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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
LETÍCIA GRAZIELE DE FREITAS LEMES
VIVENDO UM “ESPETÁCULO DE MISÉRIAS”:
A EXPERIÊNCIA DOS ESCRAVOS TRAFICADOS PARA CAMPINAS, 1860-1888.
CAMPINAS
2016
LETÍCIA GRAZIELE DE FREITAS LEMES
VIVENDO UM “ESPETÁCULO DE MISÉRIAS”: A EXPERIÊNCIA DOS
ESCRAVOS TRAFICADOS PARA CAMPINAS, 1860-1888.
Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos para
obtenção do título de Mestra em História, na Área
História Social.
Supervisor/Orientador: Profa. Dra. Silvia Hunold Lara
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA
PELA ALUNA LETÍCIA GRAZIELE DE FREITAS
LEMES E ORIENTADA PELA PROFA. DRA.
SILVIA HUNOLD LARA.
______________________________________
CAMPINAS
2016
Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta
pelos Professores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 27 de setembro de 2016,
considerou a candidata Letícia Graziele de Freitas Lemes aprovada.
Profa. Dra. Silvia Hunold Lara
Prof. Dr. José Flávio Motta
Prof. Dr. Ricardo Figueiredo Pirola
Profa. Dra. Maria de Fátima Novaes Pires
Prof. Dr. Robert Wayne Andrew Slenes
A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no
processo de vida acadêmica da aluna.
Para meus pais, Raquel e José.
E para meu filho, Marcos Gabriel.
AGRADECIMENTOS
É chegada a hora dos agradecimentos, e como é bom saber que há tantas pessoas a
agradecer. A começar por Deus, que é o princípio de tudo, me possibilita sonhar e concluir
tantos projetos de vida e me cerca de pessoas maravilhosas todos os dias. Muitas delas foram
essenciais para a realização deste trabalho. Espero não me esquecer de mencionar nenhum
nome, mas se o fizer aqui, não os esquecerei em minhas orações.
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, e
também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, pelo
apoio financeiro a esta pesquisa.
Agradeço, imensamente, à Prof.ª Dr.ª Silvia Lara, que me orientou na realização deste
trabalho, com muita dedicação e paciência em nossas reuniões, na leitura dos textos, nas
sugestões e correções ao longo de todo o percurso, sendo criteriosa e ao mesmo tempo
acolhedora, especialmente nos momentos mais necessários. A admiração que sempre tive por
sua excelência acadêmica cresceu ainda mais nos últimos anos.
Estendo minha gratidão também aos professores Ricardo Pirola e José Flávio Motta,
que gentilmente aceitaram o convite para estar presente na banca de avaliação desta
dissertação. Ao primeiro, agradeço ainda pela leitura cuidadosa e importantes sugestões feitas
por ocasião da qualificação. Ao segundo, sou grata também pelo aprendizado no curso de
Demografia Histórica que acompanhei na USP e pelo seu grande incentivo. Agradeço também
ao professor Robert Slenes, que fez observações essenciais a partir do texto da qualificação.
Aos colegas da Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, que estiveram
presentes desde o início de meus dias na Unicamp, sempre com gentileza, carinho e alegria.
Também aos funcionários do Arquivo Edgard Leuenroth e do Centro de Memória da
Unicamp, em especial o Emerson, no AEL, a Aline e o Fernando Abraão, no CMU, sempre
dispostos a me ajudar em tudo, além da amizade e alegria com que sempre me receberam.
Minha gratidão também à Flávia, do Cecult, que sempre me auxilia em todas as questões
burocráticas.
Aos colegas que me fizeram companhia na empreitada acadêmica e são tão valiosos,
Cássia, Liliana, Priscila, Tarsila e, em especial, Ana Laura, Beatriz, Daniel, Jéssica, João,
Joice, Marina e Miriam, que contribuíram de modo singular para que este trabalho fosse
realizado. À minha irmã, Mábile, e sua filha, Nathália, agradeço pela companhia e auxílio,
principalmente no último ano. À minha sogra, dona Aparecida, por todo cuidado e carinho.
Agradeço ao meu companheiro Samuel, pessoa espetacular, com a qual tenho o prazer de
dividir o dia-a-dia, os planos, as angústias, as conquistas. Devo a ele mais do que gratidão,
todo meu coração.
Também quero fazer lembrança das comadres Camila, Angélica, Consolação e dos
compadres Nilson, Ademir e Valdir, que dividiram tantos momentos importantes nos últimos
anos, dando-me apoio e carinho incalculáveis.
Aos meus pais, agradeço por tudo. De modo especial, à minha mãe, mulher simples e
guerreira, cujo apoio foi essencial para concluir esta pesquisa e com quem tenho aprendido
cada dia mais. Agradeço também ao pequeno Marcos Gabriel, que tem sido paciente e
amoroso vendo sua mãezinha sentada por tantas horas em frente ao computador. Quando
achei que eu já era muito feliz, ele chegou e me mostrou que tudo poderia ser ainda melhor.
RESUMO
Nesta dissertação discutimos as relações entre a intensificação do comércio interno de
escravos no Império do Brasil, após o fechamento do tráfico atlântico em 1850, e a crescente
mobilização escrava nas décadas finais da escravidão no Sudeste. Com foco no município
paulista de Campinas e no período de 1860 a 1888, examinamos processos cíveis e criminais
envolvendo pessoas escravizadas, anúncios de fuga de cativos e registros do pagamento do
imposto sobre as transações de compra e venda de escravos. Nessa documentação, atentamos
para as múltiplas experiências vividas e escolhas feitas pelos cativos trazidos ao município
campineiro por meio do tráfico interno, ressaltando a formação de novas redes familiares e de
solidariedade, bem como as estratégias para sair do cativeiro (por meio de alforrias, fugas ou
crimes).
Palavras-chave: tráfico interno de escravos, Campinas, século XIX, criminalidade escrava,
fuga de escravos, ações de liberdade, experiência escrava.
ABSTRACT
In This monograph we discuss the relationship between the intensification of the
internal slave trade in the Empire of Brazil, after the end of the Atlantic slave trade in 1850,
and the growing mobilization of slaves in the final decades of slavery in the Southeast Brazil.
Focusing on the city of Campinas and in the period 1860-1888, we examine civil and criminal
trials involving enslaved people, runaway captives’ announcements and records of tax
payments on transactions of purchase and sale of slaves. In this sources, we look at the
multiple experiences and choices made by slaves brought to the city of Campinas through the
internal trade, emphasizing the formation of new family and solidarity networks, as well as
strategies to get out of bondage (through manumission, flights or crimes).
Key words: internal slave trade, Campinas, XIX century, slave crime, slave runways, freedom
lawsuits, slave experience.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Origem dos escravos em Processos Criminais, Ações de Liberdade e anúncios de
fuga (Campinas, 1860-1888) .................................................................................................... 39
Tabela 2 – Localidade de origem dos crioulos réus em Processos Criminais (Campinas, 1860-
1886) ......................................................................................................................................... 47
Tabela 3 – Origem dos escravos crioulos réus em Processos Criminais, por década
(Campinas, 1860-1886) ............................................................................................................ 48
Tabela 4 – Origem dos Réus com informação de compra e venda (Campinas, 1860-1886). .. 49
Tabela 5 – Ocupação dos escravos adultos do sexo masculino em Processos Criminais
(Campinas, 1860-1886). ........................................................................................................... 52
Tabela 6 – Tipos de crimes cometidos por escravos em Campinas, por origem (1860-1886). 60
Tabela 7 – Tipos de conflitos envolvendo os réus forasteiros (Campinas, 1860-1886). .......... 61
Tabela 8 – Tipos de conflitos envolvendo os réus nascidos em Campinas (Campinas, 1860-
1886). ........................................................................................................................................ 61
Tabela 9 – Tipos de conflitos envolvendo os réus escravos, por décadas (Campinas, 1860-
1886). ........................................................................................................................................ 88
Tabela 10 – Tempo de moradia dos escravos nas fazendas onde cometeram crimes, por
origem (Campinas, 1860-1886). ............................................................................................. 101
Tabela 11 – Escravos em anúncios de fugas, por década e origem (Campinas, 1860-1888). 105
Tabela 12 – Localidade de origem dos escravos crioulos em anúncios de fuga (Campinas,
1860-1888). ............................................................................................................................ 107
Tabela 13 – Origem dos Fugitivos com informação de compra (Campinas, 1860-1888)...... 107
Tabela 14 – Sexo dos escravos em anúncios de fuga (Campinas, 1860-1888). ..................... 108
Tabela 15 – Ocupação dos escravos adultos em anúncios de fuga, segundo a origem
(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 109
Tabela 16 – Anúncios com suspeita de que os fugitivos tenham tentando voltar para os locais
de origem, por localidade de origem (Campinas, 1860-1888). .............................................. 111
Tabela 17 – Distribuição dos escravos em fugas coletivas e individuais, segundo a década
(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 115
Tabela 18 – Tempo de moradia dos escravos nos anúncios de fuga, por origem dos fugitivos
(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 123
Tabela 19 – Fugitivos que aparecem em crimes e Ações de Liberdade, por origem (Campinas,
1860-1888). ............................................................................................................................ 125
Tabela 20 – Sexo e estado conjugal dos escravos em Ações de Liberdade, por décadas
(Campinas, 1860- 1888). ........................................................................................................ 138
Tabela 21 – Idade dos escravos em Ações de Liberdade, de acordo com o sexo, por décadas
(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 138
Tabela 22 – Localidade de origem dos crioulos libertandos em Ações de Liberdade
(Campinas, 1860-1888). ......................................................................................................... 141
Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de acordo com
a origem (Campinas, 1860-1888). .......................................................................................... 142
Tabela 24 – Distribuição dos escravos em Ações de Liberdade coletivas e individuais, por
origem (Campinas, 1860-1888). ............................................................................................. 149
Tabela 25 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram Ações de
Liberdade, por origem (Campinas, 1860-1888). .................................................................... 157
Tabela 26 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram Ações de
Liberdade, por tipo de processo (Campinas, 1860-1888). ...................................................... 158
Tabela 27 – Distribuição dos escravos réus, vítimas, fugitivos e litigantes por origem e tempo
de moradia no momento da ação (Campinas, 1860-1888). .................................................... 166
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Origem dos escravos comercializados em Campinas (1860-1884)....................... 37
Gráfico 2 – Origem dos crioulos réus em Processos Criminais, por década (Campinas, 1860-
1886). ........................................................................................................................................ 48
Gráfico 3 – Estado conjugal dos escravos na matrícula de 1873 e em Processos Criminais. .. 51
Gráfico 4 – Escravos em anúncios de fugas: distribuição percentual por décadas ................ 105
Gráfico 5 – Origem dos escravos crioulos em anúncios de fugas, ......................................... 106
Gráfico 6 – Origem dos escravos crioulos em Ações de Liberdade, por década (Campinas,
1860-1888). ............................................................................................................................ 140
ABREVIATURAS E SIGLAS
AEL – Arquivo Edgard Leuenroth
ACI – Seção Processos Crimes do Interior
CMU – Centro de Memória da Unicamp
CRC – Fundo da Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas
CSP – Fundo Autos Crimes em São Paulo
TJC – Fundo do Tribunal de Justiça de Campinas
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................................................ 8
ABSTRACT ................................................................................................................... 9
LISTA DE TABELAS .................................................................................................. 10
LISTA DE GRÁFICOS ................................................................................................ 12
ABREVIATURAS E SIGLAS ..................................................................................... 13
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 16
CAPÍTULO 1 – O tráfico interno de escravos para Campinas .................................... 27
1.1. O mercado interno de escravos na segunda metade do século XIX .................. 27
1.2. Forasteiros para Campinas ................................................................................. 33
1.3. Os forasteiros em Campinas .............................................................................. 40
1.4. De forasteiros e desenraizados ........................................................................... 44
CAPÍTULO 2 – Forasteiros criminosos ....................................................................... 46
2.1. Os crimes e os criminosos ................................................................................. 46
2.2. Cúmplices e aliados ........................................................................................... 62
2.3. Vítimas ............................................................................................................... 81
2.4. Momento do crime ............................................................................................. 87
CAPÍTULO 3 – Forasteiros fugitivos ........................................................................ 102
3.1. As fugas e os fugitivos ..................................................................................... 102
3.2. Aliados nas fugas ............................................................................................. 114
3.3. Momento da fuga ............................................................................................. 123
CAPÍTULO 4 – Forasteiros em busca da liberdade ................................................... 134
4.1. As Ações de Liberdade e os libertandos .......................................................... 134
4.2. Alianças pela liberdade .................................................................................... 148
4.3. Momento de início do litígio ........................................................................... 157
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 165
FONTES ..................................................................................................................... 171
a) Fontes manuscritas ............................................................................................. 171
b) Fontes impressas ................................................................................................. 171
c) Fontes digitalizadas ............................................................................................ 171
BIBLIOGRAFIA CITADA ........................................................................................ 172
16
INTRODUÇÃO
Eram os idos de 1874 quando o agente comercial Antônio Teixeira Marinho trouxe
do Rio de Janeiro um comboio de 19 escravos para ser vendido no município paulista de
Campinas.1 Chegaram à cidade no fim do dia e passaram a noite em uma casa “destinada para
isso”. Nessa casa, um grande número de escravos dormiu em comum na sala, enquanto
Marinho e duas escravas dormiram em um quarto. Ao amanhecer, o agente comercial foi
chamado pelos cativos Antônio Baiano e Francisco mulato para verificar um escravo que
estaria enfermo a um canto do dormitório.
“apenas Marinho chegou-se ao enfermo, saltou, de improviso, o referido Francisco,
de machado alçado, e deu-lhe alguns golpes que o lançara por terra com o crânio
fraturado (...). Feito isso, correu Antônio Baiano a fechar a porta, Francisco foi
também à outra porta, e ambos intimaram a todos – que dali não saíssem (...). Então
Antônio deu mais uma pancada de machado em Marinho, certamente com esse
mesmo machado com que Francisco o ferira e deixara no lugar”.2
Em seguida, os dois escravos foram ao aposento de Marinho em busca do que
pudessem lá encontrar e convidaram as duas raparigas que ali estavam para fugir com eles,
mas elas não aceitaram. Depois, enquanto Francisco e Antônio guardavam as saídas para que
os demais escravos não fossem avisar ninguém, um terceiro cativo, chamado Guilherme,
pegou os papéis que o agente comercial guardava em suas canastras e levou-os para fora, para
destruir as provas da propriedade dos cativos adquiridos por Marinho para a venda.
Enquanto avaliava os papéis que encontrara entre os pertences do comerciante,
Guilherme não se deu conta da fuga do cativo Luís, que conseguiu sair da casa e avisar as
autoridades. Guilherme ainda conseguiu evadir-se,3 mas todos os outros escravos foram
levados à delegacia, onde os depoimentos foram tomados e um processo criminal teve início
com o indiciamento dos escravos Francisco, Antônio e Guilherme.
Narrativa semelhante a esta foi contada pelo historiador Sidney Chalhoub na obra
Visões da liberdade, segundo a qual o comerciante José Moreira Veludo foi atacado pelos
1 Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de José Júlio de Barros, Campinas,
1874. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP), Seção Processos Crimes do
Interior – Campinas (ACI), Microfilme CSP 231, Documento 004. 2 “Denúncia do Promotor Público”. Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de
José Júlio de Barros, Campinas, 1874, AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 231, Documento 004. 3 “Assassinato”, Gazeta de Campinas, nº 467, 14 de junho de 1874.
17
escravos que ele dispunha para vender em sua loja na Corte do Rio de Janeiro.4 Diferente de
Veludo, no entanto, o agente comercial Marinho não sobreviveu ao ataque.
Outros aspectos, todavia, são semelhantes nas duas histórias e ajudam a desvendar
alguns aspectos da escravidão no Sudeste na segunda metade do século XIX.
Assim como os escravos da loja de Veludo, o grupo de cativos que pernoitaram com
Marinho em Campinas estava destinado à venda e era nascido em diferentes províncias do
Império. A maioria deles, nos dois casos, era formada por cativos oriundos das províncias do
Norte e Nordeste.5
Em sua análise, Chalhoub apontou para a importância que o contexto de
intensificação do tráfico interno de cativos na segunda metade do século XIX teve para a
história do levante na loja de Veludo.6 Os escravos que participaram desse ato criminoso na
Corte, assim como os que assassinaram Marinho em Campinas, haviam sido trazidos ao
“local do crime” por meio do tráfico interprovincial e buscavam interferir em seus destinos
para além do arbítrio dos negociantes.
Junto com eles, muitos outros cativos foram trazidos das províncias do Norte,
Nordeste e Sul para o Sudeste na segunda metade do século XIX, quando o fechamento do
tráfico transatlântico de escravos, a partir de 1850, causou o reajuste dos negócios da
escravidão. Pelo menos 200 mil cativos foram transacionados dentro do Império para suprir a
necessidade de mão-de-obra nas crescentes regiões cafeeiras do Sudeste no período.7
No delito ocorrido em Campinas, parece evidente que os escravos indiciados pelo
assassinato do agente comercial Marinho estavam tentando evitar sua venda no município.
Pelo depoimento dos outros escravos que estavam em poder do comerciante, podemos saber
que pelo menos um dos suspeitos lutou para não ser embarcado no Rio de Janeiro8 e outro
teria dito “que aqui não seria vendido, por que ao sair a [sic] rua havia de fazer um
espalhafato tal que o tornasse invendável”.9
Além desse caso, a documentação criminal de Campinas está recheada de
assassinatos e ofensas físicas graves praticadas por cativos aos seus senhores ou feitores,
especialmente no ambiente das fazendas de café.
4Sidney Chalhoub. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo:
Companhia das letras, 1990, capítulo 1, p. 29-94. 5Sidney Chalhoub. Visões da liberdade..., op. cit., p. 43.
6Sidney Chalhoub. Visões da liberdade..., op. cit., p. 47-9.
7Robert Slenes.The demography and economics of Brazilian slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford
University, Stanford, 1976, p. 138. 8 “Auto de perguntas a Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.
9 “Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.
18
Ao analisar uma extensa documentação criminal de dois municípios paulistas ao
longo do século XIX, incluindo Campinas, Maria Helena Machado concluiu que houve “uma
tendência ascendente das transgressões escravas, tanto daquelas relacionadas diretamente à
vigilância e disciplina do trabalho, quanto às correlacionáveis indiretamente ao sistema de
dominação escravista”.10
Por outro lado, Jonas Marçal de Queiroz chamou a atenção para a dificuldade de se
determinar esse aumento da resistência escrava de forma confiável, haja vista a incompletude
e parcialidade das fontes disponíveis e destacando que “os próprios contemporâneos estavam
divididos a este respeito”.11
Queiroz constatou que os boatos alarmantes sobre insurreições
gerais de escravos que proliferaram na documentação policial e na imprensa no período
exageravam nas proporções dos acontecimentos, ora com o objetivo de criticar a incapacidade
das autoridades policiais de manter a ordem, ora para exaltar seu mérito ao sufocar uma
tentativa de insurreição.12
Além do debate historiográfico em torno do questionamento se houve ou não, de
fato, um recrudescimento das ações violentas dos cativos na segunda metade do século XIX,
estes estudiosos discutiram se isso esteve diretamente ligado à expansão do tráfico
interprovincial de escravos para o Sudeste no mesmo período e se ele teria tido um efeito
determinante para o fim do escravismo.
Para Maria Helena Machado, não foi o aumento do tráfico interno o catalizador da
ampliação dos atos criminosos de escravos contra senhores e feitores, mas sim a rigidez cada
vez maior do sistema disciplinar das fazendas, que solapava as margens de autonomia
escrava, gerando tensões em torno daquilo que os cativos entendiam como direitos.13
Jonas Marçal de Queiroz tenta divisar a importância do comércio interno para o fim
da escravidão analisando o que motivou a Assembleia Provincial de São Paulo a instituir um
alto imposto sobre a importação de cativos para a província em 1881, pondo fim ao tráfico
interprovincial. O autor destacou, então, a importância das divergências político partidárias no
período, salientando que não basta olhar apenas a clivagem da relação senhor-escravo para
compreender aquela sociedade:14
10
Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão: trabalho, luta, resistência nas lavouras paulistas (1830-
1888). São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 32-3. 11
Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-
1889). Dissertação (Mestrado em História), Campinas, Unicamp, 1995, p. 180. 12
Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República...,op. cit.,p. 181. 13
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.
São Paulo: Edusp, 2010, p. 25. 14
Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República..., op. cit., Segunda parte, p. 39.
19
“De um lado, os setores interessados em promover a imigração europeia
visualizavam na medida uma maneira de canalizar recursos e esforços nesse sentido;
de outro, os grupos escravocratas, que temiam as consequências de um aumento
excessivo da oferta de escravos na Província, por força da decretação de medidas
idênticas no Rio de Janeiro e Minas Gerais, passaram a apoiar a medida para que sua
valiosa mercadoria não fosse depreciada”.15
Também Ricardo Tadeu Caíres Silva estudou o intenso comércio de escravos da
Bahia para o Sudeste e verificou a resistência individual dos escravos durante a vigência do
tráfico interno.16
Todavia, o historiador concluiu que isso não foi determinante para o fim do
escravismo:
“Isto porque (...) nesse período nenhum levante coletivo foi tramado ou realizado
pelos escravos traficados, além do que seus atos de resistência e rebeldia individual
circunscreveram-se a ações direcionadas a seus opressores mais imediatos, (...)
sendo que na maioria destas ações seus autores receberam punições exemplares, pois
quando se tratava de contestações violentas da ordem a Justiça apoiava sem sombras
de dúvidas os escravocratas. Além disso, os atos extremos de violência contra
senhores e feitores só se tornaram expressivos a partir de meados da década de 1870,
quando os cativos já encontravam forte apoio em suas ações no movimento
abolicionista”.17
Caíres Silva vê no incremento do tráfico interno um efeito apenas potencializador
das tensões entre senhores e escravos, “gerando conflitos nem sempre solucionáveis no
âmbito privado, como antigamente acontecia”.18
Célia Maria Marinho de Azevedo19
e Richard Graham20
, por outro lado, retomaram
os discursos do século XIX relacionados ao epíteto de “negro mau vindo do Norte” ou à
“onda negra”, numa alusão ao protagonismo dos cativos comercializados no tráfico
interprovincial nos crescentes atos de rebeldia escrava no Sudeste. Esses estudiosos
destacaram a tendência à violência dos escravos transferidos à força para a região cafeeira,
como uma reação às situações de dor e desenraizamento causados pelo rompimento dos laços
familiares e dos acordos e negociações com os senhores nos locais de origem.
15
Jonas Marçal de Queiroz. Da senzala à República..., op. cit.,p. 179. 16
Outra análise sobre a resistência dos cativos da Bahia a serem vendidos no tráfico interno para o Sudeste pode
ser visto em Maria F. N. Pires. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima (1860-
1920). São Paulo, Annablume, 2010. Para estudo semelhante sobre os escravos do Ceará, ver José H. F.
Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século
XIX (1850-1881). Fortaleza: SECULT/ CE, 2011. 17
Ricardo Tadeu Caíres Silva. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos nas últimas
décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2007, p. 136. 18
Ricardo T. Caíres Silva. Caminhos e descaminhos da abolição..., op. cit.,p.136. 19
Célia Maria Marinho de Azevedo. Onda negra, medo branco: O negro no imaginário das elites século XIX,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 20
Richard Graham. “Nos Tumbeiros Mais Uma Vez? O Comércio Interprovincial de escravos no Brasil”, Afro-
Ásia, 27, Salvador, UFBA, 2002, p. 121-160.
20
Considerando as conclusões de uma série de estudos sobre o tráfico interno, Richard
Graham sublinhou que ele significava reviver as experiências do tráfico transatlântico para os
africanos que já estavam em solo brasileiro e eram vividas pela primeira vez pelos crioulos
aqui nascidos. Para Graham, a relação entre o tráfico interprovincial e a criminalidade escrava
no Sudeste foi determinante para o fim da instituição escravista. Isto porque, de acordo com o
historiador, os escravos que passavam pela dolorosa experiência do tráfico interprovincial
traziam consigo um sentimento de desenraizamento, uma vez que tinham rompidos seus laços
de família e solidariedade no local de origem, além de experimentarem formas de trabalho e
relações com os novos senhores muito distintas das que estavam acostumados. Assim, esses
indivíduos desenraizados estariam mais propensos ao crime e às fugas: “o crescimento da
resistência daqueles escravos que tinham sido arrancados de seus contextos familiares e
antigos laços sociais minou a autoridade dos senhores e encorajou-os a forçar sua própria
libertação através da ação direta”.21
O grande número de escravos “forasteiros”22
, isto é, não nascidos no município de
Campinas, que aparece na documentação criminal pode ser um indício que comprova essa
argumentação. Pelo menos 83,7% dos cativos réus nos processos julgados em Campinas após
1860 eram oriundos de outros municípios de São Paulo ou de outras partes do Brasil ou da
África.23
No entanto, Maria Helena Machado argumenta que essa evidência numérica não é
suficiente para confirmar a importância do tráfico interno para o aumento das ações escravas
contra o poder senhorial no período, nem para justificar o declínio do escravismo. A
historiadora pesquisou o tempo de moradia24
dos cativos nas fazendas, e constatou que a
maioria dos réus escravos em Campinas não era formada por recém-chegados do “Norte”,
como a tese do desenraizamento faria pensar, mas sim indivíduos enraizados, integrados há
certo tempo nas escravarias da qual faziam parte e que, por isso, já eram conhecedores da
região e das “margens de acomodação do sistema ao qual estavam submetidos”.25
Todavia, apesar de o tempo de residência ser um dado valioso para esse debate, não o
consideramos suficiente para discutir a influência que a experiência do tráfico poderia ter
21
Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, op. cit.,p. 122. 22
Emprestamos esta expressão de Joice Fernanda de Souza Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista: Escravos no
Comércio Interno de Cativos e suas Experiências em Campinas, 1850-1888. Dissertação (Mestrado em História),
Unicamp, Campinas, 2013. 23
Percentual calculado sobre o total de réus com origem conhecida. Processos Crimes do Interior – Campinas
(ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP. 24
O tempo de moradia mencionado por Machado era informado pelos próprios cativos no interrogatório nos
processos criminais, indicando a quanto tempo estavam em poder dos proprietários. 25
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit.,p. 25.
21
sobre a ação cativa.26
Afinal, quanto tempo era necessário para que um cativo forasteiro
deixasse de ser um “desenraizado”? Ou, dito de outra forma, quanto tempo era necessário
para um cativo recém-chegado se tornar parte da comunidade escrava, de modo a não viver
mais uma situação de desenraizamento? Até que ponto tal cálculo temporal pode ser válido
para determinar as motivações de um crime ou de uma fuga?
Portanto, discutir a relevância do tráfico interno para as mobilizações escravas nas
décadas finais da escravidão exige que se vá além de uma observação quantitativa das origens
dos cativos criminosos ou do tempo de sua integração nas escravarias do Sudeste.
Não pretendemos com este trabalho dar uma resposta final para essas questões sobre
o recrudescimento das ações violentas dos escravos na segunda metade do século XIX, mas
acreditamos que é possível aventar algumas hipóteses que ajudem a discutir se há, de fato,
uma relação – direta ou indireta – entre tais ações escravas e sua experiência no tráfico
interno.
Embora seja relevante a análise quantitativa dos crimes de escravos em uma região
de expansão da cafeicultura como Campinas, é importante também aprofundar uma análise da
experiência da reconstrução das vidas dos escravos traficados que foram indiciados por atos
criminosos. Destaca-se, nessa linha de análise, o trabalho de Hebe Mattos, em que a autora
observa a importância dos laços familiares dos escravos e da troca de experiências entre os
cativos já residentes nas fazendas e os oriundos do tráfico para mudanças nas ações de
liberdade e crimes dos escravizados após 1850.27
Como observa a historiadora, o mais
importante não é contabilizar um aumento numérico dos atos de resistência à escravidão ao
longo do Oitocentos, mas sim a diferença nos discursos a eles ligados, que teriam contribuído
fortemente para o declínio do escravismo:28
“A originalidade da argumentação dos cativos
negociados no trafico interno, nas ultimas décadas da escravidão, está no sentido genérico que
atribuíam ao ‘mau cativeiro’ e na positividade que emprestavam ao ‘bom cativeiro’, sem o
qual o senhor não merecia obediência”.29
Dessa forma, consideramos importante a análise conjunta de outras fontes que
registrem as experiências desses indivíduos forasteiros, para observá-los além do crime, isto é,
em litígios pela liberdade e em fugas, o que possibilita apreender outros elementos da vida e
da luta desses cativos para sobreviver aos impactos do tráfico interno.
26
Essa questão também foi levantada por Cristiany M. Rocha, em:Histórias de Famílias Escravas. Campinas:
Editora da Unicamp, 2004, p. 248-251. 27
Hebe M. Mattos de Castro. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In: Fernando Novais (coord.).
História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,p. 359. 28
Hebe M. M. de Castro, “Laços de família...”, op. cit.,p. 357. 29
Hebe M. M. de Castro, “Laços de família...”, op. cit.,p. 359.
22
Além disso, cabe discutir melhor, à luz dessas diferentes fontes, o que é
“desenraizamento” e qual seu significado para as ações cativas. Ou seja, cabe indagar se, por
um lado, os crimes e fugas foram motivados por sentimentos ou situações causadas pelo
rompimento de laços e anseios construídos na terra natal e, por outro lado, se é a constituição
de novas sociabilidades e projetos de vida em Campinas que permitiu que tantos desses
cativos demandassem judicialmente por sua liberdade ou se juntassem a outros escravos para
cometer crimes e fugas. Afinal, quem são esses “desenraizados”? Indivíduos trazidos de
muito longe para Campinas, por exemplo, ou também podemos assim considerar os que
vinham de outras partes da própria região Sudeste? Possuem sentimentos de desenraizamento
aqueles recém-chegados ou é possível observar um período de tempo determinado para que o
desenraizamento seja vencido, com formação de novos laços e solidariedades na escravaria de
destino?
Nas páginas que seguem pretendemos discutir essas questões, analisando as histórias
de vida de alguns desses indivíduos por meio do cruzamento dos dados encontrados em
processos criminais envolvendo escravos (como réus e/ou vítimas), Ações de Liberdade e
anúncios de fugas de cativos, com os registros do pagamento do imposto da meia sisa.30
Essas
fontes nos permitem encontrar os escravos comercializados em Campinas já inseridos nas
escravarias de destino, ou seja, possibilitam a apreensão de suas vidas após a experiência da
venda.
Considerando algumas variáveis ao longo do tempo, fizemos a análise da
documentação em dois movimentos: um quantitativo e outro micro-histórico. Ou seja, ao
mesmo tempo em que buscamos olhar para os dados numéricos obtidos por meio das fontes
de uma maneira mais geral, observando padrões, também realizamos uma abordagem mais
detalhada e particularizada de alguns casos específicos, de modo a reconstruir suas histórias e,
assim, aprofundar as discussões propostas.
Além do tempo de moradia e da origem, examinamos a integração desses indivíduos
na comunidade escrava de destino com a observação de dados sobre o estado conjugal e a
ocupação do cativo na fazenda, por exemplo. Também buscamos levar em consideração o tipo
de comércio que trouxe o cativo a Campinas, isto é, se a compra e venda se deu entre
senhores do próprio município, ou por meio do tráfico intra ou interprovincial, denotando
30
Campinas. AEL, CSP, Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886; Centro
de Memória da Unicamp (CMU), Fundo Tribunal de Justiça de Campinas (TJC), Ações de Liberdade, Campinas,
1860-1888; Gazeta de Campinas, 1869-1884; CMU, Fundo Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas
(CRC), Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. A meia sisa era um imposto
devido sobre as transações de compra, venda e permuta de escravos e a exigência para seu registro nos livros
cartoriais só foi regulada no Império a partir de 1860.
23
uma distância maior ou menor de seu local de origem. Em alguns casos é possível ainda saber
se o cativo já havia passado por outras vendas e estado em outras partes do Império.
Essas informações são problematizadas de modo a entender se a dimensão da
distância do local de origem ou os diferentes momentos de venda foram fatores motivadores
ou inibidores para as ações dos cativos. Buscamos discutir se é possível afirmar, por exemplo,
que escravos oriundos de municípios vizinhos a Campinas tinham maior motivação para
fugir, uma vez que poderiam encontrar facilmente o caminho de volta para suas famílias. Ou,
ao contrário, se para esses cativos seria mais fácil manter contato com as pessoas da terra
natal e, portanto, não teriam vivenciado o desenraizamento de modo tão drástico. Cito aqui a
fuga como um exemplo, mas essa análise deve ser feita também em relação à prática de outros
crimes registradas nas fontes judiciais disponíveis.
De modo análogo, o desenraizamento pode ser problematizado não apenas pela
observação do isolamento do cativo a partir do rompimento das relações pessoais do local de
origem ou da não incorporação no corpo da comunidade escrava de destino, mas também pela
dificuldade de adaptação às formas de domínio empregadas por seus novos senhores em
Campinas. Observamos esse tipo de informação nos depoimentos presentes nos processos
criminais, em que, como já apontou Maria Helena Machado, é possível verificar que a rigidez
do trabalho e as condições de vida a que os cativos eram submetidos foram importantes
elementos ligados aos seus crimes. Além dos depoimentos nos processos criminais, as
condições de vida e tipo de escravaria no qual esses cativos foram inseridos nas fazendas de
Campinas foram verificadas a partir da análise de inventários post mortem de alguns senhores.
Outro detalhe bastante importante observado na análise das fontes é o momento
específico da ação do escravo, seja na história mais geral da escravidão no Império e das
dinâmicas do tráfico interno, seja na própria trajetória de vida do cativo e da escravaria onde
então residia. Observamos, assim, os períodos em torno dos regulamentos que proibiram a
separação das famílias escravas pela venda. O primeiro deles data de 1869, o Decreto nº
1.695, que previa a nulidade de vendas de escravos que separassem “o marido da mulher, o
filho do pai ou mãe, salvo sendo os filhos maiores de 15 anos”.31
Em 1871, o parágrafo
sétimo do quarto artigo da lei 2.040 confirmou essa proibição e diminuiu a idade dos filhos
31
Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, artigo 2º. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1695-15-setembro-1869-552474-
publicacaooriginal-69771-pl.html (consultado em 15/08/2016).
24
que não poderiam ser separados do pai ou da mãe para 12 anos.32
Além disso, a lei 2.040 de
1871 regulou o direito do escravo de comprar sua alforria.
Buscamos com isso apreender se os escravos traficados, atentos às mudanças
jurídicas do período, tentaram exigir que essas disposições fossem cumpridas. Além disso,
questionamos quais fatores lhes possibilitaram essas demandas, como o tempo de moradia, a
proximidade com o local de origem, e consequentemente, com relações familiares e/ou de
solidariedade anteriores, novos laços de solidariedade em Campinas, ou o tipo de ocupação
exercida.
Outro tipo de conjuntura analisada diz respeito à dinâmica do tráfico interno para o
Sudeste. Na década de 1860, houve em grande medida um comércio de escravos dentro da
mesma província, ou dentro da mesma região, caracterizando um tráfico intrarregional ou
intraprovincial.33
Nos anos 1870, o número de escravos comercializados em Campinas que
eram naturais de outras províncias teve um aumento exponencial,34
assinalando um tráfico
interprovincial, com um grau de impacto muito maior sobre a população cativa. Na década de
1880, os debates sobre o tráfico interno de escravos redundaram no estabelecimento de altas
taxas administrativas para a importação de cativos nas províncias do Sudeste já em 1881, e
uma proibição desse comércio em nível imperial em 1885.
Também procuramos divisar em que momento específico de sua trajetória de vida o
escravo cometeu ou sofreu um crime, fugiu ou deu início a um litígio para obter sua liberdade.
Esse tipo de observação foi feita em um trabalho anterior realizado com as Ações de
Liberdade julgadas na corte do Rio de Janeiro, e foi possível perceber a importância dos
momentos de venda, ameaça de venda e morte do senhor para a decisão do cativo de ir aos
tribunais e demandar judicialmente por sua alforria.35
Além disso, outros momentos
relacionados a mudanças na senzala também se mostram importantes para as ações cativas,
como a chegada de novos escravos na fazenda ou a venda de parceiros, o que observamos por
meio dos registros de meia sisa.
Neste estudo, procuramos também valorizar a singularidade de cada uma das fontes
examinadas e seus elementos internos, como a história em torno dos crimes, fugas e alegações
para liberdade, bem como as relações entre vítimas, réus e testemunhas. Ressaltamos, por
32
Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 7º. Disponível
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 10/08/2016). 33
Robert Slenes. The demography...,op. cit.,p. 135. Slenes verifica esse movimento nas décadas de 1850 e 1860,
mas, devido ao baixo número de fontes disponíveis para a década de 1850, trabalhamos apenas a partir da década
de 1860. 34
Robert Slenes. The demography..., op. cit.,tabela 3-3, p. 136. 35
Letícia Graziele Basílio de Freitas. Escravos nos tribunais: o recurso à legislação emancipacionista em ações
de liberdade do século XIX. Monografia (Graduação em História), Unicamp, Campinas, 2012.
25
exemplo, que, diferente da formação de um litígio para a liberdade, um crime ou uma fuga
nem sempre eram cuidadosamente planejados pelos cativos, podendo ser consequência de um
desentendimento imprevisto. Por outro lado, os cativos que decidiam demandar sua alforria
judicialmente assumiam um risco bastante calculado.36
O resultado da análise realizada segue pelas próximas páginas, dividido em quatro
capítulos. No primeiro traçamos um panorama do tráfico interno de escravos na segunda
metade do século XIX, destacando suas características mais gerais já aventadas pela
historiografia e também aquelas que podem ser visualizadas por meio da análise quantitativa
das fontes utilizadas neste estudo, apontando as principais considerações que permeiam a
análise do tema. Descrevemos também características gerais do local de destino dos
indivíduos que vamos investigar, isto é, o município de Campinas e as fazendas de café da
região.
A partir do segundo capítulo, procuramos investigar cada uma das séries
documentais de modo autônomo, buscando observar as particularidades de cada fonte e as
características dos indivíduos nelas registrados. Além de observar as histórias em torno dos
crimes, fugas e alegações para liberdade, exploramos as possibilidades de adentrar os
ambientes sociais em que esses eventos ocorreram e onde os cativos habitavam, possibilitando
visualizar relações entre escravos, libertos e livres, e as múltiplas vivências dos sujeitos
históricos que procuramos encontrar, isto é, os forasteiros.
No segundo capítulo, analisamos uma extensa documentação judicial produzida entre
1860 e 1886 que registra os crimes envolvendo escravos como réus ou vítimas.37
A série
inclui inquéritos policiais, corpos de delito, autos de apreensão, habeas corpus, processos e
apelações criminais, autos de execução de sentenças crimes e autos de fiança. Em primeiro
lugar, observamos o crime ali retratado, buscando compreender como e em quais
circunstâncias se deu o ato criminoso, e qual o motivo ou razões alegadas para sua execução.
Em um segundo momento, por meio de variados depoimentos (do acusado, das testemunhas
e, algumas vezes, das vítimas) investigamos aspectos mais gerais da vida desses indivíduos
nas escravarias em Campinas. As características específicas dos forasteiros são analisadas por
meio das informações fornecidas pelos “autos de qualificação”, presentes nos processos
criminais, ou pelo cruzamento com outras fontes documentais, para tentar identificar os traços
36
Elciene Azevedo. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo.
Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p. 220. 37
Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP.
26
do tráfico interno na vida dos cativos ou a constituição de novas redes de solidariedade nas
escravarias em Campinas.
No terceiro capítulo, analisamos anúncios de fuga de escravos publicados na Gazeta
de Campinas, entre 1869 (ano de fundação do jornal) e 1884 (ano em que se inscreve o último
anúncio publicado). Mais uma vez, a fonte permite dois tipos de análise: um relacionado
diretamente ao tema central da fonte, isto é, apresenta a data e o local de onde o cativo fugiu
(da casa ou da fazenda do senhor, ou de locais onde estava alugado). Todavia, os anúncios de
fuga também permitem vislumbrar outros aspectos da vida desses indivíduos, como os locais
de origem ou onde vivem membros de suas famílias, detalhes sobre sua aquisição pelo senhor,
ocupação, marcas de castigo, e, algumas vezes, até mesmo preferências ou aspectos singulares
da vida do fugitivo. Além disso, a observação de fugas coletivas (em duplas ou grupos
maiores) permite conjecturar a respeito de parcerias e laços de solidariedade entre os
escravos.
O quarto capítulo traz a análise das Ações de Liberdade julgadas pelo Tribunal de
Justiça de Campinas entre 1866 e 1888.38
Nelas são analisados os tipos de processo e as
alegações para a liberdade, além de algumas características dos litigantes, como origem,
estado conjugal e ocupação. Exploramos também as relações dos libertandos com outros
escravos, bem como com indivíduos livres e libertos. Atentamos, por exemplo, para as
pessoas livres que assinaram seus requerimentos ou participaram de seus litígios pela
liberdade como curadores ou depositários. O foco se dá principalmente sobre os indivíduos
que buscaram a justiça para a compra da alforria, haja vista que o acúmulo de um pecúlio era
facultado, de modo geral, aos escravos que exerciam uma ocupação especializada ou que
dispunham de auxílio financeiro de outras pessoas, o que pode revelar as adaptações
alcançadas pelos cativos forasteiros.
No último item desta Dissertação fazemos nossas considerações finais, retomando
pontos discutidos ao longo dos capítulos para arrematar nossa argumentação em torno da
questão das relações entre o tráfico interno e a crescente mobilização escrava nas décadas
finais da escravidão.
38
Ações de Liberdade, Campinas, 1860-1888. CMU, TJC.
27
CAPÍTULO 1 – O tráfico interno de escravos para Campinas
1.1. O mercado interno de escravos na segunda metade do século XIX
O comércio dos escravos entre as localidades do Brasil já ocorria desde a época da
colônia para redistribuição dos africanos desembarcados nos portos, no entanto, não
correspondia ao volume nem tinha a importância econômica que passou a ter após 1850. Com
o fechamento definitivo do tráfico transatlântico de escravos africanos pela Lei Eusébio de
Queirós, os negociantes se reorganizaram em torno da possibilidade de suprir a necessidade
de mão-de-obra nas fazendas cafeeiras do Sudeste por meio da importação de cativos de
outras regiões do Brasil.
Nas primeiras décadas após o fechamento do tráfico atlântico (1850 e 1860), os
cafeicultores puderam encontrar dentro da própria região Sudeste outros proprietários
dispostos a vender seus cativos, transferindo-os, desse modo, das áreas urbanas para suas
fazendas. A partir da década de 1870, todavia, os negociantes de escravos do Sudeste
passaram a buscar a mercadoria nas províncias ao Sul e ao Norte do Império.1
Herbert Klein e Robert Slenes apontaram que o mercado interno de cativos na década
de 1870 foi ainda maior do que nos dois decênios anteriores, quando o preço internacional do
açúcar decaiu e o do café disparou, e quando o valor dos escravos nas províncias cafeeiras
ficou mais alto do que em qualquer outro lugar do Brasil.2 Slenes destacou ainda o período
entre 1873 e 1881,3 sendo provável que 10 mil pessoas tenham sido comercializadas
anualmente para o Sudeste cafeeiro nesse intervalo.4
Olhando para o outro lado dessas transações, isto é, para as províncias exportadoras
de escravos, José Hilário Ferreira Sobrinho observou, por exemplo, um alto fluxo de cativos
enviados do Ceará para o Sudeste em fins da década de 1870. Entre 1850 e 1869, um total de
5.127 cativos foi exportado dessa província para o Sudeste ou para o Norte, perfazendo a
1 Robert Slenes. The demography and economics of Brazilian slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford
University, Stanford, 1976, p. 126-132. Sobre as diferentes dimensões do tráfico interno de escravos ao longo da
segunda metade do século XIX, ver também José Flávio Motta. Escravos daqui, dali e de mais além. São Paulo:
Alameda Editorial/FAPESP, 2012. 2 Herbert Klein."The Internal Slave Trade in Nineteenth- Century Brazil: A Study of Slave Importations into Rio
de Janeiro in 1852." The Hispanic American Historical Review, v. 51, n. 4, 1971, p. 579, notas. Robert Slenes.
The demography…, op. cit., p. 123. 3Robert Slenes. The demography…, op. cit., p. 133.
4 Robert Slenes. The demography…, op. cit., p. 126, 136, 139.
28
média de 256 cativos por ano.5 Em contrapartida, entre os anos 1877 e 1879, houve uma
média de exportação de 2.186 cativos ao ano.6 O autor explicou essa variação no volume de
escravos exportados por um longo e devastador período de seca que assolou a província do
Ceará entre 1877 e 1879, obrigando os pequenos proprietários a vender seus escravos na
tentativa de quitar suas dívidas.7 Herbert Klein e Robert Slenes também ressaltaram o
protagonismo dos pequenos e médios proprietários de escravos do Norte e Nordeste, em geral
endividados, entre os senhores que vendiam escravos para o Sudeste nesse período.8
A historiografia não tem dúvidas de que o tráfico transatlântico teve um volume
muito maior do que o comércio interno de cativos, mesmo depois de 1850.9 Mais de quatro
milhões de africanos foram trazidos da África para o Brasil no curso de três séculos.10
No
entanto, ainda que observada essa diferença, não se pode desconsiderar o volume de pelo
menos 200 mil pessoas traficadas das províncias do Nordeste e Sul para as da região Sudeste
nesse período.11
Além disso, se contabilizarmos o mercado de escravos intrarregional, isto é,
entre as províncias e municípios da própria região Sudeste, é provável que os números do
mercado interno alcancem o dobro.12
Estudos de Herbert Klein, Robert Slenes, José Flávio Motta e Rafael da Cunha
Scheffer13
têm contribuído para a compreensão do funcionamento e do impacto demográfico
do mercado interprovincial. Suas análises mostraram os atributos, dinâmicas e formas de
operação do tráfico, bem como as redes e perfis dos comerciantes envolvidos e suas
5 José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no
Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza: SECULT/ CE, 2011, p. 104. A forte presença das províncias do
Norte-Nordeste como fontes de escravos no mercado interprovincial também foi destacada por Robert Slenes,
que também chamou a atenção para a importância da queda nos preços do algodão para determinar essa
dinâmica. Cf.: Robert Slenes, The demography…, op. cit. 6 Ao todo foram exportados 6.559 cativos nesses três anos, assim divididos: 1.725 em 1877, 2.909 em 1878, e
1.925 em 1879. Dados referentes ao quadro VIII, em José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., p.
104. 7 José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., p. 117. O autor explica detalhadamente essa relação
entre o tráfico de escravos e a seca nas páginas 116-126. Graham também chama atenção para a importância da
seca de 1877-79 no Nordeste para o aumento do fluxo de escravos para o Sudeste. Richard Graham. “Nos
tumbeiros mais uma vez...”, op. cit., p. 131. 8Herbert Klein, “The internalslave trade...”, op. cit.; Robert Slenes, The demography…, op. cit.
9 Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”,op. cit., p. 129.
10 Os números estimados são 4.864.374 africanos desembarcados no Brasil entre 1501 e 1856. Cf.:
http://www.slavevoyages.org (acesso em 19/04/2013). Ver também LOVEJOY, Paul E. “The Volume of the
Atlantic Slave Trade: A Synthesis”, Journal of African History, 23, 4 (1982), p. 473-501. ELTIS, David. “The
Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade: An Annual Time Series of Imports Into the Americas Broken
Down by Region”, Hispanic American Historical Review, 67, 1 (1987), p. 109-38. 11
Conforme estimado em Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 138. 12
Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 135. 13
Herbert Klein, “The internal slave trade...”, op. cit.; Robert Slenes, The demography…, op. cit.; José Flávio
Motta. Escravos daqui, dali e de mais além, op. cit.; Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul para o
Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado
em História), Unicamp, Campinas, 2012.
29
estratégias para burlar a burocracia e os impostos sobre o comércio dos cativos, visando
melhores lucros. Os estudos a partir de procurações e escrituras de venda de escravos
mostraram que o mercado interno se organizava na forma de uma complexa rede de
negociantes.14
Através de uma “procuração bastante” com vários substabelecimentos para os
diversos intermediários envolvidos no processo de venda do Norte, Nordeste ou Sul para as
regiões cafeeiras, as taxas e a burocracia eram dribladas, já que o imposto devido pela compra
do cativo só seria pago pelo comprador final.15
Outra maneira de burlar o fisco era o
transporte dos escravos por terra, em geral com longas caminhadas, evitando a passagem
pelas autoridades portuárias.16
No entanto, Slenes destacou que a maior parte das
transferências de escravos foi feita por mar, pois esta forma era mais rentável e previsível do
que por terra.17
O perfil das pessoas transacionadas também foi analisado por esses historiadores, e
conclui-se que, assim como no tráfico atlântico precedente, era dada preferência aos homens
jovens e sadios nessas transações, sendo a maioria vendida sozinha, sem seus familiares.18
Apesar dessas semelhanças com o mercado transatlântico, é preciso ressalvar, como
chamou a atenção Rafael Scheffer, a especificidade do comércio interno de cativos nesse
contexto, uma vez que os escravocratas e negociantes lidavam a partir de então com uma
oferta limitada dessa mão-de-obra, restrita aos africanos que restavam no território do Império
e àqueles que aí tinham nascido. Em paralelo, o crescente desequilíbrio da posse escrava entre
as regiões do Império, o acirramento dos discursos abolicionistas e os debates em torno da
14
Ver, por exemplo, Robert Slenes. The demography…, op. cit.; Robert Slenes. “Grandeza ou Decadência. O
mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888”, p. 106, in Iraci Del Nero
Costa (org.), Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, USP,
1986, pp. 103-156; Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, op. cit.; Eduardo Spiller Pena. “Burlas à
lei e revolta escrava no tráfico interno do Brasil meridional, século XIX”, in: Silvia Hunold Lara e Joseli Maria
Nunes Mendonça (orgs.). Direitos e Justiças no Brasil: Ensaios de História Social. Campinas: Editora da
Unicamp, 2006, p. 161-197;José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit.; Rafael C. Scheffer.
Comércio de escravos do Sul..., op. cit.; 15
Robert Slenes, “Grandeza ou Decadência...”, op. cit., p. 118. 16
Robert Slenes, The demography…, op. cit., p. 144;Ver também Erivaldo F. Neves. “Sampauleiros traficantes:
comércio de escravos do alto sertão da Bahia para o oeste cafeeiro paulista”. Afro-Ásia, 24 (2000), p. 108-110; e
Maria F. N. Pires. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima (1860-1920). São Paulo,
Annablume, 2010, p. 49-61;José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., p. 177-9. 17
Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 150.Vertambém: Herbert Klein. "The Internal Slave
Trade…”,op. cit., p. 569. 18
Herbert Klein,“The Internal Slave Trade…”,op. cit.; Robert Slenes. The Demography…, op. cit.; Robert
Slenes. "The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888: Regional Economies, Slave Experience, and the Politics
of a Peculiar Market". In: Walter Johnson (Ed.). The Chattel Principle: Internal Slave Trades in the Americas.
New Haven & London: Yale University Press, 2004, p. 325-370; José Flávio Motta. Escravos daqui, dali..., op.
cit., p. 67-8; Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul...,op. cit. Cabe ressalvar, todavia, que há
evidências de que algumas pessoas foram transacionadas na companhia de membros da família. José Flávio
Motta, por exemplo, verificou que 51,3% do total de escravos negociados no município de Constituição
(Piracicaba), entre 1870 e 1873, estava com pelo menos um familiar, cf.: José Flávio Motta. Escravos daqui,
dali...., op. cit., p. 235.
30
introdução de trabalhadores imigrantes no Brasil traziam novas questões a circundar a
instituição escravista na segunda metade do século XIX.19
Em 1881 os legisladores do Sudeste determinaram um aumento exponencial das
taxas administrativas relativas à importação de cativos, decretando, na prática, o fim ao tráfico
interprovincial.20
Na província de São Paulo, por exemplo, em 27 de janeiro de 1881 foi
regulamentado o pagamento do imposto de dois contos de réis para cada escravo importado.21
Um regulamento em nível imperial para proibir a mercancia humana entre as províncias,
todavia, só foi estabelecido em 1885 com a Lei Saraiva-Cotegipe – ou Lei dos Sexagenários,
como ficou conhecida – que determinou que “o domicílio do escravo é intransferível para
província diversa da em que estiver matriculado ao tempo da promulgação desta lei”.22
Essas observações acerca da organização do comércio interno nos mostram que sua
lógica era determinada por fatores essencialmente econômicos e que os negociantes de
escravos se reajustavam quando necessário para que seus lucros não fossem prejudicados.
Ferreira Sobrinho analisa debates parlamentares no Ceará sobre a exportação de cativos, e sua
conclusão é de que a defesa do fim da escravidão na província estava ligada a uma
preocupação com o que consideravam ser a modernização do trabalho no Ceará.23
Quando as províncias do Sudeste determinaram as altas taxas proibitivas para a
importação de cativos, o que inquietava os legisladores era que a crescente perda de escravos
nas províncias exportadoras levasse à diminuição do apoio à defesa da escravidão no
Parlamento.24
Segundo Graham, outra preocupação dos fazendeiros era que a visibilidade que
o comércio interno de cativos dava aos “horrores” da escravidão levasse à perda de apoio
social à instituição e ao acirramento dos ânimos abolicionistas. 25
Jonas Marçal de Queiroz
concluiu, por sua vez, que o alto imposto proibitivo foi decretado em São Paulo como fruto de
uma “convergência de interesses” entre os setores interessados em promover a imigração
europeia e os grupos escravocratas, que temiam as consequências de um aumento excessivo
19
Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit., p. 24. Ver também: Célia M. M. de Azevedo,
Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987;
Maria Helena P. T. Machado, O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.
São Paulo: Edusp, 2010. 20
Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 124-5; Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p.
140. 21
José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, p. 249. O valor do imposto era quase o mesmo do preço médio
do escravo em Campinas nesse ano. Cf.: Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 183. 22
Lei Imperial nº 3270, de 28 de setembro de 1885, Art. 3º, Parágrafo 19. Disponível em:
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66550 (acessado em 10/08/2016). 23
O autor analisa, em especial, o discurso de um parlamentar que defendia a diminuição do imposto sobre a
exportação de escravos com o objetivo de “esvaziar” a província da presença do trabalho escravo. José H. F.
Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, p. 235-242. O Ceará aboliu a escravidão na província em 1884. 24
Robert Slenes. The demography..., op. cit., p. 124-5. 25
Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, op. cit., p. 140.
31
da oferta de escravos na Província, uma vez que o Rio de Janeiro e Minas Gerais já haviam
decretado tais impostos.26
Além disso, generalizava-se no Sudeste a denominação do escravo traficado como
“negro mau vindo do norte”, numa alusão à percepção de seu protagonismo nos crimes e
ações violentas de cativos nas províncias cafeicultoras. Vários historiadores têm afirmado que
a resistência escrava aumentou na segunda metade do século, o que tornou ainda mais visível
– e temível – para os senhores do sudeste, a cada vez maior concentração de escravos na
região.27
Logo, a intensificação do tráfico interno em meio a um contexto de crescente
mobilização nacional e internacional contra a escravidão fez com que ele se transformasse “no
foco da luta ‘política’ em torno do futuro do trabalho escravo, envolvendo senhores, cativos e
outros grupos sociais interessados”, nas palavras de Robert Slenes.28
As escolhas de escravocratas, negociantes de escravos e legisladores influíram
diretamente na vida de milhares de pessoas escravizadas. É imprescindível apreender melhor
os efeitos que o comércio inter e intraprovincial teve na experiência de vida dos escravos, já
que a possibilidade de ser vendido para o café era cada vez maior ao longo da segunda metade
do século.29
O tráfico foi uma experiência particularmente traumática para os indivíduos
comercializados. Como reconheceu o contemporâneo Barão de Cotegipe, o mercado interno
de escravos impressionava com “o espetáculo de tantas misérias!”: “crianças arrancadas das
mães, maridos separados das mulheres, os pais dos filhos!”.30
A venda para as fazendas de
café do Sudeste representava a desestabilização das condições de cativeiro nas quais esses
trabalhadores escravizados estavam inseridos há certo tempo, com alterações nas políticas de
domínio e na relação com o senhor a que estavam sujeitos. Além disso, teriam que lidar com a
separação de familiares e a desestruturação de redes de solidariedade consolidadas nos locais
em que residiam.31
26
Jonas M. de Queirós. Da senzala à República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-
1889). Dissertação (Mestrado), Unicamp, Campinas, 1995, p. 179. 27
Célia M. M. de Azevedo. Onda negra, medo branco..., op. cit., p. 113-114; Hebe M. M. de Castro. “Laços de
família e direitos no final da escravidão”. In: Fernando Novais (coord.). História da vida privada no Brasil:
Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 337-383; Maria Helena P. T. Machado. O plano e o
pânico... 28
Robert Slenes. “The Brazilian internal slave trade…”, p. 327. 29
Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p. 122, 141-144. 30
Barão de Cotegipe, Discurso, 01/09/1854, citado em Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p.
143. 31
Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade…”, op. cit.; Hebe M. M. de Castro, “Laços de família...”, op.
cit.; Silvia Hunold Lara. “Trabalhadores escravos”. In: Trabalhadores, n.1, Campinas, Fundo de Assistência à
cultura, 1989, p. 09; Sidney Chalhoub. “Costumes senhoriais: escravização ilegal e precarização da liberdade no
Brasil Império”, In: Elciene Azevedo et al. (org.) Trabalhadores na cidade: Cotidiano e cultura no Rio de
Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas, Editora da Unicamp, 2009, p. 55.
32
Sidney Chalhoub sublinhou as investidas escravas para interferir nas transações que
decidiam seus destinos e verificou que, para evitar serem vendidos para lugares indesejáveis,
os escravos poderiam agir de várias formas, desde estratégias para levar o comprador a
desistir da compra, até tentativas (ou a realização, de fato) de fugas, agressões e
assassinatos.32
Estudos centrados nas regiões exportadoras de escravos para o mercado destacaram a
agitação que o incremento do comércio de escravos para o Sudeste causou àquela população,
bem como suas formas de resistência às vendas.33
Ferreira Sobrinho apontou para a resistência dos negros do Ceará a serem submetidos
ao tráfico e arrancados de suas famílias, amigos e locais de origens, por meio de tentativas de
fugas ou de compra da alforria antes do embarque para o Sudeste, bem como agressão ou
assassinato de pessoas envolvidas nesse negócio.34
O historiador identificou ainda escravos
que acionavam a justiça para impedir a separação da família quando suspeitavam que seriam
vendidos, com base na Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871.35
Também verificou a formação
de redes de solidariedade e de informações, constatando que os escravos criaram “um
conjunto de ações que visavam à propagação das informações como meio de alertar o cativo,
e não cativo, dos perigos e vantagens de determinados acontecimentos, nas cidades, ou nas
fazendas, de temas relativos ao tráfico para o Rio de Janeiro”.36
Mas, apesar de todas essas estratégias e tentativas, muitas vezes, a venda para o
Sudeste era efetivada, e uma vez desembarcados nestes portos, esses homens e mulheres
teriam que enfrentar novos desafios. Richard Graham atentou para as longas caminhadas ou
trajetos de navio, os maus-tratos por parte dos comerciantes, a presença de vários
32
Sidney Chalhoub centra sua análise na Corte do Rio de Janeiro, que, sendo uma área urbana, perdia escravos
para as áreas rurais da Província do Rio de Janeiro nesse período. Cf.: Sidney Chalhoub. Visões da liberdade:
uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das letras, 1990, capítulo 1, p.
29-94. Como Chalhoub, outros historiadores, apesar de não terem abordado o tráfico interno como objeto central
de análise, chamaram a atenção para a importância dos momentos de compra e venda na vida dos escravos e para
as suas reações diante dessas situações. Ver, por exemplo, Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: Escravos e
Senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988; Hebe M. M. de Castro,
“Laços de família...”; Cristiany M. Rocha. Histórias de Famílias Escravas. Campinas, Editora da Unicamp,
2004; Eduardo S. Pena, “Burlas à lei e revolta escrava...”; entre outros. 33
Sobre o Ceará ver: José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”. Sobre a Bahia ver: Maria de F. N.
Pires. Fios da vida...; Ricardo T. C. Silva. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos, senhores e direitos
nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2007. 34
José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit., capítulo 3, p. 193-304. 35
O parágrafo 7º do quarto artigo da Lei determinava que “Em qualquer caso de alienação ou transmissão de
escravos, é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de 12 anos, do pai ou da
mãe.” Cf.: Brasil. Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 4º, parágrafo 7º. Disponível
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 10/08/2016). 36
José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, op. cit.,p. 195.
33
intermediários e o desconhecimento do destino final como elementos que faziam desse um
agonizante processo.37
O terrível percurso até as fazendas do Sudeste, feito algumas vezes por terra, foi
ressaltado por Erivaldo Neves: “Pelo interior, os comboios de cativos dos dois gêneros e
diversas idades marchavam pelos tórridos caminhos dos sertões baianos e mineiros,
acorrentados, com gargalheiras ao pescoço para evitar fugas e sob ameaça de chicotes para
manter a disciplina”.38
Contudo, como veremos ao longo deste estudo, a luta escrava contra o tráfico não
terminava com a chegada ao destino final. Esses homens e mulheres continuavam buscando
formas de interferir em seus destinos para além do arbítrio de negociantes e senhores.
1.2. Forasteiros para Campinas
Além de entender o funcionamento do mercado interno de escravos para o Sudeste
na segunda metade do século XIX, é pertinente analisarmos mais detidamente as
características dos escravos que chegaram ao município de Campinas por meio dessas
transferências.
Analisando os registros do pagamento do imposto devido sobre a compra, venda e
permuta de escravos – chamado de meia sisa – em Campinas, de 1860 a 1884,39
é possível
verificar uma série de variáveis a respeito do perfil da população escrava que foi negociada no
município.40
Com esses dados podemos delinear de modo mais amplo o universo dos sujeitos
que queremos investigar, conhecendo, na medida do possível, quais suas origens, perfil etário
e sexo. Cabe advertir, todavia, que os registros de meia sisa têm uma limitação de
informações que não permite grande aprofundamento no exame das transações e dos
indivíduos nelas envolvidos. Esse limite se dá pela própria natureza da fonte, uma vez que, ao
registrar o pagamento do imposto, o escrivão não anotava os locais de residência dos
envolvidos na transação, nem os dados referentes à matrícula do escravo comercializado,
37
Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”. 38
Erivaldo F. Neves. “Sampauleiros traficantes...”, p. 110. 39
O pagamento do imposto só passou a ser registrado em cartório em 1860. Cf.: José F. Motta, Escravos daqui,
dali…, p. 89. As fontes para este estudo se encontram em: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de
Campinas, Livros 29 a 31, 33, 35, 38, 39, 42, 43, 46, 49, 51, 52, 53, 54, 57, 59 e 62. Centro de Memória da
Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC). Vale ressaltar que os livros de
registro da meia sisa para os anos fiscais (que iam de julho de um ano a junho do outro) de 1871-74, 1876-77 e
de 1880 a junho/1881 não foram encontrados. 40
O historiador Rafael C. Scheffer analisou essa mesma fonte em sua tese de Doutoramento. Rafael C. Scheffer.
Comércio de escravos do Sul...; Outro interessante estudo do mesmo autor, sobre tema semelhante pode ser visto
em Tráfico interprovincial e comerciantes de escravos em Desterro, 1849-1888. Dissertação (Mestrado em
História), UFSC, Florianópolis, 2006.
34
informações que permitiriam determinar o tipo de comércio que estava sendo realizado, se
local, intra ou interprovincial.41
Para nossos objetivos, essa imprecisão compromete a análise
da experiência escrava porque fica difícil determinar há quanto tempo um escravo nascido no
Norte do Império, por exemplo, se encontrava em Campinas quando a venda registrada nos
livros da meia sisa ocorreu. Ele poderia ter sido matriculado em localidade diferente de seu
nascimento, antes mesmo de chegar a Campinas, dado que possibilitaria perceber as
diferentes experiências de venda vivenciadas pelo cativo.
Essa fonte foi também utilizada por Rafael da Cunha Scheffer em análise sobre as
transferências de escravos do Sul para Campinas. Para contornar essas limitações e outras
atinentes a seus objetivos específicos de pesquisa, Scheffer utilizou uma amostra de
procurações e escrituras de compra e venda de escravos. Com isso, levantou dados bastante
contundentes a respeito do tipo de comércio e da natureza das transações que ocorreram no
período e local considerados.42
Em nosso estudo, realizamos o cruzamento dos dados encontrados nos registros do
pagamento da meia sisa com os presentes em outros corpos documentais analisados
(processos judiciais e anúncios de fuga de escravos), para conhecer mais detalhadamente as
experiências vividas por alguns dos indivíduos que chegaram à Campinas pelo tráfico
interprovincial. Por ora, nos debruçaremos sobre os registros de meia sisa para conhecer
melhor o perfil dos indivíduos transacionados no município.
Dispomos do registro de pagamento do imposto de meia sisa para transações de
compra, venda e permuta envolvendo mais de 12.300 escravos, entre os anos 1860 e 1884.43
A maior parte das transações de cativos em Campinas ocorreu na década de 1870, totalizando
49,7%, contra um percentual de 46,5% transacionado na década de 1860, e apenas 3,8% na
década final da escravidão.
Com relação ao perfil demográfico das pessoas transacionadas, o primeiro dado que
salta aos olhos nessa documentação é a presença massiva de crioulos. Nada menos que 93,3%
dos cativos negociados em Campinas nesse período eram nascidos no Brasil, contra apenas
6,7% de africanos.44
Esses números se explicam, ao menos em parte, pelo envelhecimento da
população africana no Brasil, uma vez que o mercado de escravos dava preferência aos
41
Esse tipo de análise foi desenvolvido em José F. Motta. Escravos daqui, dali…,op. cit. com o estudo de
escrituras e procurações para compra e venda de escravos. 42
Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit. 43
Registro minha gratidão a Joice Fernanda de Souza Oliveira, por ter me permitido acesso à Base de Dados por
ela elaborada, denominada “Meia Sisa de escravos em Campinas, 1865-1880”, onde estão indexados os registros
correspondentes a cerca de oito mil escravos. 44
Percentuais calculados sobre o total de cativos com origem informada, o que corresponde a 86,5% de todos os
registros.
35
jovens. Por outro lado, número significativo de escravos não teve sua nacionalidade
informada no registro (13,5%), o que permite conjecturar a possibilidade de que a massa
africana fosse pelo menos o dobro do que está explicitado. A não declaração da origem do
escravo poderia ser apenas desconhecimento, mas também poderia ser voluntária, para
esconder evidências do contrabando de escravos após 1831. Cabe frisar que no período em
que o pagamento do imposto foi registrado, isto é, a partir de 1860, multiplicavam-se os
questionamentos jurídicos a respeito da importação ilegal, com cativos africanos entrados
ilegalmente no Império indo aos tribunais para alegar seu direito à liberdade em vista do
primeiro artigo da Lei de 1831.45
Com isso, é plausível que alguns escravos não tenham tido sua origem declarada
pelos escravocratas e comerciantes envolvidos nessas transações para esconder a importação
ilegal. Desnecessário dizer que esta é apenas uma elucubração, pois nunca saberemos quais
nem quantos escravos presentes nesta fonte eram africanos registrados sem sua origem, nem
quantos registrados como crioulos eram, na verdade, africanos.
Por outro lado, alguns dados impressionam pela indiscrição. Uma análise rigorosa da
origem desses cativos aliada a suas idades mostra que pelo menos 15 deles foram nitidamente
importados no período de ilegalidade, pois apresentavam menos de 29 anos na década de
1860, idade limite para alegação de que tivessem sido importados antes de 1831. Encontramos
até mesmo cativos africanos com idade menor que 14 anos, o que sugere terem sido
importados mesmo depois da Lei Eusébio de Queirós. Não avançaremos mais nessas
hipóteses por não acreditar que a fonte permita mais do que conjecturas, uma vez que o
escrivão pode ter querido anotar 40, ao invés de 04 anos. De qualquer modo, historiadores
como Beatriz Gallotti Mamigonian têm realizado importantes estudos a esse respeito,
demonstrando o grande volume de africanos entrados de maneira ilegal no Brasil após 1831.46
As informações de que dispomos confirmam o perfil sexual e etário já explicitado
pela historiografia. De todos os indivíduos comercializados no período analisado, 73,1% eram
do sexo masculino e 68,2% tinham entre 15 e 39 anos de idade, ou seja, estavam em idade
plenamente ativa.
45
Esse artigo previa a liberdade aos cativos africanos que fossem importados para o Brasil após a promulgação
da lei. Para um estudo das ações de liberdade impetradas por escravos com a alegação do tráfico ilegal ver
Elciene Azevedo. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo na segunda
metade do século XIX. Campinas, Editora da Unicamp, 2010. 46
Beatriz G. Mamigonian. Tobe a liberatedAfrican in Brazil: labourandcitizenship in thenineteenthcentury. Tese
(Doutorado em História), Universityof Waterloo, Canadá, 2002.
36
Há poucos dados sobre o estado conjugal dos homens e mulheres transacionados,
porém, é possível saber que pelo menos 23,3% deles era solteiros e apenas 1,6% casados.47
Levando em consideração apenas a população cativa adulta, isto é, com 15 anos ou mais, esse
percentual sobe para 29,4% solteiros e 2% casados. A proporção de casados era também um
pouco maior entre as mulheres adultas: 3,3%.
A venda conjunta com algum membro da família (marido, mulher, filhos ou irmãos)
aconteceu para 148 cativos, o que corresponde a 1,2% das pessoas registradas. Nesse conjunto
apenas 43 cativos foram comercializados junto com sua mãe (0,35% dos cativos negociados
no período) e 64 em companhia do cônjuge (0,52% dos escravos registrados). Apesar da
existência de dois regulamentos proibindo a separação de marido e mulher e dos pais dos
filhos menores nas transações de venda,48
os registros da meia sisa mostram que pelo menos
553 crianças escravas de até 12 anos foram vendidas em Campinas após 1871, e em apenas
seis desses registros é mencionada a venda em companhia de um dos pais. Verificamos
também que apenas 23,7% dos cativos descritos como casados na fonte foram
comercializados juntamente com seus cônjuges. Ou seja, 76,3% dos escravos casados que
tiveram sua venda registrada nesses anos foram negociados separados de seus esposos, o que
confirma o panorama já explicitado pela historiografia sobre o grande impacto que o mercado
nacional de cativos causou às famílias escravas na segunda metade do século XIX.49
Contudo, há exceções. Em estudo sobre o mercado interno de escravos em alguns
municípios paulistas, José Flávio Motta verificou uma frequência bem maior da venda de
pessoas acompanhadas de pelo menos um membro da família, chegando a 51,3% dos cativos
negociados no município de Piracicaba, por exemplo, entre os anos 1870 e 1873.50
47
Consideramos aqui somente os casamentos sancionados pela Igreja, não sendo possível identificar as uniões
consensuais nessa documentação. 48
Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, artigo 2º. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1695-15-setembro-1869-552474-
publicacaooriginal-69771-pl.html (consultado em 15/08/2016); e Lei n. 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo
3º, parágrafo 7º. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em
10/08/2016). 49
Diversos estudos assinalaram a desestruturação que o comércio interno de escravos causava às famílias cativas
e a frequência com que crianças foram envolvidas nesse mercado. Ver, por exemplo: Maria F. N. Pires. Fios da
vida..., op. cit., p. 43-6; Rafael C. Scheffer. “Lares partidos: famílias no comércio interno de escravos (1865-
1880)”. 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Curitiba (UFPR), 2015. Anais completos do
evento disponíveis em http://www.escravidaoeliberdade.com.br/; José F. Motta. “Crianças no apogeu do tráfico
de escravos (Piracicaba, Província de São Paulo, 1874-1880)”. 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil
Meridional, Curitiba (UFPR), 2015. Anais completos do evento disponíveis em
http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. Cabe mencionar, todavia, que houve também a ocorrência de venda de
famílias, ainda que em menor escala, cf.: José Flávio Motta, Escravos daqui, dali..., op. cit. 50
José Flávio Motta. Escravos daqui, dali..., op. cit., p. 235.
37
O gráfico 151
explicita outro aspecto dos efeitos do tráfico interno sobre a vida de
homens e mulheres escravizados, isto é, a dimensão da distância que estavam de seus locais
de origem, tendo sido submetidos ao tráfico inter ou intraprovincial, ou ainda, ao comércio
local. Nele verificam-se os dados referentes às províncias de origem dos escravos registrados
nos livros da meia sisa. Observamos que os escravos nascidos fora da Província de São Paulo
respondem por 75,3% dos dados. O principal local de origem desses sujeitos foi as províncias
do Norte e Nordeste (44,6%), índice maior do que o de nascidos na província paulista
(24,7%). Os escravos nascidos no próprio município de Campinas e, desse modo, negociados
em comércio local, perfazem 9% de todos os registros.
Não é possível saber o local exato onde foram comprados os escravos negociados em
Campinas no período estudado, uma vez que poderiam, por exemplo, ter sido transportados
do Norte até outra província do Sudeste e só depois vendidos em Campinas.52
No entanto,
podemos perceber que estavam bastante longe de suas terras natais e, decerto, de suas
51
Os números absolutos para os percentuais apresentados no gráfico 1 são: 709 pessoas nascidas em Campinas;
1.949 na Província de São Paulo, excluindo os campineiros; 1.233 nas outras províncias da Região Sudeste,
excluindo as pessoas nascidas na Província de São Paulo; 3.517 oriundas da Região Norte/Nordeste; 51 da
Região Centro-Oeste; e 1.129 provenientes da Região Sul; totalizando 7.879 escravos com origem informada.
Fonte do gráfico: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. Centro de Memória da
Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC). 52
Esse tipo de informação pode ser encontrado nas notas cartoriais de compra e venda de escravos, das quais não
dispomos neste estudo. Alguns estudos que trabalharam essa fonte: José Flávio Motta. Escravos daqui, dali e de
mais além..., op. cit.; Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit.
9,0%
24,7%
15,6%
44,6%
0,6% 14,3%
Campinas
Província de São Paulo
Região Sudeste
Região Norte/Nordeste
Região Centro-Oeste
Região Sul
Gráfico 1 – Origem dos escravos comercializados em Campinas (1860-1884).
38
famílias. Vale destacar que a proporção de cativos negociados que nasceram fora da província
paulista caiu para 29% após 1881, quando já vigorava o imposto provincial sobre a
importação de escravos. Esse percentual, provavelmente, corresponde a indivíduos que foram
trazidos para a Província de São Paulo antes de 1881 e estavam sendo renegociados no
comércio intraprovincial, ou local.
Como já apontado pela historiografia a respeito da relevância dos escravos oriundos
do tráfico interno entre as preocupações de escravocratas e legisladores do Sudeste na
segunda metade do século XIX,53
as fontes por nós inquiridas mostram que, de fato, há uma
enorme proporção dos escravos nascidos em outros locais do Império entre os envolvidos em
processos criminais ou de liberdade, ou que fugiram de seus senhores em Campinas nesse
período (tabela 1.1).54
Apenas 9% dos cativos crioulos presentes nessas fontes nasceram no
município paulista. Isto posto, podemos considerar que 91% das pessoas escravizadas que se
envolveram em crimes, ações de liberdade ou fugas nesse período eram forasteiros que
haviam chegado à Campinas através do comércio intra ou interprovincial.55
O percentual de
cativos nascidos no Norte, Sul ou Centro do Império chega a 61,8% de todos os nascidos no
Brasil. Essa gente certamente viveu experiências de grande afastamento de familiares e outras
redes de solidariedade constituídas na terra natal.
A busca nominal dos cativos réus, vítimas, litigantes e fugitivos nos registros de meia
sisa mostra ainda que o tráfico interno ou comércio local foram importantes também para a
experiência de cativeiro dos escravos nascidos em Campinas, uma vez que 46,2% deles
passaram por transações de compra e venda na segunda metade do século XIX.
53
Célia M. M. de Azevedo, Onda negra, medo branco...; Richard Graham. “Nos tumbeiros...”; José H. F.
Sobrinho. “Catirina, minha nega...”. 54
Temos informação de origem para 54,1% dos cativos encontrados nessa documentação. Os percentuais
mostrados a seguir foram calculados com base no total de cativos com origem informada. Ações de Liberdade,
Campinas, 1860-1888. CMU, TJC; Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886.
AEL, CSP; Anúncios de fuga de escravos em Gazeta de Campinas, 1869-1884; Registros da Meia Sisa de
escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. CMU, CRC. Os dados mostrados a seguir estão baseados nestas
mesmas fontes. 55
Vale ressaltar que é possível que parte desses cativos tenha chegado ao Sudeste junto com senhores que
migraram para estas paragens. Não deixa de se tratar, todavia, de indivíduos submetidos à migração forçada.
39
Tabela 1 – Origem dos escravos em Processos Criminais, Ações de Liberdade e
anúncios de fuga (Campinas, 1860-1888)
Localidade de origem56
Número de escravos com
origem informada % sobre o total de crioulos com origem informada
Campinas 39 9,0
Província de São Paulo57
68 15,8
Região Sudeste58
58 13,4
Outras regiões 267 61,8
Total de crioulos com
origem informada 432 100
Fontes: Ações de Liberdade, Campinas, 1866-1888. Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de
Justiça de Campinas (TJC); Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886.
Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP); Gazeta de Campinas, 1869-1884.
Além disso, algumas das fontes permitiram saber que a venda para Campinas não
havia sido a primeira a acontecer na vida do cativo, tendo ele sido traficado de outro local que
não o do seu nascimento.59
Nos anúncios de fugas na Gazeta de Campinas, há algumas vezes
a suspeita de que tais fugitivos teriam se dirigido aos lugares onde nasceram ou tinham algum
parente, o que denota a percepção de que as fugas estavam ligadas ao comércio interno. Essas
informações, assim como a menção nos processos de liberdade sobre o local onde os cativos
foram matriculados, permitem conhecer os lugares onde o escravo esteve antes de chegar a
Campinas. A quantidade de informações é pequena, mas permite saber que pelo menos 12
escravos passaram pelo Rio de Janeiro antes de serem vendidos para Campinas, bem como 4
passaram por Minas Gerais, 3 estiveram na capital de São Paulo e 1 chegou a residir em
Santos. A maior parte dos cativos com informação disponível, isto é, 21 deles, residiram em
cidades vizinhas a Campinas antes de vir parar no município, segundo as fontes que temos em
mãos. Como se vê, tanto os anúncios de fuga quanto a referência ao local de matrícula do
escravo nas ações de liberdade mencionam apenas localidades próximas a Campinas, sendo as
mais distantes ainda dentro da região Sudeste (Minas Gerais e Rio de Janeiro). Isso pode
denotar que os senhores só considerassem a suspeita de que a fuga escrava se daria como
retorno a locais em que reencontrariam familiares quando estes não eram tão distantes, ou que
apenas tivessem conhecimento do local de matrícula do cativo quando se tratava de uma
56
Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi
informada. Não estão descritos, portanto, 48 africanos (9,1% dos dados informados), 45 crioulos para os quais
não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 445 cativos com origem não identificada. 57
Não inclui os nascidos em Campinas. 58
Não inclui os nascidos na Província de São Paulo. 59
Um importante trabalho de rastreamento dessas múltiplas transações foi feito por Rafael da Cunha Scheffer,
com análise de escrituras e procurações para compra de escravos. Ver: Rafael da Cunha Scheffer. Comércio de
escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência
cativa. Campinas, Unicamp (tese de Doutorado), 2012. Análise de material semelhante pode ser encontrada
também em José Flávio Motta. Escravos daqui, dali e de mais além..., op. cit.
40
província mais próxima. Mas, além de suscitar conjecturas a respeito do entendimento dos
escravocratas, esses dados facultam supor que a experiência de ser traficado dentro da mesma
região trazia possibilidades diferenciadas daquelas de quem havia sido comercializado no
tráfico interregional. Voltaremos a essa questão em momento oportuno. Por ora, cabe frisar
que a experiência de compra e venda foi vivida mais de uma vez por esses sujeitos. Desse
modo, podem ter vivenciado mais de uma vez as situações de rompimento de laços familiares
e de solidariedade, bem como de práticas costumeiras na relação com os senhores,
constituídos em diferentes lugares. A dimensão do desenraizamento sofrido por essas pessoas
é um importante aspecto a ser considerado, isto é, devemos levar em conta os diferentes tipos
de experiência vividos por cativos vindos de localidades diversas e em momentos distintos.
É também bastante improvável que ser um escravo recém chegado em Campinas no
começo da década de 1860 tenha sido a mesma coisa que em fins da década de 1870, por
exemplo, já que havia então uma crescente entrada de novos forasteiros no município, como
visto nos dados sobre a meia sisa.
1.3. Os forasteiros em Campinas
Parte considerável dos cativos que foram trazidos ao Sudeste nas malhas do tráfico
interprovincial tiveram como destino as fazendas cafeeiras de Campinas. O município do
Centro-Oeste Paulista sofrera profundas transformações em sua dinâmica populacional e
econômica desde os fins do século XVIII e, na segunda metade do XIX, vivia uma conjuntura
de grande progresso das lavouras de café, com constante demanda por mão-de-obra. Além de
ter grande destaque na produção cafeeira, Campinas possuía a maior população escrava de
todos os municípios da província de São Paulo em 1872, contando com 14 mil cativos, e
ainda nos anos finais da escravidão possuía mais que o dobro do número de escravos que
qualquer outro município paulista, salvo Bananal.60
Tendo se tornado um local de atração para migrantes das regiões vizinhas e, ao longo
do século XIX, também para os originários de outras províncias, Campinas possuía uma
60
Peter Eisenberg. “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX.” In: Homens esquecidos: escravos e
trabalhadores livres no Brasil – século XVIII e XIX. Campinas, Editora da Unicamp, 1989, p. 259. Para análise
sobre os não-proprietários de escravos em Campinas, em vários períodos, ver Iraci D. N. Costa. Arraia-Miúda:
um estudo sobre os não-proprietários de escravos no Brasil. São Paulo, MGSP, 1992, p. 16-18. Para mais
informações sobre a evolução na dinâmica populacional de Campinas ver Paulo E. Teixeira. Mulheres,
domicílios e povoamento: Campinas, 1765-1850. Dissertação (Mestrado em História), UNESP, Franca, 1999; e
Robert Slenes. Na senzala, uma flor: Esperanças e Recordações da Família Escrava (Brasil Sudeste, Século
XIX). 2ª ed. Campinas, Editora da Unicamp, 2011, p. 78-82.
41
grande heterogeneidade em sua população livre. Segundo estudo feito por Paulo Eduardo
Teixeira com registros de casamento no município, o número de noivos livres nascidos fora
de Campinas foi sempre crescente, em especial após 1850.61
No caso dos noivos escravos,
Teixeira observou um crescimento no número dos nascidos no município de Campinas,
apesar de o número de localidades de origem aumentar proporcionalmente ao crescimento da
própria população cativa em consequência do tráfico interno. Comparando os dados
encontrados para a população livre e escrava, o estudioso concluiu que:
“se a partir de 1850 há uma queda no número de noivos livres nascidos em
Campinas, o mesmo fato não ocorre entre os noivos cativos, e o aumento tanto de
mulheres (22%) quanto de homens (10,8%) segue uma tendência crescente. Estas
informações corroboram com a existência da família escrava em certas condições
favoráveis não apenas ao casamento, como também para a sua multiplicação,
gerando filhos que vieram a se casar em sua terra natal”.62
Mesmo depois da libertação dos nascituros pela lei 2.040, promulgada em 1871, a
população escrava de Campinas continuou a crescer. Rafael da Cunha Scheffer aponta para
um crescimento de quase 10% no espaço de apenas cinco anos entre 1872-73 e 1878, o que só
pode ter ocorrido de duas formas: “a migração de senhores com seus cativos ou a compra
destes, de outras localidades brasileiras”, já que os escravocratas não poderiam mais contar
com a reprodução natural da população escrava.63
Como vimos no tópico precedente, foi na
década de 1870 que o mercado de escravos mais se aqueceu em Campinas.
Em uma análise das escrituras e procurações para compra e venda de cativos em
Campinas, Scheffer observou que o município também exercia grande importância como
entreposto de negociação de escravos. Ou seja, senhores de outras localidades se dirigiam à
Campinas para adquirir cativos, alguns dos quais trazidos ao município pelo comércio
interprovincial.64
De acordo com estudos de Robert Slenes, em Campinas, os escravos vindos pelo
tráfico interno encontravam um ambiente de crescente concentração da posse cativa. Se no
começo do século XIX, 27,2% de todos os escravos estavam em propriedades com até nove
cativos, e os fogos com 50 ou mais trabalhadores escravizados respondiam por 10,2% do
61
Paulo E. Teixeira, “De onde eles vieram: Estudo sobre origem e migração dos noivos para Campinas, 1774-
1888”. In: Rosana Baeninger; Claudio Dedecca. (Org.). Processos Migratórios no Estado de São Paulo -
Estudos Temáticos. Campinas: Núcleo de Estudos de População - NEPO/UNICAMP, 2013, v. 10, p. 21. Mais
informações sobre a atração exercida por Campinas para a migração interna pode ser vista em Robert Slenes.
“Senhores e Subalternos no Oeste Paulista”. In: Fernando A. Novais (Cord.); Luiz F. de Alencastro (org.).
História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das
Letras, vol. 2, 1997, p. 239. 62
Paulo E. Teixeira. “De onde eles vieram...”, p. 22. 63
Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit., p. 29. 64
Rafael C. Scheffer. Comércio de escravos do Sul..., op. cit., p. 43-8.
42
total, essa realidade se modificou drasticamente na segunda metade do século. Em 1872,
apenas 9% dos cativos estavam em propriedades pequenas (com 1-9 pessoas), enquanto
64,4% se concentravam em posses de 50 ou mais.65
Por meio dos inventários post mortem de alguns escravocratas de Campinas, é
possível verificar o ambiente mais específico no qual esses forasteiros foram inseridos. Na
busca por tais documentos entre os processos julgados pelo Tribunal de Justiça de Campinas,
encontramos os inventários correspondentes aos senhores de apenas 134 dos escravos
envolvidos em crimes, ações de liberdade ou fuga (15,7% do total de cativos arrolados em
nossos bancos de dados). Desses 134 escravos, 64,9% não haviam nascido nessas escravarias.
Como na época esse tipo de processo judicial só era realizado quando o finado
possuía bens a inventariar, essa amostragem revela que pelo menos 15,7% dos cativos fazia
parte da propriedade de senhores com algum poder econômico.66
Cerca de 60% dos senhores
cujos inventários foram abertos ainda no período escravista, tinham uma propriedade de mais
de 50 cativos.
Como demonstra Slenes, essa estrutura mais concentrada da posse cativa teve
importantes implicações para a família escrava, uma vez que era nas maiores propriedades
que os cativos encontravam mais possibilidades de se casar e construir famílias conjugais
relativamente estáveis.67
Nas posses médias e grandes (com dez ou mais escravos), a
proporção casada ou viúva entre mulheres acima de quinze anos variou em Campinas entre
60% e 69% nos anos de 1801, 1829 e 1872.68
De acordo com esses dados levantados por
Slenes, os índices de casamentos cativos no município apresentam uma surpreendente
continuidade ao longo do século XIX, mesmo após o decreto de 1869, em que foi proibida a
separação de casais por vendas, o que poderia ter desmotivado os senhores a permitir a
oficialização das uniões cativas.
Essa continuidade nos índices de casamento escravo no contexto de intensificação do
tráfico interno ao longo do século também surpreende se considerarmos que, como concluiu
Joice F.de Souza Oliveira, não era simples o processo de integração desses homens e
mulheres que chegavam às escravarias de Campinas pelo tráfico:
65
Vale lembrar que esses dados foram verificados em fontes diferentes, a saber, recenseamentos e inventários
post mortem. Cf.: Robert Slenes. Na senzala, uma flor..., op. cit., p. 79-80. 66
Pelo menos 70% dos inventários que analisamos apresentam a avaliação dos bens do falecido perfazendo
montantes maiores que 100 contos de réis. CMU, TJC, Inventários post mortem, Campinas, 1860-1888. 67
Robert Slenes. Na senzala, uma flor..., op. cit., p. 80. Robert Slenes. “Escravidão e família: padrões de
casamento e estabilidade familiar numa comunidade escrava (Campinas, século XIX)”. In: Anais do IV Encontro
Nacional de Estudos Populacionais. São Paulo: ABEP, 1984, p. 2120-2124. 68
Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 274.
43
“Nas fazendas já estabelecidas, ou seja, naquelas em que a comunidade escrava se
constituirá [sic] ao longo de muitos anos, os laços de parentesco e solidariedade
entre os escravos, as possibilidades de o forasteiro conseguir se integrar eram
pequenas, principalmente devido à discriminação dos escravos campineiros em
relação aos forasteiros. Nas propriedades de formação recente, por sua vez, havia
poucos núcleos familiares e a maioria da escravaria era composta por homens
adultos e solteiros, de modo que eram pequenas as chances para os cativos
procedentes do comércio interno de constituir famílias e criar uma rede de
parentesco”.69
O fato de que os índices de casamento escravo formal não tenham diminuído com a
crescente entrada de novos cativos nas fazendas de Campinas pode indicar que, apesar de tais
dificuldades, os forasteiros tenham conseguido também formar suas famílias e tê-las
sancionadas pela igreja. Essa hipótese, contudo, só pode ser corroborada com uma análise dos
registros de casamento de escravos do município, a qual não foi realizada no presente estudo.
As altas taxas de mortalidade da localidade atestam, por outro lado, a instável
situação de saúde dos cativos:
“As taxas de mortalidade escrava em Campinas no período sugerem uma
expectativa de vida, ao nascer, de dezenove a 26 anos, ou de mais de 34 a 38 para
quem conseguisse chegar aos dez anos de idade”.70
A cidade tinha má fama entre os escravos no Império, sendo o envio a Campinas
usado como ameaça de punição para os mais insubordinados.71
José Hilário Ferreira
Sobrinho, ao analisar a resistência dos escravos do Ceará a serem embarcados para o Sudeste,
observou que as informações sobre “a vida de trabalho duro, nas fazendas de café, corriam
largamente entre os cativos”.72
Vindos em geral de áreas urbanas ou de pequenas propriedades em regiões diversas
do Império, os homens e mulheres submetidos ao tráfico interno encontravam uma realidade
deveras diferente nas grandes lavouras campineiras, com o trabalho intensivo no cultivo e
colheita do café, realizado em grupo e com supervisão constante do feitor.73
Além das más condições de vida dos cativos em Campinas, a taxa anual de alforrias
no município também não era nada alentadora, já que correspondia à metade da registrada no
69
Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista: Escravos no Comércio Interno de Cativos e suas
Experiências em Campinas, 1850-1888. Dissertação (Mestrado Em História), Unicamp, Campinas, 2013, p. 195. 70
Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 259. 71
Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez...”, p. 151. 72
José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga...”, p. 194. Maria F. N. Pires também sugere que “as notícias do
tráfico interprovincial circulavam através de tropeiros e de escravos que conseguiam fugir das fazendas paulistas
e voltar a Caetité para junto dos seus.” Cf.: Maria F. N. Pires. Fios da vida..., op. cit., p. 12. 73
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 26. Sobre as mudanças no relacionamento entre
senhor e cativo nas transferências das pequenas para as grandes propriedades em consequência do tráfico
interno, o mesmo foi observado em Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional
economies, slave experience, and the politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel
principle: internal slave trades in the Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70.
44
Império como um todo no início da década de 1870.74
Apesar de Peter Eisenberg ter
evidenciado que houve um crescimento no número de alforrias em Campinas nas décadas de
1870 e 1880, no bojo do acirramento de movimentos abolicionistas, 75
sabe-se que os escravos
novos originários de outras regiões eram preteridos pelos senhores na hora de alforriar ou
possibilitar o pecúlio com ocupações especializadas ou com o cultivo de pequenas roças.76
Todavia, como verificamos por meio do estudo das Ações de Liberdade, os cativos trazidos
ao município pelo tráfico lutaram constantemente para conseguir sua liberdade, recorrendo,
por exemplo, aos tribunais. Voltaremos a isso com maiores detalhes no capítulo 4.
=
1.4. De forasteiros e desenraizados
Até aqui viemos utilizando a expressão “forasteiro”, emprestada de Joice F. de Souza
Oliveira,77
de modo genérico. A princípio, definimos esse termo como o cativo encontrado
nas fazendas de Campinas após 1860, mas que não era nascido no município.
No entanto, para uma reflexão sobre o desenraizamento como um efeito do tráfico
interno e como possível motivador de ações cativas que questionaram o poder senhorial no
período, é indispensável que definamos melhor quem eram esses forasteiros. Precisamos
entender, por exemplo, se havia alguma diferença acerca da integração na comunidade
escrava e das possibilidades de mobilidade social, mesmo que dentro do cativeiro, entre os
cativos nascidos nos municípios vizinhos a Campinas e os vindos de regiões longínquas do
Império. Se a palavra “forasteiro” carrega o peso do “estranho” ou “externo” à comunidade,
quais escravos eram assim tratados pelos já residentes nas fazendas de Campinas? Ou
devemos considerar forasteiros todos aqueles não nascidos em Campinas, incluindo aí
também os africanos?
Poderemos adentrar melhor essas questões a partir dos capítulos que vêm a seguir.
Além da análise quantitativa a respeito do perfil dos cativos criminosos, litigantes pela
liberdade e fugitivos, tencionamos dar nome e rosto a esses sujeitos. Por meio de uma
descrição densa das diversas experiências de cativeiro que podem estar relacionadas com os
eventos retratados nas fontes, examinaremos as diferentes motivações e possibilidades que se
74
Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 277. 75
Peter Eisenberg. “Ficando livre...”, p. 260. 76
Robert Slenes. “Senhores e Subalternos...”, p. 236 e 272. 77
Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista...
45
apresentaram aos cativos envolvidos em crimes, ações de liberdade e fugas que haviam
chegado a Campinas via comércio intra ou interprovincial.
Por ora, faremos uma escolha: não incluir os africanos na análise. Eles também
foram objeto do mercado interno da segunda metade do Oitocentos, assim como estão
presentes nos atos criminosos, ações de liberdade e fugas que inquietaram os escravocratas do
Sudeste nesse período. Todavia, suas experiências de cativeiro têm particularidades
importantes que exigiriam outra abordagem, o que ainda não consideramos possível fazer em
nosso estudo.
46
CAPÍTULO 2 – Forasteiros criminosos
2.1. Os crimes e os criminosos
Os crimes cometidos por escravos em Campinas ao longo do século XIX foram
analisados detidamente por Maria Helena Machado, na obra Crime e Escravidão.1 A
historiadora observou que, por meio de atos criminosos, os cativos tentavam impor
determinados limites ao sistema disciplinar das fazendas, defendendo certa margem de
autonomia e tratamento aceitável no cativeiro:
“(...) os grupos de escravos passavam a reivindicar, mais e mais abertamente, o
cumprimento daquilo que se percebia como obrigações senhoriais. Um ritmo de
trabalho próprio ao grupo, a injustiça dos castigos, os direitos à folga semanal, a
alimentação e o vestuário, o recebimento de estipêndios pelo trabalho realizado a
mais e a manutenção de uma economia independente na forma das roças e do
pequeno comércio foram, muitas vezes, os argumentos que em seu conjunto
justificavam os ataques violentos dos plantéis contra os senhores e seus feitores.”2
Maíra Chinelatto retomou a análise dessa documentação recentemente, em sua
Dissertação de Mestrado, intitulada Quando falha o controle: crimes de escravos contra
senhores.3 A historiadora analisou comparativamente os crimes de escravos contra senhores
ocorridos na primeira e na segunda metade do século XIX (décadas de 1840 e 1870),
acompanhando as transformações políticas e legislativas que a instituição escravista sofreu ao
longo do século.
Chinelatto observou a predominância de africanos entre os criminosos da primeira
metade do século e de crioulos de diversas regiões do Império, na segunda. Verificou, então,
que nos dois casos, os cativos tentavam se defender contra os abusos dos senhores e o
desrespeito ao que eles consideravam como seus direitos, assim como já observara Machado.
No entanto, “de forma geral,” concluiu Chinelatto, “os crimes da década de 1870 ocorreram
1 Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão: trabalho, luta, resistência nas lavouras paulistas (1830-
1888). São Paulo, Brasiliense, 1987. 2 Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.
São Paulo: Edusp, 2010, p. 25; ver também Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 125-
6. 3 Maíra Chinelatto. Quando falha o controle: crimes de escravos contra senhores. Campinas, 1840/1870.
Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
47
em propriedades maiores, envolveram mais escravos, os quais combinaram de antemão para
cometer o crime”.4
O foco do nosso estudo na experiência do tráfico interno torna pertinente que
voltemos a analisar esses crimes, agora com um olhar diferente, isto é, verificando nessas
histórias a importância que o fato de ser forasteiro pode ter tido para as atitudes ou discursos
dos cativos.
Comecemos com alguns números. Entre os 134 escravos indiciados como réus no
período de 1860 a 1886, a proporção dos crioulos não nascidos em Campinas é de 80,2%5
(vide tabela 2), o que demonstra a relevância do tráfico interno para o município e o
protagonismo dos indivíduos traficados na criminalidade escrava.
Tabela 2 – Localidade de origem dos crioulos réus em Processos Criminais
(Campinas, 1860-1886)
Localidade de origem6 Número de escravos % sobre o total de crioulos com origem informada
Campinas 17 19,8
Província de São Paulo7 09 10,5
Região Sudeste8 13 15,1
Outras regiões 47 54,6
Total de crioulos 86 100
Fontes: Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886. Arquivo Edgard
Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP); Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de
Campinas, 1860-1884.Centro de Memória da Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas
(CRC).9
Na tabela 3 podemos ver como a proporção de réus nascidos em diferentes
localidades do Império variou ao longo do tempo. O gráfico 2 ajuda a visualizar melhor essa
dinâmica.
4 Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 127.
5 Percentual calculado sobre o total de crioulos cujo município ou província de origem puderam ser
identificados. 6 Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi
informada. Não estão descritos, portanto, 20 africanos (18,5% dos dados informados), 2 crioulos para os quais
não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 26 réus com origem não identificada. 7 Não inclui os nascidos em Campinas.
8 Não inclui os nascidos na Província de São Paulo.
9 Todas as tabelas e gráficos deste capítulo foram elaboradas com base nessas fontes.
48
Tabela 3 – Origem dos escravos crioulos réus em Processos Criminais, por
década (Campinas, 1860-1886)
Década Número de réus
escravos crioulos10
Número de réus
escravos campineiros
Número de réus
escravos forasteiros
1860 22 08 14
1870 50 09 41
1880 14 - 14
Total 86 17 69
Como se vê na tabela 3 e no gráfico 2, a proporção de réus nascidos em Campinas é
um pouco maior na década de 1860 – ainda que continue sendo menor que o percentual de
forasteiros, e decai nas décadas em que houve maior entrada de cativos do mercado
interprovincial no município, chegando a zero na década final da escravidão.
Essa desproporção se mostra ainda mais marcante quando comparamos as
características dos cativos de nossa amostra (em autos criminais) com o perfil demográfico da
população escrava em Campinas. De acordo com dados colhidos por Robert Slenes em uma
amostra para os anos 1872 a 1874, 56,3% da população escrava crioula com origem
10
Incluímos nesta tabela e no gráfico seguinte (2.1) somente os crioulos que tem informação da localidade de
origem dentro do Império (município e/ou província).
36,4%
18%
0%
63,6%
82%
100%
1860 1870 1880
Campineiros Forasteiros
Gráfico 2 – Origem dos crioulos réus em Processos Criminais, por década
(Campinas, 1860-1886).
49
conhecida não havia nascido no município de Campinas,11
proporção bem menor do que a que
foi indiciada como réu na segunda metade do século.
Além disso, 54,6% dos réus crioulos vieram de fora da região Sudeste, ou seja, foram
submetidos ao tráfico inter-regional, estando bastante distantes de seus locais de origem
(tabela 2). Mesmo entre os escravos réus nascidos em Campinas, 41,2% não havia nascido nas
escravarias onde se envolveram nos crimes, tendo sido comprados pelos atuais senhores na
segunda metade do século (tabela 4). Em geral, 68,1% dos cativos crioulos indiciados como
réus no período haviam passado pelo tráfico interno ou comércio local. Desse modo, ao
menos a princípio, a relevância dessa experiência para o volume de cativos criminosos no
período não pode ser descartada.
Tabela 4 – Origem dos Réus com informação de compra e venda (Campinas,
1860-1886).
Origem Número de escravos réus com
informação de compra e venda %
12
Campineiros 07 41,2
Forasteiros 50 73,5
Ainda comparando os dados de nossa mostra com o perfil demográfico da população
escrava de Campinas, podemos observar quem eram esses criminosos e quais diferenças
podem ter sido determinadas pela sua origem.
A grande desproporção entre homens e mulheres réus chama atenção independente
da origem. Enquanto os dados do censo de 1872 e das matrículas de 1873 e 1887 variam em
torno de 56% para os escravos do sexo masculino,13
esse percentual se eleva para 96,3% entre
os réus. Ao invés de tentarmos explicar por que as mulheres se envolveram menos em crimes,
devemos ponderar que poucas foram as indiciadas. Em sua análise sobre a revolta escrava de
1832 em Campinas Ricardo Pirola observou um esforço dos cativos em proteger as mulheres
envolvidas na trama, não citando seus nomes em nenhum dos vários depoimentos que
arrolaram uma série de detalhes sobre o planejamento da revolta.14
Como afirmou o
historiador, é bastante improvável que as mulheres e filhas dos revoltosos realmente não
soubessem dos planos de insurreição.
11
Robert Slenes. The demography and economics of Brazilian slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford
University, Stanford, 1976, tabela 3-2, p. 133. 12
Percentual calculado sobre o total de cativos réus com essa mesma origem. 13
Robert Slenes. The demography..., tabelas B-2, B-3 e B-7, p. 690-1 e 697. 14
Ricardo F. Pirola. Senzala Insurgente: malungos, parentes e rebeldes nas fazendas de Campinas (1832).
Campinas, Editora da Unicamp, 2011, p. 147.
50
Em um processo criminal que julgou o homicídio de um feitor em 1868, vemos
também um esforço de manter a participação feminina velada. O réu Epifânio afirmou a
participação de todos os companheiros que estavam no eito no assassinato do feitor, com
“exceção das negras que estavam no eito”15
. As três escravas presentes na cena do crime eram
Jacinta, Damásia e Maria das Dores, sendo as duas últimas casadas. Epifânio também contou
que a morte do feitor havia sido combinada pelos cativos da fazenda algum tempo antes, o
que torna improvável que as mulheres não soubessem e compactuassem com o plano, uma
vez que não houve delação e ele foi executado com sucesso.
Ricardo Pirola observou um número significativo de escravos casados entre aqueles
que foram indiciados pelo plano de revolta de 1832, com uma proporção de 38% entre os que
tiveram o estado conjugal informado no processo crime. Entre aqueles apontados como
líderes do levante, a proporção se mostrou ainda maior: 57,1%.16
No caso dos réus da segunda metade do século XIX, observamos que, enquanto
20,3% dos escravos da província de São Paulo estavam casados por ocasião da matrícula de
1873,17
esse percentual sobe para 22,6% no caso dos réus em geral e para 26,7% no caso dos
réus nascidos em Campinas (gráfico 318
). No entanto, essa proporção é bem menor quando se
trata de réus forasteiros: 12,1%. Isso pode significar, em primeiro lugar, que poucos
forasteiros tenham tido acesso ao casamento sancionado pela Igreja nesse período; mas essa
suposição só pode ser corroborada com uma análise sistemática das certidões de casamento de
escravos na segunda metade do século XIX, o que não pudemos fazer neste estudo. No
entanto, antes de nos apoiar nessa suposição, devemos considerar que muitos desses
forasteiros (41,7%) cometeram crimes nos cinco primeiros anos após sua chegada em
Campinas, sendo, então, pouco provável que já tivessem conseguido se unir a uma parceira e
ter a permissão do novo senhor para a oficialização da união em tão pouco tempo.19
Além
disso, em acordo com as preferências do mercado de escravos, esses forasteiros trazidos à
15
AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio,
escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas, 1868. “Auto de perguntas ao réu Epifânio”, p. 7.
“Auto de perguntas ao réu Epifânio”. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa
Maria de Jesus Paula, Campinas, 1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. p.7. 16
Ricardo Figueiredo Pirola. Senzala Insurgente..., op. cit., p. 107. 17
Robert Slenes. The demography..., tabela B-4, p. 692. 18
Fonte dos dados sobre estado conjugal dos escravos na matrícula de 1873: Robert Slenes, The demography...,
tabela B-4, p. 692. 19
Esta informação, bem como outros dados relacionados ao tempo de moradia dos réus escravos está constante
na tabela .
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. CMU, CRC.
51
Campinas eram em sua maioria solteiros.20
Vale ressaltar ainda que o índice de casamentos
formais (sancionados pela Igreja) nas outras províncias era muito baixo.21
Gráfico 3 – Estado conjugal dos escravos na matrícula de 1873 e em Processos
Criminais.
Por outro lado, se a maioria dos forasteiros envolvidos em crimes não tinha relações
conjugais formalizadas, é bastante interessante observar as respostas dos cativos réus quando
foram perguntados sobre o nome de seus pais. Enquanto 29,4% dos réus nascidos em
Campinas mencionaram o nome do pai e/ou mãe, 46,4% dos forasteiros informaram o nome
de pelo menos um dos progenitores. Esses dados dão pistas a respeito do convívio familiar,
podendo indicar uniões consensuais estáveis nos locais de origem, bem como o impacto do
tráfico sobre essas famílias.
As preferências do mercado de escravos também influenciaram o perfil etário dos
cativos indiciados nos processos criminais que temos em mãos: enquanto 78,6% dos cativos
com origem em Campinas estavam em idade plenamente produtiva, isto é, tinham entre 15 e
39 anos, esse percentual sobe para 90,8% quando se trata dos réus forasteiros.22
É preciso
levar em consideração que esses dados são amostrais, ou seja, essas idades correspondem
apenas aos cativos que foram indiciados por algum crime entre 1860 e 1886. Assim,
20
José F. Motta. Escravos daqui, dali e de mais além. São Paulo: Alameda Editorial/FAPESP, 2012, p. 67ss. 21
Robert Slenes, The demography..., tabela B-4, p. 692. 22
Percentuais calculados sobre o total de informações disponíveis sobre a idade dos réus.
76,2% 73,3% 86,2%
58,3%
20,3% 26,7% 12,1%
41,7%
3,5% 0,0% 1,7% 0,0%
Todos os escravos da
Província de São
Paulo (matrícula de
1873)
Réus campineiros Réus forasteiros Vítimas
Solteiros Casados Viúvos
52
ponderamos que os forasteiros estavam causando grande prejuízo aos senhores, uma vez que
sua prisão ou as sequelas dos castigos recebidos como sentença por esses crimes atrapalhavam
o bom andamento das produções nas fazendas.
Por outro lado, a menor idade do escravo réu poderia ser um fator amenizador da
pena, o que era benéfico para o cafeicultor que não desejava ter seu cativo na prisão por muito
tempo. Esse subterfúgio foi utilizado, por exemplo, em 1868, no julgamento do réu Epifânio
que, acusado de ser o principal responsável pelo assassinato do feitor Malaquias na fazenda de
sua senhora, dona Teresa Maria de Jesus Paula, teve a idade menor de 21 anos alegada pela
defesa como forma de diminuir a severidade da pena prevista.23
Outro fator a influenciar o tamanho do prejuízo sofrido pelo senhor que tinha seu
escravo envolvido em um processo criminal era a ocupação, cujas diferenças relativas à
origem são bastante interessantes e podem ser observadas na tabela 5. A proporção dos
homens adultos (com 15 anos ou mais) nascidos fora de Campinas que estava em ocupações
especializadas ou domésticas é de 35,1%. Entre os escravos nascidos em Campinas, 25% dos
réus estavam nessas ocupações.
Tabela 5 – Ocupação dos escravos adultos do sexo masculino em Processos
Criminais (Campinas, 1860-1886).
Tipo de
ocupação
Vítimas24
Réus Réus forasteiros Réus campineiros
N % N % N % N %
Atividades
especializadas
ou domésticas
05 50% 25 32,5% 20 35,1% 03 25%
Lavoura 05 50% 52 67,5% 37 64,9% 09 75%
Total 10 100 77 100 57 100 12 100
A ocupação em uma atividade doméstica ou especializada conferia certos privilégios
aos cativos, como maior autonomia e mobilidade espacial, bem como a possibilidade de
formação de um pecúlio para compra da liberdade. Além disso, possibilitava ao cativo ter
contatos múltiplos com gente da casa grande, com a escravaria em geral e com pessoas livres
e/ou libertas.25
Assim, a maior proporção de cativos forasteiros com esse tipo de ocupação
traz duas implicações. Primeiro, confirma a presença de cativos oriundos de áreas urbanas de
23
“Sentença do Juiz de Direito”, 25/05/1868. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de
Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas, 1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008, p. 152.
Para um estudo bastante detalhado sobre o uso do argumento da menoridade no julgamento de crimes de
escravos, ver: Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de
junho de 1835. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2015, p. 125-141. 24
Não diferenciamos o tipo de ocupação das vítimas por origem devido ao baixo número de informações. 25
Ricardo Figueiredo Pirola. Senzala Insurgente..., op. cit., p. 95.
53
diversas regiões do Império, que, ao serem traficados para as fazendas de Campinas, se viram
muitas vezes privados de exercer tais atividades especializadas e delas usufruir os privilégios
de antes. É possível verificar casos em que o escravo diz que “sabe ofício de pedreiro, mas era
trabalhador de roça”,26
bem como casos em que a qualificação do réu mencionava duas
ocupações, como “cozinheiro e trabalhador de roça”27
. Esse pode ter sido um fator agravante
das tensões relativas ao sistema disciplinar das fazendas, não reconhecido como razoável
pelos cativos, em especial por aqueles que traziam uma experiência de cativeiro anterior
muito diferente.
Em segundo lugar, esses dados evidenciam que exercer uma atividade doméstica ou
especializada não garantia ao cativo o não envolvimento em conflitos, o que parece ter sido
ainda mais marcante quando se tratava de forasteiros.
O envolvimento de um escravo com ocupação especializada em atos criminosos era
um fator que tornava ainda maior o prejuízo do senhor, uma vez que estes se veriam privados
do serviço daqueles que tinham o valor mais alto. De modo geral, pode-se observar que, pelo
menos entre os forasteiros, os cativos com valores mais altos, seja pela faixa etária em que se
encontravam ou pelas ocupações que exerciam, eram o que mais se envolviam em
“problemas”. Os preços de escravos homens entre 14-28 anos variou em torno de 2:200$000
réis em Campinas ao longo da década de 1870, exatamente no mesmo período em que o
número de crimes foi maior.28
Em ambos os casos, todavia, os escravos que trabalhavam nas lavouras foram a
maioria dos que se envolveram em atos criminosos após 1860: 64,9% dos homens adultos
forasteiros e 75% dos nascidos em Campinas. Além de se aproximar da realidade demográfica
do município, esse dado permite confirmar o que já foi dito por Maria Helena Machado sobre
a relevância do sistema disciplinar nas fazendas que, ao solapar as margens de autonomia
escrava, adicionava calor ao barril de pólvora das relações escravistas nas últimas décadas do
século XIX.29
Passemos, agora, a uma análise mais interna dos autos criminais que envolveram
esses escravos como réus, procurando divisar as semelhanças e diferenças entre os crimes
cometidos por cativos nascidos em Campinas e aqueles em que os forasteiros foram
indiciados.
26
“Auto de qualificação de Manuel”. Processo Crime. Réu: Manuel, escravo de João Ferreira da Silva Gordo,
Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 006. 27
“Auto de qualificação de Emiliano”. Processo Crime. Réus: Anísio, Benedito, João e Emiliano, escravos de
Manuel Inácio de Camargo, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 237, Documento 001. 28
Robert Slenes. The demography..., gráfico 5-1, p. 241. 29
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 25.
54
Um caso bastante interessante pode nos tirar por um momento da frieza dos números
e nos apresentar alguns detalhes sobre as expectativas e dificuldades vivenciadas pelos
forasteiros em Campinas, não só nas fazendas de café.
O baiano Francisco, que era sapateiro e cozinheiro, trabalhava na cozinha do Hotel
do Comércio, onde estava alugado ao proprietário José de Sousa Teixeira. Numa noite,
Francisco saiu do Hotel logo após o jantar para ir à venda comprar fumo e beber aguardente,
sem comunicar Teixeira. Quando chegou encontrou o locador deveras furioso pela sua saída
sem permissão e foi castigado. Em depoimento, o cativo contou então que,
“(...) tendo ele sofrido isto de Teixeira, saltou o muro, e foi ter com seu
senhor Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, e lhe deu parte do ocorrido, e
seu senhor lhe disse que voltasse para o hotel que ele viria falar com
Teixeira, e chegando ele respondente de novo ao hotel Teixeira lhe disse
[ilegível] que já lhe tinha dito que não queria que ele saísse de casa sem lhe
pedir licença e lançou mão de uma racha de lenha e com ela começou a dar-
lhe pancadas, e ele respondente lhe dizia fugindo das pancadas que não lhe
batesse [?] a perder, e corria de Teixeira por de trás do fogão, e Teixeira o
perseguia e nesta ocasião ele respondente lançando mão de um canivete de
mola que consigo tinha, com ele ofendeu a Teixeira”.30
Francisco mostrou em juízo os ferimentos que José de Sousa Teixeira lhe causara
com as pancadas na cabeça e no braço, e sua recusa em ser castigado pelo proprietário do
Hotel é marcante em todos os pontos do processo. Ao senhor do escravo, Antônio Jesuíno de
Oliveira Barreto, foi perguntado pelo advogado do réu se quando alugou Francisco a Teixeira
autorizou-o a castigar o escravo, e ele respondeu negativamente, mas que “(...) recomendara a
Teixeira que o avisasse logo de qualquer falta que por ventura o Réu praticasse”.31
Logo,
Francisco não aceitava os castigos que Teixeira tentava lhe infligir, provavelmente por estar a
par da combinação que seu senhor fizera com o locador, tanto que sua reação ao ser castigado
pela primeira vez foi ir procurar o próprio senhor.
A negação de Francisco aos castigos aplicados por Teixeira também fica implícita
nas informações prestadas pelo escravo Vitalino, que estava na cozinha na hora do conflito e
contou que Francisco dissera a Teixeira “pelo amor de Deus, deixe-me trabalhar”.32
A vítima,
José de Sousa Teixeira, também disse que, ao tentar repreender o réu por sua saída do Hotel
30
“Auto de perguntas ao escravo Francisco”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de Antônio Jesuíno de
Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 003.
31
“Auto de perguntas ao informante Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto”. Processo Crime. Réu: Francisco,
escravo de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229,
Documento 003. 32
“Auto de perguntas à testemunha 4ª informante”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003.
55
sem avisar, ele lhe dissera “faz o favor de não me incomodar, pelo amor de Deus, não me
aborreça, retire-se”.33
Outro ponto da expectativa de cativeiro que Francisco trazia – e é perceptível no
processo – é que ele considerava perfeitamente aceitável que saísse do hotel sem avisar o
locador, para ir à venda comprar fumo e beber aguardente.34
Mas Teixeira pensava de modo
diferente.
O processo permite conhecer um pouco do local onde o cativo estava trabalhando: na
cozinha, juntamente com outro escravo cozinheiro alugado, de nome Vitalino, pertencente a
Antônio Egídio de Sousa Aranha. Enquanto isso, vários homens se encontravam numa sala
próxima onde existia um bilhar. Havia, também, no hotel, pelo menos uma escrava de
propriedade de Teixeira, chamada Fortunata, que foi quem gritou por socorro quando viu o
senhor sendo agredido por Francisco.
A participação do escravo Vitalino no conflito é bastante interessante. Apesar de não
ter ajudado Francisco a agredir Teixeira, ele tão pouco tentou impedir que a agressão
ocorresse, sendo que o socorro à vítima só veio depois que a escrava Fortunata entrou na
cozinha e, presenciando a cena, gritou pelos homens que estavam na sala do bilhar. Isso
chamou a atenção do próprio Teixeira, que afirmou desconfiar “que Vitalino estivesse
combinado com o Réu porque assistiu impassível a luta desde o princípio até o fim, sem que
de modo algum procurasse prestar qualquer socorro, não obstante ele respondente tê-lo
chamado por diversas [vezes] para que o acudisse”.35
Como observou Maíra Chinelatto, a passividade dos escravos que testemunhavam
crimes contra senhores e seus prepostos sem tentar impedi-los foi um fator curiosamente
comum.36
Em depoimento, esses informantes alegavam estar distantes do local do crime, em
outro ponto da roça, por exemplo, ou então terem ficado petrificados de medo diante da cena.
É possível, porém, que fossem coniventes com o ato criminoso ou que não ousassem se
arriscar ao enfrentar os parceiros criminosos para defender seus senhores, feitores ou, como
no caso de Vitalino, seu locador.
Não encontramos entre os registros de pagamento da meia sisa, a compra de
Francisco por Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, mas o forasteiro depôs que residia há
apenas três anos em Campinas quando o crime aconteceu.37
Tendo nascido na Bahia,
33
“Auto de perguntas ao ofendido José de Sousa Teixeira”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. 34
“Interrogatório ao réu Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. 35
"Auto de perguntas ao ofendido José de Sousa Teixeira”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. 36
Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 232. 37
“Interrogatório ao réu Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003.
56
Francisco tinha 35 anos, era solteiro e apontou o nome de ambos os pais em depoimento. Seu
senhor, Oliveira Barreto, era poucos anos mais velho que seu escravo, com 39 anos e também
não era natural de Campinas. Nascido na província do Rio Grande do Sul, exercia ofício de
farmacêutico na cidade paulista. Seu inventário post mortem, datado de apenas três anos após
o processo criminal de Francisco, mostra um senhor jovem, cujo filho mais velho tinha 16
anos na ocasião de sua morte, e detentor de uma propriedade modesta, com apenas três
escravas e um monte-mor de pouco mais de 29 contos de réis.38
A lista de matrícula anexa ao inventário mostra a posse de nove escravos em 1872,
entre eles Francisco, descrito como apto para qualquer trabalho e sem informação sobre a
filiação. Ao lado de seu nome consta a anotação “vendido”, assim como outros dois cativos:
Paulina, de 05 anos, natural de São Paulo, e o pardo José, de 30 anos, baiano como Francisco
e boleeiro. 39
Outras duas escravas estavam presentes na lista de matrícula, mas já haviam
falecido na ocasião do inventário do senhor, com 17 e 19 anos de idade. A lista de matrícula
traz ainda outras informações interessantes sobre a pequena escravaria de Antônio Jesuíno em
período próximo à prisão de Francisco. Ela era formada em geral por cativas jovens (seis
mulheres com idades entre 05 e 28 anos e uma com 45 anos) e com ocupações domésticas
(uma cozinheira, duas engomadeiras e duas costureiras), todos eram solteiros e, com exceção
da africana Maria Luísa, advindos do tráfico interno.40
Francisco tinha chegado a Campinas há apenas três anos e vivia em uma pequena
escravaria, talvez algo semelhante àquela da qual foi retirado na sua terra natal, e certamente
não estava se habituando ao domínio do locador José de Sousa Teixeira e ao ambiente do
Hotel do Comércio. Além das reclamações a respeito do castigo aplicado por Teixeira, o réu
mencionou o excesso de trabalho, como a limpeza das pacas poucas horas antes do jantar. Por
outro lado, aparentemente, tinha uma relação diferente com o seu senhor, Antônio Jesuíno de
Oliveira Barreto, considerando que ele o defenderia dos excessos de Teixeira.
O modo como o processo foi julgado é singular quanto à expectativa das relações
entre senhores e escravos e entre estes últimos e os locadores de serviço. O promotor tentou
pronunciá-lo “como incurso no artigo 192 do Código Penal combinado com o artigo 34 do
mesmo código em relação à tentativa de morte contra José de Sousa Teixeira, visto que estava
38
Inventário post mortem de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1876. CMU, Tribunal de Justiça
de Campinas (TJC), 3º Ofício, Processo 7278, Caixa 450. 39
Condutor de carros de bois. Hoje se utiliza mais frequentemente a palavra cocheiro. 40
"Lista de matrícula de escravos”. Inventário post mortem de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas,
1876. CMU, TJC, 3º Of., P. 7278, Cx. 450.
57
este constituído na posição de superior do denunciado”.41
O senhor tentou recorrer dessa
pronúncia, com o argumento de que Teixeira não estava em posição de senhor do acusado “e
que o ofendido nem ao menos estava autorizado a castigar o Réu, como se vê da informação
de seu senhor e já se inferia do fato de haver o Réu ido se queixar dos castigos, que dizia ter
sofrido”.42
O juiz de Direito, no entanto, sustentou a pronúncia do promotor, concluindo que:
“O réu é escravo, nesta qualidade estava alugado e ao serviço do ofendido Teixeira,
que já pela diferença de condições, e já por tê-lo sob as suas ordens, se constituía seu
superior; não devendo ser somente o direito de castigá-lo corporalmente, que o
devesse colocar nessa qualidade de superioridade”.43
A questão foi retomada em audiência no júri, e não foi reconhecida “(...) no ofendido
a qualidade de superior do delinquente de modo a constituir este em respeito àquele como de
filho a pai”.44
O júri ainda declarou uma circunstância atenuante: Francisco “cometeu o crime
com as circunstâncias atenuantes do artigo 18 parágrafo 3º e 6º por tê-lo feito em defesa de
sua pessoa, e ter precedido a agressão da parte do ofendido”.45
Assim, o Juiz de Direito,
confirmando a decisão do júri, condenou Francisco no grau mínimo do artigo 193 do Código
Penal, ficando a dita pena comutada em quatrocentos açoites e o réu obrigado a trazer ferro ao
pescoço por espaço de três anos. Como se vê, apesar das atenuações dadas à pena, ela não foi
menos cruel para Francisco.
Mas a história do baiano Francisco não termina por aí. As elevadas custas do
processo, que somam um total de quase 500$000 réis,46
obrigaram o senhor Antônio Jesuíno a
vender o cativo antes mesmo que a pena fosse cumprida e ele pudesse sair da Cadeia de
Campinas e retornar a seu poder. Francisco soube na prisão que seria entregue a um novo
senhor,47
e contou que “(...) por mais de uma vez aparecia na Cadeia o escrivão Joaquim de
Pontes perguntando se o queria servir”, ao que ele respondia que “não podia servir se não o
senhor de sua escolha e que obrigado não sairia da cadeia para ser seu escravo nem para sê-lo
de Teixeira ou de outro que não fosse da sua vontade”.48
41
“Vista ao Promotor Interino José Francisco dos Santos Maia”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de
Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 003. 42
"Vista ao procurador Antônio Carlos de Moraes Salles”, 31/12/1872. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc.
003, f. 118. 43
“Conclusão do Juiz de Direito”. CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003. f. 132. 44
“Decisão do Júri”, “5º quesito”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003, p. 178. 45
“Decisão do Júri”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003, p. 179. 46
“Custas”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 229, Doc. 003, p. 187. 47
“Interrogatório do réu na Sessão do Júri”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira,
Campinas, 1873. , CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 004. p. 82. 48
“Interrogatório do réu na Sessão do Júri”. Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira,
Campinas, 1873 , CSP, ACI, Microfilme CSP 229, Documento 004. p. 82-3.
58
Pouco tempo depois, no entanto, o antigo locador José de Sousa Teixeira, efetuou a
compra do cativo.49
Desnecessário dizer que a notícia em nada agradou a Francisco, que via
em Teixeira um homem cruel e desmedido ao castigar. Assim, cerca de dez meses após as
ofensas cometidas contra Teixeira, quando um oficial de justiça tentou retirar Francisco à
força da cadeia para entregá-lo ao novo senhor, o cativo defendeu-se agredindo o oficial com
uma faca, o que gerou um novo processo.50
Condenado no grau médio do artigo 205 do Código Criminal,51
Francisco teve sua
pena substituída de quatro anos e meio de prisão com trabalho para 200 açoites e ferro ao
pescoço por oito meses. Após o cumprimento da pena, foi finalmente entregue a Teixeira.
Porém, ainda não estavam terminados os problemas que Teixeira teria com Francisco
e este não se resignaria facilmente a aceitar um cativeiro que não lhe parecesse razoável.
Alguns meses depois, já no ano de 1875, Francisco fugiu do poder de José de Sousa Teixeira.
52
No anúncio de fuga foi possível identificar características que podem revelar marcas
de castigos sofridas por Francisco: “com algumas cicatrizes no rosto, mal encarado, e com
falta de um dedo da mão esquerda”.53
A recompensa oferecida por sua entrega foi um valor
acima da média para o mesmo ano: 200$000 rs. Esse valor era também o dobro do oferecido
pelo mesmo senhor pelos escravos Domingos, Vicente, Jovino e Antônio que haviam fugido
juntos no ano anterior.54
A história de Francisco é um exemplo emblemático da dificuldade de um escravo
forasteiro em se adaptar às relações de cativeiro encontradas em Campinas. Apesar de ter sido
inicialmente inserido em uma pequena escravaria e não em uma fazenda de café, a locação
dos serviços de Francisco a um terceiro o colocou diante de um tratamento que ele julgou
inadequado. Suas habilidades como cozinheiro e sapateiro devem ter pesado na decisão de
Teixeira de comprá-lo de Oliveira Barreto, mesmo após as ofensas cometidas, uma vez que o
preço pago por ele deve ter sido bem abaixo do valor de mercado, devido às circunstâncias.55
49
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1873. CMU, CRC. 50
Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI,
Microf. CSP 229, Doc. 004. 51
“Se o mal corpóreo resultante do ferimento, ou da ofensa física produzir grave incomodo de saúde, ou
inabilitação de serviço por mais de um mês. Penas - de prisão com trabalho por um a oito anos, e de multa
correspondente á metade do tempo.” Código Criminal do Império do Brasil, artigo 205. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm (acessado em 11/08/2016). 52
Anúncio de fuga do escravo Francisco. Gazeta de Campinas, nº 554, 1875. 53
Anúncio de fuga do escravo Francisco. Gazeta de Campinas, nº 554, 1875. 54
Anúncio de fuga dos escravos Antônio, Domingos, Jovino e Vicente. Gazeta de Campinas, nº 444. 20 de
março de 1874. 55
O valor pago pelo escravo não foi informado no registro de meia-sisa.
59
A venda para o novo senhor, todavia, significou uma perda de autonomia muito maior para
Francisco, pois passou então a fazer parte de uma escravaria diferente. Não foi possível
encontrar o inventário post mortem de José de Sousa Teixeira. No entanto, os registros de
meia-sisa e anúncios de fuga de escravos publicados na Gazeta de Campinas dão algumas
pistas sobre como se compunha ao menos uma parte de sua propriedade escrava,
provavelmente ocupada em diferentes atividades no Hotel do Comércio. Entre os anos 1868 e
1875, Teixeira adquiriu seis novos cativos, cinco deles vindos da região Nordeste. 56
Eles
tinham entre oito e 40 anos e havia apenas uma mulher. Ainda havia pelo menos outros quatro
escravos sob a propriedade de Teixeira no ano de 1874, um deles oriundo do Maranhão.57
E
pelo menos um de seus escravos esteve trabalhando na construção da Matriz Nova.58
Assim,
verifica-se que Francisco encontrou no novo cativeiro um ambiente composto por outros
escravos forasteiros. Apesar de haver elementos em comum, no entanto, isso não seria razão
suficiente para fazê-lo “servir senão o senhor de sua escolha”.59
Observando os tipos de crimes cometidos por escravos entre 1860 e 1888 em
Campinas, verificamos que 88,1% foram crimes contra a pessoa, isto é, homicídios, tentativas
de homicídio e ofensas físicas (vide tabela 6). Desses crimes 46,2% foram julgados a partir do
1º artigo da lei de 10 de junho de 1835, que previa a punição de delitos contra senhores e seus
prepostos, feitores e administradores.60
Quando olhamos esses dados levando em conta a
origem dos criminosos, verificamos que 88,4% dos réus forasteiros cometeram crimes contra
a pessoa (tabela 6), a maioria deles, isto é, 52,3%, contra senhores e seus prepostos, feitores e
administradores (tabela 7). No caso dos réus nascidos em Campinas, essa proporção é de
82,4% que cometeram crimes contra pessoa (tabela 6), e 31,3% dos quais inclusos no 1º
artigo da lei de 10 de junho de 1835 (tabela 8).
56
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1868-1875. CMU, CRC. 57
Anúncio de fuga do escravo Antônio. Gazeta de Campinas, nº 444, 20 de março de 1874. 58
Anúncio de fuga do escravo Jovino. Gazeta de Campinas, nº 444, 20 de março de 1874. 59
Processo Crime. Réu: Francisco, escravo de José de Sousa Teixeira, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 229, Documento 004. 60
Um estudo sobre esse tipo de crime, bem como as implicações em torno da lei de 10 de junho de 1835 pode
ser conferido em Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit.
60
Tabela 6 – Tipos de crimes cometidos por escravos em Campinas, por origem
(1860-1886).
Tipos de crimes Campineiros Forasteiros
N % N %
Crimes contra
a pessoa
Homicídio e
tentativa de
homicídio
13 76,5 52 75,4
Lesões
Corporais
01 5,9 08 11,6
Imprudência - - 01 1,4
Subtotal 14 82,4 61 88,4
Crimes contra
a propriedade
Furto ou Roubo 01 5,9 06 8,8
Falsificação 01 5,9 - -
Fraude - - 01 1,4
Violação de
contrato de
serviços
01 5,9 - -
Subtotal 03 17,6 07 10,2
Crimes contra
a ordem
pública
Resistência à
autoridade
- - 01 1,4
Total geral 17 100 69 100
Como pode ser observado nas tabelas 7 e 8, um percentual considerável de cativos
nascidos em Campinas cometeu crimes contra pessoas livres (37,5%) e também contra outros
escravos (31,3%), o que não se observa entre os forasteiros, que dirigiram suas agressões mais
comumente aos senhores ou representantes da autoridade senhorial (52,3%). Aliás, o
percentual de crimes dos campineiros contra outros escravos foi igual ao dos atos dirigidos
contra senhores, feitores e administradores: 31,3%. Há muitas lacunas na caracterização das
vítimas nos processos criminais, mas sabemos que pelo menos 40% dos escravos com origem
informada que foram vítimas de atos criminosos cometidos pelos nascidos em Campinas eram
forasteiros. Todavia, apesar de observar essa diferença proporcional entre as vítimas dos atos
criminosos cometidos por forasteiros e campineiros, não vamos avançar nessa análise, em
razão do ínfimo tamanho da amostra para os últimos.
61
Tabela 7 – Tipos de conflitos envolvendo os réus forasteiros (Campinas, 1860-
1886).
Período
Vítimas enquadradas no
art. 1º da lei de 10 de
junho de 183561
Outras vítimas
Vítima
não
informada
Total geral S
enh
or
Fei
tor/
adm
./lo
cad
or
Su
bto
tal
Liv
re
Esc
rav
o
Lib
erto
Ing
ênu
o
Su
bto
tal
1860-69 - 07 07 05 02 - - 07 - 14
1870-79 14 06 20 12 04 - 01 17 04 41
1880-86 01 06 07 04 03 - - 07 - 14
Total 15 19 34 21 09 - 01 31 04 69
% sobre o total 23,1 29,2 52,3 32,3 13,8 - 1,5 47,7 - -
Tabela 8 – Tipos de conflitos envolvendo os réus nascidos em Campinas
(Campinas, 1860-1886).
Período
Vítimas enquadradas no
art. 1º da lei de 10 de junho
de 183562
Outras vítimas
Vítima não
informada
Total
geral
Sen
ho
r
Fei
tor/
ad
m./
loca
do
r
Su
bto
tal
Liv
re
Esc
rav
o
Lib
erto
Ing
ênu
o
Su
bto
tal
1860-69 - 03 03 03 02 - - 05 - 08
1870-79 02 - 02 03 03 - - 06 01 09
1880-88 - - - - - - - - - -
Total 02 03 05 06 05 - - 11 01 17
% sobre
o total 12,5 18,8 31,3 37,5 31,3 - - 68,8 6,3 -
Por ora, destacamos que os forasteiros não só representavam a maioria dos escravos
indiciados nos processos criminais na segunda metade do século XIX, como também foram
eles os que mais se envolveram em ataques a senhores e seus prepostos, feitores e
administradores. No entanto, cabe observar que esses forasteiros não estavam sozinhos em
seus crimes. Como concluiu Maíra Chinelatto, os crimes de escravos dos últimos anos da
61
Os números inteiros se referem ao total de réus envolvidos nesse tipo de conflito e não ao número de autos
criminais. 62
Os números inteiros se referem ao total de réus envolvidos nesse tipo de conflito e não ao número de autos
criminais.
62
escravidão reuniram em geral grande número de criminosos.63
Passemos ao próximo tópico,
para discutir mais profundamente essa questão.
2.2. Cúmplices e aliados
Ao tratarmos dos cúmplices e aliados dos cativos em seus atos criminosos, nosso
primeiro pensamento se volta para os crimes coletivos, que envolveram dois ou mais escravos
para seu planejamento e/ou execução. Todavia, queremos começar este tópico com a história
de um crime diferente, que foi cometido por um cativo campineiro e executado apenas por
ele.
Severiano nasceu em Campinas, na comunidade do sítio do Saltinho, propriedade de
Felipe Antônio Franco, convivendo com seu pai Salvador e sua mãe Isidora, escravos do
mesmo senhor.64
Era carreiro e trabalhador de roça e também exercia a ocupação de caseiro
do sítio. O fato de ser um membro da antiga comunidade da senzala e ter ocupações
diferenciadas não impediu que Severiano se envolvesse em uma confusão que o levou à
cadeira dos réus em 1876.65
Pouco antes do Natal de 1875, Severiano estava dormindo em sua senzala, quando
por volta das três horas da madrugada foi despertado pelo escravo Antoninho que, ao passar
pelo armazém de açúcar viu que ele estava aberto e julgou lá estar um ladrão. Severiano foi ao
armazém verificar, munido de uma foice e acompanhado do mesmo Antoninho e também do
escravo Adriano. Ao chegar, viu uma pessoa sair do armazém carregando um saco de açúcar e
o atacou com a foice. Com o suposto ladrão já caído ao chão, Severiano então reconheceu ser
Honorato, também escravo daquela fazenda. Com medo de reprimendas, e vendo que o
parceiro já estava quase morto, deferiu-lhe uma facada a fim de matá-lo definitivamente,
atirando o corpo no Rio Atibaia, na expectativa de ocultar o trágico acontecimento.
De acordo com os depoimentos tanto de Antoninho e Adriano, quanto do réu
Severiano, ele tentara defender a propriedade do seu senhor e cometera um engano. Ao longo
do processo há, no entanto, a suspeita de que Severiano teria rixas mal resolvidas com a
vítima, o que tornaria o crime premeditado, aumentando a severidade das penas a que estaria
63
Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 127. 64
Joice Fernanda de Souza Oliveira analisou minuciosamente a comunidade escrava do Saltinho e a propriedade
de Felipe Antônio Franco. Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista..., capítulo 1, p. 25-99. 65
Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 239, Documento 002.
63
sujeito. Essa suspeita, todavia, não foi confirmada pelo processo criminal, com Severiano
sempre alegando que tinha amizade com Honorato e que qualquer rixa que tenham tido teria
sido já passada. Ao fim da audiência diante do Júri, Severiano foi julgado culpado pelo
assassinato, mas ao crime não foi acrescida nenhuma circunstância agravante, sendo
condenado no grau médio do artigo 193 do Código Criminal, com uma pena, ao final, de 200
açoites e trazer ferro ao pescoço por quatro anos.66
O esforço de Severiano para esconder o corpo não era despropositado. Honorato não
era apenas um parceiro de escravaria. Em seu depoimento, o réu disse que os dois
trabalhavam juntos na roça e eram tratados de igual maneira, no entanto, alguns pontos
encontrados na documentação evidenciam que Honorato tinha um lugar de destaque na
comunidade do Saltinho. Além de fazer parte de uma das famílias fundadoras da senzala,67
suas três filhas foram as únicas escravas da comunidade que ganharam liberdade no
testamento da senhora Ana Rufina,68
falecida no mesmo ano do crime. Honorato era
provavelmente um homem respeitado na senzala. Voltaremos a falar dele adiante.
O crime cometido por Severiano demonstra que fazer parte de laços familiares
relativamente estáveis e ter uma posição diferenciada na senzala não eram garantias para
evitar conflitos, nem para o réu nem para a vítima.
Observamos que 41,8% dos cativos indiciados como réus citaram alguma relação
familiar ao longo do processo. Esse percentual sobe para 52,2% no caso dos réus forasteiros.69
Ainda que não possamos considerar essas pessoas como aliadas diretas desses réus, até
porque não é possível saber com certeza se residiam próximos a eles, é importante ponderar
que não se tratam aqui de indivíduos isolados nas senzalas ou que tenham deixado para trás as
lembranças de suas vidas na terra natal. Esses dados evidenciam também o grande impacto
que o tráfico causou sobre as famílias escravas nas regiões exportadoras, como a
historiografia já vem mostrando.70
66
“Se o homicídio não tiver sido revestido das referidas circunstâncias agravantes [citadas no artigo 16 do
mesmo Código]. Penas - de galés perpetuas no grão máximo; de prisão com trabalho por doze anos no médio; e
por seis no mínimo.” Código Criminal do Império do Brasil, artigo 193. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm (acessado em 11/08/2016). O júri declarou
que o réu não havia procurado a noite de propósito para o delito, o que seria uma circunstância agravante.
“Decisão do Júri” e “Sentença do Juiz de Direito”, 21/03/1876. Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de
Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 239, Doc. 002. 67
Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 73-4. 68
Testamento de Dona Anna Rufina. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160, p.158 e 159. Fonte citada em
Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 72-3. 69
Campinas, 1860-1886. AEL, CSP, ACI. 70
José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no
Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza, SECULT/ CE, 2011, p. 45; Cristiany M. Rocha. Histórias de
famílias escravas. Campinas, Editora da Unicamp, 2004, p. 126-7; Rafael C. Scheffer. “Lares Partidos: Famílias
64
Severiano não teve um cúmplice ativo no seu crime, mas Antoninho e Adriano o
auxiliaram com as informações que prestaram em juízo, sempre confirmando a versão de que
tudo não passou de um engano. A atitude desses cativos de chamar por Severiano àquela hora
da madrugada demonstra que viam nele uma figura de respeito, pois o consideravam pessoa
capaz para defender a propriedade do senhor. Se esta versão não fosse verdade, ao menos era
verossímil para aquela sociedade, uma vez que acabou sendo bem aceita pelo júri.
Em alguns processos, todavia, foi possível identificar cúmplices diretos dos
criminosos: 44% dos indiciados nos autos criminais de Campinas não cometeram seus crimes
sozinhos, mas pelo menos com outro escravo como cúmplice.71
Esse percentual apresenta
uma diferença significativa, no entanto, quando observamos a origem dos réus. Entre os
nascidos em Campinas, a proporção dos cativos envolvidos em crimes coletivos (com dois
réus ou mais) é de 23,5%, enquanto para os forasteiros o percentual é de 47,8%.
Esses dados colocam em questão a hipótese de que os cativos forasteiros estariam
isolados nas senzalas, sendo tratados como estrangeiros pelos membros mais antigos da
comunidade. Não descartamos que houvesse diferenciações entre os cativos já enraizados nas
senzalas, com laços familiares e redes de solidariedade, e aqueles recém-chegados, que teriam
um longo caminho pela frente até construir também esses laços e desfrutar das vantagens
deles provenientes. Contudo, em especial quando uma pessoa representava uma figura
indesejada para toda senzala, como foi o caso de alguns feitores e senhores, os cativos se
uniram, independente de suas origens e do tempo que residiam nas escravarias.
O assassinato do feitor Malaquias, empregado de dona Teresa Maria de Jesus Paula,
por exemplo, teve, entre os 16 escravos que se apresentaram à polícia, nove africanos, um
baiano, um pernambucano, dois nascidos em Campinas, um em Santa Catarina, um em Porto
Feliz – Província de São Paulo e um no Rio de Janeiro.72
Malaquias era um homem branco que foi empregado em 1868 como feitor no sítio de
dona Teresa Maria de Jesus Paula, e menos de dois meses depois foi assassinado durante o
trabalho de capina no cafezal. Dezesseis escravos se entregaram com suas enxadas à delegacia
de polícia, para confessar o crime e “apadrinhar-se com a Justiça”.73
Três deles foram
no comércio interno de escravos (1865-1880)”, 7º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional,
Curitiba (UFPR), maio de 2015. Anais completos do evento disponíveis em
http://www.escravidaoeliberdade.com.br/. 71
Quando calculado sobre o número de autos criminais, o percentual de crimes coletivos é de 17%. 72
Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,
1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 73
O fato de terem ido à polícia munidos de suas enxadas pode ter tido o objetivo de proteção, como sugere
Ricardo Pirola ao analisar os cativos que se entregavam à justiça após cometer crimes contra senhores e feitores.
Também é bastante sugestivo que tenham usado a expressão “apadrinhar-se com a justiça” (grifo nosso).
65
indiciados como réus e contaram diversos detalhes sobre a vida no sítio de dona Teresa M. de
Jesus Paula e a relação com as autoridades ali instituídas.
O réu Epifânio afirmou que o administrador do sítio tinha rixas com os escravos por
causa de “raparigas da casa”, e por isso, eles consideravam que ele tinha contratado o feitor
Malaquias com o propósito de maltratá-los, uma vez que este os castigava muito.74
Outros
depoimentos confirmaram a imagem do feitor como “malino”, o que teria sido a razão
principal para o delito.75
A motivação mais imediata do crime, todavia, se deu após o
desenrolar de um conflito entre o feitor e o cativo Rafael, com quem Malaquias parecia ter
“tomado muita birra”.76
No dia anterior ao crime, os escravos estavam capinando o café, quando o feitor
Malaquias chamou a atenção do escravo Rafael sobre um trabalho “mal feito”. De acordo com
o administrador do sítio, o feitor teria lhe pedido que castigasse Rafael quando todos voltaram
do eito porque, na ocasião em que ralhou com ele, o cativo o teria enfrentado, faltando-lhe
com respeito.77
Assim, Rafael foi preso ao tronco e os outros escravos tentaram interceder por
ele diante do administrador, tendo mesmo um deles, de nome Manuel Baiano, tentado
apadrinhar Rafael para que não fosse castigado.78
Mas nada funcionou e Rafael foi surrado no
tronco.
No dia seguinte, segundo o feitor escravo Moisés, os escravos não queriam responder
ao feitor branco no eito e ele “entendeu que a gente estava com má tenção [sic]”.79
Quando a
escravaria estava sozinha com Malaquias no cafezal, Epifânio atacou o feitor com a enxada
que usava no trabalho da capina. Após isso, a descrição dos acontecimentos varia nos
depoimentos, entre a versão em que todos passaram a dar enxadadas no feitor caído ao chão,
contada inicialmente pelo próprio Epifânio, e a de que somente outros dois cativos teriam
também participado do assassinato: Romualdo e Manuel Baiano.
Como já mencionado, após o crime, 16 cativos foram presos e prestaram depoimento
no inquérito policial. Além deles, outros quatro escravos de Teresa de Jesus Paula depuseram
Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit. , p. 225. "Auto de perguntas a
Sebastião”. Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula,
Campinas, 1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008, p. 38. Informação semelhante pode ser
encontrada também em “Auto de perguntas a Beneditinho”, p. 49. 74
“Auto de perguntas a Epifânio.” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. p. 6-11. 75
“Auto de perguntas a Faustino” e “Auto de perguntas a Severino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc.
008, p. 39-40. 76
“Auto de perguntas a Romualdo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p.12. 77
“Testemunha Joaquim de Oliveira Penteado” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 71. 78
“Interrogatório ao réu Manuel Baiano” 25/04/68, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 104. 79
“Auto de perguntas ao informante Moisés”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 83.
66
como informantes: o feitor Moisés, e as cativas que também estavam no eito quando o delito
aconteceu, Damásia, Jacinta e Maria das Dores.
O inventário da senhora, aberto quatro anos após o assassinato do feitor Malaquias,
listou 95 cativos,80
que formavam uma comunidade bastante familiar na senzala da Fazenda
Samambaia. Entre as 22 mulheres adultas, 16 eram casadas (72,7%), e 11 tinham pelo menos
um filho vivendo junto com elas na fazenda. Os percentuais são um pouco menores para o
sexo masculino, mais ainda assim acima da média para o município: 34% dos homens adultos
eram casados, e 68,75% deles conviviam com pelo menos um filho na senzala. A comunidade
contava ainda com 26 crianças, 25 das quais conviviam com ambos os pais, perfazendo
96,2%. Os solteiros ainda eram maioria, respondendo por 53,6% dos adultos, mas alguns
deles também tinham os pais na mesma fazenda (8,1%).
Logo, a comunidade da Fazenda Samambaia era provavelmente bastante antiga,
podendo ao longo do tempo formar muitos laços matrimoniais e se reproduzir naturalmente.
Apesar da possibilidade de reprodução natural, todavia, dona Teresa Maria de Jesus Paula não
deixou de fazer aquisições no mercado escravo. Os registros de meia-sisa revelam pelo menos
quatro compras feitas em arremate da herança de seu finado esposo José Francisco de Paula,
em novembro de 1866.81
Entre essas aquisições, estão dois dos cativos que estavam no eito na
ocasião do assassinato do feitor e prestaram depoimento na cadeia, mas não foram indiciados:
Eleutério e Eleuterinho.
Eleutério aparece ainda mais uma vez nos registros de meia-sisa, quando foi
arrematado da herança de Antônio Rodrigues Barbosa por José Francisco de Paula, em
1863.82
Africano e casado à época do processo criminal, Eleutério já havia passado por dois
processos de partilha, mas, ao menos em um deles, permaneceu na mesma comunidade
escrava. No entanto, no inventário da senhora Teresa de Jesus, não consta o seu nome. Não
encontramos registro de venda de dona Teresa de nenhum de seus escravos, todavia, há um
anúncio referente à fuga de Eleutério em 1870.83
É provável então que a ausência de Eleutério
no inventário se deva ao fato de nunca ter sido encontrado após essa fuga, ou também pode
indicar que tenha falecido entre 1868 e 1872. A esposa de Eleutério, porém, permanece um
mistério, uma vez que nenhuma mulher foi descrita como viúva no inventário e todas as
casadas foram apresentadas com o nome do marido. Pode ser que ela tenha falecido nesse
80
Entre as 95 pessoas listados no inventário, havia cinco ingênuos e duas mulheres forras. Inventário post
mortem de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas, 1872. CMU, TJC, 3º Ofício, Processo 7182, Caixa 432. 81
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 82
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1863. CMU, CRC. 83
Anúncio de fuga do escravo Eleutério. Gazeta de Campinas, nº 632, 1870.
67
período, ou que não residisse na Fazenda Samambaia. Vale observar que todas as esposas dos
escravos de dona Teresa Maria foram descritas no inventário, até mesmo as libertas.
Em depoimento no processo criminal pela morte do feitor Malaquias, Eleutério
alegou não ter presenciado o delito, estando em um canto separado no eito naquele momento
e tendo somente ouvido de Bonifácio que Epifânio teria sido o assassino.84
Contou também
que foi apresentar-se à polícia junto com os outros cativos devido às ameaças de Epifânio.85
A afirmação de que Epifânio teria ameaçado os outros cativos do eito para que se
apresentassem todos à justiça foi repetida em vários depoimentos. Pelo que é possível
reconstituir das informações prestadas em juízo, após o assassinato do feitor, os escravos
fugiram do eito e, no caminho, encontraram com o senhor moço, Luís Francisco de Paula, que
já tinha sido avisado pelo feitor escravo Moisés de que havia algo errado no cafezal. O senhor
moço ordenou então aos cativos que seguissem para casa, enquanto ele se dirigia até o local,
onde encontrou o cadáver, mandando recolhê-lo e depositar “no corredor das senzalas dos
escravos”.86
Os cativos, todavia, desobedeceram as ordens do senhor moço para voltar para casa e
rumaram para a cidade. Faustino afirmou que assim agiram porque “Epifânio assim exigiu,
dizendo que aquele que não fosse para a Cidade se apresentar à Justiça ele botava a enxada”.87
O fato de que os cativos obedecessem Epifânio ao invés do senhor moço é bastante curioso. A
alegação de que temeram as ameaças do cativo assassino é no mínimo estranha, uma vez que
estavam em 15 contra um. Pode, talvez, significar que esse cativo tivesse alguma ascendência
sobre os companheiros, causada por medo ou algum outro motivo que não foi possível
identificar nos autos. Não podemos descartar, todavia, a possibilidade de que todos os passos
dados pelos cativos durante e após o crime tenham sido minuciosamente planejados, inclusive
a imputação de Epifânio como principal responsável.
Epifânio depôs que, uma vez que já haviam reclamado sem sucesso com o
administrador a respeito dos maus tratos do feitor, ele e seus companheiros tinham combinado
“que pegassem o feitor de uma vez na primeira ocasião em que ele bolisse [sic] com algum
deles”.88
Afirmou então que, estando no trabalho da capina do cafezal, e tendo o feitor
ameaçado surrá-lo,
84
“Auto de perguntas a Eleutério”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 46. 85
“Auto de perguntas a Eleutério”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 47. 86
“Auto de perguntas à testemunha Luís Francisco de Paula”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p.
70. 87
“Auto de perguntas a Faustino”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. , p. 39. 88
“Auto de perguntas a Epifânio”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 10.
68
“ele respondente gritou pelos companheiros, e estes acudiram-no, e logo ele
respondente deu-lhe uma enxadada com a qual o feitor caiu e continuou a
dar enxadadas no feitor que estava no chão, e então os parceiros dele
respondente rodearam o feitor e lhe deram enxadadas, a exceção das negras
que estavam no eito”.89
Os outros cativos que depuseram, no entanto, negaram veementemente qualquer
participação no homicídio, ou a existência de algum plano anterior para pegar o feitor. Assim,
somente Epifânio, Romualdo e Manuel Baiano tiveram seus nomes lançados no rol dos réus.
Portanto, mesmo que Epifânio tenha sido capaz de convencer os parceiros a se entregarem
todos à justiça, não teve o mesmo sucesso na intenção de que eles dividissem com ele a culpa
pelo crime.
Comparando a composição da senzala em geral com o perfil dos cativos que se
entregaram na justiça, verificamos que, entre os que prestaram informações à polícia, 56,25%
eram africanos, 12,5% nascidos em Campinas e 31,25% eram nascidos em outras localidades
do Império. Quanto ao estado conjugal, há nesse grupo um percentual de casados maior do
que o da senzala em geral, com 37,5%. Eram todos trabalhadores de lavoura, com exceção de
Manuel Baiano, que também domava animais e trançava couro.
Entre os indiciados como réus no processo, temos dois forasteiros (Manuel,
proveniente da Bahia e Epifânio, do Rio de Janeiro) e um africano (Romualdo, oriundo do
Congo), que estavam na Fazenda Samambaia há 6, 3 e 2 anos, respectivamente. Romualdo,
todavia, afirmou que residia em Campinas há bastante tempo e, pela idade, é possível verificar
que foi trazido ao Brasil no contexto do contrabando vigente na década de 1840. Na Fazenda
Samambaia, casou-se com a forasteira Damásia (proveniente de São Sebastião) e tiveram pelo
menos um filho. Outro detalhe interessante é que, apesar de forasteiros e não terem,
aparentemente, nenhum familiar na senzala, tanto Manuel quanto Epifânio mencionaram os
nomes dos seus pais e dos senhores deles.
Como já mencionado, Manuel Baiano domava animais e trançava couro, além de
trabalhar na lavoura com os outros companheiros. A ocupação especializada não era o único
diferencial desse cativo. Ele não estava entre os que se apresentaram imediatamente à justiça
após o crime, aparecendo apenas algum tempo depois. Perguntado por que havia fugido,
respondeu que “dirigiu-se ao Belém [para] chamar padrinhos com um genro da casa, lá
residente, este o apadrinhou e o remeteu a Dona Teresa, a qual o mandou entregar a [sic]
Justiça”.90
89
“Auto de perguntas a Epifânio”, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 9. 90
“Interrogatório do réu Manuel Baiano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 140.
69
O fato de ter procurado um padrinho entre os membros da família de dona Teresa
demonstra que tinha, ao menos em sua expectativa, uma boa relação com a casa grande. Isso é
verificado também quando acrescentou em seu depoimento que os parceiros que haviam
testemunhado contra ele, dizendo que ele auxiliara Epifânio no crime, o faziam por ciúmes,
pelo “fato de ser estimado pelo feitor tanto que pela semana santa lhe deu uma calça branca,
razão por que os outros escravos diziam que ele adulava o feitor”.91
A afirmação pode ser uma dupla estratégia: negar o depoimento dos outros cativos e
também construir a imagem de proximidade com o feitor, diminuindo as suspeitas sobre sua
participação no assassinato deste.
Mas a aparente proximidade de Manuel com a casa grande não para por aí. Ele
contou que, quando Rafael Moçambique estava preso ao tronco para ser surrado, pouco antes
do homicídio cometido no cafezal,
“os outros seus parceiros disseram a ele respondente que o
Administrador lhe estimava muito, que o Administrador perdoaria a
Rafael se ele respondente o apadrinhasse: ele respondente por
contentar seus parceiros prostrou-se de joelhos [diante do]
Administrador pedindo-lhe que perdoasse a Rafael, ao que respondeu-
lhe o Administrador, também, digo, Administrador – vai-te embora”. 92
Assim, é possível perceber que, apesar de vindo de outra região há pouco tempo
(cerca de seis anos), Manuel Baiano foi capaz de construir laços com as autoridades da
fazenda, para o que pode ter contribuído o fato de ter habilidades especiais, como a doma dos
animais e o trabalho com o couro, tirando-o, algumas vezes, do serviço de roça. E, mesmo que
seu depoimento aparente, talvez estrategicamente, que não tenha conseguido ainda criar laços
horizontais com seus companheiros, o fato de ele ter tentado interceder por Rafael e ter estado
ao lado de Epifânio enquanto dava enxadadas no feitor, demonstra que mantinha proximidade
também com seus parceiros de eito.
Ao fim do processo judicial, no interrogatório diante do júri, Epifânio mudou seu
depoimento e confessou ter sido o único a efetivamente dar enxadadas em Malaquias. Com
isso, a decisão final do Juiz de Direito condenou somente Epifânio no artigo 1º da lei de 10 de
junho de 1835, porém, como ele foi considerado menor de 21 anos pelo júri, a pena prevista
de prisão com trabalho foi substituída por oitocentos açoites e ferro no pé por espaço de um
ano.93
91
“Interrogatório do réu Manuel Baiano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 141. 92
“Interrogatório do réu Manuel Baiano” 25/04/68. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p.104. 93
“Decisão do Juiz de Direito” 25/05/1868, AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 152.
70
As informações prestadas pelos cativos ao longo de todo processo são bastante
interessantes no que diz respeito à cumplicidade no crime. Primeiro Epifânio afirmou que,
além de ter sido auxiliado pelos companheiros na execução do crime, eles o tinham planejado
com antecedência, o que caracterizaria um crime coletivo premeditado contra um feitor cruel.
Os outros depoentes, porém, afirmaram que o assassino era apenas Epifânio, com incentivo de
Manuel Baiano e Romualdo. Estes dois últimos negaram qualquer participação, direta ou
indireta, no delito e, por fim, Epifânio assumiu sozinho toda a culpa. Não é possível saber
qual versão é a verdadeira, mas toda essa variação mostra que a escravaria não estava disposta
a assumir o crime, apesar de que, mesmo em grande número, nenhum dos cativos tenha
tentado impedir Epifânio de cometê-lo. Além disso, ainda que ele tenha convencido os
parceiros a se entregarem todos à polícia, não foi capaz de induzi-los a amenizar sua situação
perante a justiça. Não podemos descartar também a possibilidade de que a mudança no
depoimento de Epifânio diante do júri tenha sido combinada entre os cativos e talvez com
orientação do curador, levando em conta a probabilidade de sua menoridade ocasionar a não
aplicação da pena de morte – prevista pela lei de 10 de junho de 1835.
Outro caso de assassinato de feitor no eito, com diversos cativos por testemunha,
indica o que talvez tenha acontecido no caso dos escravos de dona Teresa Maria, ao menos
como possibilidade.
Em 1879, o feitor Joaquim Bento da Gama foi ferido durante o retorno ao trabalho
no eito logo após o almoço, na fazenda São João da Atibaia, de propriedade de José Maria da
Costa Wilk. O escravo Vitorino confessou o crime contando que:
“(...) há quatro semanas, mais ou menos, antes do almoço o feitor
tinha judiado muito dele respondente, até mandando abanar café,
serviço que ele não podia fazer; que tendo almoçado ficou muito
aborrecido e então passando rente com o feitor arrancou a faca deste e
com ela deu-lhe três facadas, com o que o feitor caiu”.94
Vitorino afirmou que nenhum dos parceiros que testemunhou o fato tomou parte no
crime. Ele fugiu em seguida, mas voltou depois de três dias, tendo se apadrinhado com o
escravo Félix.95
Este é o segundo caso que contamos de um escravo que buscou
apadrinhamento com outro cativo, o que pode dar pistas sobre as relações de poder dentro das
senzalas. Não conseguimos obter nenhuma informação sobre Félix, o escravo de José Maria
da Costa Wilk com quem Vitorino se apadrinhou. Todavia, vimos na análise do assassinato do
94
“Auto de perguntas ao indiciado”, Processo Crime. Réu: Vitorino, escravo de José Maria da Costa Wilk,
Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 242, Documento 009, p. 33. 95
“Auto de perguntas ao indiciado”, Processo Crime. Réu: Vitorino, escravo de José Maria da Costa Wilk,
Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 242, Documento 009, p. 33.
71
feitor Malaquias que o cativo Manuel Baiano, que teria tentado apadrinhar Rafael
Moçambique para que não fosse castigado, parecia ter alguma posição de destaque na
propriedade de dona Maria Teresa de Jesus Paula.96
Os outros cativos consideravam-no como
alguém estimado pelo administrador e o feitor, e, após o assassinato deste último, ele buscou
se apadrinhar com um membro da família senhorial. O fato de ser forasteiro não pesou
negativamente em sua integração na fazenda, uma vez que, vindo de Salvador, estava na
propriedade de dona Maria Teresa há seis anos, o que podemos considerar como um tempo
considerável.
Voltando ao delito na fazenda São João da Atibaia, sabe-se que na cena do crime
estavam somente o feitor assassinado e os escravos que trabalhavam no eito. Onze desses
cativos foram chamados para prestar informações à justiça e disseram ter visto apenas
Vitorino dando facadas no feitor. Alguns contaram ainda que outros cativos fugiram junto
com Vitorino após o crime, mas por medo.97
Já o escravo Francisco disse ter dado uma
bordoada em Vitorino em defesa do feitor, o que o fez cair e o impediu de completar a morte
do homem no momento.98
Dois dias depois, todavia, Joaquim Bento da Gama morreu dos ferimentos causados
pelas facadas, não tendo sido possível tomar seu depoimento para confirmar a autoria do
crime.
Levado novamente a depor, Vitorino contou mais detalhes sobre os motivos que o
levaram a ferir o feitor Gama:
“(...) respondeu que a fazenda de seu senhor é aquela em que há mais
trabalho e que ele praticou o delito vendo-se descorçoado pois que já não
podia mais com tanto serviço, alguns dos quais ele não sabia fazer sem
deixar por isso de ser castigado, e que já por estas razões, já porque eram
muitos os maus tratos, já porque no mesmo dia do delito, e antes dele ser
praticado havia dito ao feitor que ele se achava doente, e que não podia
trabalhar ao que lhe respondeu o feitor: que negro e burro eram para
trabalhar e que havia de trabalhar e senão, não lhe faltaria o chicote, já
porque no dia do delito e logo ao começar o serviço pela manhã foi
chicoteado pelo feitor, vendo-se então como disse descorçoado tomou a faca
e feriu a este, e fugiu, não se lembrando das bordoadas que se diz lhe terem
sido dadas pelo seu parceiro Chico”.99
Talvez orientado pelo curador para tentar convencer o júri de que não teve a intenção
de matar o feitor, minimizando assim a sua pena, Vitorino acrescentou ao seu depoimento no
96
“Interrogatório ao réu Manuel Baiano”, 25/04/68. CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008, p. 104. 97
“Auto de perguntas a Benedito Sorocabano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p. 45. 98
“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p. 38. 99
“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.75.
72
Tribunal do Júri que “ele viu o feitor ralhar ainda com vida e não o acabou de matar, sendo
que o podia fazer pois que não havia alguém que lhe obstasse”.100
O promotor público pronunciou o crime como incurso no artigo 1º da lei de 10 de
junho de 1835. 101
A discussão entre as partes girou em torno da gravidade dos ferimentos
cometidos contra o feitor e se a morte teria sido causada diretamente por eles ou por falta de
cuidados da própria vítima. A decisão do júri, quase três meses após o fato, foi de que “o
paciente não morreu por ser mortal o mal causado” e de que ele “não aplicou toda necessária
diligência para removê-lo”. Assim, Vitorino foi sentenciado em 200 açoites, com o crime
incurso na segunda parte do artigo primeiro da lei de 10 de junho de 1835, como sendo apenas
ofensas físicas.102
Este processo demonstra mais uma vez o cuidado da justiça em minimizar as penas
cativas, especialmente livrando o criminoso da pena de morte, prevista pela lei citada pelo
promotor público, mas não aplicada efetivamente, resguardando o senhor da perda de sua mão
de obra.103
A motivação de Vitorino ao matar o feitor é bastante típica de crimes desse tipo, isto
é, traz reclamações a respeito do excesso de trabalhos e castigos. Vitorino chegou àquela
fazenda junto com outros seis escravos crioulos comprados do procurador Carlos Talomei,
pelo menos 16 anos antes do crime.104
Nesse grupo de escravos, Vitorino era o mais velho,
com 28 anos, enquanto os demais tinham entre 13 e 19 anos de idade. A única naturalidade
que conseguimos confirmar foi a do próprio Vitorino, nascido em Pernambuco,105
os outros
aparecem apenas com a anotação “crioulos” no registro do pagamento da meia sisa.
Mesmo depois de tantos anos em Campinas, Vitorino foi detalhista em suas
recordações de família no processo criminal, informou o nome de ambos os pais e do senhor
dos mesmos: “Antônio e Rosa, escravos do coronel Francisco Jacinto”.106
Com idade entre 40
e 50 anos, não sabia ler e escrever, como a imensa maioria dos réus escravos.
O tempo na fazenda e a provável adaptação ao novo cativeiro, todavia, não fizeram
com que Vitorino se habituasse ao ritmo de trabalho da lavoura cafeeira ou que aceitasse os
castigos infligidos na forma e quantidade com que eram dados.
100
“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.149. 101
“Vista ao promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.77. 102
“Sentença do Juiz de Direito”, 17/09/1879. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.161-2. 103
Maria Helena P. T. Machado, Crime e escravidão..., op. cit., p. 70. Para uma discussão mais completa sobre a
aplicação da lei de 10 de junho de 1835, vale a pena ver Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do
Império..., op. cit. 104
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, maio/1863, livro 33. CMU, CRC. 105
“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.75. 106
“Interrogatório ao réu Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 242, Doc. 009, p.75.
73
Não foi possível localizar o inventário post mortem de José Maria da Costa Wilk,
mas verificamos que, entre 1860 e 1879, ele adquiriu pelo menos 70 escravos, 64,3% deles
comprados também em grupos de quatro ou mais cativos e 51,3% dos que tem registrado sua
origem foram adquiridos no comércio interprovincial.107
Wilk comprou inclusive alguns
escravos do comboio trazido pelo negociante Antônio Teixeira Marinho, assassinado em
1874, caso que contamos no início deste trabalho.108
Não é de se estranhar que todos os cativos que prestaram informações à justiça
fossem solteiros, mesmo que alguns estivessem naquela mesma fazenda há quase 20 anos. O
estado conjugal dessas pessoas não significa apenas que, por serem solteiros, estariam mais
propícios ao crime.109
Há também que se considerar neste caso que mesmo o longo tempo de
residência dentro de uma grande escravaria não foi suficiente para que esses cativos
conseguissem construir laços matrimoniais, o que dá indícios de como era a vida na Fazenda
São João da Atibaia, em especial para os forasteiros.
Antes que a sentença do Juiz de Direito completasse um mês, o caso foi retomado
com um Inquérito Policial, pois o réu condenado, Vitorino, fez novas declarações à polícia.110
Afirmou que foi induzido a assumir o crime sozinho por ordem do senhor, que prometera
livrá-lo sem castigo, ou mandar um escravo da casa para dar-lhe os castigos determinados
pelo júri, mas de forma moderada. Como nada disso foi cumprido, Vitorino resolveu contar à
Justiça que os escravos Francisco (Chico), Antônio, Benedito Sorocaba, Felisbino e Faustino
também estavam envolvidos no crime, como cabeças da combinação para matar o mau feitor.
Vitorino denunciou também a morte de escravos na Fazenda por castigos excessivos.111
É então que toda uma nova história aparece, tornando o caso cada vez mais intrigante
para o historiador. Em novo depoimento, Benedito Sorocaba (ou Sorocabano) disse que havia
sido convidado a praticar o crime pelo próprio Vitorino, enquanto ele e os outros escravos
citados estavam almoçando na mesma gamela, afastados do restante da escravaria. Contou
ainda que mentiu no primeiro depoimento por ordem do senhor José Maria da Costa Wilk e
do senhor moço, Antônio Maria, e que “já tinha sido castigado antes de vir na presença da
justiça, e por tempo de quatro dias seguidos”112
por ter ajudado Vitorino a ferir o feitor.
107
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1879. CMU, CRC. 108
Ver p. 15-6. 109
Uma discussão sobre as relações entre parentesco e criminalidade escrava pode ser vista em Ricardo
Figueiredo Pirola, Senzala Insurgente..., op. cit. 110
Inquérito Policial. Réu: Francisco, escravo de José Maria da Costa Wilk, Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 296, Documento 014. 111
“Auto de perguntas a Vitorino”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014. 112
“Auto de perguntas a Benedito Sorocaba”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014.
74
Antônio mulato, Faustino, Felisbino e Francisco continuaram negando envolvimento
no crime. Todavia, Antônio mulato e Faustino contaram que foram castigados antes de irem
depor no primeiro processo, mas alegaram que isso se deu porque eles fugiram quando viram
Vitorino ferir o feitor. Ainda tentando se afastar da suspeita de envolvimento no delito,
Antônio afirmou não ter almoçado com os outros na mesma gamela.113
Com a nova versão dos fatos apresentada por Vitorino e confirmada por Benedito,
podemos compreender um pouco melhor os complexos meandros da cumplicidade escrava
presente no assassinato do feitor Gama. E que pode ter sido parte de uma série de outros
crimes que se encontram em meio à documentação judicial.
Sendo a Fazenda São João da Atibaia “aquela em que há mais trabalho” e o feitor
Joaquim Bento da Gama bastante cruel, os seis cativos teriam planejado não só feri-lo, mas,
de fato, combinaram sua morte. As conversas para planejar o delito se deram à hora da
refeição, feita de modo comunitário, na “mesma gamela”, mas afastados dos outros escravos
da fazenda, uma vez que se tratava de matéria grave a ser partilhada apenas pelos parceiros de
confiança. Forasteiros, eles vinham de perto e de longe: as localidades de origem variavam
entre Itatiba, Jundiaí e Franca, na Província de São Paulo, até Maranhão e Ceará, ao Norte, e
Santa Catarina, ao Sul; e estavam na Fazenda por períodos que variavam entre quatro e 20
anos. Existia aí também um africano, que, em algum momento, foi feitor da fazenda.114
Além de Antônio, citado por Vitorino como um dos “cabeças”, outros três desses
cativos chegaram ao município no comboio no qual estavam os escravos que assassinaram
Antônio Teixeira Marinho, em 1874.115
José, Lázaro e Agostinho não foram indiciados e nem
mesmo prestaram depoimento no processo que se formou na ocasião da morte do negociante,
mas o fato de que já vinham de uma experiência de luta contra o cativeiro em Campinas não
pode passar despercebido ao historiador.
Não pudemos saber o porquê de Vitorino ter sido o escolhido para assumir a culpa
pelo crime com vista a evitar grande prejuízo econômico ao senhor, mas o conhecimento
dessa lógica pode ter sido crucial para a decisão cativa de executar o plano de morte do mau
feitor.116
Mesmo os cativos que não foram condenados pela justiça, todavia, receberam a
punição privada pelo delito, uma vez que foram castigados pelo senhor dentro das cercas da
própria fazenda.
113
“Auto de perguntas a Antônio”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014. 114
A informação sobre a ocupação do africano Faustino aparece em “Auto de perguntas a Vitorino”. AEL, CSP,
ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014. 115
Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de José Júlio de Barros, Campinas,
1874. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 116
Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 70.
75
É possível que lógica semelhante tenha guiado os cativos de dona Teresa Maria de
Jesus Paula. Diante de um feitor “malino”, eles também podem ter ajustado a morte dele na
expectativa de que somente um dos parceiros (Epifânio) sofresse a punição em defesa de toda
a escravaria, ainda levando em conta que esse companheiro poderia ter sua pena amenizada
por sua menor idade.
Apesar de todos os que prestaram depoimento pela morte do feitor Gama serem
forasteiros, podemos perceber certa posição diferencial do cativo Francisco, proveniente de
um município bastante próximo de Campinas, Itatiba. Ele teria sido o cabeça da combinação
para matar o feitor e também aquele que ia à Cadeia de Campinas executar a sentença do Juiz
de Direito, açoitando Vitorino. É provável que ele estivesse tentando se sobressair dentre os
outros cativos. Primeiro como líder da empreitada para neutralizar o feitor, depois se
colocando, nos depoimentos perante a Justiça, como aquele que defendeu a vítima.
Vitorino, por sua vez, mostrou-se bastante insatisfeito por ver o próprio Francisco lhe
aplicar os castigos na prisão, e de modo nada moderado como o senhor havia prometido.
Apesar de serem companheiros na experiência do tráfico interno e no desejo de se livrar de
um mau feitor, Francisco e Vitorino tinham seus próprios anseios no cativeiro.
Por fim, o inquérito policial não foi levado adiante, sendo paralisado após envio ao
Promotor Público, por ausência de provas.
Mais um caso de crime coletivo vale a pena ser explorado, especialmente no que diz
respeito à cumplicidade dos sujeitos envolvidos e a sua heterogeneidade.
A Fazenda do Castelo, que ficava próxima à estação de trem Jaguari, foi tomada por
um levante escravo na noite de 31 de outubro de 1882.117
O que transparece do processo é que
o senhor Luís Antônio de Pontes Barbosa teria tido suspeitas quanto à organização de uma
revolta escrava em sua propriedade e, então, reuniu um pequeno exército naquela noite com
alguns camaradas de sua fazenda e de fazendas vizinhas para prender os escravos e “os
chamar à ordem”.118
No caminho para a senzala, prendeu o feitor escravo Eleutério e,
seguindo para a senzala, verificou:
“que estavam todos agrupados em um só dos quarteis, tendo deixado vazios os
outros, que primeiro foram abertos e examinados pelo senhor; e logo que este, ao
abrir o quartel, no qual estavam todos, começou a dar as providências, que julgou
oportunas, ouviu-se dentro o grito de – mata branco -, e em ato contínuo,
precipitaram-se os negros para a porta de saída, abrindo passagem com machados e
foices, dando tiros com garruchas e levantando vivas à liberdade. Houve um
horroroso conflito, no qual ficaram feridas várias pessoas, segundo consta dos
117
Processo Crime. Réu: Severo, Benedito e Jesuíno, escravos de Luiz Antônio de Pontes Barbosa, e Felipe
Santiago (liberto), Campinas, 1883. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 162, Documento 004. 118
“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004.
76
respectivos autos de corpo de delito, e morto por uma foiçada um dos camaradas –
José Frutuoso. Depois, sobraçando suas armas e trouxas vieram todos – escravos e
escravas – a esta cidade, apresentar-se à autoridade”.119
O plano da revolta escrava da Fazenda do Castelo foi bem analisado por Maria
Helena Machado,120
mas merece que retornemos a ele com especial atenção quanto à presença
dos forasteiros envolvidos no plano.
Na delegacia de polícia, 74 escravos se entregaram após o conflito na fazenda e
foram recolhidos na cadeia. Somente seis escravos foram indiciados e, destes, três condenados
como cabeças do levante: os baianos Benedito e Jesuíno e o maranhense Severo. No entanto,
o plano de revolta envolvia muitos mais cativos, pelo menos 120 da Fazenda do Castelo, 121
e
mais escravos das fazendas vizinhas, uma vez que o objetivo era levantar a escravaria de
todas as fazendas do Bairro Jaguari, “menos de Antônio Américo, e Capitão Bento
Bicudo”.122
Outro envolvido na trama como um dos principais chefes, se não a principal
liderança, foi o liberto Felipe Santiago, também maranhense.123
Os primeiros depoimentos dos escravos mostram uma tentativa de amenizar a
gravidade dos fatos e esconder o plano de revolta que envolvia todo o bairro, com argumentos
bastante tradicionais em crimes contra feitor. O feitor escravo Eleutério, que foi preso pelo
senhor no início do conflito, mas depois solto pelos companheiros antes de rumarem para a
cidade, disse que os cativos respondiam somente a ele no eito, e não ao feitor branco
Jacinto.124
Outro feitor escravo, Pedro, afirmou que o feitor Jacinto maltratava os escravos a
ponto de “montá-los como em cavalos”125
e que ele tinha saído da fazenda há tempos, mas
acabou voltando, o que desgostou muito os escravos. Pedro contou ainda que o senhor moço
João foi quem informou ao pai que os escravos não respondiam ao feitor Jacinto, o que o teria
levado a cercar os cativos na senzala naquela noite.126
O senhor Luís Antônio de Pontes Barbosa declarou que o cerco à senzala se deu
porque ele soube que “alguns escravos seus [tinham] feito roubos na estação ferroviária e
pelas respostas insolentes deles e indícios que demonstravam que esses escravos estavam se
119
“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 120
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., capítulo 3, p. 91-127. 121
Esse número não aparece no processo criminal, mas foi apontado na Fala dirigida à Assembleia Legislativa
Provincial de São Paulo na abertura da 2ª sessão da 24ª Legislatura em 10/01/1883 pelo Presidente da
Província Conselheiro Francisco de Carvalho Soares Brandão. São Paulo: Typ. Do Ypiranga, 1883, p. 6.
Citado em Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., nota 4, p. 122. 122
“Auto de perguntas a Benedito”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 123
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 96. 124
“Auto de perguntas a Eleutério”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 125
“Auto de perguntas a Pedro” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 126
“Auto de perguntas a Pedro”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004.
77
preparando para fazerem desacatos na pessoa dele depoente e mais pessoas livres da
fazenda”.127
Contou também que, em um dos quartéis, encontrou “(...) todos os escravos
reunidos e armados de garruchas, foices e porretes”.128
O saldo do conflito foi de pelo menos três mortos: dois escravos (um na senzala e
outro no caminho que faziam para se entregarem à justiça) e um feitor da fazenda vizinha, de
Antônio Teixeira, chamado José Frutuoso.
A continuação do processo criminal revelou um plano de cunho religioso muito bem
elaborado, congregando muitos cativos em torno do objetivo de sublevar todas as fazendas do
bairro para alcançar a liberdade e matar todos os brancos.129
Não tivemos acesso ao inventário do senhor Pontes Barbosa, mas sabe-se que a
Fazenda do Castelo reunia uma escravaria de pelo menos 120 cativos.130
Os registros de meia
sisa revelaram a compra de pelo menos 97 cativos entre 1861 e 1879,131
caracterizando a
senzala como bastante heterogênea no que diz respeito à origem dos cativos que residiam na
propriedade. Os registros de compra e venda não permitem que tracemos um perfil
demográfico de toda a escravaria de Barbosa, já que não trazem informações sobre os cativos
nascidos na própria fazenda ou que tenham sido adquiridos pelo senhor antes da década de
1860. Ainda assim, vale a pena observar algumas características dos indivíduos adquiridos
pelo escravocrata nesse período, uma vez que formavam a grande maioria de sua propriedade.
Luís Antônio de Pontes Barbosa adquiriu muito mais homens (79) do que mulheres
(19) no mercado de escravos, numa proporção de 4,2 homens para cada cativa.132
Com isso,
não é de estranhar que todos os principais indiciados pela insurreição – para os quais temos
dados mais detalhados – fossem solteiros, com exceção do feitor escravo Eleutério. Além
disso, pelo menos 97,4% de todos os crioulos com origem informada que foram comprados
entre as décadas de 1860 e 1880 não eram nascidos em Campinas. Ainda que não possamos
assegurar que todos esses cativos estivessem vivos e presentes na fazenda do Castelo quando
da insurreição em 1882, podemos sugerir que uma proporção bastante grande da senzala era
composta por indivíduos forasteiros.
127
“Auto de perguntas a Luís Antônio de Pontes Barbosa”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p. 20. 128
“Auto de perguntas a Luís Antônio de Pontes Barbosa”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p. 20. 129
Informações prestadas pelos escravos Benedito, Severo e Jesuíno, e pela testemunha Jacinto Rodrigues de
Godoy. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 130
Esse número foi apontado na Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial de São Paulo na abertura da
2ª sessão da 24ª Legislatura em 10/01/1883 pelo Presidente da Província Conselheiro Francisco de Carvalho
Soares Brandão. São Paulo: Typ. Do Ypiranga, 1883, p. 6. Citado em Maria Helena P. T. Machado. O plano e o
pânico..., nota 4, p. 122. 131
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1861-1879. CMU, CRC. 132
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1861-1879. CMU, CRC.
78
Assim como os citados pela morte do feitor Joaquim Bento da Gama na Fazenda São
João da Atibaia, nenhum dos doze cativos indiciados que prestaram depoimento no processo
pela insurreição e informaram sua origem havia nascido no município de Campinas, e, neste
caso, nem mesmo em qualquer outra localidade da região Sudeste. Objetos do tráfico
interprovincial, alguns desses sujeitos haviam chegado à Fazenda do Castelo há cerca de vinte
anos, enquanto outros lá estavam há pouco mais de três anos.
Em consonância com o costume de proteger a propriedade dos senhores de grande
prejuízo econômico, a justiça apontou três dos indiciados como líderes do projeto revoltoso.
O que transparece dos autos é que foram escolhidos pelos depoimentos de testemunhas que
disseram ter percebido no conflito que a liderança da revolta recaia sobre os três réus,
especialmente sobre Severo: “os autores mais encarniçados foram os escravos Severo, Sérgio
e Jesuíno”.133
Seus nomes acabam aparecendo também nas informações prestadas pelos
outros cativos, nas quais Benedito também é citado. Sérgio, por outro lado, acaba não sendo
incluído entre os cabeças da insurreição, assim como os cativos Manuel Belmiro, Raimundo
Ferreiro e Lino que, apesar de serem citados nos depoimentos dos cativos, não foram lançados
no rol de culpados. Outro escravo que também apareceu nas falas dos revoltosos como um
dos principais líderes de todo o movimento, mas não foi condenado foi José Furtado, feitor
escravo na fazenda vizinha à do Castelo, pertencente a Francisco Paulino de Morais.
Diferente dos cativos de Barbosa que foram indiciados, José Furtado era casado,
tinha 56 anos e um cargo de confiança na fazenda de seu senhor. Além disso, era o único que
havia chegado a Campinas através do comércio intraprovincial, sendo natural de São José dos
Campos.134
Essas características, somadas ao fato de estar sob o poder de Paulino de Morais
há 27 anos,135
talvez tenham, em conjunto, sido relevantes para sua posição de chefia do
movimento insurrecional. Além disso, sua posição de feitor permitia que tivesse maior
mobilidade espacial e mais possibilidades de estar em contato com escravos das fazendas
vizinhas, articulando o plano de revolta.
Os três cativos de Barbosa que acabaram sendo condenados como líderes eram, por
outro lado, bastante jovens – entre 16 e 25 anos –, solteiros e estavam na Fazenda do Castelo
entre oito (Severo e Jesuíno) e vinte anos (Benedito).136
Mesmo sendo relativamente jovens e
forasteiros, esses sujeitos foram importantes para articular um forte movimento insurrecional.
133
“Auto de perguntas a Luís Antônio de Pontes Barbosa”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p.38. 134
“Interrogatório ao réu José Furtado”, 25/02/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p.185. 135
“Interrogatório ao réu José Furtado”, 25/02/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004, p.185. 136
“Interrogatório aos réus Severo, Jesuíno e Benedito”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc.
004.
79
Interessa observar que tinham ocupações distintas, que os colocavam em diferentes ambientes
na fazenda: Severo era pajem e quitandeiro, 137
o que lhe possibilitava contato com outros
escravos domésticos e recolher informações da casa grande, além da mobilidade por outros
espaços da cidade, como a estação ferroviária. Jesuíno era carpinteiro,138
o que lhe dava
ascendência sobre os cativos da lavoura, por lhe conferir certa autonomia e mobilidade
espacial. Benedito, por sua vez, era trabalhador de roça, 139
podendo, portanto, articular as
ideias da revolta com a maioria da escravaria, que com ele convivia no trabalho da lavoura.
A liderança principal do movimento, todavia, foi atribuída ao liberto Felipe Santiago,
que não foi encontrado durante o andamento do processo criminal. Felipe seria líder religioso
dos cativos do bairro, organizando reuniões secretas e distribuindo artigos e preparados
mágicos aos escravos em troca de dinheiro, milho, feijão e arroz furtados por eles.140
Ele
também era forasteiro, natural do Maranhão, e filho de africana, morador em Campinas há 12
anos e proprietário de um sítio em Atibaia.141
Mais uma vez, um forasteiro que se mostra não
só adaptado ao ambiente social de Campinas, como capaz de tecer relações profundas com os
cativos da região, sendo respeitado e seguido como líder e até mesmo conseguindo adquirir
um pedaço de terra em município da vizinhança.
Observa-se assim que, reunindo uma grande heterogeneidade de cativos, residentes
nas fazendas do Bairro Jaguari, o plano insurrecional de 1882 teve como centro, na Fazenda
do Castelo, cativos que tinham o tráfico interno como experiência em comum. As
expectativas e experiências que esses sujeitos traziam de suas terras natais não podem ser
ignoradas. Nascidos no Maranhão, Felipe Santiago e Severo traziam recordações e
conhecimentos das casas religiosas de candomblé e vodum que ali tiveram grande sucesso.142
Da Bahia, Jesuíno e Benedito traziam também suas crenças religiosas, que eram
provavelmente compartilhadas por boa parte dos outros 25 baianos adquiridos por Pontes
Barbosa no mercado de escravos.143
Tais expectativas e experiências certamente pesaram de
forma relevante na elaboração do plano de revolta.
Ainda que forasteiros, esses sujeitos tinham alguma preponderância sobre as senzalas
daquele bairro. Ao invés de serem tratados como estrangeiros pelo restante da senzala, ou
137
“Interrogatório ao réu Severo”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 138
“Interrogatório ao réu Jesuíno”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 139
“Interrogatório ao réu Benedito”, 17/01/1883. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 140
Informações prestadas pelos escravos Benedito, Severo e Jesuíno, e pela testemunha Jacinto Rodrigues de
Godoy. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 141
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 96-7. 142
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 97. 143
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1873-76. CMU, CRC.
80
viverem isolados por causa de sua origem, eles foram importantes articuladores da
insurreição.
Os depoimentos iniciais do processo apresentaram argumentos típicos dos crimes
relativos à disciplina do trabalho nas fazendas em expansão. Todavia, o andamento da ação
judicial mostrou que a insurreição tinha um objetivo maior, que congregava diferentes
fazendas, com diferentes feitores e senhores. A capacidade dos revoltosos de solidificar
relações de modo a articular um movimento tão bem elaborado, gestado ao longo de grande
tempo e reunindo pessoas tão diversas dá mostras de um tipo de cumplicidade que não pode
ser deslindada nas fontes. O objetivo unificador desses sujeitos, qual seja, a liberdade, era
desejo que não dependia da origem ou do tempo de residência.
Ainda que o projeto original de levante de todas as senzalas do Bairro Jaguari não
tenha sido possível aos revoltosos, é bastante significativo que ele tenha sido combinado ao
longo de certo tempo e não tenha sido delatado, e que, ao descobrirem os planos do senhor de
armar o cerco à senzala,144
toda a escravaria de Pontes Barbosa tenha se reunido armada em
um dos quartéis à sua espera.
A análise desses crimes coletivos contribui para entendermos as múltiplas formas
que a cumplicidade poderia se dar e as redes que os cativos construíam para se proteger, ora
dos maus tratos de um feitor cruel, ora de uma pesada condenação na justiça após a execução
dos delitos.
É relevante observar nesses crimes coletivos a confluência de interesses apesar das
diferenças (de ocupações, de origem, de idade, etc.), com o objetivo de construir uma
cumplicidade em torno do que eram entendidos como direitos coletivos, isto é, castigos justos,
ritmo moderado de trabalho, etc.145
A presença marcante dos cativos forasteiros nesses casos
pode ter dois significados. Primeiro, é interessante verificar que eles faziam parte, às vezes em
posição de destaque, de projetos comuns aos integrantes das senzalas, os quais estavam
assentados em uma sólida parceria, uma vez que a delação era sempre um grande risco.146
Segundo, é presumível que as experiências de cativeiro trazidas das terras de origem tenham
sido importantes para constituir os limites que procuravam impor ao sistema disciplinar das
fazendas em Campinas.
Como expôs Hebe Mattos de Castro, o cativo negociado no tráfico:
144
Segundo depoimentos, o feitor escravo José Furtado teria visto Luís Antônio de Pontes Barbosa desembarcar
pela manhã na estação ferroviária de Jaguari e avisou os cativos da Fazenda do Castelo. “Interrogatório ao réu
Severo” e “Interrogatório ao réu Benedito”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004. 145
Maíra Chinelatto, Quando falha o controle..., op. cit., p. 236. 146
Maíra Chinelatto, Quando falha o controle..., op. cit., p. 234.
81
“tinha concepções preestabelecidas de castigo justo ou injusto, de ritmos de trabalho
aceitáveis ou inaceitáveis, das condições que deveriam dar acesso ao pecúlio e à
alforria, que podiam ser distintas das que encontrara nas fazendas de café do
Sudeste”.147
Vale ressaltar também que os indiciados nos autos criminais eram apenas a ponta do
iceberg de muitos desses crimes, uma vez que somente um pequeno número dos envolvidos
era de fato condenado. Em parte, isso se coadunava com a necessidade da sociedade
escravista de não privar os senhores do serviço de seus escravos, ainda que estes tivessem
cometido crimes dentro da própria fazenda. Maria Helena Machado verificou que os crimes
contra feitores tendiam a ter as penas diminuídas, ainda que fossem inclusos no artigo 1º da
lei de 10 de junho de 1835; diferentemente do que acontecia quando as vítimas eram senhores
e sua família.148
A defesa da propriedade escrava falava mais alto. E é possível que o
planejamento dos crimes acontecesse com certo conhecimento sobre essa lógica,149
isto é,
considerando que nem todos seriam condenados, muitos desses cativos criminosos se
entregavam conjuntamente à polícia como vimos nos casos mencionados.
Por outro lado, Ricardo Pirola argumenta que a ida dos cativos à polícia após esse
tipo de crime se dava como forma de proteção, uma vez que as represálias vindas de forma
privada dentro das cercas da fazenda poderiam ser ainda piores do que as punições previstas
por lei. O autor identificou, por exemplo, que todos os casos de cativos que se entregaram na
polícia após cometerem crimes enquadrados na lei de 10 de junho de 1835 se deram após
1860, quando as comutações da pena de morte prevista nesse regulamento ultrapassaram 90%
das causas julgadas pelo Conselho de Justiça.150
Como vimos no caso do assassinato do feitor
Gama, os cativos que participaram do crime junto com Vitorino foram castigados brutalmente
no tronco, apesar de não terem sido indiciados pelo delito.151
2.3. Vítimas
Passemos agora à análise das vítimas escravas que encontramos nos autos criminais.
Infelizmente, as informações sobre elas são muito mais escassas do que para os réus, uma vez
que muitas nem chegaram a prestar depoimento (nos casos de homicídio) e, quando o fizeram,
147
CASTRO, Hebe M. Mattos de. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In: NOVAIS, Fernando
(coord.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 355. 148
Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 70. 149
Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 70. 150
Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit., p. 224-5. 151
“Auto de perguntas a Benedito Sorocaba”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014.
82
a justiça não se preocupava em fazer perguntas que não estivessem diretamente ligadas aos
fatos do crime. Assim, para as 69 vítimas escravas nos autos criminais julgados entre 1859 e
1886, temos informação da localidade de origem, por exemplo, para somente 14.152
Apesar
dessa limitação, buscaremos observar as características que são possíveis de identificar nesses
sujeitos e traçar um perfil mínimo para os crimes contra os escravos que foram levados à
justiça na segunda metade do século XIX.
Em primeiro lugar, observa-se que, entre as 14 vítimas crioulas com localidade de
origem informada, 78,6% eram nascidas fora do município de Campinas, dos quais 27,3%
eram oriundos da região Sudeste.153
Assim, enquanto os dados colhidos por Robert Slenes
mostram uma proporção de 43,7% de cativos nascidos em Campinas na população do
município,154
uma proporção muito menor (21,4%) foi vítima de crimes na segunda metade
do século. Ou seja, mais uma vez, os forasteiros são maioria e, nela, predominam os oriundos
do Nordeste do Império.
Quanto ao sexo, verifica-se que as mulheres escravas aparecem em proporção muito
maior como vítimas (21,7%) do que como rés (3,7%). Além do que já comentamos sobre o
fato de os cativos omitirem a participação de suas companheiras em crimes, essa diferença
proporcional evidencia o grande número de crimes passionais que também fizeram parte da
realidade do cativeiro em Campinas. Em pelo menos 53,3% dos delitos cometidos contra as
escravas, as motivações parecem ter sido de cunho amoroso.
Outro dado curioso relacionado ao sexo das vítimas é que entre os autos que temos
em mãos, uma maior proporção de suicídios se deu entre as mulheres (20%) do que entre os
homens escravos (16,7%). É difícil indicar alguma relevância do tráfico interno nesses casos
de suicídio, uma vez que há informação de origem para somente quatro dessas vítimas. Pode-
se observar, contudo, que metade delas era proveniente do Sul e Nordeste do Império.
Conforme pode ser observado na tabela 2.3,155
a proporção dos cativos casados é
igual a 41,7%, percentual muito maior do que o encontrado entre os réus (22,6%) ou entre a
população escrava da província de modo geral (20,3%).156
Dessa forma, verifica-se, mais uma
vez, que, apesar da inegável importância dos laços familiares para a vida em cativeiro, eles
152
Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP. 153
Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1859-1886. AEL, CSP; Registros da Meia Sisa
de escravos, Campinas, 1860-1884. CMU, CRC. Todos os dados a seguir foram pesquisados nestas fontes. 154
Robert Slenes. The demography...,op. cit.,tabela 3-2, p. 133. 155
Vide página 38. 156
Segundo dados da matrícula de escravos de 1873. Robert Slenes. The demography...,op. cit.,tabela B-4, p.
692.
83
não eram garantia de não envolvimento em conflitos, os quais talvez estivessem até mesmo
relacionados à tentativa de proteção da família.157
Pelo menos 37,5% das vítimas tinha entre 20 e 29 anos, e somente uma pessoa tinha
idade abaixo de 20 anos e uma estava acima dos 60 anos de idade.158
Aqui, o prejuízo dos
senhores fica latente, uma vez que se tratava da perda de uma parcela importante de sua mão
de obra, em idade produtiva e, por isso, com altos valores no mercado de escravos.
Outro item que mostra o prejuízo dos senhores com esses crimes é que 50% das
vítimas com informação sobre a ocupação exerciam funções administrativas, domésticas ou
especializadas (vide tabela 2.4),159
tendo, portanto, um alto custo para sua substituição.
Apesar de escravos feitores estarem entre as vítimas, eles respondem por apenas 4,3% delas.
Os casos em que o réu era também escravo são os mais abundantes: 34,8% de todas
as vítimas escravas se envolveram em conflitos com outros cativos, 75% deles com parceiros
da mesma escravaria. Como já exposto, há poucas informações sobre a origem desses
indivíduos, mas é curioso notar que todos os identificados como nascidos em Campinas
(apenas dois escravos e um livre, filho de escrava) tenham sido vítimas em conflitos com
pessoas livres. A este fato, soma-se o que já foi observado sobre os réus escravos nascidos em
Campinas: a maior proporção deles, isto é, 37,5% cometeram crimes contra indivíduos livres.
Entre os forasteiros, a proporção dos que foram vítimas em conflitos com pessoas
livres é menor: 27,3%. Essa quantidade foi sobrepujada por aqueles ocorridos com outros
cativos, que somam 36,4%. Comparando com os dados para os réus forasteiros, verifica-se
que os conflitos dos forasteiros com livres também era bem menor do que no caso dos
nascidos em Campinas: 32,3%.
Pode-se inferir, portanto, que a origem teve papel significativo no tipo de conflito em
que se envolveram esses cativos. Isso talvez signifique, em primeiro lugar, que os cativos
nascidos em Campinas tinham maior contato com indivíduos fora do cativeiro do que os
forasteiros. E, em segundo lugar, pode-se conjecturar que tenham tido mais interesses em
comum que gerassem disputas, como o trabalho em determinada terra, ou objetos que os
cativos desejassem adquirir, lembrando que foi também entre os réus nascidos em Campinas a
maior proporção de roubos e furtos.
157
Maíra Chinelatto. Quando falha o controle...,op. cit., p. 121. 158
Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), 1859-1886. AEL, CSP. 159
Percentual calculado sobre as vítimas adultas do sexo masculino. Quando observado o tipo de ocupação
independente do sexo, esse percentual sobe para 60% das vítimas exercendo ocupações administrativas,
especializadas ou domésticas.
84
Contudo, a pequena quantidade de dados que temos para a origem das vítimas
dificulta que sejamos mais incisivos nessas conclusões, sendo então apenas especulações que
ajudam a pensar os diferentes espaços e experiências dos cativos nascidos fora do município
paulista. Passemos então à análise das histórias de crimes que vitimaram essas pessoas, de
modo a nos aproximar o mais minuciosamente possível dessas experiências.
Retornemos ao caso do assassinato de Honorato, cometido por Severiano em alta
hora da madrugada pouco antes do Natal em 1875.160
Segundo Severiano e os companheiros
que depuseram em juízo, ele havia cometido o crime por engano, ao atacar uma pessoa que
via saindo do armazém do seu senhor com um saco de açúcar nas costas, achando ser um
ladrão.
Honorato nascera no Maranhão, mas estava no Sítio do Saltinho, de propriedade de
Felipe Antônio Franco, há muitos anos. Ser forasteiro não o impediu de constituir família e ter
uma relação bastante próxima com a casa grande. Casou-se com a cativa Brígida, neta do
casal fundador da comunidade escrava no Sítio do Saltinho,161
entrando assim para uma
importante rede familiar da senzala. Com ela teve quatro filhos: Guilherme, Úrsula,
Leopoldina e Gertrudes. Honorato era trabalhador na lavoura, mas suas filhas, assim como a
esposa Brígida, tinham uma ocupação doméstica: as meninas eram “carregadoras de crianças”
e a mãe exercia a função de costureira.162
Quando o testamento da senhora Ana Rufina foi
aberto em 1875, apenas três escravos foram alforriados pelas disposições testamentárias: as
três filhas de Honorato.163
Se a história do engano contada por Severiano for verdadeira, podemos imaginar
que, mesmo com essa posição diferencial, Honorato furtava o saco de açúcar do senhor para
suprir necessidades diante dos recursos escassos inerentes à realidade do cativeiro. Por outro
lado, a suspeita de que houvesse rixas entre os dois cativos não pode ser descartada pelo
historiador, ainda que o tenha sido pela Justiça. A posição diferencial de Honorato na
comunidade escrava pode ter despertado desavenças com o caseiro Severiano, uma vez que
este último provavelmente buscava se impor diante dos outros cativos por sua função de
confiança no sítio (caseiro).
160
Ver mais detalhes sobre essa história nas páginas 60-2. Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de Felipe
Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 239, Documento 002. 161
Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 73-4. 162
“Lista de matrícula de escravos”, 1872. Inventário post mortem de Ana Rufina de Almeida, Campinas, 1875.
CMU, TJC, 3º Of., P. 7256, Cx. 450. 163
Testamento de Dona Anna Rufina, p.158 e 159. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160. Citado em Joice F.
de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 72-3.
85
Outra vítima forasteira que tinha posição de destaque na fazenda onde foi ferido foi o
feitor escravo Joaquim, proveniente do Ceará.164
O crime ocorreu em 1886, quando Joaquim
já estava em poder do major João Francisco de Andrade Franco há 14 anos,165
e foi cometido
por outro escravo de seu senhor, de nome Paulo.
Outro escravo, de nome Celso, dividia com Joaquim a função de olhos vigilantes do
senhor na fazenda. Ele também fora adquirido pelo senhor no mercado interno, e estava na
fazenda há ainda mais tempo, cerca de 24 anos.166
Os feitores estavam castigando os cativos
no eito, pelo atraso na capina, quando Paulo reagiu com uma facada em Joaquim.
As diferenças nas informações prestadas pelo réu e pela vítima são marcantes. Paulo
não negou em nenhum momento ter ferido Joaquim, mas contou uma historia detalhada de
como ocorrera o castigo ao qual reagiu:
“achavam-se os escravos trabalhadores da fazenda formados no eito, isto havia em 7
horas da manhã mais ou menos, quando sem ele interrogado saber o motivo, seu
senhor Major João Francisco de Andrade Franco, mandara formar a escravatura e
tirar a camisa de cada um ordenando aos feitores Joaquim e Celso, ambos escravos,
que tocassem da direita um e da esquerda outro, sendo que os pacientes todos,
inclusive ele interrogado, levaram 6 relhadas cada um; que novamente seu dito
senhor mandou reproduzir mais seis relhadas em cada um; que alguns ele
interrogado viu apanhar seis, como disse, e não seis, (...) que ao chegar novamente
sua vez ele interrogado saiu da fila e ajoelhou-se perante seu senhor para que ele
perdoasse essas seis relhadas; que a resposta que ouviu do seu senhor foi ordem ao
feitor Joaquim para aplicar nele interrogado cem relhadas; que tomado de medo de
apanhar tão grande número de relhadas, puxou da faca e agrediu o feitor, não para
matá-lo, que o poderia fazer se quisesse, quando o feitor caiu, mas tão somente para
fazer sangue no feitor como meio de se livrar do excessivo castigo que, se não fosse
esse fato das facadas, por certo que ainda hoje estaria sofrendo”.167
A vítima, por sua vez, afirmou a presença do senhor somente depois que Paulo já o
teria ferido, não estando no eito quando os cativos estavam sendo castigados. Contou também
que o réu o perseguiu na tentativa de dar-lhe mais facadas.168
Assim, a presença do senhor no
eito no momento do castigo aos escravos é uma contradição que pode indicar a tentativa do
feitor de evitar atribuir crueldade ao senhor, na tentativa de confirmar sua imagem de aliado
do escravocrata.
As vantagens da proximidade com a casa grande podem ter deixado Joaquim no lado
oposto ao dos parceiros de cativeiro. Assim, era visto pelos outros cativos como aliado do
senhor, especialmente na aplicação dos castigos, como o depoimento de Paulo deixa
vislumbrar. Apesar de forasteiro, era feitor e tinha uma família constituída pelo casamento
164
Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 259, Documento 006. 165
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1872-1873. CMU, CRC. 166
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1862. CMU, CRC. 167
“Auto de perguntas ao réu Paulo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 006. 168
“Auto de perguntas ao ofendido Joaquim”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 006.
86
sancionado pela Igreja. Certamente, o longo tempo que estava na fazenda – 14 anos –
colaborou para essas conquistas.
Enquanto isso, o outro forasteiro, Paulo, nascido na Província do Rio Grande do Sul,
que estava na fazenda há oito anos, continuava solteiro e no duro trabalho da lavoura.169
Ambos haviam vivido a experiência do tráfico interno, em épocas diferentes, mas trazidos
para bastante longe de suas terras de origem.
A história dos dois evidencia os diferentes destinos que os forasteiros poderiam ter
nas escravarias em Campinas, e como suas experiências se entrelaçaram pelo crime, em
última instância devido ao duro sistema de trabalho e disciplina nas fazendas de café do
município, que fazia vítimas e réus aos montes, como se vê na documentação.
Para terminar as histórias das vítimas escravas forasteiras, vamos conhecer o baiano
José. Em 1871, ele fugiu da fazenda de seu senhor Francisco Bueno de Lacerda e foi
apadrinhar-se com o Barão de Atibaia.170
Em depoimento, José contou que fugiu devido aos castigos excessivos e com
motivação frívola que o feitor da fazenda, Amaro Ferreira da Silva, aplicara nele. O objetivo
da fuga era pedir ao Barão que o comprasse. Então, “o Barão de Atibaia prometendo-lhe
comprá-lo escreveu a seu senhor mas este não anuindo no negócio mandou buscá-lo pelo dito
seu feitor e o camarada João de tal”.171
“O Barão de Atibaia despediu-o”, continuou José,
“dizendo lhe que a vista da resposta do seu senhor não podia comprá-lo mas que
fosse sossegado porque iria apadrinhado e não sofreria castigo. Que nesse suposto
saiu ele informante seguido por Amaro e logo depois João de tal, e dirigiu-se para a
casa de seu senhor de braços cruzados e com toda a humildade, porém logo que
encobriu-se [sic] a casa do mesmo Barão, Amaro assuntou de amarrá-lo. Que ele
requerente observou que estava apadrinhado, e que por isso devia seguir solto”.172
Não obstante a observação de José, os condutores amarraram e surraram o cativo,
causando-lhe ferimentos que foram tratados por um curandeiro, em cuja casa foi levado logo
que chegou à fazenda ferido, onde permaneceu por 16 dias.
Não foi possível encontrar o registro da compra de José nos livros da meia sisa, e ele
não informou o tempo de moradia no seu depoimento. O inventário do senhor também não
auxiliou a descobrir mais informações sobre esse cativo, uma vez que foi aberto apenas em
1897. No entanto, sabemos pelo processo criminal que ele era baiano, mulato, tinha 30 anos
de idade, era solteiro e trabalhador de roça. O fato de que tenha ido se apadrinhar com um
169
“Auto de qualificação do réu Paulo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 006. 170
Processo Crime. Réus: João Lico de Camargo e Amaro Ferreira da Silva, Campinas, 1871. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 225, Documento 006. 171
João “de tal” refere-se a João Lico de Camargo, camarada do senhor da vítima. “Auto de perguntas ao
ofendido” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 006. 172
“Auto de perguntas ao ofendido” AEL, CSP, ACI, CSP 225, Doc. 006.
87
homem tão importante quanto o Barão de Atibaia indica que o cativo estava há algum tempo
no município e que, apesar de ser trabalhador de roça, tinha certa mobilidade, podendo ter
contato com outros escravocratas da região. Apesar de o apadrinhamento não ter sido
respeitado pelo feitor e o camarada, ele o foi pelo senhor, que, além de não castigar o cativo
quando este chegou à fazenda, “despediu a Amaro de seu serviço em consequência daquele
fato”.173
Esta punição, pelo visto, não foi considerada suficiente por José, uma vez que se
decidiu a levar o caso à justiça, denunciando as ofensas físicas cometidas pelo feitor e o
camarada em sua pessoa.
Vemos aqui o caso de um forasteiro que, apesar de, aparentemente, não ter alguma
posição de destaque na escravaria, buscava também impor seu código de direitos ao cativeiro,
o que incluía castigos justos e o respeito à prática do apadrinhamento. Ser forasteiro pode ter
sido um fator amplificador do desejo de impor esses limites, como já observamos sobre a
experiência que trazia de cativeiro anterior em sua terra natal, Bahia.
2.4. Momento do crime
Avaliemos agora o momento na trajetória de vida dos cativos em que esses crimes
ocorreram. Na tabela 9 podemos observar as vítimas dos crimes cometidos por escravos em
Campinas ao longo da segunda metade do século XIX. Verificamos que a década de 1860 foi
a em que houve, proporcionalmente, mais crimes contra feitores (55,6%), todos eles casos de
homicídio. Foi também a única década em que cativos nascidos no próprio município
cometeram crimes contra o feitor, respondendo por 30% dos réus com origem conhecida
nesse tipo de conflito.174
É nessa década, aliás, que verificamos a maior proporção de cativos
nascidos em Campinas entre os réus crioulos com localidade de origem conhecida, que é igual
a 36,4%. Na década de 1870, esse percentual cai para 18% e é igual a zero no decênio
seguinte.
173
“Auto de perguntas ao ofendido” AEL, CSP, ACI, CSP 225, Doc. 006. 174
Percentual calculado sobre o total de cativos com origem informada. Os números para essa cifra são: 20
escravos assassinaram feitores na década de 1860, sete deles eram forasteiros e três campineiros. Levando-se em
consideração todos os réus que cometeram crimes contra feitor na década de 1860, inclusive os que não têm
informação de origem, a proporção de nascidos em Campinas cai para 15%; e os réus forasteiros respondem por
35% desses casos.
88
Tabela 9 – Tipos de conflitos envolvendo os réus escravos, por décadas
(Campinas, 1860-1886).
Décadas
Vítimas enquadradas no art. 1º da
lei de 10 de junho de 1835175 Outras vítimas
Total geral
Senhor Feitor/adm. Subtotal Livre Escravo Liberto Ingênuo Subtotal
1860-69 - 20 20 16 10 - - 26 46
1870-79 18 09 27 20 09 - 01 30 57
1880-88 01 07 08 06 03 - - 09 17
Total 19 36 55 42 22 - 01 65 120
% sobre o total informado 15,8% 30,0% 45,8% 35,0% 18,3% - 0,8% 54,2% 100%
Isso evidencia, em primeiro lugar, a gradual diminuição proporcional de cativos
nascidos em Campinas entre a população escrava do município em vista da entrada de novos
cativos. Em segundo lugar, demonstra a participação cada vez maior dos forasteiros em
delitos, chegando a 100% dos crioulos réus com origem conhecida na década de 1880. O
incremento do tráfico interno aliado ao crescimento da produção cafeeira e,
consequentemente, das exigências da lavoura, foi importante fator para o aumento da
criminalidade escrava no município.
Além disso, segundo informações fornecidos nos depoimentos do autos criminais e
as encontradas nos registros do pagamento da meia sisa, 60% dos forasteiros que se
envolveram em crimes em todo o período analisado chegaram a Campinas na década de 1860.
Ou seja, chegaram ao município em um contexto de reações violentas contra as atitudes dos
feitores e de insatisfação crescente com o modo como a produção era conduzida e como o
tratamento para com os escravos se dava. Por outro lado, nenhum escravo cometeu crimes
contra o senhor nesse decênio.
Observar alguns crimes ocorridos na década de 1860 pode ajudar a refletir sobre
alguns desses dados.
Em 1864, o escravo Jerônimo fugiu da fazenda Morro Alto, pertencente a seu senhor
o comendador Francisco Teixeira Vilella.176
O cativo não foi muito longe, tendo se dirigido a
uma casa que servia de hospital aos escravos, e onde estava sua mãe, Gertrudes. Ali, foi
procurado e encontrado por Joaquim e Benedito, também escravos de Vilella, sendo o último
175
Os números inteiros se referem ao total de réus envolvidos nesse tipo de conflito e não ao número de autos
criminais. 176
Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 212, Documento 011.
89
também feitor. Jerônimo apresentou dois bilhetes de padrinhos para aqueles que vinham
capturá-lo para voltar à Fazenda, desse modo, seguiu o caminho sem ser algemado ou
amarrado. Todavia, quando passavam pela ponte do Rio Atibaia, já próximo à fazenda do
senhor, Jerônimo ainda tentou escapar mais uma vez, jogando-se nas águas do rio. Atrás dele
seguiu o feitor Benedito que, ao entrar em luta com o fugitivo, acabou sendo morto.
Na mesma década, ocorreu o assassinato do feitor Malaquias, história que contamos
algumas páginas atrás.177
A análise comparativa das duas histórias pode ajudar a divisar
algumas diferenças entre os crimes cometidos por escravos nascidos em Campinas e os
forasteiros na década de 1860.
No assassinato do feitor Malaquias prevaleceram os cativos forasteiros entre os réus,
apesar de, como já apontamos, a composição geral dos cativos que poderiam estar envolvidos
com o crime fosse bastante múltipla. Nesse caso, parece ter havido alguma premeditação do
crime. Em seu primeiro depoimento, modificado depois provavelmente por orientação do
curador no interrogatório diante do Júri, o réu Epifânio chegou a afirmar:
“que nas semanas retrasadas ele respondente de combinação com seus parceiros
resolveram a queixar-se ao administrador e com efeito lhe disseram que ele tirasse o
feitor porque ele os maltratava muito, e eles não podiam aturá-lo, o que vendo que
administrador não se importou com o que reclamaram ajustaram-se entre si para que
pegassem o feitor de uma vez na primeira ocasião em que ele bolisse [sic] com
algum deles”.178
Já no caso da morte do feitor escravo Benedito, percebe-se que Jerônimo cometeu o
crime sem premeditação, tendo como principal fim escapar do retorno à fazenda do senhor
Vilella. Por outro lado, o desfecho de sua fuga, com a morte do feitor Benedito, dá a entender
que não estava disposto a retornar ao poder do senhor, fazendo todo o possível para escapar.
Conseguimos identificar pelo menos 21 escravos que cometeram crimes em situação
semelhante (15,7%), isto é, quando estavam sendo capturados durante a fuga.179
Nenhum detalhe do processo permite saber o motivo pelo qual Jerônimo fugira da
fazenda, mas a presença de sua mãe doente na vizinhança pode indicar que ele não tivesse o
propósito de permanecer fugido, mas que estivesse realizando uma “fuga reivindicatória”, isto
é, tivesse a intenção de ter algum desejo atendido pelo senhor e usou a fuga como arma de
negociação.180
Outra evidência desse objetivo em sua fuga é o fato de que apresentou àqueles
que foram capturá-lo dois bilhetes de padrinhos, o que lhe garantiu um tratamento
177
Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,
1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 178
“Auto de perguntas a Epifânio” AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. p. 10. 179
Campinas, 1859-1886. AEL, CSP, ACI. 180
João J. Reis e Eduardo Silva. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 64.
90
diferenciado, sendo conduzido até à fazenda do senhor sem algemas ou cordas. Além disso,
ao fugir, o cativo não se acoitou na mata, mas sim foi à cidade, onde poderia ser rapidamente
encontrado e capturado. Após o conflito com Benedito, Jerônimo fugiu da cena do crime e, ao
invés de se afastar da propriedade do senhor, se apresentou no serviço onde estavam os outros
escravos, sendo então preso definitivamente.181
Jerônimo nascera em Campinas enquanto os cativos envolvidos no assassinato do
feitor Malaquias eram forasteiros. Epifânio era natural do Rio de Janeiro e estava em
Campinas há aproximadamente dois anos; Manuel Baiano, natural de Salvador, residia na
fazenda há seis anos e Romualdo era africano e residente há bastante tempo no município.182
Um detalhe crucial diferenciava os réus dos dois processos criminais: Jerônimo tinha
sua mãe na vizinhança. Pelo visto, a visita à progenitora parece ter sido pelo menos um dos
principais motivos para a fuga de Jerônimo, o que provavelmente não seria um objetivo tão
latente para os forasteiros, que sabiam da longa distância que os separava de seus familiares
na terra natal.
No ano em que Jerônimo fugiu da fazenda do comendador Vilella e acabou
assassinando aquele que o tentara capturar, as senzalas nas propriedades do senhor estavam
agitadas com a chegada de 113 novos escravos adquiridos no tráfico interno. É interessante
observar que em uma escravaria que crescia mais a cada dia, com constantes novas aquisições
de forasteiros por parte de um senhor bastante próspero, tenha sido um campineiro o cativo
envolvido em um processo criminal.
Outro escravo desse senhor, no entanto, foi indiciado em um processo criminal no
ano seguinte (1865) pelo roubo de dois cortes de calças de brim da loja de fazendas de
Antônio Pereira Cardoso.183
Reginaldo era pernambucano, solteiro, com 24 anos e havia sido
comprado por Vilella há oito anos.184
Outros três escravos forasteiros pertencentes a Vilella se envolveram em um
processo criminal ainda na década de 1860, com mais um crime contra uma pessoa livre.
Januário, Cândido e Leocádia foram acusados em 1867 pela tentativa de assassinato de dona
Maria Leopoldina de Godoy, descrita no processo como amante de Francisco Teixeira
Vilella.185
181
. “Interrogatório ao réu”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 011, p. 75. 182
“Interrogatório aos réus Epifânio, Romualdo e Manuel Baiano”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 217, Doc. 008. 183
Apelação Crime. Réu: Reginaldo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, 1865. AEL, CSP, ACI, Microfilme
CSP 168, Documento 007. 184
“Auto de qualificação do réu”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 168, Doc. 007. 185
Processo Crime. Réus: Januário, Cândido e Leocádia, escravos de Francisco Teixeira Vilella, 1867. AEL,
CSP, ACI, Microfilme CSP 215, Documento 004.
91
Durante o processo, surgiu a acusação de que o senhor teria articulado o plano de
matar a amante, com o serviço dos três escravos, e, em troca, teria lhes prometido a liberdade.
No entanto, o plano – se a suspeita fosse verdadeira – não saiu como esperado, nem para o
comendador, nem para os cativos: a amante sobreviveu, o caso amoroso veio a público e as
alforrias prometidas nunca foram concedidas. Leocádia adquiriu sua liberdade anos depois,
em 1873, mediante a compra por seu pecúlio.186
Verificando outra fonte documental, qual seja
o inventário post mortem de Francisco Teixeira Vilella, foram encontrados os outros dois
réus, Januário e Cândido, ainda escravos em 1873.187
Januário tinha 16 anos, filho de Anastácio e Marcolina, era natural de Mogi das
Cruzes e aprendiz de carpinteiro e mencionou os nomes de ambos os pais no processo.
Cândido tinha 25 anos, era solteiro, proveniente do Ceará e pedreiro de ofício, e declarou o
nome do pai no processo.188
Eles faziam parte de um grupo de 27 escravos que o comendador
Vilella havia comprado de Inocêncio Gomes da Silva, apenas três anos antes do crime.189
Nesse grupo, os cativos tiveram o valor médio de 1:480$000 rs. Não é possível saber a quanto
tempo os dois forasteiros haviam chegado ao município de Campinas antes dessa transação,
se faziam parte da escravaria de Inocêncio Gomes ou se este os adquirira exclusivamente para
venda. Mas podemos imaginar que já tivessem tido algum contato, mesmo que por poucos
dias antes de serem destinados às fazendas de Vilella. Companheiros no tráfico interno e
companheiros no crime, Cândido e Januário são exemplos de alianças entre cativos da região
(Província de São Paulo) e de longe (Ceará).
Leocádia fora comprada em meio a um enorme grupo de cativos adquiridos de uma
só vez pelo comendador e registrado nos livros da meia sisa em fevereiro de 1868.190
Esse
grupo continha 186 cativos e compunha uma comunidade escrava que existia há muitos anos
na fazenda de Capão Alto em Castro, no Paraná.191
O processo também aponta que Leocádia
fora destinada por Vilella a servir nos serviços domésticos na casa de dona Leopoldina, sendo
afastada de seus companheiros de Capão Alto, que foram levados para as fazendas do
comendador.192
186
Alforrias de escravos, Fichas de Peter Eisenberg, Pasta 2, ficha n°544. Fundo Peter Eisenberg,
AEL/UNICAMP, fonte citada por Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 186. 187
Inventário post mortem do Comendador Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1873. CMU, TJC, 1º Ofício,
Processo 4359, Caixa 257. 188
Autos de qualificação dos réus. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 215, Documento 004. 189
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1864. CMU, CRC. 190
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1868. CMU, CRC. 191
Uma análise bastante detalhada sobre a comunidade escrava de Capão Alto adquirida por Francisco Teixeira
Vilella pode ser conferida em Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., capítulo 3, p. 143-
193. 192
“Interrogatório a ré Leocádia”. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 215, Documento 004.
92
Assim, a escravaria de Francisco Teixeira Vilella é um exemplo bastante interessante
de uma realidade em que o grande volume de forasteiros não resultou em crimes contra o
senhor. Benedito, apesar de feitor e, por isso, poder ser considerado uma autoridade instituída
pelo senhor, era escravo e, portanto, seu assassinato não foi julgado nos parâmetros da lei de
10 de junho de 1835.
Os anos 1860 foram especialmente conturbados para a escravaria de Francisco
Teixeira Vilella: havia muitos novos escravos adquiridos no tráfico interno, cinco estavam
envolvidos em processos criminais (Jerônimo, Reginaldo, Januário, Cândido e Leocádia), e
um foi assassinado pelo parceiro (o feitor Benedito).
Na década de 1870, todos os crimes contra senhores (18) foram homicídios,
respondendo por 28,6% de todo os homicídios e tentativas de homicídio do período. Somente
dois escravos de Campinas (12,5%) cometeram crimes contra o senhor e os dois foram na
década de 1870, respondendo por 11,1% desses delitos, enquanto os forasteiros respondem
por 77,8%.
Também todos os delitos cometidos contra feitor, administrador ou locador de
serviços (9) foram homicídios ou tentativas de homicídio (14,3%), nenhum deles sendo
cometido por cativo nascido em Campinas.
Por outro lado, os conflitos entre escravos que terminaram na morte de um deles
foram em sua maioria cometidos por réus provenientes de Campinas, respondendo por 42,9%.
E apenas um dos crimes entre escravos ocorreu contra escravo de outro senhor (11,1%).
A década de 1870 foi especialmente agitada para a escravidão no Império. Por um
lado, o tráfico interno vivia um período de efervescência, sendo que 49,7% de todos os
cativos negociados em Campinas o foram entre 1870 e 1879.193
Por outro, estava em vigência
uma legislação que garantia certos direitos aos cativos, como a não separação das famílias em
transações de venda e partilha194
e a possibilidade de compra de alforria com o pecúlio.195
193
Registros da Meia Sisa de escravos, 1870-1879. CMU, CRC. Cabe lembrar que, entre os livros disponíveis no
Centro de Memória da Unicamp, estão faltando os correspondentes aos anos fiscais de 1871-74 e 1876-77. 194
Decreto nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, artigo 2º. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1695-15-setembro-1869-552474-
publicacaooriginal-69771-pl.html (consultado em 15/08/2016). Confirmado pela Lei 2.040, de 28 de setembro de
1871, artigo 7º. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em
10/08/2016). 195
Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 4º. Disponível
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 10/08/2016)
93
Além disso, os cativos que chegaram ao município paulista nesse período,196
que
respondem por 29,4% dos réus com informação de compra, encontraram um ambiente repleto
de forasteiros, haja vista a grande quantidade de novos escravos que vinham adentrando o
município desde os anos 1860, como observado no capítulo precedente.
Essas peculiaridades da década de 1870 talvez tenham sido cruciais para o grande
número de crimes coletivos que ocorreu no decênio, respondendo por 54,2% dos cativos
envolvidos em crimes coletivos entre 1860 e 1888. Além disso, esse decênio também foi o
período em que mais se registraram crimes de escravos, com uma proporção de 53% de todos
os réus escravos da segunda metade do século XIX.
Vamos retornar a um caso bastante interessante que aconteceu na década de 1870 e
que põe em evidência as implicações da efervescência do tráfico interno nesse período: o
assassinato do negociante Marinho.197
Comecemos retomando alguns detalhes da história para refrescar a memória do
leitor. Antônio Teixeira Marinho era negociante de escravos e trazia do Rio de Janeiro um
grande comboio de cativos consignados a José Júlio de Barros, para venda em Campinas. Na
manhã seguinte à sua chegada à cidade, Marinho foi morto pelos escravos a golpes de
machado. Três foram os acusados do crime: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme.
Um detalhe interessante presente na denúncia do promotor é a indicação de que o
objetivo último do crime era pegar os papéis de Marinho que comprovavam a propriedade dos
cativos e inutilizá-los, a fim de conferir liberdade aos escravos.198
Esse processo é singular no que diz respeito à luta escrava contra o tráfico interno.
No comboio estavam presentes cativos de diversas localidades do Império: Maranhão, Bahia,
Sergipe, Rio de Janeiro e Ceará; e consta que pelo menos um deles teria resistido ao embarque
no Rio de Janeiro e acabara sendo metido no navio à força.199
Alguns pontos sobre a experiência do tráfico na vida desses cativos são elucidados
pelo cruzamento das informações do processo com os registros de meia-sisa. Sabe-se que,
nascidos em diversas regiões do Império, esses cativos foram todos levados ao Rio de Janeiro,
mas a data em que aí chegaram é incerta. Do Rio foram enviados a Campinas, onde José Júlio
196
Na realidade, não há como saber se esses cativos estavam chegando ao município nessas datas ou se já
estavam em Campinas quando foram comprados pelos senhores que temos registrado nos livros da meia sisa,
mas, para critérios de análise, consideraremos como a data de chegada. 197
Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme, escravos de José Júlio de Barros, Campinas,
1874. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 231, Documento 004. 198
“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 199
“Auto de perguntas a Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.
94
de Barros já havia ajustado sua venda para seis compradores diferentes.200
O único escravo
que parece ter permanecido em poder do próprio José Júlio de Barros foi Francisco,
condenado pelo assassinato de Marinho.
Não é possível saber com certeza se os cativos oriundos do mesmo local se
conheciam antes do embarque no Rio de Janeiro, ou se naquela cidade haviam passado algum
tempo juntos. No entanto, é possível notar as relações que tiveram ao menos enquanto parte
desse grupo trazido a Campinas, apesar de sempre tentarem afirmar pouco ou nenhum contato
com os acusados do assassinato quando prestaram informações à justiça, estratégia clara para
evitar levantar suspeitas sobre si. Assim, por exemplo, apesar de dizer que “não gostava muito
de reunir-se [sic] com os ditos seus parceiros”,201
Francisco estava presente quando
Guilherme dizia aos companheiros que não aceitaria palmatória, ainda no Rio de Janeiro.202
O processo permite perceber as diferentes expectativas que os cativos do comboio
tinham com relação ao cativeiro. Francisco, por exemplo, julgava-se insultado por Marinho
ter lhe dado uns “bofetões” e em seu espírito “nutria ideias de alforria”.203
Ele também teria
dito a Antônio Teixeira Marinho que “sendo comprado para vender não devia apanhar”.204
Guilherme declarara a seus parceiros ainda no Rio de Janeiro “que aqui não seria vendido, por
que ao sair à rua havia de fazer um espalhafato tal que o tornasse invendável”.205
Nos interrogatórios, os réus negaram veementemente qualquer participação no crime
e também negaram que tivessem falado tais palavras ou nutrido alguma queixa contra
Marinho. Pelo contrário, Francisco disse que Marinho os tratava bem, dando “cama e café” e
que sempre esteve resignado e de boa vontade o acompanhava.206
Tanto Antônio quanto
Francisco alegaram só ter visto Marinho morto ao acordar e que não sabiam de nenhuma
combinação para o assassinato.
Este é um dos poucos casos presentes na documentação em que os cativos não
confessaram o crime. Este talvez seja um detalhe importante relacionado à experiência do
tráfico. Os cativos recém-chegados à cidade não tinham com quem se apadrinhar e não
sabiam se teriam algum auxilio da Justiça por estas bandas; dessa forma, estavam se
precavendo ao negar o crime até o fim, não estando seguros do destino que os aguardava caso
fossem condenados. Por outro lado, os cativos que prestaram informações à justiça fizeram
200
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1874-75. CMU, CRC. 201
“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 202
“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 203
“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 204
“Auto de perguntas ao informante Antônio”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 205
“Denúncia do promotor público”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 206
“Auto de perguntas a Francisco”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004.
95
várias declarações que incriminavam Antônio e Francisco. Este último, mesmo negando ter
sequer visto o assassinato, disse ter ouvido uns dos parceiros afirmando que Antônio tinha
cometido o crime.
Ainda assim, ambos foram condenados no artigo 193 do Código Criminal, que previa
prisão com trabalhos forçados, mas as penas foram substituídas por açoites e trazer ferro ao
pescoço por três anos: Francisco recebeu a pena de 500 açoites e Antônio, por ter sido
considerado menor de 21 anos, recebeu uma pena um pouco menor, de 400 açoites.207
Após o processo, as vendas dos cativos foram efetivadas e José Júlio de Barros
permaneceu com Francisco em seu poder.208
Todavia, perdemos Antônio de vista, uma vez
que não encontramos qualquer registro de compra e venda a seu respeito.209
Alguns dos cativos do comboio não conseguiram permanecer longe de problemas por
muito tempo. Apenas quatro anos depois, Agostinho, Antônio, José e Lázaro tiveram que ir à
justiça prestar informações sobre a morte do feitor Joaquim Bento da Gama, em 1879, na
fazenda de José Maria da Costa Wilk. Este é o caso, já citado, que condenou o pernambucano
Vitorino, mas foi retomado em Inquérito Policial posteriormente porque ele alegou ter sido
convencido pelo senhor a assumir o crime sozinho e livrar os companheiros. Como vimos, os
outros cativos negaram qualquer envolvimento com o assassinato do feitor. Antônio, que
muito provavelmente estava no comboio de escravos trazido pelo negociante assassinado
Teixeira Marinho,210
ainda afirmou não ter almoçado com os parceiros na mesma gamela,
quando teria sido combinado o crime, mais uma vez tentando se afastar da suspeita de
envolvimento no delito.211
A última década da escravidão teve menor fluxo de cativos no tráfico interno e
também uma diminuição significativa no número de escravos indiciados por crimes. Apenas
12,7% de todos os réus escravos em Campinas na segunda metade do século XIX cometeram
crimes na década de 1880, e nenhum deles era nascido no próprio município, gerando uma
proporção de 100% de forasteiros entre os réus com localidade de origem informada. Nesse
207
“Sentença do Juiz de Direito”, 19/09/1874. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 208
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1874-75. CMU, CRC. 209
Havia pelo menos dois escravos de nome Antônio no comboio: o que foi indiciado pelo crime era
denominado “Antônio baiano” e o outro, que prestou informações no processo, declarou ser natural do Ceará. O
último foi comprado por José Maria da Costa Wilk, cf.: CMU, CRC, Registros da Meia Sisa de escravos da
cidade de Campinas, 1874. 210
“Auto de perguntas ao informante Antônio”. Processo Crime. Réus: Antônio Baiano, Francisco e Guilherme,
escravos de José Júlio de Barros, Campinas, 1874. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 231, Doc. 004. 211
“Auto de perguntas a Antônio”. Inquérito Policial. Réu: Francisco, escravo de José Maria da Costa Wilk,
Campinas, 1879. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 296, Doc. 014.
96
decênio há também um maior percentual de cativos que se envolveram em crimes sem
cúmplices indiciados, isto é, os que cometeram crimes sozinhos somam 76,5%.212
Somente um crime foi julgado nos parâmetros da lei de 10 de junho de 1835 nesse
período. O réu era o forasteiro Julião, proveniente do Rio de Janeiro.213
Ele residia em
Sorocaba com seu senhor, o negociante Feliciano José de Camargo, e veio com ele a
Campinas para vender animais. Julião distraiu o senhor, atacou-o com uma faca e, ferindo-o,
roubou-lhe uma bolsa de dinheiro com cerca de cinco contos de réis e fugiu.
Seu depoimento traz informações bastante interessantes sobre sua fuga:
“logo depois do crime fugira para não ser preso, em direção à estrada de São Paulo,
com intenção de iludir que para aqueles lados seguia, até que, com tensão firme de
seguir a estrada de ferro Mogiana, chegara àquele cafezal na dita estrada de São
Paulo, onde deixara a bolsa, ficando unicamente com moeda corrente e à noite, mais
ou menos às 7 horas deixou esse cafezal e atravessando os campos adjacentes à
cidade, foi ter à estrada de rodagem, no Taquaral, e por ela seguiu até que chegara
perto da estação das Anhumas, aonde pernoitara no mato; que no primeiro trem
embarcara nessa estação, comprando a respectiva passagem, para Ribeirão Preto
aonde chegara no dia imediato ao acontecimento do crime nesta cidade, que tendo
pernoitado em Ribeirão Preto seguira ao romper do dia, e a pé, com destino à cidade
de Franca, onde chegara depois de dois ou três dias de viagem”. 214
Julião era tropeiro e seu conhecimento da região deve ter sido obtido através de
outras idas e vindas que fizera com o senhor negociante. Assim, pode ser que estivesse
esperando a oportunidade certa para aproveitar uma viagem com o senhor para essas bandas e
assim realizar a fuga, levando consigo uma boa quantia em dinheiro.
Foi também na última década da escravidão que os cativos de Antônio de Pontes
Barbosa armaram o plano de revolta que contamos anteriormente.215
O momento em que a
insurreição foi planejada não se deu por acaso. Acreditavam os cativos que “os negros
estavam todos forros e os senhores injustamente comendo o tempo deles”.216
Assim, na
expectativa de uma abolição eminente no Império, os escravos do Bairro Jaguari, que
concentrava parte significativa da escravaria de Campinas, pretendiam se levantar todos em
nome da liberdade.
Em 1882, ano em que os planos da revolta foram logrados e o processo criminal teve
início, a vigência da Lei do Ventre Livre, por exemplo, já havia completado dez anos; além
disso, o tráfico interprovincial de cativos tinha sido interditado pelo imposto provincial de
212
Campinas, 1880-1886. AEL, CSP, ACI. 213
Processo Crime. Réu: Julião, ex-escravo de Feliciano José de Camargo, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 258, Documento 012. 214
“Interrogatório ao réu Julião”. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 258, Documento 012. 215
Processo Crime. Réus: Severo, Benedito e Jesuíno, escravos de Luiz Antônio de Pontes Barbosa, e Felipe
Santiago (liberto), Campinas, 1883. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 162, Documento 004. 216
“Interrogatório do escravo Severo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 162, Doc. 004.
97
dois contos de réis para a importação de novos escravos.217
Como foi possível perceber
através dos registros do pagamento da meia sisa, a fazenda do senhor Antônio de Pontes
Barbosa tinha uma senzala bastante múltipla no que diz respeito à origem dos cativos e ao
tempo que residiam na propriedade.
Além do tempo de moradia, no entanto, alguns acontecimentos nas fazendas e nas
histórias de vida dos cativos podem ter sido importantes para as motivações dos crimes
analisados até aqui.
Na fazenda de Felipe Antônio Franco, onde o campineiro Severiano acabou
assassinando o parceiro maranhense Honorato, supostamente por engano,218
estava
acontecendo a partilha dos bens da senhora, dona Ana Rufina de Almeida, com a abertura de
seu testamento e inventário no mesmo ano em que aconteceu o crime.219
As incertezas e
insegurança com relação ao futuro da escravaria com a morte da senhora deviam fazer parte
do dia-a-dia dos cativos naquele ano, deixando a senzala provavelmente mais tensa do que de
costume. Além disso, a descoberta de que apenas as filhas de Honorato seriam beneficiadas
pelo testamento da senhora com a alforria pode ter causado algum constrangimento no
restante da escravaria.220
Também no sítio de dona Teresa Maria de Jesus Paula, onde o feitor Malaquias foi
assassinado,221
um inventário estava sendo julgado em período próximo ao momento em que
aconteceu o crime.222
José Francisco de Paula, esposo da senhora, falecera em 1865, e os
registros de meia sisa revelam que vários escravos da herança foram vendidos entre 1866 e
1869.223
Logo, em 1868, ano em que os cativos Epifânio, Romualdo e Manuel Baiano foram
indiciados pelo assassinato do feitor, a escravaria de dona Teresa Maria estava provavelmente
bastante inquieta com a possibilidade de saber quem seria o próximo a ser vendido. Não é
possível saber ao certo se a ansiedade em torno da partilha dos bens do senhor agiu de forma
determinante sobre as decisões cativas que levaram ao crime, mas, certamente, deixou a
senzala mais tensa e propensa a conflitos, uma vez que a ameaça de venda e separação pairava
217
José H. F. Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo tevendê…”: escravidão, tráfico e negócios no
Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza: SECULT/ CE, 2011, p. 249. 218
Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 239, Documento 002. 219
Inventário post mortem de Ana Rufina de Almeida, Campinas, 1875; CMU, TJC, 3º Of., P. 7256, Cx. 338.
Testamento de Dona Ana Rufina. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160. Citado em Joice F. de S. Oliveira.
Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit. 220
Testamento de Dona Ana Rufina. CMU, TJC, Livro de Testamento n° 160. Citado em Joice F. de S. Oliveira.
Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 72-3. 221
Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,
1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 222
Inventário post mortem de José Francisco de Paula, Campinas, 1865. CMU, TJC, 3º Of., P. 7032, Cx. 308. 223
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866-69. CMU, CRC.
98
sobre ela. Dois dos cativos que prestaram depoimento no processo, Eleutério e Eleuterinho,
foram vendidos nessa leva, mas não para muito longe, já que foram adquiridos pela própria
senhora dona Teresa Maria de Jesus Paula.224
Além deles, a senhora arrematou da herança de
seu falecido esposo os escravos José e Florermina, todos os quatro em novembro de 1866.225
Como vimos, outra propriedade bastante agitada por movimentações no tráfico de
escravos eram as fazendas do comendador Francisco Teixeira Vilella. Em 1864, ano em que
Jerônimo acabou causando a morte do feitor escravo Benedito em sua fuga,226
pelo menos 71
novos cativos adentraram as fazendas do comendador.227
Por outro lado, dois cativos foram
vendidos pelo senhor apenas um mês antes da fuga de Jerônimo. Não é possível sabermos
qual a relação que Jerônimo tinha com André e Manuel, os escravos vendidos, mas podemos
conjecturar que a venda deles pode ter representado uma ameaça também para ele.
Um acontecimento mais diretamente relacionado à vida de Jerônimo, porém, foi
certamente importante para sua fuga e os fatos que ocorreram logo depois: sua mãe estava
internada em um hospital na cidade.228
Com as altas taxas de mortalidade escrava do
município, não é de estranhar que o filho tenha ficado preocupado com a mãe e tenha ido
visitá-la, mesmo sem permissão do senhor.
*
Ao fazer um balanço geral do perfil dos escravos indiciados como réus na segunda
metade do século XIX e dos tipos de crimes que cometeram, verificamos algumas diferenças
importantes entre aqueles que haviam nascido no município de Campinas e aqueles que aqui
chegaram pelo tráfico interno.
Apesar de a maior parte dos réus forasteiros serem solteiros e não apresentar relações
familiares na escravaria onde residiam em Campinas, também foi entre eles que encontramos
a maior proporção de trabalhadores domésticos ou especializados, o que demonstra que
conseguiram desfrutar de algum privilégio nas novas propriedades, mesmo que não tenham
criado laços familiares através do casamento, por exemplo. Além disso, os escravos que mais
cometeram crimes contra parceiros de cativeiro eram nascidos em Campinas, o que pode
224
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 225
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 226
Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,
Microf. CSP 212, Doc. 011. 227
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1866. CMU, CRC. 228
“Auto de perguntas a Jerônimo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 011.
99
denotar que, apesar de terem se envolvido menos, relativamente, em crimes contra senhores e
feitores, ser nascido no município não os livrou de conflitos dentro da senzala.
Por outro lado, os crimes contra senhores e seus prepostos, feitores e administradores
tiveram uma proporção bem maior entre os forasteiros. Esses crimes certamente estavam
ligados à frustração de expectativas de cativeiro trazidas de experiências anteriores ao tráfico
e às tentativas de impor limites ao sistema disciplinar das fazendas campineiras. Essa
motivação já foi bastante explorada por Maria Helena Machado para os crimes em Campinas
de modo geral, mas aqui verificamos que a origem dos cativos teve grande relevância para sua
generalização.
Mas a conclusão mais importante é que a predominância de cativos forasteiros entre
os réus escravos em Campinas nesse período não pode ser explicada apenas pela realidade
demográfica do município,229
nem por uma propensão ao crime devido ao desenraizamento
causado pelo tráfico.230
A cumplicidade entre forasteiros e campineiros na execução de crimes coletivos e,
sobretudo, as posições de destaque que os provenientes do tráfico interno tiveram em alguns
desses delitos demonstram as múltiplas possibilidades de socialização desses cativos nas
comunidades pré-existentes, apesar do desenraizamento. Se as fontes não permitiram
encontrar uma integração efetiva de alguns forasteiros nas senzalas, com a construção de
laços conjugais ou o exercício de ocupações especializadas, foi possível verificar pelo menos
a existência de alguma expectativa nesse sentido, uma vez que cometeram crimes na
esperança de poder contar com o apoio dos parceiros na ocultação dos delitos ou nos
depoimentos prestados à Justiça.231
Mesmo nos crimes cometidos individualmente, os forasteiros contaram com certo
apoio de outros cativos da propriedade, como Vitalino, que não impediu Francisco de agredir
o locador José de Sousa Teixeira no Hotel do Comércio e prestou informações que eram
favoráveis ao réu no processo criminal.232
229
Maria H. P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p. 51. 230
Richard Graham. “Nos tumbeiros mais uma vez? O Comércio Interprovincial de escravos no Brasil”, Revista
Afro-Ásia, Salvador, UFBA, nº 27, 2002, p. 153. 231
Maria Helena Machado e depois Maíra Chinelatto chegaram à conclusão semelhante, todavia, consideraram
apenas a origem ou o tempo de moradia dos criminosos para afirmar que estavam adaptados às escravarias de
Campinas onde cometeram crimes. Maria H. P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 25; e Maíra
Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 122. 232
“Auto de perguntas ao ofendido José de Sousa Teixeira” e “Auto de perguntas a Vitalino”. Processo Crime.
Réu: Francisco, escravo de Antônio Jesuíno de Oliveira Barreto, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme
CSP 229, Documento 003.
100
Mesmo no caso dos forasteiros que foram vitimados por crimes no município vemos
que não eram indivíduos que viviam isolados nas senzalas. Pelo contrário, número
significativo deles tinha alguma ascendência sobre a comunidade escrava, com ocupações
especializadas ou administrativas e relações familiares estabelecidas.
Outra observação importante diz respeito ao momento em que esses crimes
ocorreram. Uma proporção significativa dos crimes cometidos por forasteiros aconteceram
pouco tempo após sua chegada à Campinas (vide tabela 2.10), o que demonstra a não
adaptação ao novo cativeiro, e se confirma pela verificação de conflitos que aconteceram
instantes depois da aplicação de castigos considerados excessivos ou injustos.233
Por outro lado, acontecimentos internos à trajetória de vida dos cativos e à história
das escravarias em Campinas também foram relevantes para a execução de crimes. Podemos
relembrar, como exemplos, a morte do senhor,234
a chegada de um novo feitor,235
a venda de
companheiros no comércio local,236
problemas relacionados à família do cativo,237
expectativas com relação à abolição da escravatura,238
entre outros, como acontecimentos que
podem ter motivado alguns crimes. Além disso, como é possível observar na tabela 2.10, e foi
verificado também em algumas das histórias contadas até aqui, os tempos de moradia dos
escravos envolvidos em conflitos variou bastante. Em alguns casos, houve inclusive a
cumplicidade entre escravos recém-chegados e outros residentes em Campinas há muitos
anos.
Maria Helena Machado analisou o tempo de moradia informado pelos cativos réus
em seus interrogatórios e concluiu que os forasteiros envolvidos em crimes não eram recém-
chegados, mas sim residentes há mais de seis anos nas escravarias. A busca nominal dos réus
entre os registros da meia sisa possibilitou que encontrássemos essa informação para os
sujeitos que não informaram nos processos criminais. Com esses dados, chegamos a uma
conclusão semelhante à de Machado, porém com uma ressalva. Ainda que os cativos
233
Por exemplo, o caso já citado de Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade. Cf.: AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 259, Documento 006. Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade,
Campinas, 1886. 234
Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,
1868. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. E Processo Crime. Réu: Severiano, escravo de
Felipe Antônio Franco, Campinas, 1876. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 239, Documento 002. 235
Processo Crime. Réus: Manuel, Romualdo e Epifânio, escravos de Teresa Maria de Jesus Paula, Campinas,
1868; AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 217, Documento 008. 236
Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 212, Documento 011. 237
Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 212, Documento 011. 238
Processo Crime. Réu: Severo, Benedito e Jesuíno, escravos de Luiz Antônio de Pontes Barbosa, e Felipe
Santiago (liberto), Campinas, 1883. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 162, Documento 004.
101
forasteiros que cometeram crimes depois de seis anos nas propriedades representem quase
60% da amostra, não podemos desconsiderar os 41,7% que o fizeram nos cinco primeiros
anos em poder do novo senhor (duas primeiras linhas da tabela 2.10), representando,
provavelmente, reações ao tráfico interno.
Tabela 10 – Tempo de moradia dos escravos nas fazendas onde cometeram
crimes, por origem (Campinas, 1860-1886).
Tempo de moradia (TM)
Campineiros Forasteiros Total geral
N % N % N %
Menos de um ano - - 06 12,5 06 11,1
1 a 5 anos 01 16,7 14 29,2 15 27,8
6 a 10 anos 03 50,0 15 31,2 18 33,3
11 a 15 anos 01 16,7 06 12,5 07 13,0
16 a 20 anos 01 16,7 05 10,4 06 11,1
Mais de 20 anos - - 02 4,2 02 3,7
Total com origem e tempo de
moradia informado 06 100 48 100 54 100
102
CAPÍTULO 3 – Forasteiros fugitivos
3.1. As fugas e os fugitivos
Joana era uma escrava de cor fusca, nascida do casamento entre uma africana e um
índio, na província do Maranhão, onde passou toda a vida, no engenho de açúcar do senhor
Tavares.1 Ela teve pelo menos três filhos no cativeiro: Gabriel e os gêmeos Carlos e Urbano.
Uma noite, mãe e filhos dormiam em sua “casinha”, quando o senhor trouxe o feitor e um
traficante de escravos que levou os dois filhos gêmeos de Joana, de apenas oito anos de idade,
para o Rio de Janeiro.2
Após a separação dos filhos pequenos, Joana passou a se comportar como “douda”,
irritando bastante o feitor com suas contínuas fugas. Em uma das tentativas de escapar, ela
encontrou uma senhora que a ajudou a se esconder do feitor enfurecido e comprou a liberdade
de seu filho Gabriel, que a seguira na fuga. Contudo, Joana faleceu na mesma noite em que
foi acolhida na casa dessa benfeitora, debilitada pela dor do afastamento dos filhos menores.3
A história dessa mãe cativa é narrada em um conto literário publicado em 1887, pela
escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, com o título A escrava. Não é por acaso que a
autora da narrativa tenha escolhido contar a história de Joana a partir de seu ato de fuga. O
local em que ela havia crescido, no termo de Guimarães, era uma região com grande número
1 Maria Firmina dos Reis. “A escrava”. In: Úrsula. A escrava. Florianópolis, Mulheres; Belo Horizonte, PUC-
Minas, 2004, p. 254. 2 Houve uma importante participação do Maranhão no tráfico interprovincial de escravos, em especial devido à
forte concorrência internacional na produção de algodão, que deu origem a períodos de crise econômica,
obrigando os fazendeiros a vender grande parte de seus cativos para a região cafeeira como meio de saldar suas
dívidas. A exportação de cativos chegou a 1.361 indivíduos só no ano de 1857, perfazendo um total de 11.132
escravos saídos da província no período de 1846 a 1877. Rafael da Cunha Scheffer observou o predomínio de
escravos maranhenses (10%) entre os negociados para Campinas na segunda metade do século, perdendo apenas
para a província baiana (17%). Cf.: Rafael da Cunha Scheffer. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste,
1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado em
História), Unicamp, Campinas, 2012, p. 35, 127. Sobre a importância do Maranhão como fonte exportadora de
cativos para o Sudeste cafeeiro, ver também Robert Slenes. The demography and economics of Brazilian
slavery.Tese (Doutorado em História), Stanford University, Stanford, 1976, tabela 4-4, p. 192; Robert Slenes,
“The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies, slave experience, and the politics of a
peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal slave trades in the Americas, New
Haven e Londres, Yale University Press, 2004, p. 337; Josenildo de Jesus Pereira. As representações da
escravidão na imprensa jornalística do Maranhão na década de 1880. Tese (Doutorado em História), USP, São
Paulo, 2006, p. 11. Cristiane Pinheiro Santos Jacinto. Laços & Enlaces: relações de intimidade de sujeitos
escravizados. São Luís - Século XIX. São Luís, Editora da UFMA, 2008, p. 137. 3 Maria Firmina dos Reis. “A escrava”, op. cit., p. 243-262.
103
de fazendas, na qual vários mocambos se formaram e revoltas cativas aconteceram. O caso
mais célebre do período colonial é o de um quilombo que existiu no termo de Guimarães, em
1811.4
A história de Joana ilustra uma realidade vivida por muitos homens e mulheres
escravos na segunda metade do Oitocentos, isto é, a separação da família pelo tráfico
interprovincial de escravos. Assim como essa experiência motivou a mãe a fugir, um fluxo
crescente de fugas em diversas regiões do Império ocorreu ao longo das últimas décadas do
período escravista, o que pode ter sido uma resposta ao tráfico interno de cativos.5
O estudo das evasões cativas nem sempre considerou seus múltiplos significados e sua
relevância dentro dos atos de resistência cativa, afinal, pensava-se, escravos fogem,
obviamente, porque não querem ser escravos. Todavia, pesquisas mais recentes,
principalmente no Caribe e Estados Unidos, passaram a analisar essas fugas de outra forma,
chamando a atenção, por exemplo, para a importância da família escrava nos contextos de
fuga.6 Como a história da mãe Joana deixa entrever, não era tão somente a negação da
dominação escravista, resumida em trabalhos ou castigos excessivos, que induzia à evasão,
mas sim atitudes senhoriais consideradas como desrespeito às mínimas margens de autonomia
construídas em cativeiro, como a união da família. Não é à toa que a narradora da história,
uma senhora da alta sociedade maranhense, classifica as atitudes de Joana como próprias de
uma “douda”, uma vez que, após o embarque dos filhos para o Sudeste, passou a se comportar
de maneira totalmente diferente, isto é, “com rebeldia”.
Neste capítulo vamos explorar as fugas escravas ocorridas na segunda metade do
século XIX em Campinas, buscando compreender quais as possíveis relações entre o
incremento do tráfico interno de escravos nesse período e a fuga como ato de resistência
cativa, por meio da análise de 610 anúncios publicados na Gazeta de Campinas, entre 1869 e
1884, que noticiam a fuga de 574 cativos.7 Apesar de não terem sido computadas as evasões
4Josenildo de Jesus Pereira. As representações da escravidão..., op. cit., p. 73. Outro exemplo que causou pânico
aos escravocratas locais foi uma grande insurreição escrava que aconteceu na vila de Viana, em 1867. Cf.:
MatthiasRöring Assunção. “Quilombos Maranhenses”. In: João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (org.).
Liberdade por um Fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 450-3. 5 Maria de Fátima Novaes Pires. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima (1860-
1920). São Paulo, Annablume, 2010, p. 64-5. Para um estudo mais detalhado do aumento das fugas no Maranhão
na década de 1880, ver Flávio José Silva Soares. Escravidão no Maranhão do século XIX: situações e
características das fugas nos anos oitenta. Monografia (Graduação em História), Universidade Federal do
Maranhão, São Luís, 1988. 6 Uma descrição bastante explicativa da historiografia a respeito das fugas cativas pode ser visto em José Maia
Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e fugitivos no Grão Pará (1840-1888).
Dissertação (Mestrado em História), Unicamp, Campinas, 2000, p. 1-9. 7 O número de publicações que ultrapassa o número de fugitivos corresponde às reincidências de fugas. Pelo
menos 36 cativos fugiram mais de uma vez no período analisado. Na verdade, há 836 anúncios de fuga na
104
anunciadas em outros periódicos, ou as não anunciadas pelos senhores, a amostragem
construída a partir dessa série documental é suficiente para que se conheça o perfil desses
fugitivos. Iniciamos observando a quantidade de escravos fugidos e seus locais de origem.
Depois buscaremos analisar comparativamente quem eram os forasteiros e os campineiros
fugitivos, de modo a entender quais características aproximavam ou diferenciavam esses
sujeitos. Para isso, arrolamos informações sobre a compra do cativo pelo senhor que publicou
o anúncio, além do sexo, estado conjugal e ocupação dos escravos fugidos, e o possível
destino da fuga.
Vejamos, para começar, a proporção de cativos que fugiram nas décadas cobertas pela
pesquisa (1860 a 1888),8 bem como suas origens.
9
Gazeta de Campinas, todavia, 226 deles foram publicados por senhores não residentes em Campinas, portanto
não foram computados nas tabelas deste capítulo. Foram publicados na Gazeta anúncios de fugas de escravos
residentes, principalmente, em Amparo, Limeira, Jundiaí e Rio Claro. Também houve anúncios de Monte Mor,
Santa Bárbara, Mogi Mirim, São Carlos do Pinhal (São Carlos), Itu, Sorocaba, Constituição (Piracicaba), Santos,
Santa Rita do Passa Quatro, São Paulo, Casa Branca, Jaguari, Uberaba, Brotas, Taubaté, Itatiba, Pirassununga,
Araras, Pedreira, Ribeirão Preto, Guaratinguetá, São Pedro de Piracicaba (São Pedro), Jaú, Bragança (Bragança
Paulista), São João da Boa Vista, Penha do Rio do Peixe (Itapira). E ainda Barra Mansa, Vassouras, Niterói e
Valença, na província do Rio de Janeiro, e Ouro Fino e Mato Dentro (Conceição do Mato Dentro), na província
de Minas Gerais. 8 Apesar de os anúncios de fugas escravas na Gazeta de Campinas começarem a ser publicados em 1869 e
pararem em 1884, o cruzamento com as outras fontes documentais (autos criminais, ações de liberdade e
registros da meia sisa) possibilitaram localizar registros desses sujeitos desde pelo menos 1860 até 1888. 9 Os dados mostrados a seguir, bem como os constantes das tabelas e gráficos deste capítulo foram pesquisados
nas seguintes fontes: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. Centro de Memória
da Unicamp (CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC); Ações de Liberdade, Campinas,
1866-1888 Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de Justiça de Campinas (TJC); Seção Processos
Crimes do Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos
Crimes em São Paulo (CSP); Gazeta de Campinas, 1869-1884.
105
A maior parte dos anúncios publicados na Gazeta de Campinas se concentra na década
de 1870, com uma proporção de 86,2% dos escravos fugidos, seguida da década de 1880, com
12,5% dos fugitivos. Essa proporção pode ser explicada pelo próprio período de publicação
dos anúncios, uma vez que ele se inicia no fim da década de 1860 (em 1869, ano de fundação
da Gazeta) e termina na primeira metade da década de 1880 (em janeiro de 1884).
Tabela 11 – Escravos em anúncios de fugas, por década e origem (Campinas,
1860-1888).
Década Número total de
escravos Campineiros Forasteiros
Crioulos em
geral10
Africanos Origem não
informada
1860 07 - 03 05 - 02
1870 495 09 251 288 19 188
1880 72 01 33 35 01 36
Total 574 10 287 328 20 226
10
Nesta coluna estão inclusos campineiros, forasteiros e outros crioulos cuja província ou município de origem
dentro do Império não foi identificado.
1%
86%
13%
1860 1870 1880
Gráfico 4 – Escravos em anúncios de fugas: distribuição percentual por
décadas
106
Gráfico 5 – Origem dos escravos crioulos em anúncios de fugas,
por década.
Com relação à origem, assim como observado anteriormente nos autos criminais, nos
anúncios de fuga se sobressaem os fugitivos forasteiros, ou seja, crioulos nascidos fora do
município de Campinas, correspondendo a 50% dos fugitivos, enquanto os campineiros
respondem por apenas 1,7% deles. A diferença é ainda mais enfática quando consideramos
somente os cativos cuja origem é informada. A proporção então é de 96,6% de forasteiros,
contra 3,4% de campineiros entre os crioulos fugitivos para os quais temos informação da
localidade de origem (município ou província), como se pode ver pela Tabela 12, abaixo. Essa
tabela também traz com mais detalhes os locais de origem desses sujeitos, e nota-se que
66,7% dos crioulos que fugiram nesse período haviam chegado ao município de Campinas
por meio do tráfico inter-regional.
0,0% 3,1% 2,9%
60,0%
87,2% 94,3%
40,0%
9,7% 2,9%
1860 1870 1880
Campineiros Forasteiros Localidade de origem não informada
107
Tabela 12 – Localidade de origem dos escravos crioulos em anúncios de fuga
(Campinas, 1860-1888).
Localidade de origem11
Número de
escravos
% sobre o total de crioulos com
origem informada
Campinas 10 3,4
Província de São Paulo12
48 16,2
Região Sudeste13
41 13,8
Outras regiões 198 66,7
Total de crioulos 297 100
Na tabela 13, podemos ver que, mesmo entre os cativos que haviam nascido em
Campinas, a venda foi uma experiência que os aproximava da situação dos forasteiros. Apesar
de considerarmos que, de modo geral, todo cativo proveniente de outras localidades do
Império havia passado por transações de compra e venda,14
essa informação só foi possível
ser confirmada para 66,6% dos forasteiros fugitivos, proporção muito próxima da observada
entre os campineiros (70%).
Tabela 13 – Origem dos Fugitivos com informação de compra (Campinas, 1860-
1888).
Origem Número de escravos % 15
Campineiros 07 70
Forasteiros 191 66,6
Total 198 51,8
O campineiro José, por exemplo, passou por várias experiências de venda. Por volta
dos dez anos de idade, em 1864, foi comprado pelo senhor Miguel Arcanjo Ribeiro de
11
Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi
informada. Não estão descritos, portanto, 20 africanos (18,5% dos dados informados), 2 crioulos para os quais
não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 26 réus com origem não identificada. 12
Não inclui os nascidos na cidade de Campinas. 13
Não inclui os nascidos na Província de São Paulo. 14
Há também a possibilidade de que alguns cativos tenham vindo para Campinas juntamente com senhores que
imigraram para o município. 15
Os valores percentuais apresentados nesta coluna foram calculados sobre o total de cativos da origem
correspondente.
108
Castro.16
No ano seguinte, foi vendido novamente, dessa vez para Ildefonso Antônio de
Morais.17
Sete anos depois, em 1872, o senhor pretendia vendê-lo e, para isso, deixou-o na
fazenda do Dr. Francisco Antônio de Araújo, no município de Amparo.18
Certamente tentando
escapar do destino pretendido pelo senhor Antônio de Morais, José fugiu em abril daquele
ano, montado em um “burrinho pangaré”.19
Um novo anúncio publicado dois anos depois na
Gazeta mostra que José foi capturado e sua venda para o Dr. Antônio de Araújo efetivada.20
O
mesmo anúncio, contudo, comprova que José se recusava a permanecer no outro município e
continuava buscando decidir seu próprio destino. Dessa vez José fugiu na companhia de
outros dois cativos, o pernambucano Antônio e José Trementino, proveniente do Rio de
Janeiro.21
Tanto Antônio quanto José Trementino estavam em poder do Dr. Antônio de
Araújo há pelo menos 10 anos quando se uniram ao campineiro para fugir.
Quanto ao sexo dos fugitivos, há uma predominância masculina independente de
origem. Todavia, proporcionalmente, mais campineiras fugiram do que forasteiras (tabela 14).
Tabela 14 – Sexo dos escravos em anúncios de fuga (Campinas, 1860-1888).
Sexo Geral Campineiros Forasteiros
N % N % N %
Escravas 50 8,7 02 20 24 8,4
Escravos
homens 520 90,6 08 80 263 91,6
Nos anúncios da Gazeta há poucas informações sobre a ocupação dos cativos que
fugiram, correspondendo a um quarto deles (tabela 15). Todavia, é possível perceber a
importância das atividades especializadas entre os homens, destacando-se os carpinteiros (sete
pessoas – cinco forasteiros e dois campineiros), os pedreiros (nove homens, todos eles
forasteiros) e os domadores (seis homens, todos eles forasteiros). Entre as mulheres, há
predominância do serviço doméstico. De todo modo, interessa notar que os dados são bastante
semelhantes tanto para campineiros quanto para forasteiros.
16
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1864. CMU, CRC, Livro 35. O valor pago pelo
cativo foi de 1:300$000 réis. 17
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865-1866. CMU, CRC. 18
Anúncio de fuga do escravo José. Gazeta de Campinas, n. 245, 1872. 19
Anúncio de fuga do escravo José. Gazeta de Campinas, n. 245, 1872. 20
Anúncio de fuga dos escravos José, José Trementino e Antônio. Gazeta de Campinas, nº521, 1874. 21
Anúncio de fuga dos escravos José, José Trementino e Antônio. Gazeta de Campinas, nº521, 1874.
109
Tabela 15 – Ocupação dos escravos adultos em anúncios de fuga, segundo a
origem (Campinas, 1860-1888).
Ocupação
Forasteiros Campineiros
Homens Mulheres Homens Mulheres
N %22
N % N % N %
Lavoura 14 6,25
- - - - - -
Atividades
especializadas ou
domésticas23
53 23,7
05 23,8 02 33,3 01 100
Total 67 29,9
05 23,8 02 33,3 01 100
Os números a respeito das ocupações especializadas ou domésticas podem ter sido
exagerados pela fonte, uma vez que o exercício desse tipo de atividade era considerado um
diferencial que poderia auxiliar na identificação do escravo fugido nas cidades. Todavia, é
possível conjecturar que havia maior recusa ao trabalho nas lavouras campineiras por parte
desses trabalhadores escravos especializados, em especial os forasteiros que, em geral, eram
oriundos de áreas urbanas.24
Além disso, algumas dessas atividades podem ter sido importantes para facilitar a fuga
e o acoitamento do cativo. Aqueles que eram tropeiros, por exemplo, tinham a vantagem de
conhecer as estradas que poderiam levá-los para longe dos senhores e para perto de seus
anseios de liberdade. Outras vantagens para a fuga poderiam advir de diferentes experiências
de cativeiro. Jesuíno, por exemplo, era jornaleiro na cidade de Campinas, ocupando-se
geralmente em “socar taipa”.25
Quando ele fugiu em 1877, seu senhor Carlos Augusto de
Sousa Lima imaginou que ele poderia estar em qualquer lugar da província, pois, segundo
informou no anúncio, “há um ano mais ou menos [Jesuíno] foi camarada do sr. Antônio
Carlos da Silva Teles, e viajou com este por diversos lugares desta província e da de Minas
Gerais”.26
As experiências de Jesuíno com o tipo de ocupação que exercia foram importantes
para facilitar sua fuga e dificultar que o senhor o encontrasse.
22
Nesta tabela, os percentuais foram calculados sobre a quantidade total de indivíduos adultos de cada origem. 23
As ocupações encontradas foram: pedreiro (09 pessoas), carapina/ carpinteiro (07 pessoas), domador (06),
cozinheiro (04), boleeiro (05), sapateiro (04), seleiro (05), carreiro/carroceiro/condutor de carro de boi (03),
pajem (03), alfaiate (02), chapeleiro (02), engomadeira (02), serviço doméstico (02), tropeiro (02), charqueador
(01), copeiro (01), costureiro (01), ferreiro (01), marceneiro (01), trabalho em máquina [de tecelagem?] a vapor
(01), trabalho em negócio de molhados (01), padeiro (01), quitandeira (01). 24
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit., p. 26. Sobre as mudanças no relacionamento entre
senhor e cativo nas transferências das pequenas para as grandes propriedades em consequência do tráfico
interno, conferir também Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies,
slave experience, and the politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal
slave trades in the Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70. 25
Anúncio de fuga do escravo Jesuíno. Gazeta de Campinas, nº 974, 1877. 26
Anúncio de fuga do escravo Jesuíno. Gazeta de Campinas, nº 974, 1877.
110
Como chama a atenção Ademir Gebara, a descrição nos anúncios das atividades
desenvolvidas pelos escravos também dão pistas sobre o destino por eles pretendido com a
fuga.27
Como, por exemplo, o pedreiro Moisés, que levou “colher de rebocar e talhadeira” ao
fugir.28
Levando seus instrumentos de trabalho, o fugitivo pretendia, certamente, reconstruir
sua vida em liberdade por meio dos frutos de seu ofício.
Dados referentes ao estado conjugal dos cativos que fugiam são quase inexistentes.
Dos 574 fugitivos computados na pesquisa, temos informação sobre o estado conjugal de
apenas 13: 10 solteiros (todos eles forasteiros) e três casados (dois forasteiros e um
campineiro). A maior incidência de solteiros entre os forasteiros, contudo, se alinha à
realidade demográfica do comércio interno de escravos.
Além disso, o baixo número de informações sobre o estado conjugal daqueles que
fugiam indica que essa informação não era considerada relevante pelos senhores que
publicaram os anúncios na Gazeta, a menos que ela estivesse diretamente relacionada à
suspeita de que o escravo fugido tenha se dirigido ao local onde o cônjuge tinha permanecido.
A tentativa de retorno à terra natal ou onde o cativo tinha familiares às vezes é
sugerida pelos senhores em anúncios de fuga, como vem exposto na tabela 3.6. Essa suspeita
dos escravocratas denota a percepção de que as fugas estavam ligadas ao comércio interno.29
Também aponta para o conhecimento que os senhores tinham da lógica de atuação dos
escravos, o que provavelmente é possível graças à observação de situações semelhantes. Ou
seja, a suposição dos senhores de que os cativos fugidos se dirigiam a seus locais de origem
indica o quanto essa prática era comum.30
27
Ademir Gebara. “Escravos: fugas e fugas”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 6, nº 12, mar/ago.
1986, p. 97. 28
Anúncio de fuga do escravo Moisés. Gazeta de Campinas, nº 59, 26 de maio de 1870. 29
José Hilário Ferreira Sobrinho. “Catirina, minha Nêga, tão querendo te vendê…”: escravidão, tráfico e
negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza, SECULT/ CE, 2011, p. 224-5. 30
Bezerra Neto destaca a relevância que a reconstrução das relações comunitárias ou familiares teria para as
fugas escravas de acordo com a historiografia norte-americana, apontando para semelhante conclusão entre os
cativos brasileiros. Cf.: José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo: escravidão, fugas escravas e
fugitivos no Grão Pará (1840-1888). Dissertação (Mestrado em História), Unicamp, Campinas, 2000, p. 08.
111
Tabela 16 – Anúncios com suspeita de que os fugitivos tenham tentando voltar
para os locais de origem, por localidade de origem (Campinas, 1860-1888).
Localidade de Origem Número de
escravos % de fugitivos dessa origem
Campinas - -
Província de SP31
09 18,8
Sudeste32
05 12,2
Norte/Nordeste/ Centro Oeste 08 5,0
Sul 04 10,8
Essa suspeita foi encontrada em 7,7% dos anúncios, independente da origem do
fugitivo. Desses, 90,9% se concentram na década de 1870. Todavia, como pode ser verificado
na tabela 16, há uma proporção mais importante (18,8%) entre os fugitivos nascidos na
própria Província de São Paulo. Na sequência, os provenientes de outras províncias da região
Sudeste foram os que levantaram maiores suspeitas nos senhores com relação à tentativa de
retorno ao local de origem ou onde tinham familiares. Essa suposição é bem menor, todavia,
quando se trata de cativos oriundos do Sul e, sobretudo, do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do
Império. Essas diferenças proporcionais podem representar os diferentes níveis de
conhecimento e empatia que os senhores tinham por seus escravos de acordo com a origem,
podendo identificar os laços familiares que eles tinham.
Também demonstram o entendimento que os senhores tinham sobre as possibilidades
dos cativos conseguirem chegar a esses lugares, talvez pela proximidade com o município de
Campinas, ou pela existência de boas estradas que levavam para esses lugares. Desse modo, é
sintomático que essa suspeita seja muito maior, por exemplo, para os escravos provenientes
do Sul do que do Norte, uma vez que existia um importante contato terrestre entre as
províncias sulistas e o município campineiro através dos caminhos do charque.33
Todavia, além de suscitar proposições sobre o entendimento dos escravocratas, esses
dados indicam que a experiência de ser traficado dentro da mesma região ou província
poderia trazer possibilidades diferenciadas daquelas de quem havia sido comercializado no
tráfico inter-regional, uma vez que o retorno à terra natal seria muito mais difícil nesse último
caso.
31
Não inclui os nascidos em Campinas. 32
Não inclui os nascidos na Província de São Paulo. 33
Rafael da Cunha Scheffer. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias
microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado em História), Unicamp, Campinas,
2012.
112
Além do desejo de reunião da família, os motivos que levavam um escravo a fugir
eram variados. Em especial no caso dos forasteiros, também podemos considerar a negação
das políticas de domínio senhorial no município paulista, muitas vezes consideradas
inaceitáveis por uma população escrava que vinha de realidades com ritmos de trabalho e
relações escravistas diferentes.34
Uma história de 1873 ajuda a entender essas razões. Em 1873, o capitão Cândido José
Leite Bueno adquiriu um grupo de 13 escravos crioulos, vindos do Maranhão, Rio de Janeiro
e Bahia, com idades entre 11 e 25 anos, todos homens. Mal sabia o capitão que essa compra
lhe custaria mais caro que os réis pagos ao procurador João Mourthé.35
Explico. Entre os cativos comprados estavam o maranhense José e o fluminense
Brasílio, que não contentes com sua venda para o capitão, fugiram logo em seguida com
destino à cidade de São Paulo. O objetivo era solicitar ao Delegado de Polícia que obrigasse o
senhor a vendê-los, “visto não fazer (...) gosto em servir a seu senhor”.36
Todavia, o Delegado
prendeu os fugitivos e mandou avisar ao senhor para ir buscá-los. Quando chegaram à casa do
senhor, ele lhes disse que “ele não comprava escravos para vender”.37
Depois mandou que
João Alemão levasse os fugitivos para a fazenda da Atibaia, onde receberiam o castigo devido
pela fuga. No caminho, um crime aconteceu: os cativos mataram o condutor.
Os dois cativos vinham de fora da província paulista: Brasílio era do Rio de Janeiro e
José vinha de ainda mais longe, do Maranhão. O motivo alegado para o crime se mistura com
a razão pela qual os dois forasteiros fugiram, na tentativa de trocar de senhor. Brasílio afirmou
em juízo que “praticaram este ato não só pelo mau trato que recebiam de seu senhor moço
administrador da Fazenda e como pelo mau trato que recebiam do Alemão no caminho”.38
Devolvidos ao senhor, os cativos José e Brasílio não alcançaram seu objetivo com a
fuga, uma vez que não consta sua venda nos registros de meia sisa. Aliás, o capitão Leite
Bueno parece que realmente “não comprava escravos para vender”, haja vista não ter
realizado nenhuma venda de escravos em todo o período coberto pelos dados da meia sisa,
34
Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies, slave experience, and the
politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal slave trades in the
Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70. 35
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1873. CMU, CRC. 36
“Auto de perguntas ao réu José”. Processo Crime. Réus: José e Brasílio, escravos de Candido José Leite
Bueno, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 010. 37
“Auto de perguntas ao réu José”. Processo Crime. Réus: José e Brasílio, escravos de Candido José Leite
Bueno, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 010. 38
“Auto de perguntas ao réu Basílio”. Processo Crime. Réus: José e Brasílio, escravos de Candido José Leite
Bueno, Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 010.
113
configurando-se como um grande comprador de mão-de-obra, já que, entre os anos 1860 e
1874 adquiriu 121 escravos.39
Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade, também fugiu para se dirigir à polícia,
mas isso aconteceu após ter ferido o feitor escravo Joaquim com uma facada.40
A fuga após o
crime, em busca da autoridade policial era uma prática comum, como é possível perceber em
vários dos autos criminais que analisamos no capítulo precedente. Todavia o processo que
julgou o delito de Paulo traz um detalhe interessante. Junto com ele outros dois cativos
fugiram para a cidade para se apresentar à Polícia, apesar de não terem tido parte no delito.
Manuel e Casimiro tinham fugido da fazenda de Franco de Andrade antes que Paulo agredisse
o feitor, mas pelo mesmo motivo que o levou a fazer isso. Vejamos o relato do cativo:
“achavam-se os escravos trabalhadores da fazenda formados no eito, (...)
quando sem ele interrogado saber o motivo, seu senhor Major João Francisco
de Andrade Franco, mandara formar a escravatura e tirar a camisa de cada um
ordenando aos feitores Joaquim e Celso, ambos escravos, que tocassem da
direita um e da esquerda outro, sendo que os pacientes todos, inclusive ele
interrogado, levaram 6 relhadas cada um; que novamente seu dito senhor
mandou reproduzir mais seis relhadas em cada um; que alguns ele interrogado
viu apanhar seis, como disse, e não seis, (...) que ao chegar novamente sua vez
ele interrogado saiu da fila e ajoelhou-se perante seu senhor para que ele
perdoasse essas seis relhadas; que a resposta que ouviu do seu senhor foi
ordem ao feitor Joaquim para aplicar nele interrogado cem relhadas; que
tomado de medo de apanhar tão grande número de relhadas, puxou da faca e
agrediu o feitor, não para matá-lo, que o poderia fazer se quisesse, quando o
feitor caiu, mas tão somente para fazer sangue no feitor como meio de se livrar
do excessivo castigo que, se não fosse esse fato das facadas, por certo que
ainda hoje estaria sofrendo. (...) Perguntado que destino levava quando foi
preso nesta cidade? Respondeu que depois dele interrogado ter cometido o
crime encontrara-se no mato com Manoel e Casimiro que haviam fugido da
fila antes desses fatos para evitar o castigo, e então uniu-se com eles e
combinaram-se para virem a cidade apresentar-se ao Delegado de Polícia”.41
Paulo era forasteiro, proveniente da província do Rio Grande do Sul. O feitor ferido
também era forasteiro, oriundo do Ceará. Aqui os dois extremos se chocam. Um cativo
trabalhador de roça e outro feitor. Todavia, compartilhavam juntos a experiência de viver o
cativeiro em Campinas como forasteiros.
39
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1874. CMU, CRC. 40
Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 259, Documento 006. 41
“Auto de perguntas ao indiciado Paulo”. Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de Andrade,
Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 006, grifos nossos.
114
Essas histórias revelam uma motivação ligada ao tráfico interprovincial e um ponto em
comum entre os crimes e as fugas escravas. Vindos em geral de áreas urbanas e pequenas
propriedades, os forasteiros tinham dificuldade de adaptação aos ritmos de trabalho impostos
pela ambição senhorial e à intensa fiscalização e disciplina nas fazendas de Campinas.42
O depoimento do feitor agredido é bem claro nesse sentido. Contou que “o réu
presente e mais outros companheiros estavam ficando atrasados no eito de capina” e por isso
receberam os castigos. Sobre o comportamento de Paulo na fazenda, disse que quando ele era
castigado “ficava amuado, tanto que nessas ocasiões nem se alimentava”.43
A fuga coletiva em direção à polícia também foi um ponto em comum nas histórias de
Paulo, Manuel, Casimiro, Brasílio e José, apesar de ter acontecido em momentos diferentes
com relação à execução do crime. Paulo pretendia dar parte da agressão que cometeu e assim
evitar a punição privada do senhor.44
De modo semelhante, Manuel e Casimiro, bem como
Brasílio e José, viam na fuga em direção à autoridade policial uma forma possível de limitar o
arbítrio senhorial sobre seus corpos.
3.2. Aliados nas fugas
Bezerra Neto identificou as fugas em grupos como uma das principais características
da resistência escrava no período de 1840-1860, na província paraense, senão na própria
Amazônia.45
No período posterior, de 1860-1888, todavia, o autor percebeu uma diminuição
relativa das fugas em grupos.46
Eduardo Silva também chamou a atenção para a maior
incidência de fugas individuais em São Paulo, sobretudo nas ultimas décadas do período
escravista.47
Os dados compilados na tabela 17 mostram que, também em Campinas, muitos
escravos fugiram sozinhos nesse período. Por outro lado, o número de cativos que fugiram
acompanhados também foi bastante grande, representando 46,4% dos fugitivos. E essa
42
Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade…”, op. cit. 43
“Auto de perguntas ao ofendido Joaquim”. Processo Crime. Réu: Paulo, escravo de Alfredo Franco de
Andrade, Campinas, 1886. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 006. 44
Como observado no capítulo 2 desta Dissertação, a ida à polícia após crimes enquadrados na lei de 10 de
junho de 1835 esteve muitas vezes relacionada à tentativa de proteção frente ao arbítrio senhorial. Para uma
discussão detalhada sobre essa prática, conferir Maria Helena P. T. Machado. Crime e escravidão..., op. cit., p.
70; Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império..., op. cit., p. 224-5. 45
José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 133. 46
José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 193-4. 47
João José Reis e Eduardo Silva. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo,
Companhia das Letras, 1989, p. 77.
115
proporção se inverte quando se trata dos forasteiros: 54,7% deles fugiram em duplas ou
grupos maiores, enquanto essa proporção é de 27,3% entre os campineiros.
Tabela 17 – Distribuição dos escravos em fugas coletivas e individuais, segundo a
década (Campinas, 1860-1888).
Período
Escravos que fugiram
sozinhos Escravos que fugiram acompanhados
N % N %
Década de 1860 04 57,1 03 42,9
Década de 1870 280 53,2 246 46,8
Década de 1880 43 55,8 34 44,2
Total geral48
327 53,6 283 46,4
A diferença proporcional entre as fugas coletivas de forasteiros e campineiros é um
dado bastante relevante, que pode estar relacionado a dois fatores. Primeiro, o fato de que há
um número muito maior de publicações comunicando a evasão de forasteiros do que de
campineiros, o que por si só já diminui, estatisticamente, a possibilidade de encontrar uma
grande proporção de fugas em grupos entre os campineiros. Em segundo lugar, todavia,
podemos sugerir que os forasteiros tenham sido prodigiosos em construir redes de
solidariedade em torno do desejo de escapulir do domínio senhorial.
O maior grupo de cativos cuja evasão foi anunciada na Gazeta de Campinas conta
uma história bastante interessante. Eram 19 cativos que fugiram juntos da Fazenda do Bom
Café, em Ouro Fino, Minas Gerais, no cair da noite de 08 de julho de 1877, levando consigo 5
a 6 animais com carga e de montaria.49
De acordo com o administrador da fazenda, os
fugitivos queriam ser vendidos em Campinas e, por isso, teriam fugido com destino ao
município paulista. O administrador destacou ainda que esses cativos eram muito conhecidos
na Fazenda das Dores e arredores. O grupo era formado de pessoas jovens, com idades
48
Nesta tabela foram contabilizados todos os fugitivos que aparecem nos anúncios publicados na Gazeta de
Campinas, inclusive os reincidentes, elevando o total de pessoas fugidas para 610. 49
Anúncio de fuga dos escravos Ambrósio, Benedita, Benedito, Bonifácio, Crispim, Eva, Jesuíno, João
Candimba, José, Justina, Luísa, Mariano, Martinho, Paulo, Pedro, Pulquera, Sérgio, Teodoro e Vicência. Gazeta
de Campinas, nº 1080, 12 de julho de 1877. Estes escravos não foram contabilizados na tabela 3.7, pois o local
da fuga não foi Campinas, mas sim Minas Gerais.
116
(identificadas) entre 12 e 20 anos. Havia três casais na caravana, um deles levava o filho de 12
anos. Entre eles havia um africano, um baiano, um mineiro e outros 16 crioulos cuja
localidade de origem não foi informada no anúncio.
Esta história mostra, como já observou Bezerra Neto, que há um importante nível de
planejamento e organização política em planos de evasão como este, “os quais eram
alicerçados nos laços de camaradagem enraizados nas experiências vivenciadas na
escravidão”.50
Afinal, não devia ser nada fácil se locomover de modo oculto em uma caravana
tão grande de pessoas e animais andando pelas estradas e matas de Minas Gerais até
Campinas. As diferenças de origem não parecem ter sido nenhum obstáculo para que assim o
fizessem.
O conhecimento do administrador a respeito do desejo dos cativos de serem vendidos
em Campinas é bastante curioso. É provável que o grupo tenha tentado negociar tal anseio
com o senhor antes de intentar a fuga, que então se configurou como alternativa diante do
insucesso de um acordo privado com o senhor.
As alianças que os cativos construíam para as fugas poderiam ser não apenas os
parceiros de evasão, que se uniam em fugas coletivas, mas também outros escravos da senzala
que os ajudavam a se esconder ou lhes forneciam alimentos,51
e também indivíduos libertos
ou livres. A bibliografia mostra inclusive outros senhores que escondiam fugitivos ou os
contratavam para seu próprio serviço. Dessa forma, os cativos em fuga poderiam de certa
forma exercer a liberdade.52
A prática de auxiliar e acoitar os escravos fugitivos se ampliou ao longo do tempo,
ainda que os grupos abolicionistas só o tenham assumido a partir de 1887, haja vista sua
ilegalidade.53
Maria Helena Machado considera, todavia, que os caifazes – grupo que se
tornou famoso por auxiliar as fugas de escravos em São Paulo – teriam começado a agir já em
1883.54
Os chamados acoutadores eram uma pedra no sapato senhorial. O anúncio da fuga do
escravo Belizário traz uma narrativa bastante interessante a esse respeito.
50
José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 134. 51
Por exemplo, Luís, que estava fugido para evitar castigos e “vinha todas as noites ter com alguns escravos seus
companheiros”. O caso será explorado em detalhes posteriormente. Cf.: Processo Crime. Réu: Luís, escravo de
Joaquim Teodoro Teixeira, Campinas, 1865. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 212, Documento 014. 52
José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 175. Sobre os escravos fugidos que acabavam
servindo a outro senhor ver também Silvia Hunold Lara. Campos da Violência: Escravos e Senhores na capitania
do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 244; Mary C. Karasch. A vida dos escravos
no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 407. 53
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: Os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.
São Paulo, Edusp, 2010, p. 135. 54
Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico..., op. cit.,p. 147.
117
“Este escravo esteve na véspera da fuga conversando com um sujeito
na beira da estrada que vem de Piracicaba ao Rio Claro passando por terras do
abaixo assinado. Esse sujeito é vendedor de escravos, ou dá-se como tal, e
desconfia-se que tenha induzido o escravo a fugir ou que o tenha acoutado”.55
Belizário era campineiro e o senhor era de Piracicaba. Se a suspeita do senhor era
verdadeira, é possível supor que Belizário buscasse no tal vendedor de escravos uma
possibilidade de volta ao município de Campinas.
Outro caso curioso em que o senhor anunciante menciona um sedutor de escravos é do
escravo José, da firma Viana & Irmãos, em Limeira. Ele teria sido induzido a fugir por “um
mulato claro, forro ou livre, mineiro, de nome Martinho Jerônimo, que servia de carreiro e
parece ter roubado um burro arreado”.56
A origem de José não é informada no anúncio, mas
destaca-se que ele havia sido comprado em Campinas, do negociante João Mourthé, e, por
isso, devia ser conhecido na cidade e provavelmente teria se dirigido para lá. Há também a
suspeita de que tenha se dirigido para Mogi Mirim ou para São Paulo.
O pequeno Isaías, que fugiu em 1874, quando tinha por volta de 12 anos, também teria
tido um sedutor, mas dessa vez um muito especial. Ele teria sido induzido a fugir “pelo
próprio pai, morador então em Cambuí, conhecido por aí por João Marceneiro, desaparecendo
deste lugar no fim do mesmo ano de 1874”.57
A comunicação com os elementos escravos, libertos e livres da sociedade foi
especialmente observada pela historiografia a respeito da sobrevivência das comunidades de
fugitivos no período escravista.58
Em Campinas, teve-se notícia de um grande projeto de aquilombamento em 1886,
quando a captura do fugitivo José Mourthé resultou numa série de revelações assustadoras
para os munícipes.59
Fugido da fazenda do Major João Francisco de Andrade Franco por
cinco meses, José se uniu a outros seis quilombolas,60
sendo quatro cativos do mesmo senhor
e outros dois cativos de outros dois senhores. Os fugitivos passavam as noites em um antigo
55
Anúncio de fuga do escravo Belizário. Gazeta de Campinas, nº 947, 25 de janeiro de 1877. 56
Anúncio de fuga do escravo José. Gazeta de Campinas, nº 1065, 22 de junho de 1877. 57
Anúncio de fuga do escravo Isaías. Gazeta de Campinas, nº 1012, 19 de abril de 1877. 58
Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (séculos XVII-XIX). Tese
(Doutorado em História), Unicamp, Campinas, 1997, p. 02, 11; Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de
Janeiro, op. cit., p. 411. 59
Nota-se que o sobrenome do cativo é o mesmo do grande negociante de escravos de Campinas, João Mourthé.
Todavia, não foi possível identificar alguma relação que o escravo José tenha tido com ele nas fontes de que
dispomos. Processo Crime. Réu: José Mourthé, escravo de João Francisco de Andrade Franco, Campinas,
1886. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 005. 60
A palavra ‘quilombola’ é utilizada no processo, porém não é possível sabermos se saiu de fato da boca do réu
interrogado ou se foi escolhida pelo escrivão que fez a transcrição.
118
galinheiro nas terras do Major, “que tinha de servir de quilombo a eles até a próxima segunda-
feira de hoje a oito dias”.61
Mourthé contou que eles “esperavam se reunir com outros muitos escravos do bairro
das Cabras e seguirem para (...) [a] Fazenda de Rafael Luís Pereira da Silva no lugar chamado
Coqueiros, sítio de Inocêncio Queirós, onde deviam se internar com grande quilombo”.62
As
declarações de José Mourthé foram parar nos jornais e repercutiram causando grande temor
no município.63
Dias depois, o escravo Messias, pertencente a João Novaes de Camargo, teve
sua perna amputada em razão de tiros de revólver disparados por Augusto Camargo,
administrador da fazenda das Palmeiras. O interrogatório tomado ao réu é longo, mas vale a
pena transcrevê-lo na íntegra, já que elucida a repercussão causada pelo depoimento de José
Mourthé.
“que na sexta-feira da semana em que os jornais desta cidade anunciaram as
declarações feitas à polícia pelo quilombola José Mourthé, que acha-se [sic]
preso por haver resistido à prisão, teve o interrogado receio de saber que na
fazenda que administra acoutavam-se dois quilombos em um galinheiro do
pasto, já abandonado e que servira para hospital de bexiguentos, os quais
foram vistos ali completamente armados com uma garrucha de dois canos e
outra de um, pelos os [sic] escravos da fazenda de nomes Cirilo e Elias, os
quais aterrados de ali encontrá-los, correram em gritos a dar parte ao
interrogado que logo veio ver e encontrou vestígios como fossem o lugar onde
estavam deitados conservava-se ainda quente; dois pedaços de cobertores
deixados por eles quilombolas; uma leitoa morta e o virado preparado da
cabeça da mesma leitoa. Que desde essa noite a fazenda esteve em sobressalto,
pois que a fama desses quilombolas aterrava a todos pelas más façanhas, como
é público na Província inteira. Que na qualidade de administrador secundário,
pois que o principal encarregado acha-se ausente do Município, ele
interrogado não dormia conservando-se sempre vigilante, temendo que esses
quilombolas seduzissem os escravos como pretendiam, pela declaração de
José Mourthé, e que chegassem até a atentar contra a vida do interrogado,
visto como já o fizeram no Domingo ultimo dessa semana na fazenda de
Francisco Braga contra os agentes de força pública. Que descobriu às oito
horas da noite de domingo, véspera da segunda-feira que constava pelo
interrogatório de José Mourthé terem esses quilombos de reunir escravos
fugidos na fazenda da Cachoeira, o escravo desta fazenda de nome Messias
em outro galinheiro junto aquele, que servia de quilombo aos dois
encontrados, mas quando viu esse preto tomara-o por quilombola”.64
61
Mais uma vez não é possível afirmarmos com certeza se a palavra “quilombo” foi utilizada por José. “Auto de
perguntas ao réu José Mourthé”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 005. 62
“Auto de perguntas ao réu José Mourthé”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 259, Doc. 005. 63
“Auto de perguntas ao réu Augusto Camargo”. Crime. Réu: Augusto Graciano de Camargo, Campinas, 1886.
AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 258, Documento 011. 64
Processo Crime. Réu: Augusto Graciano de Camargo, Campinas, 1886, “Auto deperguntas ao réu Augusto
Camargo” .AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 258, Documento 011.
119
Como já afirmou Flávio dos Santos Gomes, ao invés de permanecerem isolados, os
grupos de fugitivos procuravam se manter próximos de locais que oferecessem auxílio
estratégico, seja no suprimento de gêneros alimentícios ou até mesmo para o estabelecimento
de relações socioeconômicas.65
Desse modo, afetaram toda a sociedade envolvente.66
Gomes
ainda nos lembra que, em 1886, mesmo ano da captura de Mourthé, também alcançou grande
repercussão a existência de uma comunidade de fugitivos supostamente organizada e dirigida
por abolicionistas paulistas radicais, o Quilombo do Jabaquara.67
Anos antes, em 1880, foi capturado o fugitivo Bernardino, pertencente a Joaquim
Góis.68
Ele estava fugido desde 1879, cometendo diversos delitos, sendo, por isso, indiciado
em quatro processos, por crimes de ofensa física, tentativa de homicídio e homicídio.69
Seu
interrogatório em juízo também é rico de detalhes a respeito das formas como passou o ano se
ocultando, cometendo delitos e se relacionando com diversas pessoas, livres e escravos. Ele
era baiano, mas conhecia muito bem a região, mencionando suas idas e vindas entre
Indaiatuba e Campinas, o que data de pelo menos seis anos, uma vez que menciona ter
comprado nesse tempo uma arma (garrucha) de um cativo de Indaiatuba.
Ele se uniu a outro fugitivo, Joaquim, escravo de Francisco Pompeu do Amaral, que
também era baiano e trabalhador de roça, e morava com seu senhor há 20 anos.70
Joaquim
também foi capturado e condenado em processo criminal pelo assassinato do administrador da
fazenda de seu senhor. Nas declarações que prestou em juízo, Joaquim forneceu mais pistas
sobre a área por onde se embrenhou junto com Bernardino, mostrando a capacidade de
mobilidade e ocultação dos cativos. Ele contou ter sido capturado por dois indivíduos
“em terras da fazenda de Joaquim de Sampaio Góis, deste termo, onde estava
oito dias em um rancho de palha por ele mesmo construído, havendo estado
anteriormente durante meses na fazenda vizinha de Vicente de Sampaio Góis,
e depois nos últimos três meses em terras da fazenda do Conselheiro Albino,
tendo vindo à cidade de tempos a tempos fazer compras de mantimentos”.71
65
Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos, op. cit., p. 16. 66
Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos, op. cit., p. 11. 67
Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos, op. cit., p. 564. 68
Processo Crime. Réu: Bernardino (vulgo Bernardo), escravo de Joaquim de Sampaio Gois, Campinas, 1880.
AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 243, Documento 004. 69
Processos Crime. Réu: Bernardino (vulgo Bernardo), escravo de Joaquim de Sampaio Gois, Campinas, 1880-
1882. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 243, Doc. 004; Microf. 243, Doc. 005; Microf. 244, Doc. 009; Microf. 244,
Doc. 010; Microf. 248, Doc. 005. 70
Processo Crime. Réu: Joaquim, escravo de Francisco Pompeu do Amaral, Campinas, 1881. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 247, Documento 004. Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1862. CMU,
CRC, Livro 33. 71
Processo Crime. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 247, Doc. 004.
120
Juntos, os fugitivos construíram vários ranchos nas matas da redondeza para servirem
de esconderijo. Todavia, quando precisavam de algum gênero alimentício, um dos dois se
dirigia “tranquilamente” até à venda da cidade.
Aconteceu que Joaquim fugiu da cadeia e voltou a se esconder em um pequeno rancho
nas matas do sítio do Conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira.72
No ato de sua captura,
ele teria resistido à prisão armado de uma foice e o paisano Sebastião Dias de Almeida findou
sua vida com “um tiro de garrucha sobre a testa”.73
Mas este nem sempre foi o final das histórias de fuga. A bibliografia destaca a
possibilidade de o fugitivo retornar à propriedade senhorial contando com a intercessão de
uma pessoa “poderosa ou influente – um vizinho, senhor rico, padre ou membro de uma
irmandade religiosa” para evitar o castigo.74
Como observa Mary C. Karasch, “se essa pessoa,
conhecida como padrinho, concordasse em ajudá-lo, ia pessoalmente falar com o dono do
escravo, ou pedia por carta seu perdão. Ignorar a intervenção do padrinho e punir o escravo
era considerado um insulto”.75
Uma história contada em um processo criminal de 1871 ajuda a entender a
importância que o apadrinhamento tinha para a sociedade escravista. O sítio de Francisco
Bueno de Lacerda tinha por feitor Amaro Ferreira da Silva, “homem demasiadamente
castigador”.76
O baiano José, um dos escravos de Lacerda, após ser castigado pelo feitor por
“motivos frívolos”,77
determinou-se a fugir.
Todavia, com a fuga, José não buscava a liberdade, mas sim melhores condições de
cativeiro. Ao invés de embrenhar-se na mata como muitos outros fugitivos, José dirigiu-se até
a casa do Barão de Atibaia para pedir que ele o comprasse. O Barão disse ao escravo que o
compraria e mandou um bilhete ao senhor Lacerda para combinar a transação. O senhor, no
entanto, não concordou e mandou que o feitor e um camarada de nome João Lico de Camargo
buscassem o fugitivo. José seguiu então com o feitor e o camarada de volta para o sítio do
72
“Depoimento do Oficial de Justiça João Gonçalves Pereira”, 02/05/1881. Processo Crime. Réu: Sebastião Dias
de Almeida, Campinas, 1881. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 250, Documento 007. 73
“Depoimento do Oficial de Justiça João Gonçalves Pereira”, 02/05/1881. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 250,
Doc. 007. 74
Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, op. cit., p. 413-414. 75
Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, op. cit., p. 413-414. 76
“Perguntas feitas a José, escravo de Francisco Bueno de Lacerda”. Processo Crime. Réus: João Lico de
Camargo e Amaro Ferreira da Silva, Campinas, 1871. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 225, Documento 006. 77
“Perguntas feitas a José, escravo de Francisco Bueno de Lacerda”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc.
006.
121
senhor sob a promessa de que “fosse sossegado porque iria apadrinhado e não sofreria
castigo”.78
Ter um padrinho podia garantir certa segurança ao fugitivo. Isso fica evidente em
outro processo de 1864, que oferece dados sobre o fugitivo Jerônimo, campineiro. Depois de
ser capturado pelo feitor escravo Benedito e outro escravo, ele seguiu o caminho de volta à
fazenda do senhor solto, isto é, sem algemas, “por ter apresentado dois bilhetes de
padrinho”.79
No episódio de 1871, todavia, o feitor Amaro Ferreira da Silva e o camarada
João Lico de Camargo agrediram José no caminho e o levaram amarrado para o sítio do
senhor.
Quando chegou ao destino, o escravo capturado foi levado para um local determinado
para curar-se de seus ferimentos. Além de não castigar o fugitivo, o senhor Lacerda dispensou
os serviços do feitor Amaro Ferreira da Silva. O desrespeito ao apadrinhamento foi
considerado tão grave que um processo criminal foi iniciado com acusação de ofensas físicas
praticadas pelo feitor e o camarada em José.
Outro episódio acontecido no mesmo ano de 1871 expõe a importância que o
apadrinhamento tinha para os cativos e as possíveis consequências do desrespeito à prática. O
caso aconteceu na fazenda de Joaquim Guedes de Godói e terminou com sua morte.80
O
escravo Camilo, natural de Santos, assassinou o senhor a golpes de enxada após ser por ele
castigado, porém contou em seu depoimento que apenas se adiantou em um projeto que era de
toda a senzala. Contou que há vários dias “conversava-se no Sítio em assassinar o seu
senhor”,81
combinação na qual também estavam presentes os escravos Gregório, Constantino,
José crioulo, Feliciano, Honorato, Jacinto e Leandro.
Quando perguntado sobre quais motivos o levaram a assassinar o seu senhor,
respondeu que
“seu senhor era mau; que não lhes dava licença alguma para plantarem, que
não lhes dava ceia, sendo que no almoço e jantar era pouca a comida; que só
lhes dava por ano uma muda de roupa e que aos Domingos agora não lhes
permitia trabalhar para fora, dando-lhes um minguado salário pelos seus
serviços. Que algum tempo saiu ele respondente e três companheiros e foram
apadrinhar-se com vizinho e que voltando foi cada um deles obrigado a pagar
78
“Perguntas feitas a José, escravo de Francisco Bueno de Lacerda”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc.
006. 79
“Perguntas a Joaquim, escravo de Francisco Teixeira Vilela”. Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de
Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864, AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 212, Documento 011. 80
Processo Crime. Réus: Camilo, Constantino e Feliciano, escravos de Joaquim Guedes de Godoi, Campinas,
1871. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 225, Documento 001. 81
Processo Crime. Réus: Camilo, Constantino e Feliciano, escravos de Joaquim Guedes de Godoi, Campinas,
1871. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 225, Documento 001.
122
mil réis pela falha no serviço, sendo alguns dias depois açoitados por
insignificante pretexto”.82
O relato da fuga para apadrinhar-se com um vizinho se parece com o que aconteceu
com os outros casos contados acima, mas resultou na represália do senhor, sendo que os
cativos consideraram que os castigos dados alguns dias depois, “por insignificante pretexto”,
eram na realidade uma punição pela fuga. Assim, entre as características do senhor que
faziam dele um candidato à revolta de seus escravos estava o desrespeito à prática do
apadrinhamento.
Antes que fosse possível cumprir o assassinato planejado, todavia, Camilo entrou em
um conflito com o senhor e, sendo por ele agredido, “ele respondente gritou a seus parceiros
que o acudissem e o apadrinhassem porque seu senhor o matava”.83
Após ser acudido pelos
companheiros, Camilo fugiu. Porém o escravo Constantino o seguiu e lhe disse “que não
fugisse [e] deu lhe uma enxada aconselhando-o a que desta se servisse caso seu senhor
continuasse a não atender os padrinhos”.84
Neste caso, o relato se refere ao apadrinhamento
dos parceiros de cativeiro, que intercediam para que o castigo não acontecesse. Camilo
“aceitou a enxada oferecida por Constantino e (...) voltando por entre seus
parceiros ia recolher-se à sua senzala [mas] seu senhor o reconheceu e como
seus parceiros não o agarrassem para amarrar apesar das repetidas ordens do
mesmo seu senhor, este avançou sobre ele respondente deu uma [ilegível]
bordoada e ele respondente voltando-se deu-lhe [sic] com a enxada o que o fez
cambalear ferido que então os outros seus parceiros puseram-se a dar com
cacete ou pau e pedras no mesmo seu senhor”.85
Executado o assassinato do senhor, Camilo fugiu para dar parte do ocorrido à Justiça
“por temer que todos se confessassem contra ele”.86
No processo, foram indiciados Camilo,
Constantino e Feliciano. Camilo era forasteiro, natural de Santos. Não foi encontrada
nenhuma informação sobre a origem de Feliciano, e sobre Constantino sabemos somente que
era crioulo e estava na fazenda há sete anos.
Pelo relato do conflito, percebe-se que o apadrinhamento era uma prática muito
valorizada nessa escravaria, sendo utilizada tanto no momento da fuga e busca de pessoas
influentes (vizinhos da fazenda), quanto entre os próprios parceiros de cativeiro. E geralmente
com o objetivo de proteger o apadrinhado da violência e arbitrariedade do senhor.
82
“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25. 83
“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25. 84
“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25, grifos nossos. 85
“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25. 86
“Auto de perguntas ao indiciado Camilo”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 225, Doc. 001, f. 19-25.
123
Retomando esses e outros autos criminais que mencionam a importância do
apadrinhamento, podemos observar que as origens dos cativos eram diversas: José era baiano,
Camilo era natural de Santos e Jerônimo de Campinas. Pelo menos nesses casos ser forasteiro
não implicou uma dificuldade diferente para conseguir padrinhos, o que pode estar
relacionado à quantidade de tempo que estavam no município, bem como as múltiplas
solidariedades que foram construindo no cativeiro. Como já observado nos capítulos
precedentes, o tempo de moradia era um fator bastante importante no que diz respeito à
adaptação dos forasteiros. Esse aspecto será melhor explorado no item que segue.
3.3. Momento da fuga
A partir da tabela 18, pode-se notar uma importante relação entre o momento em que
as fugas ocorriam e a experiência de compra e venda na vida desses cativos.
Tabela 18 – Tempo de moradia dos escravos nos anúncios de fuga, por origem
dos fugitivos (Campinas, 1860-1888).
Tempo de
moradia
Número de
escravos em
geral
Campineiros Forasteiros
N % N %
Menos de um
ano 63 - - 53 33,5
1 a 5 anos 91 04 80,0 76 48,1
6 a 10 anos 27 01 20,0 19 12,0
11 a 15 anos 13 - - 08 5,1
16 a 20 anos 05 - - 02 1,3
Mais de 20
anos - - - - -
Total com
tempo de
moradia
informado
199 05 100 158 100,0
Tanto entre os campineiros que passaram por transações de compra e venda, quanto
entre os forasteiros, há uma maior incidência de fugas nos primeiros cinco anos em poder do
novo senhor, chegando a 81,6% no caso dos fugitivos que não haviam nascido em Campinas.
As fugas logo após a aquisição (menos de um ano de tempo de moradia) só aconteceram entre
124
os forasteiros, tendo um peso proporcional bastante significativo. Isso nos permite supor com
alguma segurança que essas fugas representam uma reação mais imediata ao tráfico interno,
como recusa à permanência nos domínios do novo senhor, aliada ao anseio de retornar para a
terra natal.
Além dos momentos de compra e venda, outra situação que pode ter motivado fugas
escravas foi o falecimento do senhor, pois era cercado de incertezas a respeito do futuro que
seria decidido pela divisão entre os herdeiros, podendo resultar na separação de famílias ou na
venda para saldar dívidas da herança. Apesar de Cristiany M. Rocha ter verificado que os
senhores campineiros costumavam preservar as famílias escravas na hora da partilha, não há
evidências de que esse cuidado tenha se estendido para as relações conjugais não formalizadas
pela Igreja, por exemplo. Além disso, temos que considerar que havia nas senzalas a
constituição de laços comunitários maiores que as famílias nucleares observadas pela
historiadora e que poderiam, de fato ser destruídos pela partilha entre os herdeiros.87
Apesar de ser uma informação difícil de ser encontrada nas fontes de que dispomos,
foi possível identificar pelo menos 23 escravos que fugiram logo após a morte do senhor.88
Entre os crioulos (12 indivíduos), todos eram forasteiros. Há também um africano e os outros
dez não tiveram a origem informada.
O anúncio de fuga de outro Brasílio e também de Sebastião, feito pelo proprietário
Venâncio Correia de Paula Viana em 1874, traz um relato bastante curioso sobre a reação
cativa diante do falecimento do senhor. Paula Viana afirmou que esses e outros cativos faziam
parte de uma herança que ele recebera. O processo da partilha ainda não tinha sido finalizado,
mas ficou acordado entre os herdeiros que Brasílio e Sebastião pertenciam a Paula Viana.
Todavia, os cativos:
“já est[iveram] por muito tempo trabalhando sem o seu consentimento e
ordem em casa de um dos coerdeiros, fato este que tem dado azo e motivo
para que não queiram eles mais parar em sua fazenda, continuando a fazer
fugidas pela proteção escandalosa com que contam”.89
Para os cativos, portanto, esse acordo entre os herdeiros não estava assim tão bem
resolvido, e se aproveitavam da instabilidade do momento para decidir a quem servir, usando
a fuga como instrumento de pressão para intervirem em seus destinos.
87
Cristiany M. Rocha. Gerações da senzala: famílias e estratégias escravas no contexto dos tráficos africanos e
interno, Campinas, século XIX. Tese (Doutorado em História), Campinas, Unicamp, 2004, p. 57. 88
Foram considerados aqui anúncios em que o nome do senhor aparece como finado, falecido, ou "herança" ou
"herdeiros". 89
Anúncio de fuga dos escravos Brasílio e Sebastião. Gazeta de Campinas, nº 488, 26 de agosto de 1874.
125
Ainda com o objetivo de compreender em que momentos esses cativos fugiam,
fizemos o cruzamento entre os dados dos envolvidos em crimes (como réus ou vítimas) e os
anúncios de fuga na Gazeta de Campinas. A pesquisa retornou apenas 12 indivíduos, o que
vai exposto na tabela 19. Cabe destacar, todavia, que oito deles (66,7%) eram forasteiros. Há
ainda um africano e um crioulo, e outros dois fugitivos cuja origem não foi informada.
Tabela 19 – Fugitivos que aparecem em crimes e Ações de Liberdade, por origem
(Campinas, 1860-1888).
Número de
fugitivos
em geral
% Número de
campineiros %
Número de
forasteiros %
Crimes90
12 1,5 - - 08 66,7
Ações de
liberdade 02 0,25 - - - -
Total 14 1,8 - - 08 57,1
Esses anúncios de fuga, de modo geral, não diziam respeito àquelas que aconteciam
depois de um crime, mas sim às que ocorriam em momentos diversos na trajetória de vida
desses sujeitos. Matias, por exemplo, fugiu da fazenda do senhor José de Barros Penteado, em
1873, quando estava em seu poder há 13 anos.91
Ele foi capturado, mas fugiu novamente no
ano seguinte. Três dias após a nova fuga, todavia, ele retornou armado à fazenda e agrediu ao
feitor escravo Emídio.92
A vítima contou que a motivação do crime foi porque “ele se opunha
que Matias entrasse ocultamente à noite na casa do senhor a fim de manter relações ilícitas
com a mulata Josefa”. Ou seja, Matias havia fugido novamente, mas não se distanciava da
propriedade senhorial para não se separar da amada.
Após o crime, Matias foi vendido a Américo Ferraz de Camargo, em Amparo. Mas ele
não permaneceu por lá durante muito tempo. Quatro anos após a nova venda, em 1882, o
cativo fugiu mais uma vez.93
O ano de sua nova fuga coincide com a abertura do inventário do
antigo senhor, José de Barros Penteado, e pode ter sido motivada pelo medo de que a amada
Josefa fosse enviada para longe pela partilha.
Procuramos nos autos criminais as fugas ligadas diretamente aos crimes e
encontramos pelo menos dois escravos réus que fugiram após cometerem atos criminosos nas
90
Inclui 11 réus e uma vítima, cuja origem não foi informada. 91
Anúncio de fuga do escravo Matias. Gazeta de Campinas, nº 345, 1873. 92
Processo Crime. Réu: Matias, escravo de José de Barros Penteado, Campinas, 1874. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 232, Documento 009. 93
Anúncio de fuga do escravo Matias. Gazeta de Campinas, nº 2461, 29 de março de 1882.
126
fazendas de seus senhores,94
e outros 12 que estavam fugidos e acabaram se envolvendo em
delitos quando foram encontrados e capturados. O caso já mencionado de Jerônimo95
é um
exemplo de crime cometido durante a captura, assim como o de José Mourthé,96
uma vez que
este foi acusado de resistência à prisão.
Outros dois casos ainda merecem ser contados. O primeiro aconteceu em 1865 e foi
protagonizado por Luís, escravo de Joaquim Teodoro Teixeira, contra o feitor João Batista.97
Luís estava fugido para evitar castigos e “vinha [até a fazenda] todas as noites ter com alguns
escravos seus companheiros”.98
Mas, ao contrário dos outros casos mencionados, Luís não assassinou o feitor quando
este o capturou. Além de lhe fornecer alimento, os companheiros que Luís encontrava todas
as noites lhe deram um peculiar conselho: “que assassinasse o feitor, visto que o mesmo feitor
prometera castigá-lo quando aparecesse, embora viesse apadrinhado [,] como Jesus Cristo”.99
O destaque dado ao fato de que João Batista não respeitaria algum padrinho que Luís
trouxesse parece ser determinante para que ele resolvesse cometer o crime, uma vez que
atestava a crueldade do feitor. Também é intrigante que Luís preferisse cometer o homicídio
ao invés de investir em uma fuga mais complexa se embrenhando pelas matas dos arredores.
Com certeza, o temor da captura e do castigo que o aguardava pesou para essa decisão. Os
outros escravos da fazenda também ajudaram Luís a escolher a melhor hora para o crime:
“Resolvendo-se ele respondente a dar cabo do feitor, alguns escravos
lhe disseram que escolhesse para isso domingo dia cinco do corrente, visto
que sendo eles os mais vivos da fazenda, e tendo de ir pregar [?] no Laranjal
domingo de tarde era boa a ocasião para o que pretendia”.
O restante do interrogatório nos mostra o papel de cada cativo companheiro na tarefa
de assassinato do feitor:
“Assim pois decidido a realizar a morte no domingo foi a noite à
fazenda de seu senhor, e encontrou-se com o escravo Adão da mesma fazenda,
o qual lhe disse que esperasse atrás da senzala que ele Adão lhe viria contar
quando o feitor fosse cear, ou quando estivesse dormindo, e que tendo ele
respondente se ocultado atrás da senzala seu companheiro, ou parceiro
94
Aqui estamos contabilizando somente os que fugiram para se ocultar, não incluindo os que fugiram para se
entregar à autoridade policial. 95
Processo Crime. Réu: Jerônimo, escravo de Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1864. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 212, Documento 011. 96
Processo Crime. Réu: José Mourthé, escravo de João Francisco de Andrade Franco, Campinas, 1886. AEL,
CSP, ACI, Microfilme CSP 259, Documento 005. 97
Processo Crime. Réu: Luís, escravo de Joaquim Teodoro Teixeira, Campinas, 1865. AEL, CSP, ACI,
Microfilme CSP 212, Documento 014. 98
“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014. 99
“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014, grifo nosso.
127
Bonifácio lhe trouxe uma porção de virado e uma garrafa de aguardente, da
qual bebeu seguramente a metade. Pelas nove horas pouco mais ou menos
veio ter com ele o escravo Adão acima mencionado, e lhe disse que o feitor
não quisera cear, e já estava dormindo [.] em consequência [,] tendo ele
respondente se dirigido à casa em que estava o feitor, e que estava aberta,
entrou, e com uma mão de pilão que lhe fora fornecida pelo mesmo Adão
descarregara uma pancada sobre a cabeça do feitor adormecido, e
conservando-se ele imóvel, deu-lhe segunda pancada na cara, e tendo se
apoderado da faca do mesmo feitor que se achava em cima de uma cadeira, e
levantando-lhe a camisa cravou-lhe duas facadas do lado esquerdo, e essa faca
é a mesma que trazia na ocasião em que foi preso.”100
Depois de consumado o assassinato, Luís também não fugiu imediatamente, pelo
contrário, ele permaneceu nas imediações:
“foi à senzala de seus parceiros Adão e Bonifácio, e com eles passou a noite, e
que ao romper do dia retirou-se para o mato. Ao amanhecer se dirigiu à casa
de Francisco Xavier dos Santos a fim de relatar ao seu parceiro Paulo, escravo
do mesmo Santos, com quem entretinha relação de amizade, o fato que
acabara de praticar, e convidar o mesmo para fugirem juntos. Com dito Paulo
passou ele respondente a noite e tendo-lhe o mesmo convidado a vir na noite
seguinte depois que os brancos estivessem dormindo, ele assim o fez, e
estando dentro da senzala, só, visto que Paulo havia saído, foi preso por dois
carpinteiros, um de nome Luiz e outro Francisco”.101
As declarações de Luís mostram um pouco sobre como se dava a dinâmica vivida pelo
fugitivo. Ele recebia alimentos de seus parceiros e passava a noite dentro da senzala, podendo
ainda visitar outro companheiro na região. Aparentemente não estava disposto a se distanciar
da fazenda, a não ser após o crime, quando convidou Paulo para fugirem juntos. Os
companheiros citados no interrogatório, Adão e Bonifácio, estavam na fazenda há dois
anos,102
e provavelmente nutriam juntos o desgosto pelo feitor. Eles eram crioulos, mas não
foi possível identificar o local de seu nascimento.
Luís era natural do Rio de Janeiro, e havia sido comprado pelo senhor Joaquim
Teodoro Teixeira no mesmo ano do homicídio.103
O senhor, todavia, abriu mão de seus
direitos sobre o escravo logo no início do processo. Provavelmente decidiu que não valia a
pena os gastos do processo para defender aquele cativo que assassinara seu feitor.
100
“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014. 101
“Auto de perguntas ao réu Luís”. AEL, CSP, ACI, Microf. CSP 212, Doc. 014. 102
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1863. Centro de Memória da Unicamp (CMU),
Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC), Livro 35. 103
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865. CMU, CRC.
128
O fato de Luís ser forasteiro de outra província pode ter pesado sobre a decisão de
matar o feitor, uma vez que talvez não visse como possível se esconder por muito tempo, ou
não tivesse em mente a ideia de voltar à terra natal. Na verdade não sabemos há quanto tempo
Luís estava em Campinas. Ele havia sido comprado há pouco tempo pelo senhor Joaquim
Teodoro Teixeira, mas antes havia pertencido a Francisco Egídio de Sousa Aranha, também
morador no município, não se sabe por quanto tempo.104
O conhecimento das áreas em torno
do município era importante para perpetuar a fuga, o que pode ter agido sobre a relutância de
Luís de se afastar da fazenda de Teodoro Teixeira.
Isso fica evidente nas palavras de Ambrósio, escravo da firma social Bierrembach &
Irmão, que foi capaz de seguir para Itu, Sorocaba e Porto Feliz em sua empreitada de fuga, em
1873.105
Ele era natural da cidade de São Paulo e seu conhecimento da região em torno de
Campinas é notável. Isso talvez possa ser explicado por sua permanência em poder da firma
social por 15 anos e exercendo uma ocupação especializada e urbana (oficial de chapeleiro),
que provavelmente lhe dava certa mobilidade. Por outro lado, ser conhecido no município e
arredores poderia prejudicar a ocultação dos fugitivos, como expõe Gebara, destacando a
importância da publicação dos anúncios de fuga nos jornais como forma de repressão
comunitária a essa forma de resistência escrava.106
O fato é que conhecer a região foi essencial para que Ambrósio pudesse alongar tanto
sua fuga. Todavia, o senhor João Bierrembach armou um cerco para capturá-lo, o que
culminou com a morte de um oficial da firma social que estava envolvido na captura. Preso
após o homicídio, Ambrósio ainda conseguiu fugir da cadeia alguns meses depois,
acompanhado de um pardo que também cumpria sentença.107
Era um escravo valioso, uma
vez que a recompensa oferecida por sua captura foi de 200 mil réis,108
valor pouco usual para
a época, sendo que a mesma firma havia oferecido valores de 50 e 100 mil réis pela captura de
outros dois escravos fugidos anunciados na Gazeta.109
Ele foi recapturado, dessa vez em
104
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865. CMU, CRC. 105
“Perguntas ao réu Ambrósio”. Processo Crime. Réu: Ambrósio, escravo de Bierrembach& Irmão, Campinas,
1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 228, Documento 009. 106
Ademir Gebara. “Escravos: fugas e fugas”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 6, nº 12, mar/ago.
1986, p. 96. 107
Anúncio de fuga do escravo Ambrósio. Gazeta de Campinas, out/1873, nº 404. 108
Anúncio de fuga do escravo Ambrósio. Gazeta de Campinas, out/1873, nº 404. 109
Anúncio de fuga do escravo Alexandre, Gazeta de Campinas, nº 1124, 07 de setembro de 1877; Anúncio de
fuga do escravo Rodolfo. Gazeta de Campinas, nº 885, 08 de novembro de 1876. Além disso, somente outros
cinco escravos receberam a indicação de recompensa de tal monta no ano de 1873, para outro foi ofertado 150
mil réis e os outros 63 anúncios daquele ano ofereceram valores entre 30 e 100 mil réis.
129
Botucatu. Novamente posto na cadeia, Ambrósio tentou cometer suicídio diversas vezes,
conseguindo realizar o intento no ano seguinte (1874).110
Apenas dois cativos que tiveram sua fuga noticiada na Gazeta de Campinas iniciaram
ação judicial para aquisição da liberdade nesse período. Curiosamente, duas mulheres
africanas: Generosa e Narcisa.
Generosa era escrava de João Guimarães Bahia e iniciou Ação de Liberdade por
tráfico ilegal em 1881, tendo fugido meses antes.111
Ela estava em poder desse senhor há nove
anos, tendo sido comprada no Rio de Janeiro. Sendo centro do governo imperial e uma das
cidades mais povoadas por africanos e afrodescendentes na segunda metade do século XIX, a
corte do Rio de Janeiro era um lugar profícuo para a circulação de informações e é provável
que lá Generosa tenha plantado em sua mente a ideia de buscar na justiça o reconhecimento
de sua liberdade. O argumento que ela usou no Tribunal de Justiça de Campinas, qual seja, o
tráfico ilegal após a Lei de 1831 estava sendo discutido em vários ambientes, de modo
especial na corte do Rio de Janeiro e em São Paulo.112
Quando trazida para a província paulista, Generosa deve ter considerado que era
chegada a hora de ir à justiça. Sugerimos isso levando em conta que a venda para Guimarães
Bahia pode tê-la separado das redes de amizade e parentesco elaboradas ao longo dos anos
desde seu desembarque no Brasil. Ou pode ainda ter-lhe feito perder conquistas acordadas
com o antigo senhor, o que tornava urgente a aquisição da liberdade. Além disso, a africana
pode ter visto uma oportunidade de sucesso nessa empreitada, haja vista a maior proximidade
com a cidade de São Paulo, que estava se tornando famosa por iniciativas judiciais em torno
do contrabando de africanos no período pós Lei de 1831, com a participação de advogados
abolicionistas como Luís Gama.113
Assim, quando fugiu em 1880, é provável que Generosa
tenha pesado os custos e benefícios de tentar permanecer escondida ou intentar a luta judicial
110
Gazeta de Campinas, 15 outubro de 1874. Fonte citada em Saulo Veiga Oliveira e Ana Maria Galdini
Raimundo Oda. “O suicídio de escravos em São Paulo nas últimas duas décadas da escravidão”. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.2, abr.-jun. 2008, p. 372. 111
Ação de Liberdade por tráfico ilegal. Autor: Generosa, escrava de João Guimarães Bahia, Campinas, 1881-
1882. CMU, TJC, 2º Ofício, Processo 1687, Caixa 96. E Anúncio de fuga da escrava Generosa. Gazeta de
Campinas, nº 1905, 30 de abril de 1880. 112
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti, “O direito de ser Africano Livre: os escravos e as interpretações da lei de
1831”. In: LARA, Silvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs). Direitos e justiças no Brasil.
Ensaios de história social. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 2006, p. 131-152. Ver também: Letícia Graziele
Basílio de Freitas. Escravos nos Tribunais: o recurso à legislação emancipacionista em ações de liberdade do
século XIX. Monografia (Graduação em História), Unicamp, Campinas, 2012. 113
Elciene Azevedo. Direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo.
Campinas, Editora da Unicamp, 2010, p. 95-113.
130
contra seu senhor. Infelizmente, porém, Generosa não obteve sucesso no tribunal, sendo sua
alegação considerada improcedente.
A fuga de Narcisa, por outro lado, teve um desfecho mais feliz, com o reconhecimento
legal de sua liberdade. Ela era natural de Piracicaba, e fugiu da fazenda do senhor Francisco
de Paula Sousa Campos em 1872.114
O senhor sabia que ela tinha filhos, irmã e parentes em
Piracicaba e por isso ela foi logo capturada naquela cidade. Todavia, Narcisa conseguiu
escapar novamente quando estava sendo trazida para Campinas. Dessa vez o senhor não
conseguiu encontrá-la tão facilmente e decidiu publicar um anúncio na Gazeta de Campinas,
oferecendo como recompensa a quantia de 100$000 réis e alertando para a existência da
família no outro município.
Narcisa conseguiu se esconder com tal prodigalidade que o senhor Sousa Campos só
tornou a vê-la sete anos depois, quando ela iniciou um processo no Tribunal de Justiça de
Campinas para compra de sua alforria.115
Descobriu-se então que Narcisa estava morando em
Lençóis e conseguira juntar a quantia de 800$000 rs, que utilizou para indenizar o senhor e
poder então desfrutar legalmente de sua liberdade.
Fugas longas como a de Narcisa demonstram a possibilidade de sucesso dessa forma
de enfrentamento do cativeiro e a importância da reconstrução dos laços familiares para
tanto.116
É bastante provável que, após o fracasso de sua fuga de volta à Piracicaba, ela tenha
combinado com os parentes para conseguir se mudar para outro local, onde o senhor não os
encontraria. Em Lençóis, Narcisa não só reuniu sua família, como também formulou uma
forma de vida que lhe possibilitou o acúmulo de um pecúlio.
Bezerra Neto chama a atenção para a possibilidade de os cativos fugidos se
misturarem em meio à cidade, tendo em vista a predominância de trabalhadores escravos
crioulos, assim como o crescente número de pessoas livres de cor e mestiças na segunda
metade do século XIX.117
Por outro lado, como argumenta Sidney Chalhoub, também era
cada vez maior o clima de suspeição que rondava essa população de cor, tornando cada vez
mais frágil a linha entre escravidão e liberdade.118
Essa instabilidade com certeza foi
motivadora para que Narcisa, mesmo após tanto tempo e tendo reconstruído sua vida em
114
Anúncio de fuga da escrava Narcisa. Gazeta de Campinas, nº 306 (1), 13 de novembro de 1872. 115
Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Narcisa, escrava de Francisco de
Paula Sousa Campos, Campinas, 1879-1880. CMU,TJC, 2º Ofício, Processo 08, Caixa 01. 116
José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 143 e 170. 117
José Maia Bezerra Neto. Fugindo, sempre fugindo, op. cit., p. 177. 118
Sidney Chalhoub. “Cenas da Cidade Negra”, In:Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão naCorte. São Paulo: Companhia das letras, 1990, p. 175-248. Sobre a precariedade da liberdade
desfrutada pela população de cor no Brasil oitocentista ver ainda, do mesmo autor: A força da escravidão:
ilegalidade e costume noBrasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
131
fuga, tenha decidido voltar à Campinas para ter o reconhecimento legal da liberdade que
desfrutava clandestinamente e, assim talvez, ter uma segurança maior. Esse provavelmente
também foi o que motivou Generosa a arriscar-se na demanda legal pelo reconhecimento de
sua escravização ilegal pelo tráfico.
Outro caso de fuga envolvendo a busca pelo reconhecimento legal da liberdade é
contado em um auto de Habeas Corpus em favor do escravo Miguel, datado de 1873.119
Ele
era natural de Campinas, mas morava em Amparo e fugiu de volta para o município de
origem para negociar sua liberdade. Vamos aos detalhes da história.
Apesar de nascido em Campinas, Miguel vivenciou o comércio interno por diversas
vezes. Pertenceu ao senhor Luís Nogueira Ferraz e foi comprado pelo comendador Manuel
Joaquim Ferreira Neto em 1865, em um grupo de 40 cativos.120
Não encontramos o inventário post mortem de Ferreira Neto mas, pelo grupo de
cativos adquiridos por ele entre 1865 e 1868, pode-se ter uma ideia de como era composta sua
escravaria. Ele comprou 79 cativos nesse período, por si só ou como “Joaquim Manuel
Ferreira Neto e Cia”. Foram diferentes vendedores, denotando diferentes origens desses
cativos.121
No entanto, junto com Miguel, outros 23 homens e 16 mulheres foram comprados
conjuntamente do senhor Luís Nogueira Ferraz, em 1865. O grupo ao qual Miguel pertencia
era formado por muitos campineiros (20) e alguns baianos (11) e ainda um “crioulo do sul” e
mais alguns africanos (08). Desse modo, apesar de ser campineiro, ele vinha de uma senzala
heterogênea e passou a pertencer à outra que se diversificou ainda mais com os outros
indivíduos que seriam adquiridos nos anos seguintes pelo senhor Ferreira Neto.
Pouco tempo depois, em 1868, o comendador Ferreira Neto faleceu. Em seu
testamento, deixou livres seus escravos com a condição de cumprirem oito anos de prestação
de serviços a partir de então. Aconteceu, todavia, que os herdeiros do comendador Ferreira
Neto venderam uma fazenda da herança, que ficava em Amparo, ao comendador Joaquim
Bonifácio do Amaral. Na escritura de venda da fazenda, os serviços dos libertos em condição,
incluindo Miguel, foram também transferidos a Bonifácio do Amaral.
De posse de uma quantia em dinheiro que considerava suficiente para remir o tempo
de serviço que lhe restava, Miguel fugiu em 1873 com destino à Campinas para negociar com
119
Habeas Corpus. Réu: Miguel, escravo de Manuel Joaquim Ferreira Neto/ Joaquim Bonifácio do Amaral,
Campinas, 1873. AEL, CSP, ACI, Microfilme CSP 180, Documento 003. 120
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1865.CMU, CRC. 121
As naturalidades informadas foram 14 cativos da Bahia, 02 de Goiás, 02 de Minas Gerais, 06 do Rio de
Janeiro, 01 do Rio Grande do Sul, 01 “crioulo do Sul”, 20 de Campinas, 01 de Piracicaba, 15 africanos e mais 17
brasileiros com localidade de origem não informada. Cf.: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de
Campinas, 1865. CMU, CRC.
132
Rafael Luís Pereira da Silva, que era o depositário geral dos escravos que haviam sido do
falecido Ferreira Neto. Em fuga, Miguel foi capturado e sua prisão preventiva foi requisitada
pelo juízo de órfãos por alegação de violação do contrato de serviços. Assim, o advogado
João Gabriel de Moraes Navarro deu início a um auto de Habeas Corpus para retirar Miguel
da prisão, alegando que os serviços de um liberto não poderiam ser transferidos.
Apesar de não ser um forasteiro em Campinas, Miguel o era no local onde então
habitava (Amparo) e era na terra natal que acreditava poder lutar por seus direitos, por isso a
fuga foi sua primeira estratégia. Ele era carreiro, ocupação que pode ter lhe dado mobilidade
suficiente para conhecer as melhores estradas – ou atalhos – para chegar a Campinas.
*
A fuga era uma alternativa que, em teoria e em diferentes níveis, estava presente como
possibilidade para todos os cativos. Todavia, eram incertas as chances de se obter sucesso na
empreitada, seja com o objetivo de o senhor ceder com relação a alguma reivindicação, ou
com a esperança de conquistar a liberdade longe de seus olhos. Por isso, nem todos os cativos
fugiram durante o período escravista. Entender quem fugia e em qual momento e,
principalmente, quem tinha maiores chances de sucesso são questões intrigantes,
especialmente quando objetivamos investigar as diferenças entre campineiros e forasteiros no
município de Campinas.
O que observamos nesse capítulo é que os cativos forasteiros fugiram mais, muito
mais do que os que tinham nascido no município, representando uma proporção de quase 30
forasteiros (28,7) para cada campineiro cuja fuga foi noticiada na Gazeta de Campinas. Pode-
se depreender que a fuga era a primeira alternativa buscada pela maioria dos escravos em
geral,122
e dos forasteiros em particular, já que, ao menos em princípio, apresentava menores
riscos do que a execução de crimes ou a iniciativa judicial para aquisição da liberdade, por
exemplo. Além disso, fica latente a relevância que tinha a experiência do tráfico interno,
separando famílias e arrancando margens de autonomia, para fazer dos forasteiros a maioria
dos escravos fugidos.
Por outro lado, apesar de devassadora, essa experiência não impedia que forasteiros se
unissem a trabalhadores cativos de origens diversas, inclusive campineiras e africanas,
construindo novos laços de solidariedade. Os laços que teciam com os que encontravam ao
122
Mary C. Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, op. cit., p. 399.
133
chegar conferiam maiores possibilidades de sucesso a essas estratégias. Como o santista Luís,
que podia contar com os companheiros de senzala para obter alimento e abrigo enquanto se
mantinha foragido, além de auxílio na execução do assassinato do feitor. E os baianos
Bernardino e Joaquim que permaneceram fugidos por algum tempo, circulando em diversos
espaços dentro e fora da cidade e se relacionando com diferentes pessoas.
Enfim, as múltiplas alianças formuladas por esses forasteiros, bem como sua
capacidade de mobilidade no município de Campinas e arredores impedem que vejamos suas
evasões como atos instintivos, frutos de um sentimento de desenraizamento e inadaptação.
Pelo contrário, são atitudes cheias de significados, uma vez que congregavam esforços
diversos: sair da fazenda sem ser notado, se embrenhar por lugares desconhecidos para se
esconder, lidar com os perigos das matas e estradas, encontrar rotas que possibilitassem o
retorno à terra natal, ou a busca por um padrinho. Afinal, fugir também apresentava riscos e
todas essas tarefas podem ter sido muito mais complicadas para aqueles que chegavam ao
município e pouco conheciam da localidade e seus habitantes. Esses sujeitos certamente
pensaram nisso quando buscaram unir-se a outros para empreender suas fugas, o que explica a
maior proporção de fugas coletivas entre os forasteiros do que entre campineiros.
134
CAPÍTULO 4 – Forasteiros em busca da liberdade
4.1. As Ações de Liberdade e os libertandos
Em agosto de 1851 a preta Domitila foi vendida ao Conselheiro Dom Francisco
Baltasar da Siqueira, no Rio de Janeiro.1 A negociação entre o conselheiro e dona Maria
Raimunda da Boa Hora, a antiga senhora, obrigou Domitila a deixar para trás não só sua terra
natal, São Luís, na Província do Maranhão, como também sua mãe, um filho, e uma filha de
apenas um ano. Encontramos sua história em uma Ação Cível de Liberdade movida por sua
filha, a “mulatinha” Mariana, que, depois de 16 anos de separação da mãe, tentou provar na
justiça a ilegalidade de sua venda. Auxiliada por um curador, Mariana alegou uma história
bastante complicada, cheia de promessas, falsificações e ilegalidades, em que sua família foi
vítima. Sua avó materna, chamada Rosa, tinha sido escrava da senhora Raimunda da
Ressurreição, uma moradora do Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios.2
Antes de falecer, Raimunda da Ressurreição passou carta de alforria à Rosa e sua filha,
Domitila. A carta foi entregue à Superiora Ana Francisca do Coração de Jesus com a missão
de entregá-la às libertas após a morte da senhora. Todavia, a Superiora nunca lhes entregou a
carta. Após a morte da senhora, Ana Francisca do Coração de Jesus se apossou de mãe e filha,
e vendeu Domitila à Maria Raimunda da Boa Hora, ré no processo judicial que temos em
mãos.3
É possível perceber no processo cível iniciado por Mariana que o seu objetivo vai
além da liberdade, ele tem íntima conexão com o desejo de rever sua mãe, após tantos anos de
separação. Se fosse provada, sua história atestaria a ilegalidade da venda de Domitila ao
Conselheiro no Rio de Janeiro, bem como a liberdade do ventre desta e, por conseguinte, a
mulatinha Mariana seria considerada livre. Contudo, Mariana deixou claro seu objetivo de
que a sentença beneficiasse não somente a ela:
1 Rio de Janeiro. Arquivo Nacional (AN), Fundo Supremo Tribunal de Justiça (BU), Série Revista Cível (RCI),
Processo BU.0.RCI.385, Microfilme AN 002-2002. Revista Cível sobre liberdade de escravo. Recorrente:
Mariana, parda, por seu curador. Recorrida: Maria Raimunda da Boa Hora, São Luís (Maranhão), 1867-1870. 2 O Recolhimento era administrado pelas irmãs Ursulinas e depois pelas Agostinhas, acolhendo meninas órfãs e
carentes. Cf.: MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico e Geográfico da Província do Maranhão. Rio
de Janeiro, Fonfon e Seleta, 1970, p. 549-555. 3 A Superiora já havia falecido quando o processo foi iniciado. Rev. c. sobre lib. de esc. Recorrente: Mariana.
São Luís, 20/12/1867 a 09/04/1870. (AN BU.0.RCI.385, localização: AN 002-2002).
135
“Nestes termos requer a Suplicante a Vossa Senhoria se sirva
mandar depositá-la, para poder tratar em Juízo da sua liberdade e da de sua
Mãe, nomeando-se-lhe [sic] para esse fim um Curador”.4
Diversos tipos de fontes já foram utilizados para a análise da aquisição da liberdade
pelos cativos no Brasil. Dentre os estudos sobre alforria em Campinas destacam-se os de Peter
Eisenberg, com a pesquisa de cartas de alforria registradas entre 1798 e 1888;5 de Adauto
Damásio, com cartas de alforria, inventários, testamentos e Ações de Liberdade entre 1829 e
1838;6 e de Lizandra Meyer Ferraz, que, dialogando com as fontes e conclusões de Eisenberg
e Damásio, incorporou também os autos de prestação de contas testamentárias para pesquisar
as alforrias obtidas nos processos de herança nos períodos de 1836-1845 e 1860-1871.7 Esses
estudos mostraram as tendências em torno das alforrias no município e seus significados
dentro da realidade histórica do Império e do movimento histórico da Abolição. Eisenberg
verificou a importância do perfil dos alforriados para a frequência e tipo de liberdade
concedida nas cartas de alforria. Ferraz chamou a atenção para a relevância e frequência da
aquisição da alforria nos processos de herança. E Damásio verificou também a pertinência das
Ações de Liberdade como caminho viável para a conquista da alforria, representando uma
real intervenção no poder senhorial de decidir sobre a vida dos cativos.
As Ações de Liberdade julgadas pelo Tribunal de Justiça de Campinas também foram
investigadas por Regina Célia Lima Xavier que, em cruzamento com outros tipos de
processos cíveis, como inventários, ações de cobrança de dívidas, justificações cíveis,
processos de divórcio, e também documentos da municipalidade e da Câmara, jornais e livros
de memorialistas, buscou reconstituir as experiências e estratégias de vida de homens e
mulheres libertos no município.8
Nas últimas décadas, a historiografia brasileira tem buscado estudar a prática da
alforria a partir da estratégia escrava e tem abandonado interpretações tradicionais sobre a
rebeldia dos cativos ao trazer à cena a contínua necessidade dos senhores de procurar novas
formas de controle social no cotidiano das relações escravistas. Nesse sentido, as Ações de
4AN, BU, RCI,P.BU.0.RCI.385, Microf. AN 002-2002. Revista Cível sobre liberdade de escravo. Recorrente:
Mariana, parda, por seu curador. Recorrida: Maria Raimunda da Boa Hora, São Luís (Maranhão), 1867-1870,
“Petição inicial”, f. 7. 5 Peter Eisenberg. “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX.” In: Homens esquecidos: escravos e
trabalhadores livres no Brasil – século XVIII e XIX. Campinas, Editora da UNICAMP, 1989, p. 255-314. 6 Adauto Damásio. Alforrias e ações de liberdade em Campinas na primeira metade do século XIX. Dissertação
(Mestrado em História), UNICAMP, Campinas, 1995. 7 Lizandra Meyer Ferraz. Entradas para a liberdade: formas e frequência da alforria em Campinas no século
XIX. Dissertação (Mestrado em História), UNICAMP, Campinas, 2010. 8 Regina Célia Lima Xavier. A conquista da liberdade: Libertos em Campinas na segunda metade do século
XIX. Campinas, Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1996.
136
Liberdade ganharam importância como meio possível de acessar as ações e significados das
lutas e negociações entre os cativos e seus senhores. Vários estudos que utilizaram essa fonte
demonstraram que havia uma possibilidade real de conquista da liberdade por esse meio e que
o direito e a justiça funcionaram como campos indeterminados de possibilidades e de
estratégias e conflitos de classe.9
Neste capítulo, examinamos as Ações de Liberdade julgadas pelo Tribunal de Justiça
de Campinas em busca de histórias como a da mulatinha Mariana, que mostra a conexão entre
Maranhão e Rio de Janeiro e a separação familiar causada pelo tráfico interprovincial.
Buscamos, em especial, compreender os significados que o tráfico interno pode ter
representado nos embates jurídicos pela liberdade. Em outras palavras, ser forasteiro ou
nascido em Campinas fazia alguma diferença nesses litígios? Indo além da identificação da
localidade de origem, porém, procuramos investigar como a experiência do tráfico interno
influenciou as trajetórias de vida desses indivíduos na busca da liberdade pela via judicial.
Os estudos sobre alforria em Campinas demonstraram que o cativo crioulo era
preferido na distribuição das alforrias, mesmo tendo em vista que o número de africanos no
Império era muito grande. Damásio identificou que 68% dos libertos no decênio 1829-1838
eram crioulos.10
Eisenberg, por sua vez, observou uma proporção de crioulos de até 72,4% do
total de libertos entre 1798-1888.11
Esses dados foram confirmados por Ferraz que verificou
que 81,1% dos alforriados em processos de herança tinham nascido no Brasil.12
Eisenberg e
Ferraz destacaram, todavia, que essa proporção não estava tão distante da realidade
demográfica da população escrava de Campinas na segunda metade do século XIX. Esses
estudos, entretanto, não verificaram as diferenças na política das alforrias entre os nascidos no
próprio município de Campinas e os advindos do tráfico interno.
O Centro de Memória da Unicamp abriga uma grande série documental sob o título
“Ações de Liberdade”, que reúne diversos litígios iniciados no século XIX para discutir
9Elciene Azevedo. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luís Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas,
Editora da UNICAMP, 1999, p. 194 e 199; Elciene Azevedo. Direito dos escravos: lutas jurídicas e
abolicionismo na província de São Paulo. Campinas, Editora da Unicamp, 2010; Eduardo Spiller Pena. Pajens
da Casa Imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas, Editora da UNICAMP, 2001, p. 25;
Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (orgs.). Direitos e justiças no Brasil. Ensaios de história
social. Campinas, Editora da UNICAMP, 2006; Joseli Maria Nunes Mendonça. Entre a mão e os anéis: a lei dos
Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. 2 ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 2008; Keila
Grinberg. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da corte de apelação do Rio de Janeiro no
século XIX. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994; Sidney Chalhoub. Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das letras, 1990; entre outros. Sobre a
indeterminação da justiça e do direito na luta de classes, ver também: Edward P. Thompson. Senhores e
caçadores: a origem da lei negra. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. 10
Adauto Damásio, Alforrias e ações de liberdade em Campinas..., op. cit., p. 19 e 37. 11
Peter Eisenberg, “Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX.”, op. cit., p. 270-274. 12
Lizandra Meyer Ferraz. Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112.
137
questões relativas à manumissão.13
Nessa série constam autos denominados: Arbitramento,
Averiguação de Liberdade, Cumprimento de Cláusula de Serviços, Depósito, Fundo de
Emancipação, Infração de Contrato, Justificação de Liberdade, Levantamento de Pecúlio,
Liberdade, Liberdade pela não efetuação da matrícula, Liberdade por idade, Locação de
Serviços e Remissão, Manutenção de Liberdade, Pecúlio, Remissão de Serviços e Tráfico
Ilegal. Esses processos trazem ao historiador um pouco da experiência de 190 homens e
mulheres escravizados que viram na Justiça uma forma de discutir seus anseios de liberdade.14
Diferente dos processos criminais julgados em Campinas, esses litígios em torno da
liberdade não permitem um estudo quantitativo tão aprofundado como o que fizemos no
segundo capítulo deste estudo, pois são processos bastante sumários, apresentando poucos
detalhes sobre os cativos que litigaram pela alforria. Isso acontece porque havia uma
indicação legal, qual seja a Lei 2.040, de 1871, que dispunha que a Ação de Liberdade devia
ser julgada de forma sumária, ou seja, com o mínimo de trâmites necessários para que não
houvesse demora.15
Por isso, realizamos o cruzamento dessa fonte com os registros de meia sisa de
escravos para tentar encontrar mais dados sobre os libertandos. Contudo, a quantidade de
informações disponíveis continua sendo pequena. A identificação da origem, por exemplo,
que é essencial para nosso estudo, é fornecida para 48 libertandos, 25,1% do total. Por isso,
analisaremos, em primeiro lugar, o perfil geral dos litigantes para divisar quem foram os
cativos que enfrentaram o poder senhorial no tribunal de Campinas na segunda metade do
XIX, para depois tentar compreender qual foi a relevância do tráfico interno nesse contexto. A
seguir, as tabelas 20 e 21 trazem os dados sobre sexo, estado conjugal e idade dos litigantes.
13
Um inventário bastante completo sobre esses autos pode ser visto em Fernando Antônio Abrahão.As Ações de
Liberdade de escravos do Tribunal de Campinas. Campinas, UNICAMP, Centro de Memória da UNICAMP,
1992. 14
Nas tabelas e gráficos deste capítulo não estão inclusos indivíduos que aparecem em um processo do Fundo de
Emancipação denominados apenas como “filhos da liberta Carolina”, não tendo sido possível identificar
informações sobre eles. Ação de depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autores: filhos
da liberta Carolina, Campinas, 1887. Centro de Memória da UNICAMP (CMU), Tribunal de Justiça de
Campinas (TJC), 2º Ofício, Processo 1699, Caixa 96. 15
Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, artigo 7º § 1º. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm (consultado em 28/03/2016).
138
Tabela 20 – Sexo e estado conjugal dos escravos em Ações de Liberdade, por
décadas (Campinas, 1860- 1888).
Mulheres Homens Total Geral
Década N Solteiras
Alguma
vez
casadas16
N Solteiros
Alguma
vez
casados
Solteiros
Alguma
vez
casados
1860 01 - - 02 01 - 01 -
1870 43 01 01 26 02 02 03 03
1880 65 01 02 53 01 - 02 02
Total 109 02 03 81 04 02 06 05
Fontes: Ações de Liberdade, Campinas, 1866-1888. Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de
Justiça de Campinas (TJC); e Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. CMU,
Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC).17
Tabela 21 – Idade dos escravos em Ações de Liberdade, de acordo com o sexo,
por décadas (Campinas, 1860-1888).
Décadas
Mulheres Homens Total Geral
Até 14
anos
De 15
a 39
anos
Mais
de 40
anos
Idade não
informada
Até 14
anos
De 15
a 39
anos
Mais
de 40
anos
Idade não
informada
Até 14
anos
De 15
a 39
anos
Mais
de 40
anos
Idade não
informada
1860 - - - 01 - 01 - 01 - 01 - 02
1870 - 09 16 18 03 03 12 08 03 12 28 26
1880 01 29 12 23 - 19 15 19 01 48 27 42
Total 01 38 28 42 03 23 27 28 04 61 55 70
A quantidade de informações disponíveis sobre o estado conjugal e a idade é bem
pequena, mas é possível observar uma maioria de mulheres alguma vez casadas enquanto a
maior parte dos homens que iniciaram Ações de Liberdade era solteira. Quanto ao sexo, vê-se
que o número de mulheres é sempre maior que o de homens, exceto na década de 1860, para a
qual temos apenas 3 escravos litigantes. Quanto à idade, sobressai a faixa etária dos 15 aos 39
anos entre as mulheres, enquanto entre os homens há um peso mais expressivo dos indivíduos
com mais de 40 anos.
Desse modo, percebe-se que o perfil geral dos libertandos difere-se em alguns
aspectos do que foi observado por Lizandra Meyer Ferraz nas alforrias em processos de
herança na década de 1860, e por Eisenberg, nas cartas de liberdade nas últimas décadas do
16
Contabilizamos aqui apenas os casamentos sancionados pela Igreja, não incluindo as uniões consensuais. 17
Todas as tabelas e gráficos deste capítulo foram elaborados a partir destas mesmas fontes. Apesar das Ações
de Liberdade terem sua data inicial em 1866, o cruzamento com os registros da meia sisa possibilitou localizar
registros desses sujeitos desde pelo menos 1860.
139
escravismo. Quanto ao sexo, apesar de Ferraz e Eisenberg verificarem que, em comparação
com a realidade demográfica do município, as mulheres receberam um número
desproporcional de alforrias, ambos observaram um aumento dos homens entre os alforriados
nas últimas décadas da escravidão.18
Nas Ações de Liberdade, a proporção de homens de fato
aumentou um pouco ao longo das décadas (era de 37,7% na década de 1870 e passou a 44,9%
nos anos 1880), mas as mulheres continuaram sendo sempre a maioria.
Sobre o estado conjugal, Ferraz encontrou uma maioria de cativos alguma vez casados
entre os alforriados na década de 186019
, o que verificamos também entre as mulheres, mas
não entre os homens litigantes, cuja maioria era de solteiros. Quanto à idade, Eisenberg e
Ferraz observaram a predominância das alforrias nas faixas etárias menos produtivas (cativos
mais jovens ou em idades avançadas),20
enquanto os libertandos nos autos judiciais se
encontravam predominantemente entre 15 e 39 anos, apesar da relevância dos indivíduos com
mais de 40 anos entre os homens.
As disparidades entre os dados sobre idade e estado conjugal observados por esses
estudos e os por nós encontrados nas Ações de Liberdade talvez estejam ligadas à quantidade
de cativos forasteiros que protagonizaram os autos judiciais, uma vez que a faixa etária e o
estado conjugal predominantes entre os libertandos – ao menos entre os homens –
corresponde ao perfil demográfico do mercado escravo, como vimos no primeiro capítulo,
isto é, solteiros em idade produtiva. A grande proporção de mulheres entre os libertandos, que
ultrapassa a observada pelos outros autores em cartas de alforrias e processos de herança,
pode estar relacionada ao fato de que, como explica Robert Slenes, o preço médio das
escravas decaiu nas últimas décadas do Escravismo,21
facilitando a compra da alforria. De
fato, a maior parte dos autos protagonizados por essas mulheres previam indenização ao
senhor (60,9% das campineiras e forasteiras).
Passemos agora à observação da origem dos libertandos. Em primeiro lugar, observa-
se uma proporção de até quatro forasteiros para cada campineiro nas décadas de 1870 e 1880,
e de quase três para um no período total analisado (gráfico 6). A única década em que os
campineiros ultrapassam numericamente os forasteiros é nos anos 1860, mas, como se pode
18
Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112-119;Peter Eisenberg, “Ficando livre: as
alforrias em Campinas no século XIX.”, op. cit., p. 263-267. Adauto Damásio também aponta para a
superioridade numérica feminina entre os alforriados. Adauto Damásio,Alforrias e Ações de Liberdade em
Campinas..., op. cit., p. 14-16. 19
Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112. 20
Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 112;Peter Eisenberg, “Ficando livre: as alforrias
em Campinas no século XIX.”, op. cit., p. 277. 21
Robert W. Slenes. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil
sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 92.
140
perceber no gráfico 6, esse dado não tem grande relevância estatística já que há apenas um
cativo com informação de origem.
Gráfico 6 – Origem dos escravos crioulos em Ações de Liberdade, por década
(Campinas, 1860-1888).
Na tabela 22 temos o detalhamento dessas informações. Observando o perfil geral dos
litigantes, verificamos que 41 são crioulos22
, correspondendo a 85,4% dos que apresentam
informação de origem, e sete são africanos (14,6%). Entre os crioulos que informaram o
município ou a província de nascimento, 26 não eram provenientes de Campinas, ou seja,
73,5%. Chamo a atenção, mais uma vez, para a informação de que a proporção de forasteiros
entre os crioulos com localidade de origem informada é quase três vezes maior que a de
escravos nascidos no município de Campinas.
Esse dado indica que os forasteiros foram aqueles que mais recorreram à justiça de
Campinas em busca da alforria, ou seja, ser forasteiro não significou um impedimento para
que tivessem a possibilidade de chegar aos tribunais. Nem mesmo para aqueles que tinham
vindo de mais longe, isto é, vítimas do tráfico inter-regional, que correspondem a 40% dos
crioulos com informação de localidade de origem.
22
Incluímos aqui as 35 pessoas cuja localidade de origem dentro do Império foi informada (como consta na
tabela 4.2) e também os seis litigantes identificados apenas como “crioulos”.
1
2 6
0
8
18
0
3 3
1860 1870 1880
Campineiros Forasteiros Localidade de origem não informada
141
Tabela 22 – Localidade de origem dos crioulos libertandos em Ações de
Liberdade (Campinas, 1860-1888).
Localidade de origem23
Número de escravos % sobre o total de crioulos com origem informada
Campinas 09 25,7
Província de São Paulo24
08 22,9
Região Sudeste25
04 11,4
Outras regiões 14 40,0
Total de crioulos 35 100
Na tabela 23 estão reunidos os tipos de processos que discutiram a liberdade escrava
no Tribunal de Justiça de Campinas, levando-se em consideração a origem.
23
Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil
(município ou província) foi informada. Não estão descritos, portanto, 07 africanos (14,6% dos dados
informados), 06 crioulos para os quais não temos informação da localidade de origem dentro do Império, e 143
litigantes com origem não identificada. 24
Não inclui os nascidos em Campinas. 25
Não inclui os nascidos na Província de São Paulo.
142
Tabela 23 – Tipos de Ações de Liberdade do Tribunal de Justiça de Campinas, de
acordo com a origem (Campinas, 1860-1888).
Tipo de Ação26
Campineiros (%)27
Forasteiros (%)
Indenização28
20,0 80,0
Liberdade29
33,3 66,7
Tráfico Ilegal30
60,0 40,0
Prestação de Serviços31
- 100
Leis 2.040 e 3.27032
- 100
Manutenção de liberdade33
50,0 50,0
As Ações de Liberdade mais numerosas julgadas pelo Tribunal de Justiça de
Campinas na segunda metade do século XIX foram aquelas que previam indenização para o
senhor, respondendo por 58,1% dos libertandos. Em segundo lugar aparecem as ações de
Manutenção de Liberdade, respondendo por 12,6% dos litigantes.
Se os forasteiros respondem por três quartos de todos os libertandos da segunda
metade do século XIX, sua proporção é ainda maior entre os que entraram na justiça para
compra da alforria ou depósito de pecúlio: 78,9% dos crioulos com localidade de origem
informada.
26
Os tipos de processos foram reunidos em grupos por semelhança. O critério de constituição de cada grupo é
explicado nas notas a seguir. 27
Os valores percentuais destas colunas foram calculados sobre o total de autores crioulos com informação de
localidade de origem (município ou província) para cada tipo de ação correspondente. 28
Aqui foram contabilizadas conjuntamente as disputas legais que previam indenização da alforria ao senhor,
denominadas Arbitramento, Pecúlio, Levantamento de Pecúlio e Fundo de Emancipação. A quantidade total de
escravos que iniciaram ações deste tipo é 111. 29
Nesta categoria reunimos as ações denominadas Averiguação da Liberdade, Justificação de Liberdade e
Liberdade, que somam 11 escravos libertandos nesse tipo de processo. 30
Esta categoria inclui dois tipos de processos que trataram de liberdade devido ao tráfico ilegal do libertando ou
de sua mãe ou avó, denominados Depósito e Tráfico Ilegal. São 18 escravos que iniciaram esse tipo de auto no
total. A ação denominada “Depósito” é um processo para depósito do cativo para averiguação de liberdade por
tráfico africano ilegal. Cf.: Ação de Depósito de escravos. Autores: José, escravo de Joaquim Celestino Soares e
Felipe, escravo de Querubim Camargo Ribeiro, Campinas, 1880-1880. Cf.: Campinas. Centro de Memória da
UNICAMP (CMU), Tribunal de Justiça de Campinas (TJC), 1º Ofício, Processo 4875, Caixa 243. 31
Neste grupo estão reunidos os processos que discutiram a alforria condicionada à prestação de serviços,
denominadas Cumprimento de Cláusula de Prestação de Serviços, Locação de Serviços e Remissão, Infração de
Contrato e Remissão de Serviços. A quantidade total de escravos que iniciaram ações deste tipo é 18. 32
Neste grupo constam processos em que a argumentação se estendeu diretamente sobre duas leis
emancipacionistas, a saber a Lei 2.040, que obrigava os senhores a matricular seus cativos, e a Lei 3.270, que
previa a libertação dos escravos de idade avançada. As ações aqui reunidas são denominadas Ações de Liberdade
pela não Efetuação da Matrícula e de Liberdade por Idade. São 09 escravos envolvidos nesses processos no total. 33
Aqui são contabilizadas apenas as ações denominadas Manutenção de Liberdade, que tratavam de pessoas
livres ou libertas ameaçadas de escravização ilegal. São 24 escravos envolvidos nesses autos no total.
143
Além disso, entre os 68 cativos litigantes que não nasceram nas escravarias em que se
encontravam no momento em que recorreram à Justiça (incluindo tanto campineiros quanto
forasteiros), pelo menos 41 iniciaram processos que previam indenização ao senhor (60,3%).
Portanto, a maioria dos cativos que havia passado pela experiência do tráfico interno ou
comércio local entrou na justiça para a compra da alforria, o que demonstra que essa
experiência não foi impeditiva para o acúmulo de pecúlio.
De modo análogo, todas as ações que envolviam contratos de serviços, assim como as
Ações de Liberdade pela não efetuação da matrícula e por idade tiveram como autores
somente forasteiros identificados.34
Os nascidos em Campinas foram maioria apenas nas
ações envolvendo tráfico africano ilegal, mas numa proporção de três indivíduos nascidos em
Campinas contra dois identificados como forasteiros.35
A maior proporção de forasteiros nesses tipos de processos pode significar que as
pessoas traficadas tivessem dificuldade de negociar suas liberdades diretamente com os
senhores, motivando o recurso à justiça. O pequeno número de campineiros pode indicar que
eles tenham tido maior facilidade de adquirir alforria por outros meios que não necessitassem
interferência judicial.
Partamos agora para uma análise densa de alguns dos casos que foram levados ao
Tribunal de Justiça de Campinas, o que permitirá melhor divisar as implicações dos dados
apresentados e de outros aspectos que não aparecem nos números.
O início dos processos de liberdade quase sempre seguia um padrão. Começavam
geralmente com a apresentação de uma petição contendo as razões do escravo ao Juiz
Municipal, que, convencido da possibilidade de prova do direito à liberdade, lhe nomeava um
curador e o remetia para um depósito público ou um depositário particular. A partir daí, o
senhor era notificado da ação e respondia com uma petição contendo sua contestação. No caso
dos arbitramentos para compra da alforria, o senhor era informado do pecúlio oferecido pelo
cativo e da avaliação provisória que fazia o Juiz Municipal. Se o senhor não concordasse
imediatamente com os valores apresentados, eram escolhidos três peritos – chamados de
louvados –, que avaliavam mais detalhadamente o escravo. Homologada a avaliação pelo Juiz
Municipal, este determinava um prazo para que o libertando completasse, se preciso, a
quantia para sua libertação. Se tudo seguisse por esse caminho, sem problemas, recursos ou
34
Entre as ações que envolviam contratos de serviços, apenas um libertando teve sua origem informada, sendo
ele forasteiro, enquanto os outros 17 não continham esse dado. Nos litígios de liberdade por não efetuação da
matrícula ou por idade, há quatro forasteiros e outros cinco libertandos com origem não informada. 35
Outros 10 litigantes em processos por tráfico ilegal não tiveram sua origem informada.
144
apelações, o processo estaria concluído dentro de poucos meses. No entanto, a realidade não
era assim tão uniforme.
Casimiro não pôde contar com a recomendada rapidez no processo judicial.36
Sua
causa de liberdade tramitou em juízo por quatro anos. Em outubro de 1879, o cativo Casimiro
José de Moura apresentou uma petição ao Juízo Municipal de Campinas alegando não ter sido
devidamente matriculado por seu senhor, Estevão José de Siqueira.37
Um curador foi então
nomeado e expôs a história de Casimiro. Ele era nascido em Minas Gerais, mas em 1871 já
residia em Santos, onde foi matriculado no ano seguinte, como propriedade de Estevão José
de Siqueira.38
Em 1875 ele foi trazido a Campinas, porém a matrícula especial, como previa a
lei 3.270, não foi realizada. O senhor, por sua vez, passou a residir em Jundiaí e depois em
Botucatu, mas também não realizou a matrícula especial de Casimiro nesses lugares.
Duas cartas precatórias foram enviadas a Botucatu para citar o senhor Estevão José de
Siqueira a respeito do processo, mas não houve resposta.39
Com isso, o Juiz Municipal de
Campinas deu a sentença à revelia do senhor, julgando procedente a alegação de liberdade de
Casimiro.40
Siqueira então resolveu dar atenção ao processo e entrou com um recurso sobre a
sentença.41
Todavia, houve desistência tácita da parte do senhor e Casimiro teve sua liberdade
efetivada judicialmente apenas em 1883.
Casimiro era mineiro, solteiro e contava 47 anos quando iniciou o processo em
Campinas. Como visto, sua vida foi marcada pela passagem por vários locais distantes de sua
terra natal. O cativeiro era constituído por uma grande instabilidade, uma vez que a venda ou
a mudança para outros locais poderia acontecer a qualquer momento, destruindo os laços
familiares e as redes de solidariedade que o cativo tivesse formado. Nesse aspecto, o tráfico
36
Lembremos que o § 1º do 7º artigo da Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, recomendava que o processo
de liberdade fosse sumário. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM2040.htm
(consultado em 28/03/2016). 37
Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor:
Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883. CMU, TJC, 1º Of., P.
4803, Cx. 239. 38
Em Santos, Casimiro residia em poder do comerciante Gustavo Backheuser. “Petição do curador Francisco
Dias Castelo Branco”. Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da
Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883.
CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239, f.4. 39
“Cartas precatórias do Juízo Municipal de Campinas”, 18/11/1879 e 24/11/1879. Ação Sumária de Liberdade
pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura,
escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883. CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239. 40
“Conclusão do Juiz Municipal”, 25/11/1879. . Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de
escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira,
Campinas, 1879-1883, CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239, f.15. 41
“Petição do senhor”, 03/12/1879. Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art.
8º § 2º da Lei nº 2040). Autor: Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-
1883 CMU, TJC, 1º Of., P. 4803, Cx. 239 , f. 17.
145
intra e interprovincial contribuíam para resultados semelhantes. Além de Casimiro, pelo
menos outros 23 libertandos da segunda metade do século XIX experimentaram essa situação
de repetitivas rupturas, pois haviam passado por outros locais após sair de suas terras de
origem e antes de chegar a Campinas e iniciar sua Ação de Liberdade. Há poucas informações
sobre a origem deles, mas sabe-se que pelo menos um nascera em Campinas e fora daí levado
para o município de Mogi Mirim.42
Apesar de ser um forasteiro e ter experimentado diversas vezes momentos de
instabilidade em sua trajetória, Casimiro não agia como um “desenraizado”. A petição inicial
do processo foi escrita e assinada pelo próprio cativo, o que é um detalhe que o diferencia da
imensa maioria dos libertandos que circularam nos tribunais de Campinas no século XIX.
Apenas dois cativos libertandos sabiam ler e escrever, Casimiro e Francisco Ferreira de Souza
Marques.43
Além de possuir certa instrução, Casimiro e Francisco tinham sobrenome. De
modo geral, era muito raro um escravo com sobrenome. Alguns autores chamam a atenção,
contudo, para adoção de sobrenomes pelos libertos como estratégia de assimilação,44
refletindo uma mudança de seu status social.45
De modo geral, como sublinha João de Pina
Cabral, o sobrenome cumpre o papel de ligar a pessoa a um “contexto de pertença social, a
estruturas de poder e processos burocráticos”.46
Encontramos pelo menos 19 libertandos portando sobrenomes nas Ações de
Liberdade. Contudo, quatro deles são processos de Manutenção de Liberdade e um de
Averiguação da Liberdade, ou seja, casos de libertos que procuravam na justiça proteção
contra tentativas de reescravização. Outros três processos são casos relacionados à prestação
de serviços para efetivação legal de alforria já concedida. Ou seja, pelo menos oito dos
42
Trata-se de Benedito, escravo da herança de Joaquim Floriano dos Santos Cruz, e que fugiu retornando à sua
terra natal (Campinas) e entrando na justiça para o reconhecimento de sua condição de livre. Ação de
Manutenção de Liberdade. Autor: Benedito, escravo da herança de Joaquim Floriano dos Santos Cruz,
Campinas, 1886-1886. CMU, TJC, 1º Of., P. 5449, Cx. 280. 43
Sua história será contada ainda neste capítulo. Autuação para Averiguação de Liberdade. Autor: Francisco
Ferreira de Souza Marques, escravo de João Ferreira de Souza Marques, Campinas, 1866-1866. CMU, TJC, 1º
Of., P. 3752, Cx. 179. 44
Richard Burton. “Names and naming in Afro-Caribbean cultures”.New West Indian Guide/ Nieuwe West-
IndischeGids 73:1-2, 1999, p. 41; John C. Inscoe. “Carolina Slave Names: An Index to Acculturation”. The
Journal of Southern History, 49:4, 1983, p. 548; Stephen Wilson.Means of naming: a social history. London,
Routledge, 1998, p. 311 Apud: Laura Álvarez-López. “Nomes pessoais e práticas de nomeação à sombra da
escravidão”. In: Lilian do Rocio Borba e Cândida Mara Britto Leite (orgs.). Diálogos entre língua, cultura e
sociedade. Campinas, Mercado das Letras, 2013, p. 153. 45
Richard Price e Sally Price. “SaramaccaOnomastics: An Afro-American Naming System”. Ethnology, v. XI, n.
4, 1972, p. 9. CitadoemLaura Álvarez-López. “Nomes pessoais e práticas de nomeação à sombra da escravidão”.
In: Lilian do Rocio Borba e Cândida Mara Britto Leite (orgs.). Diálogos entre língua, cultura e sociedade.
Campinas, Mercado das Letras, 2013, p. 153. 46
João de Pina Cabral.”Recorrênciasantroponímicaslusófonas”.Etnográfica,v.12, n. 1, 2008, p. 241 (disponível
em http://etnografica.revues.org/1684#tocto1n4, acessado em 14/04/2016).
146
libertandos com sobrenome já eram libertos. Não há consenso entre os pesquisadores sobre a
frequência da adoção do sobrenome do ex-senhor pelos libertos.47
De todo modo, isso parece
ter sido realidade para pelo menos metade dos libertos com sobrenome que encontramos
nesses autos: Egídio Teixeira Nogueira, ex-escravo de Ângelo Custódio Teixeira Nogueira;48
Ludgero Leme Martins, ex-escravo de Antônio Leme Martins;49
Bárbara Constantino dos
Santos, ex-escrava de Francisco dos Santos Pinto;50
Francisco Ferreira de Sousa Marques, ex-
escravo de João Ferreira de Sousa Marques.51
Foi possível ainda encontrar um cativo alagoano que não apresentava sobrenome no
início da Ação de Liberdade, mas adotou o sobrenome do ex-senhor após a compra da alforria
pela via judicial. Seu nome era Tobias. Ele iniciou o litígio em 1878, e a efetivação de sua
liberdade se deu em 1881.52
Em 1884 ele deu início a uma nova ação, dessa vez para compra
da alforria de sua filha, Agda, usando na ocasião o sobrenome de um antigo senhor, “Franco
de Andrade”.53
Todavia, é intrigante observar que o sobrenome adotado por Tobias uma vez
liberto não foi o do senhor a quem indenizou pela sua liberdade, Luís de Abreu Pereira
Coutinho, mas sim o do antigo proprietário, de quem Pereira Coutinho o havia comprado, no
mesmo ano do primeiro litígio, o Major Júlio Franco de Andrade. Com isso, podemos
perceber que Tobias teve uma motivação própria na escolha do sobrenome adotado, que não
se encaixa na teoria de que os escravos com sobrenome o adotavam a partir do ex-senhor
quando se libertavam, ou seja, eles faziam escolhas dentro da gama de opções de que
dispunham. Neste caso, ele pode ter considerado que o sobrenome do Major teria mais
prestígio, conferindo maior proteção para a vida em liberdade.
47
Jerome S. Handler e JoAnn Jacoby.“Slave Names and Naming in Barbados, 1650-1830”.The William and
Mary Quarterly, 53:4, 1996, p. 720; Lorenzo Turner.Africanisms in the Gullah dialect.Columbia: Universityof
South Carolina Press, [1949] 2002, p. 40; obras citadas em: Laura Álvarez-López. “Nomes pessoais e práticas de
nomeação à sombra da escravidão”. In: Lilian do Rocio Borba e Cândida Mara Britto Leite (orgs.). Diálogos
entre língua, cultura e sociedade. Campinas, Mercado das Letras, 2013, p. 153; Jean Hébrard. "Esclavage et
dénomination: imposition et appropriation d'um nom chez les esclaves de la Bahia au XIXe siecle",Cahiers du
Brésil Contemporain, n° 53/54, 2003, p. 62. 48
Ação de Manutenção de Liberdade. Autor:Egídio Teixeira Nogueira, ex-escravo de Ângelo Custódio Teixeira
Nogueira, Campinas, 1866-1867. CMU, TJC, 2º Of., P. 1660, Cx. 94. 49
Ação de Manutenção de Liberdade. Autor:Ludgero Leme Martins, ex-escravo de Antônio Leme Martins,
Campinas, 1878-1880. CMU, TJC, 1º Of., P. 4681, Cx. 231. 50
Ação de Cumprimento de Cláusula de Prestação de Serviços. Autor: Bárbara Constantino dos Santos, ex-
escrava de Francisco dos Santos Pinto, Campinas, 1884-1884. CMU, TJC, 3º Of., P. 704, Cx. 41. 51
Ação de Averiguação da Liberdade. Autor: Francisco Ferreira de Sousa Marques, ex-escravo de João
Ferreira de Sousa Marques, Campinas, 1866-1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 52
Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor: Tobias, escravo de Luís de Abreu
Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. 53
A ação foi iniciada a rogo de Tobias Franco de Andrade. Ação de Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo
Fundo de Emancipação. Autora: Agda, escrava de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1884-1886.
CMU, TJC, 1º Of., P. 5252, Cx. 269.
147
Os outros onze libertandos com sobrenome viviam em cativeiro. Pelo menos dois
deles parecem ter adotado o sobrenome ou parte do nome do senhor: Casimiro José de Moura,
escravo de Estevão José de Siqueira;54
Benjamim da Costa, escravo de Maria Emília da
Costa;55
Benedita Maria, escrava de José Maria Lisboa.56
Foi possível identificar que cinco
desses cativos eram forasteiros, e, entre os libertos com sobrenome, identificamos um que
tinha nascido em Campinas. Uma dessas mulheres forasteiras é Ursulina do Carmo, cuja
história vai ser explorada ainda neste capítulo, no próximo tópico.57
Ela nasceu e cresceu
junto com sua família na fazenda Capão Alto, no Paraná, que foi por muito tempo
administrada pela ordem dos Carmelitas, o que justifica a adoção do sobrenome “do Carmo”.
Ursulina foi comprada juntamente com um grande grupo de escravos pelo Comendador
Francisco Teixeira Vilella, em 1867.58
Nos registros de meia sisa foi possível encontrar mais
duas cativas desse grupo portando o sobrenome “do Carmo”.59
Outras 10 escravas do Capão
Alto adquiridas pelo Comendador também portavam sobrenomes. Alguns deles podem
também estar ligados a devoções, como “dos Santos”, “dos Anjos”, “da Conceição”. Nesse
grupo também chama a atenção mulheres com o mesmo nome e sobrenome, o que, em vista
das idades apresentadas, pode significar que se tratava de mãe e filha, ou parentas próximas:
há duas “Maria do Carmo” (uma com 40 anos de idade e outra com quatro), e duas “Maria
Inácia” (uma com 35 anos de idade e outra com oito).
A pertença a uma família de libertos também pode ter sido um fator determinante na
adoção de um sobrenome por pessoas escravizadas. Entre as Ações de Liberdade de
Campinas, temos o exemplo do libertando Pedro Ramos, que pode ter adotado o sobrenome
54
Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (art. 8º § 2º da Lei nº 2040). Autor:
Casimiro José de Moura, escravo de Estevão José de Siqueira, Campinas, 1879-1883. CMU, TJC, 1º Of., P.
4803, Cx. 239. 55
Ação de Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autor: Benjamim da Costa, escravo
de Maria Emilia da Costa, Campinas, 1881-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 10112, Cx. 547. 56
Ação de Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Benedita Maria, escrava de José Maria Lisboa,
Campinas, 1874-1874. CMU, TJC, 1º Of., P. 4439, Cx. 216. 57
Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autora: Ursulina do Carmo, escrava do
Comendador Francisco Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95. 58
Sobre a comunidade escrava de Capão Alto e os escravos de Francisco Teixeira Vilella ver: Joice Fernanda de
Souza Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista: Escravos no Comércio Interno de Cativos e suas Experiências
em Campinas, 1850-1888. Dissertação (Mestrado Em História), UNICAMP, Campinas, 2013, capítulo 3, p. 143-
193; A comunidade de origem de Ursulina do Carmo também é investigada em Eduardo Spiller Pena. “Burlas à
lei e revolta escrava no tráfico interno do Brasil meridional, século XIX”, in: Silvia Hunold Lara e Joseli Maria
Nunes Mendonça (org.). Direitos e justiças no Brasil. Ensaios História Social. Campinas, Editora da
UNICAMP, 2006, p. 161-197. 59
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas,1867. CMU, Coletoria e Recebedoria de Rendas de
Campinas (CRC).
148
da esposa liberta, Joana Ramos.60
O pecúlio apresentado em juízo para compra de sua alforria
também foi doado pela esposa.
Casimiro José de Moura, além de saber ler e escrever e portar um sobrenome, entendia
alguma coisa sobre a legislação emancipacionista do Império, uma vez que citou na petição o
parágrafo 2º do artigo 8º da Lei de 28 de setembro de 1871, que dispunha sobre a obrigação
senhorial de matricular seus cativos. Talvez seja exagerado atribuir tanto conhecimento legal
a um cativo; afinal, como podemos assegurar que ele tenha redigido por si só tal petição?
De fato, não é possível afirmar com exatidão se Casimiro e outros cativos que
protagonizaram Ações de Liberdade julgadas nos tribunais do Império de fato conheciam os
códigos e disposições legais citados em seus libelos de liberdade ou arrolados por seus
curadores em sua defesa. Nem se compreendiam os significados jurídicos – e políticos – de
suas pendengas contra os senhores. Mas, certamente, não estavam alheios às transformações
que vinham acontecendo no Império a respeito do encaminhamento do “elemento servil”. No
convívio com seus pares e também com indivíduos livres (militantes ou não do movimento
abolicionista), decerto aprenderam o que poderiam utilizar para justificar sua liberdade diante
do aparato judicial naqueles tempos.61
Considerando a relevância das alianças e redes de
solidariedade formuladas por homens e mulheres dentro do cativeiro para suas articulações
nas querelas judiciais contra seus senhores, passemos ao próximo tópico, em que essas
parcerias são analisadas.62
4.2. Alianças pela liberdade
A historiografia tem mostrado que a presença de um aliado na luta judicial – e também
fora dela – pode ter sido um fator importante para encorajar e sustentar a luta escrava contra o
cativeiro nos tribunais do século XIX. Geralmente era necessário que alguém redigisse e
assinasse o requerimento de liberdade, já que a imensa maioria dos cativos não sabia ler e
escrever. Também era importante contar com alguém que o protegesse tanto quanto possível
60
Ação de Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Pedro Ramos, escravo de Joaquim Bueno, Campinas,
1874-1874. CMU, TJC, 1º Of., P. 4440, Cx. 216. Não foi possível identificar a origem de Pedro. 61
Elciene Azevedo. Direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas,
Editora da Unicamp, 2010, p. 114-120. 62
Também discutimos sobre a importância das diferentes alianças forjadas pelos cativos nas lutas nos tribunais
em trabalho anterior: Leticia G. B. de Freitas. Escravos nos tribunais: o recurso à legislação emancipacionista
em ações de liberdade do século XIX. Monografia (Graduação em História), UNICAMP, Campinas, 2012.
149
das presumíveis represálias de um senhor contrariado. Portanto, o libertando precisava ter
relações pessoais bem consolidadas.63
Para entender como a origem e a experiência do tráfico pode ter influenciado – ou não
– a formulação dessas parcerias nos litígios pela liberdade em Campinas, vamos examinar
alguns dados numéricos. Para começar, verificamos as ações que possuem mais de um autor.
Na tabela 24, podemos ver a quantidade de cativos que iniciaram litígios juntos, segundo a
origem.64
Tabela 24 – Distribuição dos escravos em Ações de Liberdade coletivas e
individuais, por origem (Campinas, 1860-1888).
Tipo de ação Campineiros
65 Forasteiros
N % N %
Ações coletivas 05 55,6 02 7,7
Ações individuais 04 44,4 24 92,3
Total 09 100 26 100
A maior parte dos cativos iniciou litígios individuais. A leitura da tabela 4.5 indica,
entretanto, uma singular disparidade entre a proporção dos forasteiros e a de campineiros
envolvidos em Ações de Liberdade coletivas. Não só proporcionalmente, mas também
numericamente, os escravos autores campineiros se sobrepõe ao de forasteiros nos processos
coletivos, sendo mais que o dobro. Somente uma ação coletiva foi protagonizada por
forasteiros, no caso duas escravas nascidas nos municípios de Amparo e Rio Claro.66
Mesmo
nesse processo, todavia, havia mais campineiros envolvidos. Eram três cativos nascidos em
Campinas, as duas forasteiras e mais quatro pessoas com origem não informada. Os nove
cativos eram filhos e netos de Guilhermina, liberta que conseguira o reconhecimento de sua
liberdade por tráfico ilegal em 1886, mesmo ano em que essa ação coletiva foi iniciada.
Impressiona neste processo a capacidade cativa de reunir tantos membros da família em uma
63
Keila Grinberg. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da corte de apelação do Rio de Janeiro
no século XIX. Rio de Janeiro,Relume-Dumará, 1994, p. 69-70. Sobre os riscos ao escravo que demandava
judicialmente contra seu senhor, ver também Elciene Azevedo. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama
na imperial cidade de São Paulo. Campinas, Editora da UNICAMP, 1999,p. 220. 64
Chamamos de ações coletivas aquelas que foram encabeçadas por dois ou mais escravos autores
conjuntamente. 65
Estamos considerando nesta tabela apenas os cativos crioulos cuja localidade de origem dentro do Brasil foi
informada. A distribuição dos crioulos em geral é de 10 envolvidos em ações coletivas e 31 em ações
individuais. Os dados para os africanos são 03 em ações coletivas e 04 em individuais. Sem considerar a origem,
verifica-se que 63 cativos iniciaram ações coletivas, e 127 ações individuais. 66
Ação de Liberdade baseada na Lei de 07 de novembro de 1831 (tráfico ilegal). Autores: Inês, João,
Henriqueta, Josefina, Valentina, Olímpia e Clementina, escravos de Domingos Francisco de Morais e outros,
Campinas, 1886-1888. CMU, TJC, 1º Of., P. 5458, Cx. 280.
150
só causa de liberdade, ainda que não pertencessem todos ao mesmo senhor e morassem em
localidades diversas.
Além das ações protagonizadas por mais de um cativo autor, verificamos alianças
feitas com outros personagens nas demandas judiciais. Alguns desses aliados eram advogados
que simpatizavam ou militavam pela causa abolicionista,67
como o rábula Luís Gama que
direto da capital de São Paulo se ergueu em prol de pelo menos dois escravos de Campinas
para defender suas liberdades. Um deles foi Antônio, nascido em São Paulo e escravo da
senhora Maria Fausta de Castro Muller em Campinas.68
Luís Gama solicitou o início do processo alegando que a liberdade de Antônio
constava do testamento da senhora, mas que ela o vendera mesmo assim a Bartolomeu
Rodrigues Funchal. Interrogado o escravo Antônio, que estava em poder de Funchal,
constatou-se não se tratar da mesma pessoa libertada no testamento da senhora Muller.69
Todavia, não podemos descartar também as alianças que não são mencionadas nos
processos, como amigos, familiares e militantes do movimento abolicionista que davam
suporte ao cativo litigante, ajudando-o na fuga para se apresentar à justiça, ou na constituição
do pecúlio, por exemplo. Essas alianças são difíceis de vislumbrar na documentação, todavia,
contabilizando as ações coletivas e também aquelas que foram solicitadas por advogados
abolicionistas ou por familiares do libertando, temos pelo menos 70 escravos, o que
corresponde a 36,6% dos litigantes. Sabemos o local de nascimento dentro do Império para
apenas 11 crioulos: cinco deles eram nascidos no município de Campinas (45,45% entre os
crioulos), quatro na própria Província de São Paulo, dois de fora da região Sudeste
(totalizando 54,45% de forasteiros entre os crioulos). No entanto, pelo menos 13 desses
libertandos para os quais não temos informação de origem chegaram a residir em outras
localidades da Província antes de vir para Campinas, o que é um forte indicativo de que
fossem também forasteiros.
Logo, os dados indicam que, apesar de não serem maioria nas ações coletivas, mais
forasteiros tiveram aliados em seus litígios. Porém, proporcionalmente, os campineiros foram
os mais beneficiados por essas alianças, uma vez que seu número corresponde a 55,5% dos
campineiros, enquanto que os seis forasteiros que tiveram aliados correspondem a 23,1% de
67
Elciene Azevedo. O Direito dos escravos...,op. cit., p. 49. 68
Ação de Liberdade. Autor: Antônio, escravo de Maria Fausta de Castro Muller, Campinas, 1875-1876. CMU,
TJC, 2º Of.,Cx. 95, P. 1668. 69
O outro processo que teve solicitação de Luís Gama foi protagonizado por Caetano. Cf.: Ação de Liberdade
baseada na Lei de 07 de novembro de 1831 (tráfico ilegal). Autor: Caetano, escravo de Joaquim Policarpo
Aranha, Campinas, 1880-1881. Cf.: CMU, TJC, 2º Of., Cx. 95, P. 1683.
151
todos os não nascidos em Campinas que entraram na justiça na segunda metade do século
XIX. Por outro lado, pelo menos 23 dos escravos com presença de aliados nos processos
(32,85%) tinham sido comprados depois de 1860. Podemos considerar que esses indivíduos
talvez tenham enfrentado dificuldades semelhantes às dos forasteiros para angariar tais
parcerias em seus litígios pela liberdade, haja vista que não haviam nascido nos locais onde
residiam.
O caso de Ursulina do Carmo é bastante interessante no que diz respeito às alianças
formadas para aquisição da liberdade por cativos forasteiros. Em 1875, essa escrava iniciou
ação cível contra os herdeiros de seu falecido senhor Francisco Teixeira Vilella para comprar
a liberdade mediante a apresentação de seu pecúlio.70
Durante o desenrolar do processo, os
herdeiros tentaram por diversas formas impedir que ela se alforriasse. Em determinado
momento, questionaram qual seria a origem do pecúlio acumulado. A resposta a esse
questionamento ocasionou uma singular revelação:
“respondeu tê-lo acumulado em virtude de seu trabalho e de doações
pequenas que lhe fizeram algumas pessoas, tendo recebido algum dinheiro
de sua mãe que lhe mandou da província do Paraná e também de sua irmã,
forra existente nessa cidade, que se a quantia exibida for insuficiente para
completar o preço da indenização do seu justo valor, tenciona obter o que
faltar, pedindo ou por empréstimo a alguém que se queira confiar para
depois de liberta pagar, ou empenhando-se com sua irmã Leocádia do Carmo
que lhe forneça a quantia precisa”.71
A compra da escrava Ursulina pelo Comendador Francisco Teixeira Vilella não consta
entre os registros da meia sisa. Todavia, essa documentação revela que, entre os anos de 1864
e 1868, Vilella adquiriu 307 novos escravos.72
Entre eles encontra-se Leocádia, a irmã de
Ursulina que teria lhe emprestado dinheiro para compra de sua alforria.73
Leocádia havia sido comprada em meio a um enorme grupo de cativos adquiridos de
uma só vez pelo comendador e registrado nos livros da meia sisa em fevereiro de 1868.74
Esse
grupo continha 186 cativos e vinha de uma comunidade escrava que existia há muitos anos na
70
Ação de Arbitramento para Liberdade. Autor: Ursulina do Carmo, escrava do Comendador Francisco
Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95. 71
Ação de Arbitramento para Liberdade. Autor: Ursulina do Carmo, escrava do Comendador Francisco
Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95, grifos nossos. 72
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1864-1868. CMU, Coletoria e Recebedoria de
Rendas de Campinas (CRC). 73
A escrava Leocádia não aparece com sobrenome nos registros da meia sisa. Registros da Meia Sisa de
escravos da cidade de Campinas, 1868. CMU, Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC). 74
Apesar de ter sido registrada no ano de 1868, essa compra foi realizada no ano anterior, uma vez que a cativa
Leocádia foi indiciada em crime cometido no município de Campinas em 1867, como vimos no capítulo 2
(páginas 78-9). Processo Crime. Réus: Januário, Cândido e Leocádia, escravos de Francisco Teixeira Vilella,
Campinas, 1867. Campinas. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em São Paulo (CSP),
Seção Processos Crimes do Interior – Campinas (ACI), Microfilme CSP 215, Documento 004.
152
fazenda de Capão Alto no município de Castro, Província do Paraná. Apesar de o registro do
pagamento da meia sisa atinente à compra de Ursulina não ter sido encontrado, tudo leva a
crer que ela fazia parte desse mesmo grupo, uma vez que também havia nascido na província
do Paraná.
Com os dados presentes na Ação de Manumissão e nos registros da meia sisa, e com
consulta à bibliografia,75
foi possível reconstituir vários elementos das trajetórias de vida
dessas duas mulheres: elas nasceram em Curitiba, Paraná, e viviam em meio a várias famílias
escravas, na fazenda Capão Alto. Quando Leocádia e Ursulina tinham por volta de 18 e 37
anos, respectivamente, uma transação entre o Comendador Vilella e a firma Gavião Ribeiro &
Gavião as trouxe para Campinas. A mãe das irmãs, todavia, permaneceu na localidade de
origem. Em Campinas, elas conseguiram juntar certa quantia em dinheiro, que usaram para
adquirir suas liberdades. Leocádia do Carmo conseguiu sua carta de alforria em 1873,
pagando ao senhor a quantia de 1:200$000 réis.76
Já Ursulina do Carmo, após ser avaliada por
médicos na ação judicial que moveu contra os irredutíveis herdeiros de Vilella, pagou
650$000 réis pela sua liberdade, efetivada em 1876.
Apesar de tantos detalhes sobre a trajetória das irmãs, ainda uma pergunta se impõe
diante das palavras de Ursulina, reproduzidas algumas páginas atrás: como a mãe, residente
na Província do Paraná, poderia ter lhe enviado a quantia que auxiliou a compra da sua
alforria? Como a família mantinha contato mesmo com tantos quilômetros de distância?
Em sua Dissertação de Mestrado, Joice F. Oliveira analisou com grande acuidade a
comunidade escrava pertencente ao Comendador Francisco Teixeira Vilella, e formulou uma
hipótese muito interessante para responder essas perguntas sobre as famílias de Capão Alto:
“Acreditamos que Ursulina contava com solidariedade de seu companheiro
Virgilino (…) [. Ele] exercia o ofício de tropeiro na comunidade de Santa
Maria [fazenda de Vilella], o que deve tê-lo permitido manter contato com
seus companheiros, os quais ficaram no Paraná e assim levava notícias e
encomendas de um canto a outro”.77
Histórias como a de Ursulina e Leocádia do Carmo elucidam alguns aspectos da
experiência e estratégias de escravos que foram comercializados em Campinas após o
fechamento do tráfico atlântico. A capacidade de manter os laços familiares mesmo após a
75
Sobre a comunidade escrava de Capão Alto e os escravos de Francisco Teixeira Vilella ver, principalmente
Joice Fernanda de Souza Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., capítulo 3, p. 143-193; A
comunidade de origem de Ursulina e Leocádia também é investigada em Eduardo Spiller Pena. “Burlas à lei...”,
op. cit., p. 161-197. 76
Alforrias de escravos. AEL, Fundo Peter Eisenberg, Fichas de Peter Eisenberg, Pasta 2, ficha n°544. Fonte
citada em Joice F. de S. Oliveira. Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 186. 77
Joice F. de S. Oliveira, Forasteiros no Oeste Paulista...,op. cit., p. 187.
153
transferência para outra província é singular e, certamente, foi o desejo da maioria dos
homens e mulheres escravizados, assim como a própria conquista da liberdade.
A alforria não foi possível, entretanto, para a maioria dos seus companheiros da
comunidade de Capão Alto trazidos às fazendas do Comendador Vilella. Como demonstra
Joice Fernanda Oliveira, apenas 21 cativos de Francisco Teixeira Vilella conseguiram se
alforriar entre os anos 1852 e 1888.78
Entre eles, somente quatro eram forasteiros: Ursulina,
Leocádia, Edwiges e Inácio.79
Outro episódio que ocorreu no Tribunal de Justiça de Campinas expõe a possibilidade
de constituição e defesa da família escrava em meio a uma situação tão desfavorável. Tobias
Franco de Andrade, do qual falamos algumas páginas atrás, veio de longe, da Província de
Alagoas. Em 1878, iniciou ação contra seu senhor Luís de Abreu Pereira Coutinho para
arbitramento de sua alforria apresentando um pecúlio de 1:400$000 rs.80
A avaliação
provisória do Juiz Municipal foi de 800$000 rs. Os valores não foram aceitos pelo senhor
Pereira Coutinho81
e, com a impossibilidade do acordo, Tobias seguiu para a avaliação dos
peritos.
Como já exposto, os escravos que litigavam contra seus senhores corriam o risco de
sofrer retaliações mesmo durante o processo, por isso, uma vez que o litígio se iniciava, o
escravo era colocado em depósito público ou privado, em casa de uma pessoa livre que
assumisse a responsabilidade e os cuidados pelo cativo enquanto durasse o litígio e o
apresentasse em juízo quando fosse necessário. Essa pessoa era chamada de “depositário” e, o
nomeado para resguardar Tobias e seu pecúlio durante o processo foi o fazendeiro Abílio de
Camargo Andrade. No meio do litígio ele se mudou para fora do município, levando consigo
o libertando e o pecúlio. O fato foi prontamente reclamado pelo procurador do senhor, sendo
então nomeado um novo depositário, o próprio curador de Tobias, Francisco Glicério de
Cerqueira Leite.
A mudança do município levando o cativo pode ter sido uma estratégia para tratar o
processo com certa morosidade, dando assim possibilidades a Tobias de desfrutar de alguma
liberdade enquanto a peleja transcorria no foro e até mesmo dando-lhe mais facilidade para
completar o pecúlio necessário. Assinalamos a possibilidade de haver aí uma estratégia
78
Joice F. de S. Oliveira,Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 162. 79
Joice F. de S. Oliveira,Forasteiros no Oeste Paulista..., op. cit., p. 163. 80
Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu
Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. 81
“Ofício”, em 02/10/1878. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias,
escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233.
154
escrava, pois havia certa proximidade entre Tobias e o fazendeiro Camargo Andrade, já que
este fora citado pelo libertando como guardião do seu pecúlio antes mesmo que o processo
fosse iniciado e foi nomeado depositário por sugestão do curador, em nome do cativo. A
bibliografia mostra que não era raro que os escravos litigantes passassem a desfrutar de
liberdade já no depósito, contando algumas vezes com a demora proposital do curador nos
procedimentos jurídicos exatamente para que pudesse assim permanecer longe do domínio
senhorial por algum tempo.82
O mesmo se pode dizer a respeito da presença de Francisco
Glicério como seu curador e depois depositário, já que ele era um conhecido abolicionista.
Sendo examinado pelos arbitradores, Tobias teve o preço de sua liberdade fixado em
1:800$000 rs.83
O curador juntou petição alegando que o valor era exorbitante, tendo em vista
que em um inventário aberto em 1872 Tobias foi avaliado em 1:200$000 rs.84
Na ocasião do
processo, ele já contava idade maior de 50 anos e o curador ressaltou que “com a idade se
aumentam os achaques, as doenças e os defeitos dos escravos”.85
Todavia, o juiz negou a
diminuição do valor arbitrado. Tentou-se ainda a Apelação para o Tribunal da Relação de São
Paulo, porém a quantia avaliada foi mantida. 86
Assim, Tobias só conseguiu completar o valor
e adquirir sua liberdade em 1881.87
Tobias era proveniente de Alagoas e, antes de chegar às mãos de Luís de Abreu
Pereira Coutinho, pertencia ao seu cunhado, o Major Júlio Franco de Andrade. Este o tinha
recebido em 1872 em herança pelo falecimento de seu pai, o Coronel José Franco de
Andrade.88
Em 1874, Tobias passou a pertencer à firma social Coutinho e Andrade, formada
pelos dois cunhados.89
Sabemos, no entanto, que o cativo estava na Província de São Paulo
82
Elciene Azevedo.O Direito dos escravos…, op. cit., p. 125. 83
“Arbitramento”, em 02/12/1878. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio.
Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731,
Cx. 233. 84
“Declaração da Avaliação do Inventário post mortem do Coronel José Franco de Andrade”, 1872, Ação de
Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira
Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. f. 26. 85
“Petição do Curador Francisco Glicério” . Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio.
Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731,
Cx. 233. f. 26. 86
“Termo de Apelação”, em 15/03/1879 e “Acordão da Relação”, em 31/10/1879. Ação de Arbitramento para
Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas,
1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233. 87
Traslados de Execução de Sentença, de Sentença e de Sobressentença, 1881. Traslado de Ação de
Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira
Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 2º Of., P. 06, Cx. 01. 88
“Declaração de avaliação do cativo Tobias no inventário post mortem do Coronel José Franco de Andrade”
Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu
Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233.f.27. 89
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1878. Coletoria e Recebedoria de Rendas de
Campinas (CRC). CMU. “Declaração de Matrícula”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de
155
pelo menos desde 1871, ano de nascimento de sua filha Agda, que era proveniente da
província e também constante do grupo de escravos pertencentes à firma social Coutinho e
Andrade.90
Em 1878, a firma social foi dissolvida e Pereira Coutinho pagou a metade que lhe
cabia em 130 escravos, incluindo Tobias e sua filha. Na ocasião da dissolução e partilha da
firma social, Tobias foi, de fato, avaliado em 1:800$000, o que foi uma das alegações do
senhor para que o valor do arbitramento judicial fosse mantido.91
A contestação senhorial
ainda permitiu identificar mais um detalhe na história de Tobias: ele era feitor e recebia
salários pelo seu serviço, o que deve ter sido a origem do seu pecúlio.92
O senhor Luís de Abreu Pereira Coutinho faleceu sem testamento em 1880 e, em seu
inventário, aberto no mesmo ano, consta uma lista de matrícula dos escravos adquiridos pela
dissolução da sociedade em 1878. Nela observamos que Tobias era preto, com boa aptidão
para o trabalho, trabalhador de roça, casado com Teodora93
e pai de Agda.94
Tobias não foi
avaliado no inventário, uma vez que estava tratando de sua liberdade. Sua filha, todavia,
aparece na lista de bens avaliados, pela quantia de 1:200$000 rs.95
A lista de escravos adquiridos em 1878 contém a maior parte dos cativos avaliados no
inventário e é bastante informativa com relação ao perfil da escravaria de Pereira Coutinho. A
imensa maioria dos cativos estava ocupada na lavoura, respondendo por 88,9% das ocupações
informadas.96
Acerca do estado conjugal (casamentos reconhecidos pela Igreja), observamos
Pecúlio. Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P.
4731, Cx. 233. anexa ao processo. 90
Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. CMU, TJC, 4º Of., P. 4739, Cx.
162. 91
“Vista ao procurador”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias,
escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. ”. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233 f.
32. 92
“Vista ao procurador”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio. Autor:Tobias,
escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. ”. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731, Cx. 233 f.
33. 93
Não conseguimos obter nenhuma informação sobre a esposa de Tobias, Teodora, mas ela provavelmente era
também escrava de Pereira Coutinho, pois, apesar de seu nome não constar das listas de matrícula e de avaliação
dos bens anexas ao inventário, ao lado do nome de Tobias na lista de matrícula dos escravos de 1878 há anotação
“marido de Teodora n. 11619”. O número 11.619 infelizmente não consta na lista de matrícula, sendo Tobias o
11.618 e sua filha Agda o número 11.620, o que talvez tenha sido um erro do escrivão. Lista anexa ao Inventário.
Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. 4739, Cx. 162. 94
Lista anexa ao inventário. Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. CMU,
TJC, 4º Of., P. 4739, Cx. 162. 95
Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1880. CMU, TJC, 4º Of., P. 4739, Cx.
162. 96
Apenas 13 escravos foram identificados como trabalhadores especializados ou envolvidos em ocupações
domésticas, contra um montante de 104 trabalhadores de roça. Inventário post mortem de Luís de Abreu Pereira
Coutinho, Campinas, 1880. CMU, TJC, 4º Of., P. 4739, Cx. 162. Lista anexa ao inventário.
156
que 20,1% dos escravos eram casados (29 indivíduos),97
e outros 2,8% viúvos (4), restando os
outros 77,1% (111) como indivíduos solteiros. Havia 15 crianças nessa comunidade, mas
apesar do número ser pequeno, nota-se que todas contavam com a presença de ambos os pais
na comunidade.
Quanto à origem, a comunidade escrava da propriedade de Pereira Coutinho era
composta por uma maioria forasteira, sendo que 63,6% dos crioulos eram, como Tobias,
provenientes de províncias fora do Sudeste. Por outro lado, um número considerável de
cativos havia nascido na própria província paulista: 33,1%.98
Desse modo, a senzala se
delineava como uma comunidade com o predomínio de forasteiros, trabalhadores da lavoura e
solteiros, mas com a presença de alguns casais com filhos.
Tobias, Teodora e Agda formavam uma dessas famílias nucleares e a luta pela
liberdade era um projeto familiar. Em 1884, três anos depois de conseguir a efetivação de sua
alforria, Tobias iniciou outra ação na justiça, para depósito de 100$000 no Fundo de
Emancipação para a libertação da filha.99
Já com 15 anos de idade, ela ainda foi identificada
no processo como escrava de Luís de Abreu Pereira Coutinho, uma vez que o inventário do
senhor continuava em tramitação.
Contudo, a liberdade de Agda não foi conquistada nesse processo. A petição para
depósito no Fundo de Emancipação foi deferida, no entanto, dois anos depois, em 1886, o pai
Tobias juntou nova petição, afirmando que:
“Como, porém, acontece que o suplicante não tem esperança de ver a sua
filha libertada pelo fundo de emancipação, por estar na classe dos
indivíduos, requer que a V. Exc.ª. se digne ordenar lhe seja passado
mandado de levantamento da referida quantia e juros respectivos”.100
Foram calculados juros de 5% sobre os dois anos e 22 dias decorridos entre as petições
iniciais e finais do processo, chegando a um montante de 110$301 rs a ser devolvido à
libertanda.
97
Um dos escravos identificados como casado não traz com seu nome a informação do nome da esposa, o que
pode ser um indício de que ela fizesse parte de outra propriedade escrava ou fosse liberta/ livre. 98
No inventário consta apenas a província de nascimento dos cativos, não sendo possível saber ao certo quais
eram nascidos em Campinas ou em outros municípios de São Paulo. Os números para essas cifras são 39
indivíduos nascidos na Província de São Paulo, 04 em outras províncias do Sudeste e 75 nascidos em outras
regiões do Império. Há ainda 12 africanos. 99
Nessa Ação de Liberdade, Tobias já aparece com um sobrenome: Tobias Franco de Andrade. Ação de
Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autora: Agda, escrava de Luís de Abreu
Pereira Coutinho, Campinas, 1884-1886. CMU, TJC, 1º Of., P. 5252, Cx. 269. 100
“Petição”, em 18/07/1886. Ação de Depósito de Pecúlio para Liberdade pelo Fundo de Emancipação. Autora:
Agda, escrava de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1884-1886. CMU, TJC, 1º Of., P. 5252, Cx. 269.
157
4.3. Momento de início do litígio
Em trabalho anterior,101
que teve como cenário a cidade do Rio de Janeiro,
observamos a importância dos momentos de compra e venda para motivar a iniciativa dos
cativos nas demandas judiciais pela alforria. Das 39 Apelações Cíveis de liberdade que
analisamos naquele estudo, 16 foram iniciadas logo após a venda do cativo e oito quando a
transação estava sendo tratada ou o cativo sofrera ameaça de ser vendido, perfazendo 61,5%
dos autos examinados.
As Ações de Liberdade julgadas em Campinas mostram uma realidade um pouco
diferente. Entre os processos para os quais foi possível ter informações sobre o tempo
decorrido entre a compra do cativo e o início do litígio, 46,2% se deram nos cinco primeiros
anos após o libertando ter sido comprado pelo senhor que aparece como réu. Os 53,8%
processos restantes aconteceram de seis a vinte anos após as transações de compra desses
cativos. Para melhor discutir esses dados, vamos verificá-los levando em consideração a
origem dos cativos (tabela 25) e o tipo de ação impetrada (tabela 26).
Tabela 25 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram
Ações de Liberdade, por origem (Campinas, 1860-1888).
Tempo de moradia
Campineiros Forasteiros
N % N %
Menos de um ano 01 25,0% 01 5,0%
1 a 5 anos 02 50,0 06 30,0
6 a 10 anos 01 25,0 04 20,0
11 a 15 anos - 0,0 07 35,0
16 a 20 anos - 0,0 02 10,0
Total com origem e tempo de moradia
informado 04 100,0 20 100,0
A análise dos dados mostra que pelo menos 33,3% dos campineiros que recorreram à
justiça para demandar por sua alforria na segunda metade do Oitocentos haviam passado pelo
comércio local há até cinco anos (primeira e segunda linhas da tabela). Entre os forasteiros,
esse percentual cai para 26,9%. De fato, apesar de independentemente da origem a maior
parte dos libertandos residir nas escravarias há mais de seis anos, essa proporção é ainda
maior quando se trata dos forasteiros.
101
Leticia G. B. de Freitas. Escravos nos tribunais..., op. cit.
158
Assim, precisamos olhar para esses dados por um ângulo diferente do que observamos
nos casos de crimes e fugas. Afinal, o início de um processo de liberdade não poderia se dar
de maneira repentina, pois dependia da aquisição de recursos humanos (aliados) e materiais
(pecúlio, por exemplo). Isso pode indicar que os campineiros, mesmo mudando de senhor e
passando pela experiência do comércio local, tenham tido maior facilidade – e rapidez – para
angariar os recursos necessários para levar à justiça sua causa de liberdade. Todavia, para os
forasteiros foi, em geral, necessário um tempo maior para encontrar meios que lhes
proporcionassem alguma segurança na decisão de ir aos tribunais.
Tabela 26 – Tempo de moradia dos escravos nas propriedades quando iniciaram
Ações de Liberdade, por tipo de processo (Campinas, 1860-1888).
Tipo de ação x tempo de moradia
Menos
de um
ano
01 a 05
anos
06 a 10
anos
11 a 20
anos
Mais de
20 anos
Indenização ao senhor 5,1% 28,2% 28,2% 35,9% 2,6%
Liberdade - 66,7 - 33,3 -
Tráfico ilegal - - 25,0 75,0 -
Prestação de Serviços - 66,7 33,3 - -
Leis 2.040 e 3.270 - 66,7 - 33,3 -
Manutenção de liberdade 7,7 76,9 7,7 - 7,7
Total 4,6 41,5 21,5 29,2 3,1
Quando observados os tipos de Ações de Manumissão, verifica-se que em 66,7% das
ações envolvendo pecúlio, os litigantes estavam há mais de seis anos naquelas escravarias.102
Esse dado realça a necessidade de algum tempo para que o escravo recém-chegado a uma
nova escravaria acumulasse seu pecúlio e tivesse oportunidade de intentar uma ação na justiça
para a compra de sua alforria.
No lado oposto, vê-se que 84,6% das ações para Manutenção de Liberdade se deram
nos primeiros cinco anos em poder dos novos senhores, o que pode indicar que as tentativas
de reescravização combatidas nessas ações estavam ligadas às transações de compra e venda.
Isto porque a venda gerava documentos que materializavam o ato reescravizador e também
porque causava mudanças efetivas na vida do cativo.
Foi assim que Francisco Ferreira de Souza Marques entendeu o planejamento de sua
venda para o Capitão Camilo Xavier Bueno da Silveira e protagonizou uma interessante
102
Para este percentual, somamos os correspondentes a 6 a 10 anos de moradia, 11 a 20 anos e mais de 20 anos.
159
pendenga judicial iniciada para provar sua liberdade em 1866.103
Ele havia nascido na
escravaria de João Ferreira de Souza Marques, no município de Campinas, tinha 27 anos, era
solteiro e tinha ofício de pedreiro. Mas Francisco era um escravo do tipo fujão.104
Em uma de
suas fugas se dirigiu à cidade de São Paulo onde se apresentou ao Chefe de Polícia da
Província alegando ser liberto. O Chefe de Polícia prontamente expediu uma solicitação ao
Juiz Municipal de Campinas, para que a alegação de Francisco fosse devidamente
averiguada.105
Constava que sua liberdade estava ameaçada em vista de os herdeiros de seu
senhor, falecido há cerca de quatro anos (em 1862),106
estarem planejando sua venda para o
Capitão Bueno da Silveira.107
De acordo com Francisco, a alforria foi dada pela senhora Gertrudes Maria de Jesus,
que tinha parte da propriedade sobre ele em vista da partilha após a morte de seu marido, o
senhor João Ferreira de Souza Marques. A outra metade pertencia a um dos herdeiros, a quem
ele deveria pagar 750$000 rs para usufruir de sua liberdade.108
A senhora teria dito então “que
trabalhasse para pagar a outra metade”109
. Todavia, “ultimamente indo ter com ela dizendo-
lhe que lhe passasse recibo das quantias que lhe ia dando por conta, disse-lhe esta que ele era
cativo”.110
Contudo, Francisco insistia na liberdade combinada com dona Maria de Jesus em vista
de outro fato. Em 1863 Francisco havia sido preso na cidade de São João Batista do Atibaia,
por ter sido encontrado com uma faca.111
Nessa ocasião mandou um recado à senhora em
Campinas pedindo que escrevesse uma carta ao Juízo de Atibaia, a fim de evitar que ele fosse
punido.112
A carta dizia que ele “metade era livre, metade cativo”113
. A senhora negou a
existência dessa carta, mas ela foi confirmada pelo filho dela, Benedito Ferreira Marques, que
teria escrito a mensagem a pedido da mãe. Apesar de ter afirmado que “essa carta foi escrita
103
Autuação para Averiguação de Liberdade. Autor: Francisco Ferreira de Souza Marques, escravo de João
Ferreira de Souza Marques, Campinas, 1866-1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 104
“Petição de Dona Gertrudes Maria de Jesus”, em 12/06/1866. Autuação para Averiguação de Liberdade.
Autor: Francisco Ferreira de Souza Marques, escravo de João Ferreira de Souza Marques, Campinas, 1866-
1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 105
“Portaria do Chefe de Polícia da Província de São Paulo”, em 19/03/1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.
179. 106
“Informações Tiradas de Dona Gertrudes Maria de Jesus” CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179, f.10. Ver
também Inventário de João Ferreira Marques, 1863. CMU, TJC, 3º. Of., P. 6990, Cx. 202. 107
“Termo de informação tomada ao Capitão Camilo Xavier Bueno da Silveira” CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.
179. f. 8. 108
“Auto de Qualificação em Traslado de processo crime”, 1866. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. 109
“Perguntas ao preto Francisco”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179, f.9. 110
“Perguntas ao preto Francisco”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179, f.9. 111
Consta traslado de partes do processo crime anexos à Ação de Liberdade. 112
“Informação do preto Benedito, escravo de dona Gertrudes Maria de Jesus”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.
179 f. 11v. 113
“Perguntas ao preto Francisco”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. f. 9 e 9v.
160
com o único fim de livrar esse escravo que então estava preso de apanhar na grade da Cadeia,
e nunca com o fim de por qualquer modo conceder a liberdade ao dito escravo”,114
essa
informação apontou uma contradição no depoimento de Dona Gertrudes, o que foi enfatizado
no arrazoado do curador.115
A senhora negou tudo com veemência, chegando a afirmar que “que nunca recebeu de
seu escravo nem sequer uma pataca de jornal há quatro anos depois da morte de seu
marido”.116
O Juiz Municipal concluiu em favor da viúva e dos herdeiros e a venda de
Francisco ao Capitão Bueno da Silveira foi concluída pouco depois.117
Francisco ainda teria
que enfrentar outro momento de instabilidade em sua vida, pois cinco anos depois o capitão
também faleceu, e mais um processo de partilha entre os herdeiros foi vivido pelo preto.118
Esta história mostra que mesmo os cativos nascidos nas lavouras campineiras não
estavam seguros diante do mercado de escravos do município. Francisco tinha pelo menos um
familiar na fazenda, o irmão mais velho, de nome Benedito.119
A morte de seu senhor
desencadeou mudanças na sua vida, que foram compreendidas por ele como oportunidade de
manumissão, mas também representaram ameaça à sua estabilidade. Por isso, logo após a
morte do senhor, Francisco passou a fugir e, quando percebeu que sua venda estava sendo
tramada, direcionou sua fuga para um local bem definido. Para Lizandra M. Ferraz, que
também analisou este processo, o apelo de Francisco ao Chefe de Polícia de São Paulo não foi
despropositado, uma vez que ele poderia ser também um militante da causa abolicionista.120
Portanto, Francisco, que sabia ler, apesar de não saber escrever, tinha consciência do
que era necessário fazer para se proteger do destino planejado pelos herdeiros de Ferreira
Marques. A venda para o Capitão Bueno da Silveira representava uma grande mudança de
realidade. Na escravaria de origem, havia apenas três escravos: Francisco, sua mãe Maria e o
irmão Benedito.121
Com a venda, além de ficar distante dos membros da família, Francisco
114
“Informação de Benedito Ferreira Marques”, CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. f. 10v. 115
“Vista ao Curador Rodrigo Otavio de Oliveira Menezes”, em 26/4/1866, CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.
179.f.18. 116
“Informações tiradas de Dona Gertrudes Maria de Jesus”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx. 179. F.10. 117
Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, ano fiscal 1865-1866. CMU, CRC. 118
O processo de inventário, todavia, se arrastou até 1894, conforme o detalhado estudo sobre a escravaria do
Capitão Camilo Xavier Bueno da Silveira feito por Cristiany Miranda Rocha, em História de famílias escravas:
Campinas, século XIX. Campinas, Editora da UNICAMP, 2004. 119
“Informação do preto Benedito, escravo de dona Gertrudes Maria de Jesus”. CMU, TJC, 1º Of., P. 3752, Cx.
179, f. 11.
120
Seu nome era Cândido Xavier de Almeida e Souza. Lizandra M. Ferraz. Entradas para a liberdade..., op.
cit.,p. 164-5. 121
Inventário post mortem de João Ferreira Marques, 1863. CMU, TJC, 3º Of., P. 6990, Cx. 202. Fonte citada
em: Lizandra M. Ferraz, Entradas para a liberdade..., op. cit., p. 153.
161
faria parte de uma grande escravaria, já que o Capitão Silveira era um grande proprietário,
possuidor de mais de duas centenas de cativos.122
O cativo Tobias, cujo processo de arbitramento para liberdade descrevemos
anteriormente, também iniciou o litígio por sua alforria em um momento bastante específico.
Como vimos, ele foi adquirido pelo Major Júlio Franco de Andrade em 1872, em herança de
seu pai. Em 1874, Tobias passou a pertencer à firma social formada por Luís de Abreu Pereira
Coutinho e o major.123
Em 1878, ano em que deu início ao litígio, Tobias passou a pertencer unicamente a
Pereira Coutinho, com a dissolução da sociedade com o Major Franco de Andrade.124
Não é
possível saber se a dissolução e a partilha da sociedade representaram alguma mudança
efetiva na vida daqueles 130 cativos, mas podemos conjecturar que Tobias tenha percebido
nessa transação uma oportunidade para a compra de sua alforria, uma vez que se tinha sido
feita uma avaliação de seu preço.
Todavia, o que sugerimos que pode ter sido mais determinante na decisão de Tobias
de apresentar seu pecúlio na justiça naquele momento é o fato de ele ter sido hipotecado pelo
senhor Pereira Coutinho a Antônio de Freitas Guimarães. Não é possível afirmar com certeza
se o cativo sabia da hipoteca, mas o fato é que Pereira Coutinho efetivou a compra da metade
que lhe cabia na sociedade Coutinho & Andrade em 18 de julho de 1878 e sua fazenda foi
hipotecada com toda sua escravatura a Freitas Guimarães no dia seguinte. Menos de três
meses depois, Tobias iniciou o litígio pela sua liberdade. Além disso, como era feitor da
fazenda, é bastante provável que ele tivesse acesso privilegiado a informações. Tobias pode
ter julgado ser mais prudente tomar alguma atitude para garantir seu futuro antes de ser
entregue a um novo senhor, mesmo não possuindo o montante suficiente para indenizar o
valor pelo qual foi avaliado na dissolução da firma social Coutinho & Andrade.
Apesar de ele ter demorado mais algum tempo para completar a quantia necessária
para indenizar sua alforria, a estratégia de entrar na justiça naquele momento funcionou, uma
vez que Tobias já não aparece na lista avaliada no inventário do senhor, que foi aberto em
122
O Capitão possuía 275 escravos na ocasião de seu falecimento, em 1871. Lizandra M. Ferraz,Entradas para a
liberdade..., op. cit.,p. 156. Sobre esse escravista ver também Cristiany M. Rocha. História de famílias
escravas..., op. cit. 123
No ano em que a escravaria passou a pertencer à firma social, isto é, em 1874, outro cativo também entrou na
justiça com vista a indenizar sua alforria com seu pecúlio: Joaquim Mina, avaliado em 1:800$000 rs. Ação de
Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Joaquim Mina, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho e
Júlio Francos de Andrade, Campinas, 1874-1875. CMU, TJC, 2º Of., Cx. 95, P. 1667. 124
“Declaração de Matrícula”. Ação de Arbitramento para Liberdade por Apresentação de Pecúlio.
Autor:Tobias, escravo de Luís de Abreu Pereira Coutinho, Campinas, 1878-1881. CMU, TJC, 1º Of., P. 4731,
Cx. 233.; e Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1878. CMU, CRC.
162
1880, quando o processo ainda estava em andamento. Na lista dos escravos que foram
adquiridos por Pereira Coutinho em 1878, que está anexa ao inventário, Tobias aparece com a
anotação “forro” ao lado de seu nome. Essa anotação, provavelmente, foi adicionada pelo
inventariante em 1881, quando a alforria foi efetivada em juízo pela indenização completa.
Como vimos, três anos após conseguir comprar sua liberdade, Tobias investiu na
tentativa de comprar também a de sua filha Agda, o que se deu enquanto o processo de
inventário do senhor ainda tramitava, isto é, em momento de mais uma incerteza quanto ao
futuro de um membro da família. A história de Tobias mostra a constituição da família após o
tráfico para Campinas, os momentos de instabilidade vivenciados por causa das escolhas dos
proprietários e as estratégias familiares para obtenção da alforria. A ocupação de Tobias como
feitor parece ter sido importante para o acúmulo do pecúlio que utilizou para a compra da
liberdade. No entanto, isto não evitou que a família passasse por momentos de incerteza e
instabilidade, como os processos de dissolução da firma Coutinho & Andrade, de hipoteca da
escravaria e de falecimento e inventário de Luís de Abreu Pereira Coutinho.
A morte do senhor geralmente representava um momento de incertezas na vida dos
cativos.125
Isso pode ser visto, por exemplo, na história de Ursulina do Carmo, analisada há
pouco. Ela era forasteira e iniciou um processo aparentemente simples de arbitramento da
liberdade, mas que tramitou em meio a muitos obstáculos interpostos pelos herdeiros do
falecido senhor Francisco Teixeira Vilella, que contestaram a origem de seu pecúlio.126
Outra escrava da herança de Vilella, todavia, também teve sua liberdade dificultada
pelos herdeiros. Rita era nascida em Campinas e tinha 67 anos quando iniciou processo para
compra de sua alforria.127
Tentando atrapalhar o andamento do litígio, os herdeiros de Vilella
a levaram para um sítio em Limeira. Além disso, também questionaram a legalidade da
origem do pecúlio apresentado para compra de sua alforria e afirmaram que ela estava
hipotecada.
As histórias das duas cativas, Ursulina e Rita, demonstram que, ao menos a princípio,
ser campineira ou forasteira não representava grande diferença para a aquisição da liberdade
nos tribunais. Nesses casos, o que mais pesou para as dificuldades impostas à aquisição da
alforria não foi a origem das libertandas, mas sim a obstinação dos herdeiros, premidos pelas
125
Sidney Chalhoub. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão naCorte. São Paulo,
Companhia das letras, 1990, p. 111-2. 126
Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autora: Ursulina do Carmo, escrava do
Comendador Francisco Teixeira Vilella (falecido), Campinas, 1875-1876. CMU, TJC, 2º Of., P. 1669, Cx. 95. 127
Ação de Liberdade por apresentação de pecúlio. Autora: Rita, escrava de Maria Josefa da Conceição,
Gabriel Alves de Assunção e José Teixeira Vilella, Campinas, 1879-1881. CMU, TJC, 2º Of., P. 1681, Cx. 95.
163
dívidas deixadas pelo Comendador. De fato, Vilella faleceu deixando todos seus bens
hipotecados, incluindo todas as fazendas e a imensa escravaria.128
*
A análise do perfil dos cativos presentes nas Ações de Liberdade julgadas na segunda
metade do século XIX em Campinas mostrou que alguns desses indivíduos vieram de
bastante longe. Dos 26 crioulos não nascidos em Campinas, 14 vinham de províncias fora do
Sudeste, isto é, 53,8%. Esses, certamente, haviam experimentado uma situação de
desenraizamento maior. Todavia, praticamente todos eles conseguiram obter sua alforria ao
fim da demanda judicial.
De fato, a proporção de processos que terminaram com a liberdade do cativo foi
semelhante tanto entre campineiros quanto entre forasteiros: 88,9% dos primeiros e 88,5%
dos últimos.129
Isso mostra que, pelo menos no que tange às possibilidades de conquista da
alforria por meio da justiça, forasteiros e campineiros tiveram resultados praticamente iguais,
apesar de um número muito maior de forasteiros ter recorrido à justiça para tanto. Isso pode
indicar que outros fatores além da origem tenham sido relevantes para determinar as
possibilidades de um cativo buscar sua alforria nos tribunais ou considerar necessário acionar
esse tipo de estratégia.
Chamamos a atenção, por exemplo, para a importância da presença de um aliado na
demanda judicial e para os momentos de incerteza vividos pelos cativos, como ameaças de
venda, falecimento do senhor ou hipoteca dos cativos, o que os motivava a buscar a justiça
como forma de garantir a alforria. Além disso, aparentemente, as motivações para a busca da
alforria nos tribunais eram maiores ao longo do tempo de permanência desses indivíduos nas
fazendas, uma vez que os que tinham tempo de moradia maior foram os que mais tentaram
consegui-la pela via judicial, pois tinham maiores possibilidades de juntar pecúlio e comprar
sua liberdade, por exemplo.
A desproporção entre forasteiros e campineiros nessas pendengas judiciais pode
indicar, por outro lado, que os primeiros tenham tido maior dificuldade de negociar suas
alforrias diretamente com os senhores, sendo então necessária a interferência judicial.
128
Inventário post mortem do Comendador Francisco Teixeira Vilella, Campinas, 1873. CMU, TJC, 1º Of., P.
4359, Cx. 257. 129
Incluímos aqui as ações cuja sentença foi “procedente” ou “deferida”, como nas ações de depósito de Pecúlio
ou Fundo de Emancipação, por exemplo; e também as em que o cativo conseguiu indenizar o senhor e comprar a
alforria.
164
O que mais salta aos olhos nas histórias por trás das Ações de Liberdade, contudo, é a
capacidade que os forasteiros tiveram para angariar recursos, formular novas alianças e até
mesmo manter laços de solidariedade ou familiares na luta pela alforria.
165
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise de uma documentação diversa, ao longo deste estudo, buscamos
observar as experiências dos indivíduos que foram trazidos ao município de Campinas no
contexto de intensificação do comércio interno de escravos na segunda metade do século
XIX. Chamando essas pessoas de forasteiros, tentamos identificar o quanto a experiência do
tráfico interferiu em suas trajetórias de vida e quais estratégias utilizaram para sobreviver aos
impactos do tráfico interno.
Retomando a questão sobre quem eram esses forasteiros, colocada no início deste
trabalho, notamos que mais da metade (50,9%) dos cativos que se envolveram em crimes,
iniciaram Ações de Liberdade ou fugiram das propriedades senhoriais após 1860 eram
crioulos trazidos ao Sudeste pelo tráfico interprovincial.1 As diferentes distâncias dos locais
de origem parecem ter tido uma relevância significativa sobre as experiências desses
indivíduos. Ainda que, de maneira geral, todos os escravos comercializados enfrentassem
alterações nas políticas de domínio e na relação com o senhor a que estavam sujeitos na terra
natal, além da separação de familiares e a desestruturação de redes de solidariedade, aqueles
que tinham nascido em áreas próximas de Campinas mas foram submetidos ao tráfico
intraprovincial, poderiam ter maior esperança de rever antigos companheiros. Tinham
também algumas vantagens em relação a seus outros companheiros por conhecer melhor o
ambiente ao redor do município, o que pode ter facilitado fugas e outras estratégias de
resistência à escravidão.
Outro aspecto importante para definir quem eram esses forasteiros diz respeito ao
tempo transcorrido entre sua chegada às novas escravarias e seu envolvimento em crimes,
ações de liberdade e evasões. Distribuímos os cativos encontrados nas fontes judiciais e
anúncios de fuga analisados em dois grupos, distinguindo entre aqueles que eram “recém-
chegados” (com até 10 anos de moradia) e os mais “ladinos” (mais de 10 anos de moradia).2
1 Vale ressaltar que é possível que parte desses cativos tenha chegado ao Sudeste junto com senhores que
migraram para estas paragens. Não deixa de se tratar, todavia, de indivíduos submetidos à migração forçada.
Dados referentes à Tabela 1, p. 39. 2 Esse procedimento de análise foi desenvolvido por Ricardo Pirola em seu estudo sobre os rebeldes escravos
julgados pela lei de 10 de junho de 1835. Cf.: Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma
história social da lei de 10 de junho de 1835. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2015, p. 247ss.
166
Com isso, buscamos vislumbrar as diferentes possibilidades de atuação que se colocavam para
os indivíduos transacionados, uma vez inseridos nas escravarias de Campinas.3
Ainda que o tempo de residência não seja um dado suficiente para discutir o peso que
a experiência do tráfico interno teve sobre a ação cativa, como ressaltamos na introdução
deste trabalho, usá-lo em um procedimento de análise como esse permite ao menos
vislumbrar o campo de possibilidades que se delineava diante dos forasteiros em momentos
diferentes de sua vida em Campinas. Ao dividirmos nossos sujeitos em grupos residentes nas
escravarias há mais ou menos de 10 anos corremos o risco de estar escolhendo a faixa de
tempo “errada” para a análise. Se, por exemplo, observássemos os residentes até cinco anos
ou mais, poderíamos encontrar proporções diferentes. Afinal, quanto tempo era necessário
para que um cativo forasteiro deixasse de ser um “recém-chegado”? Todavia, a estratégia
analítica adotada nos parece válida neste momento conclusivo, uma vez que permite uma
flexão das observações que vimos fazendo até agora, confirmando resultados já evidenciados
em outros momentos da Dissertação.
Tabela 27 – Distribuição dos escravos réus, vítimas, fugitivos e litigantes por
origem e tempo de moradia no momento da ação (Campinas, 1860-1888).
Campineiros
Forasteiros Geral
Papel Até 10
anos %
Mais
de 10
anos
%
Total tempo
de moradia
informado
Até 10
anos %
Mais
de 10
anos
%
Total tempo
de moradia
informado
Total
geral
Réus 04 66,7 02 33,3 06
35 72,9 13 27,1 48 54
Vítimas - - - - -
05 62,5 03 37,5 08 08
Fugitivos 05 100,0 - - 05
148 93,7 10 6,3 158 163
Litigantes 04 100,0 - - 04
11 55,0 09 45,0 20 24
Total com
tempo de
moradia
informado
13 86,7 02 13,3 15
199 85,0 35 15,0 234 249
Fontes: Registros da Meia Sisa de escravos da cidade de Campinas, 1860-1884. Centro de Memória da Unicamp
(CMU), Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas (CRC); Ações de liberdade, Campinas, 1866-1888.
Centro de Memória da Unicamp (CMU), Tribunal de Justiça de Campinas (TJC); Seção Processos Crimes do
Interior – Campinas (ACI), Campinas, 1860-1886. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), Fundo Autos Crimes em
São Paulo (CSP); Gazeta de Campinas, 1869-1884.
A grande maioria dos escravos réus, vítimas, fugitivos e litigantes pela liberdade,
considerados conjuntamente, se envolveu nessas situações nos 10 primeiros anos em poder
3 Ressaltamos que, os dados de que dispomos correspondem apenas ao tempo em que esses forasteiros estavam
nas propriedades no momento em que praticaram as ações retratadas na fonte, não observando o tempo que
podem ter estado anteriormente em Campinas em poder de outro (s) senhor (es).
167
dos novos senhores, tanto entre os campineiros (86,7%),4 quanto entre os forasteiros (85%).
Entre os últimos, essa proporção é ainda maior quando se trata das fugas (93,7%), o que pode
indicar que os recém-chegados viam na evasão a primeira estratégia possível na luta contra o
tráfico, como supôs Pirola ao notar um número muito pequeno de cativos inclusos na faixa
“menos de um ano” de moradia na mesma fazenda entre os pronunciados pela lei de 10 de
junho de 1835.5 De fato, como visto no capítulo 3, um percentual significativo de fugitivos
tinha chegado às fazendas há menos de um ano (33,5% dos forasteiros com tempo de moradia
informado).6
Em segundo lugar, vemos os crimes como situações que envolveram esses forasteiros,
como réus ou vítimas, numa proporção bastante alta entre os recém-chegados (72,9%). As
Ações de liberdade, igualmente, foram intentadas mais frequentemente por forasteiros
residentes há menos de 10 anos nas escravarias, apesar de ter uma proporção um pouco mais
equilibrada (55%), com relação às outras ações escravas.
Certamente, o protagonismo dos indivíduos trazidos para Campinas pelo tráfico
interno em atos de criminalidade contribuiu para disseminar o epíteto do “negro mau vindo do
norte”, ainda que Célia Azevedo saliente que esse tema tenha surgido nos discursos
parlamentares em conformidade com os interesses dos deputados que pretendiam impedir a
continuidade do tráfico de escravos para São Paulo,7 tendo um cunho bastante racista e
imigrantista. Por outro lado, ao olhar para as ações desses indivíduos em busca de liberdade
na justiça, podemos identificar alianças e situações que permitem discutir de outra forma as
estratégias desses sujeitos diante do tráfico interno – afinal, o recurso aos tribunais não foi
possível a um número muito grande de escravos no período, o que torna especialmente
singular a presença massiva de desenraizados nesse número.
Como já apontou Maria Helena Machado, é possível verificar que a rigidez do
trabalho e as condições de vida a que os cativos estavam submetidos foram importantes
elementos ligados às suas formas de mobilização.8 Todavia, Machado não considerou que
essas inquietações se apresentaram mais latentes entre aqueles que vinham de realidades
muito diferentes, com maior autonomia e esperanças de alforria nos seus locais de origem.
Como demonstra a historiografia, os pequenos proprietários não tinham como impor a
4 Contabilizamos aqui apenas os campineiros que passaram por transações de venda.
5 Ricardo Pirola. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de junho de
1835. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2015, p. 247. 6 Conforme Tabela 18, p. 123.
7 Célia M. M. Azevedo. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 111-118. 8 Maria Helena P. T. Machado. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2ª Ed. Rev.
São Paulo: Edusp, 2010, p. 25.
168
disciplina aos seus cativos como os grandes cafeicultores. E a liberdade – ao menos como
promessa – era uma arma senhorial de barganha que dava certa esperança ao cativo. Dentro
das fazendas de café em Campinas, os homens e mulheres adquiridos no comércio interno
sabiam que a tão sonhada liberdade estava ainda mais distante, uma vez que os senhores
esperavam que eles compensassem seu alto preço com trabalho duro e prolongado. 9
Como verificou Maíra Chinelatto, os crimes da década de 1870, em relação com o
período anterior à intensificação do tráfico interno, ocorreram em propriedades maiores e
envolveram mais escravos,10
muitos deles, como vimos, eram forasteiros. Chinelatto também
constatou que os réus escravos da década de 1870 premeditaram mais frequentemente os
crimes contra feitores e senhores, do que os da década de 1840,11
o que demonstra de antemão
a cumplicidade cativa que se delineava nessas senzalas, mesmo nas propriedades maiores,
onde a proporção de forasteiros era bastante significativa.
Contudo, o fato de que os forasteiros tenham sido maioria entre os cativos que
compraram sua alforria na justiça pode indicar, por um lado, suas expectativas com relação às
possibilidades de adquirir a alforria por meio de acordos privados com o senhor. Por terem
vindo de fora e não gozarem dos favores senhoriais que, talvez, se estenderiam às “crias da
casa”, podem ter visto na justiça o meio mais provável de garantir a liberdade. Podemos
imaginar também que alguns desses libertandos tenham trazido de seus locais de origem ao
menos uma parte do pecúlio apresentado em juízo, já que muitos vinham de áreas urbanas e
exerciam ocupações especializadas.
Por outro lado, o menor número de campineiros que iniciaram ações de liberdade
nesse período, em comparação com sua proporção entre a população escrava do município,
permite conjecturar que tenham desenvolvido outras estratégias para aquisição da liberdade,
como a proximidade com a casa grande e o mundo dos livres. Indo um pouco além nessa
especulação, podemos sugerir que esse tenha sido um dos motivos pelos quais os campineiros
também se envolveram mais frequentemente que os forasteiros em conflitos com livres e
9 Robert Slenes, “The Brazilian internal slave trade, 1850-1888. Regional economies, slave experience, and the
politics of a peculiar market”. In: Walter Johnson (org). The chattel principle: internal slave trades in the
Americas. New Haven e Londres, Yale University Press, 2004, pp. 325-70; “Laços de família e direitos no final
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Companhia das Letras, 1997, pp. 337-383; Silvia Hunold Lara. “Trabalhadores escravos”. In: Trabalhadores,
n.1, Campinas, Fundo de Assistência à cultura, 1989, p. 09; Sidney Chalhoub. “Costumes senhoriais:
escravização ilegal e precarização da liberdade no Brasil Império”, In: Elciene Azevedo et al. (org.)
Trabalhadores na cidade: Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX . Campinas,
Editora da Unicamp, 2009, p. 55. 10
Maíra Chinelatto. Quando falha o controle: crimes de escravos contra senhores. Campinas, 1840/1870.
Dissertação (Mestrado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 127. 11
Maíra Chinelatto. Quando falha o controle..., op. cit., p. 127.
169
outros escravos, do que com senhores e feitores, como mostra a documentação criminal
analisada.12
Também foi bem menor o número de campineiros encontrados entre os fugitivos de
Campinas. Todavia, pode ser que nossa fonte tenha exagerado o número de forasteiros
fugitivos, isto é, não podemos descartar a possibilidade de que muitos campineiros também
tenham fugido, mas não tenham tido a evasão noticiada na Gazeta, talvez pelo fato de os
senhores não acreditarem que eles pudessem ir muito longe, já que suas famílias estavam nas
fazendas. Ou por, de fato, terem sido capturados mais rapidamente do que os forasteiros.
Se, entretanto, os forasteiros tenham, com efeito, fugido mais frequentemente,
podemos supor que eles nutriam fortes laços familiares nos locais de origem, e desejavam
ansiosamente revisitar sua família, o que só poderiam fazer através de ações mais incisivas,
seja a fuga, o crime ou a compra da alforria. Tais laços estavam, porém, mais próximos no
caso dos campineiros, ainda que não na mesma senzala, constituindo diferentes necessidades,
anseios e estratégias.
Logo, os resultados da análise quantitativa feita nesta pesquisa, bem como do
acompanhamento de algumas histórias dos escravos que chegaram a Campinas por meio do
tráfico interno, indicam que essa experiência certamente contribuiu de forma decisiva para as
atitudes desses sujeitos, uma vez que não aceitavam as novas políticas de domínio nas quais
foram inseridos, bem como tinham o forte desejo de revisitar seus antigos laços familiares e
de solidariedade.
Ressaltamos, contudo, que os atos de rebeldia escrava que investigamos não foram
cometidos por todos os cativos forasteiros residentes no município. Nem mesmo pela maioria
deles. Por isso, não podemos simplesmente considerar todos os forasteiros como rebeldes,
como “negros maus vindos do norte”, nem classificar as ações retratadas nas fontes como
reações instintivas. Mesmo passando por situação muito desfavorável, como era o tráfico
interno, em especial o interprovincial, essas pessoas não perderam as esperanças de
influenciar no seu próprio destino, formulando novas redes de solidariedade e estratégias para
exigir condições melhores de vida e trabalho nas novas escravarias, bem como para lutar por
sua liberdade.
Reforçamos, por isso, a evidência de que, uma vez introduzidos nas escravarias do
município, os forasteiros não permaneceram como estranhos e desenraizados, no sentido mais
profundo da palavra, isto é, não perderam suas raízes. Elas permaneciam com eles, como pode
12
Vide Tabela 8, p. 61.
170
ser notado nos vários forasteiros que mencionaram os nomes de seus pais nos autos criminais,
por exemplo. Ao mesmo tempo em que a dor dos rompimentos sociais e afetivos e a não
aceitação das novas relações de trabalho estão no cerne dos motivos que levaram tantos
cativos forasteiros a fugir, ou a atuar nos tribunais, seja como libertando, ou sentado no banco
dos réus, foi também sua capacidade de criar novos laços de solidariedade e cumplicidade,
bem como a constituição de novos projetos de vida, que lhes conferiu a possibilidade de
realizar esses atos.
É muito difícil identificar essas redes de sociabilidade de uma maneira mais completa,
que permita avaliar se esses forasteiros estavam ou não integrados nas escravarias em que
chegaram. Podemos sugerir, todavia, que havia de fato algum nível de integração desses
sujeitos com os locais, já que vários se uniram a companheiros de cativeiro para cometer
crimes, fugir ou demandar judicialmente por sua liberdade. Acreditamos que as ações
coletivas desses sujeitos tenham sentidos profundos dentro da análise da sociabilidade
escrava, uma vez que demonstram a junção de pessoas de origens diversas em torno de
objetivos comuns, seja ele evadir-se do poder senhorial ou “dar cabo” de uma pessoa que
desagradava à senzala.
Se fossem “estranhos” à comunidade, certamente esses sujeitos não seriam cotados
para fazer parte de planos importantes que decidiam o futuro da senzala – e alguns exerceram
até mesmo papéis de destaque em alguns delitos. Quando consideramos oposições no interior
de uma senzala dividida, seja em razão de incentivos senhoriais ou por diferenças de origem
dos cativos, e uma senzala apaziguada por relações familiares formais (com casamentos
reconhecidos pela igreja, por exemplo), corre-se o risco de excluir da análise histórica uma
série de sociabilidades e capacidades de reelaboração que esses homens e mulheres
escravizados vivenciaram em suas lutas cotidianas. Além de apontar a presença massiva de
forasteiros entre o cativos que lutaram de diversas formas contra o cativeiro em Campinas na
segunda metade do Oitocentos, a análise das fontes permitiu observar que, mais do que tão
somente uma reação ao tráfico, suas atitudes foram fruto de uma reelaboração de sua luta
contra a escravidão em uma situação ainda mais desfavorável.
171
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Arquivo Edgard Leuenroth (AEL)
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post mortem, Campinas, 1860-1888;
Coletoria e Recebedoria de Rendas de Campinas – Registros da Meia Sisa de
escravos da cidade de Campinas, 1860-1884.
b) Fontes impressas
Periódico
Gazeta de Campinas, 1869-1884.
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http://www4.planalto.gov.br/legislacao
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