberto Ingênuo Subtotal

1860-69 - 20 20 16 10 - - 26 46

1870-79 18 09 27 20 09 - 01 30 57

1880-88 01 07 08 06 03 - - 09 17

Total 19 36 55 42 22 - 01 65 120

% sobre o total informado 15,8% 30,0% 45,8% 35,0% 18,3% - 0,8% 54,2% 100%

Isso evidencia, em primeiro lugar, a gradual diminuição proporcional de cativos

nascidos em Campinas entre a população escrava do município em vista da entrada de novos

cativos. Em segundo lugar, demonstra a participação cada vez maior dos forasteiros em

delitos, chegando a 100% dos crioulos réus com origem conhecida na década de 1880. O

incremento do tráfico interno aliado ao crescimento da produção cafeeira e,

consequentemente, das exigências da lavoura, foi importante fator para o aumento da

criminalidade escrava no município.

Além disso, segundo informações fornecidos nos depoimentos do autos criminais e

as encontradas nos registros do pagamento da meia sisa, 60% dos forasteiros que se

envolveram em crimes em todo o período analisado chegaram a Campinas na década de 1860.

Ou seja, chegaram ao município em um contexto de reações violentas contra as atitudes dos

feitores e de insatisfação crescente com o modo como a produção era conduzida e como o

tratamento para com os escravos se dava. Por outro lado, nenhum escravo cometeu crimes

contra o senhor nesse decênio.

Observar alguns crimes ocorridos na década de 1860 pode ajudar a refletir sobre

alguns desses dados.

Em 1864, o escravo Jerônimo fugiu da fazenda Morro Alto, pertencente a seu senhor

o comendador Francisco Teixeira Vilella.176

O cativo não foi muito longe, tendo se dirigido a

uma casa que servia de hospital aos escravos, e onde estava sua mãe, Gertrudes. Ali, foi

procurado e encontrado por Joaquim e Benedito, também escravos de Vilella, sendo o último

175

Os números inteiros se referem ao total de réus envolvidos nesse tipo de conflito e não ao número de autos

criminais. 176

Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 212, Documento 011.

Page 89: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

89

também feitor. Jerônimo apresentou dois bilhetes de padrinhos para aqueles que vinham

capturá-lo para voltar à Fazenda, desse modo, seguiu o caminho sem ser algemado ou

amarrado. Todavia, quando passavam pela ponte do Rio Atibaia, já próximo à fazenda do

senhor, Jerônimo ainda tentou escapar mais uma vez, jogando-se nas águas do rio. Atrás dele

seguiu o feitor Benedito que, ao entrar em luta com o fugitivo, acabou sendo morto.

Na mesma década, ocorreu o assassinato do feitor Malaquias, história que contamos

algumas páginas atrás.177

A análise comparativa das duas histórias pode ajudar a divisar

algumas diferenças entre os crimes cometidos por escravos nascidos em Campinas e os

forasteiros na década de 1860.

No assassinato do feitor Malaquias prevaleceram os cativos forasteiros entre os réus,

apesar de, como já apontamos, a composição geral dos cativos que poderiam estar envolvidos

com o crime fosse bastante múltipla. Nesse caso, parece ter havido alguma premeditação do

crime. Em seu primeiro depoimento, modificado depois provavelmente por orientação do

curador no interrogatório diante do Júri, o réu Epifânio chegou a afirmar:

“que nas semanas retrasadas ele respondente de combinação com seus parceiros

resolveram a queixar-se ao administrador e com efeito lhe disseram que ele tirasse o

feitor porque ele os maltratava muito, e eles não podiam aturá-lo, o que vendo que

administrador não se importou com o que reclamaram ajustaram-se entre si para que

pegassem o feitor de uma vez na primeira ocasião em que ele bolisse [sic] com

algum deles”.178

Já no caso da morte do feitor escravo Benedito, percebe-se que Jerônimo cometeu o

crime sem premeditação, tendo como principal fim escapar do retorno à fazenda do senhor

Vilella. Por outro lado, o desfecho de sua fuga, com a morte do feitor Benedito, dá a entender

que não estava disposto a retornar ao poder do senhor, fazendo todo o possível para escapar.

Conseguimos identificar pelo menos 21 escravos que cometeram crimes em situação

semelhante (15,7%), isto é, quando estavam sendo capturados durante a fuga.179

Nenhum detalhe do processo permite saber o motivo pelo qual Jerônimo fugira da

fazenda, mas a presença de sua mãe doente na vizinhança pode indicar que ele não tivesse o

propósito de permanecer fugido, mas que estivesse realizando uma “fuga reivindicatória”, isto

é, tivesse a intenção de ter algum desejo atendido pelo senhor e usou a fuga como arma de

negociação.180

Outra evidência desse objetivo em sua fuga é o fato de que apresentou àqueles

que foram capturá-lo dois bilhetes de padrinhos, o que lhe garantiu um tratamento

177

Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,

1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 178

“Auto de perguntas a Epifânio” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. p. 10. 179

Campinas, 1859-1886. AEL, CSP, ACI. 180

João J. Reis e Eduardo Silva. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989, p. 64.

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90

diferenciado, sendo conduzido até à fazenda do senhor sem algemas ou cordas. Além disso,

ao fugir, o cativo não se acoitou na mata, mas sim foi à cidade, onde poderia ser rapidamente

encontrado e capturado. Após o conflito com Benedito, Jerônimo fugiu da cena do crime e, ao

invés de se afastar da propriedade do senhor, se apresentou no serviço onde estavam os outros

escravos, sendo então preso definitivamente.181

Jerônimo nascera em Campinas enquanto os cativos envolvidos no assassinato do

feitor Malaquias eram forasteiros. Epifânio era natural do Rio de Janeiro e estava em

Campinas há aproximadamente dois anos; Manuel Baiano, natural de Salvador, residia na

fazenda há seis anos e Romualdo era africano e residente há bastante tempo no município.182

Um detalhe crucial diferenciava os réus dos dois processos criminais: Jerônimo tinha

sua mãe na vizinhança. Pelo visto, a visita à progenitora parece ter sido pelo menos um dos

principais motivos para a fuga de Jerônimo, o que provavelmente não seria um objetivo tão

latente para os forasteiros, que sabiam da longa distância que os separava de seus familiares

na terra natal.

No ano em que Jerônimo fugiu da fazenda do comendador Vilella e acabou

assassinando aquele que o tentara capturar, as senzalas nas propriedades do senhor estavam

agitadas com a chegada de 113 novos escravos adquiridos no tráfico interno. É interessante

observar que em uma escravaria que crescia mais a cada dia, com constantes novas aquisições

de forasteiros por parte de um senhor bastante próspero, tenha sido um campineiro o cativo

envolvido em um processo criminal.

Outro escravo desse senhor, no entanto, foi indiciado em um processo criminal no

ano seguinte (1865) pelo roubo de dois cortes de calças de brim da loja de fazendas de

Antônio Pereira Cardoso.183

Reginaldo era pernambucano, solteiro, com 24 anos e havia sido

comprado por Vilella há oito anos.184

Outros três escravos forasteiros pertencentes a Vilella se envolveram em um

processo criminal ainda na década de 1860, com mais um crime contra uma pessoa livre.

Januário, Cândido e Leocádia foram acusados em 1867 pela tentativa de assassinato de dona

Maria Leopoldina de Godoy, descrita no processo como amante de Francisco Teixeira

Vilella.185

181

. “Interrogatório ao réu”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 011, p. 75. 182

“Interrogatório aos réus Epifânio, Romualdo e Manuel Baiano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. 183

Apelação Crime. Réu: Reginaldo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, 1865. AEL, CSP, ACI, Microfilme

CSP 168, Documento 007. 184

“Auto de qualificação do réu”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 168, Doc. 007. 185

Processo Crime. Réus: Januário, Cândido e Leocádia, escravos de Francisco Teixeira Vilella, 1867. AEL,

CSP, ACI, Microfilme CSP 215, Documento 004.

Page 91: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

91

Durante o processo, surgiu a acusação de que o senhor teria articulado o plano de

matar a amante, com o serviço dos três escravos, e, em troca, teria lhes prometido a liberdade.

No entanto, o plano – se a suspeita fosse verdadeira – não saiu como esperado, nem para o

comendador, nem para os cativos: a amante sobreviveu, o caso amoroso veio a público e as

alforrias prometidas nunca foram concedidas. Leocádia adquiriu sua liberdade anos depois,

em 1873, mediante a compra por seu pecúlio.186

Verificando outra fonte documental, qual seja

o inventário post mortem de Francisco Teixeira Vilella, foram encontrados os outros dois

réus, Januário e Cândido, ainda escravos em 1873.187

Januário tinha 16 anos, filho de Anastácio e Marcolina, era natural de Mogi das

Cruzes e aprendiz de carpinteiro e mencionou os nomes de ambos os pais no processo.

Cândido tinha 25 anos, era solteiro, proveniente do Ceará e pedreiro de ofício, e declarou o

nome do pai no processo.188

Eles faziam parte de um grupo de 27 escravos que o comendador

Vilella havia comprado de Inocêncio Gomes da Silva, apenas três anos antes do crime.189

Nesse grupo, os cativos tiveram o valor médio de 1:480$000 rs. Não é possível saber a quanto

tempo os dois forasteiros haviam chegado ao município de Campinas antes dessa transação,

se faziam parte da escravaria de Inocêncio Gomes ou se este os adquirira exclusivamente para

venda. Mas podemos imaginar que já tivessem tido algum contato, mesmo que por poucos

dias antes de serem destinados às fazendas de Vilella. Companheiros no tráfico interno e

companheiros no crime, Cândido e Januário são exemplos de alianças entre cativos da região

(Província de São Paulo) e de longe (Ceará).

Leocádia fora comprada em meio a um enorme grupo de cativos adquiridos de uma

só vez pelo comendador e registrado nos livros da meia sisa em fevereiro de 1868.190

Esse

grupo continha 186 cativos e compunha uma comunidade escrava que existia há muitos anos

na fazenda de Capão Alto em Castro, no Paraná.191

O processo também aponta que Leocádia

fora destinada por Vilella a servir nos serviços domésticos na casa de dona Leopoldina, sendo

afastada de seus companheiros de Capão Alto, que foram levados para as fazendas do

comendador.192

186

Alforrias de escravos, Fichas de Peter Eisenberg, Pasta 2, ficha n°544. Fundo Peter Eisenberg,

AEL/UNICAMP, fonte citada por Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 186. 187

Inventário post mortem do Comendador Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1873. CMU, TJC, 1º Ofício,

Processo 4359, Caixa 257. 188

Autos de qualificação dos réus. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 215, Documento 004. 189

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1864. CMU, CRC. 190

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1868. CMU, CRC. 191

Uma análise bastante detalhada sobre a comunidade escrava de Capão Alto adquirida por Francisco Teixeira

Vilella pode ser conferida em Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., capítulo 3, p. 143-

193. 192

“Interrogatório a ré Leocádia”. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 215, Documento 004.

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92

Assim, a escravaria de Francisco Teixeira Vilella é um exemplo bastante interessante

de uma realidade em que o grande volume de forasteiros não resultou em crimes contra o

senhor. Benedito, apesar de feitor e, por isso, poder ser considerado uma autoridade instituída

pelo senhor, era escravo e, portanto, seu assassinato não foi julgado nos parâmetros da lei de

10 de junho de 1835.

Os anos 1860 foram especialmente conturbados para a escravaria de Francisco

Teixeira Vilella: havia muitos novos escravos adquiridos no tráfico interno, cinco estavam

envolvidos em processos criminais (Jerônimo, Reginaldo, Januário, Cândido e Leocádia), e

um foi assassinado pelo parceiro (o feitor Benedito).

Na década de 1870, todos os crimes contra senhores (18) foram homicídios,

respondendo por 28,6% de todo os homicídios e tentativas de homicídio do período. Somente

dois escravos de Campinas (12,5%) cometeram crimes contra o senhor e os dois foram na

década de 1870, respondendo por 11,1% desses delitos, enquanto os forasteiros respondem

por 77,8%.

Também todos os delitos cometidos contra feitor, administrador ou locador de

serviços (9) foram homicídios ou tentativas de homicídio (14,3%), nenhum deles sendo

cometido por cativo nascido em Campinas.

Por outro lado, os conflitos entre escravos que terminaram na morte de um deles

foram em sua maioria cometidos por réus provenientes de Campinas, respondendo por 42,9%.

E apenas um dos crimes entre escravos ocorreu contra escravo de outro senhor (11,1%).

A década de 1870 foi especialmente agitada para a escravidão no Império. Por um

lado, o tráfico interno vivia um período de efervescência, sendo que 49,7% de todos os

cativos negociados em Campinas o foram entre 1870 e 1879.193

Por outro, estava em vigência

uma legislação que garantia certos direitos aos cativos, como a não separação das famílias em

transações de venda e partilha194

e a possibilidade de compra de alforria com o pecúlio.195

193

Registros da Meia Sisa de escravos, 1870-1879. CMU, CRC. Cabe lembrar que, entre os livros disponíveis no

Centro de Memória da Unicamp, estão faltando os correspondentes aos anos fiscais de 1871-74 e 1876-77. 194

Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, artigo 2º. Disponível em:

http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1695-15-setembro-1869-552474-

publicacaooriginal-69771-pl.html (consultado em 15/08/2016). Confirmado pela Lei 2.040, de 28 de setembro de

1871, artigo 7º. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em

10/08/2016). 195

Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 4º. Disponível

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 10/08/2016)

Page 93: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

93

Além disso, os cativos que chegaram ao município paulista nesse período,196

que

respondem por 29,4% dos réus com informação de compra, encontraram um ambiente repleto

de forasteiros, haja vista a grande quantidade de novos escravos que vinham adentrando o

município desde os anos 1860, como observado no capítulo precedente.

Essas peculiaridades da década de 1870 talvez tenham sido cruciais para o grande

número de crimes coletivos que ocorreu no decênio, respondendo por 54,2% dos cativos

envolvidos em crimes coletivos entre 1860 e 1888. Além disso, esse decênio também foi o

período em que mais se registraram crimes de escravos, com uma proporção de 53% de todos

os réus escravos da segunda metade do século XIX.

Vamos retornar a um caso bastante interessante que aconteceu na década de 1870 e

que põe em evidência as implicações da efervescência do tráfico interno nesse período: o

assassinato do negociante Marinho.197

Comecemos retomando alguns detalhes da história para refrescar a memória do

leitor. Antônio Teixeira Marinho era negociante de escravos e trazia do Rio de Janeiro um

grande comboio de cativos consignados a José Júlio de Barros, para venda em Campinas. Na

manhã seguinte à sua chegada à cidade, Marinho foi morto pelos escravos a golpes de

machado. Três foram os acusados do crime: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme.

Um detalhe interessante presente na denúncia do promotor é a indicação de que o

objetivo último do crime era pegar os papéis de Marinho que comprovavam a propriedade dos

cativos e inutilizá-los, a fim de conferir liberdade aos escravos.198

Esse processo é singular no que diz respeito à luta escrava contra o tráfico interno.

No comboio estavam presentes cativos de diversas localidades do Império: Maranhão, Bahia,

Sergipe, Rio de Janeiro e Ceará; e consta que pelo menos um deles teria resistido ao embarque

no Rio de Janeiro e acabara sendo metido no navio à força.199

Alguns pontos sobre a experiência do tráfico na vida desses cativos são elucidados

pelo cruzamento das informações do processo com os registros de meia-sisa. Sabe-se que,

nascidos em diversas regiões do Império, esses cativos foram todos levados ao Rio de Janeiro,

mas a data em que aí chegaram é incerta. Do Rio foram enviados a Campinas, onde José Júlio

196

Na realidade, não há como saber se esses cativos estavam chegando ao município nessas datas ou se já

estavam em Campinas quando foram comprados pelos senhores que temos registrado nos livros da meia sisa,

mas, para critérios de análise, consideraremos como a data de chegada. 197

Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de José Júlio de Barros, Campinas,

1874. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 231, Documento 004. 198

“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 199

“Auto de perguntas a Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.

Page 94: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

94

de Barros já havia ajustado sua venda para seis compradores diferentes.200

O único escravo

que parece ter permanecido em poder do próprio José Júlio de Barros foi Francisco,

condenado pelo assassinato de Marinho.

Não é possível saber com certeza se os cativos oriundos do mesmo local se

conheciam antes do embarque no Rio de Janeiro, ou se naquela cidade haviam passado algum

tempo juntos. No entanto, é possível notar as relações que tiveram ao menos enquanto parte

desse grupo trazido a Campinas, apesar de sempre tentarem afirmar pouco ou nenhum contato

com os acusados do assassinato quando prestaram informações à justiça, estratégia clara para

evitar levantar suspeitas sobre si. Assim, por exemplo, apesar de dizer que “não gostava muito

de reunir-se [sic] com os ditos seus parceiros”,201

Francisco estava presente quando

Guilherme dizia aos companheiros que não aceitaria palmatória, ainda no Rio de Janeiro.202

O processo permite perceber as diferentes expectativas que os cativos do comboio

tinham com relação ao cativeiro. Francisco, por exemplo, julgava-se insultado por Marinho

ter lhe dado uns “bofetões” e em seu espírito “nutria ideias de alforria”.203

Ele também teria

dito a Antônio Teixeira Marinho que “sendo comprado para vender não devia apanhar”.204

Guilherme declarara a seus parceiros ainda no Rio de Janeiro “que aqui não seria vendido, por

que ao sair à rua havia de fazer um espalhafato tal que o tornasse invendável”.205

Nos interrogatórios, os réus negaram veementemente qualquer participação no crime

e também negaram que tivessem falado tais palavras ou nutrido alguma queixa contra

Marinho. Pelo contrário, Francisco disse que Marinho os tratava bem, dando “cama e café” e

que sempre esteve resignado e de boa vontade o acompanhava.206

Tanto Antônio quanto

Francisco alegaram só ter visto Marinho morto ao acordar e que não sabiam de nenhuma

combinação para o assassinato.

Este é um dos poucos casos presentes na documentação em que os cativos não

confessaram o crime. Este talvez seja um detalhe importante relacionado à experiência do

tráfico. Os cativos recém-chegados à cidade não tinham com quem se apadrinhar e não

sabiam se teriam algum auxilio da Justiça por estas bandas; dessa forma, estavam se

precavendo ao negar o crime até o fim, não estando seguros do destino que os aguardava caso

fossem condenados. Por outro lado, os cativos que prestaram informações à justiça fizeram

200

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1874-75. CMU, CRC. 201

“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 202

“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 203

“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 204

“Auto de perguntas ao informante Antônio”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 205

“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 206

“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.

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95

várias declarações que incriminavam Antônio e Francisco. Este último, mesmo negando ter

sequer visto o assassinato, disse ter ouvido uns dos parceiros afirmando que Antônio tinha

cometido o crime.

Ainda assim, ambos foram condenados no artigo 193 do Código Criminal, que previa

prisão com trabalhos forçados, mas as penas foram substituídas por açoites e trazer ferro ao

pescoço por três anos: Francisco recebeu a pena de 500 açoites e Antônio, por ter sido

considerado menor de 21 anos, recebeu uma pena um pouco menor, de 400 açoites.207

Após o processo, as vendas dos cativos foram efetivadas e José Júlio de Barros

permaneceu com Francisco em seu poder.208

Todavia, perdemos Antônio de vista, uma vez

que não encontramos qualquer registro de compra e venda a seu respeito.209

Alguns dos cativos do comboio não conseguiram permanecer longe de problemas por

muito tempo. Apenas quatro anos depois, Agostinho, Antônio, José e Lázaro tiveram que ir à

justiça prestar informações sobre a morte do feitor Joaquim Bento da Gama, em 1879, na

fazenda de José Maria da Costa Wilk. Este é o caso, já citado, que condenou o pernambucano

Vitorino, mas foi retomado em Inquérito Policial posteriormente porque ele alegou ter sido

convencido pelo senhor a assumir o crime sozinho e livrar os companheiros. Como vimos, os

outros cativos negaram qualquer envolvimento com o assassinato do feitor. Antônio, que

muito provavelmente estava no comboio de escravos trazido pelo negociante assassinado

Teixeira Marinho,210

ainda afirmou não ter almoçado com os parceiros na mesma gamela,

quando teria sido combinado o crime, mais uma vez tentando se afastar da suspeita de

envolvimento no delito.211

A última década da escravidão teve menor fluxo de cativos no tráfico interno e

também uma diminuição significativa no número de escravos indiciados por crimes. Apenas

12,7% de todos os réus escravos em Campinas na segunda metade do século XIX cometeram

crimes na década de 1880, e nenhum deles era nascido no próprio município, gerando uma

proporção de 100% de forasteiros entre os réus com localidade de origem informada. Nesse

207

“Sentença do Juiz de Direito”, 19/09/1874. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 208

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1874-75. CMU, CRC. 209

Havia pelo menos dois escravos de nome Antônio no comboio: o que foi indiciado pelo crime era

denominado “Antônio baiano” e o outro, que prestou informações no processo, declarou ser natural do Ceará. O

último foi comprado por José Maria da Costa Wilk, cf.: CMU, CRC, Registros da Meia Sisa de escravos da

cidade de Campinas, 1874. 210

“Auto de perguntas ao informante Antônio”. Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme,

escravos de José Júlio de Barros, Campinas, 1874. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 211

“Auto de perguntas a Antônio”. Inquérito Policial. Réu: Francisco, escravo de José Maria da Costa Wilk,

Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014.

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decênio há também um maior percentual de cativos que se envolveram em crimes sem

cúmplices indiciados, isto é, os que cometeram crimes sozinhos somam 76,5%.212

Somente um crime foi julgado nos parâmetros da lei de 10 de junho de 1835 nesse

período. O réu era o forasteiro Julião, proveniente do Rio de Janeiro.213

Ele residia em

Sorocaba com seu senhor, o negociante Feliciano José de Camargo, e veio com ele a

Campinas para vender animais. Julião distraiu o senhor, atacou-o com uma faca e, ferindo-o,

roubou-lhe uma bolsa de dinheiro com cerca de cinco contos de réis e fugiu.

Seu depoimento traz informações bastante interessantes sobre sua fuga:

“logo depois do crime fugira para não ser preso, em direção à estrada de São Paulo,

com intenção de iludir que para aqueles lados seguia, até que, com tensão firme de

seguir a estrada de ferro Mogiana, chegara àquele cafezal na dita estrada de São

Paulo, onde deixara a bolsa, ficando unicamente com moeda corrente e à noite, mais

ou menos às 7 horas deixou esse cafezal e atravessando os campos adjacentes à

cidade, foi ter à estrada de rodagem, no Taquaral, e por ela seguiu até que chegara

perto da estação das Anhumas, aonde pernoitara no mato; que no primeiro trem

embarcara nessa estação, comprando a respectiva passagem, para Ribeirão Preto

aonde chegara no dia imediato ao acontecimento do crime nesta cidade, que tendo

pernoitado em Ribeirão Preto seguira ao romper do dia, e a pé, com destino à cidade

de Franca, onde chegara depois de dois ou três dias de viagem”. 214

Julião era tropeiro e seu conhecimento da região deve ter sido obtido através de

outras idas e vindas que fizera com o senhor negociante. Assim, pode ser que estivesse

esperando a oportunidade certa para aproveitar uma viagem com o senhor para essas bandas e

assim realizar a fuga, levando consigo uma boa quantia em dinheiro.

Foi também na última década da escravidão que os cativos de Antônio de Pontes

Barbosa armaram o plano de revolta que contamos anteriormente.215

O momento em que a

insurreição foi planejada não se deu por acaso. Acreditavam os cativos que “os negros

estavam todos forros e os senhores injustamente comendo o tempo deles”.216

Assim, na

expectativa de uma abolição eminente no Império, os escravos do Bairro Jaguari, que

concentrava parte significativa da escravaria de Campinas, pretendiam se levantar todos em

nome da liberdade.

Em 1882, ano em que os planos da revolta foram logrados e o processo criminal teve

início, a vigência da Lei do Ventre Livre, por exemplo, já havia completado dez anos; além

disso, o tráfico interprovincial de cativos tinha sido interditado pelo imposto provincial de

212

Campinas, 1880-1886. AEL, CSP, ACI. 213

Processo Crime. Réu: Julião, ex-escravo de Feliciano José de Camargo, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 258, Documento 012. 214

“Interrogatório ao réu Julião”. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 258, Documento 012. 215

Processo Crime. Réus: Severo, Benedito e Jesuíno, escravos de Luiz Antônio de Pontes Barbosa, e Felipe

Santiago (liberto), Campinas, 1883. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 162, Documento 004. 216

“Interrogatório do escravo Severo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004.

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97

dois contos de réis para a importação de novos escravos.217

Como foi possível perceber

através dos registros do pagamento da meia sisa, a fazenda do senhor Antônio de Pontes

Barbosa tinha uma senzala bastante múltipla no que diz respeito à origem dos cativos e ao

tempo que residiam na propriedade.

Além do tempo de moradia, no entanto, alguns acontecimentos nas fazendas e nas

histórias de vida dos cativos podem ter sido importantes para as motivações dos crimes

analisados até aqui.

Na fazenda de Felipe Antônio Franco, onde o campineiro Severiano acabou

assassinando o parceiro maranhense Honorato, supostamente por engano,218

estava

acontecendo a partilha dos bens da senhora, dona Ana Rufina de Almeida, com a abertura de

seu testamento e inventário no mesmo ano em que aconteceu o crime.219

As incertezas e

insegurança com relação ao futuro da escravaria com a morte da senhora deviam fazer parte

do dia-a-dia dos cativos naquele ano, deixando a senzala provavelmente mais tensa do que de

costume. Além disso, a descoberta de que apenas as filhas de Honorato seriam beneficiadas

pelo testamento da senhora com a alforria pode ter causado algum constrangimento no

restante da escravaria.220

Também no sítio de dona Teresa Maria de Jesus Paula, onde o feitor Malaquias foi

assassinado,221

um inventário estava sendo julgado em período próximo ao momento em que

aconteceu o crime.222

José Francisco de Paula, esposo da senhora, falecera em 1865, e os

registros de meia sisa revelam que vários escravos da herança foram vendidos entre 1866 e

1869.223

Logo, em 1868, ano em que os cativos Epifânio, Romualdo e Manuel Baiano foram

indiciados pelo assassinato do feitor, a escravaria de dona Teresa Maria estava provavelmente

bastante inquieta com a possibilidade de saber quem seria o próximo a ser vendido. Não é

possível saber ao certo se a ansiedade em torno da partilha dos bens do senhor agiu de forma

determinante sobre as decisões cativas que levaram ao crime, mas, certamente, deixou a

senzala mais tensa e propensa a conflitos, uma vez que a ameaça de venda e separação pairava

217

José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no

Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza: SECULT/ CE, 2011, p. 249. 218

Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 239, Documento 002. 219

Inventário post mortem de Ana Rufina de Almeida, Campinas, 1875; CMU, TJC, 3º Of., P. 7256, Cx. 338.

Testamento de Dona Ana Rufina. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160. Citado em Joice F. de S. Oliveira.

Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit. 220

Testamento de Dona Ana Rufina. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160. Citado em Joice F. de S. Oliveira.

Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 72-3. 221

Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,

1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 222

Inventário post mortem de José Francisco de Paula, Campinas, 1865. CMU, TJC, 3º Of., P. 7032, Cx. 308. 223

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866-69. CMU, CRC.

Page 98: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

98

sobre ela. Dois dos cativos que prestaram depoimento no processo, Eleutério e Eleuterinho,

foram vendidos nessa leva, mas não para muito longe, já que foram adquiridos pela própria

senhora dona Teresa Maria de Jesus Paula.224

Além deles, a senhora arrematou da herança de

seu falecido esposo os escravos José e Florermina, todos os quatro em novembro de 1866.225

Como vimos, outra propriedade bastante agitada por movimentações no tráfico de

escravos eram as fazendas do comendador Francisco Teixeira Vilella. Em 1864, ano em que

Jerônimo acabou causando a morte do feitor escravo Benedito em sua fuga,226

pelo menos 71

novos cativos adentraram as fazendas do comendador.227

Por outro lado, dois cativos foram

vendidos pelo senhor apenas um mês antes da fuga de Jerônimo. Não é possível sabermos

qual a relação que Jerônimo tinha com André e Manuel, os escravos vendidos, mas podemos

conjecturar que a venda deles pode ter representado uma ameaça também para ele.

Um acontecimento mais diretamente relacionado à vida de Jerônimo, porém, foi

certamente importante para sua fuga e os fatos que ocorreram logo depois: sua mãe estava

internada em um hospital na cidade.228

Com as altas taxas de mortalidade escrava do

município, não é de estranhar que o filho tenha ficado preocupado com a mãe e tenha ido

visitá-la, mesmo sem permissão do senhor.

*

Ao fazer um balanço geral do perfil dos escravos indiciados como réus na segunda

metade do século XIX e dos tipos de crimes que cometeram, verificamos algumas diferenças

importantes entre aqueles que haviam nascido no município de Campinas e aqueles que aqui

chegaram pelo tráfico interno.

Apesar de a maior parte dos réus forasteiros serem solteiros e não apresentar relações

familiares na escravaria onde residiam em Campinas, também foi entre eles que encontramos

a maior proporção de trabalhadores domésticos ou especializados, o que demonstra que

conseguiram desfrutar de algum privilégio nas novas propriedades, mesmo que não tenham

criado laços familiares através do casamento, por exemplo. Além disso, os escravos que mais

cometeram crimes contra parceiros de cativeiro eram nascidos em Campinas, o que pode

224

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 225

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 226

Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,

Microf. CSP 212, Doc. 011. 227

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 228

“Auto de perguntas a Jerônimo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 011.

Page 99: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

99

denotar que, apesar de terem se envolvido menos, relativamente, em crimes contra senhores e

feitores, ser nascido no município não os livrou de conflitos dentro da senzala.

Por outro lado, os crimes contra senhores e seus prepostos, feitores e administradores

tiveram uma proporção bem maior entre os forasteiros. Esses crimes certamente estavam

ligados à frustração de expectativas de cativeiro trazidas de experiências anteriores ao tráfico

e às tentativas de impor limites ao sistema disciplinar das fazendas campineiras. Essa

motivação já foi bastante explorada por Maria Helena Machado para os crimes em Campinas

de modo geral, mas aqui verificamos que a origem dos cativos teve grande relevância para sua

generalização.

Mas a conclusão mais importante é que a predominância de cativos forasteiros entre

os réus escravos em Campinas nesse período não pode ser explicada apenas pela realidade

demográfica do município,229

nem por uma propensão ao crime devido ao desenraizamento

causado pelo tráfico.230

A cumplicidade entre forasteiros e campineiros na execução de crimes coletivos e,

sobretudo, as posições de destaque que os provenientes do tráfico interno tiveram em alguns

desses delitos demonstram as múltiplas possibilidades de socialização desses cativos nas

comunidades pré-existentes, apesar do desenraizamento. Se as fontes não permitiram

encontrar uma integração efetiva de alguns forasteiros nas senzalas, com a construção de

laços conjugais ou o exercício de ocupações especializadas, foi possível verificar pelo menos

a existência de alguma expectativa nesse sentido, uma vez que cometeram crimes na

esperança de poder contar com o apoio dos parceiros na ocultação dos delitos ou nos

depoimentos prestados à Justiça.231

Mesmo nos crimes cometidos individualmente, os forasteiros contaram com certo

apoio de outros cativos da propriedade, como Vitalino, que não impediu Francisco de agredir

o locador José de Sousa Teixeira no Hotel do Comércio e prestou informações que eram

favoráveis ao réu no processo criminal.232

229

Maria H. P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 51. 230

Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez? O Comércio Interprovincial de escravos no Brasil”, Revista

Afro-Ásia, Salvador, UFBA, nº 27, 2002, p. 153. 231

Maria Helena Machado e depois Maíra Chinelatto chegaram à conclusão semelhante, todavia, consideraram

apenas a origem ou o tempo de moradia dos criminosos para afirmar que estavam adaptados às escravarias de

Campinas onde cometeram crimes. Maria H. P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 25; e Maíra

Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 122. 232

“Auto de perguntas ao ofendido José de Sousa Teixeira” e “Auto de perguntas a Vitalino”. Processo Crime.

Réu: Francisco, escravo de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme

CSP 229, Documento 003.

Page 100: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

100

Mesmo no caso dos forasteiros que foram vitimados por crimes no município vemos

que não eram indivíduos que viviam isolados nas senzalas. Pelo contrário, número

significativo deles tinha alguma ascendência sobre a comunidade escrava, com ocupações

especializadas ou administrativas e relações familiares estabelecidas.

Outra observação importante diz respeito ao momento em que esses crimes

ocorreram. Uma proporção significativa dos crimes cometidos por forasteiros aconteceram

pouco tempo após sua chegada à Campinas (vide tabela 2.10), o que demonstra a não

adaptação ao novo cativeiro, e se confirma pela verificação de conflitos que aconteceram

instantes depois da aplicação de castigos considerados excessivos ou injustos.233

Por outro lado, acontecimentos internos à trajetória de vida dos cativos e à história

das escravarias em Campinas também foram relevantes para a execução de crimes. Podemos

relembrar, como exemplos, a morte do senhor,234

a chegada de um novo feitor,235

a venda de

companheiros no comércio local,236

problemas relacionados à família do cativo,237

expectativas com relação à abolição da escravatura,238

entre outros, como acontecimentos que

podem ter motivado alguns crimes. Além disso, como é possível observar na tabela 2.10, e foi

verificado também em algumas das histórias contadas até aqui, os tempos de moradia dos

escravos envolvidos em conflitos variou bastante. Em alguns casos, houve inclusive a

cumplicidade entre escravos recém-chegados e outros residentes em Campinas há muitos

anos.

Maria Helena Machado analisou o tempo de moradia informado pelos cativos réus

em seus interrogatórios e concluiu que os forasteiros envolvidos em crimes não eram recém-

chegados, mas sim residentes há mais de seis anos nas escravarias. A busca nominal dos réus

entre os registros da meia sisa possibilitou que encontrássemos essa informação para os

sujeitos que não informaram nos processos criminais. Com esses dados, chegamos a uma

conclusão semelhante à de Machado, porém com uma ressalva. Ainda que os cativos

233

Por exemplo, o caso já citado de Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade. Cf.: AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 259, Documento 006. Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade,

Campinas, 1886. 234

Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,

1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. E Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de

Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 239, Documento 002. 235

Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,

1868; AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 236

Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 212, Documento 011. 237

Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 212, Documento 011. 238

Processo Crime. Réu: Severo, Benedito e Jesuíno, escravos de Luiz Antônio de Pontes Barbosa, e Felipe

Santiago (liberto), Campinas, 1883. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 162, Documento 004.

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101

forasteiros que cometeram crimes depois de seis anos nas propriedades representem quase

60% da amostra, não podemos desconsiderar os 41,7% que o fizeram nos cinco primeiros

anos em poder do novo senhor (duas primeiras linhas da tabela 2.10), representando,

provavelmente, reações ao tráfico interno.

Tabela 10 – Tempo de moradia dos escravos nas fazendas onde cometeram

crimes, por origem (Campinas, 1860-1886).

Tempo de moradia (TM)

Campineiros Forasteiros Total geral

N % N % N %

Menos de um ano - - 06 12,5 06 11,1

1 a 5 anos 01 16,7 14 29,2 15 27,8

6 a 10 anos 03 50,0 15 31,2 18 33,3

11 a 15 anos 01 16,7 06 12,5 07 13,0

16 a 20 anos 01 16,7 05 10,4 06 11,1

Mais de 20 anos - - 02 4,2 02 3,7

Total com origem e tempo de

moradia informado 06 100 48 100 54 100

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102

CAPÍTULO 3 – Forasteiros fugitivos

3.1. As fugas e os fugitivos

Joana era uma escrava de cor fusca, nascida do casamento entre uma africana e um

índio, na província do Maranhão, onde passou toda a vida, no engenho de açúcar do senhor

Tavares.1 Ela teve pelo menos três filhos no cativeiro: Gabriel e os gêmeos Carlos e Urbano.

Uma noite, mãe e filhos dormiam em sua “casinha”, quando o senhor trouxe o feitor e um

traficante de escravos que levou os dois filhos gêmeos de Joana, de apenas oito anos de idade,

para o Rio de Janeiro.2

Após a separação dos filhos pequenos, Joana passou a se comportar como “douda”,

irritando bastante o feitor com suas contínuas fugas. Em uma das tentativas de escapar, ela

encontrou uma senhora que a ajudou a se esconder do feitor enfurecido e comprou a liberdade

de seu filho Gabriel, que a seguira na fuga. Contudo, Joana faleceu na mesma noite em que

foi acolhida na casa dessa benfeitora, debilitada pela dor do afastamento dos filhos menores.3

A história dessa mãe cativa é narrada em um conto literário publicado em 1887, pela

escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, com o título A escrava. Não é por acaso que a

autora da narrativa tenha escolhido contar a história de Joana a partir de seu ato de fuga. O

local em que ela havia crescido, no termo de Guimarães, era uma região com grande número

1 Maria Firmina dos Reis. “A escrava”. In: Úrsula. A escrava. Florianópolis, Mulheres; Belo Horizonte, PUC-

Minas, 2004, p. 254. 2 Houve uma importante participação do Maranhão no tráfico interprovincial de escravos, em especial devido à

forte concorrência internacional na produção de algodão, que deu origem a períodos de crise econômica,

obrigando os fazendeiros a vender grande parte de seus cativos para a região cafeeira como meio de saldar suas

dívidas. A exportação de cativos chegou a 1.361 indivíduos só no ano de 1857, perfazendo um total de 11.132

escravos saídos da província no período de 1846 a 1877. Rafael da Cunha Scheffer observou o predomínio de

escravos maranhenses (10%) entre os negociados para Campinas na segunda metade do século, perdendo apenas

para a província baiana (17%). Cf.: Rafael da Cunha Scheffer. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste,

1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado em

História), Unicamp, Campinas, 2012, p. 35, 127. Sobre a importância do Maranhão como fonte exportadora de

cativos para o Sudeste cafeeiro, ver também Robert Slenes. The demography and economics of Brazilian

slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford University, Stanford, 1976, tabela 4-4, p. 192; Robert Slenes,

“The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies, slave experience, and the politics of a

peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal slave trades in the Americas, New

Haven e Londres, Yale University Press, 2004, p. 337; Josenildo de Jesus Pereira. As representações da

escravidão na imprensa jornalística do Maranhão na década de 1880. Tese (Doutorado em História), USP, São

Paulo, 2006, p. 11. Cristiane Pinheiro Santos Jacinto. Laços & Enlaces: relações de intimidade de sujeitos

escravizados. São Luís - Século XIX. São Luís, Editora da UFMA, 2008, p. 137. 3 Maria Firmina dos Reis. “A escrava”, op. cit., p. 243-262.

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de fazendas, na qual vários mocambos se formaram e revoltas cativas aconteceram. O caso

mais célebre do período colonial é o de um quilombo que existiu no termo de Guimarães, em

1811.4

A história de Joana ilustra uma realidade vivida por muitos homens e mulheres

escravos na segunda metade do Oitocentos, isto é, a separação da família pelo tráfico

interprovincial de escravos. Assim como essa experiência motivou a mãe a fugir, um fluxo

crescente de fugas em diversas regiões do Império ocorreu ao longo das últimas décadas do

período escravista, o que pode ter sido uma resposta ao tráfico interno de cativos.5

O estudo das evasões cativas nem sempre considerou seus múltiplos significados e sua

relevância dentro dos atos de resistência cativa, afinal, pensava-se, escravos fogem,

obviamente, porque não querem ser escravos. Todavia, pesquisas mais recentes,

principalmente no Caribe e Estados Unidos, passaram a analisar essas fugas de outra forma,

chamando a atenção, por exemplo, para a importância da família escrava nos contextos de

fuga.6 Como a história da mãe Joana deixa entrever, não era tão somente a negação da

dominação escravista, resumida em trabalhos ou castigos excessivos, que induzia à evasão,

mas sim atitudes senhoriais consideradas como desrespeito às mínimas margens de autonomia

construídas em cativeiro, como a união da família. Não é à toa que a narradora da história,

uma senhora da alta sociedade maranhense, classifica as atitudes de Joana como próprias de

uma “douda”, uma vez que, após o embarque dos filhos para o Sudeste, passou a se comportar

de maneira totalmente diferente, isto é, “com rebeldia”.

Neste capítulo vamos explorar as fugas escravas ocorridas na segunda metade do

século XIX em Campinas, buscando compreender quais as possíveis relações entre o

incremento do tráfico interno de escravos nesse período e a fuga como ato de resistência

cativa, por meio da análise de 610 anúncios publicados na Gazeta de Campinas, entre 1869 e

1884, que noticiam a fuga de 574 cativos.7 Apesar de não terem sido computadas as evasões

4Josenildo de Jesus Pereira. As representações da escravidão..., op. cit., p. 73. Outro exemplo que causou pânico

aos escravocratas locais foi uma grande insurreição escrava que aconteceu na vila de Viana, em 1867. Cf.:

MatthiasRöring Assunção. “Quilombos Maranhenses”. In: João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (org.).

Liberdade por um Fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 450-3. 5 Maria de Fátima Novaes Pires. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima (1860-

1920). São Paulo, Annablume, 2010, p. 64-5. Para um estudo mais detalhado do aumento das fugas no Maranhão

na década de 1880, ver Flávio José Silva Soares. Escravidão no Maranhão do século XIX: situações e

características das fugas nos anos oitenta. Monografia (Graduação em História), Universidade Federal do

Maranhão, São Luís, 1988. 6 Uma descrição bastante explicativa da historiografia a respeito das fugas cativas pode ser visto em José Maia

Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e fugitivos no Grão Pará (1840-1888).

Dissertação (Mestrado em História), Unicamp, Campinas, 2000, p. 1-9. 7 O número de publicações que ultrapassa o número de fugitivos corresponde às reincidências de fugas. Pelo

menos 36 cativos fugiram mais de uma vez no período analisado. Na verdade, há 836 anúncios de fuga na

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anunciadas em outros periódicos, ou as não anunciadas pelos senhores, a amostragem

construída a partir dessa série documental é suficiente para que se conheça o perfil desses

fugitivos. Iniciamos observando a quantidade de escravos fugidos e seus locais de origem.

Depois buscaremos analisar comparativamente quem eram os forasteiros e os campineiros

fugitivos, de modo a entender quais características aproximavam ou diferenciavam esses

sujeitos. Para isso, arrolamos informações sobre a compra do cativo pelo senhor que publicou

o anúncio, além do sexo, estado conjugal e ocupação dos escravos fugidos, e o possível

destino da fuga.

Vejamos, para começar, a proporção de cativos que fugiram nas décadas cobertas pela

pesquisa (1860 a 1888),8 bem como suas origens.

9

Gazeta de Campinas, todavia, 226 deles foram publicados por senhores não residentes em Campinas, portanto

não foram computados nas tabelas deste capítulo. Foram publicados na Gazeta anúncios de fugas de escravos

residentes, principalmente, em Amparo, Limeira, Jundiaí e Rio Claro. Também houve anúncios de Monte Mor,

Santa Bárbara, Mogi Mirim, São Carlos do Pinhal (São Carlos), Itu, Sorocaba, Constituição (Piracicaba), Santos,

Santa Rita do Passa Quatro, São Paulo, Casa Branca, Jaguari, Uberaba, Brotas, Taubaté, Itatiba, Pirassununga,

Araras, Pedreira, Ribeirão Preto, Guaratinguetá, São Pedro de Piracicaba (São Pedro), Jaú, Bragança (Bragança

Paulista), São João da Boa Vista, Penha do Rio do Peixe (Itapira). E ainda Barra Mansa, Vassouras, Niterói e

Valença, na província do Rio de Janeiro, e Ouro Fino e Mato Dentro (Conceição do Mato Dentro), na província

de Minas Gerais. 8 Apesar de os anúncios de fugas escravas na Gazeta de Campinas começarem a ser publicados em 1869 e

pararem em 1884, o cruzamento com as outras fontes documentais (autos criminais, ações de liberdade e

registros da meia sisa) possibilitaram localizar registros desses sujeitos desde pelo menos 1860 até 1888. 9 Os dados mostrados a seguir, bem como os constantes das tabelas e gráficos deste capítulo foram pesquisados

nas seguintes fontes: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. Centro de Memória

da Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC); Ações de Liberdade, Campinas,

1866-1888 Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de Justiça de Campinas (TJC); Seção Processos

Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos

Crimes em São Paulo (CSP); Gazeta de Campinas, 1869-1884.

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A maior parte dos anúncios publicados na Gazeta de Campinas se concentra na década

de 1870, com uma proporção de 86,2% dos escravos fugidos, seguida da década de 1880, com

12,5% dos fugitivos. Essa proporção pode ser explicada pelo próprio período de publicação

dos anúncios, uma vez que ele se inicia no fim da década de 1860 (em 1869, ano de fundação

da Gazeta) e termina na primeira metade da década de 1880 (em janeiro de 1884).

Tabela 11 – Escravos em anúncios de fugas, por década e origem (Campinas,

1860-1888).

Década Número total de

escravos Campineiros Forasteiros

Crioulos em

geral10

Africanos Origem não

informada

1860 07 - 03 05 - 02

1870 495 09 251 288 19 188

1880 72 01 33 35 01 36

Total 574 10 287 328 20 226

10

Nesta coluna estão inclusos campineiros, forasteiros e outros crioulos cuja província ou município de origem

dentro do Império não foi identificado.

1%

86%

13%

1860 1870 1880

Gráfico 4 – Escravos em anúncios de fugas: distribuição percentual por

décadas

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Gráfico 5 – Origem dos escravos crioulos em anúncios de fugas,

por década.

Com relação à origem, assim como observado anteriormente nos autos criminais, nos

anúncios de fuga se sobressaem os fugitivos forasteiros, ou seja, crioulos nascidos fora do

município de Campinas, correspondendo a 50% dos fugitivos, enquanto os campineiros

respondem por apenas 1,7% deles. A diferença é ainda mais enfática quando consideramos

somente os cativos cuja origem é informada. A proporção então é de 96,6% de forasteiros,

contra 3,4% de campineiros entre os crioulos fugitivos para os quais temos informação da

localidade de origem (município ou província), como se pode ver pela Tabela 12, abaixo. Essa

tabela também traz com mais detalhes os locais de origem desses sujeitos, e nota-se que

66,7% dos crioulos que fugiram nesse período haviam chegado ao município de Campinas

por meio do tráfico inter-regional.

0,0% 3,1% 2,9%

60,0%

87,2% 94,3%

40,0%

9,7% 2,9%

1860 1870 1880

Campineiros Forasteiros Localidade de origem não informada

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Tabela 12 – Localidade de origem dos escravos crioulos em anúncios de fuga

(Campinas, 1860-1888).

Localidade de origem11

Número de

escravos

% sobre o total de crioulos com

origem informada

Campinas 10 3,4

Província de São Paulo12

48 16,2

Região Sudeste13

41 13,8

Outras regiões 198 66,7

Total de crioulos 297 100

Na tabela 13, podemos ver que, mesmo entre os cativos que haviam nascido em

Campinas, a venda foi uma experiência que os aproximava da situação dos forasteiros. Apesar

de considerarmos que, de modo geral, todo cativo proveniente de outras localidades do

Império havia passado por transações de compra e venda,14

essa informação só foi possível

ser confirmada para 66,6% dos forasteiros fugitivos, proporção muito próxima da observada

entre os campineiros (70%).

Tabela 13 – Origem dos Fugitivos com informação de compra (Campinas, 1860-

1888).

Origem Número de escravos % 15

Campineiros 07 70

Forasteiros 191 66,6

Total 198 51,8

O campineiro José, por exemplo, passou por várias experiências de venda. Por volta

dos dez anos de idade, em 1864, foi comprado pelo senhor Miguel Arcanjo Ribeiro de

11

Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi

informada. Não estão descritos, portanto, 20 africanos (18,5% dos dados informados), 2 crioulos para os quais

não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 26 réus com origem não identificada. 12

Não inclui os nascidos na cidade de Campinas. 13

Não inclui os nascidos na Província de São Paulo. 14

Há também a possibilidade de que alguns cativos tenham vindo para Campinas juntamente com senhores que

imigraram para o município. 15

Os valores percentuais apresentados nesta coluna foram calculados sobre o total de cativos da origem

correspondente.

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108

Castro.16

No ano seguinte, foi vendido novamente, dessa vez para Ildefonso Antônio de

Morais.17

Sete anos depois, em 1872, o senhor pretendia vendê-lo e, para isso, deixou-o na

fazenda do Dr. Francisco Antônio de Araújo, no município de Amparo.18

Certamente tentando

escapar do destino pretendido pelo senhor Antônio de Morais, José fugiu em abril daquele

ano, montado em um “burrinho pangaré”.19

Um novo anúncio publicado dois anos depois na

Gazeta mostra que José foi capturado e sua venda para o Dr. Antônio de Araújo efetivada.20

O

mesmo anúncio, contudo, comprova que José se recusava a permanecer no outro município e

continuava buscando decidir seu próprio destino. Dessa vez José fugiu na companhia de

outros dois cativos, o pernambucano Antônio e José Trementino, proveniente do Rio de

Janeiro.21

Tanto Antônio quanto José Trementino estavam em poder do Dr. Antônio de

Araújo há pelo menos 10 anos quando se uniram ao campineiro para fugir.

Quanto ao sexo dos fugitivos, há uma predominância masculina independente de

origem. Todavia, proporcionalmente, mais campineiras fugiram do que forasteiras (tabela 14).

Tabela 14 – Sexo dos escravos em anúncios de fuga (Campinas, 1860-1888).

Sexo Geral Campineiros Forasteiros

N % N % N %

Escravas 50 8,7 02 20 24 8,4

Escravos

homens 520 90,6 08 80 263 91,6

Nos anúncios da Gazeta há poucas informações sobre a ocupação dos cativos que

fugiram, correspondendo a um quarto deles (tabela 15). Todavia, é possível perceber a

importância das atividades especializadas entre os homens, destacando-se os carpinteiros (sete

pessoas – cinco forasteiros e dois campineiros), os pedreiros (nove homens, todos eles

forasteiros) e os domadores (seis homens, todos eles forasteiros). Entre as mulheres, há

predominância do serviço doméstico. De todo modo, interessa notar que os dados são bastante

semelhantes tanto para campineiros quanto para forasteiros.

16

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1864. CMU, CRC, Livro 35. O valor pago pelo

cativo foi de 1:300$000 réis. 17

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865-1866. CMU, CRC. 18

Anúncio de fuga do escravo José. Gazeta de Campinas, n. 245, 1872. 19

Anúncio de fuga do escravo José. Gazeta de Campinas, n. 245, 1872. 20

Anúncio de fuga dos escravos José, José Trementino e Antônio. Gazeta de Campinas, nº521, 1874. 21

Anúncio de fuga dos escravos José, José Trementino e Antônio. Gazeta de Campinas, nº521, 1874.

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Tabela 15 – Ocupação dos escravos adultos em anúncios de fuga, segundo a

origem (Campinas, 1860-1888).

Ocupação

Forasteiros Campineiros

Homens Mulheres Homens Mulheres

N %22

N % N % N %

Lavoura 14 6,25

- - - - - -

Atividades

especializadas ou

domésticas23

53 23,7

05 23,8 02 33,3 01 100

Total 67 29,9

05 23,8 02 33,3 01 100

Os números a respeito das ocupações especializadas ou domésticas podem ter sido

exagerados pela fonte, uma vez que o exercício desse tipo de atividade era considerado um

diferencial que poderia auxiliar na identificação do escravo fugido nas cidades. Todavia, é

possível conjecturar que havia maior recusa ao trabalho nas lavouras campineiras por parte

desses trabalhadores escravos especializados, em especial os forasteiros que, em geral, eram

oriundos de áreas urbanas.24

Além disso, algumas dessas atividades podem ter sido importantes para facilitar a fuga

e o acoitamento do cativo. Aqueles que eram tropeiros, por exemplo, tinham a vantagem de

conhecer as estradas que poderiam levá-los para longe dos senhores e para perto de seus

anseios de liberdade. Outras vantagens para a fuga poderiam advir de diferentes experiências

de cativeiro. Jesuíno, por exemplo, era jornaleiro na cidade de Campinas, ocupando-se

geralmente em “socar taipa”.25

Quando ele fugiu em 1877, seu senhor Carlos Augusto de

Sousa Lima imaginou que ele poderia estar em qualquer lugar da província, pois, segundo

informou no anúncio, “há um ano mais ou menos [Jesuíno] foi camarada do sr. Antônio

Carlos da Silva Teles, e viajou com este por diversos lugares desta província e da de Minas

Gerais”.26

As experiências de Jesuíno com o tipo de ocupação que exercia foram importantes

para facilitar sua fuga e dificultar que o senhor o encontrasse.

22

Nesta tabela, os percentuais foram calculados sobre a quantidade total de indivíduos adultos de cada origem. 23

As ocupações encontradas foram: pedreiro (09 pessoas), carapina/ carpinteiro (07 pessoas), domador (06),

cozinheiro (04), boleeiro (05), sapateiro (04), seleiro (05), carreiro/carroceiro/condutor de carro de boi (03),

pajem (03), alfaiate (02), chapeleiro (02), engomadeira (02), serviço doméstico (02), tropeiro (02), charqueador

(01), copeiro (01), costureiro (01), ferreiro (01), marceneiro (01), trabalho em máquina [de tecelagem?] a vapor

(01), trabalho em negócio de molhados (01), padeiro (01), quitandeira (01). 24

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 26. Sobre as mudanças no relacionamento entre

senhor e cativo nas transferências das pequenas para as grandes propriedades em consequência do tráfico

interno, conferir também Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies,

slave experience, and the politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal

slave trades in the Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70. 25

Anúncio de fuga do escravo Jesuíno. Gazeta de Campinas, nº 974, 1877. 26

Anúncio de fuga do escravo Jesuíno. Gazeta de Campinas, nº 974, 1877.

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110

Como chama a atenção Ademir Gebara, a descrição nos anúncios das atividades

desenvolvidas pelos escravos também dão pistas sobre o destino por eles pretendido com a

fuga.27

Como, por exemplo, o pedreiro Moisés, que levou “colher de rebocar e talhadeira” ao

fugir.28

Levando seus instrumentos de trabalho, o fugitivo pretendia, certamente, reconstruir

sua vida em liberdade por meio dos frutos de seu ofício.

Dados referentes ao estado conjugal dos cativos que fugiam são quase inexistentes.

Dos 574 fugitivos computados na pesquisa, temos informação sobre o estado conjugal de

apenas 13: 10 solteiros (todos eles forasteiros) e três casados (dois forasteiros e um

campineiro). A maior incidência de solteiros entre os forasteiros, contudo, se alinha à

realidade demográfica do comércio interno de escravos.

Além disso, o baixo número de informações sobre o estado conjugal daqueles que

fugiam indica que essa informação não era considerada relevante pelos senhores que

publicaram os anúncios na Gazeta, a menos que ela estivesse diretamente relacionada à

suspeita de que o escravo fugido tenha se dirigido ao local onde o cônjuge tinha permanecido.

A tentativa de retorno à terra natal ou onde o cativo tinha familiares às vezes é

sugerida pelos senhores em anúncios de fuga, como vem exposto na tabela 3.6. Essa suspeita

dos escravocratas denota a percepção de que as fugas estavam ligadas ao comércio interno.29

Também aponta para o conhecimento que os senhores tinham da lógica de atuação dos

escravos, o que provavelmente é possível graças à observação de situações semelhantes. Ou

seja, a suposição dos senhores de que os cativos fugidos se dirigiam a seus locais de origem

indica o quanto essa prática era comum.30

27

Ademir Gebara. “Escravos: fugas e fugas”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 6, nº 12, mar/ago.

1986, p. 97. 28

Anúncio de fuga do escravo Moisés. Gazeta de Campinas, nº 59, 26 de maio de 1870. 29

José Hilário Ferreira Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo te vendê…”: escravidão, tráfico e

negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza, SECULT/ CE, 2011, p. 224-5. 30

Bezerra Neto destaca a relevância que a reconstrução das relações comunitárias ou familiares teria para as

fugas escravas de acordo com a historiografia norte-americana, apontando para semelhante conclusão entre os

cativos brasileiros. Cf.: José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e

fugitivos no Grão Pará (1840-1888). Dissertação (Mestrado em História), Unicamp, Campinas, 2000, p. 08.

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111

Tabela 16 – Anúncios com suspeita de que os fugitivos tenham tentando voltar

para os locais de origem, por localidade de origem (Campinas, 1860-1888).

Localidade de Origem Número de

escravos % de fugitivos dessa origem

Campinas - -

Província de SP31

09 18,8

Sudeste32

05 12,2

Norte/Nordeste/ Centro Oeste 08 5,0

Sul 04 10,8

Essa suspeita foi encontrada em 7,7% dos anúncios, independente da origem do

fugitivo. Desses, 90,9% se concentram na década de 1870. Todavia, como pode ser verificado

na tabela 16, há uma proporção mais importante (18,8%) entre os fugitivos nascidos na

própria Província de São Paulo. Na sequência, os provenientes de outras províncias da região

Sudeste foram os que levantaram maiores suspeitas nos senhores com relação à tentativa de

retorno ao local de origem ou onde tinham familiares. Essa suposição é bem menor, todavia,

quando se trata de cativos oriundos do Sul e, sobretudo, do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do

Império. Essas diferenças proporcionais podem representar os diferentes níveis de

conhecimento e empatia que os senhores tinham por seus escravos de acordo com a origem,

podendo identificar os laços familiares que eles tinham.

Também demonstram o entendimento que os senhores tinham sobre as possibilidades

dos cativos conseguirem chegar a esses lugares, talvez pela proximidade com o município de

Campinas, ou pela existência de boas estradas que levavam para esses lugares. Desse modo, é

sintomático que essa suspeita seja muito maior, por exemplo, para os escravos provenientes

do Sul do que do Norte, uma vez que existia um importante contato terrestre entre as

províncias sulistas e o município campineiro através dos caminhos do charque.33

Todavia, além de suscitar proposições sobre o entendimento dos escravocratas, esses

dados indicam que a experiência de ser traficado dentro da mesma região ou província

poderia trazer possibilidades diferenciadas daquelas de quem havia sido comercializado no

tráfico inter-regional, uma vez que o retorno à terra natal seria muito mais difícil nesse último

caso.

31

Não inclui os nascidos em Campinas. 32

Não inclui os nascidos na Província de São Paulo. 33

Rafael da Cunha Scheffer. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias

microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado em História), Unicamp, Campinas,

2012.

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112

Além do desejo de reunião da família, os motivos que levavam um escravo a fugir

eram variados. Em especial no caso dos forasteiros, também podemos considerar a negação

das políticas de domínio senhorial no município paulista, muitas vezes consideradas

inaceitáveis por uma população escrava que vinha de realidades com ritmos de trabalho e

relações escravistas diferentes.34

Uma história de 1873 ajuda a entender essas razões. Em 1873, o capitão Cândido José

Leite Bueno adquiriu um grupo de 13 escravos crioulos, vindos do Maranhão, Rio de Janeiro

e Bahia, com idades entre 11 e 25 anos, todos homens. Mal sabia o capitão que essa compra

lhe custaria mais caro que os réis pagos ao procurador João Mourthé.35

Explico. Entre os cativos comprados estavam o maranhense José e o fluminense

Brasílio, que não contentes com sua venda para o capitão, fugiram logo em seguida com

destino à cidade de São Paulo. O objetivo era solicitar ao Delegado de Polícia que obrigasse o

senhor a vendê-los, “visto não fazer (...) gosto em servir a seu senhor”.36

Todavia, o Delegado

prendeu os fugitivos e mandou avisar ao senhor para ir buscá-los. Quando chegaram à casa do

senhor, ele lhes disse que “ele não comprava escravos para vender”.37

Depois mandou que

João Alemão levasse os fugitivos para a fazenda da Atibaia, onde receberiam o castigo devido

pela fuga. No caminho, um crime aconteceu: os cativos mataram o condutor.

Os dois cativos vinham de fora da província paulista: Brasílio era do Rio de Janeiro e

José vinha de ainda mais longe, do Maranhão. O motivo alegado para o crime se mistura com

a razão pela qual os dois forasteiros fugiram, na tentativa de trocar de senhor. Brasílio afirmou

em juízo que “praticaram este ato não só pelo mau trato que recebiam de seu senhor moço

administrador da Fazenda e como pelo mau trato que recebiam do Alemão no caminho”.38

Devolvidos ao senhor, os cativos José e Brasílio não alcançaram seu objetivo com a

fuga, uma vez que não consta sua venda nos registros de meia sisa. Aliás, o capitão Leite

Bueno parece que realmente “não comprava escravos para vender”, haja vista não ter

realizado nenhuma venda de escravos em todo o período coberto pelos dados da meia sisa,

34

Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies, slave experience, and the

politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal slave trades in the

Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70. 35

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1873. CMU, CRC. 36

“Auto de perguntas ao réu José”. Processo Crime. Réus: José e Brasílio, escravos de Candido José Leite

Bueno, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 010. 37

“Auto de perguntas ao réu José”. Processo Crime. Réus: José e Brasílio, escravos de Candido José Leite

Bueno, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 010. 38

“Auto de perguntas ao réu Basílio”. Processo Crime. Réus: José e Brasílio, escravos de Candido José Leite

Bueno, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 010.

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113

configurando-se como um grande comprador de mão-de-obra, já que, entre os anos 1860 e

1874 adquiriu 121 escravos.39

Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade, também fugiu para se dirigir à polícia,

mas isso aconteceu após ter ferido o feitor escravo Joaquim com uma facada.40

A fuga após o

crime, em busca da autoridade policial era uma prática comum, como é possível perceber em

vários dos autos criminais que analisamos no capítulo precedente. Todavia o processo que

julgou o delito de Paulo traz um detalhe interessante. Junto com ele outros dois cativos

fugiram para a cidade para se apresentar à Polícia, apesar de não terem tido parte no delito.

Manuel e Casimiro tinham fugido da fazenda de Franco de Andrade antes que Paulo agredisse

o feitor, mas pelo mesmo motivo que o levou a fazer isso. Vejamos o relato do cativo:

“achavam-se os escravos trabalhadores da fazenda formados no eito, (...)

quando sem ele interrogado saber o motivo, seu senhor Major João Francisco

de Andrade Franco, mandara formar a escravatura e tirar a camisa de cada um

ordenando aos feitores Joaquim e Celso, ambos escravos, que tocassem da

direita um e da esquerda outro, sendo que os pacientes todos, inclusive ele

interrogado, levaram 6 relhadas cada um; que novamente seu dito senhor

mandou reproduzir mais seis relhadas em cada um; que alguns ele interrogado

viu apanhar seis, como disse, e não seis, (...) que ao chegar novamente sua vez

ele interrogado saiu da fila e ajoelhou-se perante seu senhor para que ele

perdoasse essas seis relhadas; que a resposta que ouviu do seu senhor foi

ordem ao feitor Joaquim para aplicar nele interrogado cem relhadas; que

tomado de medo de apanhar tão grande número de relhadas, puxou da faca e

agrediu o feitor, não para matá-lo, que o poderia fazer se quisesse, quando o

feitor caiu, mas tão somente para fazer sangue no feitor como meio de se livrar

do excessivo castigo que, se não fosse esse fato das facadas, por certo que

ainda hoje estaria sofrendo. (...) Perguntado que destino levava quando foi

preso nesta cidade? Respondeu que depois dele interrogado ter cometido o

crime encontrara-se no mato com Manoel e Casimiro que haviam fugido da

fila antes desses fatos para evitar o castigo, e então uniu-se com eles e

combinaram-se para virem a cidade apresentar-se ao Delegado de Polícia”.41

Paulo era forasteiro, proveniente da província do Rio Grande do Sul. O feitor ferido

também era forasteiro, oriundo do Ceará. Aqui os dois extremos se chocam. Um cativo

trabalhador de roça e outro feitor. Todavia, compartilhavam juntos a experiência de viver o

cativeiro em Campinas como forasteiros.

39

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1874. CMU, CRC. 40

Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 259, Documento 006. 41

“Auto de perguntas ao indiciado Paulo”. Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade,

Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 006, grifos nossos.

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114

Essas histórias revelam uma motivação ligada ao tráfico interprovincial e um ponto em

comum entre os crimes e as fugas escravas. Vindos em geral de áreas urbanas e pequenas

propriedades, os forasteiros tinham dificuldade de adaptação aos ritmos de trabalho impostos

pela ambição senhorial e à intensa fiscalização e disciplina nas fazendas de Campinas.42

O depoimento do feitor agredido é bem claro nesse sentido. Contou que “o réu

presente e mais outros companheiros estavam ficando atrasados no eito de capina” e por isso

receberam os castigos. Sobre o comportamento de Paulo na fazenda, disse que quando ele era

castigado “ficava amuado, tanto que nessas ocasiões nem se alimentava”.43

A fuga coletiva em direção à polícia também foi um ponto em comum nas histórias de

Paulo, Manuel, Casimiro, Brasílio e José, apesar de ter acontecido em momentos diferentes

com relação à execução do crime. Paulo pretendia dar parte da agressão que cometeu e assim

evitar a punição privada do senhor.44

De modo semelhante, Manuel e Casimiro, bem como

Brasílio e José, viam na fuga em direção à autoridade policial uma forma possível de limitar o

arbítrio senhorial sobre seus corpos.

3.2. Aliados nas fugas

Bezerra Neto identificou as fugas em grupos como uma das principais características

da resistência escrava no período de 1840-1860, na província paraense, senão na própria

Amazônia.45

No período posterior, de 1860-1888, todavia, o autor percebeu uma diminuição

relativa das fugas em grupos.46

Eduardo Silva também chamou a atenção para a maior

incidência de fugas individuais em São Paulo, sobretudo nas ultimas décadas do período

escravista.47

Os dados compilados na tabela 17 mostram que, também em Campinas, muitos

escravos fugiram sozinhos nesse período. Por outro lado, o número de cativos que fugiram

acompanhados também foi bastante grande, representando 46,4% dos fugitivos. E essa

42

Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade…”, op. cit. 43

“Auto de perguntas ao ofendido Joaquim”. Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de

Andrade, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 006. 44

Como observado no capítulo 2 desta Dissertação, a ida à polícia após crimes enquadrados na lei de 10 de

junho de 1835 esteve muitas vezes relacionada à tentativa de proteção frente ao arbítrio senhorial. Para uma

discussão detalhada sobre essa prática, conferir Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p.

70; Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit., p. 224-5. 45

José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 133. 46

José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 193-4. 47

João José Reis e Eduardo Silva. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo,

Companhia das Letras, 1989, p. 77.

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115

proporção se inverte quando se trata dos forasteiros: 54,7% deles fugiram em duplas ou

grupos maiores, enquanto essa proporção é de 27,3% entre os campineiros.

Tabela 17 – Distribuição dos escravos em fugas coletivas e individuais, segundo a

década (Campinas, 1860-1888).

Período

Escravos que fugiram

sozinhos Escravos que fugiram acompanhados

N % N %

Década de 1860 04 57,1 03 42,9

Década de 1870 280 53,2 246 46,8

Década de 1880 43 55,8 34 44,2

Total geral48

327 53,6 283 46,4

A diferença proporcional entre as fugas coletivas de forasteiros e campineiros é um

dado bastante relevante, que pode estar relacionado a dois fatores. Primeiro, o fato de que há

um número muito maior de publicações comunicando a evasão de forasteiros do que de

campineiros, o que por si só já diminui, estatisticamente, a possibilidade de encontrar uma

grande proporção de fugas em grupos entre os campineiros. Em segundo lugar, todavia,

podemos sugerir que os forasteiros tenham sido prodigiosos em construir redes de

solidariedade em torno do desejo de escapulir do domínio senhorial.

O maior grupo de cativos cuja evasão foi anunciada na Gazeta de Campinas conta

uma história bastante interessante. Eram 19 cativos que fugiram juntos da Fazenda do Bom

Café, em Ouro Fino, Minas Gerais, no cair da noite de 08 de julho de 1877, levando consigo 5

a 6 animais com carga e de montaria.49

De acordo com o administrador da fazenda, os

fugitivos queriam ser vendidos em Campinas e, por isso, teriam fugido com destino ao

município paulista. O administrador destacou ainda que esses cativos eram muito conhecidos

na Fazenda das Dores e arredores. O grupo era formado de pessoas jovens, com idades

48

Nesta tabela foram contabilizados todos os fugitivos que aparecem nos anúncios publicados na Gazeta de

Campinas, inclusive os reincidentes, elevando o total de pessoas fugidas para 610. 49

Anúncio de fuga dos escravos Ambrósio, Benedita, Benedito, Bonifácio, Crispim, Eva, Jesuíno, João

Candimba, José, Justina, Luísa, Mariano, Martinho, Paulo, Pedro, Pulquera, Sérgio, Teodoro e Vicência. Gazeta

de Campinas, nº 1080, 12 de julho de 1877. Estes escravos não foram contabilizados na tabela 3.7, pois o local

da fuga não foi Campinas, mas sim Minas Gerais.

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116

(identificadas) entre 12 e 20 anos. Havia três casais na caravana, um deles levava o filho de 12

anos. Entre eles havia um africano, um baiano, um mineiro e outros 16 crioulos cuja

localidade de origem não foi informada no anúncio.

Esta história mostra, como já observou Bezerra Neto, que há um importante nível de

planejamento e organização política em planos de evasão como este, “os quais eram

alicerçados nos laços de camaradagem enraizados nas experiências vivenciadas na

escravidão”.50

Afinal, não devia ser nada fácil se locomover de modo oculto em uma caravana

tão grande de pessoas e animais andando pelas estradas e matas de Minas Gerais até

Campinas. As diferenças de origem não parecem ter sido nenhum obstáculo para que assim o

fizessem.

O conhecimento do administrador a respeito do desejo dos cativos de serem vendidos

em Campinas é bastante curioso. É provável que o grupo tenha tentado negociar tal anseio

com o senhor antes de intentar a fuga, que então se configurou como alternativa diante do

insucesso de um acordo privado com o senhor.

As alianças que os cativos construíam para as fugas poderiam ser não apenas os

parceiros de evasão, que se uniam em fugas coletivas, mas também outros escravos da senzala

que os ajudavam a se esconder ou lhes forneciam alimentos,51

e também indivíduos libertos

ou livres. A bibliografia mostra inclusive outros senhores que escondiam fugitivos ou os

contratavam para seu próprio serviço. Dessa forma, os cativos em fuga poderiam de certa

forma exercer a liberdade.52

A prática de auxiliar e acoitar os escravos fugitivos se ampliou ao longo do tempo,

ainda que os grupos abolicionistas só o tenham assumido a partir de 1887, haja vista sua

ilegalidade.53

Maria Helena Machado considera, todavia, que os caifazes – grupo que se

tornou famoso por auxiliar as fugas de escravos em São Paulo – teriam começado a agir já em

1883.54

Os chamados acoutadores eram uma pedra no sapato senhorial. O anúncio da fuga do

escravo Belizário traz uma narrativa bastante interessante a esse respeito.

50

José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 134. 51

Por exemplo, Luís, que estava fugido para evitar castigos e “vinha todas as noites ter com alguns escravos seus

companheiros”. O caso será explorado em detalhes posteriormente. Cf.: Processo Crime. Réu: Luís, escravo de

Joaquim Teodoro Teixeira, Campinas, 1865. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 212, Documento 014. 52

José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 175. Sobre os escravos fugidos que acabavam

servindo a outro senhor ver também Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: Escravos e Senhores na capitania

do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 244; Mary C. Karasch. A vida dos escravos

no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 407. 53

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: Os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.

São Paulo, Edusp, 2010, p. 135. 54

Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit.,p. 147.

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“Este escravo esteve na véspera da fuga conversando com um sujeito

na beira da estrada que vem de Piracicaba ao Rio Claro passando por terras do

abaixo assinado. Esse sujeito é vendedor de escravos, ou dá-se como tal, e

desconfia-se que tenha induzido o escravo a fugir ou que o tenha acoutado”.55

Belizário era campineiro e o senhor era de Piracicaba. Se a suspeita do senhor era

verdadeira, é possível supor que Belizário buscasse no tal vendedor de escravos uma

possibilidade de volta ao município de Campinas.

Outro caso curioso em que o senhor anunciante menciona um sedutor de escravos é do

escravo José, da firma Viana & Irmãos, em Limeira. Ele teria sido induzido a fugir por “um

mulato claro, forro ou livre, mineiro, de nome Martinho Jerônimo, que servia de carreiro e

parece ter roubado um burro arreado”.56

A origem de José não é informada no anúncio, mas

destaca-se que ele havia sido comprado em Campinas, do negociante João Mourthé, e, por

isso, devia ser conhecido na cidade e provavelmente teria se dirigido para lá. Há também a

suspeita de que tenha se dirigido para Mogi Mirim ou para São Paulo.

O pequeno Isaías, que fugiu em 1874, quando tinha por volta de 12 anos, também teria

tido um sedutor, mas dessa vez um muito especial. Ele teria sido induzido a fugir “pelo

próprio pai, morador então em Cambuí, conhecido por aí por João Marceneiro, desaparecendo

deste lugar no fim do mesmo ano de 1874”.57

A comunicação com os elementos escravos, libertos e livres da sociedade foi

especialmente observada pela historiografia a respeito da sobrevivência das comunidades de

fugitivos no período escravista.58

Em Campinas, teve-se notícia de um grande projeto de aquilombamento em 1886,

quando a captura do fugitivo José Mourthé resultou numa série de revelações assustadoras

para os munícipes.59

Fugido da fazenda do Major João Francisco de Andrade Franco por

cinco meses, José se uniu a outros seis quilombolas,60

sendo quatro cativos do mesmo senhor

e outros dois cativos de outros dois senhores. Os fugitivos passavam as noites em um antigo

55

Anúncio de fuga do escravo Belizário. Gazeta de Campinas, nº 947, 25 de janeiro de 1877. 56

Anúncio de fuga do escravo José. Gazeta de Campinas, nº 1065, 22 de junho de 1877. 57

Anúncio de fuga do escravo Isaías. Gazeta de Campinas, nº 1012, 19 de abril de 1877. 58

Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (séculos XVII-XIX). Tese

(Doutorado em História), Unicamp, Campinas, 1997, p. 02, 11; Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de

Janeiro, op. cit., p. 411. 59

Nota-se que o sobrenome do cativo é o mesmo do grande negociante de escravos de Campinas, João Mourthé.

Todavia, não foi possível identificar alguma relação que o escravo José tenha tido com ele nas fontes de que

dispomos. Processo Crime. Réu: José Mourthé, escravo de João Francisco de Andrade Franco, Campinas,

1886. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 005. 60

A palavra ‘quilombola’ é utilizada no processo, porém não é possível sabermos se saiu de fato da boca do réu

interrogado ou se foi escolhida pelo escrivão que fez a transcrição.

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galinheiro nas terras do Major, “que tinha de servir de quilombo a eles até a próxima segunda-

feira de hoje a oito dias”.61

Mourthé contou que eles “esperavam se reunir com outros muitos escravos do bairro

das Cabras e seguirem para (...) [a] Fazenda de Rafael Luís Pereira da Silva no lugar chamado

Coqueiros, sítio de Inocêncio Queirós, onde deviam se internar com grande quilombo”.62

As

declarações de José Mourthé foram parar nos jornais e repercutiram causando grande temor

no município.63

Dias depois, o escravo Messias, pertencente a João Novaes de Camargo, teve

sua perna amputada em razão de tiros de revólver disparados por Augusto Camargo,

administrador da fazenda das Palmeiras. O interrogatório tomado ao réu é longo, mas vale a

pena transcrevê-lo na íntegra, já que elucida a repercussão causada pelo depoimento de José

Mourthé.

“que na sexta-feira da semana em que os jornais desta cidade anunciaram as

declarações feitas à polícia pelo quilombola José Mourthé, que acha-se [sic]

preso por haver resistido à prisão, teve o interrogado receio de saber que na

fazenda que administra acoutavam-se dois quilombos em um galinheiro do

pasto, já abandonado e que servira para hospital de bexiguentos, os quais

foram vistos ali completamente armados com uma garrucha de dois canos e

outra de um, pelos os [sic] escravos da fazenda de nomes Cirilo e Elias, os

quais aterrados de ali encontrá-los, correram em gritos a dar parte ao

interrogado que logo veio ver e encontrou vestígios como fossem o lugar onde

estavam deitados conservava-se ainda quente; dois pedaços de cobertores

deixados por eles quilombolas; uma leitoa morta e o virado preparado da

cabeça da mesma leitoa. Que desde essa noite a fazenda esteve em sobressalto,

pois que a fama desses quilombolas aterrava a todos pelas más façanhas, como

é público na Província inteira. Que na qualidade de administrador secundário,

pois que o principal encarregado acha-se ausente do Município, ele

interrogado não dormia conservando-se sempre vigilante, temendo que esses

quilombolas seduzissem os escravos como pretendiam, pela declaração de

José Mourthé, e que chegassem até a atentar contra a vida do interrogado,

visto como já o fizeram no Domingo ultimo dessa semana na fazenda de

Francisco Braga contra os agentes de força pública. Que descobriu às oito

horas da noite de domingo, véspera da segunda-feira que constava pelo

interrogatório de José Mourthé terem esses quilombos de reunir escravos

fugidos na fazenda da Cachoeira, o escravo desta fazenda de nome Messias

em outro galinheiro junto aquele, que servia de quilombo aos dois

encontrados, mas quando viu esse preto tomara-o por quilombola”.64

61

Mais uma vez não é possível afirmarmos com certeza se a palavra “quilombo” foi utilizada por José. “Auto de

perguntas ao réu José Mourthé”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 005. 62

“Auto de perguntas ao réu José Mourthé”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 005. 63

“Auto de perguntas ao réu Augusto Camargo”. Crime. Réu: Augusto Graciano de Camargo, Campinas, 1886.

AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 258, Documento 011. 64

Processo Crime. Réu: Augusto Graciano de Camargo, Campinas, 1886, “Auto deperguntas ao réu Augusto

Camargo” .AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 258, Documento 011.

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119

Como já afirmou Flávio dos Santos Gomes, ao invés de permanecerem isolados, os

grupos de fugitivos procuravam se manter próximos de locais que oferecessem auxílio

estratégico, seja no suprimento de gêneros alimentícios ou até mesmo para o estabelecimento

de relações socioeconômicas.65

Desse modo, afetaram toda a sociedade envolvente.66

Gomes

ainda nos lembra que, em 1886, mesmo ano da captura de Mourthé, também alcançou grande

repercussão a existência de uma comunidade de fugitivos supostamente organizada e dirigida

por abolicionistas paulistas radicais, o Quilombo do Jabaquara.67

Anos antes, em 1880, foi capturado o fugitivo Bernardino, pertencente a Joaquim

Góis.68

Ele estava fugido desde 1879, cometendo diversos delitos, sendo, por isso, indiciado

em quatro processos, por crimes de ofensa física, tentativa de homicídio e homicídio.69

Seu

interrogatório em juízo também é rico de detalhes a respeito das formas como passou o ano se

ocultando, cometendo delitos e se relacionando com diversas pessoas, livres e escravos. Ele

era baiano, mas conhecia muito bem a região, mencionando suas idas e vindas entre

Indaiatuba e Campinas, o que data de pelo menos seis anos, uma vez que menciona ter

comprado nesse tempo uma arma (garrucha) de um cativo de Indaiatuba.

Ele se uniu a outro fugitivo, Joaquim, escravo de Francisco Pompeu do Amaral, que

também era baiano e trabalhador de roça, e morava com seu senhor há 20 anos.70

Joaquim

também foi capturado e condenado em processo criminal pelo assassinato do administrador da

fazenda de seu senhor. Nas declarações que prestou em juízo, Joaquim forneceu mais pistas

sobre a área por onde se embrenhou junto com Bernardino, mostrando a capacidade de

mobilidade e ocultação dos cativos. Ele contou ter sido capturado por dois indivíduos

“em terras da fazenda de Joaquim de Sampaio Góis, deste termo, onde estava

oito dias em um rancho de palha por ele mesmo construído, havendo estado

anteriormente durante meses na fazenda vizinha de Vicente de Sampaio Góis,

e depois nos últimos três meses em terras da fazenda do Conselheiro Albino,

tendo vindo à cidade de tempos a tempos fazer compras de mantimentos”.71

65

Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos, op. cit., p. 16. 66

Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos, op. cit., p. 11. 67

Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos, op. cit., p. 564. 68

Processo Crime. Réu: Bernardino (vulgo Bernardo), escravo de Joaquim de Sampaio Gois, Campinas, 1880.

AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 243, Documento 004. 69

Processos Crime. Réu: Bernardino (vulgo Bernardo), escravo de Joaquim de Sampaio Gois, Campinas, 1880-

1882. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 243, Doc. 004; Microf. 243, Doc. 005; Microf. 244, Doc. 009; Microf. 244,

Doc. 010; Microf. 248, Doc. 005. 70

Processo Crime. Réu: Joaquim, escravo de Francisco Pompeu do Amaral, Campinas, 1881. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 247, Documento 004. Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1862. CMU,

CRC, Livro 33. 71

Processo Crime. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 247, Doc. 004.

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120

Juntos, os fugitivos construíram vários ranchos nas matas da redondeza para servirem

de esconderijo. Todavia, quando precisavam de algum gênero alimentício, um dos dois se

dirigia “tranquilamente” até à venda da cidade.

Aconteceu que Joaquim fugiu da cadeia e voltou a se esconder em um pequeno rancho

nas matas do sítio do Conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira.72

No ato de sua captura,

ele teria resistido à prisão armado de uma foice e o paisano Sebastião Dias de Almeida findou

sua vida com “um tiro de garrucha sobre a testa”.73

Mas este nem sempre foi o final das histórias de fuga. A bibliografia destaca a

possibilidade de o fugitivo retornar à propriedade senhorial contando com a intercessão de

uma pessoa “poderosa ou influente – um vizinho, senhor rico, padre ou membro de uma

irmandade religiosa” para evitar o castigo.74

Como observa Mary C. Karasch, “se essa pessoa,

conhecida como padrinho, concordasse em ajudá-lo, ia pessoalmente falar com o dono do

escravo, ou pedia por carta seu perdão. Ignorar a intervenção do padrinho e punir o escravo

era considerado um insulto”.75

Uma história contada em um processo criminal de 1871 ajuda a entender a

importância que o apadrinhamento tinha para a sociedade escravista. O sítio de Francisco

Bueno de Lacerda tinha por feitor Amaro Ferreira da Silva, “homem demasiadamente

castigador”.76

O baiano José, um dos escravos de Lacerda, após ser castigado pelo feitor por

“motivos frívolos”,77

determinou-se a fugir.

Todavia, com a fuga, José não buscava a liberdade, mas sim melhores condições de

cativeiro. Ao invés de embrenhar-se na mata como muitos outros fugitivos, José dirigiu-se até

a casa do Barão de Atibaia para pedir que ele o comprasse. O Barão disse ao escravo que o

compraria e mandou um bilhete ao senhor Lacerda para combinar a transação. O senhor, no

entanto, não concordou e mandou que o feitor e um camarada de nome João Lico de Camargo

buscassem o fugitivo. José seguiu então com o feitor e o camarada de volta para o sítio do

72

“Depoimento do Oficial de Justiça João Gonçalves Pereira”, 02/05/1881. Processo Crime. Réu: Sebastião Dias

de Almeida, Campinas, 1881. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 250, Documento 007. 73

“Depoimento do Oficial de Justiça João Gonçalves Pereira”, 02/05/1881. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 250,

Doc. 007. 74

Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, op. cit., p. 413-414. 75

Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, op. cit., p. 413-414. 76

“Perguntas feitas a José, escravo de Francisco Bueno de Lacerda”. Processo Crime. Réus: João Lico de

Camargo e Amaro Ferreira da Silva, Campinas, 1871. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 225, Documento 006. 77

“Perguntas feitas a José, escravo de Francisco Bueno de Lacerda”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc.

006.

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121

senhor sob a promessa de que “fosse sossegado porque iria apadrinhado e não sofreria

castigo”.78

Ter um padrinho podia garantir certa segurança ao fugitivo. Isso fica evidente em

outro processo de 1864, que oferece dados sobre o fugitivo Jerônimo, campineiro. Depois de

ser capturado pelo feitor escravo Benedito e outro escravo, ele seguiu o caminho de volta à

fazenda do senhor solto, isto é, sem algemas, “por ter apresentado dois bilhetes de

padrinho”.79

No episódio de 1871, todavia, o feitor Amaro Ferreira da Silva e o camarada

João Lico de Camargo agrediram José no caminho e o levaram amarrado para o sítio do

senhor.

Quando chegou ao destino, o escravo capturado foi levado para um local determinado

para curar-se de seus ferimentos. Além de não castigar o fugitivo, o senhor Lacerda dispensou

os serviços do feitor Amaro Ferreira da Silva. O desrespeito ao apadrinhamento foi

considerado tão grave que um processo criminal foi iniciado com acusação de ofensas físicas

praticadas pelo feitor e o camarada em José.

Outro episódio acontecido no mesmo ano de 1871 expõe a importância que o

apadrinhamento tinha para os cativos e as possíveis consequências do desrespeito à prática. O

caso aconteceu na fazenda de Joaquim Guedes de Godói e terminou com sua morte.80

O

escravo Camilo, natural de Santos, assassinou o senhor a golpes de enxada após ser por ele

castigado, porém contou em seu depoimento que apenas se adiantou em um projeto que era de

toda a senzala. Contou que há vários dias “conversava-se no Sítio em assassinar o seu

senhor”,81

combinação na qual também estavam presentes os escravos Gregório, Constantino,

José crioulo, Feliciano, Honorato, Jacinto e Leandro.

Quando perguntado sobre quais motivos o levaram a assassinar o seu senhor,

respondeu que

“seu senhor era mau; que não lhes dava licença alguma para plantarem, que

não lhes dava ceia, sendo que no almoço e jantar era pouca a comida; que só

lhes dava por ano uma muda de roupa e que aos Domingos agora não lhes

permitia trabalhar para fora, dando-lhes um minguado salário pelos seus

serviços. Que algum tempo saiu ele respondente e três companheiros e foram

apadrinhar-se com vizinho e que voltando foi cada um deles obrigado a pagar

78

“Perguntas feitas a José, escravo de Francisco Bueno de Lacerda”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc.

006. 79

“Perguntas a Joaquim, escravo de Francisco Teixeira Vilela”. Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de

Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864, AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 212, Documento 011. 80

Processo Crime. Réus: Camilo, Constantino e Feliciano, escravos de Joaquim Guedes de Godoi, Campinas,

1871. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 225, Documento 001. 81

Processo Crime. Réus: Camilo, Constantino e Feliciano, escravos de Joaquim Guedes de Godoi, Campinas,

1871. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 225, Documento 001.

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122

mil réis pela falha no serviço, sendo alguns dias depois açoitados por

insignificante pretexto”.82

O relato da fuga para apadrinhar-se com um vizinho se parece com o que aconteceu

com os outros casos contados acima, mas resultou na represália do senhor, sendo que os

cativos consideraram que os castigos dados alguns dias depois, “por insignificante pretexto”,

eram na realidade uma punição pela fuga. Assim, entre as características do senhor que

faziam dele um candidato à revolta de seus escravos estava o desrespeito à prática do

apadrinhamento.

Antes que fosse possível cumprir o assassinato planejado, todavia, Camilo entrou em

um conflito com o senhor e, sendo por ele agredido, “ele respondente gritou a seus parceiros

que o acudissem e o apadrinhassem porque seu senhor o matava”.83

Após ser acudido pelos

companheiros, Camilo fugiu. Porém o escravo Constantino o seguiu e lhe disse “que não

fugisse [e] deu lhe uma enxada aconselhando-o a que desta se servisse caso seu senhor

continuasse a não atender os padrinhos”.84

Neste caso, o relato se refere ao apadrinhamento

dos parceiros de cativeiro, que intercediam para que o castigo não acontecesse. Camilo

“aceitou a enxada oferecida por Constantino e (...) voltando por entre seus

parceiros ia recolher-se à sua senzala [mas] seu senhor o reconheceu e como

seus parceiros não o agarrassem para amarrar apesar das repetidas ordens do

mesmo seu senhor, este avançou sobre ele respondente deu uma [ilegível]

bordoada e ele respondente voltando-se deu-lhe [sic] com a enxada o que o fez

cambalear ferido que então os outros seus parceiros puseram-se a dar com

cacete ou pau e pedras no mesmo seu senhor”.85

Executado o assassinato do senhor, Camilo fugiu para dar parte do ocorrido à Justiça

“por temer que todos se confessassem contra ele”.86

No processo, foram indiciados Camilo,

Constantino e Feliciano. Camilo era forasteiro, natural de Santos. Não foi encontrada

nenhuma informação sobre a origem de Feliciano, e sobre Constantino sabemos somente que

era crioulo e estava na fazenda há sete anos.

Pelo relato do conflito, percebe-se que o apadrinhamento era uma prática muito

valorizada nessa escravaria, sendo utilizada tanto no momento da fuga e busca de pessoas

influentes (vizinhos da fazenda), quanto entre os próprios parceiros de cativeiro. E geralmente

com o objetivo de proteger o apadrinhado da violência e arbitrariedade do senhor.

82

“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25. 83

“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25. 84

“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25, grifos nossos. 85

“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25. 86

“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25.

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123

Retomando esses e outros autos criminais que mencionam a importância do

apadrinhamento, podemos observar que as origens dos cativos eram diversas: José era baiano,

Camilo era natural de Santos e Jerônimo de Campinas. Pelo menos nesses casos ser forasteiro

não implicou uma dificuldade diferente para conseguir padrinhos, o que pode estar

relacionado à quantidade de tempo que estavam no município, bem como as múltiplas

solidariedades que foram construindo no cativeiro. Como já observado nos capítulos

precedentes, o tempo de moradia era um fator bastante importante no que diz respeito à

adaptação dos forasteiros. Esse aspecto será melhor explorado no item que segue.

3.3. Momento da fuga

A partir da tabela 18, pode-se notar uma importante relação entre o momento em que

as fugas ocorriam e a experiência de compra e venda na vida desses cativos.

Tabela 18 – Tempo de moradia dos escravos nos anúncios de fuga, por origem

dos fugitivos (Campinas, 1860-1888).

Tempo de

moradia

Número de

escravos em

geral

Campineiros Forasteiros

N % N %

Menos de um

ano 63 - - 53 33,5

1 a 5 anos 91 04 80,0 76 48,1

6 a 10 anos 27 01 20,0 19 12,0

11 a 15 anos 13 - - 08 5,1

16 a 20 anos 05 - - 02 1,3

Mais de 20

anos - - - - -

Total com

tempo de

moradia

informado

199 05 100 158 100,0

Tanto entre os campineiros que passaram por transações de compra e venda, quanto

entre os forasteiros, há uma maior incidência de fugas nos primeiros cinco anos em poder do

novo senhor, chegando a 81,6% no caso dos fugitivos que não haviam nascido em Campinas.

As fugas logo após a aquisição (menos de um ano de tempo de moradia) só aconteceram entre

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124

os forasteiros, tendo um peso proporcional bastante significativo. Isso nos permite supor com

alguma segurança que essas fugas representam uma reação mais imediata ao tráfico interno,

como recusa à permanência nos domínios do novo senhor, aliada ao anseio de retornar para a

terra natal.

Além dos momentos de compra e venda, outra situação que pode ter motivado fugas

escravas foi o falecimento do senhor, pois era cercado de incertezas a respeito do futuro que

seria decidido pela divisão entre os herdeiros, podendo resultar na separação de famílias ou na

venda para saldar dívidas da herança. Apesar de Cristiany M. Rocha ter verificado que os

senhores campineiros costumavam preservar as famílias escravas na hora da partilha, não há

evidências de que esse cuidado tenha se estendido para as relações conjugais não formalizadas

pela Igreja, por exemplo. Além disso, temos que considerar que havia nas senzalas a

constituição de laços comunitários maiores que as famílias nucleares observadas pela

historiadora e que poderiam, de fato ser destruídos pela partilha entre os herdeiros.87

Apesar de ser uma informação difícil de ser encontrada nas fontes de que dispomos,

foi possível identificar pelo menos 23 escravos que fugiram logo após a morte do senhor.88

Entre os crioulos (12 indivíduos), todos eram forasteiros. Há também um africano e os outros

dez não tiveram a origem informada.

O anúncio de fuga de outro Brasílio e também de Sebastião, feito pelo proprietário

Venâncio Correia de Paula Viana em 1874, traz um relato bastante curioso sobre a reação

cativa diante do falecimento do senhor. Paula Viana afirmou que esses e outros cativos faziam

parte de uma herança que ele recebera. O processo da partilha ainda não tinha sido finalizado,

mas ficou acordado entre os herdeiros que Brasílio e Sebastião pertenciam a Paula Viana.

Todavia, os cativos:

“já est[iveram] por muito tempo trabalhando sem o seu consentimento e

ordem em casa de um dos coerdeiros, fato este que tem dado azo e motivo

para que não queiram eles mais parar em sua fazenda, continuando a fazer

fugidas pela proteção escandalosa com que contam”.89

Para os cativos, portanto, esse acordo entre os herdeiros não estava assim tão bem

resolvido, e se aproveitavam da instabilidade do momento para decidir a quem servir, usando

a fuga como instrumento de pressão para intervirem em seus destinos.

87

Cristiany M. Rocha. Gerações da senzala: famílias e estratégias escravas no contexto dos tráficos africanos e

interno, Campinas, século XIX. Tese (Doutorado em História), Campinas, Unicamp, 2004, p. 57. 88

Foram considerados aqui anúncios em que o nome do senhor aparece como finado, falecido, ou "herança" ou

"herdeiros". 89

Anúncio de fuga dos escravos Brasílio e Sebastião. Gazeta de Campinas, nº 488, 26 de agosto de 1874.

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125

Ainda com o objetivo de compreender em que momentos esses cativos fugiam,

fizemos o cruzamento entre os dados dos envolvidos em crimes (como réus ou vítimas) e os

anúncios de fuga na Gazeta de Campinas. A pesquisa retornou apenas 12 indivíduos, o que

vai exposto na tabela 19. Cabe destacar, todavia, que oito deles (66,7%) eram forasteiros. Há

ainda um africano e um crioulo, e outros dois fugitivos cuja origem não foi informada.

Tabela 19 – Fugitivos que aparecem em crimes e Ações de Liberdade, por origem

(Campinas, 1860-1888).

Número de

fugitivos

em geral

% Número de

campineiros %

Número de

forasteiros %

Crimes90

12 1,5 - - 08 66,7

Ações de

liberdade 02 0,25 - - - -

Total 14 1,8 - - 08 57,1

Esses anúncios de fuga, de modo geral, não diziam respeito àquelas que aconteciam

depois de um crime, mas sim às que ocorriam em momentos diversos na trajetória de vida

desses sujeitos. Matias, por exemplo, fugiu da fazenda do senhor José de Barros Penteado, em

1873, quando estava em seu poder há 13 anos.91

Ele foi capturado, mas fugiu novamente no

ano seguinte. Três dias após a nova fuga, todavia, ele retornou armado à fazenda e agrediu ao

feitor escravo Emídio.92

A vítima contou que a motivação do crime foi porque “ele se opunha

que Matias entrasse ocultamente à noite na casa do senhor a fim de manter relações ilícitas

com a mulata Josefa”. Ou seja, Matias havia fugido novamente, mas não se distanciava da

propriedade senhorial para não se separar da amada.

Após o crime, Matias foi vendido a Américo Ferraz de Camargo, em Amparo. Mas ele

não permaneceu por lá durante muito tempo. Quatro anos após a nova venda, em 1882, o

cativo fugiu mais uma vez.93

O ano de sua nova fuga coincide com a abertura do inventário do

antigo senhor, José de Barros Penteado, e pode ter sido motivada pelo medo de que a amada

Josefa fosse enviada para longe pela partilha.

Procuramos nos autos criminais as fugas ligadas diretamente aos crimes e

encontramos pelo menos dois escravos réus que fugiram após cometerem atos criminosos nas

90

Inclui 11 réus e uma vítima, cuja origem não foi informada. 91

Anúncio de fuga do escravo Matias. Gazeta de Campinas, nº 345, 1873. 92

Processo Crime. Réu: Matias, escravo de José de Barros Penteado, Campinas, 1874. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 232, Documento 009. 93

Anúncio de fuga do escravo Matias. Gazeta de Campinas, nº 2461, 29 de março de 1882.

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126

fazendas de seus senhores,94

e outros 12 que estavam fugidos e acabaram se envolvendo em

delitos quando foram encontrados e capturados. O caso já mencionado de Jerônimo95

é um

exemplo de crime cometido durante a captura, assim como o de José Mourthé,96

uma vez que

este foi acusado de resistência à prisão.

Outros dois casos ainda merecem ser contados. O primeiro aconteceu em 1865 e foi

protagonizado por Luís, escravo de Joaquim Teodoro Teixeira, contra o feitor João Batista.97

Luís estava fugido para evitar castigos e “vinha [até a fazenda] todas as noites ter com alguns

escravos seus companheiros”.98

Mas, ao contrário dos outros casos mencionados, Luís não assassinou o feitor quando

este o capturou. Além de lhe fornecer alimento, os companheiros que Luís encontrava todas

as noites lhe deram um peculiar conselho: “que assassinasse o feitor, visto que o mesmo feitor

prometera castigá-lo quando aparecesse, embora viesse apadrinhado [,] como Jesus Cristo”.99

O destaque dado ao fato de que João Batista não respeitaria algum padrinho que Luís

trouxesse parece ser determinante para que ele resolvesse cometer o crime, uma vez que

atestava a crueldade do feitor. Também é intrigante que Luís preferisse cometer o homicídio

ao invés de investir em uma fuga mais complexa se embrenhando pelas matas dos arredores.

Com certeza, o temor da captura e do castigo que o aguardava pesou para essa decisão. Os

outros escravos da fazenda também ajudaram Luís a escolher a melhor hora para o crime:

“Resolvendo-se ele respondente a dar cabo do feitor, alguns escravos

lhe disseram que escolhesse para isso domingo dia cinco do corrente, visto

que sendo eles os mais vivos da fazenda, e tendo de ir pregar [?] no Laranjal

domingo de tarde era boa a ocasião para o que pretendia”.

O restante do interrogatório nos mostra o papel de cada cativo companheiro na tarefa

de assassinato do feitor:

“Assim pois decidido a realizar a morte no domingo foi a noite à

fazenda de seu senhor, e encontrou-se com o escravo Adão da mesma fazenda,

o qual lhe disse que esperasse atrás da senzala que ele Adão lhe viria contar

quando o feitor fosse cear, ou quando estivesse dormindo, e que tendo ele

respondente se ocultado atrás da senzala seu companheiro, ou parceiro

94

Aqui estamos contabilizando somente os que fugiram para se ocultar, não incluindo os que fugiram para se

entregar à autoridade policial. 95

Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 212, Documento 011. 96

Processo Crime. Réu: José Mourthé, escravo de João Francisco de Andrade Franco, Campinas, 1886. AEL,

CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 005. 97

Processo Crime. Réu: Luís, escravo de Joaquim Teodoro Teixeira, Campinas, 1865. AEL, CSP, ACI,

Microfilme CSP 212, Documento 014. 98

“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014. 99

“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014, grifo nosso.

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127

Bonifácio lhe trouxe uma porção de virado e uma garrafa de aguardente, da

qual bebeu seguramente a metade. Pelas nove horas pouco mais ou menos

veio ter com ele o escravo Adão acima mencionado, e lhe disse que o feitor

não quisera cear, e já estava dormindo [.] em consequência [,] tendo ele

respondente se dirigido à casa em que estava o feitor, e que estava aberta,

entrou, e com uma mão de pilão que lhe fora fornecida pelo mesmo Adão

descarregara uma pancada sobre a cabeça do feitor adormecido, e

conservando-se ele imóvel, deu-lhe segunda pancada na cara, e tendo se

apoderado da faca do mesmo feitor que se achava em cima de uma cadeira, e

levantando-lhe a camisa cravou-lhe duas facadas do lado esquerdo, e essa faca

é a mesma que trazia na ocasião em que foi preso.”100

Depois de consumado o assassinato, Luís também não fugiu imediatamente, pelo

contrário, ele permaneceu nas imediações:

“foi à senzala de seus parceiros Adão e Bonifácio, e com eles passou a noite, e

que ao romper do dia retirou-se para o mato. Ao amanhecer se dirigiu à casa

de Francisco Xavier dos Santos a fim de relatar ao seu parceiro Paulo, escravo

do mesmo Santos, com quem entretinha relação de amizade, o fato que

acabara de praticar, e convidar o mesmo para fugirem juntos. Com dito Paulo

passou ele respondente a noite e tendo-lhe o mesmo convidado a vir na noite

seguinte depois que os brancos estivessem dormindo, ele assim o fez, e

estando dentro da senzala, só, visto que Paulo havia saído, foi preso por dois

carpinteiros, um de nome Luiz e outro Francisco”.101

As declarações de Luís mostram um pouco sobre como se dava a dinâmica vivida pelo

fugitivo. Ele recebia alimentos de seus parceiros e passava a noite dentro da senzala, podendo

ainda visitar outro companheiro na região. Aparentemente não estava disposto a se distanciar

da fazenda, a não ser após o crime, quando convidou Paulo para fugirem juntos. Os

companheiros citados no interrogatório, Adão e Bonifácio, estavam na fazenda há dois

anos,102

e provavelmente nutriam juntos o desgosto pelo feitor. Eles eram crioulos, mas não

foi possível identificar o local de seu nascimento.

Luís era natural do Rio de Janeiro, e havia sido comprado pelo senhor Joaquim

Teodoro Teixeira no mesmo ano do homicídio.103

O senhor, todavia, abriu mão de seus

direitos sobre o escravo logo no início do processo. Provavelmente decidiu que não valia a

pena os gastos do processo para defender aquele cativo que assassinara seu feitor.

100

“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014. 101

“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014. 102

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1863. Centro de Memória da Unicamp (CMU),

Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC), Livro 35. 103

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865. CMU, CRC.

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128

O fato de Luís ser forasteiro de outra província pode ter pesado sobre a decisão de

matar o feitor, uma vez que talvez não visse como possível se esconder por muito tempo, ou

não tivesse em mente a ideia de voltar à terra natal. Na verdade não sabemos há quanto tempo

Luís estava em Campinas. Ele havia sido comprado há pouco tempo pelo senhor Joaquim

Teodoro Teixeira, mas antes havia pertencido a Francisco Egídio de Sousa Aranha, também

morador no município, não se sabe por quanto tempo.104

O conhecimento das áreas em torno

do município era importante para perpetuar a fuga, o que pode ter agido sobre a relutância de

Luís de se afastar da fazenda de Teodoro Teixeira.

Isso fica evidente nas palavras de Ambrósio, escravo da firma social Bierrembach &

Irmão, que foi capaz de seguir para Itu, Sorocaba e Porto Feliz em sua empreitada de fuga, em

1873.105

Ele era natural da cidade de São Paulo e seu conhecimento da região em torno de

Campinas é notável. Isso talvez possa ser explicado por sua permanência em poder da firma

social por 15 anos e exercendo uma ocupação especializada e urbana (oficial de chapeleiro),

que provavelmente lhe dava certa mobilidade. Por outro lado, ser conhecido no município e

arredores poderia prejudicar a ocultação dos fugitivos, como expõe Gebara, destacando a

importância da publicação dos anúncios de fuga nos jornais como forma de repressão

comunitária a essa forma de resistência escrava.106

O fato é que conhecer a região foi essencial para que Ambrósio pudesse alongar tanto

sua fuga. Todavia, o senhor João Bierrembach armou um cerco para capturá-lo, o que

culminou com a morte de um oficial da firma social que estava envolvido na captura. Preso

após o homicídio, Ambrósio ainda conseguiu fugir da cadeia alguns meses depois,

acompanhado de um pardo que também cumpria sentença.107

Era um escravo valioso, uma

vez que a recompensa oferecida por sua captura foi de 200 mil réis,108

valor pouco usual para

a época, sendo que a mesma firma havia oferecido valores de 50 e 100 mil réis pela captura de

outros dois escravos fugidos anunciados na Gazeta.109

Ele foi recapturado, dessa vez em

104

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865. CMU, CRC. 105

“Perguntas ao réu Ambrósio”. Processo Crime. Réu: Ambrósio, escravo de Bierrembach& Irmão, Campinas,

1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 009. 106

Ademir Gebara. “Escravos: fugas e fugas”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 6, nº 12, mar/ago.

1986, p. 96. 107

Anúncio de fuga do escravo Ambrósio. Gazeta de Campinas, out/1873, nº 404. 108

Anúncio de fuga do escravo Ambrósio. Gazeta de Campinas, out/1873, nº 404. 109

Anúncio de fuga do escravo Alexandre, Gazeta de Campinas, nº 1124, 07 de setembro de 1877; Anúncio de

fuga do escravo Rodolfo. Gazeta de Campinas, nº 885, 08 de novembro de 1876. Além disso, somente outros

cinco escravos receberam a indicação de recompensa de tal monta no ano de 1873, para outro foi ofertado 150

mil réis e os outros 63 anúncios daquele ano ofereceram valores entre 30 e 100 mil réis.

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129

Botucatu. Novamente posto na cadeia, Ambrósio tentou cometer suicídio diversas vezes,

conseguindo realizar o intento no ano seguinte (1874).110

Apenas dois cativos que tiveram sua fuga noticiada na Gazeta de Campinas iniciaram

ação judicial para aquisição da liberdade nesse período. Curiosamente, duas mulheres

africanas: Generosa e Narcisa.

Generosa era escrava de João Guimarães Bahia e iniciou Ação de Liberdade por

tráfico ilegal em 1881, tendo fugido meses antes.111

Ela estava em poder desse senhor há nove

anos, tendo sido comprada no Rio de Janeiro. Sendo centro do governo imperial e uma das

cidades mais povoadas por africanos e afrodescendentes na segunda metade do século XIX, a

corte do Rio de Janeiro era um lugar profícuo para a circulação de informações e é provável

que lá Generosa tenha plantado em sua mente a ideia de buscar na justiça o reconhecimento

de sua liberdade. O argumento que ela usou no Tribunal de Justiça de Campinas, qual seja, o

tráfico ilegal após a Lei de 1831 estava sendo discutido em vários ambientes, de modo

especial na corte do Rio de Janeiro e em São Paulo.112

Quando trazida para a província paulista, Generosa deve ter considerado que era

chegada a hora de ir à justiça. Sugerimos isso levando em conta que a venda para Guimarães

Bahia pode tê-la separado das redes de amizade e parentesco elaboradas ao longo dos anos

desde seu desembarque no Brasil. Ou pode ainda ter-lhe feito perder conquistas acordadas

com o antigo senhor, o que tornava urgente a aquisição da liberdade. Além disso, a africana

pode ter visto uma oportunidade de sucesso nessa empreitada, haja vista a maior proximidade

com a cidade de São Paulo, que estava se tornando famosa por iniciativas judiciais em torno

do contrabando de africanos no período pós Lei de 1831, com a participação de advogados

abolicionistas como Luís Gama.113

Assim, quando fugiu em 1880, é provável que Generosa

tenha pesado os custos e benefícios de tentar permanecer escondida ou intentar a luta judicial

110

Gazeta de Campinas, 15 outubro de 1874. Fonte citada em Saulo Veiga Oliveira e Ana Maria Galdini

Raimundo Oda. “O suicídio de escravos em São Paulo nas últimas duas décadas da escravidão”. História,

Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.2, abr.-jun. 2008, p. 372. 111

Ação de Liberdade por tráfico ilegal. Autor: Generosa, escrava de João Guimarães Bahia, Campinas, 1881-

1882. CMU, TJC, 2º Ofício, Processo 1687, Caixa 96. E Anúncio de fuga da escrava Generosa. Gazeta de

Campinas, nº 1905, 30 de abril de 1880. 112

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti, “O direito de ser Africano Livre: os escravos e as interpretações da lei de

1831”. In: LARA, Silvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs). Direitos e justiças no Brasil.

Ensaios de história social. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 2006, p. 131-152. Ver também: Letícia Graziele

Basílio de Freitas. Escravos nos Tribunais: o recurso à legislação emancipacionista em ações de liberdade do

século XIX. Monografia (Graduação em História), Unicamp, Campinas, 2012. 113

Elciene Azevedo. Direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo.

Campinas, Editora da Unicamp, 2010, p. 95-113.

Page 130: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

130

contra seu senhor. Infelizmente, porém, Generosa não obteve sucesso no tribunal, sendo sua

alegação considerada improcedente.

A fuga de Narcisa, por outro lado, teve um desfecho mais feliz, com o reconhecimento

legal de sua liberdade. Ela era natural de Piracicaba, e fugiu da fazenda do senhor Francisco

de Paula Sousa Campos em 1872.114

O senhor sabia que ela tinha filhos, irmã e parentes em

Piracicaba e por isso ela foi logo capturada naquela cidade. Todavia, Narcisa conseguiu

escapar novamente quando estava sendo trazida para Campinas. Dessa vez o senhor não

conseguiu encontrá-la tão facilmente e decidiu publicar um anúncio na Gazeta de Campinas,

oferecendo como recompensa a quantia de 100$000 réis e alertando para a existência da

família no outro município.

Narcisa conseguiu se esconder com tal prodigalidade que o senhor Sousa Campos só

tornou a vê-la sete anos depois, quando ela iniciou um processo no Tribunal de Justiça de

Campinas para compra de sua alforria.115

Descobriu-se então que Narcisa estava morando em

Lençóis e conseguira juntar a quantia de 800$000 rs, que utilizou para indenizar o senhor e

poder então desfrutar legalmente de sua liberdade.

Fugas longas como a de Narcisa demonstram a possibilidade de sucesso dessa forma

de enfrentamento do cativeiro e a importância da reconstrução dos laços familiares para

tanto.116

É bastante provável que, após o fracasso de sua fuga de volta à Piracicaba, ela tenha

combinado com os parentes para conseguir se mudar para outro local, onde o senhor não os

encontraria. Em Lençóis, Narcisa não só reuniu sua família, como também formulou uma

forma de vida que lhe possibilitou o acúmulo de um pecúlio.

Bezerra Neto chama a atenção para a possibilidade de os cativos fugidos se

misturarem em meio à cidade, tendo em vista a predominância de trabalhadores escravos

crioulos, assim como o crescente número de pessoas livres de cor e mestiças na segunda

metade do século XIX.117

Por outro lado, como argumenta Sidney Chalhoub, também era

cada vez maior o clima de suspeição que rondava essa população de cor, tornando cada vez

mais frágil a linha entre escravidão e liberdade.118

Essa instabilidade com certeza foi

motivadora para que Narcisa, mesmo após tanto tempo e tendo reconstruído sua vida em

114

Anúncio de fuga da escrava Narcisa. Gazeta de Campinas, nº 306 (1), 13 de novembro de 1872. 115

Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Narcisa, escrava de Francisco de

Paula Sousa Campos, Campinas, 1879-1880. CMU,TJC, 2º Ofício, Processo 08, Caixa 01. 116

José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 143 e 170. 117

José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 177. 118

Sidney Chalhoub. “Cenas da Cidade Negra”, In:Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da

escravidão naCorte. São Paulo: Companhia das letras, 1990, p. 175-248. Sobre a precariedade da liberdade

desfrutada pela população de cor no Brasil oitocentista ver ainda, do mesmo autor: A força da escravidão:

ilegalidade e costume noBrasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Page 131: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

131

fuga, tenha decidido voltar à Campinas para ter o reconhecimento legal da liberdade que

desfrutava clandestinamente e, assim talvez, ter uma segurança maior. Esse provavelmente

também foi o que motivou Generosa a arriscar-se na demanda legal pelo reconhecimento de

sua escravização ilegal pelo tráfico.

Outro caso de fuga envolvendo a busca pelo reconhecimento legal da liberdade é

contado em um auto de Habeas Corpus em favor do escravo Miguel, datado de 1873.119

Ele

era natural de Campinas, mas morava em Amparo e fugiu de volta para o município de

origem para negociar sua liberdade. Vamos aos detalhes da história.

Apesar de nascido em Campinas, Miguel vivenciou o comércio interno por diversas

vezes. Pertenceu ao senhor Luís Nogueira Ferraz e foi comprado pelo comendador Manuel

Joaquim Ferreira Neto em 1865, em um grupo de 40 cativos.120

Não encontramos o inventário post mortem de Ferreira Neto mas, pelo grupo de

cativos adquiridos por ele entre 1865 e 1868, pode-se ter uma ideia de como era composta sua

escravaria. Ele comprou 79 cativos nesse período, por si só ou como “Joaquim Manuel

Ferreira Neto e Cia”. Foram diferentes vendedores, denotando diferentes origens desses

cativos.121

No entanto, junto com Miguel, outros 23 homens e 16 mulheres foram comprados

conjuntamente do senhor Luís Nogueira Ferraz, em 1865. O grupo ao qual Miguel pertencia

era formado por muitos campineiros (20) e alguns baianos (11) e ainda um “crioulo do sul” e

mais alguns africanos (08). Desse modo, apesar de ser campineiro, ele vinha de uma senzala

heterogênea e passou a pertencer à outra que se diversificou ainda mais com os outros

indivíduos que seriam adquiridos nos anos seguintes pelo senhor Ferreira Neto.

Pouco tempo depois, em 1868, o comendador Ferreira Neto faleceu. Em seu

testamento, deixou livres seus escravos com a condição de cumprirem oito anos de prestação

de serviços a partir de então. Aconteceu, todavia, que os herdeiros do comendador Ferreira

Neto venderam uma fazenda da herança, que ficava em Amparo, ao comendador Joaquim

Bonifácio do Amaral. Na escritura de venda da fazenda, os serviços dos libertos em condição,

incluindo Miguel, foram também transferidos a Bonifácio do Amaral.

De posse de uma quantia em dinheiro que considerava suficiente para remir o tempo

de serviço que lhe restava, Miguel fugiu em 1873 com destino à Campinas para negociar com

119

Habeas Corpus. Réu: Miguel, escravo de Manuel Joaquim Ferreira Neto/ Joaquim Bonifácio do Amaral,

Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 180, Documento 003. 120

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865.CMU, CRC. 121

As naturalidades informadas foram 14 cativos da Bahia, 02 de Goiás, 02 de Minas Gerais, 06 do Rio de

Janeiro, 01 do Rio Grande do Sul, 01 “crioulo do Sul”, 20 de Campinas, 01 de Piracicaba, 15 africanos e mais 17

brasileiros com localidade de origem não informada. Cf.: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de

Campinas, 1865. CMU, CRC.

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132

Rafael Luís Pereira da Silva, que era o depositário geral dos escravos que haviam sido do

falecido Ferreira Neto. Em fuga, Miguel foi capturado e sua prisão preventiva foi requisitada

pelo juízo de órfãos por alegação de violação do contrato de serviços. Assim, o advogado

João Gabriel de Moraes Navarro deu início a um auto de Habeas Corpus para retirar Miguel

da prisão, alegando que os serviços de um liberto não poderiam ser transferidos.

Apesar de não ser um forasteiro em Campinas, Miguel o era no local onde então

habitava (Amparo) e era na terra natal que acreditava poder lutar por seus direitos, por isso a

fuga foi sua primeira estratégia. Ele era carreiro, ocupação que pode ter lhe dado mobilidade

suficiente para conhecer as melhores estradas – ou atalhos – para chegar a Campinas.

*

A fuga era uma alternativa que, em teoria e em diferentes níveis, estava presente como

possibilidade para todos os cativos. Todavia, eram incertas as chances de se obter sucesso na

empreitada, seja com o objetivo de o senhor ceder com relação a alguma reivindicação, ou

com a esperança de conquistar a liberdade longe de seus olhos. Por isso, nem todos os cativos

fugiram durante o período escravista. Entender quem fugia e em qual momento e,

principalmente, quem tinha maiores chances de sucesso são questões intrigantes,

especialmente quando objetivamos investigar as diferenças entre campineiros e forasteiros no

município de Campinas.

O que observamos nesse capítulo é que os cativos forasteiros fugiram mais, muito

mais do que os que tinham nascido no município, representando uma proporção de quase 30

forasteiros (28,7) para cada campineiro cuja fuga foi noticiada na Gazeta de Campinas. Pode-

se depreender que a fuga era a primeira alternativa buscada pela maioria dos escravos em

geral,122

e dos forasteiros em particular, já que, ao menos em princípio, apresentava menores

riscos do que a execução de crimes ou a iniciativa judicial para aquisição da liberdade, por

exemplo. Além disso, fica latente a relevância que tinha a experiência do tráfico interno,

separando famílias e arrancando margens de autonomia, para fazer dos forasteiros a maioria

dos escravos fugidos.

Por outro lado, apesar de devassadora, essa experiência não impedia que forasteiros se

unissem a trabalhadores cativos de origens diversas, inclusive campineiras e africanas,

construindo novos laços de solidariedade. Os laços que teciam com os que encontravam ao

122

Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, op. cit., p. 399.

Page 133: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

133

chegar conferiam maiores possibilidades de sucesso a essas estratégias. Como o santista Luís,

que podia contar com os companheiros de senzala para obter alimento e abrigo enquanto se

mantinha foragido, além de auxílio na execução do assassinato do feitor. E os baianos

Bernardino e Joaquim que permaneceram fugidos por algum tempo, circulando em diversos

espaços dentro e fora da cidade e se relacionando com diferentes pessoas.

Enfim, as múltiplas alianças formuladas por esses forasteiros, bem como sua

capacidade de mobilidade no município de Campinas e arredores impedem que vejamos suas

evasões como atos instintivos, frutos de um sentimento de desenraizamento e inadaptação.

Pelo contrário, são atitudes cheias de significados, uma vez que congregavam esforços

diversos: sair da fazenda sem ser notado, se embrenhar por lugares desconhecidos para se

esconder, lidar com os perigos das matas e estradas, encontrar rotas que possibilitassem o

retorno à terra natal, ou a busca por um padrinho. Afinal, fugir também apresentava riscos e

todas essas tarefas podem ter sido muito mais complicadas para aqueles que chegavam ao

município e pouco conheciam da localidade e seus habitantes. Esses sujeitos certamente

pensaram nisso quando buscaram unir-se a outros para empreender suas fugas, o que explica a

maior proporção de fugas coletivas entre os forasteiros do que entre campineiros.

Page 134: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

134

CAPÍTULO 4 – Forasteiros em busca da liberdade

4.1. As Ações de Liberdade e os libertandos

Em agosto de 1851 a preta Domitila foi vendida ao Conselheiro Dom Francisco

Baltasar da Siqueira, no Rio de Janeiro.1 A negociação entre o conselheiro e dona Maria

Raimunda da Boa Hora, a antiga senhora, obrigou Domitila a deixar para trás não só sua terra

natal, São Luís, na Província do Maranhão, como também sua mãe, um filho, e uma filha de

apenas um ano. Encontramos sua história em uma Ação Cível de Liberdade movida por sua

filha, a “mulatinha” Mariana, que, depois de 16 anos de separação da mãe, tentou provar na

justiça a ilegalidade de sua venda. Auxiliada por um curador, Mariana alegou uma história

bastante complicada, cheia de promessas, falsificações e ilegalidades, em que sua família foi

vítima. Sua avó materna, chamada Rosa, tinha sido escrava da senhora Raimunda da

Ressurreição, uma moradora do Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios.2

Antes de falecer, Raimunda da Ressurreição passou carta de alforria à Rosa e sua filha,

Domitila. A carta foi entregue à Superiora Ana Francisca do Coração de Jesus com a missão

de entregá-la às libertas após a morte da senhora. Todavia, a Superiora nunca lhes entregou a

carta. Após a morte da senhora, Ana Francisca do Coração de Jesus se apossou de mãe e filha,

e vendeu Domitila à Maria Raimunda da Boa Hora, ré no processo judicial que temos em

mãos.3

É possível perceber no processo cível iniciado por Mariana que o seu objetivo vai

além da liberdade, ele tem íntima conexão com o desejo de rever sua mãe, após tantos anos de

separação. Se fosse provada, sua história atestaria a ilegalidade da venda de Domitila ao

Conselheiro no Rio de Janeiro, bem como a liberdade do ventre desta e, por conseguinte, a

mulatinha Mariana seria considerada livre. Contudo, Mariana deixou claro seu objetivo de

que a sentença beneficiasse não somente a ela:

1 Rio de Janeiro. Arquivo Nacional (AN), Fundo Supremo Tribunal de Justiça (BU), Série Revista Cível (RCI),

Processo BU.0.RCI.385, Microfilme AN 002-2002. Revista Cível sobre liberdade de escravo. Recorrente:

Mariana, parda, por seu curador. Recorrida: Maria Raimunda da Boa Hora, São Luís (Maranhão), 1867-1870. 2 O Recolhimento era administrado pelas irmãs Ursulinas e depois pelas Agostinhas, acolhendo meninas órfãs e

carentes. Cf.: MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão. Rio

de Janeiro, Fonfon e Seleta, 1970, p. 549-555. 3 A Superiora já havia falecido quando o processo foi iniciado. Rev. c. sobre lib. de esc. Recorrente: Mariana.

São Luís, 20/12/1867 a 09/04/1870. (AN BU.0.RCI.385, localização: AN 002-2002).

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135

“Nestes termos requer a Suplicante a Vossa Senhoria se sirva

mandar depositá-la, para poder tratar em Juízo da sua liberdade e da de sua

Mãe, nomeando-se-lhe [sic] para esse fim um Curador”.4

Diversos tipos de fontes já foram utilizados para a análise da aquisição da liberdade

pelos cativos no Brasil. Dentre os estudos sobre alforria em Campinas destacam-se os de Peter

Eisenberg, com a pesquisa de cartas de alforria registradas entre 1798 e 1888;5 de Adauto

Damásio, com cartas de alforria, inventários, testamentos e Ações de Liberdade entre 1829 e

1838;6 e de Lizandra Meyer Ferraz, que, dialogando com as fontes e conclusões de Eisenberg

e Damásio, incorporou também os autos de prestação de contas testamentárias para pesquisar

as alforrias obtidas nos processos de herança nos períodos de 1836-1845 e 1860-1871.7 Esses

estudos mostraram as tendências em torno das alforrias no município e seus significados

dentro da realidade histórica do Império e do movimento histórico da Abolição. Eisenberg

verificou a importância do perfil dos alforriados para a frequência e tipo de liberdade

concedida nas cartas de alforria. Ferraz chamou a atenção para a relevância e frequência da

aquisição da alforria nos processos de herança. E Damásio verificou também a pertinência das

Ações de Liberdade como caminho viável para a conquista da alforria, representando uma

real intervenção no poder senhorial de decidir sobre a vida dos cativos.

As Ações de Liberdade julgadas pelo Tribunal de Justiça de Campinas também foram

investigadas por Regina Célia Lima Xavier que, em cruzamento com outros tipos de

processos cíveis, como inventários, ações de cobrança de dívidas, justificações cíveis,

processos de divórcio, e também documentos da municipalidade e da Câmara, jornais e livros

de memorialistas, buscou reconstituir as experiências e estratégias de vida de homens e

mulheres libertos no município.8

Nas últimas décadas, a historiografia brasileira tem buscado estudar a prática da

alforria a partir da estratégia escrava e tem abandonado interpretações tradicionais sobre a

rebeldia dos cativos ao trazer à cena a contínua necessidade dos senhores de procurar novas

formas de controle social no cotidiano das relações escravistas. Nesse sentido, as Ações de

4AN, BU, RCI,P.BU.0.RCI.385, Microf. AN 002-2002. Revista Cível sobre liberdade de escravo. Recorrente:

Mariana, parda, por seu curador. Recorrida: Maria Raimunda da Boa Hora, São Luís (Maranhão), 1867-1870,

“Petição inicial”, f. 7. 5 Peter Eisenberg. “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX.” In: Homens esquecidos: escravos e

trabalhadores livres no Brasil – século XVIII e XIX. Campinas, Editora da UNICAMP, 1989, p. 255-314. 6 Adauto Damásio. Alforrias e ações de liberdade em Campinas na primeira metade do século XIX. Dissertação

(Mestrado em História), UNICAMP, Campinas, 1995. 7 Lizandra Meyer Ferraz. Entradas para a liberdade: formas e frequência da alforria em Campinas no século

XIX. Dissertação (Mestrado em História), UNICAMP, Campinas, 2010. 8 Regina Célia Lima Xavier. A conquista da liberdade: Libertos em Campinas na segunda metade do século

XIX. Campinas, Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1996.

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136

Liberdade ganharam importância como meio possível de acessar as ações e significados das

lutas e negociações entre os cativos e seus senhores. Vários estudos que utilizaram essa fonte

demonstraram que havia uma possibilidade real de conquista da liberdade por esse meio e que

o direito e a justiça funcionaram como campos indeterminados de possibilidades e de

estratégias e conflitos de classe.9

Neste capítulo, examinamos as Ações de Liberdade julgadas pelo Tribunal de Justiça

de Campinas em busca de histórias como a da mulatinha Mariana, que mostra a conexão entre

Maranhão e Rio de Janeiro e a separação familiar causada pelo tráfico interprovincial.

Buscamos, em especial, compreender os significados que o tráfico interno pode ter

representado nos embates jurídicos pela liberdade. Em outras palavras, ser forasteiro ou

nascido em Campinas fazia alguma diferença nesses litígios? Indo além da identificação da

localidade de origem, porém, procuramos investigar como a experiência do tráfico interno

influenciou as trajetórias de vida desses indivíduos na busca da liberdade pela via judicial.

Os estudos sobre alforria em Campinas demonstraram que o cativo crioulo era

preferido na distribuição das alforrias, mesmo tendo em vista que o número de africanos no

Império era muito grande. Damásio identificou que 68% dos libertos no decênio 1829-1838

eram crioulos.10

Eisenberg, por sua vez, observou uma proporção de crioulos de até 72,4% do

total de libertos entre 1798-1888.11

Esses dados foram confirmados por Ferraz que verificou

que 81,1% dos alforriados em processos de herança tinham nascido no Brasil.12

Eisenberg e

Ferraz destacaram, todavia, que essa proporção não estava tão distante da realidade

demográfica da população escrava de Campinas na segunda metade do século XIX. Esses

estudos, entretanto, não verificaram as diferenças na política das alforrias entre os nascidos no

próprio município de Campinas e os advindos do tráfico interno.

O Centro de Memória da Unicamp abriga uma grande série documental sob o título

“Ações de Liberdade”, que reúne diversos litígios iniciados no século XIX para discutir

9Elciene Azevedo. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luís Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas,

Editora da UNICAMP, 1999, p. 194 e 199; Elciene Azevedo. Direito dos escravos: lutas jurídicas e

abolicionismo na província de São Paulo. Campinas, Editora da Unicamp, 2010; Eduardo Spiller Pena. Pajens

da Casa Imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, Editora da UNICAMP, 2001, p. 25;

Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (orgs.). Direitos e justiças no Brasil. Ensaios de história

social. Campinas, Editora da UNICAMP, 2006; Joseli Maria Nunes Mendonça. Entre a mão e os anéis: a lei dos

Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. 2 ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 2008; Keila

Grinberg. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da corte de apelação do Rio de Janeiro no

século XIX. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994; Sidney Chalhoub. Visões da liberdade: uma história das

últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das letras, 1990; entre outros. Sobre a

indeterminação da justiça e do direito na luta de classes, ver também: Edward P. Thompson. Senhores e

caçadores: a origem da lei negra. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. 10

Adauto Damásio, Alforrias e ações de liberdade em Campinas..., op. cit., p. 19 e 37. 11

Peter Eisenberg, “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX.”, op. cit., p. 270-274. 12

Lizandra Meyer Ferraz. Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112.

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137

questões relativas à manumissão.13

Nessa série constam autos denominados: Arbitramento,

Averiguação de Liberdade, Cumprimento de Cláusula de Serviços, Depósito, Fundo de

Emancipação, Infração de Contrato, Justificação de Liberdade, Levantamento de Pecúlio,

Liberdade, Liberdade pela não efetuação da matrícula, Liberdade por idade, Locação de

Serviços e Remissão, Manutenção de Liberdade, Pecúlio, Remissão de Serviços e Tráfico

Ilegal. Esses processos trazem ao historiador um pouco da experiência de 190 homens e

mulheres escravizados que viram na Justiça uma forma de discutir seus anseios de liberdade.14

Diferente dos processos criminais julgados em Campinas, esses litígios em torno da

liberdade não permitem um estudo quantitativo tão aprofundado como o que fizemos no

segundo capítulo deste estudo, pois são processos bastante sumários, apresentando poucos

detalhes sobre os cativos que litigaram pela alforria. Isso acontece porque havia uma

indicação legal, qual seja a Lei 2.040, de 1871, que dispunha que a Ação de Liberdade devia

ser julgada de forma sumária, ou seja, com o mínimo de trâmites necessários para que não

houvesse demora.15

Por isso, realizamos o cruzamento dessa fonte com os registros de meia sisa de

escravos para tentar encontrar mais dados sobre os libertandos. Contudo, a quantidade de

informações disponíveis continua sendo pequena. A identificação da origem, por exemplo,

que é essencial para nosso estudo, é fornecida para 48 libertandos, 25,1% do total. Por isso,

analisaremos, em primeiro lugar, o perfil geral dos litigantes para divisar quem foram os

cativos que enfrentaram o poder senhorial no tribunal de Campinas na segunda metade do

XIX, para depois tentar compreender qual foi a relevância do tráfico interno nesse contexto. A

seguir, as tabelas 20 e 21 trazem os dados sobre sexo, estado conjugal e idade dos litigantes.

13

Um inventário bastante completo sobre esses autos pode ser visto em Fernando Antônio Abrahão.As Ações de

Liberdade de escravos do Tribunal de Campinas. Campinas, UNICAMP, Centro de Memória da UNICAMP,

1992. 14

Nas tabelas e gráficos deste capítulo não estão inclusos indivíduos que aparecem em um processo do Fundo de

Emancipação denominados apenas como “filhos da liberta Carolina”, não tendo sido possível identificar

informações sobre eles. Ação de depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autores: filhos

da liberta Carolina, Campinas, 1887. Centro de Memória da UNICAMP (CMU), Tribunal de Justiça de

Campinas (TJC), 2º Ofício, Processo 1699, Caixa 96. 15

Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 7º § 1º. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 28/03/2016).

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138

Tabela 20 – Sexo e estado conjugal dos escravos em Ações de Liberdade, por

décadas (Campinas, 1860- 1888).

Mulheres Homens Total Geral

Década N Solteiras

Alguma

vez

casadas16

N Solteiros

Alguma

vez

casados

Solteiros

Alguma

vez

casados

1860 01 - - 02 01 - 01 -

1870 43 01 01 26 02 02 03 03

1880 65 01 02 53 01 - 02 02

Total 109 02 03 81 04 02 06 05

Fontes: Ações de Liberdade, Campinas, 1866-1888. Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de

Justiça de Campinas (TJC); e Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. CMU,

Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC).17

Tabela 21 – Idade dos escravos em Ações de Liberdade, de acordo com o sexo,

por décadas (Campinas, 1860-1888).

Décadas

Mulheres Homens Total Geral

Até 14

anos

De 15

a 39

anos

Mais

de 40

anos

Idade não

informada

Até 14

anos

De 15

a 39

anos

Mais

de 40

anos

Idade não

informada

Até 14

anos

De 15

a 39

anos

Mais

de 40

anos

Idade não

informada

1860 - - - 01 - 01 - 01 - 01 - 02

1870 - 09 16 18 03 03 12 08 03 12 28 26

1880 01 29 12 23 - 19 15 19 01 48 27 42

Total 01 38 28 42 03 23 27 28 04 61 55 70

A quantidade de informações disponíveis sobre o estado conjugal e a idade é bem

pequena, mas é possível observar uma maioria de mulheres alguma vez casadas enquanto a

maior parte dos homens que iniciaram Ações de Liberdade era solteira. Quanto ao sexo, vê-se

que o número de mulheres é sempre maior que o de homens, exceto na década de 1860, para a

qual temos apenas 3 escravos litigantes. Quanto à idade, sobressai a faixa etária dos 15 aos 39

anos entre as mulheres, enquanto entre os homens há um peso mais expressivo dos indivíduos

com mais de 40 anos.

Desse modo, percebe-se que o perfil geral dos libertandos difere-se em alguns

aspectos do que foi observado por Lizandra Meyer Ferraz nas alforrias em processos de

herança na década de 1860, e por Eisenberg, nas cartas de liberdade nas últimas décadas do

16

Contabilizamos aqui apenas os casamentos sancionados pela Igreja, não incluindo as uniões consensuais. 17

Todas as tabelas e gráficos deste capítulo foram elaborados a partir destas mesmas fontes. Apesar das Ações

de Liberdade terem sua data inicial em 1866, o cruzamento com os registros da meia sisa possibilitou localizar

registros desses sujeitos desde pelo menos 1860.

Page 139: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

139

escravismo. Quanto ao sexo, apesar de Ferraz e Eisenberg verificarem que, em comparação

com a realidade demográfica do município, as mulheres receberam um número

desproporcional de alforrias, ambos observaram um aumento dos homens entre os alforriados

nas últimas décadas da escravidão.18

Nas Ações de Liberdade, a proporção de homens de fato

aumentou um pouco ao longo das décadas (era de 37,7% na década de 1870 e passou a 44,9%

nos anos 1880), mas as mulheres continuaram sendo sempre a maioria.

Sobre o estado conjugal, Ferraz encontrou uma maioria de cativos alguma vez casados

entre os alforriados na década de 186019

, o que verificamos também entre as mulheres, mas

não entre os homens litigantes, cuja maioria era de solteiros. Quanto à idade, Eisenberg e

Ferraz observaram a predominância das alforrias nas faixas etárias menos produtivas (cativos

mais jovens ou em idades avançadas),20

enquanto os libertandos nos autos judiciais se

encontravam predominantemente entre 15 e 39 anos, apesar da relevância dos indivíduos com

mais de 40 anos entre os homens.

As disparidades entre os dados sobre idade e estado conjugal observados por esses

estudos e os por nós encontrados nas Ações de Liberdade talvez estejam ligadas à quantidade

de cativos forasteiros que protagonizaram os autos judiciais, uma vez que a faixa etária e o

estado conjugal predominantes entre os libertandos – ao menos entre os homens –

corresponde ao perfil demográfico do mercado escravo, como vimos no primeiro capítulo,

isto é, solteiros em idade produtiva. A grande proporção de mulheres entre os libertandos, que

ultrapassa a observada pelos outros autores em cartas de alforrias e processos de herança,

pode estar relacionada ao fato de que, como explica Robert Slenes, o preço médio das

escravas decaiu nas últimas décadas do Escravismo,21

facilitando a compra da alforria. De

fato, a maior parte dos autos protagonizados por essas mulheres previam indenização ao

senhor (60,9% das campineiras e forasteiras).

Passemos agora à observação da origem dos libertandos. Em primeiro lugar, observa-

se uma proporção de até quatro forasteiros para cada campineiro nas décadas de 1870 e 1880,

e de quase três para um no período total analisado (gráfico 6). A única década em que os

campineiros ultrapassam numericamente os forasteiros é nos anos 1860, mas, como se pode

18

Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112-119;Peter Eisenberg, “Ficando livre: as

alforrias em Campinas no século XIX.”, op. cit., p. 263-267. Adauto Damásio também aponta para a

superioridade numérica feminina entre os alforriados. Adauto Damásio,Alforrias e Ações de Liberdade em

Campinas..., op. cit., p. 14-16. 19

Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112. 20

Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112;Peter Eisenberg, “Ficando livre: as alforrias

em Campinas no século XIX.”, op. cit., p. 277. 21

Robert W. Slenes. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil

sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 92.

Page 140: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

140

perceber no gráfico 6, esse dado não tem grande relevância estatística já que há apenas um

cativo com informação de origem.

Gráfico 6 – Origem dos escravos crioulos em Ações de Liberdade, por década

(Campinas, 1860-1888).

Na tabela 22 temos o detalhamento dessas informações. Observando o perfil geral dos

litigantes, verificamos que 41 são crioulos22

, correspondendo a 85,4% dos que apresentam

informação de origem, e sete são africanos (14,6%). Entre os crioulos que informaram o

município ou a província de nascimento, 26 não eram provenientes de Campinas, ou seja,

73,5%. Chamo a atenção, mais uma vez, para a informação de que a proporção de forasteiros

entre os crioulos com localidade de origem informada é quase três vezes maior que a de

escravos nascidos no município de Campinas.

Esse dado indica que os forasteiros foram aqueles que mais recorreram à justiça de

Campinas em busca da alforria, ou seja, ser forasteiro não significou um impedimento para

que tivessem a possibilidade de chegar aos tribunais. Nem mesmo para aqueles que tinham

vindo de mais longe, isto é, vítimas do tráfico inter-regional, que correspondem a 40% dos

crioulos com informação de localidade de origem.

22

Incluímos aqui as 35 pessoas cuja localidade de origem dentro do Império foi informada (como consta na

tabela 4.2) e também os seis litigantes identificados apenas como “crioulos”.

1

2 6

0

8

18

0

3 3

1860 1870 1880

Campineiros Forasteiros Localidade de origem não informada

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Tabela 22 – Localidade de origem dos crioulos libertandos em Ações de

Liberdade (Campinas, 1860-1888).

Localidade de origem23

Número de escravos % sobre o total de crioulos com origem informada

Campinas 09 25,7

Província de São Paulo24

08 22,9

Região Sudeste25

04 11,4

Outras regiões 14 40,0

Total de crioulos 35 100

Na tabela 23 estão reunidos os tipos de processos que discutiram a liberdade escrava

no Tribunal de Justiça de Campinas, levando-se em consideração a origem.

23

Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil

(município ou província) foi informada. Não estão descritos, portanto, 07 africanos (14,6% dos dados

informados), 06 crioulos para os quais não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 143

litigantes com origem não identificada. 24

Não inclui os nascidos em Campinas. 25

Não inclui os nascidos na Província de São Paulo.

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Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de

acordo com a origem (Campinas, 1860-1888).

Tipo de Ação26

Campineiros (%)27

Forasteiros (%)

Indenização28

20,0 80,0

Liberdade29

33,3 66,7

Tráfico Ilegal30

60,0 40,0

Prestação de Serviços31

- 100

Leis 2.040 e 3.27032

- 100

Manutenção de liberdade33

50,0 50,0

As Ações de Liberdade mais numerosas julgadas pelo Tribunal de Justiça de

Campinas na segunda metade do século XIX foram aquelas que previam indenização para o

senhor, respondendo por 58,1% dos libertandos. Em segundo lugar aparecem as ações de

Manutenção de Liberdade, respondendo por 12,6% dos litigantes.

Se os forasteiros respondem por três quartos de todos os libertandos da segunda

metade do século XIX, sua proporção é ainda maior entre os que entraram na justiça para

compra da alforria ou depósito de pecúlio: 78,9% dos crioulos com localidade de origem

informada.

26

Os tipos de processos foram reunidos em grupos por semelhança. O critério de constituição de cada grupo é

explicado nas notas a seguir. 27

Os valores percentuais destas colunas foram calculados sobre o total de autores crioulos com informação de

localidade de origem (município ou província) para cada tipo de ação correspondente. 28

Aqui foram contabilizadas conjuntamente as disputas legais que previam indenização da alforria ao senhor,

denominadas Arbitramento, Pecúlio, Levantamento de Pecúlio e Fundo de Emancipação. A quantidade total de

escravos que iniciaram ações deste tipo é 111. 29

Nesta categoria reunimos as ações denominadas Averiguação da Liberdade, Justificação de Liberdade e

Liberdade, que somam 11 escravos libertandos nesse tipo de processo. 30

Esta categoria inclui dois tipos de processos que trataram de liberdade devido ao tráfico ilegal do libertando ou

de sua mãe ou avó, denominados Depósito e Tráfico Ilegal. São 18 escravos que iniciaram esse tipo de auto no

total. A ação denominada “Depósito” é um processo para depósito do cativo para averiguação de liberdade por

tráfico africano ilegal. Cf.: Ação de Depósito de escravos. Autores: José, escravo de Joaquim Celestino Soares e

Felipe, escravo de Querubim Camargo Ribeiro, Campinas, 1880-1880. Cf.: Campinas. Centro de Memória da

UNICAMP (CMU), Tribunal de Justiça de Campinas (TJC), 1º Ofício, Processo 4875, Caixa 243. 31

Neste grupo estão reunidos os processos que discutiram a alforria condicionada à prestação de serviços,

denominadas Cumprimento de Cláusula de Prestação de Serviços, Locação de Serviços e Remissão, Infração de

Contrato e Remissão de Serviços. A quantidade total de escravos que iniciaram ações deste tipo é 18. 32

Neste grupo constam processos em que a argumentação se estendeu diretamente sobre duas leis

emancipacionistas, a saber a Lei 2.040, que obrigava os senhores a matricular seus cativos, e a Lei 3.270, que

previa a libertação dos escravos de idade avançada. As ações aqui reunidas são denominadas Ações de Liberdade

pela não Efetuação da Matrícula e de Liberdade por Idade. São 09 escravos envolvidos nesses processos no total. 33

Aqui são contabilizadas apenas as ações denominadas Manutenção de Liberdade, que tratavam de pessoas

livres ou libertas ameaçadas de escravização ilegal. São 24 escravos envolvidos nesses autos no total.

Page 143: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

143

Além disso, entre os 68 cativos litigantes que não nasceram nas escravarias em que se

encontravam no momento em que recorreram à Justiça (incluindo tanto campineiros quanto

forasteiros), pelo menos 41 iniciaram processos que previam indenização ao senhor (60,3%).

Portanto, a maioria dos cativos que havia passado pela experiência do tráfico interno ou

comércio local entrou na justiça para a compra da alforria, o que demonstra que essa

experiência não foi impeditiva para o acúmulo de pecúlio.

De modo análogo, todas as ações que envolviam contratos de serviços, assim como as

Ações de Liberdade pela não efetuação da matrícula e por idade tiveram como autores

somente forasteiros identificados.34

Os nascidos em Campinas foram maioria apenas nas

ações envolvendo tráfico africano ilegal, mas numa proporção de três indivíduos nascidos em

Campinas contra dois identificados como forasteiros.35

A maior proporção de forasteiros nesses tipos de processos pode significar que as

pessoas traficadas tivessem dificuldade de negociar suas liberdades diretamente com os

senhores, motivando o recurso à justiça. O pequeno número de campineiros pode indicar que

eles tenham tido maior facilidade de adquirir alforria por outros meios que não necessitassem

interferência judicial.

Partamos agora para uma análise densa de alguns dos casos que foram levados ao

Tribunal de Justiça de Campinas, o que permitirá melhor divisar as implicações dos dados

apresentados e de outros aspectos que não aparecem nos números.

O início dos processos de liberdade quase sempre seguia um padrão. Começavam

geralmente com a apresentação de uma petição contendo as razões do escravo ao Juiz

Municipal, que, convencido da possibilidade de prova do direito à liberdade, lhe nomeava um

curador e o remetia para um depósito público ou um depositário particular. A partir daí, o

senhor era notificado da ação e respondia com uma petição contendo sua contestação. No caso

dos arbitramentos para compra da alforria, o senhor era informado do pecúlio oferecido pelo

cativo e da avaliação provisória que fazia o Juiz Municipal. Se o senhor não concordasse

imediatamente com os valores apresentados, eram escolhidos três peritos – chamados de

louvados –, que avaliavam mais detalhadamente o escravo. Homologada a avaliação pelo Juiz

Municipal, este determinava um prazo para que o libertando completasse, se preciso, a

quantia para sua libertação. Se tudo seguisse por esse caminho, sem problemas, recursos ou

34

Entre as ações que envolviam contratos de serviços, apenas um libertando teve sua origem informada, sendo

ele forasteiro, enquanto os outros 17 não continham esse dado. Nos litígios de liberdade por não efetuação da

matrícula ou por idade, há quatro forasteiros e outros cinco libertandos com origem não informada. 35

Outros 10 litigantes em processos por tráfico ilegal não tiveram sua origem informada.

Page 144: Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e ... · Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com a origem (Campinas,

144

apelações, o processo estaria concluído dentro de poucos meses. No entanto, a realidade não

era assim tão uniforme.

Casimiro não pôde contar com a recomendada rapidez no processo judicial.36

Sua

causa de liberdade tramitou em juízo por quatro anos. Em outubro de 1879, o cativo Casimiro

José de Moura apresentou uma petição ao Juízo Municipal de Campinas alegando não ter sido

devidamente matriculado por seu senhor, Estevão José de Siqueira.37

Um curador foi então

nomeado e expôs a história de Casimiro. Ele era nascido em Minas Gerais, mas em 1871 já

residia em Santos, onde foi matriculado no ano seguinte, como propriedade de Estevão José

de Siqueira.38

Em 1875 ele foi trazido a Campinas, porém a matrícula especial, como previa a

lei 3.270, não foi realizada. O senhor, por sua vez, passou a residir em Jundiaí e depois em

Botucatu, mas também não realizou a matrícula especial de Casimiro nesses lugares.

Duas cartas precatórias foram enviadas a Botucatu para citar o senhor Estevão José de

Siqueira a respeito do processo, mas não houve resposta.39

Com isso, o Juiz Municipal de

Campinas deu a sentença à revelia do senhor, julgando procedente a alegação de liberdade de

Casimiro.40

Siqueira então resolveu dar atenção ao processo e entrou com um recurso sobre a

sentença.41

Todavia, houve desistência tácita da parte do senhor e Casimiro teve sua liberdade

efetivada judicialmente apenas em 1883.

Casimiro era mineiro, solteiro e contava 47 anos quando iniciou o processo em

Campinas. Como visto, sua vida foi marcada pela passagem por vários locais distantes de sua

terra natal. O cativeiro era constituído por uma grande instabilidade, uma vez que a venda ou

a mudança para outros locais poderia acontecer a qualquer momento, destruindo os laços

familiares e as redes de solidariedade que o cativo tivesse formado. Nesse aspecto, o tráfico

36

Lembremos que o § 1º do 7º artigo da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, recomendava que o processo

de liberdade fosse sumário. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm

(consultado em 28/03/2016). 37

Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor:

Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883. CMU, TJC, 1º Of., P.

4803, Cx. 239. 38

Em Santos, Casimiro residia em poder do comerciante Gustavo Backheuser. “Petição do curador Francisco

Dias Castelo Branco”. Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da

Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883.

CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239, f.4. 39

“Cartas precatórias do Juízo Municipal de Campinas”, 18/11/1879 e 24/11/1879. Ação Sumária de Liberdade

pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura,

escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883. CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239. 40

“Conclusão do Juiz Municipal”, 25/11/1879. . Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de

escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira,

Campinas, 1879-1883, CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239, f.15. 41

“Petição do senhor”, 03/12/1879. Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art.

8º § 2º da Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-

1883 CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239 , f. 17.

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145

intra e interprovincial contribuíam para resultados semelhantes. Além de Casimiro, pelo

menos outros 23 libertandos da segunda metade do século XIX experimentaram essa situação

de repetitivas rupturas, pois haviam passado por outros locais após sair de suas terras de

origem e antes de chegar a Campinas e iniciar sua Ação de Liberdade. Há poucas informações

sobre a origem deles, mas sabe-se que pelo menos um nascera em Campinas e fora daí levado

para o município de Mogi Mirim.42

Apesar de ser um forasteiro e ter experimentado diversas vezes momentos de

instabilidade em sua trajetória, Casimiro não agia como um “desenraizado”. A petição inicial

do processo foi escrita e assinada pelo próprio cativo, o que é um detalhe que o diferencia da

imensa maioria dos libertandos que circularam nos tribunais de Campinas no século XIX.

Apenas dois cativos libertandos sabiam ler e escrever, Casimiro e Francisco Ferreira de Souza

Marques.43

Além de possuir certa instrução, Casimiro e Francisco tinham sobrenome. De

modo geral, era muito raro um escravo com sobrenome. Alguns autores chamam a atenção,

contudo, para adoção de sobrenomes pelos libertos como estratégia de assimilação,44

refletindo uma mudança de seu status social.45

De modo geral, como sublinha João de Pina

Cabral, o sobrenome cumpre o papel de ligar a pessoa a um “contexto de pertença social, a

estruturas de poder e processos burocráticos”.46

Encontramos pelo menos 19 libertandos portando sobrenomes nas Ações de

Liberdade. Contudo, quatro deles são processos de Manutenção de Liberdade e um de

Averiguação da Liberdade, ou seja, casos de libertos que procuravam na justiça proteção

contra tentativas de reescravização. Outros três processos são casos relacionados à prestação

de serviços para efetivação legal de alforria já concedida. Ou seja, pelo menos oito dos

42

Trata-se de Benedito, escravo da herança de Joaquim Floriano dos Santos Cruz, e que fugiu retornando à sua

terra natal (Campinas) e entrando na justiça para o reconhecimento de sua condição de livre. Ação de

Manutenção de Liberdade. Autor: Benedito, escravo da herança de Joaquim Floriano dos Santos Cruz,

Campinas, 1886-1886. CMU, TJC, 1º Of., P. 5449, Cx. 280. 43

Sua história será contada ainda neste capítulo. Autuação para Averiguação de Liberdade. Autor: Francisco

Ferreira de Souza Marques, escravo de João Ferreira de Souza Marques, Campinas, 1866-1866. CMU, TJC, 1º

Of., P. 3752, Cx. 179. 44

Richard Burton. “Names and naming in Afro-Caribbean cultures”.New West Indian Guide/ Nieuwe West-

IndischeGids 73:1-2, 1999, p. 41; John C. Inscoe. “Carolina Slave Names: An Index to Acculturation”. The

Journal of Southern History, 49:4, 1983, p. 548; Stephen Wilson.Means of naming: a social history. London,

Routledge, 1998, p. 311 Apud: Laura Álvarez-López. “Nomes pessoais e práticas de nomeação à sombra da

escravidão”. In: Lilian do Rocio Borba e Cândida Mara Britto Leite (orgs.). Diálogos entre língua, cultura e

sociedade. Campinas, Mercado das Letras, 2013, p. 153. 45

Richard Price e Sally Price. “SaramaccaOnomastics: An Afro-American Naming System”. Ethnology, v. XI, n.

4, 1972, p. 9. CitadoemLaura Álvarez-López. “Nomes pessoais e práticas de nomeação à sombra da escravidão”.

In: Lilian do Rocio Borba e Cândida Mara Britto Leite (orgs.). Diálogos entre língua, cultura e sociedade.

Campinas, Mercado das Letras, 2013, p. 153. 46

João de Pina Cabral.”Recorrênciasantroponímicaslusófonas”.Etnográfica,v.12, n. 1, 2008, p. 241 (disponível

em http://etnografica.revues.org/1684#tocto1n4, acessado em 14/04/2016).

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libertandos com sobrenome já eram libertos. Não há consenso entre os pesquisadores sobre a

frequência da adoção do sobrenome do ex-senhor pelos libertos.47

De todo modo, isso parece

ter sido realidade para pelo menos metade dos libertos com sobrenome que encontramos

nesses autos: Egídio Teixeira Nogueira, ex-escravo de Ângelo Custódio Teixeira Nogueira;48

Ludgero Leme Martins, ex-escravo de Antônio Leme Martins;49

Bárbara Constantino dos

Santos, ex-escrava de Francisco dos Santos Pinto;50

Francisco Ferreira de Sousa Marques, ex-

escravo de João Ferreira de Sousa Marques.51

Foi possível ainda encontrar um cativo alagoano que não apresentava sobrenome no

início da Ação de Liberdade, mas adotou o sobrenome do ex-senhor após a compra da alforria

pela via judicial. Seu nome era Tobias. Ele iniciou o litígio em 1878, e a efetivação de sua

liberdade se deu em 1881.52

Em 1884 ele deu início a uma nova ação, dessa vez para compra

da alforria de sua filha, Agda, usando na ocasião o sobrenome de um antigo senhor, “Franco

de Andrade”.53

Todavia, é intrigante observar que o sobrenome adotado por Tobias uma vez

liberto não foi o do senhor a quem indenizou pela sua liberdade, Luís de Abreu Pereira

Coutinho, mas sim o do antigo proprietário, de quem Pereira Coutinho o havia comprado, no

mesmo ano do primeiro litígio, o Major Júlio Franco de Andrade. Com isso, podemos

perceber que Tobias teve uma motivação própria na escolha do sobrenome adotado, que não

se encaixa na teoria de que os escravos com sobrenome o adotavam a partir do ex-senhor

quando se libertavam, ou seja, eles faziam escolhas dentro da gama de opções de que

dispunham. Neste caso, ele pode ter considerado que o sobrenome do Major teria mais

prestígio, conferindo maior proteção para a vida em liberdade.

47

Jerome S. Handler e JoAnn Jacoby.“Slave Names and Naming in Barbados, 1650-1830”.The William and

Mary Quarterly, 53:4, 1996, p. 720; Lorenzo Turner.Africanisms in the Gullah dialect.Columbia: Universityof

South Carolina Press, [1949] 2002, p. 40; obras citadas em: Laura Álvarez-López. “Nomes pessoais e práticas de

nomeação à sombra da escravidão”. In: Lilian do Rocio Borba e Cândida Mara Britto Leite (orgs.). Diálogos

entre língua, cultura e sociedade. Campinas, Mercado das Letras, 2013, p. 153; Jean Hébrard. "Esclavage et

dénomination: imposition et appropriation d'um nom chez les esclaves de la Bahia au XIXe siecle",Cahiers du

Brésil Contemporain, n° 53/54, 2003, p. 62. 48

Ação de Manutenção de Liberdade. Autor:Egídio Teixeira Nogueira, ex-escravo de Ângelo Custódio Teixeira

Nogueira, Campinas, 1866-1867. CMU, TJC, 2º Of., P. 1660, Cx. 94. 49

Ação de Manutenção de Liberdade. Autor:Ludgero Leme Martins, ex-escravo de Antônio Leme Martins,

Campinas, 1878-1880. CMU, TJC, 1º Of., P. 4681, Cx. 231. 50

Ação de Cumprimento de Cláusula de Prestação de Serviços. Autor: Bárbara Constantino dos Santos, ex-

escrava de Francisco dos Santos Pinto, Campinas, 1884-1884. CMU, TJC, 3º Of., P. 704, Cx. 41. 51

Ação de Averiguação da Liberdade. Autor: Francisco Ferreira de Sousa Marques, ex-escravo de João

Ferreira de Sousa Marques, Campinas, 1866-1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 52

Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor: Tobias, escravo de Luís de Abreu

Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. 53

A ação foi iniciada a rogo de Tobias Franco de Andrade. Ação de Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo

Fundo de Emancipação. Autora: Agda, escrava de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1884-1886.

CMU, TJC, 1º Of., P. 5252, Cx. 269.

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147

Os outros onze libertandos com sobrenome viviam em cativeiro. Pelo menos dois

deles parecem ter adotado o sobrenome ou parte do nome do senhor: Casimiro José de Moura,

escravo de Estevão José de Siqueira;54

Benjamim da Costa, escravo de Maria Emília da

Costa;55

Benedita Maria, escrava de José Maria Lisboa.56

Foi possível identificar que cinco

desses cativos eram forasteiros, e, entre os libertos com sobrenome, identificamos um que

tinha nascido em Campinas. Uma dessas mulheres forasteiras é Ursulina do Carmo, cuja

história vai ser explorada ainda neste capítulo, no próximo tópico.57

Ela nasceu e cresceu

junto com sua família na fazenda Capão Alto, no Paraná, que foi por muito tempo

administrada pela ordem dos Carmelitas, o que justifica a adoção do sobrenome “do Carmo”.

Ursulina foi comprada juntamente com um grande grupo de escravos pelo Comendador

Francisco Teixeira Vilella, em 1867.58

Nos registros de meia sisa foi possível encontrar mais

duas cativas desse grupo portando o sobrenome “do Carmo”.59

Outras 10 escravas do Capão

Alto adquiridas pelo Comendador também portavam sobrenomes. Alguns deles podem

também estar ligados a devoções, como “dos Santos”, “dos Anjos”, “da Conceição”. Nesse

grupo também chama a atenção mulheres com o mesmo nome e sobrenome, o que, em vista

das idades apresentadas, pode significar que se tratava de mãe e filha, ou parentas próximas:

há duas “Maria do Carmo” (uma com 40 anos de idade e outra com quatro), e duas “Maria

Inácia” (uma com 35 anos de idade e outra com oito).

A pertença a uma família de libertos também pode ter sido um fator determinante na

adoção de um sobrenome por pessoas escravizadas. Entre as Ações de Liberdade de

Campinas, temos o exemplo do libertando Pedro Ramos, que pode ter adotado o sobrenome

54

Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor:

Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883. CMU, TJC, 1º Of., P.

4803, Cx. 239. 55

Ação de Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autor: Benjamim da Costa, escravo

de Maria Emilia da Costa, Campinas, 1881-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 10112, Cx. 547. 56

Ação de Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Benedita Maria, escrava de José Maria Lisboa,

Campinas, 1874-1874. CMU, TJC, 1º Of., P. 4439, Cx. 216. 57

Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autora: Ursulina do Carmo, escrava do

Comendador Francisco Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95. 58

Sobre a comunidade escrava de Capão Alto e os escravos de Francisco Teixeira Vilella ver: Joice Fernanda de

Souza Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista: Escravos no Comércio Interno de Cativos e suas Experiências

em Campinas, 1850-1888. Dissertação (Mestrado Em História), UNICAMP, Campinas, 2013, capítulo 3, p. 143-

193; A comunidade de origem de Ursulina do Carmo também é investigada em Eduardo Spiller Pena. “Burlas à

lei e revolta escrava no tráfico interno do Brasil meridional, século XIX”, in: Silvia Hunold Lara e Joseli Maria

Nunes Mendonça (org.). Direitos e justiças no Brasil. Ensaios História Social. Campinas, Editora da

UNICAMP, 2006, p. 161-197. 59

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas,1867. CMU, Coletoria e Recebedoria de Rendas de

Campinas (CRC).

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148

da esposa liberta, Joana Ramos.60

O pecúlio apresentado em juízo para compra de sua alforria

também foi doado pela esposa.

Casimiro José de Moura, além de saber ler e escrever e portar um sobrenome, entendia

alguma coisa sobre a legislação emancipacionista do Império, uma vez que citou na petição o

parágrafo 2º do artigo 8º da Lei de 28 de setembro de 1871, que dispunha sobre a obrigação

senhorial de matricular seus cativos. Talvez seja exagerado atribuir tanto conhecimento legal

a um cativo; afinal, como podemos assegurar que ele tenha redigido por si só tal petição?

De fato, não é possível afirmar com exatidão se Casimiro e outros cativos que

protagonizaram Ações de Liberdade julgadas nos tribunais do Império de fato conheciam os

códigos e disposições legais citados em seus libelos de liberdade ou arrolados por seus

curadores em sua defesa. Nem se compreendiam os significados jurídicos – e políticos – de

suas pendengas contra os senhores. Mas, certamente, não estavam alheios às transformações

que vinham acontecendo no Império a respeito do encaminhamento do “elemento servil”. No

convívio com seus pares e também com indivíduos livres (militantes ou não do movimento

abolicionista), decerto aprenderam o que poderiam utilizar para justificar sua liberdade diante

do aparato judicial naqueles tempos.61

Considerando a relevância das alianças e redes de

solidariedade formuladas por homens e mulheres dentro do cativeiro para suas articulações

nas querelas judiciais contra seus senhores, passemos ao próximo tópico, em que essas

parcerias são analisadas.62

4.2. Alianças pela liberdade

A historiografia tem mostrado que a presença de um aliado na luta judicial – e também

fora dela – pode ter sido um fator importante para encorajar e sustentar a luta escrava contra o

cativeiro nos tribunais do século XIX. Geralmente era necessário que alguém redigisse e

assinasse o requerimento de liberdade, já que a imensa maioria dos cativos não sabia ler e

escrever. Também era importante contar com alguém que o protegesse tanto quanto possível

60

Ação de Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Pedro Ramos, escravo de Joaquim Bueno, Campinas,

1874-1874. CMU, TJC, 1º Of., P. 4440, Cx. 216. Não foi possível identificar a origem de Pedro. 61

Elciene Azevedo. Direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas,

Editora da Unicamp, 2010, p. 114-120. 62

Também discutimos sobre a importância das diferentes alianças forjadas pelos cativos nas lutas nos tribunais

em trabalho anterior: Leticia G. B. de Freitas. Escravos nos tribunais: o recurso à legislação emancipacionista

em ações de liberdade do século XIX. Monografia (Graduação em História), UNICAMP, Campinas, 2012.

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149

das presumíveis represálias de um senhor contrariado. Portanto, o libertando precisava ter

relações pessoais bem consolidadas.63

Para entender como a origem e a experiência do tráfico pode ter influenciado – ou não

– a formulação dessas parcerias nos litígios pela liberdade em Campinas, vamos examinar

alguns dados numéricos. Para começar, verificamos as ações que possuem mais de um autor.

Na tabela 24, podemos ver a quantidade de cativos que iniciaram litígios juntos, segundo a

origem.64

Tabela 24 – Distribuição dos escravos em Ações de Liberdade coletivas e

individuais, por origem (Campinas, 1860-1888).

Tipo de ação Campineiros

65 Forasteiros

N % N %

Ações coletivas 05 55,6 02 7,7

Ações individuais 04 44,4 24 92,3

Total 09 100 26 100

A maior parte dos cativos iniciou litígios individuais. A leitura da tabela 4.5 indica,

entretanto, uma singular disparidade entre a proporção dos forasteiros e a de campineiros

envolvidos em Ações de Liberdade coletivas. Não só proporcionalmente, mas também

numericamente, os escravos autores campineiros se sobrepõe ao de forasteiros nos processos

coletivos, sendo mais que o dobro. Somente uma ação coletiva foi protagonizada por

forasteiros, no caso duas escravas nascidas nos municípios de Amparo e Rio Claro.66

Mesmo

nesse processo, todavia, havia mais campineiros envolvidos. Eram três cativos nascidos em

Campinas, as duas forasteiras e mais quatro pessoas com origem não informada. Os nove

cativos eram filhos e netos de Guilhermina, liberta que conseguira o reconhecimento de sua

liberdade por tráfico ilegal em 1886, mesmo ano em que essa ação coletiva foi iniciada.

Impressiona neste processo a capacidade cativa de reunir tantos membros da família em uma

63

Keila Grinberg. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da corte de apelação do Rio de Janeiro

no século XIX. Rio de Janeiro,Relume-Dumará, 1994, p. 69-70. Sobre os riscos ao escravo que demandava

judicialmente contra seu senhor, ver também Elciene Azevedo. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama

na imperial cidade de São Paulo. Campinas, Editora da UNICAMP, 1999,p. 220. 64

Chamamos de ações coletivas aquelas que foram encabeçadas por dois ou mais escravos autores

conjuntamente. 65

Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi

informada. A distribuição dos crioulos em geral é de 10 envolvidos em ações coletivas e 31 em ações

individuais. Os dados para os africanos são 03 em ações coletivas e 04 em individuais. Sem considerar a origem,

verifica-se que 63 cativos iniciaram ações coletivas, e 127 ações individuais. 66

Ação de Liberdade baseada na Lei de 07 de novembro de 1831 (tráfico ilegal). Autores: Inês, João,

Henriqueta, Josefina, Valentina, Olímpia e Clementina, escravos de Domingos Francisco de Morais e outros,

Campinas, 1886-1888. CMU, TJC, 1º Of., P. 5458, Cx. 280.

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150

só causa de liberdade, ainda que não pertencessem todos ao mesmo senhor e morassem em

localidades diversas.

Além das ações protagonizadas por mais de um cativo autor, verificamos alianças

feitas com outros personagens nas demandas judiciais. Alguns desses aliados eram advogados

que simpatizavam ou militavam pela causa abolicionista,67

como o rábula Luís Gama que

direto da capital de São Paulo se ergueu em prol de pelo menos dois escravos de Campinas

para defender suas liberdades. Um deles foi Antônio, nascido em São Paulo e escravo da

senhora Maria Fausta de Castro Muller em Campinas.68

Luís Gama solicitou o início do processo alegando que a liberdade de Antônio

constava do testamento da senhora, mas que ela o vendera mesmo assim a Bartolomeu

Rodrigues Funchal. Interrogado o escravo Antônio, que estava em poder de Funchal,

constatou-se não se tratar da mesma pessoa libertada no testamento da senhora Muller.69

Todavia, não podemos descartar também as alianças que não são mencionadas nos

processos, como amigos, familiares e militantes do movimento abolicionista que davam

suporte ao cativo litigante, ajudando-o na fuga para se apresentar à justiça, ou na constituição

do pecúlio, por exemplo. Essas alianças são difíceis de vislumbrar na documentação, todavia,

contabilizando as ações coletivas e também aquelas que foram solicitadas por advogados

abolicionistas ou por familiares do libertando, temos pelo menos 70 escravos, o que

corresponde a 36,6% dos litigantes. Sabemos o local de nascimento dentro do Império para

apenas 11 crioulos: cinco deles eram nascidos no município de Campinas (45,45% entre os

crioulos), quatro na própria Província de São Paulo, dois de fora da região Sudeste

(totalizando 54,45% de forasteiros entre os crioulos). No entanto, pelo menos 13 desses

libertandos para os quais não temos informação de origem chegaram a residir em outras

localidades da Província antes de vir para Campinas, o que é um forte indicativo de que

fossem também forasteiros.

Logo, os dados indicam que, apesar de não serem maioria nas ações coletivas, mais

forasteiros tiveram aliados em seus litígios. Porém, proporcionalmente, os campineiros foram

os mais beneficiados por essas alianças, uma vez que seu número corresponde a 55,5% dos

campineiros, enquanto que os seis forasteiros que tiveram aliados correspondem a 23,1% de

67

Elciene Azevedo. O Direito dos escravos...,op. cit., p. 49. 68

Ação de Liberdade. Autor: Antônio, escravo de Maria Fausta de Castro Muller, Campinas, 1875-1876. CMU,

TJC, 2º Of.,Cx. 95, P. 1668. 69

O outro processo que teve solicitação de Luís Gama foi protagonizado por Caetano. Cf.: Ação de Liberdade

baseada na Lei de 07 de novembro de 1831 (tráfico ilegal). Autor: Caetano, escravo de Joaquim Policarpo

Aranha, Campinas, 1880-1881. Cf.: CMU, TJC, 2º Of., Cx. 95, P. 1683.

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151

todos os não nascidos em Campinas que entraram na justiça na segunda metade do século

XIX. Por outro lado, pelo menos 23 dos escravos com presença de aliados nos processos

(32,85%) tinham sido comprados depois de 1860. Podemos considerar que esses indivíduos

talvez tenham enfrentado dificuldades semelhantes às dos forasteiros para angariar tais

parcerias em seus litígios pela liberdade, haja vista que não haviam nascido nos locais onde

residiam.

O caso de Ursulina do Carmo é bastante interessante no que diz respeito às alianças

formadas para aquisição da liberdade por cativos forasteiros. Em 1875, essa escrava iniciou

ação cível contra os herdeiros de seu falecido senhor Francisco Teixeira Vilella para comprar

a liberdade mediante a apresentação de seu pecúlio.70

Durante o desenrolar do processo, os

herdeiros tentaram por diversas formas impedir que ela se alforriasse. Em determinado

momento, questionaram qual seria a origem do pecúlio acumulado. A resposta a esse

questionamento ocasionou uma singular revelação:

“respondeu tê-lo acumulado em virtude de seu trabalho e de doações

pequenas que lhe fizeram algumas pessoas, tendo recebido algum dinheiro

de sua mãe que lhe mandou da província do Paraná e também de sua irmã,

forra existente nessa cidade, que se a quantia exibida for insuficiente para

completar o preço da indenização do seu justo valor, tenciona obter o que

faltar, pedindo ou por empréstimo a alguém que se queira confiar para

depois de liberta pagar, ou empenhando-se com sua irmã Leocádia do Carmo

que lhe forneça a quantia precisa”.71

A compra da escrava Ursulina pelo Comendador Francisco Teixeira Vilella não consta

entre os registros da meia sisa. Todavia, essa documentação revela que, entre os anos de 1864

e 1868, Vilella adquiriu 307 novos escravos.72

Entre eles encontra-se Leocádia, a irmã de

Ursulina que teria lhe emprestado dinheiro para compra de sua alforria.73

Leocádia havia sido comprada em meio a um enorme grupo de cativos adquiridos de

uma só vez pelo comendador e registrado nos livros da meia sisa em fevereiro de 1868.74

Esse

grupo continha 186 cativos e vinha de uma comunidade escrava que existia há muitos anos na

70

Ação de Arbitramento para Liberdade. Autor: Ursulina do Carmo, escrava do Comendador Francisco

Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95. 71

Ação de Arbitramento para Liberdade. Autor: Ursulina do Carmo, escrava do Comendador Francisco

Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95, grifos nossos. 72

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1864-1868. CMU, Coletoria e Recebedoria de

Rendas de Campinas (CRC). 73

A escrava Leocádia não aparece com sobrenome nos registros da meia sisa. Registros da Meia Sisa de

escravos da cidade de Campinas, 1868. CMU, Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC). 74

Apesar de ter sido registrada no ano de 1868, essa compra foi realizada no ano anterior, uma vez que a cativa

Leocádia foi indiciada em crime cometido no município de Campinas em 1867, como vimos no capítulo 2

(páginas 78-9). Processo Crime. Réus: Januário, Cândido e Leocádia, escravos de Francisco Teixeira Vilella,

Campinas, 1867. Campinas. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP),

Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Microfilme CSP 215, Documento 004.

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152

fazenda de Capão Alto no município de Castro, Província do Paraná. Apesar de o registro do

pagamento da meia sisa atinente à compra de Ursulina não ter sido encontrado, tudo leva a

crer que ela fazia parte desse mesmo grupo, uma vez que também havia nascido na província

do Paraná.

Com os dados presentes na Ação de Manumissão e nos registros da meia sisa, e com

consulta à bibliografia,75

foi possível reconstituir vários elementos das trajetórias de vida

dessas duas mulheres: elas nasceram em Curitiba, Paraná, e viviam em meio a várias famílias

escravas, na fazenda Capão Alto. Quando Leocádia e Ursulina tinham por volta de 18 e 37

anos, respectivamente, uma transação entre o Comendador Vilella e a firma Gavião Ribeiro &

Gavião as trouxe para Campinas. A mãe das irmãs, todavia, permaneceu na localidade de

origem. Em Campinas, elas conseguiram juntar certa quantia em dinheiro, que usaram para

adquirir suas liberdades. Leocádia do Carmo conseguiu sua carta de alforria em 1873,

pagando ao senhor a quantia de 1:200$000 réis.76

Já Ursulina do Carmo, após ser avaliada por

médicos na ação judicial que moveu contra os irredutíveis herdeiros de Vilella, pagou

650$000 réis pela sua liberdade, efetivada em 1876.

Apesar de tantos detalhes sobre a trajetória das irmãs, ainda uma pergunta se impõe

diante das palavras de Ursulina, reproduzidas algumas páginas atrás: como a mãe, residente

na Província do Paraná, poderia ter lhe enviado a quantia que auxiliou a compra da sua

alforria? Como a família mantinha contato mesmo com tantos quilômetros de distância?

Em sua Dissertação de Mestrado, Joice F. Oliveira analisou com grande acuidade a

comunidade escrava pertencente ao Comendador Francisco Teixeira Vilella, e formulou uma

hipótese muito interessante para responder essas perguntas sobre as famílias de Capão Alto:

“Acreditamos que Ursulina contava com solidariedade de seu companheiro

Virgilino (…) [. Ele] exercia o ofício de tropeiro na comunidade de Santa

Maria [fazenda de Vilella], o que deve tê-lo permitido manter contato com

seus companheiros, os quais ficaram no Paraná e assim levava notícias e

encomendas de um canto a outro”.77

Histórias como a de Ursulina e Leocádia do Carmo elucidam alguns aspectos da

experiência e estratégias de escravos que foram comercializados em Campinas após o

fechamento do tráfico atlântico. A capacidade de manter os laços familiares mesmo após a

75

Sobre a comunidade escrava de Capão Alto e os escravos de Francisco Teixeira Vilella ver, principalmente

Joice Fernanda de Souza Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., capítulo 3, p. 143-193; A

comunidade de origem de Ursulina e Leocádia também é investigada em Eduardo Spiller Pena. “Burlas à lei...”,

op. cit., p. 161-197. 76

Alforrias de escravos. AEL, Fundo Peter Eisenberg, Fichas de Peter Eisenberg, Pasta 2, ficha n°544. Fonte

citada em Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 186. 77

Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 187.

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153

transferência para outra província é singular e, certamente, foi o desejo da maioria dos

homens e mulheres escravizados, assim como a própria conquista da liberdade.

A alforria não foi possível, entretanto, para a maioria dos seus companheiros da

comunidade de Capão Alto trazidos às fazendas do Comendador Vilella. Como demonstra

Joice Fernanda Oliveira, apenas 21 cativos de Francisco Teixeira Vilella conseguiram se

alforriar entre os anos 1852 e 1888.78

Entre eles, somente quatro eram forasteiros: Ursulina,

Leocádia, Edwiges e Inácio.79

Outro episódio que ocorreu no Tribunal de Justiça de Campinas expõe a possibilidade

de constituição e defesa da família escrava em meio a uma situação tão desfavorável. Tobias

Franco de Andrade, do qual falamos algumas páginas atrás, veio de longe, da Província de

Alagoas. Em 1878, iniciou ação contra seu senhor Luís de Abreu Pereira Coutinho para

arbitramento de sua alforria apresentando um pecúlio de 1:400$000 rs.80

A avaliação

provisória do Juiz Municipal foi de 800$000 rs. Os valores não foram aceitos pelo senhor

Pereira Coutinho81

e, com a impossibilidade do acordo, Tobias seguiu para a avaliação dos

peritos.

Como já exposto, os escravos que litigavam contra seus senhores corriam o risco de

sofrer retaliações mesmo durante o processo, por isso, uma vez que o litígio se iniciava, o

escravo era colocado em depósito público ou privado, em casa de uma pessoa livre que

assumisse a responsabilidade e os cuidados pelo cativo enquanto durasse o litígio e o

apresentasse em juízo quando fosse necessário. Essa pessoa era chamada de “depositário” e, o

nomeado para resguardar Tobias e seu pecúlio durante o processo foi o fazendeiro Abílio de

Camargo Andrade. No meio do litígio ele se mudou para fora do município, levando consigo

o libertando e o pecúlio. O fato foi prontamente reclamado pelo procurador do senhor, sendo

então nomeado um novo depositário, o próprio curador de Tobias, Francisco Glicério de

Cerqueira Leite.

A mudança do município levando o cativo pode ter sido uma estratégia para tratar o

processo com certa morosidade, dando assim possibilidades a Tobias de desfrutar de alguma

liberdade enquanto a peleja transcorria no foro e até mesmo dando-lhe mais facilidade para

completar o pecúlio necessário. Assinalamos a possibilidade de haver aí uma estratégia

78

Joice F. de S. Oliveira,Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 162. 79

Joice F. de S. Oliveira,Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 163. 80

Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu

Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. 81

“Ofício”, em 02/10/1878. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias,

escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233.

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154

escrava, pois havia certa proximidade entre Tobias e o fazendeiro Camargo Andrade, já que

este fora citado pelo libertando como guardião do seu pecúlio antes mesmo que o processo

fosse iniciado e foi nomeado depositário por sugestão do curador, em nome do cativo. A

bibliografia mostra que não era raro que os escravos litigantes passassem a desfrutar de

liberdade já no depósito, contando algumas vezes com a demora proposital do curador nos

procedimentos jurídicos exatamente para que pudesse assim permanecer longe do domínio

senhorial por algum tempo.82

O mesmo se pode dizer a respeito da presença de Francisco

Glicério como seu curador e depois depositário, já que ele era um conhecido abolicionista.

Sendo examinado pelos arbitradores, Tobias teve o preço de sua liberdade fixado em

1:800$000 rs.83

O curador juntou petição alegando que o valor era exorbitante, tendo em vista

que em um inventário aberto em 1872 Tobias foi avaliado em 1:200$000 rs.84

Na ocasião do

processo, ele já contava idade maior de 50 anos e o curador ressaltou que “com a idade se

aumentam os achaques, as doenças e os defeitos dos escravos”.85

Todavia, o juiz negou a

diminuição do valor arbitrado. Tentou-se ainda a Apelação para o Tribunal da Relação de São

Paulo, porém a quantia avaliada foi mantida. 86

Assim, Tobias só conseguiu completar o valor

e adquirir sua liberdade em 1881.87

Tobias era proveniente de Alagoas e, antes de chegar às mãos de Luís de Abreu

Pereira Coutinho, pertencia ao seu cunhado, o Major Júlio Franco de Andrade. Este o tinha

recebido em 1872 em herança pelo falecimento de seu pai, o Coronel José Franco de

Andrade.88

Em 1874, Tobias passou a pertencer à firma social Coutinho e Andrade, formada

pelos dois cunhados.89

Sabemos, no entanto, que o cativo estava na Província de São Paulo

82

Elciene Azevedo.O Direito dos escravos…, op. cit., p. 125. 83

“Arbitramento”, em 02/12/1878. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio.

Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731,

Cx. 233. 84

“Declaração da Avaliação do Inventário post mortem do Coronel José Franco de Andrade”, 1872, Ação de

Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira

Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. f. 26. 85

“Petição do Curador Francisco Glicério” . Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio.

Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731,

Cx. 233. f. 26. 86

“Termo de Apelação”, em 15/03/1879 e “Acordão da Relação”, em 31/10/1879. Ação de Arbitramento para

Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas,

1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. 87

Traslados de Execução de Sentença, de Sentença e de Sobressentença, 1881. Traslado de Ação de

Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira

Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 2º Of., P. 06, Cx. 01. 88

“Declaração de avaliação do cativo Tobias no inventário post mortem do Coronel José Franco de Andrade”

Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu

Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233.f.27. 89

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1878. Coletoria e Recebedoria de Rendas de

Campinas (CRC). CMU. “Declaração de Matrícula”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de

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155

pelo menos desde 1871, ano de nascimento de sua filha Agda, que era proveniente da

província e também constante do grupo de escravos pertencentes à firma social Coutinho e

Andrade.90

Em 1878, a firma social foi dissolvida e Pereira Coutinho pagou a metade que lhe

cabia em 130 escravos, incluindo Tobias e sua filha. Na ocasião da dissolução e partilha da

firma social, Tobias foi, de fato, avaliado em 1:800$000, o que foi uma das alegações do

senhor para que o valor do arbitramento judicial fosse mantido.91

A contestação senhorial

ainda permitiu identificar mais um detalhe na história de Tobias: ele era feitor e recebia

salários pelo seu serviço, o que deve ter sido a origem do seu pecúlio.92

O senhor Luís de Abreu Pereira Coutinho faleceu sem testamento em 1880 e, em seu

inventário, aberto no mesmo ano, consta uma lista de matrícula dos escravos adquiridos pela

dissolução da sociedade em 1878. Nela observamos que Tobias era preto, com boa aptidão

para o trabalho, trabalhador de roça, casado com Teodora93

e pai de Agda.94

Tobias não foi

avaliado no inventário, uma vez que estava tratando de sua liberdade. Sua filha, todavia,

aparece na lista de bens avaliados, pela quantia de 1:200$000 rs.95

A lista de escravos adquiridos em 1878 contém a maior parte dos cativos avaliados no

inventário e é bastante informativa com relação ao perfil da escravaria de Pereira Coutinho. A

imensa maioria dos cativos estava ocupada na lavoura, respondendo por 88,9% das ocupações

informadas.96

Acerca do estado conjugal (casamentos reconhecidos pela Igreja), observamos

Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P.

4731, Cx. 233. anexa ao processo. 90

Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. CMU, TJC, 4º Of., P. 4739, Cx.

162. 91

“Vista ao procurador”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias,

escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. ”. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233 f.

32. 92

“Vista ao procurador”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias,

escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. ”. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233 f.

33. 93

Não conseguimos obter nenhuma informação sobre a esposa de Tobias, Teodora, mas ela provavelmente era

também escrava de Pereira Coutinho, pois, apesar de seu nome não constar das listas de matrícula e de avaliação

dos bens anexas ao inventário, ao lado do nome de Tobias na lista de matrícula dos escravos de 1878 há anotação

“marido de Teodora n. 11619”. O número 11.619 infelizmente não consta na lista de matrícula, sendo Tobias o

11.618 e sua filha Agda o número 11.620, o que talvez tenha sido um erro do escrivão. Lista anexa ao Inventário.

Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. 4739, Cx. 162. 94

Lista anexa ao inventário. Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. CMU,

TJC, 4º Of., P. 4739, Cx. 162. 95

Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. CMU, TJC, 4º Of., P. 4739, Cx.

162. 96

Apenas 13 escravos foram identificados como trabalhadores especializados ou envolvidos em ocupações

domésticas, contra um montante de 104 trabalhadores de roça. Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira

Coutinho, Campinas, 1880. CMU, TJC, 4º Of., P. 4739, Cx. 162. Lista anexa ao inventário.

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156

que 20,1% dos escravos eram casados (29 indivíduos),97

e outros 2,8% viúvos (4), restando os

outros 77,1% (111) como indivíduos solteiros. Havia 15 crianças nessa comunidade, mas

apesar do número ser pequeno, nota-se que todas contavam com a presença de ambos os pais

na comunidade.

Quanto à origem, a comunidade escrava da propriedade de Pereira Coutinho era

composta por uma maioria forasteira, sendo que 63,6% dos crioulos eram, como Tobias,

provenientes de províncias fora do Sudeste. Por outro lado, um número considerável de

cativos havia nascido na própria província paulista: 33,1%.98

Desse modo, a senzala se

delineava como uma comunidade com o predomínio de forasteiros, trabalhadores da lavoura e

solteiros, mas com a presença de alguns casais com filhos.

Tobias, Teodora e Agda formavam uma dessas famílias nucleares e a luta pela

liberdade era um projeto familiar. Em 1884, três anos depois de conseguir a efetivação de sua

alforria, Tobias iniciou outra ação na justiça, para depósito de 100$000 no Fundo de

Emancipação para a libertação da filha.99

Já com 15 anos de idade, ela ainda foi identificada

no processo como escrava de Luís de Abreu Pereira Coutinho, uma vez que o inventário do

senhor continuava em tramitação.

Contudo, a liberdade de Agda não foi conquistada nesse processo. A petição para

depósito no Fundo de Emancipação foi deferida, no entanto, dois anos depois, em 1886, o pai

Tobias juntou nova petição, afirmando que:

“Como, porém, acontece que o suplicante não tem esperança de ver a sua

filha libertada pelo fundo de emancipação, por estar na classe dos

indivíduos, requer que a V. Exc.ª. se digne ordenar lhe seja passado

mandado de levantamento da referida quantia e juros respectivos”.100

Foram calculados juros de 5% sobre os dois anos e 22 dias decorridos entre as petições

iniciais e finais do processo, chegando a um montante de 110$301 rs a ser devolvido à

libertanda.

97

Um dos escravos identificados como casado não traz com seu nome a informação do nome da esposa, o que

pode ser um indício de que ela fizesse parte de outra propriedade escrava ou fosse liberta/ livre. 98

No inventário consta apenas a província de nascimento dos cativos, não sendo possível saber ao certo quais

eram nascidos em Campinas ou em outros municípios de São Paulo. Os números para essas cifras são 39

indivíduos nascidos na Província de São Paulo, 04 em outras províncias do Sudeste e 75 nascidos em outras

regiões do Império. Há ainda 12 africanos. 99

Nessa Ação de Liberdade, Tobias já aparece com um sobrenome: Tobias Franco de Andrade. Ação de

Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autora: Agda, escrava de Luís de Abreu

Pereira Coutinho, Campinas, 1884-1886. CMU, TJC, 1º Of., P. 5252, Cx. 269. 100

“Petição”, em 18/07/1886. Ação de Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autora:

Agda, escrava de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1884-1886. CMU, TJC, 1º Of., P. 5252, Cx. 269.

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157

4.3. Momento de início do litígio

Em trabalho anterior,101

que teve como cenário a cidade do Rio de Janeiro,

observamos a importância dos momentos de compra e venda para motivar a iniciativa dos

cativos nas demandas judiciais pela alforria. Das 39 Apelações Cíveis de liberdade que

analisamos naquele estudo, 16 foram iniciadas logo após a venda do cativo e oito quando a

transação estava sendo tratada ou o cativo sofrera ameaça de ser vendido, perfazendo 61,5%

dos autos examinados.

As Ações de Liberdade julgadas em Campinas mostram uma realidade um pouco

diferente. Entre os processos para os quais foi possível ter informações sobre o tempo

decorrido entre a compra do cativo e o início do litígio, 46,2% se deram nos cinco primeiros

anos após o libertando ter sido comprado pelo senhor que aparece como réu. Os 53,8%

processos restantes aconteceram de seis a vinte anos após as transações de compra desses

cativos. Para melhor discutir esses dados, vamos verificá-los levando em consideração a

origem dos cativos (tabela 25) e o tipo de ação impetrada (tabela 26).

Tabela 25 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram

Ações de Liberdade, por origem (Campinas, 1860-1888).

Tempo de moradia

Campineiros Forasteiros

N % N %

Menos de um ano 01 25,0% 01 5,0%

1 a 5 anos 02 50,0 06 30,0

6 a 10 anos 01 25,0 04 20,0

11 a 15 anos - 0,0 07 35,0

16 a 20 anos - 0,0 02 10,0

Total com origem e tempo de moradia

informado 04 100,0 20 100,0

A análise dos dados mostra que pelo menos 33,3% dos campineiros que recorreram à

justiça para demandar por sua alforria na segunda metade do Oitocentos haviam passado pelo

comércio local há até cinco anos (primeira e segunda linhas da tabela). Entre os forasteiros,

esse percentual cai para 26,9%. De fato, apesar de independentemente da origem a maior

parte dos libertandos residir nas escravarias há mais de seis anos, essa proporção é ainda

maior quando se trata dos forasteiros.

101

Leticia G. B. de Freitas. Escravos nos tribunais..., op. cit.

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158

Assim, precisamos olhar para esses dados por um ângulo diferente do que observamos

nos casos de crimes e fugas. Afinal, o início de um processo de liberdade não poderia se dar

de maneira repentina, pois dependia da aquisição de recursos humanos (aliados) e materiais

(pecúlio, por exemplo). Isso pode indicar que os campineiros, mesmo mudando de senhor e

passando pela experiência do comércio local, tenham tido maior facilidade – e rapidez – para

angariar os recursos necessários para levar à justiça sua causa de liberdade. Todavia, para os

forasteiros foi, em geral, necessário um tempo maior para encontrar meios que lhes

proporcionassem alguma segurança na decisão de ir aos tribunais.

Tabela 26 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram

Ações de Liberdade, por tipo de processo (Campinas, 1860-1888).

Tipo de ação x tempo de moradia

Menos

de um

ano

01 a 05

anos

06 a 10

anos

11 a 20

anos

Mais de

20 anos

Indenização ao senhor 5,1% 28,2% 28,2% 35,9% 2,6%

Liberdade - 66,7 - 33,3 -

Tráfico ilegal - - 25,0 75,0 -

Prestação de Serviços - 66,7 33,3 - -

Leis 2.040 e 3.270 - 66,7 - 33,3 -

Manutenção de liberdade 7,7 76,9 7,7 - 7,7

Total 4,6 41,5 21,5 29,2 3,1

Quando observados os tipos de Ações de Manumissão, verifica-se que em 66,7% das

ações envolvendo pecúlio, os litigantes estavam há mais de seis anos naquelas escravarias.102

Esse dado realça a necessidade de algum tempo para que o escravo recém-chegado a uma

nova escravaria acumulasse seu pecúlio e tivesse oportunidade de intentar uma ação na justiça

para a compra de sua alforria.

No lado oposto, vê-se que 84,6% das ações para Manutenção de Liberdade se deram

nos primeiros cinco anos em poder dos novos senhores, o que pode indicar que as tentativas

de reescravização combatidas nessas ações estavam ligadas às transações de compra e venda.

Isto porque a venda gerava documentos que materializavam o ato reescravizador e também

porque causava mudanças efetivas na vida do cativo.

Foi assim que Francisco Ferreira de Souza Marques entendeu o planejamento de sua

venda para o Capitão Camilo Xavier Bueno da Silveira e protagonizou uma interessante

102

Para este percentual, somamos os correspondentes a 6 a 10 anos de moradia, 11 a 20 anos e mais de 20 anos.

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159

pendenga judicial iniciada para provar sua liberdade em 1866.103

Ele havia nascido na

escravaria de João Ferreira de Souza Marques, no município de Campinas, tinha 27 anos, era

solteiro e tinha ofício de pedreiro. Mas Francisco era um escravo do tipo fujão.104

Em uma de

suas fugas se dirigiu à cidade de São Paulo onde se apresentou ao Chefe de Polícia da

Província alegando ser liberto. O Chefe de Polícia prontamente expediu uma solicitação ao

Juiz Municipal de Campinas, para que a alegação de Francisco fosse devidamente

averiguada.105

Constava que sua liberdade estava ameaçada em vista de os herdeiros de seu

senhor, falecido há cerca de quatro anos (em 1862),106

estarem planejando sua venda para o

Capitão Bueno da Silveira.107

De acordo com Francisco, a alforria foi dada pela senhora Gertrudes Maria de Jesus,

que tinha parte da propriedade sobre ele em vista da partilha após a morte de seu marido, o

senhor João Ferreira de Souza Marques. A outra metade pertencia a um dos herdeiros, a quem

ele deveria pagar 750$000 rs para usufruir de sua liberdade.108

A senhora teria dito então “que

trabalhasse para pagar a outra metade”109

. Todavia, “ultimamente indo ter com ela dizendo-

lhe que lhe passasse recibo das quantias que lhe ia dando por conta, disse-lhe esta que ele era

cativo”.110

Contudo, Francisco insistia na liberdade combinada com dona Maria de Jesus em vista

de outro fato. Em 1863 Francisco havia sido preso na cidade de São João Batista do Atibaia,

por ter sido encontrado com uma faca.111

Nessa ocasião mandou um recado à senhora em

Campinas pedindo que escrevesse uma carta ao Juízo de Atibaia, a fim de evitar que ele fosse

punido.112

A carta dizia que ele “metade era livre, metade cativo”113

. A senhora negou a

existência dessa carta, mas ela foi confirmada pelo filho dela, Benedito Ferreira Marques, que

teria escrito a mensagem a pedido da mãe. Apesar de ter afirmado que “essa carta foi escrita

103

Autuação para Averiguação de Liberdade. Autor: Francisco Ferreira de Souza Marques, escravo de João

Ferreira de Souza Marques, Campinas, 1866-1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 104

“Petição de Dona Gertrudes Maria de Jesus”, em 12/06/1866. Autuação para Averiguação de Liberdade.

Autor: Francisco Ferreira de Souza Marques, escravo de João Ferreira de Souza Marques, Campinas, 1866-

1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 105

“Portaria do Chefe de Polícia da Província de São Paulo”, em 19/03/1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.

179. 106

“Informações Tiradas de Dona Gertrudes Maria de Jesus” CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179, f.10. Ver

também Inventário de João Ferreira Marques, 1863. CMU, TJC, 3º. Of., P. 6990, Cx. 202. 107

“Termo de informação tomada ao Capitão Camilo Xavier Bueno da Silveira” CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.

179. f. 8. 108

“Auto de Qualificação em Traslado de processo crime”, 1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 109

“Perguntas ao preto Francisco”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179, f.9. 110

“Perguntas ao preto Francisco”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179, f.9. 111

Consta traslado de partes do processo crime anexos à Ação de Liberdade. 112

“Informação do preto Benedito, escravo de dona Gertrudes Maria de Jesus”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.

179 f. 11v. 113

“Perguntas ao preto Francisco”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. f. 9 e 9v.

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160

com o único fim de livrar esse escravo que então estava preso de apanhar na grade da Cadeia,

e nunca com o fim de por qualquer modo conceder a liberdade ao dito escravo”,114

essa

informação apontou uma contradição no depoimento de Dona Gertrudes, o que foi enfatizado

no arrazoado do curador.115

A senhora negou tudo com veemência, chegando a afirmar que “que nunca recebeu de

seu escravo nem sequer uma pataca de jornal há quatro anos depois da morte de seu

marido”.116

O Juiz Municipal concluiu em favor da viúva e dos herdeiros e a venda de

Francisco ao Capitão Bueno da Silveira foi concluída pouco depois.117

Francisco ainda teria

que enfrentar outro momento de instabilidade em sua vida, pois cinco anos depois o capitão

também faleceu, e mais um processo de partilha entre os herdeiros foi vivido pelo preto.118

Esta história mostra que mesmo os cativos nascidos nas lavouras campineiras não

estavam seguros diante do mercado de escravos do município. Francisco tinha pelo menos um

familiar na fazenda, o irmão mais velho, de nome Benedito.119

A morte de seu senhor

desencadeou mudanças na sua vida, que foram compreendidas por ele como oportunidade de

manumissão, mas também representaram ameaça à sua estabilidade. Por isso, logo após a

morte do senhor, Francisco passou a fugir e, quando percebeu que sua venda estava sendo

tramada, direcionou sua fuga para um local bem definido. Para Lizandra M. Ferraz, que

também analisou este processo, o apelo de Francisco ao Chefe de Polícia de São Paulo não foi

despropositado, uma vez que ele poderia ser também um militante da causa abolicionista.120

Portanto, Francisco, que sabia ler, apesar de não saber escrever, tinha consciência do

que era necessário fazer para se proteger do destino planejado pelos herdeiros de Ferreira

Marques. A venda para o Capitão Bueno da Silveira representava uma grande mudança de

realidade. Na escravaria de origem, havia apenas três escravos: Francisco, sua mãe Maria e o

irmão Benedito.121

Com a venda, além de ficar distante dos membros da família, Francisco

114

“Informação de Benedito Ferreira Marques”, CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. f. 10v. 115

“Vista ao Curador Rodrigo Otavio de Oliveira Menezes”, em 26/4/1866, CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.

179.f.18. 116

“Informações tiradas de Dona Gertrudes Maria de Jesus”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. F.10. 117

Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, ano fiscal 1865-1866. CMU, CRC. 118

O processo de inventário, todavia, se arrastou até 1894, conforme o detalhado estudo sobre a escravaria do

Capitão Camilo Xavier Bueno da Silveira feito por Cristiany Miranda Rocha, em História de famílias escravas:

Campinas, século XIX. Campinas, Editora da UNICAMP, 2004. 119

“Informação do preto Benedito, escravo de dona Gertrudes Maria de Jesus”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.

179, f. 11.

120

Seu nome era Cândido Xavier de Almeida e Souza. Lizandra M. Ferraz. Entradas para a liberdade..., op.

cit.,p. 164-5. 121

Inventário post mortem de João Ferreira Marques, 1863. CMU, TJC, 3º Of., P. 6990, Cx. 202. Fonte citada

em: Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 153.

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161

faria parte de uma grande escravaria, já que o Capitão Silveira era um grande proprietário,

possuidor de mais de duas centenas de cativos.122

O cativo Tobias, cujo processo de arbitramento para liberdade descrevemos

anteriormente, também iniciou o litígio por sua alforria em um momento bastante específico.

Como vimos, ele foi adquirido pelo Major Júlio Franco de Andrade em 1872, em herança de

seu pai. Em 1874, Tobias passou a pertencer à firma social formada por Luís de Abreu Pereira

Coutinho e o major.123

Em 1878, ano em que deu início ao litígio, Tobias passou a pertencer unicamente a

Pereira Coutinho, com a dissolução da sociedade com o Major Franco de Andrade.124

Não é

possível saber se a dissolução e a partilha da sociedade representaram alguma mudança

efetiva na vida daqueles 130 cativos, mas podemos conjecturar que Tobias tenha percebido

nessa transação uma oportunidade para a compra de sua alforria, uma vez que se tinha sido

feita uma avaliação de seu preço.

Todavia, o que sugerimos que pode ter sido mais determinante na decisão de Tobias

de apresentar seu pecúlio na justiça naquele momento é o fato de ele ter sido hipotecado pelo

senhor Pereira Coutinho a Antônio de Freitas Guimarães. Não é possível afirmar com certeza

se o cativo sabia da hipoteca, mas o fato é que Pereira Coutinho efetivou a compra da metade

que lhe cabia na sociedade Coutinho & Andrade em 18 de julho de 1878 e sua fazenda foi

hipotecada com toda sua escravatura a Freitas Guimarães no dia seguinte. Menos de três

meses depois, Tobias iniciou o litígio pela sua liberdade. Além disso, como era feitor da

fazenda, é bastante provável que ele tivesse acesso privilegiado a informações. Tobias pode

ter julgado ser mais prudente tomar alguma atitude para garantir seu futuro antes de ser

entregue a um novo senhor, mesmo não possuindo o montante suficiente para indenizar o

valor pelo qual foi avaliado na dissolução da firma social Coutinho & Andrade.

Apesar de ele ter demorado mais algum tempo para completar a quantia necessária

para indenizar sua alforria, a estratégia de entrar na justiça naquele momento funcionou, uma

vez que Tobias já não aparece na lista avaliada no inventário do senhor, que foi aberto em

122

O Capitão possuía 275 escravos na ocasião de seu falecimento, em 1871. Lizandra M. Ferraz,Entradas para a

liberdade..., op. cit.,p. 156. Sobre esse escravista ver também Cristiany M. Rocha. História de famílias

escravas..., op. cit. 123

No ano em que a escravaria passou a pertencer à firma social, isto é, em 1874, outro cativo também entrou na

justiça com vista a indenizar sua alforria com seu pecúlio: Joaquim Mina, avaliado em 1:800$000 rs. Ação de

Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Joaquim Mina, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho e

Júlio Francos de Andrade, Campinas, 1874-1875. CMU, TJC, 2º Of., Cx. 95, P. 1667. 124

“Declaração de Matrícula”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio.

Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731,

Cx. 233.; e Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1878. CMU, CRC.

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162

1880, quando o processo ainda estava em andamento. Na lista dos escravos que foram

adquiridos por Pereira Coutinho em 1878, que está anexa ao inventário, Tobias aparece com a

anotação “forro” ao lado de seu nome. Essa anotação, provavelmente, foi adicionada pelo

inventariante em 1881, quando a alforria foi efetivada em juízo pela indenização completa.

Como vimos, três anos após conseguir comprar sua liberdade, Tobias investiu na

tentativa de comprar também a de sua filha Agda, o que se deu enquanto o processo de

inventário do senhor ainda tramitava, isto é, em momento de mais uma incerteza quanto ao

futuro de um membro da família. A história de Tobias mostra a constituição da família após o

tráfico para Campinas, os momentos de instabilidade vivenciados por causa das escolhas dos

proprietários e as estratégias familiares para obtenção da alforria. A ocupação de Tobias como

feitor parece ter sido importante para o acúmulo do pecúlio que utilizou para a compra da

liberdade. No entanto, isto não evitou que a família passasse por momentos de incerteza e

instabilidade, como os processos de dissolução da firma Coutinho & Andrade, de hipoteca da

escravaria e de falecimento e inventário de Luís de Abreu Pereira Coutinho.

A morte do senhor geralmente representava um momento de incertezas na vida dos

cativos.125

Isso pode ser visto, por exemplo, na história de Ursulina do Carmo, analisada há

pouco. Ela era forasteira e iniciou um processo aparentemente simples de arbitramento da

liberdade, mas que tramitou em meio a muitos obstáculos interpostos pelos herdeiros do

falecido senhor Francisco Teixeira Vilella, que contestaram a origem de seu pecúlio.126

Outra escrava da herança de Vilella, todavia, também teve sua liberdade dificultada

pelos herdeiros. Rita era nascida em Campinas e tinha 67 anos quando iniciou processo para

compra de sua alforria.127

Tentando atrapalhar o andamento do litígio, os herdeiros de Vilella

a levaram para um sítio em Limeira. Além disso, também questionaram a legalidade da

origem do pecúlio apresentado para compra de sua alforria e afirmaram que ela estava

hipotecada.

As histórias das duas cativas, Ursulina e Rita, demonstram que, ao menos a princípio,

ser campineira ou forasteira não representava grande diferença para a aquisição da liberdade

nos tribunais. Nesses casos, o que mais pesou para as dificuldades impostas à aquisição da

alforria não foi a origem das libertandas, mas sim a obstinação dos herdeiros, premidos pelas

125

Sidney Chalhoub. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão naCorte. São Paulo,

Companhia das letras, 1990, p. 111-2. 126

Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autora: Ursulina do Carmo, escrava do

Comendador Francisco Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95. 127

Ação de Liberdade por apresentação de pecúlio. Autora: Rita, escrava de Maria Josefa da Conceição,

Gabriel Alves de Assunção e José Teixeira Vilella, Campinas, 1879-1881. CMU, TJC, 2º Of., P. 1681, Cx. 95.

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163

dívidas deixadas pelo Comendador. De fato, Vilella faleceu deixando todos seus bens

hipotecados, incluindo todas as fazendas e a imensa escravaria.128

*

A análise do perfil dos cativos presentes nas Ações de Liberdade julgadas na segunda

metade do século XIX em Campinas mostrou que alguns desses indivíduos vieram de

bastante longe. Dos 26 crioulos não nascidos em Campinas, 14 vinham de províncias fora do

Sudeste, isto é, 53,8%. Esses, certamente, haviam experimentado uma situação de

desenraizamento maior. Todavia, praticamente todos eles conseguiram obter sua alforria ao

fim da demanda judicial.

De fato, a proporção de processos que terminaram com a liberdade do cativo foi

semelhante tanto entre campineiros quanto entre forasteiros: 88,9% dos primeiros e 88,5%

dos últimos.129

Isso mostra que, pelo menos no que tange às possibilidades de conquista da

alforria por meio da justiça, forasteiros e campineiros tiveram resultados praticamente iguais,

apesar de um número muito maior de forasteiros ter recorrido à justiça para tanto. Isso pode

indicar que outros fatores além da origem tenham sido relevantes para determinar as

possibilidades de um cativo buscar sua alforria nos tribunais ou considerar necessário acionar

esse tipo de estratégia.

Chamamos a atenção, por exemplo, para a importância da presença de um aliado na

demanda judicial e para os momentos de incerteza vividos pelos cativos, como ameaças de

venda, falecimento do senhor ou hipoteca dos cativos, o que os motivava a buscar a justiça

como forma de garantir a alforria. Além disso, aparentemente, as motivações para a busca da

alforria nos tribunais eram maiores ao longo do tempo de permanência desses indivíduos nas

fazendas, uma vez que os que tinham tempo de moradia maior foram os que mais tentaram

consegui-la pela via judicial, pois tinham maiores possibilidades de juntar pecúlio e comprar

sua liberdade, por exemplo.

A desproporção entre forasteiros e campineiros nessas pendengas judiciais pode

indicar, por outro lado, que os primeiros tenham tido maior dificuldade de negociar suas

alforrias diretamente com os senhores, sendo então necessária a interferência judicial.

128

Inventário post mortem do Comendador Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1873. CMU, TJC, 1º Of., P.

4359, Cx. 257. 129

Incluímos aqui as ações cuja sentença foi “procedente” ou “deferida”, como nas ações de depósito de Pecúlio

ou Fundo de Emancipação, por exemplo; e também as em que o cativo conseguiu indenizar o senhor e comprar a

alforria.

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164

O que mais salta aos olhos nas histórias por trás das Ações de Liberdade, contudo, é a

capacidade que os forasteiros tiveram para angariar recursos, formular novas alianças e até

mesmo manter laços de solidariedade ou familiares na luta pela alforria.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da análise de uma documentação diversa, ao longo deste estudo, buscamos

observar as experiências dos indivíduos que foram trazidos ao município de Campinas no

contexto de intensificação do comércio interno de escravos na segunda metade do século

XIX. Chamando essas pessoas de forasteiros, tentamos identificar o quanto a experiência do

tráfico interferiu em suas trajetórias de vida e quais estratégias utilizaram para sobreviver aos

impactos do tráfico interno.

Retomando a questão sobre quem eram esses forasteiros, colocada no início deste

trabalho, notamos que mais da metade (50,9%) dos cativos que se envolveram em crimes,

iniciaram Ações de Liberdade ou fugiram das propriedades senhoriais após 1860 eram

crioulos trazidos ao Sudeste pelo tráfico interprovincial.1 As diferentes distâncias dos locais

de origem parecem ter tido uma relevância significativa sobre as experiências desses

indivíduos. Ainda que, de maneira geral, todos os escravos comercializados enfrentassem

alterações nas políticas de domínio e na relação com o senhor a que estavam sujeitos na terra

natal, além da separação de familiares e a desestruturação de redes de solidariedade, aqueles

que tinham nascido em áreas próximas de Campinas mas foram submetidos ao tráfico

intraprovincial, poderiam ter maior esperança de rever antigos companheiros. Tinham

também algumas vantagens em relação a seus outros companheiros por conhecer melhor o

ambiente ao redor do município, o que pode ter facilitado fugas e outras estratégias de

resistência à escravidão.

Outro aspecto importante para definir quem eram esses forasteiros diz respeito ao

tempo transcorrido entre sua chegada às novas escravarias e seu envolvimento em crimes,

ações de liberdade e evasões. Distribuímos os cativos encontrados nas fontes judiciais e

anúncios de fuga analisados em dois grupos, distinguindo entre aqueles que eram “recém-

chegados” (com até 10 anos de moradia) e os mais “ladinos” (mais de 10 anos de moradia).2

1 Vale ressaltar que é possível que parte desses cativos tenha chegado ao Sudeste junto com senhores que

migraram para estas paragens. Não deixa de se tratar, todavia, de indivíduos submetidos à migração forçada.

Dados referentes à Tabela 1, p. 39. 2 Esse procedimento de análise foi desenvolvido por Ricardo Pirola em seu estudo sobre os rebeldes escravos

julgados pela lei de 10 de junho de 1835. Cf.: Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma

história social da lei de 10 de junho de 1835. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2015, p. 247ss.

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166

Com isso, buscamos vislumbrar as diferentes possibilidades de atuação que se colocavam para

os indivíduos transacionados, uma vez inseridos nas escravarias de Campinas.3

Ainda que o tempo de residência não seja um dado suficiente para discutir o peso que

a experiência do tráfico interno teve sobre a ação cativa, como ressaltamos na introdução

deste trabalho, usá-lo em um procedimento de análise como esse permite ao menos

vislumbrar o campo de possibilidades que se delineava diante dos forasteiros em momentos

diferentes de sua vida em Campinas. Ao dividirmos nossos sujeitos em grupos residentes nas

escravarias há mais ou menos de 10 anos corremos o risco de estar escolhendo a faixa de

tempo “errada” para a análise. Se, por exemplo, observássemos os residentes até cinco anos

ou mais, poderíamos encontrar proporções diferentes. Afinal, quanto tempo era necessário

para que um cativo forasteiro deixasse de ser um “recém-chegado”? Todavia, a estratégia

analítica adotada nos parece válida neste momento conclusivo, uma vez que permite uma

flexão das observações que vimos fazendo até agora, confirmando resultados já evidenciados

em outros momentos da Dissertação.

Tabela 27 – Distribuição dos escravos réus, vítimas, fugitivos e litigantes por

origem e tempo de moradia no momento da ação (Campinas, 1860-1888).

Campineiros

Forasteiros Geral

Papel Até 10

anos %

Mais

de 10

anos

%

Total tempo

de moradia

informado

Até 10

anos %

Mais

de 10

anos

%

Total tempo

de moradia

informado

Total

geral

Réus 04 66,7 02 33,3 06

35 72,9 13 27,1 48 54

Vítimas - - - - -

05 62,5 03 37,5 08 08

Fugitivos 05 100,0 - - 05

148 93,7 10 6,3 158 163

Litigantes 04 100,0 - - 04

11 55,0 09 45,0 20 24

Total com

tempo de

moradia

informado

13 86,7 02 13,3 15

199 85,0 35 15,0 234 249

Fontes: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. Centro de Memória da Unicamp

(CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC); Ações de liberdade, Campinas, 1866-1888.

Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de Justiça de Campinas (TJC); Seção Processos Crimes do

Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em

São Paulo (CSP); Gazeta de Campinas, 1869-1884.

A grande maioria dos escravos réus, vítimas, fugitivos e litigantes pela liberdade,

considerados conjuntamente, se envolveu nessas situações nos 10 primeiros anos em poder

3 Ressaltamos que, os dados de que dispomos correspondem apenas ao tempo em que esses forasteiros estavam

nas propriedades no momento em que praticaram as ações retratadas na fonte, não observando o tempo que

podem ter estado anteriormente em Campinas em poder de outro (s) senhor (es).

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dos novos senhores, tanto entre os campineiros (86,7%),4 quanto entre os forasteiros (85%).

Entre os últimos, essa proporção é ainda maior quando se trata das fugas (93,7%), o que pode

indicar que os recém-chegados viam na evasão a primeira estratégia possível na luta contra o

tráfico, como supôs Pirola ao notar um número muito pequeno de cativos inclusos na faixa

“menos de um ano” de moradia na mesma fazenda entre os pronunciados pela lei de 10 de

junho de 1835.5 De fato, como visto no capítulo 3, um percentual significativo de fugitivos

tinha chegado às fazendas há menos de um ano (33,5% dos forasteiros com tempo de moradia

informado).6

Em segundo lugar, vemos os crimes como situações que envolveram esses forasteiros,

como réus ou vítimas, numa proporção bastante alta entre os recém-chegados (72,9%). As

Ações de liberdade, igualmente, foram intentadas mais frequentemente por forasteiros

residentes há menos de 10 anos nas escravarias, apesar de ter uma proporção um pouco mais

equilibrada (55%), com relação às outras ações escravas.

Certamente, o protagonismo dos indivíduos trazidos para Campinas pelo tráfico

interno em atos de criminalidade contribuiu para disseminar o epíteto do “negro mau vindo do

norte”, ainda que Célia Azevedo saliente que esse tema tenha surgido nos discursos

parlamentares em conformidade com os interesses dos deputados que pretendiam impedir a

continuidade do tráfico de escravos para São Paulo,7 tendo um cunho bastante racista e

imigrantista. Por outro lado, ao olhar para as ações desses indivíduos em busca de liberdade

na justiça, podemos identificar alianças e situações que permitem discutir de outra forma as

estratégias desses sujeitos diante do tráfico interno – afinal, o recurso aos tribunais não foi

possível a um número muito grande de escravos no período, o que torna especialmente

singular a presença massiva de desenraizados nesse número.

Como já apontou Maria Helena Machado, é possível verificar que a rigidez do

trabalho e as condições de vida a que os cativos estavam submetidos foram importantes

elementos ligados às suas formas de mobilização.8 Todavia, Machado não considerou que

essas inquietações se apresentaram mais latentes entre aqueles que vinham de realidades

muito diferentes, com maior autonomia e esperanças de alforria nos seus locais de origem.

Como demonstra a historiografia, os pequenos proprietários não tinham como impor a

4 Contabilizamos aqui apenas os campineiros que passaram por transações de venda.

5 Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de junho de

1835. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2015, p. 247. 6 Conforme Tabela 18, p. 123.

7 Célia M. M. Azevedo. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 111-118. 8 Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.

São Paulo: Edusp, 2010, p. 25.

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disciplina aos seus cativos como os grandes cafeicultores. E a liberdade – ao menos como

promessa – era uma arma senhorial de barganha que dava certa esperança ao cativo. Dentro

das fazendas de café em Campinas, os homens e mulheres adquiridos no comércio interno

sabiam que a tão sonhada liberdade estava ainda mais distante, uma vez que os senhores

esperavam que eles compensassem seu alto preço com trabalho duro e prolongado. 9

Como verificou Maíra Chinelatto, os crimes da década de 1870, em relação com o

período anterior à intensificação do tráfico interno, ocorreram em propriedades maiores e

envolveram mais escravos,10

muitos deles, como vimos, eram forasteiros. Chinelatto também

constatou que os réus escravos da década de 1870 premeditaram mais frequentemente os

crimes contra feitores e senhores, do que os da década de 1840,11

o que demonstra de antemão

a cumplicidade cativa que se delineava nessas senzalas, mesmo nas propriedades maiores,

onde a proporção de forasteiros era bastante significativa.

Contudo, o fato de que os forasteiros tenham sido maioria entre os cativos que

compraram sua alforria na justiça pode indicar, por um lado, suas expectativas com relação às

possibilidades de adquirir a alforria por meio de acordos privados com o senhor. Por terem

vindo de fora e não gozarem dos favores senhoriais que, talvez, se estenderiam às “crias da

casa”, podem ter visto na justiça o meio mais provável de garantir a liberdade. Podemos

imaginar também que alguns desses libertandos tenham trazido de seus locais de origem ao

menos uma parte do pecúlio apresentado em juízo, já que muitos vinham de áreas urbanas e

exerciam ocupações especializadas.

Por outro lado, o menor número de campineiros que iniciaram ações de liberdade

nesse período, em comparação com sua proporção entre a população escrava do município,

permite conjecturar que tenham desenvolvido outras estratégias para aquisição da liberdade,

como a proximidade com a casa grande e o mundo dos livres. Indo um pouco além nessa

especulação, podemos sugerir que esse tenha sido um dos motivos pelos quais os campineiros

também se envolveram mais frequentemente que os forasteiros em conflitos com livres e

9 Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies, slave experience, and the

politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal slave trades in the

Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70; “Laços de família e direitos no final

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Trabalhadores na cidade: Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX . Campinas,

Editora da Unicamp, 2009, p. 55. 10

Maíra Chinelatto. Quando falha o controle: crimes de escravos contra senhores. Campinas, 1840/1870.

Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 127. 11

Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 127.

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169

outros escravos, do que com senhores e feitores, como mostra a documentação criminal

analisada.12

Também foi bem menor o número de campineiros encontrados entre os fugitivos de

Campinas. Todavia, pode ser que nossa fonte tenha exagerado o número de forasteiros

fugitivos, isto é, não podemos descartar a possibilidade de que muitos campineiros também

tenham fugido, mas não tenham tido a evasão noticiada na Gazeta, talvez pelo fato de os

senhores não acreditarem que eles pudessem ir muito longe, já que suas famílias estavam nas

fazendas. Ou por, de fato, terem sido capturados mais rapidamente do que os forasteiros.

Se, entretanto, os forasteiros tenham, com efeito, fugido mais frequentemente,

podemos supor que eles nutriam fortes laços familiares nos locais de origem, e desejavam

ansiosamente revisitar sua família, o que só poderiam fazer através de ações mais incisivas,

seja a fuga, o crime ou a compra da alforria. Tais laços estavam, porém, mais próximos no

caso dos campineiros, ainda que não na mesma senzala, constituindo diferentes necessidades,

anseios e estratégias.

Logo, os resultados da análise quantitativa feita nesta pesquisa, bem como do

acompanhamento de algumas histórias dos escravos que chegaram a Campinas por meio do

tráfico interno, indicam que essa experiência certamente contribuiu de forma decisiva para as

atitudes desses sujeitos, uma vez que não aceitavam as novas políticas de domínio nas quais

foram inseridos, bem como tinham o forte desejo de revisitar seus antigos laços familiares e

de solidariedade.

Ressaltamos, contudo, que os atos de rebeldia escrava que investigamos não foram

cometidos por todos os cativos forasteiros residentes no município. Nem mesmo pela maioria

deles. Por isso, não podemos simplesmente considerar todos os forasteiros como rebeldes,

como “negros maus vindos do norte”, nem classificar as ações retratadas nas fontes como

reações instintivas. Mesmo passando por situação muito desfavorável, como era o tráfico

interno, em especial o interprovincial, essas pessoas não perderam as esperanças de

influenciar no seu próprio destino, formulando novas redes de solidariedade e estratégias para

exigir condições melhores de vida e trabalho nas novas escravarias, bem como para lutar por

sua liberdade.

Reforçamos, por isso, a evidência de que, uma vez introduzidos nas escravarias do

município, os forasteiros não permaneceram como estranhos e desenraizados, no sentido mais

profundo da palavra, isto é, não perderam suas raízes. Elas permaneciam com eles, como pode

12

Vide Tabela 8, p. 61.

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ser notado nos vários forasteiros que mencionaram os nomes de seus pais nos autos criminais,

por exemplo. Ao mesmo tempo em que a dor dos rompimentos sociais e afetivos e a não

aceitação das novas relações de trabalho estão no cerne dos motivos que levaram tantos

cativos forasteiros a fugir, ou a atuar nos tribunais, seja como libertando, ou sentado no banco

dos réus, foi também sua capacidade de criar novos laços de solidariedade e cumplicidade,

bem como a constituição de novos projetos de vida, que lhes conferiu a possibilidade de

realizar esses atos.

É muito difícil identificar essas redes de sociabilidade de uma maneira mais completa,

que permita avaliar se esses forasteiros estavam ou não integrados nas escravarias em que

chegaram. Podemos sugerir, todavia, que havia de fato algum nível de integração desses

sujeitos com os locais, já que vários se uniram a companheiros de cativeiro para cometer

crimes, fugir ou demandar judicialmente por sua liberdade. Acreditamos que as ações

coletivas desses sujeitos tenham sentidos profundos dentro da análise da sociabilidade

escrava, uma vez que demonstram a junção de pessoas de origens diversas em torno de

objetivos comuns, seja ele evadir-se do poder senhorial ou “dar cabo” de uma pessoa que

desagradava à senzala.

Se fossem “estranhos” à comunidade, certamente esses sujeitos não seriam cotados

para fazer parte de planos importantes que decidiam o futuro da senzala – e alguns exerceram

até mesmo papéis de destaque em alguns delitos. Quando consideramos oposições no interior

de uma senzala dividida, seja em razão de incentivos senhoriais ou por diferenças de origem

dos cativos, e uma senzala apaziguada por relações familiares formais (com casamentos

reconhecidos pela igreja, por exemplo), corre-se o risco de excluir da análise histórica uma

série de sociabilidades e capacidades de reelaboração que esses homens e mulheres

escravizados vivenciaram em suas lutas cotidianas. Além de apontar a presença massiva de

forasteiros entre o cativos que lutaram de diversas formas contra o cativeiro em Campinas na

segunda metade do Oitocentos, a análise das fontes permitiu observar que, mais do que tão

somente uma reação ao tráfico, suas atitudes foram fruto de uma reelaboração de sua luta

contra a escravidão em uma situação ainda mais desfavorável.

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FONTES

a) Fontes manuscritas

Arquivo Edgard Leuenroth (AEL)

Autos Crimes em São Paulo (CSP) – Seção Processos Crimes do Interior – Campinas

(ACI), Campinas, 1860-1886.

Centro de Memória da Unicamp (CMU)

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escravos da cidade de Campinas, 1860-1884.

b) Fontes impressas

Periódico

Gazeta de Campinas, 1869-1884.

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