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UNIVERSIDADE DO ALGARVE FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS A DIMENSÃO IDEOLÓGICA EM SEARA DE VENTO, DE MANUEL DA FONSECA E VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS (Dissertação para a obtenção do grau de mestre em Literatura, especialização em Literatura Comparada) LÚCIA DA CONCEIÇÃO CRUZ FARO (2008)

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UNIVERSIDADE DO ALGARVE

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

A DIMENSÃO IDEOLÓGICA EM SEARA DE VENTO, DE MANUEL DA FONSECA

E VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS

(Dissertação para a obtenção do grau de mestre em Literatura,

especialização em Literatura Comparada)

LÚCIA DA CONCEIÇÃO CRUZ

FARO

(2008)

UNIVERSIDADE DO ALGARVE

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

A DIMENSÃO IDEOLÓGICA EM SEARA DE VENTO, DE MANUEL DA FONSECA

E VIDAS SECAS, DE GRACILIANO RAMOS

(Dissertação para a obtenção do grau de mestre em Literatura,

especialização em Literatura Comparada)

LÚCIA DA CONCEIÇÃO CRUZ

FARO

(2008)

NOME: Lúcia da Conceição Cruz

DEPARTAMENTO: Faculdade de Ciências Humanas e Sociais

ORIENTADOR: Doutor Petar Dimitrov Petrov

DATA: 30 de Junho de 2008

TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: A dimensão ideológica em Seara de Vento, de Manuel da

Fonseca e Vidas Secas, de Graciliano Ramos

JÚRI:

Presidente: Doutor João Manuel Minhoto Marques, Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências

Humanas e Sociais da Universidade do Algarve

Vogais: Doutor Petar Dimitrov Petrov, Professor Associado com agregação da Faculdade de

Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve

Doutora Vânia Pinheiro Chaves, Professora Associada da Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa

Resumo:

O Neo-Realismo português e o Romance Social brasileiro da década de 30 são dois movimentos

literários baseados numa visão crítica da sociedade e na crença da literatura como forma de

denunciar a injustiça social e a exploração do homem pelo homem. Estes dois movimentos

literários baseiam-se numa ideologia marxista e na crença de que o homem pode modificar o seu

destino e contribuir para a construção de uma sociedade justa. Em Seara de Vento e Vidas Secas os

temas recorrentes são a opressão, a alienação, a violência e a injustiça social. Estes temas são

tratados através das categorias narrativas do espaço físico e social e na forma como as

personagens se inter-relacionam. Os narradores de ambos os romances defendem uma ideologia

marxista, que surge expressa através das suas marcas de intrusão na narrativa e nas suas formas de

ver o mundo.

Palavras-chave: Neo-Realismo, Romance Social Brasileiro, ideologia marxista, Realismo.

Abstract:

The portuguese neo-realism and the social brazilien novels from the 30rds are two literary

movements lingered in its critical view of society and its belief in literature as a mean of exposing

social injustice and men exploitation by its equals. These two literary movements defend a marxist

ideology in which men can change his destiny and contribute to the raise of a fair society. In Seara

de Vento and Vidas Secas main themes are opression, alienation, violence and social injustice.

These subjects are displayed through narrative categories such as physical and social space and by

the way in which characters inter connect among themselves. Both novels have narrators who

stand by a marxist ideology visibly disclosed in their intrusions towards the narrative and personal

conceptions of the world.

Key-words: Neo-realism, brasilian social novel, marxist ideology, realism.

À memória de meu pai

Agradecimentos

Ao Professor Doutor Petar Petrov, meu orientador da Tese, os meus sinceros

agradecimentos, pelos seus conselhos, pelas suas sugestões, pela sua orientação,

disponibilidade e confiança.

Índice

Introdução...........................................................................................................................................1

I. O Neo-Realismo português e o Romance Social Brasileiro dos anos 30....................................3

1. O Neo-Realismo português....................................................................................................3

1.1. Contexto histórico-cultural português ..............................................................................3

1.2. O movimento neo-realista português.................................................................................8

2. O Romance Social Brasileiro na década de 30..........................................................................20

2.1. Contexto histórico-cultural do Brasil.............................................................................20

2.2. O regionalismo na Literatura Brasileira..........................................................................24

2.3. O Romance Social brasileiro da década de 30................................................................31

II – A dimensão ideológica de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca e de Vidas Secas de

Graciliano Ramos.............................................................................................................................37

1. A dimensão temática de Seara de Vento e Vidas Secas.....................................................37

2. A dimensão ideológica de Seara de Vento e Vidas Secas.................................................63

Conclusão..........................................................................................................................................77

Bibliografia .......................................................................................................................................79

1. Corpus literário..........................................................................................................................79

2. De âmbito histórico....................................................................................................................79

3. De Teoria Literária.....................................................................................................................79

4. Sobre Literatura Portuguesa.......................................................................................................80

5. Sobre a obra de Manuel da Fonseca..........................................................................................81

6. Sobre Literatura Brasileira.........................................................................................................82

7. Sobre a obra de Graciliano Ramos............................................................................................84

Introdução

O presente trabalho tem como base o estudo comparativo dos romances Seara de Vento, do

escritor português Manuel da Fonseca, publicado em 1958 e Vidas Secas, do escritor brasileiro

Graciliano Ramos, publicado em 1938. Com esta análise comparativa procuramos demonstrar de

que forma as componentes semânticas e pragmáticas se evidenciam nestes dois romances de teor

neo-realista.

Na primeira parte do nosso trabalho abordamos os dois movimentos literários em que estão

integrados os romances em causa, o Neo-Realismo português e o Romance Social brasileiro da

década de 30. Para tal, começamos por abordar o contexto sócio-cultural de cada um dos países,

destacando os factores de ordem política, social e cultural que possam ter estado na origem do

carácter interventor da literatura produzida neste período, em ambos os países.

Ao abordar os dois movimentos literários procuramos traçar uma caracterização desses

dois movimentos tendo em conta as suas vertentes temáticas, ideológicas e as suas opções

retórico-estilísticas. Assim sendo, ao abordar o movimento neo-realista português procuramos,

em primeiro lugar, determinar a sua delimitação cronológica. Paralelamente salientamos os

factores que possam ter contribuído para tornar possível a delimitação das suas fases.

Apontamos também as condições que levaram à formação de uma geração literária e os

pressupostos teóricos do referido movimento. Tendo em conta a posição de ruptura deste

movimento não só com as coordenadas da estética realista e naturalista do seculo XIX, mas

também com a concepção de fenómeno literário defendida pela geração presencista, procuramos

ainda descortinar e explicar a sua dimensão ideológica, evidenciar a sua vertente temática e

caracterizar a ficção literária neo-realista relativamente às preferências em termos de géneros

literários e de opções retórico-estilísticas. No momento em que abordamos o Romance Social

brasileiro da década de 30, centramos a nossa atenção na evolução e caracterização do

Regionalismo na Literatura Brasileira. Tendo em conta essa vertente regionalista própria da

Literatura Brasileira, procedemos à caracterização do romance brasileiro da década de 30,

destacando as opções retórico-estilísticas e as formas geneológicas adoptadas, a sua dimensão

ideológica e a sua segmentação em ciclos romanescos.

1

Na segunda parte do trabalho, centramo-nos no estudo comparativo dos dois romances,

Seara de Vento, de Manuel da Fonseca e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Com base nos

pressupostos da semiose literária, procedemos à análise dos temas, dos processos retóricos e

ideológicos dos dois romances em função das categorias narrativas do espaço e das personagens.

Através desta análise, procuramos desvendar a componente semântica de cada um dos romances

e assim destacar as vertentes temáticas de ambas as narrativas. Com o objectivo de evidenciar a

componente ideológica de cada um dos romances, procedemos à análise da posição do narrador

face ao universo diegético e face às personagens.

2

I. O Neo-Realismo português e o Romance Social Brasileiro dos anos 30

1. O Neo-Realismo português

1.1. Contexto histórico-cultural português

O Neo-Realismo literário português e o Romance Social Brasileiro da década de 30

surgem num momento histórico em que, a nível mundial, se debatem as grandes ideologias

políticas de esquerda e de direita, e em que, de uma forma geral, surgem os grandes regimes

ditadoriais, como o fascismo italiano, o nazismo alemão e o franquismo espanhol no espaço

europeu. A par deste contexto político, que faz cair por terra as democracias liberais, enfrentam-

se dificuldades económicas e sociais graves, tal como a crise de 1929, mas também a eclosão da

Segunda Guerra Mundial.

No contexto português, a 28 de Maio de 1926 verifica-se um golpe militar que põe fim ao

regime parlamentar da I República e desencadeia-se todo um processo que culmina com a

implantação do Estado Novo, que será regulamentado constitucionalmente em 1933.

Em 1930, Domingos de Oliveira Salazar, detentor da pasta do Ministério das Finanças e

ministro interino das Colónias, assume-se como o líder governamental e impõe a construção dos

alicerces fundamentais do que viria a ser o Estado Novo. Este regime ditadorial seria

caracterizado pela existência de um partido único, a União nacional, e pela centralidade do poder

no seu líder, baseado no corporativismo, no nacionalismo e no anti-parlamentarismo. Este

governo teria assim uma resposta à crise do liberalismo e da democracia parlamentar e, ao

mesmo tempo, às ameaças de uma revolução socialista. Para legitimar o poder, o governo de

Salazar recorre a mecanismos e instrumentos administrativos e políticos que permitam a sua

consolidação, tais como a campanha nacional do trigo, o reforço e estruturação do

condicionamento industrial, uma nova legislação sindical, que procurava destruir os sindicatos

tradicionais do movimento operário português, substituindo-os por uma estrutura sindical

corporativa e nacional, uma legislação sobre grémios patronais, casas do povo, casas de

pescadores e sobre a previdência social.

No entanto, no período de vigência do Estado Novo, de 1933 a 1974, no plano político e

económico destacam-se alguns factores que colocaram em risco o equilíbrio do regime. De entre

esses factores contam-se a eclosão da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial. A

3

eclosão da Guerra Civil Espanhola leva Salazar a apoiar as políticas deste em termos logísticos e

financeiros e ao mesmo tempo a procurar travar o Comunismo no espaço ibérico, com a criação

do campo de concentração no Tarrafal e da Mocidade Portuguesa. Com a Segunda Guerra

Mundial surgem problemas mais delicados, nomeadamente a tentativa de Salazar de preservar a

sua posição de neutralidade perante a Inglaterra. Em termos práticos, fazem-se sentir as

consequências do bloqueio económico à Europa, com as carências de combustíveis, matérias-

primas e bens alimentares. Cria-se então um ambiente propício para o contrabando e para o

aumento do desemprego e da inflação. Em termos sociais, regista-se um reforço da burguesia

industrial e comercial, em detrimento da fundiária – ameaçando assim o equilíbrio social que o

Estado Novo procurara estabelecer.

Em termos políticos, e valendo-se de momentos de conjuntura política mais fragilizada, a

oposição forma em 1943 o MANUF (Movimento da Unidade Nacional Antifascista), constituído

por republicanos liberais, grupos socialistas e o PCP. Em 1945, a oposição forma a MUD

(Movimento Unidade Democrática), mas todas as suas tentativas de chegada ao poder são

reprimidas pelo líder do regime.

Os anos 50 trazem a Portugal modificações significativas no plano económico e social.

Nesta década dá-se o arranque da industrialização e o alargamento da população urbana num

país essencialmente rural. A par destes acontecimentos, surgem os primeiros sinais do

movimento descolonizador do Terceiro Mundo, facto que vai obrigar Salazar a repensar o

estatuto das colónias portuguesas, tomando as medidas jurídicas necessárias para transformar as

colónias em províncias ultramarinas na revisão constitucional de 1951 e substituir a Carta

Orgânica do Império Colonial Português pela Lei Orgânica do Ultramar Português de 1953.

No entanto, nos finais dos anos 50, a estrutura social portuguesa apresenta sinais de

mudança, registando-se o crescimento do proletariado urbano industrial, o alargamento das

classes médias ligadas ao sector terciário e o fortalecimento da burguesia industrial e financeira,

que se começa a sobrepor à burguesia latifundiária1.

Do ponto de vista cultural, o regime de Salazar conta com a implementação de um

discurso ideológico em que os valores fundamentais são o culto a Deus, à Pátria, à Família, ao

Trabalho e à Autoridade. Estes valores surgem explicitados no próprio discurso de Oliveira

Salazar, aquando das comemorações do «Ano X da Revolução Nacional», em 26 de Maio de

1936:

1 Cf. César Oliveira, «Da ditadura militar à implantação do salazarismo» in António Reis (dir.), Portugal Contemporâneo, vol.VI, Lisboa, Publicações Alfa, 1990, pp. 13-32.

4

«Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o

conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua

história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua

moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever.»2

A legitimação ideológica do Estado Novo torna-se possível através de organismos,

instituições e iniciativas levados a cabo pelo executivo que permitiram instaurar uma política

cultural, denominada de “política de espírito”, e que teve como mentor, além do próprio chefe de

governo, o escritor e publicista António Ferro. O organismo responsável pela instauração desta

política cultural foi o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), criado em 1933, e liderado

por António Ferro, desde a sua fundação até aos finais da década de 40. De realçar que este

organismo se passou a denominar de Secretariado Nacional da Informação Cultural Popular e

Turismo (SPN/SNI) a partir de 1944.

As competências do Secretariado de Propaganda Nacional estão directamente ligadas ao

controlo das manifestações culturais, tais como a imprensa e outros meios de comunicação como

a rádio e a televisão, mas também de outras áreas artísticas e culturais como a arquitectura, a

pintura e a escultura. Deste modo, de entre as competências do Secretariado de Propaganda

Nacional destacamos as seguintes: regular as acções da imprensa com o poder estatal; fomentar a

edição de publicações que dêem a conhecer a actividade estatal; organizar um sistema de

informação que permita a interligação dos vários ministérios; organizar manifestações com um

sentido público e de propaganda; combater por todos os meios possíveis a penetração de ideias

perturbadoras e dissolventes da unidade e interesses nacionais; colaborar com artistas e

escritores e instaurar prémios de modo a desenvolver uma arte e uma literatura puramente

nacionais; utilizar a radiodifusão, o cinema e o teatro como meios indispensáveis; do ponto de

vista externo, promover a expansão de todas as manifestações de arte e de literatura nacionais,

colaborar com outros organismos de propaganda existentes no estrangeiro e dar a conhecer a

cultura portuguesa. Estas directrizes fornecem indicações precisas à comunidade intelectual,

cujas produções devem reger-se por um encaixe social e pelo interesse nacional3.

A concretização desta componente ideológica, baseada em princípios morais e espirituais,

foi possível com a tentativa do controlo da produção cultural dos artistas contemporâneos e

através de iniciativas levadas a cabo durante o período áureo do Estado Novo, como feiras,

exposições e até concursos. Neste contexto destacamos a participação portuguesa em eventos

2 Citado por José Mattoso in História de Portugal, volume 7, O Estado Novo (1926-1974), Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 292.

3 Cf. Jorge Ramos do Ó, «Salazarismo e cultura», in Nova História de Portugal, vol. XII, Portugal e o Estado Novo (1930-1960), Lisboa, Presença, 1992, pp. 397-398.

5

culturais que permitissem conceber e divulgar a identidade nacional, dos quais são exemplo a

participação em feiras e semanas internacionais, como as realizadas em Sevilha em 1929, em

Paris em 1931 e 1937, em Nápoles, em 1934, em Tripoli e Genebra, em 1935 e em Nova Iorque

e S. Francisco, em 1939. Quanto a Exposições, podemos ainda destacar a «Exposição Industrial

Portuguesa», realizada em Lisboa, em 1932; a «I Exposição Colonial Portuguesa», realizada no

Porto, em 1934; a «Exposição do ano X da Revolução Nacional», realizada em 1936 e a

«Exposição Histórica da Ocupação do Século XIX», realizada em Lisboa, em 1937.

No campo da arquitectura destacam-se, em termos de obras públicas, as obras da Casa da

Moeda, o restauro e reparação de edifícios históricos, como o Palácio de S. Bento e o Teatro de

S. Carlos, e ainda a ampliação do Museu de Arte Antiga.

Na pintura e na escultura refira-se a exposição de obras modernas, como as telas de

Eduardo Viana, Dórdio Gomes, Abel Manta e Luciano Santos e as esculturas de Francisco

Franco, Diogo de Macedo, Barata Feio e Martins Correia, em exposição no Museu de Arte

Contemporânea, em Abril de 1945, sob a direcção de Diogo de Macedo.

Todavia, em termos culturais, a «Grande Exposição Histórica do Mundo Português», em

1940, constituiu um marco importante na história do salazarismo. De destacar ainda as

representações do mundo popular, suportadas pelo SPN/SNI, FNAT e pela Junta Central das

Casas do Povo que, ao valorizar o conceito de regionalismo, promovem actividades relacionadas

com a divulgação de ranchos folclóricos, de marchas populares, exposições de trajos, e até

mesmo o concurso da aldeia mais portuguesa.

No entanto, a prossecução do processo de propagação ideológica alarga-se a outros

organismos, nomeadamente aos departamentos responsáveis pela moldagem dos espíritos

jovens, como o Ministério da Educação. Em 1936 é criada a Junta Nacional de Educação que, de

entre as suas competências, contemplava a «educação moral e cívica», as «belas-artes», a «alta

cultura» e os vários ramos do ensino. Como tal, devia estar em contacto directo com as

instituições responsáveis pela divulgação cultural, tais como academias, museus, sociedades

musicais e recreativas, universidades, bem como a outros departamentos oficiais de propaganda

como a rádio, os espectáculos, o turismo e igualmente as organizações de juventude e de

trabalhadores.

A estratégia de integração moral e a função ideológica cumprem-se na procura e na

apropriação de espaços sociais e de práticas concretas de sociabilidade, das quais são exemplo as

associações ligadas ao mundo laboral, como a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no

Trabalho), criada em 1935, e na classe mais jovem a Mocidade Portuguesa, a Mocidade

Portuguesa Feminina e a Obra das Mães pela Educação Nacional (ONEM). A FNAT estava

6

direccionada para o aproveitamento dos tempos livres dos trabalhadores e como forma de

assegurar o seu desenvolvimento físico e a elevação do nível intelectual e moral. Por sua vez, a

Mocidade Portuguesa, direccionada para o sexo masculino, tinha como objectivo o

desenvolvimento da integridade física, a formação do carácter e a devoção à Pátria, assente nos

valores da Ordem, da disciplina e no culto do dever militar; a Mocidade Portuguesa Feminina,

por sua vez, para além dos valores referidos, ligados a aspectos morais, acumula ainda a devoção

ao serviço social e o gosto pela vida doméstica. A OMEN apela para a acção educativa da

família, para a orientação das mães, para a beleza da vida rural e para a defesa dos “bons

costumes”4.

A par destas iniciativas de âmbito cultural, fortemente centradas no conceito de

propaganda, instauram-se mecanismos de censura que procuram reprimir quaisquer iniciativas

que colocassem em causa os ideias defendidos pelo regime. Deste modo, procede-se à criação do

Gabinete de Coordenação dos Serviços de Propaganda e Informação, dirigido pelo chefe do

Governo e constituído pelo director do Secretariado de Propaganda Nacional e dos Serviços de

Censura e pelo presidente da Comissão Administrativa da Emissora Nacional de Radiodifusão

(EN), que tem como função o controlo e a inspecção das publicações periódicas, bem como o

controlo dos meios de comunicação de massa, como a rádio, a televisão e outras manifestações

culturais e artísticas, como o teatro e o cinema. Trata-se, deste modo, da adopção de medidas

que restringem a liberdade de expressão e permitem um controlo da imprensa e dos veículos de

transmissão de ideias.

A acção da polícia política, denominada de Polícia de Vigilância e Defesa do Estado

(PVDE), reorganizada em 1930, passando a denominar-se de PIDE (Polícia Internacional de

Defesa do Estado), a partir de 1945, constitui outro mecanismo de repressão. Esta organização

foi a responsável pela detenção e pela morte de indivíduos que, pelas suas acções, se

manifestassem adversos ao regime salazarista. De entre as vítimas contam-se os opositores

políticos, nomeadamente os simpatizantes do comunismo e outras correntes de opinião, como os

integralistas e os católicos. Estes factores forçaram também muitos intelectuais a exilarem-se no

estrangeiro.

A instauração destes mecanismos de repressão teve consequências graves no domínio

cultural, nomeadamente a dificuldade na entrada e difusão de movimentos internacionais de

vanguarda no campo das artes e o isolamento dos portugueses em relação aos grandes

acontecimentos mundiais. Devido ao facto de uma grande percentagem da população portuguesa

ser de cariz essencialmente rural, analfabeta e possuir uma escassa habilitação profissional, os

4 Cf. Idem Ibidem, pp. 400-401.

7

ideais do Estado Novo instalaram-se com relativa facilidade. Deste modo, a sociedade

portuguesa contemporânea do Estado Novo assentava numa dependência do líder e das

autoridades e estava cultural e politicamente enquadrada dentro dos valores e dos princípios

definidos no seio do próprio regime.5

1.2. O movimento neo-realista português

1.2.1. Do ponto de visto periodológico, o Neo-Realismo português constitui um

movimento literário já devidamente fundamentado, sendo possível situá-lo entre os finais dos

anos 30 e finais dos anos 50 do século XX. Esta delimitação temporal é possível devido ao facto

de existirem determinados aspectos que afirmam a coesão deste movimento literário,

nomeadamente uma dimensão ideológica, que se relaciona com o quadro histórico

contemporâneo, uma dimensão temática, que representa os valores e os ideias neo-realistas, e as

opções em termos discursivos que permitem representar essas escolhas ideológicas e temáticas.6

À primeira fase do Neo-Realismoo estaria consagrada a «ênfase dada ao assunto, à

urgência e à brutalidade»7, como fez Alves Redol em relação ao romance Gaibéus (1939): «Este

romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um

documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso será o que os outros entenderem.»8 Com

esta afirmação concede-se primazia ao carácter documental e interventor da literatura, mas

relega-se para segundo plano uma perspectiva estética. No entanto, e tal como refere Alexandre

Pinheiro Torres num dos seus estudos sobre o Neo-Realismo, a partir de finais dos anos 40 e

inícios dos anos 50 os escritores neo-realistas assumem a orientação estética e ideológica do

movimento:

«Afirmamos, pois que a natural evolução do Neo-Realismo, a sua fase adulta (digamos

assim), não se fez à custa de quaisquer novos pressupostos ideológicos [...] nem se fez sequer à

custa de uma atitude estética totalmente nova, nem até de menor intenção polémica ou

doutrinária. E se frisamos este aspecto é porque se tem considerado como fim da Primeira Fase

aquele período em que os autores já consagrados do Neo-Realismo [...] teriam finalmente

despertado para a urgente necessidade de considerarem, antes de mais nada, os seus trabalhos 5 Cf. César Oliveira, «Da ditadura militar à implantação do salazarismo» in António Reis (dir.), Portugal

Contemporâneo, vol.VI, Lisboa, Publicações Alfa, 1990, pp. 13-32.6 Cf. Carlos Reis (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, vol. IX, Do Neo-Realismo ao Post-

Modernismo, Lisboa, Verbo, 2005, p.19.7 Alexandre Pinheiro Torres, O Movimento neo-realista em Portugal na sua Primeira Fase, Lisboa, ICP, 1977,

pp. 10-11.8 Alves Redol, Gaibéus, 15ª ed., Mem Martins, Europa América, 1979, p.53.

8

literários como obras de arte, atentos, por fim, ao primado do estético, embora não abdicando dos

princípios ideológicos de que o Neo-Realismo é e será inseparável [...]; e, para já, a Ideologia que

o informa encontra-se dinamicamente viva.»9

Na visão de Carlos Reis, o grupo de escritores neo-realistas pode ser considerado uma

geração literária, devido a três factores fundamentais. Em primeiro lugar pelo facto de este grupo

de escritores ter idades compreendidas entre os 20 e os 30 anos: Alves Redol (1911), Manuel da

Fonseca (1911), Afonso Ribeiro (1911), Joaquim Namorado (1914), Mário Dionísio (1916),

Vergílio Ferreira (1916), Fernando Namora (1919), Mário Braga (1921), Carlos de Oliveira

(1921) e, com 31 anos Soeiro Pereira Gomes (1909). Em segundo lugar pelo facto de se terem

revelado atentos a problemas épocais de três naturezas distintas, embora interligados: a crise

económica do final dos anos 20, sobretudo devido às consequências sociais que se fizeram sentir

na década de 30, tais como o desemprego, a fome e o alargamento da crise do sistema capitalista;

os acontecimentos político-ideológicos como a difusão e implantação de regimes totalitários,

como o nazismo na Alemanha, o franquismo em Espanha e o salazarismo em Portugal; e a

deflagração da Segunda Guerra Mundial, em grande parte explicada pelas tendências

hegemónicas e imperialistas das potências do Eixo. E, por último, o conflito com a geração

presencista, que se estendeu também à própria concepção do fenómeno literário enquanto prática

estética10.

A unidade destes escritores também pode ser comprovada tendo em conta a partilha de

orientações ideológicas de teor marxista, as influências literárias e as opções estético-literárias.

Em primeiro lugar, regista-se a comunhão de orientações pedagógicas, na qual é possível

distinguir a interrelação entre a componente ideológica e as influências literárias. As referências

ideológicas giram à volta do pensamento marxista e dos fundamentos filosóficos do

materialismo dialéctico, implicando, deste modo, a rejeição do socialismo utópico e do

idealismo do século XIX. Por outro lado, no que se refere às influências literárias, a geração neo-

realista centra as suas atenções em correntes literárias estrangeiras, nomeadamente nas

decorrentes do realismo socialista, como as obras de Gorki, no romance americano da chamada

«geração perdida» de John Steinbeck, Caldwell, Ernest Hemingway e no romance brasileiro

nordestino. No que respeita a factores de ordem estético-literária, Carlos Reis regista o factor da

«linguagem da geração»11 que, em termos geneológicos, se caracteriza pela opção pelo género

9 Alexandre Pinheiro Torres, O Movimento neo-realista em Portugal na sua Primeira Fase, Lisboa, ICP, 1977, pp. 10-11.

10 Cf. Carlos Reis, Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicação, 1981, pp.18-30.

11 Idem, Ibidem, p. 28.

9

narrativo em forma de conto, de novela e de romance, géneros que permitem cumprir algumas

das solicitações da estética neo-realista, como a primazia da objectividade, que não é

necessariamente conseguida, a abordagem de certos espaços geográficos normalmente de

inserção rural, como o Ribatejo, o Alentejo e Gândara, bem como a valorização de personagens

de clara incidência socioeconómica e a representação dinâmica de processos de transformação

histórico-social. Ao ter em conta estes factos, o romance surge como a tipologia mais adequada

para representar a verosimilhança e para ter o cunho documental desejado.

A unidade do movimento neo-realista também se deveu a um outro aspecto: à produção

teórica. Para isso, na visão de Carlos Reis terão contribuído duas circunstâncias fundamentais.

Em primeiro lugar, o facto de a corrente neo-realista se ter afirmado como um movimento de

contestação, dado que se insurge contra a criação literária presencista, e a articulação que a

produção literária neo-realista mantém com o contexto sócio-económico de meados do século

XX. Em segundo lugar, a produção teórica neo-realista corresponde a um período intenso de

criação literária, o que prova que a produção teórica não é uma «actividade apriorística, mas

antes um labor fundamentado nas características do próprio discurso literário sujeito a

teorização.»12

À actividade teórica dedicaram-se críticos como Manuel Campos Lima, Rodrigo Soares,

Rui Feijó, Raul Gomes, Armando Martins e João Pedro de Andrade, mas também escritores

como Mário Dionísio, Joaquim Namorado e António Ramos de Almeida. No contexto da

produção teórica, destacam-se as publicações periódicas, que serviram não só para acolher a

produção teórica, mas também a própria criação literária, nomeadamente Seara Nova, O Diabo,

Vértice, Altitude, O Globo, Síntese, Pensamento e os Cadernos de Juventude. Apesar das

dificuldades sofridas, estas publicações tiveram uma projecção cultural e literária considerável,

no entanto, de entre esses condicionamentos contam-se circunstâncias de ordem política e a

precaridade dos meios de comunicação de massas, como a rádio e a televisão.

Ainda segundo o ensaísta Carlos Reis, a extensa produção teórica neo-realista pode ser

dividida nos domínios do ensaio, da crítica literária e da recensão crítica. Os ensaios produzidos

assumem a forma de ensaios técnicos e introduzem reflexões que permitem apreender os

vectores mais significativos da teorização; as críticas e as recensões produzidas nas revistas

Seara Nova e Vértice, embora de cunho circunstancial e de reduzido distanciamento cronológico

em relação às obras criticadas, permitem vislumbrar já algumas questões teóricas e com os

textos de crítica literária é possível tirar já ilações programáticas 13.

12 Idem, Ibidem, p.31. 13 Idem, Ibidem, p. 41.

10

1.2.2. Para compreender a componente ideológica do Neo-Realismo e o conceito de

inovação desta tendência literária no contexto da Literatura Portuguesa, parece-nos fundamental

estabelecer uma comparação entre o ideário desta tendência literária com os ideais do Realismo

e do Naturalismo do século XIX. Ainda que ambas as tendências tenham como objectivo

fundamental a prática da verosimilhança e a relação da literatura com o real, distinguem-se em

termos ideológicos pela forma como encaram o papel do Homem na transformação da

sociedade.

O Realismo e o Naturalismo são dois movimentos literários que tiveram origem em França.

As origens do Realismo francês remontam aos romances de Stendhal e de Honoré de Balzac. Na

produção literária destes escritores torna-se evidente uma questionação da realidade sócio-

cultural da sua época. Stendhal preocupa-se com a representação exacta do real, mais

propriamente com a representação dos hábitos e costumes da sociedade burguesa do seu tempo.

Para tal recorre à descrição da mundividência burguesa e opta pela focalização interna no

processo de construção da personagem. Deste facto é exemplo o romance Le Rouge et le Noir

(1830), em que a personagem Julien Sorel sofre de um mal estar social, consequência da

sociedade materialista e hipócrita em que se insere. No entanto, é com o romance La chartreuse

de Parme (1839) que Stendhal desenvolve um realismo crítico e denuncia a tirania e o

despotismo da sociedade burguesa do século XIX. Por sua vez, e na mesma linha do realismo

moderno, surge Balzac. Este escritor preocupa-se em estudar o indivíduo social recorrendo à

análise do seu mundo interior. As personagens dos seus romances são provenientes da pequena e

média burguesia e estão inseridas no espaço temporal da época, evidenciando-se pelos seus

comportamentos, atitudes e hábitos sociais. Deste facto é exemplo La comédie Humaine,

romance que retrata a sociedade burguesa da França de inícios do século XIX.

No entanto, a escola realista terá a sua melhor representação no denominado romance

científico, criado por Gustave Flaubert. O discurso deste autor distingue-se pela sua

objectividade e impessoalidade: as suas personagens são retiradas da pequena e média burguesia

e as suas vivências reportam-se ao ambiente sócio-cultural da época.

No que se refere ao Naturalismo, este também teve a sua origem em França, mas distingue-

se da corrente realista devido ao carácter científico que assume. Esta corrente literária surge

associada a alguns acontecimentos determinantes ocorridos no século XIX: o impacto do

desenvolvimento das ciências, os efeitos da industrialização e o desenvolvimento de uma

corrente filosófica positivista.

No contexto literário francês, Émile Zola é o responsável pela definição dos princípios

11

artísticos do Naturalismo. A teoria literária do romance naturalista é apresentada no ensaio Le

roman expérimental (1880). Para Zola, a atitude do escritor deve ser semelhante à atitude do

cientista: este deve observar e estudar os factos reais, recorrendo à observação e à

experimentação, tal como acontece na investigação científica. Assim, as temáticas centrais dos

romances de Émile Zola centram-se na análise de factores hereditários e na influência que o

ambiente produz nas actividades humanas.14

No contexto da literatura portuguesa, Alexandre Pinheiro Torres foi um dos ensaístas que

se debruçou sobre os pressupostos ideológicos do Neo-Realismo, contrapondo-os à corrente

ideológica do Realismo do século XIX e ao Presencismo. Estabelece, assim, uma comparação,

no plano ideológico, entre o Realismo da Geração de 70 e o Neo-Realismo, defendendo a ideia

de que os conceitos de Humanismo nestes dois momentos literários são completamente

diferentes15.

Considerando como antecedentes histórico-culturais o Congresso do Partido Comunista

Soviético, realizado em Moscovo em 1934, o surgimento de uma classe de intelectuais

marxistas portugueses em torno de revistas literárias como Gleba (Lisboa), Outro Ritmo (Porto),

Agora (Coimbra), Gládio (Lisboa), Alexandre Pinheiro Torres aponta para o corte radical que se

irá estabelecer entre a corrente neo-realista e os movimentos que o antecederam. De entre estes

conta-se o Socialismo burguês do século XIX, representado pela Geração de 70, e o plano

ideológico dos Modernismos de Orpheu (1915) e da Presença (1927).

A Geração de 70, fortemente influenciada pelo desenvolvimento científico, nomeadamente

pela teoria evolucionista e pela universalidade do transformismo, transpõe para o plano do social

teorias e visões de carácter biológico, acreditando que a Sociedade é um organismo vivo,

susceptível de evoluir sem a intervenção humana. A esta visão soma-se o socialismo utópico de

Proudhon e a crença de que a revolução acabaria por acontecer por si mesma. Deste modo, a

Geração de 70 opunha-se a uma acção revolucionária e assumia-se como antimarxista e

anticomunista. Em termos ideológicos e políticos, esta visão defendia a ascensão da classe

burguesa, em detrimento da formação de uma classe proletária.

Contrariamente, a geração neo-realista propõe uma versão do Socialismo apoiada numa

visão marxista, que poderia ser denominada de Novo Humanismo ou Realismo-Socialista, e que

preconizava uma preocupação com as contradições sociais e defendia um reajustamento social, a

par de uma crença no progresso e na transformação da realidade pela arte e pelo homem.

Assim sendo, a corrente ideológica do Neo-Realismo, assente no Marxismo-Leninismo, ou 14 Cf. Dominique Rincé (coord.), Histoire de la Littérature Française. XVIIIe, XIXe, XXe, Paris, Nathan, 1988, pp.

285-312. 15 Cf. Alexandre Pinheiro Torres, O Neo-Realismo Literário Português, Lisboa, Moraes Editores, 1977.

12

no Socialismo Marxista, pouco se assemelha ao Socialismo burguês do século XIX, pois o

conceito de Socialismo da Geração de 70, baseado na vertente utópico de Proudhon, repudiava

a revolução e defendia o Capitalismo e a ascensão da classe burguesa:

«Nunca foi intenção do Socialismo burguês destruir o Capitalismo. [...] Teve sempre como

programa promover o trabalhador rural ou industrial a pequeno burguês, levá-lo, pois a aceitar a

ideologia típica da pequena burguesia, e, através desta promoção, acabar com o perigoso dualismo

burguês-proletário, por eliminação daquilo a que se chamava a “metade podre da maçã”.»16

O Neo-Realismo apresenta um corte radical com o Realismo Oitocentista em termos

ideológicos, traduzido na recusa da visão determinista e evolucionista da sociedade e na visão

anti-revolucionária do movimento literário do século XIX, a favor de uma visão transformadora

da realidade social, com a intervenção do homem. Por sua vez,o movimento neo-realista também

apresenta um corte com o Naturalismo do século XIX. Na estética naturalista torna-se relevante

explicar as causas que motivam as acções humanas, apontando para factores de ordem

hereditária e de influências do meio. No entanto, segundo esta perspectiva, o homem é um ser

passivo que não se eleva a agente de mudança do mundo – daí o carácter fatalista do movimento,

pela sua forma estática de encarar a sociedade. Devido a esta visão da sociedade, o Realismo e o

Naturalismo prendem-se apenas à figuração externa, à cópia, à descrição e ao documento.

Por sua vez, o Neo-Realismo, ao assentar num conhecimento dialéctico da realidade

exterior, defende que o homem tem um papel determinante no processo de transformação social,

conseguindo-o por meio da acção revolucionária. Deste modo, o Neo-Realismo rejeita o

socialismo utópico e defende a prática de um Socialismo Marxista ao evocar a «superação das

relações de produção, ou capital-trabalho ou do sistema explorativo do capitalismo financeiro e

terratenente»17, tendo em conta o conceito de classe.

Carlos Reis também se debruçou sobre a dimensão ideológica do movimento neo-realista

português, estabelecendo igualmente uma comparação com os pressupostos das tendências

realistas e naturalistas de Oitocentos. Considera que os factores que distanciam o Realismo do

Neo-Realismo se centram em dois aspectos fundamentais: ao nível da ideologia e ao nível da

temática18.

Relativamente ao aspecto ideológico, o Realismo Oitocentista centra-se num pensamento

de tipo materialista (e positivista, no caso do Naturalismo) ou anti-idealista, enquanto que o 16 Idem, Ibidem, p. 26.17 Idem, Ibidem, pp. 32-33 18 Cf. Carlos Reis, Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicação,

1981, pp.13-18.

13

Neo-Realismo se centra numa concepção marxista do fenómeno literário, num materialismo

histórico e numa atitude comprometida com a realidade social. Assim, o escritor neo-realista

assume uma posição social e sintoniza-se com os problemas sociais, políticos e económicos do

seu tempo, a literatura é encarada como uma forma de consciência social e de denúncia da

injustiça social:

« [o] Neo-Realismo valoriza a dimensão ideológica da criação literária, bem como a sua

capacidade de intervenção sociopolítica, à luz dos princípios fundamentais do materialismo

histórico. Com base nestas coordenadas, à literatura cabe fundamentalmente uma missão

desmistificadora de contradições de natureza socioeconómica, sobretudo concretizada pela sua

possibilidade de, articulando-se com a história, reflectir essas realidades normalmente

deprimentes.»19

No que se refere às correntes temáticas, na corrente realista estas centram-se no modo de

vida e nas preocupações da burguesia, nomeadamente na usura, no adultério, na educação, na

ambição, enquanto que no Neo-Realismo a temática está ligada ao proletariado e à sua condição

económica, nomeadamente ao conflito social, à alienação, à consciência de classe, à posse da

terra, à opressão e à decadência dos estratos dominantes.

A alienação, considerada um dos temas chave da estética neo-realista, foi alvo de estudo

por parte de Alexandre Pinheiro Torres. Para este, o homem alienado é aquele a quem é retirada

a identidade:

«O alienado é, em princípio, o indívíduo roubado a si mesmo. O seu ser como que transita para

alguém ou para algo que lhe é alheio. Sob o ponto de vista clínico o alienado é aquele que perde a sua

própria personalidade. Esquecendo-se de quem é julga-se outrém, vive a personalidade de outrem.»20

Segundo Alexandre Pinheiro Torres, coube ao Neo-Realismo a tarefa de «desmontar o

fenómeno da alienação definindo-o, investigando-lhe as causas e, com o autodinamismo que o

caracteriza, insinuando caminhos e propondo aberturas para a sua superação.»21. É tendo em

conta um processo de consciencialização do ser humano alienado que devemos considerar os

quatro diferentes «estádios» de alienação:

19 Idem, ibidem, p.16.20 Alexandre Pinheiro Torres, O Neo-Realismo Literário Português, Lisboa, Moraes Editores, 1977, p. 36.21 Idem, Ibidem, p. 36.

14

«1º ) homem alienado mas inconsciente da alienação que o subjuga;

2º) homem alienado mas já consciente da alienação de que é vítima, embora ignorante das

causas históricas da sua submissão e dos meios de o vencer;

3º) homem já conhecedor das próprias causas mas não resolvido a utilizar os meios de que possa

dispor para vencer a alienação, meios esses nem sempre ao dispor, por estreito controle policial do

Estado, ou por falta de unidade de esforços de todos os que se encontram na mesma situação,

precisamente quando seria necessária a conjugação das vontades;

4º) homem na situação de revolta ou guerra aberta contra as causas da alienação, ou seja, contra

aqueles que se apresentam como defensores dum statu quo que garante a perpetuidade da

alienação.» 22

Tal como refere Alexandre Pinheiro Torres, «a temática da literatura neo-realista

portuguesa gira em torno de heróis (ou anti-heróis) ou à volta de situações que problematizam,

um ou outro, ou simultaneamente vários destes estádios.»23

No contexto geral dos Realismos, o Neo-Realismo assume-se como uma superação das

tendências literárias dos séculos anteriores, nomeadamente do ponto de vista ideológico do

Realismo/ Naturalismo do século XIX, mas também do Realismo Crítico teorizado por G.

Lukács.

Ainda na perspectiva de Alexandre Pinheiro Torres, o Realismo Crítico é aquele espécie

de realismo em que se regista:

«1º) Uma análise dos problemas que verdadeiramente interessam (aqueles que não estão, como é

óbvio, adstritos ao homem excepcional);

2º) Uma descrição concreta dos indivíduos e dos grupos em luta com o real, a inércia da História,

ou melhor das instituições que se constituem como defensoras dos travões sociais, o imobilismo

classista, a petrificação hierárquica, o monopólio dos privilégios, etc.»24

Ao comparar este tipo de Realismo com o Neo-Realismo, Alexandre Pinheiro Torres

aponta que, tal como refere G. Lukács, os adeptos do primeiro não conseguem descrever o

homem do futuro, enquanto que o Neo-Realismo o tem sempre em vista. Este pressuposto não é

menos verdadeiro quando se analisa o processo de decadência da burguesia provinciana. Esta

tematica foi tratada nos romances de Carlos de Oliveira, nomeadamente em Casa na Duna, Uma

Abelha na Chuva e Pequenos Burgueses.22 Idem, Ibidem, pp.39-40.23 Idem, Ibidem, p. 36.24 Idem, Ibidem, p. 40.

15

Alexandre Pinheiro Torres conclui, assim, que existe uma relação de complementaridade

entre o Realismo Crítico e o Neo-Realismo, pois embora ambos tenham como preocupação

fundamental revelar as contradições sociais, o segundo supera o primeiro pela defesa de uma

solução marxista como forma de resolver esses mesmos conflitos:

«Embora o Realismo crítico insista muito mais no diagnóstico das contradições do que no

aspecto concreto da superação delas (Lukács) pode-se, mesmo assim, falar, hoje, de uma aliança

entre ele e o Neo-Realismo. Porquê? Porque o Realismo crítico se ocupa em revelar contradições

na sociedade, ou seja processos de luta, conflitos, que, doutro modo, permaneceriam ocultos ou

passariam mesmo despercebidos. O Realismo crítico poderá limitar-se a não recusar uma solução

marxista para a Sociedade ou o Estado, enquanto o Neo-Realismo propõe-na.»25

Alexandre Pinheiro Torres, ao abordar as propostas teóricas do Neo-Realismo, refere-se ao

«minímo de pontos de vista comuns» apontados por Mário Dionísio. Esses pontos de vista são

aqueles que permitem constituir a base ideológica do Neo-Realismo e que permitem definir o

corte que este movimento opera com os movimentos que o antecedem e que, consequentemente,

permitem construir uma nova visão do mundo e do Homem. Assim, o que importa reter do

pensamento de Mário Dionísio é a contestação operada pelo Neo-Realismo em relação ao

Humanismo burguês do século XIX e à corrente ideológica do socialismo utópico da Geração de

70. O movimento neo-realista apresenta como alternativa o socialismo marxista-leninista e,

consequentemente, uma nova expressão literária e artística que permitisse apresentar o homem

social no seu todo, procurando caracterizar a sua visão do mundo. Segundo Mário Dionísio,

homem e meio estão intimamente ligados: «os neo-realistas pensam que os indivíduos são um

produto do meio, mas que, por sua vez, esse meio é, em grande parte, produto das suas mãos.»26

Eis então, os pontos teóricos de definição do Neo-Realismo apontados por Alexandre

Pinheiro Torres, tendo também em conta o pensamento de Mário Dionísio:

«1º) O Romantismo e o Realismo, surgidos no século XIX, não eram senão expressões

artísticas do mesmo grupo social: a burguesia possidente. O Romantismo seria profundamente

caracterizado pela fuga à realidade, pela “nostalgia de mundos diferentes do nosso” (a Idade

Média), o “gosto do fantástico e do singular”, “o culto do herói individualista burguês”. No

Realismo já se observa a crítica da vida quotidiana da burguesia;

25 Idem, Ibidem, p. 41.26 Palavras de Mário Dionísio no artigo publicado no Primeiro de Janeiro, a 3 de Janeiro de 1945, citado por

Alexandre Pinheiro Torres, O Movimento neo-realista em Portugal na sua Primeira Fase, Lisboa, ICP, 1977, p. 67.

16

2º) O Neo-Realismo “pretende ser a síntese das duas escolas; de uma parte abraçar a

realidade para a descrever tal qual é, de outra sonhar uma realidade diferente para que se volta”;

3º) “O Neo-Realismo não procura dar só a realidade, mas também transformá-la. Por isso,

faz realçar o heroísmo da luta daqueles que são meios da sua transformação. Este heroísmo não é

o heroísmo individualista do homem isolado, mas o heroísmo de um grupo de que os seus maiores

valores são apenas uma afirmação mais clara”;

4º) O Neo-Realismo não pretende ser apenas uma síntese do Romantismo e do Realismo,

mas de todas as escolas, porque uma das características do Novo-Humanismo é o aproveitamento

de “toda a herança do passado”. Aproveitará “mesmo as conquistas presentes da arte que lhe é

oposta. Se a arte burguesa tem sido, nos últimos tempos, uma contínua revolução formal, nem por

isso o Neo-Realismo deixa de se utilizar destas novas formas”;

5º) O Neo-Realismo “não compreende o homem desligado da vida social e encara-o,

portanto, de um ângulo diferente de observação, mas deseja também o maior aprofundamento do

indivíduo. Serve-se de todas as descobertas fecundas do interiorismo e apenas rejeita o que lhe

parece tão só fruto de uma imaginação sem controle.”»27

Deste modo, e tendo em conta o exposto, podemos concluir que o Neo-Realismo

português representa uma superação das tendências literárias do Romantismo e do Realismo: do

Romantismo, o Neo-Realismo recupera o conceito de heroísmo, mas não tem em conta o herói

individual, antes defende a concepção de um herói colectivo, da união dos indivíduos para a

transformação da sociedade. Do Realismo retira a ideia do retrato objectivo da sociedade, mas

supera essa vertente ao ter também em conta a sociedade como ele gostaria que fosse. Em vez de

privilegiar a classe burguesa, retrata agora a classe proletária e as suas dificuldades e vivências,

procurando conceber um indivíduo consciente da sua condição e fornecendo-lhe ferramentas

para a superação do seu estado de alienação.

1.2.3. Outra das questões que suscita debate quando se fala em Neo-Realismo é a

problemática da sua relação com a Arte. Deste aspecto podemos retirar duas ilações: em

primeiro lugar, que no seio do movimento neo-realista se discorda do conceito de «arte pela

arte», e que, por conseguinte, se formula a ideia de que a Arte pode representar uma forma de

intervenção social ou de engagement. Recorde-se a posição de Alves Redol na epígrafe do

romance Gaibéus (1939), que assume um carácter polémico e doutrinário, atitude que será 27 Alexandre Pinheiro Torres, O Movimento neo-realista em Portugal na sua Primeira Fase, Lisboa, ICP, 1977, pp.65-66.

17

abandonada mais tarde.

Mário Dionísio também se revelou uma voz consciente para a defesa da relação entre o

Neo-Realismo e a Arte, defendendo que os valores estéticos devem figurar na literatura, que a

Arte e a Literatura são ferramentas de expressão, não se negando deste modo uma visão

subjectivista:

«Os neo-realistas repelem vivamente a lenda do seu desinteresse pelos assuntos estéticos.

Essa, como a da construção de romances sem psicologia, ou o estreito convencimento de que no

mundo só há problemas económicos, é uma ideia superficial que não resiste ao minímo exame.

Ninguém ignora a importância da técnica e um neo-realista é, como qualquer outro escritor, um

homem que necessita da literatura e da arte como seu único meio possível de exprimir-se.»28

Outro dos aspectos fundamentais da estética neo-realista, do ponto de vista ideológico,

prende-se com a construção do verdadeiro socialismo. Para construir esse socialismo dever-se-ia

partir do pressuposto de uma transformação do Mundo e da Sociedade, através de um retrato da

sociedade/ Mundo como ela era e como ela deveria ser:

«Assim sendo, as obras literárias não reflectiriam, então, um mundo apenas como já era,

numa reprodução exclusivamente objectivista ou mimética dele. O real transcrito não poderia,

pois, ser simétrico ao mundo intencional a que se reportasse [...], mas conteria um elemento

utópico: o que dissesse respeito a esse outro mundo que se desejava ver construído. O Neo-

Realismo operou, aliás, sempre em função de uma realidade que, com efeito, era outra em relação

à imagem mimética ou simétrica dela. A circunstância de não fugir à verosimilhança ambiental

não impedia – até forçava – a proposta de novos referentes, exactamente os do mundo novo que

postulava (e ainda postula).»29

A posição tradicional da Presença assentava na ideia de que toda a obra que registasse

uma preocupação de carácter social, ou passível de ser analisada segundo um ponto de vista

sociológico, já não pertenceria à Literatura mas ao domínio da Sociologia. Para além disso, do

ponto de vista ideológico, o movimento da Presença não ultrapassava a perspectiva

humanitarista da Geração de 70:

«Não pensava em quaisquer soluções para o mundo, porque os seus representantes

28 O Primeiro de Janeiro, 3 de Janeiro de 1945, citado por Alexandre Pinheiro Torres, op. cit., pp.22-23.29 Alexandre Pinheiro Torres, O Neo-Realismo literário português, Lisboa, Moraes Editores, 1977, pp.23-24.

18

intelectuais interessavam-se exclusivamente numa actividade, a do escritor que escreve, a qual

pressuponham com tenacidade como ser desligado dos interesses mais gerais (e logo inferiores)

do comum destino humano. Não aceitavam que a obra dele [do Neo-Realismo] pudesse ser, antes

de mais e acima de tudo, fruto de uma consciência, consciência na qual participava a própria

singularidade (ou excepcionalidade) psicológica do artista, como reflexo do mundo extremamente

vasto e complexo onde se formou "adaptando-se e reagindo em maior ou menor escala, integrada

(contra ou a favor e nas várias e subtis gradações que estas atitudes podem assumir) num todo

económico, político, social, de tradições culturais ou outras, de ideologias; em suma: no complexo

contraditório, instável ambiente de uma época. A partir de tudo isto constrói o escritor, a sua

ideologia ou concepção do mundo, mais ou menos alienada, mais ou menos lúcida, que se

manifestará depois, na sua obra."»30

Deste modo, tendo em conta o aspecto comum da representação do real nos dois

movimentos literários, Carlos Reis considera que os cultores do Neo-Realismo tentam superar as

duas deficiências básicas do Realismo: a posição paternalista do escritor que observa a realidade,

de um ponto de vista intelectual não participante; e os excessos subjectivos da representação

realista que surgem na superfície do discurso. No entanto, com a atitude de compromisso

literário, o Neo-Realismo consegue eliminar o paternalismo, mas não consegue eliminar a

subjectividade, pois a escrita neutra limita a militância proposta e, por outro lado, ela é

impraticável porque a expressão verbal do fenómeno literário inviabiliza um discurso desprovido

de subjectividade31.

30 Alexandre Pinheiro Torres, O Movimento neo-realista em Portugal na sua Primeira Fase, Lisboa, ICP, 1977 pp.57-58.31 Cf. Carlos Reis, Textos Teóricos do Neo-Realismo Português, Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicação,

1981, pp.13-18.

19

2. O Romance Social Brasileiro na década de 30

2.1. Contexto histórico-cultural do Brasil

No período da República Velha (1889-1930), o Brasil viveu sob a euforia da produção

cafeeira e sob o domínio da oligarquia do coronelismo, fazendo com que predominassem os

interesses agrários e, por conseguinte, a grande massa populacional, que incluia imigrantes

portugueses, espanhóis e italianos, se concentrasse no espaço rural, sujeita a precárias condições

de trabalho. No entanto, as crises de superprodução de café, que deram origem à “política do

café com leite”, e o movimento militar organizado pelo Tenentismo, que reivindicava uma nova

orientação política para o país, fizeram com que se tornasse inevitável a queda da República

Velha, para dar lugar a uma nova página da História, com a Revolução de Outubro de 1930.

A partir da década de 20, o movimento militar tenentista percorre o território brasileiro e

defende um regime político fortemente centralizado e de orientação autoritária e nacionalista.

Como resultado da acção do grupo militar tem lugar a Revolução de Outubro de 1930 e,

consequentemente, começa a desenhar-se uma nova organização social, política e económica

para o país.

Do ponto de vista económico, uma das grandes marcas do período pós-Revolução de 30 foi

o desenvolvimento industrial do Brasil. O Estado apoia os sectores agro-exportadores, promove

uma política de criação de empresas do sector dos bens de produção e equilibra o índice de

exportações e de importações. Por outro lado, o avanço da industrialização é também favorecido

com a implementação de medidas que visam a aquisição de combustíveis, máquinas e

equipamentos de transporte a baixos preços e a regulação da acumulação de capital. Por sua vez,

as necessidades de mão-de-obra qualificada são resolvidas com a implementação do ensino

industrial. Os sectores do ferro, do aço, da energia eléctrica e da química pesada são os que

devem o seu impulso ao investimento público, como por exemplo a Companhia Siderúrgica

Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942) e a Companhia Hidroeléctrica de S.

Francisco.

Do ponto de vista político, a partir de 1930 começam a reunir-se as condições para a

implementação de um regime totalitário no território brasileiro. O período de 1930 a 1937 é

considerado um período de transição, marcado por uma intensa crise, dado que nenhuma classe

social consegue suceder à elite cafeeira. Esse facto provoca uma maior autonomia e uma maior

20

centralização do poder estatal, na tentativa de travar a influência dos blocos regionais. Deste

modo, nesta fase, com o objectivo de reduzir a influência da classe dominante, os antigos

governadores dos Estados federais são substituídos por «interventores» nomeados directamente

pelo chefe do governo provisório. Igualmente, como forma de intensificar o poder estatal e gerir

de uma forma mais coerente a economia nacional, a partir de 1931 são criados organismos que

visam responder aos interesses nacionais, dos quais são exemplo o Ministério da Educação e da

Saúde e o Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, e ainda o Conselho Nacional do

Café e o Instituto do Açúcar e do Álcool. Ainda no campo político regista-se a Revolução

Constitucionalista de 1932, que visa a aplicação de um novo código eleitoral, e em 1933 as

eleições para a Assembleia Constituinte que assinalam a primazia da influência das elites

regionais em detrimento da representatividade tenentista. Em 1934, Getúlio Vargas é eleito

Presidente da República pela Assembleia Nacional Constituinte.

Apesar da nomeação de Vargas, a agitação social e política faz-se sentir e, neste contexto

destacam-se as fracções partidárias integralista e comunista. A corrente integralista, defensora

dos ideais fascistas, está representada pela Aliança Integralista Brasileira (AIB), liderada por

Plínio Salgado. Por sua vez, a corrente comunista, representada pela Aliança Nacional

Libertadora (ANL), criada em 1935 e liderada por Luís Carlos Prestes, inclui socialistas,

democratas e comunistas e defende um programa de carácter nacionalista, anti-imperalista e

favorável à construção de um governo popular.

Partidário de ideais próximos do fascismo e do progressismo, Getúlio Vargas, em nome da

segurança nacional, dissolve a ANL e faz com que a acção comunista se torne um movimento

clandestino. As revoltas instauradas pela fracção comunista são o suficiente para que esta seja

vista como um inimigo nacional e se implementem medidas repressivas. Em 25 de Novembro de

1935, o Congresso aceita a declaração de estado de sítio, que se prolongará até 1937, e promulga

uma série de medidas anticonstitucionais, como a criação de um tribunal de segurança nacional e

uma comissão nacional de repressão do comunismo. Com estes factos abre-se o caminho para a

instauração da ditadura sob a designação de Estado Novo, que decorrerá no período de 1937 a

1945.

O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939, sob a liderança de

Lourival Fontes, é o organismo responsável pelo controlo e manipulação da informação e pela

instauração de uma literatura de propaganda, que visa o culto dos valores nacionais, em que se

destaca o culto à figura paternalista e amistosa do líder Vargas. Em paralelo com uma política de

enquadramento ideológico das populações, o próprio regime incentiva os intelectuais do país

para a criação de uma “cultura brasileira”, provocando assim uma tensão entre a liberdade de

21

expressão desses intelectuais e o cumprimento dos propósitos nacionalistas do regime32.

Esta conjuntura de ordem política, económica e social provoca na classe intelectual uma

crescente consciência da necessidade de modificação dos padrões culturais do país e é por essa

razão que, do ponto de vista cultural, surgem obras provenientes dos mais variados domínios do

conhecimento. Essas obras apresentam em comum uma preocupação com a identidade cultural

do país e surgem como as responsáveis pela renovação do pensamento brasileiro.

Wilson Martins e António Cândido são dois autores que destacam a forte ligação existente

entre a Literatura e a Política no contexto brasileiro. Para Wilson Martins, o Modernismo na

literatura e as revoltas tenentistas e a Revolução de 30 na política são os factores essenciais do

carácter moderno do pensamento brasileiro: «Os escritores brasileiros são, ou, pelo menos,

gostam de ver-se como os directores de consciência da nacionalidade, assim como os Tenentes

foram, ou se viam, antes de mais nada, como os directores da consciência política.»33.

Semelhante opinião é também partilhada por António Cândido ao defender que a revolução de

Outubro constituiu um marco fundamental na História do Brasil ao nível cultural, social e

político, consequência directa das aspirações programadas na década de 20, que se

materializaram no alargamento da participação social e numa tomada de consciência ideológica

por parte de escritores e intelectuais, fazendo dos anos 30 uma época de «engajamento político,

religioso e social no campo da cultura.»34.

Deste modo, e referindo de uma forma mais concreta à produção cultural da década de 30,

no campo dos estudos de carácter histórico, sociológico e antropológico, surgem como

referências os nomes de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.

Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, representa um contributo fundamental

para o conhecimento da identidade histórica do Brasil. Esta obra de carácter sociopsicológico,

assente no determinismo étnico e económico e numa perspectiva saudosista, traça o perfil do

Homem Português quinhentista, que colonizou a nova terra à sua imagem e semelhança,

inculcando valores, crenças e uma determinada visão do mundo35.

Por seu lado, Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda, na opinião de

Massaud Moisés, constitui uma realização dos ideais modernistas de 1922 e um prolongamento

dos propósitos de Freyre na interpretação do passado patriarcal brasileiro. A obra de Sérgio

Buarque de Holanda percorre a História do Brasil, desde 1500 até às primeiras décadas do século

32 Cf. Maria Yedda Linhares (org), História Geral do Brasil, Rio de Janeiro, Campus, 1990.33 Wilson Martins, «50 anos de modernidade», Colóquio Letras, nº3, Set. 1971, p. 26. 34 António Cândido, «A Revolução de 30 e a cultura», in A Educação pela Noite & Outros Ensaios, S. Paulo,

Ática, 2003, p. 182.35 Cf. Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira, vol.V, Modernismo (1922 – atualidade), S. Paulo,

Cultrix, 1996.

22

XX, na procura de uma identidade brasileira, aliando um sentimento nacionalista a um estilo

literário. Distinguindo-se da vertente saudosista de Freyre e apelando para a problematização das

orientações políticas da década de 30, Sérgio Buarque de Holanda, na perspectiva de António

Cândido, revela «uma crítica muito aguda das soluções autoritárias do passado e do presente, ao

mesmo tempo que quebrava o sentimentalismo lusófilo (visível em Gilberto Freyre) e punha em

dúvida a capacidade das elites para o papel que se arrogavam, e era um dos temas do

momento.»36.

A Formação do Brasil Contemporâneo (1942) de Caio Prado Júnior, por sua vez, assume-

se como uma obra de carácter marxista que problematiza as relações sociais entre as elites

dominantes e a classes sociais mais desprotegidas:

«O aparecimento de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, em 1942,

foi uma espécie de culminação desse movimento cultural, pois, baseando-se no marxismo, deu

realce à vida econômica e chamou a atenção para as formas oprimidas do trabalho de um ângulo

estritamente econômico. Ao mesmo tempo desmistificava a aura que envolvia certos conceitos,

como “patriarcado” ou “elite rural”, apresentando uma visão ao mesmo tempo objetiva e radical,

que encarna as tendências mais avançadas do pensamento renovador dos anos de 1930.»37.

Por sua vez, no campo da Literatura, a época de 30 abre as portas para uma produção

literária de carácter regionalista, produzida principalmente na zona do Nordeste e no Rio Grande

de Sul, a par de uma prosa urbana e psicologista. Em íntima relação com a componente política,

surge uma literatura empenhada, que se divide em duas vertentes ideológicas diferenciadas: uma

vertente ligada a correntes integralistas e fascistas, da qual é exemplo Plínio Salgado, e uma

corrente de esquerda de influência marxista que surge representada pelo grupo de escritores

nordestinos e da qual são exemplo, entre outros, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Raquel de

Queirós. No seu conjunto, tal como aponta António Cândido, trata-se de uma literatura que

apresenta uma visão renovada do território brasileiro38.

36 António Cândido, op. cit., p.191.37 Idem, ibidem, p.191. 38 Idem, ibidem, p.187.

23

2.2. O regionalismo na Literatura Brasileira

O conceito de Regionalismo tem sido alvo de várias abordagens, desde as concepções mais

redutoras até às que apontam para o seu carácter moderno e universal. Lígia Chiappini, num

artigo dedicado às várias perspectivas a que o regionalismo está sujeito, refere-se desde logo que

esta tendência literária remete para questões relacionadas com a teoria, a crítica e a história

literárias, tais como o problema do valor, a relação entre a arte e a sociedade, as relações da

literatura com as ciências humanas, as literaturas canónicas e não canónicas e as indefinições das

suas fronteiras39.

Do ponto de vista histórico, o conceito de regionalismo na literatura encontra-se

maioritariamente ligado à representação do espaço rural, pois a sua concepção geral aponta para

«obras que expressam regiões rurais e nelas situam suas ações e personagens, procurando

expressar suas particularidades lingüísticas»40, embora o seu conceito amplo esteja ligado a toda

a obra literária que traduza peculiaridades locais e se veicule a uma determinada área do país,

como são exemplo o regionalismo gaúcho, nordestino e paulista. Por outro lado, considera-se

que as origens do regionalismo remontam à tradição bucólica greco-latina e à sua retomada no

século XIX sob a forma de romance regionalista.

Outras interpretações do Regionalismo apelam para o seu carácter limitador, considerando-

o uma tendência literária à margem da literatura canónica. Uma leitura empobrecedora, que o

leva a ser considerado um movimento encerrado num determinado período histórico em

detrimento de uma leitura que permita ver o regionalismo como uma tendência literária mutável

e capaz de representar o homem rural:

«O regionalismo, lido como movimento, período ou tendência fechada em si mesma num

determinado período histórico em que surgiu ou alcançou maior prestígio, é empobrecedor. [...] O

regionalismo lido como uma tendência mutável onde se enquadram aqueles escritores e obras que

se esforçam por fazer falar o homem pobre das áreas rurais, expressando uma região para além da

geografia, é uma tendência que tem suas dificuldades específicas, a mais difícil das quais é tornar

verosímil a fala do outro de classe e de cultura para o público citadino e preconceituoso que,

somente por meio da arte, poderá entender o diferente como eminentemente outro e, ao mesmo

39 Cf. Lígia Chiappini, «Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura», in Fernando Cristóvão, Nacionalismo e Regionalismo nas Literaturas Lusófonas., Lisboa, Cosmos, 1997, pp. 133-136.

40 Idem, Ibidem, p. 133.

24

tempo, respeitá-lo como um mesmo: “homem humano”.»41

A par desta concepção histórica e mutável do regionalismo surgem também outras leituras

que apontam para o seu carácter universal: a verdadeira obra regionalista é aquela que cria um

determinado espaço regional, que é vivenciado pela consciência das personagens, e que remete

para um mundo histórico-social e uma região geográfica existente. Por outro lado, as

perspectivas actuais apontam para o seu carácter moderno e universal, entendido enquanto

reacção necessária a uma sociedade globalizada dominada pelo capitalismo e pela

homogeneidade cultural.

Afrânio Coutinho é outro dos ensaístas que se debruça sobre o regionalismo, apresentando

uma definição do «regionalismo autêntico», valendo-se da perspectiva de George Stewart:

«Mais estritamente, para ser regional uma obra de arte não somente tem que ser localizada

numa região, senão também deve retirar sua substância real desse local. Essa substância decorre,

primeiramente, do fundo natural – clima, topografia, flora, fauna, etc. - como elementos que

afetam a vida humana na região; e em segundo lugar, das maneiras peculiares da sociedade

humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra.»42

Referindo-se de uma forma concreta ao regionalismo brasileiro, Afrânio Coutinho aponta

para dois momentos do regionalismo: o regionalismo romântico e o regionalismo realista. O

regionalismo romântico caracteriza-se pela supervalorização do pitoresco e da cor local e para

uma visão idealizada do passado:

«Em José de Alencar, Gonçalves Dias, Bernardo Guimarães, o regionalismo é uma forma

de escape do presente para o passado, um passado idealizado pelo sentimento e artificializado pela

transposição de um desejo de compensação e representação por assim dizer onírico. Esta

modalidade de regionalismo incorre numa contradição ao supervalorizar o pitoresco e a cor local

do tipo, ao mesmo tempo que procura encobri-lo, atribuindo-lhe qualidades, sentimentos, valores

que não lhe pertencem, mas à cultura que se lhe sobrepõe.»43

Pelo contrário, o regionalismo realista, retomando uma realidade regional, centra-se na

41 Idem, ibidem, p. 135.42 Afrânio Coutinho, A Literatura no Brasil, vol. V, Era Modernista. Estilos de Época, S. Paulo, Global Editores,

1997, p. 235.43 Idem, Ibidem, p. 234.

25

análise da realidade social, nomeadamente na relação que se estabelece entre o homem e o

ambiente. Segundo Afrânio Coutinho, é com o Realismo que os escritores encontram uma

«ampla fonte de assuntos, sugestões, linguagem nativa, tipos humanos, formas de conflito social

e moral» e é a partir desta estética literária que é possível compreender o regionalismo literário,

que consiste em

«apresentar o espírito humano, nos seus diversos aspectos, em correlação com o seu

ambiente imediato, em retratar o homem, a linguagem, a paisagem e as riquezas culturais de uma

região particular, consideradas em relação às reações do indivíduo, herdeiro de certas

pecularidades de raça e tradição».44

Ao centrar-se na representação de uma realidade social, o regionalismo na Literatura

Brasileira constitui um veículo de ilustração da diversidade cultural de um país extenso, e é pelo

retrato dessa diversidade que é possível construir uma identidade cultural. É a partir desta faceta

do regionalismo, que nos é possível afirmar que a corrente regionalista assume uma ideologia

nacionalista.

Por sua vez, para José Aderaldo Castello, o regionalismo está intrinsecamente ligado a uma

componente nacionalista, mas também a uma componente de universalidade, que apenas pode

ser fecunda quando aliada a um processo de originalidade e de maturidade da criação literária45.

Já para José Maurício Gomes de Almeida, a evolução e maturidade da perspectiva regionalista

tem origem em factores de ordem estético-literária e de ordem histórica e cultural. As

transformações de ordem estético-literária foram incorporando variações de estilo e técnicas

narrativas que, em última análise, revelaram transformações nas concepções do mundo e do

homem e nas motivações que alimentam o fazer artístico. Deste facto são exemplo os romances

O sertanejo, de José de Alencar, publicado em 1875 e Vidas Secas, de Graciliano Ramos,

publicado em 1938, enquanto romances que recuperam uma realidade regional (realidade

sociológica) que é transformada em matéria literária (realidade estética). A relação que se

estabelece entre estas duas realidades é essencial para a construção de uma obra regionalista,

ainda que essa representação dependa da época e do sujeito que a escreve, aceitando deste modo

o carácter mutável desta tendência literária:

44 Howard W. Odum citado por Coutinho, op.cit., p. 235.45 Cf. José Aderaldo Castello, «Regionalismo brasileiro. Uma derivada do nacionalismo romântico», in Fernando

Cristõvão, Nacionalismo e Regionalismo nas Literaturas Lusófonas, Lisboa, Cosmos, 1997, p. 113.

26

«A única exigência de validez geral para que uma obra possa ser considerada a justo título

regionalista é a da existência de uma relação íntima e substantiva entre a sua realidade ficcional e

a realidade física, humana e cultural da região focalizada. O modo como na prática este

relacionamento se efetiva vai variar de época para época, de escritor para escritor, de obra para

obra.»46

Se na sua génese o regionalismo começou por manifestar uma preocupação nacionalista

com os românticos para depois evoluir para uma preocupação com os valores específicos de

cada região dentro do complexo cultural do país existem factores de ordem histórica e

económico-social que o determinam, como é o caso do Nordeste.

O Nordeste é uma zona geográfica caracterizada por uma cultura tradicional de cunho

essencialmente rural que neste contexto reivindica a revalorização da sua cultura regional. A

consciência da decadência de uma estrutura agrária e patriarcal, a par de uma revalorização da

cultura regional, gera na classe intelectual um sentimento de revolta e de denúncia social, que

surge representado na ficção regionalista de 30, principalmente na zona nordestina que, para

além dessa desagregação social, tem o fenómeno das secas periódicas a agravar a decadência e as

desigualdades sociais.

José Maurício Gomes de Almeida e José Aderaldo Castello defendem que a evolução da

corrente regionalista nordestina se deve essencialmente a factores de ordem cultural, política e

social e ao programa cultural instaurado pelo sociólogo Gilberto Freyre na defesa dos valores

culturais do Nordeste. O primeiro destaca, neste contexto, a fundação do Centro Regionalista do

Nordeste em Abril de 1924, em Recife, e o 1º Congresso Regionalista do Nordeste, realizado na

mesma cidade, entre 7 e 11 de Fevereiro de 1926, cujo programa, ao defender a unidade

económico-cultural do Nordeste brasileiro, destaca no plano cultural aspectos como a

organização do ensino, a defesa de valores tradicionais, onde se inclui a defesa do património

histórico, artístico e arquitectónico e as festas e jogos tradicionais47. Ainda segundo o mesmo

ensaísta, a publicação do Livro do Nordeste, em Novembro de 1925, obra constituída por uma

colectânea de trabalhos sobre a cultura da região e organizada por Gilberto Freyre, em que se

inclui o ensaio «Vida Social no Nordeste», representa também uma iniciativa cultural que irá

contribuir para a criação literária da década de 30, mas também para o desenvolvimento de uma

46 José Maurício Gomes de Almeida, A Tradição Regionalista no Romance Brasileiro (1857-1945), Rio de Janeiro, Topbooks, 1999, p. 314.

47 Cf. Idem, ibidem, p. 190.

27

«consciência regionalista» entre os nordestinos.

Retomando o pensamento do sociólogo Gilberto Freyre, José Aderaldo Castello defende

que a concepção de regionalismo, resultante do Congresso de 1926, pressupunha uma defesa da

identidade e unidade nacional a partir de uma visão objectiva e sem preconceitos da realidade

regional, pois só a partir da defesa da cultura regional seria possível conhecer o país na sua

diversidade e na sua unidade:

«Resumindo a propósito o pensamento de Gilberto Freyre, dizíamos que o regionalismo

debatido no Congresso de 1926 aspirava a uma reorganização do Brasil, em que cada brasileiro,

despido da roupagem europeia, devia voltar-se para o seu meio e penetrar natural e sinceramente,

sem complexos coloniais, em nossa realidade, visando sempre a uma articulação «inter-regional»

para melhor compreensão dos problemas e definição da unidade nacional. Porque, do ponto de

vista político, a nossa ação deveria ser inter-regional e não estadualista, em atenção à mais exata

configuração do país, dividido em regiões naturais diversificadas, a que se sobrepõem regiões

culturais. Derivaria daí o critério que deveria presidir os estudos da cultura brasileira, os da

natureza física do país, da sua paisagem, do homem, assim como as soluções para problemas

econômicos e de trabalho.»48

Estes pressupostos mantinham o seu valor para a região nordestina:

«Voltadas diretamente para os limites da região nordestina, as propostas

provenientes do Congresso de 1926 visavam à reabilitação e preservação de valores e tradições,

em reação contra o indiferentismo e mesmo a obra destruidora daqueles que deviam protegê-

los; em vez de preferirem imitações estrangeiras desfiguradoras. Eram valores e tradições que

mereciam esforço de defesa, não só pelo que significava nos limites das próprias

regiões, como também pelo vulto que assumem no todo da cultura brasileira.»49

Ao abordar o regionalismo brasileiro, José Aderaldo Castello considera que este atingiu o

seu ponto culminante com a ficção dos anos 30 e aponta como seus antecedentes as ideias de

Gilberto Freyre, o conceito de regionalismo de José Lins do Rego e o conceito de «brasilidade»

proposto pelo modernista Mário de Andrade. O ensaísta baseia-se nas palavras de José Lins do

Rego, que define o aspecto político e artístico do regionalismo: «No plano político é o contrário

do estadualismo que a República implantara; no plano artístico é uma sondagem da alma do

povo, nas fontes do folclore, no que há de grande e vigoroso na alma popular.»50. Ainda na 48 José Aderaldo Castello, op. cit., pp.109-110.49 Idem, ibidem,pp. 109-110.50 Idem, ibidem,pp. 110.

28

defesa da dicotomia regionalismo/ universalismo, José Aderaldo Castello define esta tendência

literária do seguinte modo:

« (...) achamos que aquela expressão [regionalismo] pode ser usada principalmente para

designar tudo o que se tem feito na nossa literatura nos limites da relação homem/ terra, marca

atuante de uma busca incessante de integração, de auto-definição e de reconhecimento de uma

individualidade própria. Neste sentido marcha-se também da «visão regional» para a

«desregionalização», a fim de esclarecer o que de maneira totalizante Mário de Andrade chamou

«brasilidade», isto é, o direito de ser brasileiro, como cada um pode e deve ser, sob autocrítica, de

acordo igualmente com o pensamento já ressaltado de José Lins do Rego.»51

Estamos assim perante um conceito que aponta como temática geral a abordagem da

relação homem/ terra numa busca pela identidade nacional que faz a partir do particular para o

geral – para a definição da alma brasileira. No entanto, este propósito de definir a alma brasileira

mantém uma relação próxima com o conceito de «brasilidade» de Mário de Andrade, conceito

esse que serviu de mote para o movimento modernista.

Os estudos realizados sobre o Regionalismo na Literatura Brasileira, e mais concretamente

sobre os motivos que levaram à projecção desta tendência literária a partir da década de 30 do

século XX, no chamado Romance de 30, apontam para factores de ordem política, histórica,

social e cultural. No entanto, não devemos descurar os factores estéticos e o desenvolvimento

desta tendência no decorrer do Modernismo. Se do Modernismo surge o conceito de

«brasilidade», enquanto ideia que aponta para a identidade cultural e ao nível estético para uma

renovação literária, por meio da linguagem, podemos interrogar-nos sobre o papel da perspectiva

regionalista no seio do Modernismo: afinal, estas duas perspectivas complementam-se ou entram

em conflito?

Para José Maurício Gomes de Almeida as divergências entre o Modernismo paulista e o

movimento regionalista nordestino apenas podem ser compreendidas como «respostas

específicas e diferenciadas entre si a problemas socioculturais também peculiares e diversos.»52,

directamente relacionados com factores sócio-económicos e estéticos. No que se refere aos

aspectos sócio-económicos, o Nordeste perde o seu estatuto de pólo económico do país e a sua

estrutura social de tipo patriarcal, baseada na monocultura e no latifúndio, entra em decadência,

enquanto a cidade de S. Paulo, com os lucros provenientes da produção cafeeira e com o

51 Idem, ibidem,pp. 110-111. 52 José Maurício Gomes de Almeida, Op. Cit., p. 202.

29

desenvolvimento industrial, passa a ser considerada uma cidade moderna e cosmopolita,

ganhando assim prestígio económico no país. Relativamente aos aspectos de ordem estética, o

autor considera dois factores determinantes: a relação da literatura com a realidade social e a

validade da inovação estética na produção literária. O Modernismo elogia a vida moderna e a

civilização industrial de S. Paulo, enquanto que o movimento regionalista defende os valores

culturais. O Modernismo apresenta uma preocupação predominantemente estética que norteia o

Modernismo paulista, em detrimento de uma visão sociológica e cultural por parte dos

nordestinos. A posição paulista está bem visível na produção literária de Oswald de Andrade e

de Mário de Andrade, que revelam uma preocupação com a renovação da linguagem e,

consequentemente, procuram colocar-se em sintonia com as vanguardas europeias. Resultado

desta preocupação foi a Semana da Arte Moderna de 1922, considerada um festival da Arte. No

entanto, apesar destas divergências, o movimento regionalista assume relevo determinante na

Literatura Brasileira e passa a ser considerado o segundo movimento modernista: trata-se de uma

literatura de marcada vocação social e de um posicionamento crítico em relação às estruturas

sociais vigentes e às injustiças sociais.

Por seu lado, Alfredo Bosi considera que as décadas de 30 e de 40 vieram ensinar muito

aos intelectuais brasileiros, nomeadamente a compreensão de velhos e novos problemas sociais,

trazidos pelo tenentismo e pela política de Vargas, fazendo ascender lemas patrióticos e

procurando envolver o proletariado e as crescentes classes médias. A compreensão destes

problemas estava reservada a escritores que atingiram a maturidade depois dos anos 30, tais

como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade, para quem o

Modernismo constituiu uma “porta aberta”. Para Alfredo Bosi, do novo sistema cultural

posterior a 30, desenvolvido a partir do Modernismo, resultam “novas configurações históricas”

que exigem “novas experiências artísticas”. A prosa de ficção encaminhada para um “realismo

bruto”, como é o caso da ficção de Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo e em parte

de Graciliano Ramos, beneficia com a incorporação da linguagem oral, dos brasileirismos e dos

regionalismos. Para este historiador, a análise dialéctica é a melhor forma de encarar a história

cultural, que neste caso concreto demonstra a existência de novas angústias e de novos projectos

por parte dos artistas brasileiros53.

53 Cf. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix, 1994, p. 385.

30

2.3. O Romance Social brasileiro da década de 30

A produção ficcional regionalista da década de 30, considerada o segundo momento

modernista, na perspectiva de Massaud Moisés, em termos temporais, teve início com a

publicação de A Bagaceira de José Américo de Almeida, em 1928, e findou com o a o romance

Seara Vermelha, de Jorge Amado, em 1946.

Na tentativa de delimitar e de caracterizar a produção romanesca de 30, Massaud Moisés e

outros autores estabelecem a existência de quatro ciclos romanescos: o ciclo das secas,

representado por José Américo de Almeida, Raquel de Queirós, Amando Fontes e Graciliano

Ramos; o ciclo do açúcar de José Lins do Rego; o ciclo do cacau de Jorge Amado e o ciclo

amazônico de Peregrino Júnior e o ciclo gaúcho de Darci Azambuja, Erico Veríssimo e Ivan

Pedro de Martins. As personagens destas narrativas são essencialmente personagens colectivas,

representantes de uma classe ou grupo social.

No contexto do nosso ensaio torna-se fundamental a comparação dos pressupostos próprios

do Romance de 30 com o Realismo e o Naturalismo do século XIX. No contexto literário

brasileiro, é com a publicação de O Mulato e Memórias Póstumas de Brás Cubas, no início da

década de 80, que se assinala o aparecimento da estética realista e naturalista. À influência dos

precursores franceses dos dois movimentos, adiciona-se a obra dos realistas portugueses,

nomeadamente de Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Antero de Quental. Dentro desta estética

destacam-se ainda as figuras de Machado de Assis e Raul Pompéia, bem como os escritores mais

directamente ligados à vertente naturalista, como Aluísio Azevedo, Inglês de Souza e Adolfo

Caminha.

O Realismo e o Naturalismo configuram-se como duas tendências de origem urbana que

reflectem o estádio de desenvolvimento urbano da Europa do século XIX, bem como o progresso

científico. Embora no Brasil se registasse um precário desenvolvimento comercial e industrial e

ainda mal se desenhasse o aparecimento de uma burguesia urbana e de um proletariado, a

aceitação destas duas tendências representou o fortalecimento da abordagem do meio citadino,

privilegiando o retrato do pólo político e intelectual do Rio de Janeiro. No entanto, apesar de se

prestigiar uma ficção de carácter urbano, que em última análise poderíamos considerar um

regionalismo urbano, por volta da década de 1890 surge uma corrente regionalista rural

representada por Oliveira Paiva (Ceará), Afonso Arinos, de Minas Gerais e Valdomiro Silveira,

de São Paulo.

31

No que se refere ao parâmetro estrutural das narrativas realistas naturalistas, salientamos,

desde logo, a sua perspectiva documental, dado o seu interesse em retratar a classe burguesa,

expondo as suas vicissitudes e, valendo-se das leis científicas e de uma visão patológica dos

comportamentos sociais, assumiu também como previsível a corrupção social. Neste contexto,

Massaud Moisés defende a existência de dois tipos de Realismo: um realismo exterior, que

apresenta uma visão do real sustentada em princípios filosóficos e científicos, veiculando a ideia

de que o comportamento da personagem se torna previsível por meio da análise do meio em que

se move e dos seus gestos e atitudes; por sua vez, o realismo interior baseia-se na análise

psicológica da personagem, mas ao contrário do realismo exterior, pressupõe que os dramas

humanos se manifestam no universo interior da personagem54.

Nos vários estudos levados a cabo sobre a produção de 30, e mais propriamente em

aspectos que definem o seu plano estrutural, tem sido debatida a relação que estas narrativas

estabelecem com os parâmetros literários do Realismo/ Naturalismo do século XIX, acentuando-

se a perspectiva documental destas narrativas pela relação íntima que estabelecem com uma

realidade histórico-social concreta.

Para Massaud Moisés, as narrativas de 30 não apresentam uma estrutura complexa. No

plano do estilo, realça-se o gosto pelo coloquial e a utilização de uma dicção puramente

brasileira e representativa dos regionalismos55. Para este ensaísta, o romance de 30, pela sua

recuperação do regionalismo e pelo seu carácter realista, recupera alguns dos parâmetros do

Realismo/ Naturalismo do século XIX, registando-se por um lado inovações, mas também uma

permanência das limitações próprias desta estética literária. A vertente realista recuparada pela

prosa ficcional de 30 está assim directamente relacionada com a recuperação do género

romanesco enquanto «romance social», «romance de tese», «romance-denúncia», «romance-

documento» que retoma a defesa de teses científicas e sociais, mas que do ponto de vista

ideológico, devido à predominância de temáticas relacionadas com o universo regional, assenta

em ideais marxistas.

No entanto, para Massaud Moisés, o retomar da doutrina naturalista oitocentista traz

algumas limitações, nomeadamente a adopção mecanicista de teses sociológicas e com ele a

possibilidade de esvaziamento dos temas56. No entanto, a estas narrativas não falta nem a

verossimilhança, nem um retrato real dos problemas focalizados quando se alude às paisagens

físicas e humanas do Nordeste, do Rio Grande do Sul e da Amazónia. Por outro lado, o crítico

54 Cf. Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira, vol.III, Realismo, S. Paulo, Cultrix, 1984, pp. 25-29. 55 Cf. Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira, vol.V, Modernismo (1922 – atualidade), S. Paulo,

Cultrix, 1996, pp. 173-174.56 Idem, Ibidem, p. 172.

32

literário considera que esta propensão para o regionalismo, e principalmente no romance

nordestino, revela também uma propensão para o pitoresco, facto que também considera uma

limitação: «Provavelmente pela inadequação do meio regionalista às teses preconizadas,

resvalam numa literatura desejadamente revolucionária, mas que se realiza antes como rendição

à cor local que como defesa e veículo de postulações transformadoras da realidade.»57

Gilberto Mendonça Teles dedicou-se ao estudo da ficção regionalista de 30,

nomeadamente da produção literária de José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz,

Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Amando Fontes58. Referindo-se à escolha

geneológica dos escritores da década de 30, Gilberto Mendonça Teles aponta para a

predominância do género romanesco ou do conto, enquanto melhor forma de expressar as acções

e caracterizar os cenários nordestinos, e também como a única forma de se poder apresentar um

documento estético e denunciador da injustiça social.

O grupo de escritores constituído por José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz,

Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado, Jorge Lima e Amando Fontes justifica a

unidade de um sistema de narrativa denominada de romance de 30 do Nordeste, quando se tem

em conta o seguinte modelo: plano de conteúdo, plano de expressão e plano retórico59.

Quanto ao plano de conteúdo, Gilberto Mendonça Teles refere os temas já apontados por

José Aderaldo Castello: «a limitação do ambiente, os ciclos da seca, do cangaço, o misticismo, a

cana-de-açúcar, o cacau, a decadência do coronelismo latifundiário e, podemos acrescentar, o

tom memorialístico e semi-urbano de alguns romances.»60

No plano da expressão, destaca o coloquialismo, que se manifesta equilibrado entre o

regionalismo e a norma do registo escrito; a adopção de técnicas narrativas e a utilização

vocabulário típicos das zonas descritas, como forma de assegurar a verosimilhança e a recepção

do leitor.

No plano retórico, destaca a recuperação das técnicas narrativas da ficção tradicional do

século XIX, em que o enunciador, ao narrar de forma verosímil as acções e os pensamentos das

personagens, recorre a uma perspectiva na terceira pessoa.61

Já para Alfredo Bosi, a realidade sócio-cultural em que surge integrada a ficção de 30, no

57 Idem, Ibidem, p.171. 58 Gilberto Mendonça Teles, A crítica e o Romance de 30 do Nordeste, Rio de Janeiro, Atheneu Cultura, 1990, p.

107.59 Cf. Idem, Ibidem, pp. 15-16.60 Idem, Ibidem, pp. 15-16.61 Cf. Idem, Ibidem, pp.15-16.

33

período da crise cafeeira, com a eclosão da Revolução de 30, com o declínio do Nordeste e com

a consequente modificação das estruturas sociais, permite criar as condições necessárias para a

retomada do Naturalismo e para a adopção da narração documento na prosa62. Considera

igualmente que esta ficção, ao relacionar-se com a realidade social, dá lugar a uma prosa em que

se analisam criticamente as relações sociais:

«Mas sendo o realismo absoluto antes um modelo ingénuo e um limite da velha concepção

mimética de arte que uma norma efetiva da criação literária, também esse romance novo precisou passar

pelo crivo de interpretações da vida e da História para conseguir dar um sentido aos seus enredos e às

suas personagens. Assim, ao realismo “científico” e “impessoal” do século XIX preferiram os nossos

romancistas de 30 uma visão crítica das relações sociais. »63.

Considerando insuficiente a comum distinção entre os dois tipos de romance, romance

social-regional e romance psicológico, Alfredo Bosi, ao abordar a produção romanesca

brasileira a partir da década de 30, distingue quatro tendências no romance brasileiro: romances

de tensão mínima, romances de tensão crítica, romances de tensão interiorizada e romances de

tensão transfigurada64. A distinção dessas tendências sustenta-se nos pressupostos teóricos do

estruturalismo sociológico de Lucien Goldmann, apresentados em A Sociologia do Romance, e

parte da relação de tensão crescente que se estabelece entre o “herói” e o seu mundo, numa

homologia com a tensão que se exerce entre o escritor e a sociedade. As obras Usina e Fogo

Morto de José Lins do Rego e os romances de Graciliano Ramos estariam assim enquadradas

nos romances de tensão crítica, dado que «o herói opõe-se e resiste agonicamente às pressões da

natureza e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas, o seu mal-estar

permanente.»65. O romance de 30 enquadra-se nesta tendência, dada a relação que se estabelece

entre o herói e o ambiente natural e social, sustentado numa visão crítica da sociedade, que

permite definir o enredo e o carácter da personagem:

«Nos romances em que a tensão atingiu o nível da crítica, os fatos assumem significação

menos “ingênua” e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz no tecido

da pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito

mais profunda. Há menor proliferação de tipos secundários e pitorescos: as figuras são tratadas em

62 Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix, 1994, p. 389.63 Idem, Ibidem, p. 389.64 Cf. Idem, Ibidem, p.892.65 Idem, Ibidem, p. 892.

34

seu nexo dinâmico com a paisagem e a realidade socioeconômica (Vidas Secas, São Bernardo de

Graciliano Ramos), e é dessa relação que nasce o enredo. Passa-se do “tipo” à expressão; e embora

sem intimismo, talha-se o caráter do protagonista.»66

Da análise dos dois movimentos literários podemos afirmar que o movimento neo-realista

apresenta características bem definidas no que se refere às suas orientações ideológicas,

influências literárias e opções estético-literárias. As opções ao nível ideológico centram-se num

pensamento marxista e nos fundamentos filosóficos do materialismo dialéctico, opção que

implica uma ruptura com o socialismo utópico e com o idealismo do século XIX. As influências

literárias centram-se na literatura produzida segundo os ideais do realismo socialista, e do qual

são exemplo os romances de Gorki, Caldwell, Steinbeck e Hemingway, e também no romance

brasileiro nordestino da década de 30. Relativamente às opções estético-literárias, o movimento

neo-realista concede primazia ao género narrativo, nomeadamente ao conto, à novela e ao

romance, já que estes géneros literários são compatíveis com a representação da verosimilhança

e com o cunho documental que se pretende introduzir na produção literária. Ainda no que

respeita às opções retórico-estilísticas podemos constatar que as categorias narrativas de espaço e

de personagem são as que melhores se adequam para apresentar uma realidade social em termos

opressivos. Ao privilegiar estas categorias narrativas torna-se possível abordar determinados

espaços geográficos, nomeadamente o Alentejo, a paisagem privilegiada pelo escritor Manuel da

Fonseca, e o Ribatejo, bem como um leque de personagens provenientes de uma classe social

desfavorecida. Por outro lado, estas opções permitem igualmente a representação de uma

dinâmica histórico-social que se deseja reveladora de mecanismos de transformação social.

Todos estes factores reportam para uma concepção empenhada do fenómeno literário e

inevitavelmente para a projecção de um olhar atento sobre os problemas sociais, políticos e

económicos da época. Por sua vez, estas concepções do fenómemo literário e a opção pela

vertente ideológica do marxismo, traduz-se ainda na escolha de um leque temático que

contempla temas como o conflito social, a alienação e a consciência de classe.

O romance social brasileiro da década de 30 destaca-se pela sua vertente regionalista e pelo

seu ideal de defesa de uma unidade e de uma identidade nacional, realizada através de uma visão

objectiva e sem preconceitos da realidade regional. O romance de 30 caracteriza-se pela sua

vocação interventora e de denúncia de uma realidade social injusta, e é ele que, em parte, vai

influenciar a produção literária neo-realista.

66 Idem, Ibidem, p.393

35

No que respeita às opções estético-literárias, o movimento literário português também

concede especial destaque ao género narrativo e recorre à recuperação do romance oitocentista e

da sua vertente documental. A opção pelo género narrativo constitui a melhor forma de expressar

as acções e esboçar um retrato fiel dos cenários regionais, bem como veicular uma ideologia

marxista que se coaduna com uma visão crítica da realidade social. A nível temático, regista-se a

existência de ciclos romanescos que, divididos em ciclos da seca, da cana-de-açúcar, do cacau e

amazónico conferem por meio do seu teor crítico uma visão realista e renovada do território

brasileiro.

36

II – A dimensão ideológica de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca e de Vidas Secas de

Graciliano Ramos

1. A dimensão temática de Seara de Vento e Vidas Secas

1.1. Como nos foi possível constatar no capítulo precedente, a produção literária neo-

realista dá primazia ao universo rural e às condições sócio-económicas da classe proletária

denunciando, deste modo, a opressão a que os elementos desta classe estão sujeitos. Intimamente

ligados ao tema da opressão, surgem os sub-temas da alienação, do conflito de classes, da

exploração do homem pelo homem e, por último, da consciência da alienação. Como

consequência desta abordagem, sobressai, do ponto de vista ideológico, uma visão dialéctica do

homem e a crença de que, por meio da consciencialização de classe e do empreendimento de

uma revolução fundamentada, será possível combater a desigualdade social e dar corpo à visão

utópica da construção de uma sociedade mais justa. Os neo-realistas, rompendo com a visão

determinista do Homem, veiculada por ideias realistas e naturalistas de Oitocentos, transportam

para a literatura da época um leque de personagens provenientes das classes mais desfavorecidas

e implementam, de uma forma visível, uma visão mais realista do espaço rural e das reais

condições de vida dos campesinos.

Para Maria Alzira Seixo, a escrita neo-realista apresenta uma preocupação eminentemente

social

«em que o indivíduo é visto em luta com o meio ambiente e humano numa dialéctica de

exploração-libertação para a comunicação da qual se utilizam a análise dos factores históricos,

sobretudo os económicos; a descrição do despertar da consciência de classe no indivíduo, da sua

actuação em função dessa consciência de classe e um processo efabulativo que integra a dinâmica

social que, com maior esquematismo ou maior complexidade na combinação dos dados, encontra

na luta de classes a possibilidade de canalização histórica para um mundo novo, mais equilibrado,

mais justo.»67

Tendo em conta esta visão da corrente neo-realista, Alzira Seixo considerou Seara de

Vento, de Manuel da Fonseca, em termos geneológicos, um romance rural na perspectiva neo-

67 Maria Alzira Seixo, «O romance rural na perspectiva neo-realista: “Seara de Vento” de Manuel da Fonseca » in Maria de Lourdes Belchior, Maria Isabel Rocheta e Maria Alzira Seixo, Três Ensaios sobre Manuel da Fonseca (A Poesia, O Fogo e as Cinzas, Seara de Vento) , Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicação, 1980, pp. 86-87.

37

realista, devido aos seguintes factores: por ter concedido especial atenção aos problemas do

campo a partir da década de 40, aproveitando a realidade rústica para abordar o meio operário e a

pequena burguesia numa perspectiva de problemática contradição de classe, e para fornecer uma

visão da sociedade em termos de luta, de opressão e de libertação.

O romance fonsequiano Seara de Vento, publicado em 1958, tem como pano de fundo o

ambiente social e político do espaço rural alentejano, num tempo histórico em que se vivencia a

fome, a miséria, o desespero, o desemprego e a opressão. As personagens principais desta

narrativa são uma família de camponeses, composta por Palma, Júlia, a sua esposa, Amanda

Carrusca, mãe de Júlia, Mariana, a filha do casal, e Bento, o outro filho do casal que sofre de

uma deficiência mental. O núcleo familiar, assolado pela fome e pela miséria, habita num

casebre em ruínas e lamenta a derrocada do forno da família. O sustento é garantido apenas pelo

magro ordenado de Mariana, que trabalha no campo, já que o chefe da família, Palma, se

encontra desempregado. Palma, a personagem principal da narrativa, é a vítima directa da

arbitrariedade do poder e da injustiça, dado que é acusado injustamente do roubo de umas sacas

de cevada por parte do seu ex-patrão Elias Sobral, e por essa razão é condenado e preso. Movido

pelo seu desejo de sustentar a família, o camponês não vê outra alternativa senão tornar-se

contrabandista. No entanto, embora por algum tempo consiga saciar a fome na sua casa e

projecte a reabilitação da casa e do forno da família, o encontro com o seu ex-patrão, o grande

latifundiário, na venda do Mira, desperta-lhe sentimentos de ódio e de vingança. Estes

sentimentos e desejos levam-no a confrontar o elemento opressor. Como consequência deste

acto de Palma, Elias Sobral usa a sua influência para encurralar o camponês, incentivando o

sargento Gil a fazer uso do seu poder de autoridade policial. O sargento Gil leva Júlia para a

esquadra e utilizando técnicas de interrogatório e de tortura, obriga-a a confessar que Palma

trabalha no contrabando. Dominada pelo sentimento de culpa de ter denunciado o marido, Júlia

suicida-se na cela da prisão. Este acontecimento trágico serve de impulso a Palma para

concretizar o seu projecto de vingança: prepara uma emboscada ao grande latifundiário,

acabando por atingi-lo a tiro. Consequentemente, o sargento Gil e os seus guardas cercam o

casebre em ruínas e o tiroteio que se desenrola acaba por ter como consequência a morte do

camponês.

No plano diegético, as sequências narrativas seguem uma estrutura linear, conferindo uma

dimensão trágica ao enredo. As referências temporais, em forma de analepses, surgem apenas

como forma de justificar a situação de opressão a que a família está sujeita no tempo presente,

em nada prejudicando a ordem sequencial dos acontecimentos. Assim sendo, em função do

enredo, e dadas as condições sócio-económicas da família do protagonista e herói, consideramos

38

que o tema fundamental desta narrativa é a opressão. A este tema ligam-se os sub-temas da

fome, da alienação, da injustiça social, do conflito social, da violência e da consciência de classe.

As categorias narrativas do espaço físico e social, bem como as personagens permitem-nos

fundamentar a vertente temática da opressão.

À semelhança do que acontece na restante produção literária de Manuel da Fonseca, o

espaço físico do romance Seara de Vento remete para o espaço alentejano, para uma paisagem

constituída por uma vegetação que contempla as estevas, os plainos, os matos, os cardos, os

sobreirais e os ramos torcidos do montado, a par de um relevo acidentado que contempla os

barrancos, os cerros, os córregos e a vasta planície. Esta paisagem física remete para o campo

semântico da solidão e do isolamento e, quando aliada às condições climatéricas, que no espaço

rural se caracterizam pela sua dureza e agressividade, nomeadamente do vento, permitem a

concretização de um ambiente opressivo que se faz sentir nas atitudes e comportamentos das

personagens. No entanto, é o vento, pela sua componente semântica de agressão, de dor, de

violência e de fatalidade, a par da personificação a que está sujeito, que permite representar de

forma exemplar essa temática da opressão e servir ao mesmo tempo de elemento de interligação

entre os vários espaços narrativos. Alguns dos críticos que se debruçaram sobre a funcionalidade

do vento nesta narrativa são unânimes em considerar o seu papel fundamental para a expressão

temática da opressão. Urbano Tavares Rodrigues denominou-o «coro da tragédia», «signo do

espanto e da violência», dada a conotação de fatalidade que este adquire68. João de Melo, por seu

turno, considera que o vento enquanto alvo de uma personificação e associado a outros

elementos naturais como o luar, adquire o papel de prenúncio de presságios e de voz de

intimidação e de nota desoladora, que simboliza a desgraça que se abate sobre as personagens69.

No início da narrativa, o vento surge com toda a sua violência e invade o casebre dos

Palma, revelando ao leitor o ambiente de opressão que se vive naquela casa: «Rumorosa, às

sacudidelas bruscas, a ventania corre livremente. Em tropel desabalado arremete contra a

empena, trespassa a telha vã. Gemendo, arrasta-se pelo interior escuro do casebre. E demora,

insiste, num ganido assobiado.» (p.25) Como podemos constatar, o vento é alvo de uma

personificação, já que lhe são atribuídas qualificações humanas que, do ponto de vista

semântico, apontam para a tristeza, a dor e o sofrimento, dada a utilização das formas verbais

que indicam movimento, como “arrasta-se” e “corre”, e que lhe dão uma conotação de voz

desoladora, como “gemendo”. As habitantes do casebre, Amanda Carrusca e Júlia, são tolhidas

68 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, «O Vento. Coro da Tragédia. Signo do Espanto e da Violência em Seara de Vento» in Um Novo Olhar sobre o Neo-Realismo, Lisboa, Moraes Editores, 1981, pp. 47-62.

69 Cf. João de Melo, «Contribuição para uma leitura ideológica do romance Seara de Vento», in Toda e Qualquer Escrita., Lisboa, Vega, 1982, pp. 125-143.

39

pelo medo e a única forma de enfrentar o opressor é recorrendo à praga «- Raios partam esse

vento!» (p. 25). No capítulo 5 é o vento com a sua violência que fustiga o casebre quase em

ruínas: «Desde longe, ferida, nos ramos torcidos do montado, nas estevas, nos cardos, a ventania

vem e estrebucha longamente ao rés das paredes escalavradas do casebre.» (p.65)

O espaço interior do casebre revela desde logo a miséria, a fome e as fracas condições

sócio-económicas da família: trata-se de um espaço escuro, sombrio, com chão de terra batida, e

em que entra o frio, como podemos comprovar pelas seguintes expressões: «Gemendo, [a

ventania] arrasta-se pelo interior escuro do casebre.» ( p.25); «Em redor, sombras espessas

diluem as paredes e os recantos numa só mancha circular. Apenas as cantarias da lareira, batidas

pela luz que vem da porta, se salientam aprumadas.» (p.26). Ao percorrer o interior do casebre o

vento, alvo de um processo de animização, para além de registar um ambiente opressivo ainda

adquire uma conotação semântica de desgraça e de presságios: «O choro da nortada trespassa a

solidão da noite. Infiltra-se pelas frinchas das janelas e da porta, pelas telhas, afoga o casebre de

gemidos, queixas, agonias.» (p.201).

A parte exterior do casebre também se encontra degradada, com fendas nas paredes e com o

telhado abatido, fustigada pela agressividade dos elementos naturais: «Está meio em ruínas. O

sol, chuvadas e ventanias haviam comido a cal e aberto fendas nas paredes. O telhado abate-se

numa breve reentrância com as pontas voltadas para o céu. E os buracos das janelas fitam com

espanto a agressiva desolação da planície.» (p.48)

No entanto, a expressividade do vento, enquanto componente semântica da opressão e da

tragicidade, também se torna significativa quando relacionado com as personagens romanescas.

Quanto ao vento, é com Palma que ele estabelece uma relação mais íntima e ao mesmo tempo

mais conotada de tragicidade. O vento acompanha todos os passos do camponês e pela sua

violência e ferocidade prenuncia o destino trágico do protagonista solitário. Note-se, desde logo,

a violência do vento aquando da aparição de Palma no casebre: «Áspera, a ventania desaba sobre

os plainos, agita matos e sobreirais , vem e geme contra as telhas, contra a empena

desmantelada.» (p.28). Também a violência com que o vento fustiga a personagem quando esta

decide ir à venda do Mira à procura de Galrito, para combinar a sua entrada no contrabando: «A

ventania bate-lhe no peito e na cara, dobra-lhe a aba do chapéu. De músculos tensos, pára à beira

da íngreme ravina.» (p. 91), bem como numa das viagens a Espanha: «Fustigado pelas revoadas,

o rosto do Palma encrespa-se, o latejar impetuoso do sangue ressoa-lhe nas fontes. E, ao rés da

terra, a nortada estrebucha, furiosa. Por toda a parte, das moitas, dos cardo e dos pedregulhos,

soltam-se lamentos abafados e terríveis.» (pp. 107-108)

A relação íntima que se estabelece entre Palma e o vento exerce-se ainda no momento em

40

que a personagem, após o suicídio de Júlia, é invadida pelo cansaço, pela angústia e pelo ódio:

«Pela madrugada, a ventania vibra com um fragor subterrâneo de sentimentos à solta. No sono

incerto de Palma o cansaço luta com a memória. Aos seus ouvidos ecoam risos chocalhados,

demências. Vozes de desespero, angústia. O pavor rastejado do medo. Soluços sorvidos. O uivo

longo da ameaça. O grito clamoroso do ódio.» (p.202)

A comprovar a opressão e a miséria em que vive esta família temos ainda o forno, que

outrora servira para cozer o pão e representava o alimento e o orgulho da família. A recordação

dos tempos em que o forno era utilizado causa agora tristeza e desalento. À semelhança do

casebre, também este se encontra degradado, reduzido apenas a um monte de pedras que serve

de refúgio a Bento: «Pouco sugere o sítio. É apenas um monte de pedras encravadas na terra

negra e húmida.» (p.33), «Os cabelos amarelos voam-lhe na ventania. O tronco esquelético vai e

vem, naquele baloiçar de tonto. Sentado sobre as pernas entrecruzadas, nem o frio nem os rogos

da família o fazem sair da cova do forno.» (p.51)

Para além da degradação do espaço em que habitam, as condições que levaram a essa

situação justificam o estado actual dos acontecimentos e o estado opressivo em que vive a

família: Joaquim de Valmurado, pai de Palma, não conseguiu pagar o empréstimo cedido pelo

Elias Sobral há três anos atrás e a courela passa para as mãos do grande latifundiário. Sem forma

de reverter a situação Joaquim de Valmurado suicida-se. Pouco tempo depois, Palma é acusado

do roubo de umas sacas de cevada e é preso injustamente. Embora saia da cadeia algum tempo

depois, não consegue arranjar emprego.

A fome constitui outro sub-tema abordado no romance, e que nos permite não só

representar o tema dominante da opressão, mas permite também estabelecer uma oposição entre

as condições sócio-económicas das duas classes sociais em questão: os camponeses e os

lavradores. A confirmar o estado degradante das condições sócio-económicas da família temos a

sequência narrativa da presença do pão. Antes da visita de João Carrusca, cunhado de Palma, a

família apenas havia bebido café amargo. Recebido de forma intempestiva pela família, João

Carrusca oferece o pão a Bento, que o abocanha, e as duas mulheres necessitam de lutar contra a

força bruta de Bento para agarrarem o pão: «Amanda Carrusca coloca-se entre o neto e a filha.

Toda dobrada, apara as arremetidas do Bento, enquanto Júlia entra no casebre com o pão bem

seguro contra o peito chato.» (p.56).

A presença do pão na mesa constitui um dos poucos momentos de euforia na narrativa,

mas aos olhos do narrador a presença deste alimento em nada contribuiu para ultrapassar a

41

condição dos habitantes da casa, tal como podemos deduzir pela utilização da forma verbal do

verbo parecer: «A presença do pão parece ter modificado tudo. Desenvoltas, as duas mulheres

mexem-se em redor da mesa» (p.57) e desde logo se projecta a feitura de umas sopas d' alho. No

entanto, apesar deste momento eufórico, o barulho do vento logo traz novos presságios: «A

momentânea animação some-se, aos poucos, no ambiente penumbroso, gélido. [...] Uma lufada

mais áspera envolve o casebre num gemido agoniado.» (p.58)

Na sequência deste acontecimento regista-se um diálogo entre Júlia e Amanda Carrusca

que estabelece de forma visível o contraste existente entre as condições sócio-económicas da

classe dominante e a dos camponeses, permitindo assim o tratamento do sub-tema do conflito de

classes. Através da analepse concretizada no discurso directo de Amanda Carrusca, é possível

estabelecer um contraste entre os antigos lavradores, que eram solidários com os camponeses, e

os lavradores do tempo presente que se caracterizam pela avareza:

«- Nunca foi boa a vida, isso não - [...] - Mas vinha o Natal, e os lavradores davam pedaços

de toucinho. No Ano Novo, a gente ia por essas herdades cantar as Janeiras, e vinham chouriços,

paios, bocados de lombo. [...] Agora é tudo comprado... Quem há aí na classe dos lavradores, que

dê sequer dois dedos de toucinho?» (pp. 60-61)

A contrastar com a magra refeição que lhes cabe nesta ocasião, umas meras sopas d'

alho, surgem as recordações de tempos em que se deparavam com a abundância de comida na

casa dos antigos lavradores, em casas onde havia sempre «comida à farta», nomeadamente

«pedaços de lombo frito na banha vermelha», pão com toucinho e carne. Realce-se a fala de

Amanda Carrusca sobre a carne: «Como eu gostava de sentir a gordura a escorrer-me pelo

queixo abaixo!...» (p.62)

Se o espaço físico permite revelar o tema da opressão, o espaço social, associado ao espaço

urbano e ao poder político e social também contribui para justificar esta vertente temática. No

capítulo 13, o narrador transfere o seu foco narrativo do espaço do campo para o espaço da vila.

No espaço do campo permanece a opressão, representada como vimos pela fome, pela miséria,

pelo medo e pelas dificuldades sócio-económicas, onde a vida é sempre igual, nada se modifica:

«É estreita, sempre igual, a vida no campo. Raros são os acontecimentos estranhos, tudo se

repete. Até quando qualquer transformação se verifica e persiste, logo se monotoniza.[...]

Durante alguns dias a nortada aquieta-se. Grandes chuvadas começam a cair cada manhã,

demoram-se tarde adiante, só com a noite se extinguem. Depois, de novo o vento irrompe das

bandas do Norte. O tempo seca, frio e nublado.» (p.135)

42

Por sua vez, no espaço da vila, todo o ambiente parece harmonioso, organizado e

tranquilo, como podemos verificar pela descrição de um belo dia de Inverno, com um sol

luminoso e com o traçado harmonioso das ruas. Recorrendo a um jogo de focalizações, o

narrador apresenta-nos essa aparente harmonia e organização. O sujeito de enunciação recorre

primeiro a uma focalização externa, fornecendo uma visão detalhada do esquematismo das ruas

e das condições atmosféricas: «Jorrando por entre as nuvens, o sol ilumina o casario e os

campos. Para lá do muro que delimita o largo, as ruas alinham-se, encosta abaixo, e os telhados,

limpos das últimas chuvadas, rebrilham vermelhos.» (p.159). No entanto, a qualificação e o

termo de comparação utilizados em relação ao posto da guarda, enquanto «casarão mal

assombrado, com grades nas janelas, como as cadeias» (p.151), remete-se já para a repressão que

se faz sentir no contexto sócio-político. Em segundo lugar, utiliza a focalização interna,

fornecendo ao leitor uma visão desse mesmo espaço através do olhar da personagem doutor

Esquível, que olha para a paisagem com agrado: «Pausado, contempla o verde escuro das searas,

o asseio das casas e das ruas da vila, a grave lentidão do povo que desce do adro. De roda, todos

sentem, com momentânea surpresa, o agrado que a paisagem lhes causa.» (p.159)

Contudo, toda esta ambiência se caracteriza pela falsidade e hipocrisia. Podemos

comprovar este facto pela forma como o narrador aborda o espaço da vila e os hábitos e

costumes dos seus habitantes, nomeadamente pela caracterização das seguintes personagens:

doutor Esquível, presidente da Câmara, o sargento Gil, representante da autoridade policial, o

grande latifundiário Elias Sobral, o padre Macário, representante da religião e da igreja e a

personagem Asdrúbal Camacho. Ao caracterizar este conjunto de personagens, que se reune à

porta da igreja, o narrador recorre à ironia: «Luzidio grupo reune-se no adro.» (p. 158). Neste

contexto, realce-se a caracterização física e psicológica que é feita de cada uma das personagens:

o narrador oferece ao leitor um quadro de costumes que se caracterizam pela hipocrisia, pela

ostentação e pela arbitrariedade do poder. Veja-se, por exemplo, a família burguesa, os Sobrais,

que se regem pelos valores materiais, pela concentração de riquezas e de poder e pelas tradições:

«Família com tradições, a dos Sobrais, quer por heranças, quer por casamentos de conveniência,

reúne agora boa parte das grandes herdades do concelho. Homem activo, Elias Sobral dirige

sozinho o trabalho nos campos.» (p.137). Contudo, a descrição de Elias Sobral fornece-nos a

visão de um homem mesquinho, falso e interesseiro, representando esta personagem, pela sua

disformidade física e por meio da elaboração de um retrato quase caricatural, a ridicularidade do

grande latifundiário: «É de mediana estatura, seco. O pescoço comprido sustém-lhe, com

aprumo, a cabeça pequena, de nariz recurvo, ossudo. O chapéu enterra-se-lhe até às

sobrancelhas, como que para esconder os olhos escuros, indagadores.» (p.139).

43

Asdrúbal Camacho é também visto mais como uma figura ridícula: velho, baixo e gordo,

de sobretudo pelos ombros, óculos pendurados na ponta do nariz. A personagem doutor

Esquível, o presidente da Câmara, é caracterizado pela sua capacidade de se vangloriar pelos

seus feitos em prol da vila, não tendo em conta as necessidades dos camponeses:

«Conquanto se expresse cautelosamente, nem por um instante se detém, e passa com imprevista

facilidade de assunto para assunto. Sublinha pormenores do arranjo das ruas principais, indica os

objectivos da aquisição de imóveis, encarece o embelezamento da entrada e da saída da vila, alinha

verbas gastas com esgotos, as águas.

- Enfim, num concelho pobre como o nosso...» (p.158).

O presidente da câmara não deixa também de afirmar que a ordem social estabelecida e o

processo de opressão e de repressão instalado na vila se afigura como a melhor forma de manter

os camponeses aprisionados nas suas dificuldades e misérias: «- Sabem? Isto apenas: olhem para

o estrangeiro. Que triste quadro!... Por toda a parte desassossego, greves, revoltas, e tudo num

alevante que nem sei no que vai dar. Pois, senhores, no meio de tanta anarquia, nós temos paz,

organização, bem-estar!» (pp.159-160). Aliás esta opinião é partilhada pelo grupo reunido no

adro da igreja: «Todas as cabeças se movem de alto a baixo, concordes, graves. E padre

Macário, num gesto que tudo explica e tudo agradece, soergue as mãos e olha para o céu.»

(p.160).

Ao apresentar o ponto de vista da classe dominante, o narrador exemplifica o tratamento

do tema da opressão, apresentando uma atitude crítica em relação ao poder político e ao

antagonismo das relações sociais, valendo-se de um jogo de focalizações e de registos do

discurso que permitem reduzir as personagens do espaço urbano como caricaturas, e como tal,

como veículos para a ilustração da organização do poder própria do regime totalitário que vigora

em Portugal.

Contudo, a caracterização de Diogo, um dos filhos de Elias Sobral, coloca um problema

em relação à classe burguesa. Ao contrário do pai e de outros representantes da classe

dominante, para quem a miséria dos camponeses nada importa e para quem projectam ainda

mais repressão, em Diogo revelam-se sinais que remetem para uma culpabilidade, dado ser ele o

reponsável pelo roubo das sacas de cevadas que levaram Palma a ser preso. O seu

arrependimento é visível quando, durante a missa, roga a Deus para o camponês não ser preso

novamente e mostra-se comprometido sempre que se cruza com este. A nosso ver, com esta

personagem o narrador procura demonstrar alguma alteração de comportamento no seio da

44

classe dominante, pois de entre todas as personagens inseridas no contexto urbano, e apontadas

como pertencentes à classe burguesa, esta é a única da qual parece emergir alguma consciência

da incoerência e injustiça das suas acções.

Como nos foi possível comprovar, o espaço físico e social constitui um elemento

fundamental para comprovar o tema da opressão no romance fonsequiano. No entanto, no

contexto desta narrativa, as personagens permitem-nos comprovar igualmente o tratamento dos

sub-temas da alienação, da violência, do conflito de classes e até mesmo a consciência de classe,

aliás, componentes temáticas bastante caras aos escritores neo-realistas.

Os sub-temas da violência, da alienação e do conflito social surgem evidenciados nas

atitudes e comportamentos de Palma, que se contrapõe, em termos ideológicos, à personagem

Elias Sobral. Fisicamente, Palma destaca-se pela sua estatura alta, pelo seu aspecto alienado e

pelo seu ar enigmático. Desde o início da narrativa que nos é possível comprovar o estatuto de

camponês oprimido: Palma foi vítima de injustiça social, ao ser acusado injustamento do roubo

de algumas sacas de cevada, e por essa razão foi preso, e não mais conseguiu emprego. Movido

pelo ódio a Elias Sobral, a personagem Palma assume-se como um homem solitário que deseja

fazer justiça pelas próprias mãos, contribuindo deste modo para o desencadear de

acontecimentos que culminam na sua morte. A sua fisionomia e atitude revelam desde logo um

homem que vive alheado do mundo e dos outros:

«Desde o degrau, uma sombra alastra, difusa. Atrás, lentamente, António de Vamurado, o

Palma, sobe a gasta meio mó que faz de soleira. Taciturno, dá uns passos vagorosos pelo chão de

terra batida, vira-se. Alheio a tudo quanto o cerca, torna ao limiar, e a sua figura alta, andrajosa,

fica enquadrada entre os umbrais da porta. Aí se demora, ensimesmado, a olhar para longe.»

(pp. 27-28)

O ódio de Palma pelo latifundiário Elias Sobral introduz o sub-tema do conflito de classes,

dado que entre estas personagens se estabelece uma relação de antagonismo:

«Mal sai da cadeia, o Palma profere ameaças que, modificadas ao sabor das simpatias, breve

chegam aos ouvidos de Elias Sobral. O ódio nascido entre os dois homens ganha cada dia novos

motivos. Por fim, parecem apostados em aguardar o momento oportuno para o ajuste de

contas.» (p.52)

Desde logo, a personagem entra em conflito com os representantes da classe dominante e

revela-se consciente do seu estatuto de oprimido e da arbitrariedade do poder. No entanto, Palma

45

não dispõe de consciência de classe, considerando a sua situação como o resultado da opressão

exercida sobre ele: «- Tenho que querer. Esse Elias Sobral... ele e os outros reduziram-me a

isto... Não há que fugir. Eles têm tudo, a fortuna e o mando, eles é que põem e dispõem da vida

de um homem.» (p.95)

Tomemos como exemplo Galrito, que aconselha Palma a acalmar os ânimos, relativamente

ao desejo de se vingar de Elias Sobral, e a manter uma postura discreta: «- Escuta. Tu barafustas

muito, ameaças muito. Ora, quanto a mim, só tens uma coisa a fazer: disfarçar, de modo a que te

suponham cordato e submisso. Eles gostam de gente assim, acredita.» (pp.95-96), mas Palma

assume a sua rebeldia:

«- Mas eu não sou dessa raça. Ofenderam-me, e falo, hei-de falar sempre. Prefiro morrer de

repente a acabar aos poucos, como um mendigo.» (pp. 96)

«- Quer queiram ou não! [...] - Que julgam?! Prenderam-me por gatuno, tiraram-me o pão,

levaram a Júlia a matar-se, e ainda queriam que eu ficasse mudo e quedo?» (p.230)

A personagem Palma, movido pelos desejos de vingança e pela vontade de fazer justiça

pelas próprias mãos, opta por lutar sozinho, apesar dos conselhos proferidos por aqueles que lhe

estão mais próximos, principalmente de Mariana que, por várias vezes tenta convencer o pai a

juntar-se a ela e aos outros camponeses. No entanto, Palma recusa-se a aceitar e a compreender

os ideais de Mariana, tal como podemos comprovar pelas palavras do narrador, que recorrendo à

focalização interna e ao discurso indirecto livre, denuncia o estado de inconsciência da

personagem, utilizando um discurso interrogativo: «De que estará ela a falar? Da ida dos

camponeses à vila, de dificuldades, denúncias? Apenas lhe chegam palavras soltas, sem nexo.

Por instantes, varre-se-lhe da memória o motivo por que se encontra ali. Sobressalta-se. De olhar

afundado no horizonte, vinca as sobrancelhas.» (p.210)

No desenlace da narrativa, o narrador, mais uma vez desvendando o interior da personagem

por meio da focalização interna, anuncia o seu destino final, a sua morte violenta, como se este

homem fosse um animal cercado: «Venham por onde vierem, que tem isso? Sabe o fim. Sabe-o

de certeza absoluta. Um bicho no fojo. Um bicho que acabará por ser caçado

implacavelmente.» (p.243)

A personagem Júlia, a esposa de Palma, pelas suas qualidades físicas e psicológicas,

apresenta-se como um recurso fundamental para a representação do tema da opressão e do sub-

tema da alienação. Júlia é uma mulher que sofre devido ao triste destino dos seus filhos: dois

deles abandonaram o lar; Custódia tornou-se prostituta e Luís saíu de casa para trabalhar nas

46

minas; Bento, o único filho que permanece na casa da família é um deficiente mental que passa

os dias acocorado no que resta do forno da família. Fisicamente Júlia é descrita como uma

mulher magra, de costas curvadas, de «rosto macilento» e de «olhar vago e sem esperança» e

sumida no vestido preto (pp.26-27). As suas atitudes e comportamentos denunciam uma mulher

triste, passiva, frágil, crente no destino, regida pela obediência ao marido e dominada pelo medo.

Regista-se deste modo uma correspondência entre o seu perfil físico e psicológico, tal como o

próprio narrador evidencia no seguinte trecho, ao inserir a personagem num ambiente sombrio:

«Contra a parede negra da lareira, a meio da frouxa claridade, a curva das costas de Júlia, muito

magras, aumenta mais o seu ar de desalento. Triste e fraca, parece vergada ao peso de uma culpa

ou de um remorso./ Tão lamentosa passividade torna maior a ira de Amanda Carrusca.» (p.26).

De realçar o efeito que a violência do vento provoca em Júlia, incute-lhe o medo e fá-la

pressentir desgraças, confirmando-se desde logo a sua posição de mulher oprimida:

«- Que sítios...- murmura ela, numa lentidão de presságio.- Até dá quebranto. Nem eu sei...

nestes dias, sinto-me aparvalhada, como se de repente fosse acontecer uma desgraça.» (pp.58-59)

«A noite cresce negra, lenta. O obsidiante gemido do vento persiste, ora longe, ora perto,

num choro aflitivo. O medo começa a apossar-se de Júlia. Espreita de soslaio o rosto petrificado da

velha, e de novo lhe ocorrem vagos, indefinidos presságios.» (p.81)

Amanda Carrusca, mãe de Júlia e sogra de Palma, apresenta-se como uma personagem

modelada porque, ao longo da narrativa, sofre transformações no seu carácter e na sua posição

face aos problemas que assolam os camponeses. Podemos até mesmo afirmar que Amanda

Carrusca representa o processo de transformação das mentalidades, isto é, o processo de

consciencialização de classe, dado que ultrapassa o seu estado de alienação ao aceitar e

compreender os ideais defendidos por Mariana. Desde o início da narrativa que Amanda

Carrusca revela a sua faceta contestatária, criticando Júlia pela sua passividade e pela sua

obediência ao marido. É a velha que desafia Palma e vai pedir esmola para fazer uma mezinha70

para o neto. No entanto, a personagem também não esconde a sua raiva e o seu lado violento, é

ela que à socapa aplica uns pontapés em Bento. De realçar ainda o facto de ela ser capaz de

combater lado a lado com Palma no ataque à GNR, quando esta cerca o casebre.

Amanda Carrusca representa uma voz crítica em relação à ordem social vigente, tendo

a clara consciência da opressão a que o povo alentejano está sujeito. No trecho transcrito

podemos comprovar a atitude crítica da velha em relação à exploração dos camponeses, à

arbitrariedade do poder e à ostentação dos membros da classe burgesa:70 Termo de origem popular que designa remédio caseiro.

47

«- Pois é verdade... Isto deu uma grande volta... Aquela raça dos lavradores antigos

acabou-se. Os de hoje, se muito têm, mais desejam. Moram nas vilas, põem casas às amantes na

cidade, não dão um passo sem ser de automóvel, inventam festas, não há cinemas nem teatros a

que faltem. E para um estadão destes é preciso dinheiro e mais dinheiro. Nunca se fartam. Por isso

é que eles açulam os feitores às canelas do pessoal, que nem os deixam respirar. Agora é tudo à má

cara e de relógio na mão. [...]

- Uns tão ricos e outros sem nada... Até devia haver uma lei contra isto. [diz Júlia]

- Haver o quê?!... Estás parva. Pois se os ricos é que fazem as leis!» (pp. 63-64)

Para além disso, no discurso de Amanda Carrusca transparece uma atitude de

distanciamento em relação ao conceito de destino quando denuncia a atitude passiva daqueles

que, como Júlia, se deixam dominar pelo medo:

«- Bondade, religião... Era bom. Era muito bom que aqueles que falam dessas coisas as

praticassem. Mas, olha... Não, tu não podes entender-me. Magicas muito, e não vês nada. Julgas

que tudo acontece sem ninguém ter culpa, supões que é o destino... É isso. Supões que é o destino

que levou os teus filhos a fugirem de casa, que é o destino que obrigou o teu sogro a matar-se, o

teu marido a ir para a cadeia. Pensas assim... e há muita gente da tua marca. Medrosos!...» (p.85)

No entanto, o processo de consciencialização da velha opera-se em dois momentos-

chave: num primeiro, em que a personagem se revela indignada e crítica em relação aos ideais

defendidos pela neta, e no desfecho do romance, em que a personagem, mesmo colocando-se ao

lado de Palma no seu confronto com a guarda, revela ao genro as suas crenças numa

solidariedade entre os camponeses.

A indignação e a visão crítica de Amanda Carrusca torna-se visível no diálogo que

envolve as três mulheres (cf. pp. 118-120). Amanda Carrusca começa por não aceitar as posições

da neta:

«- Para que lhe perguntas? - exclama Amanda Carrusca. - Pois hoje não é domingo? Vai

ter com as outras ... e os outros! Vão combinar a tal ida à vila, a pedirem trabalho. Isto, agora,

é assim: junta-se um bando, entra na vila e, pronto, é tudo deles![...]

- Juntem-se todos, juntem-se, e vão-se meter na cova do lobo! - agoira Amanda Carrusca,

levantando os braços, com um sorriso azedo. - Depois, se lhes acontecer alguma, não se

queixem!» (p.118)

48

No entanto, a justificação da neta leva-a a reflectir sobre o assunto:

«- Eles ensinaram-me, avó. Sei agora o que dantes não sabia, e pus-me logo a seu lado. Eles

ensinaram-me que esta vida que levamos é um crime.

- Olha a grande novidade!... - No rosto da velha paira um ar de sincera decepção. - Que é um crime

sei eu!

- E que é que já fez em toda a sua vida para acabar com ele?

A inesperada pergunta causa profundo espanto em Amanda Carrusca. [...]

- Que dirão eles uns aos outros lá nas reuniões? Que é que eles sabem de novo?[...]

- Reuniões, idas à vila... - cicia Amanda Carrusca. - Ná!... Não entendo esta gente de agora...»

(pp. 119-120)

No capítulo final, o vento até parece assumir uma função de adjuvante ao permitir que

o corpo seco e chato da velha se mantenha de pé e lhe permita proferir o grito que denuncia a sua

posição ideológica e a sua consciência de classe: «- Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem

razão! Um homem só não vale nada! [...] A velha volta-se, cresece, firme sobre as pernas

entesadas, e os andrajos negros, batidos pelo vento, modelam-lhe o corpo seco e chato, só

ossos.» (pp. 251-252). Assim, ao contrário do que acontece com Júlia, para Amanda Carrusca o

vento não constitui um elemento opressor, já que este, ao longo da narrativa parece contribuir

para vincar a sua posição. Repare-se, por exemplo, no contraste entre as duas personagens: uma

intervém, combate o vento com uma praga, enquanto Júlia revela-se medrosa e angustiada:

«Seca e breve, como uma chicotada, a praga rompe dos lábios azedos da velha:

- Raios partam esse vento!

Por instantes, as duas mulheres entreolham-se. A velha de punho ao ar, a boca ainda aberta pelo

grito. Júlia encolhida e receosa, como se acabasse de ouvir uma blasfémia.» (p.25)

Por seu turno, intimamente relacionada com Júlia, Amanda Carrusca e Palma surge a

personagem Mariana. Fisicamente Mariana distingue-se pela sua aparência serena, tal como o

próprio narrador nos transmite: «[o rosto] É magro, esguio, como o de Júlia. Mas os olhos

rasgados, a boca saliente e muito desenhada vincam-lhe na expressão um ar de resoluta

serenidade.» (pp. 86-87). Por outro lado, a descrição psicológica da personagem, feita pelo

narrador, aponta para uma transformação no seu carácter e para uma tomada de posição

ideológica, transformando-se na personagem que melhor ilustra o sub-tema da

consciencialização de classe:

49

«Bondosa, tal como a mãe, ultimamente grande transformação se verificou no carácter de

Mariana. Até há pouco tão calada e arredia, mal se dando conta da sua existência no casebre,

discute agora com o pai e contraria-o, cheia de argumentos inesperados. Apenas a absorve um

único assunto: a miséria dos camponeses. [...] Mariana convive de perto com uns tantos

camponeses que se reúnem, amiúde, para lerem e comentarem certos papéis chegados até eles

ninguém sabe como.» (pp. 44-45)

Como nos é possível comprovar pelos excertos apresentados, Mariana revela-se consciente

da situação de opressão a que estão sujeitos os camponeses, e por essa razão, mantém uma

atitude activa na defesa desses interesses. Enquanto personagem que defende uma iniciativa

comunitária, a filha de Palma não deixa de se revelar contra as atitudes imaturas e irresponsáveis

do pai, nomeadamente quando este resolve praticar o contrabando:

«- Não podemos, não. Mas o pai fez mal. Houvesse o que houvesse, ele nunca se devia ter

metido com esses tipos. Demais, eu já lhe tinha dito que os homens andam a combinar uma ida à

vila para pedirem trabalho. [...]

- A gente tem visto, avó [...] Temos visto o que eles conseguem, o pai e os outros, cada um para

seu lado. Convença-se de uma vez para sempre que só todos juntos hão-de alcançar alguma coisa.

Um homem sozinho não vale nada.» (pp. 87-88)

1.2. À semelhança do que acontece em Seara de Vento, também no romance brasileiro

Vidas Secas (1938) a opressão se configura como o tema central da narrativa. Neste caso temos

também uma família proveniente de uma classe social desfavorecida, que sofre devido à

precaridade das suas condições económicas, sociais, físicas e até intelectuais. As personagens

são sujeitas à agressividade de dois elementos: por um lado da Natureza, representada pela seca;

e, por outro lado, da injustiça social e da exploração do homem pelo homem. Estritamente ligado

ao tema da opressão surge o sub-tema da alienação: as personagens, devido à precaridade dos

seus meios de defesa e de comunicação assumem a condição de animais e, consequentemente,

vêem reduzidas as hipóteses de se consciencializarem e de procederem à sua desalienação. Estas

linhas temáticas surgem documentadas na representação dos vários espaços: no espaço físico

natural, neste caso o Nordeste brasileiro; no espaço social da cidade e em todos os representantes

do poder da classe dominante, como o soldado amarelo, o prefeito e o patrão; no espaço do

interior da degradada casa da fazenda onde habitam; e ainda na forma como as personagens se

relacionam entre si.

50

O romance de Graciliano Ramos retrata a dura caminhada de uma família de retirantes,

que enfrenta a hostilidade da natureza agreste do Nordeste brasileiro, no período da seca

extrema. Movida pelo desejo de sobreviver, esta família constituída por Fabiano, por Sinhá

Vitória, pelos dois meninos, designados apenas por menino mais novo e menino mais velho, e

pela cachorra Baleia, procura um novo espaço, onde existam as condições mínimas para viver, e

onde Fabiano possa praticar o seu ofício de vaqueiro. Após uma longa caminhada, a família

chega a uma fazenda abandonada e aí se instala. Com o aparecimento do dono da fazenda, é

estabelecido um acordo entre Fabiano e o patrão, e assim o vaqueiro consegue o seu emprego

temporário. No entanto, com o anúncio da seca, as personagens não têm outra alternativa senão

retomar a sua peregrinação, mas desta vez rumo ao sul.

No plano diegético, o espaço assume-se como uma categoria fundamental para comprovar

a temática da opressão neste romance. Para tal, teremos em conta o espaço físico e social.

O espaço físico de Vidas Secas corresponde ao espaço rural do Nordeste brasileiro, espaço

natural alvo de uma seca extrema que, do ponto de vista sociológico, coloca problemas de ordem

humana e social, sujeitando os seus habitantes a uma vida de nomadismo e de precárias

condições de vida. O narrador recria a agressividade, a hostilidade e a secura deste espaço

natural, construindo um cenário que serve de veículo para a ilustração dos temas da opressão e

da violência, evidenciando desde logo a luta permanente que se estabelece entre o homem e a

natureza. Enquadrados neste espaço surgem Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o

menino mais novo e a cachorra Baleia. Os elementos da família não se conseguem adaptar ao

mundo social, dado o isolamento a que estão sujeitos. Assim, caracterizam-se pela rudicidade

dos seus comportamentos e pelas suas fracas capacidades intelectuais, restringindo as suas

ambições ao sentido mais básico da existência humana: a sobrevivência. Todos estes factores

levam as personagens a serem alvo de um processo de animalização.

Deste modo, os temas da opressão surgem veiculados através da descrição de um espaço

físico que sugere a destruição e a morte, com a presença de animais mortos e dos urubus: «A

catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O

voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.» (p.9)

Os caminhos por onde circulam denunciam a seca: os rios secos, as rachaduras na terra, os

tons avermelhados da catinga denunciam um terreno árido, como podemos comprovar pelas

seguintes expressões:

«Na planície avermelhada os juazeiros alargava duas manchas verdes. [...] A folhagem dos

juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. [...] Tinham deixado os

51

caminhos, cheios de espinhos e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e

rachada que escaldava os pés.» (p.9) ;

«A aragem morna acudia os xiquexiques e os mandacarus.» (p.14)

A intensificar o sofrimento das personagens temos ainda uma passagem que nos demonstra

a dimensão do terror gerado pela seca, quando Fabiano e sinha Vitória avistam uma nuvem no

céu e temem que esta se dissipe, prolongando ainda mais a seca e pondo ainda mais em causa a

sobrevivência da família. Note-se a conotação negativa que se atribui ao azul do céu:

«Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se: uma sombra passava por cima do monte.

Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo aguentando a claridade do

sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se

encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que

deslumbrava e entristecia a gente.» (p.12)

Nesta paisagem desoladora, em termos cromáticos, distinguem-se os tons avermelhados da

planície, as manchas esverdeadas das plantas que resistem à aridez do solo, como os juazeiros e

outras plantas mais resistentes como os as catingueiras, os xiquexiques e os mandacarus, o azul

intenso de um céu límpido, o branco das ossadas dos cadáveres e as manchas negras das asas das

aves necrófilas. Trata-se assim de um espaço natural hostil e portanto representativo do tema da

opressão.

Os efeitos que o espaço físico produz nas personagens remetem-nos para os temas da

opressão e da violência. No início do capítulo «Mudança», o leitor é confrontado com um grupo

de personagens que se encontra debilitado física e psicologicamente, tal é a violência do espaço

natural em que estão integrados. A debilidade física e mental das personagens surge representada

com os adjectivos qualificativos «infelizes», «cansados e famintos», pela forma do pretérito

perfeito do indicativo do verbo «arrastar»:

«Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes

tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco,

mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas.

Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos

galhos pelados da catinga rala.

Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no

quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada

52

numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a

cachorra Baleia iam atrás.» (p.9, sublinhados nossos)

O espaço físico natural é descrito ainda nos últimos capítulos do romance «O mundo

coberto de penas» e «Fuga» quando, com a chegada das arribações e o prenúncio de uma nova

seca, Fabiano e a sua família são obrigados a partir, pois a fuga constitui a única forma de a

enfrentar:

«O mulumgu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia

pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam

e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal agoniado sonhava

desgraças. O sol chupava os poços, e aqueles excomungados levavam o resto da água, queriam

matar o gado.» (p.93)

A viagem tem início de madrugada:

«Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul. Com a fresca da

madrugada, andaram bastante, em silêncio [...] Encolhido no banco de copiar, Fabiano espiava a

catinga amarela, onde as folhas secas de pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os

garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido.

Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. [...] Antes de olhar o céu já sabia

que ele estava negro dum lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul.

Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim.[...] A manhã, sem pássaros, sem folhas e

sem vento, progredia num silêncio de morte. A faixa vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que

enchia o céu.» (pp.101-102)

Nestes excertos, à semelhança do que acontece em «Mudança», trata-se de um ambiente

hostil, um retrato da seca, com a referência aos elementos naturais que a provocam: a presença

das arribações, a falta de água, os ventos agrestes, a morte dos animais e as cores do céu, o azul e

os tons rosados.

Como tivemos oportunidade de verificar, no romance a paisagem só surge retratada de

uma forma predominante nos capítulos «Mudança», que corresponde à apresentação das

personagens e à sua chegada à casa da fazenda, e em «O mundo coberto de penas» e «Fuga»,

capítulos correspondentes ao momento em que a família de retirantes têm de a abandonar, dada a

necessidade de prosseguir viagem em busca de um terreno menos hostil. Deste modo, o

53

tratamento do espaço físico natural não se torna predominante, tal como poderíamos esperar num

romance onde um dos temas fundamentais é a seca. De facto, o que se torna predominante neste

romance é a caracterização psicológica das personagens, como refere Wilson Martins: Graciliano

Ramos adoptou em Vidas Secas uma «composição em quadros, e cada um desses quadros é um

estudo psicológico»71, correspondendo cada um desses quadros ao estado psicológico de

Fabiano, de Sinhá Vitória, dos dois meninos, de Baleia e do soldado amarelo.

Relativamente a Fabiano, este é caracterizado como um homem rude, grosseiro,

desajeitado, forte e solitário. Trata-se de uma personagem que revela inadaptabilidade ao mundo

social e incapacidade de comunicar, factores esse que nos permitem considerá-lo um ser

humano alienado, sem consciência da sua identidade, apenas impelido pelo instinto básico da

sobrevivência num mundo natural hostil e agressivo, que o obriga a comportar-se como um

animal. Desde logo, ao descrever fisicamente a personagem, o narrador apresenta-nos um

vaqueiro transportando os objectos típicos da sua profissão, o aió, a cuia presa ao cinturão e a

espingarda de pederneira, com uma postura disforme, efectuando movimentos que o associam a

um macaco. Neste contexto, a personagem é sujeita a um processo de animalização. Fisicamente,

Fabiano tinha a face queimada do sol, era «vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e

o cabelos ruivos» e tal como referimos os seus movimentos surgem descoordenados: «O corpo

do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados.

Parecia um macaco.» e «A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e

para a esquerda.» (pp. 17 e 19)

Assim, o narrador apresenta-nos o vaqueiro Fabiano como um ser alienado e segregado,

quando ao indicar a sua profissão, o coloca como pertencente a uma geração secular de

oprimidos: «Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros

antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as

mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.» (p.17)

No entanto, são as próprias imposições do meio natural em que se surge enquadrado que

viabilizam o seu aspecto e o seu comportamento bruto, dado que tem necessidade de lutar pela

sua sobrevivência. E para ele, a luta faz dele um homem, como o próprio personagem confirma,

«- Fabiano, você é um homem – exclamou em voz alta.», mas faz dele também um «bicho»:

«- Você é um bicho, Fabiano. / Isto para ele era um motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho,

capaz de vencer dificuldades.» (p.18)

No capítulo «Mudança», quando Fabiano e a sua família percorrem o deserto nordestino, o

narrador não deixa de nos revelar o seu estado físico e psicológico, descrevendo os ferimentos de 71 Wilson Martins, «Graciliano Ramos, o Cristo e o Grande Inquisidor» in Sônia Brayner (org.) , Graciliano

Ramos. Fortuna Crítica, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p.41.

54

que padece, como podemos comprovar pelo seguinte excerto: «As alpercatas dele estavam gastas

nos saltos, e a embira tinha-lhes aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os

calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.» (p.11)

A dimensão do sofrimento causado pela caminhada surge representada na atitude

desesperada de Fabiano, que com o «coração grosso», pensa em abandonar o filho mais velho

naquele ambiente inóspito:

«Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele

descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os

arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direcção e afirmou com alguns

sons guturais que estavam perto. [...] Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível

abandonar o anjinho aos bichos do mato.» (p.19)

Com a intromissão do som gutural de Sinhá Vitória, Fabiano acalma a sua ira e coloca o

filho no cangote. No entanto, este acontecimento perturbador torna a viagem ainda mais penosa,

denunciando um efeito gradativo no sofrimento das personagens: «E a viagem prosseguiu, mais

lenta, mais arrastada, num silêncio grande.» (p.10)

As restantes personagens também se encontram debilitadas: Sinhá Vitória magra, exibe

uns «joelhos ossudos» (p.11), «uma cara murcha» (p.15), umas «nádegas bambas» (p.15); o

menino mais velho tem os braços magros «moles e finos com cambitos» (p.10), Baleia encontra-

se esquelética e exibe-se arqueada e de costelas à mostra.

Com a chegada a uma fazenda abandonada as esperanças de sobrevivência da família

aumentam, no entanto, o espaço da fazenda denuncia abandono, destruição e morte. As cercas

estão destruídas, a casa do vaqueiro está fechada, os currais e os chiqueiros estão vazios e

abandonados, regista-se a presença de ossadas de animais e os urubus rondam. Naquele ambiente

apenas sobrevive uma vegetação de catingueiras murchas:

«Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras

arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o

gado se finara e os moradores tinham fugido. [...] Encontrando resistência, penetrou num

cercadinho cheio de plantas mortas, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas,

um pé de turco e o prolongamento da cerca do curral.Trepou-se no mourão do canto, examinou a

catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus.» (p.12)

A agressividade do meio envolvente e as forças que têm de dispor para poder sobreviver

55

fazem com que as personagens se tornem duras e receosas de expressar os seus afectos, tal como

podemos verificar no capítulo «Mudança», em que Fabiano e Sinhá Vitória se manifestam

envergonhados após se terem rendido a um abraço:

«Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas

desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinha Vitória, um

abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se

envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os

alentava.» (p.13)

No entanto, é a resistência física e o seu estado animalesco desta família que lhe permitem

sobreviver, naquele ambiente inóspito, à semelhança do que acontece com a vegetação que

sobrevive:

«Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho,

entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou os quipás, os mandacarus e

os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, sinha

Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra. » (pp.18-19)

Se o espaço físico se revela opressivo para as personagens e lhes provoca sofrimento e os

força a viver uma vida de errantes e os torna duros e receosos de expressar os seus afectos, o

espaço interior da casa da fazenda contribui de igual forma para intensificar a dimensão

opressiva das suas vivências. A casa é velha, frágil, está degradada e é sombria, existe apenas

uma janela e pelas rachaduras das paredes entra o frio. No capítulo «Mudança», por exemplo, o

narrador compara os habitantes da casa a ratos, tais são as condições sub-humanas em que

sobrevivem: «Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos –

e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.» (pp.17-18)

No capítulo «Inverno», a descrição da casa da fazenda é retomada, num momento em que a

casa está ameaçada pelas cheias e o frio do inverno obriga as personagens a permancerem junto à

lareira: «Outros pedaços [dos corpos da família de Fabiano] esfriavam recebendo o ar que

entrava pelas rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso não podiam dormir.» (p.

55). Assim, a opressão e a violência surgem como os temas fundamentais de Vidas Secas, dado o

efeito que o espaço físico produz nas atitudes e comportamentos das personagens. No entanto, o

estado isolado em que sobrevivem e o facto de viverem apartados da própria sociedade levam-

56

nos a considerar a existência de uma outra veia temática: a solidão.

Para Nelly Novaes Coelho, a temática fundamental de Vidas Secas é a solidão, «a imagem

da solidão como contingência fatal da condição humana»72, dado que no romance o homem,

neste caso o caboclo nordestino, surge isolado da sociedade e confronta-se numa luta desigual

com a Natureza. No entanto, a dimensão da luta que o homem trava com o meio físico permite-

lhe resistir, apesar das contingências, de modo passivo e leva-o a unir-se ao Outro, mas apenas

por necessidade:

«Apesar de unidos, persiste em cada um o isolamento íntimo que os separa. São primitivas

e puras as intenções que os movem. [...] Porém o que temos em Fabiano e em sua família é o

homem bruto, apartado da sociedade, unido ao Outro apenas pela implacável contingência de

enfrentar o meio natural hostil.»73

No entanto, o narrador não deixa de intensificar a opressão a que a personagem está

sujeita, denunciando as suas precárias condições sócio-económicas, revelando Fabiano como um

cabra, um ser alienado, que não tem em seu poder sequer um palmo de terra para a sua

sobrevivência, e que por isso mesmo, só pode ser considerado um desgraçado, condenado a

correr o mundo, em busca de um espaço fértil, que lhe permitisse sobreviver e vencer a seca:

«A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante.

Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor,

hóspede que se demorava de mais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao

juazeiro que os tinha abrigado uma noite.» (p.19)

O estatuto alienado e a componente animalesca da personagem confirma-se com a sua falta

de integração social e a sua impossibilidade de dominar a linguagem e de poder comunicar.

Afinal Fabiano só consegue comunicar com os animais, e entre ele e eles se estabelece uma

espécie de simbiose, a permitir um mútuo entendimento:

«Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais.Os seus pés duros quebravam

espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.

E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não

se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava 72 Nelly Novaes Coelho, «Solidão e Luta em Graciliano», in Sônia Brayner (org.), Graciliano Ramos. Fortuna

Crítica, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p.66.73 Idem, Ibidem, p.68.

57

nas relações com as pessoas a mesma língua com que se irigia aos brutos – exclamações,

onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da

cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez

perigosas.» (p.19)

E os seus horizontes limitados levam-no a pensar que o destino dos seus filhos seria

idêntico ao seu, daí ser necessário ensiná-los a serem resistentes como bichos: «Indispensável os

meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas,

amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus.» (p.23)

De um modo geral, a partir da caracterização das várias personagens podemos constatar

que se trata de indivíduos alienados que não possuem os instrumentos necessários para superar a

sua condição. No entanto, a injustiça social e o domínio da classe opressora assumem-se também

como componentes subtemáticas, que permitem evidenciar a opressão a que as personagens

estão sujeitas. A exemplificação deste tema surge de forma significativa nas peripécias

protagonizadas por Fabiano e está bem patente em capítulos como «Cadeia» e «Contas».

Assim, no capítulo «Cadeia», Fabiano manifesta uma atitude resignada e mostra-se

subserviente à arbitrariedade do poder da autoridade policial, poder que é representado pelo

soldado amarelo. Quando é abordado na rua pelo soldado amarelo e desafiado para um jogo

Fabiano manifesta a sua subserviência: «Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era

autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava

pouco, desejava pouco e obedecia.» (p.26)

Já na prisão, Fabiano, bêbedo, revela a sua indignação perante o poder instituído, mas não

deixa de aceitar a situação tal como ela é: «Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia,

bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-

se a todas as violências, a todas as injustiças.» (pp.29-30)

A atitude de resignação de Fabiano perante a arbitrariedade do poder instituído confirma-se

no capitulo «Soldado amarelo», em que o protagonista, ao se cruzar com a entidade policial e

com a oportunidade de se vingar, antes prefere guardar as suas forças para continuar a resistir às

adversidades da natureza e ensina o caminho ao soldado amarelo, alegando que «- Governo é

governo.» (p.93)

A sua atitude de resignação e de subserviência também se manifesta no momento em que é

enganado pelo patrão no pagamento do seu trabalho, no capítulo «Contas». Embora explorado,

Fabiano assume o seu papel de subjugado ao poder instituído, oprimido e explorado:

58

«Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente conhecia o seu lugar. Bem.

Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que

fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia.

[...] Conformava-se, não pretendia mais nada. Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não

davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que seria que os homens

ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem

com semellhantes porcarias.» (p.84)

Para além destas manifestas atitudes de resignação e de subserviência perante o poder,

Fabiano e a família não se conseguem adaptar ao mundo social. No espaço citadino, o

protagonista sente-se deslocado, confuso, desconfiado, sem quaisquer ambições de integração e

de interacção social e atitudes que remetam para a superação da sua condição de alienado. Tal

como refere Nelly Novaes Coelho, o isolamento de Fabiano resulta de uma impossibilidade de

compreender o Outro:

«Facilmente podemos verificar que, nas poucas vezes em que Fabiano é obrigado a

misturar-se com os homens em colectividade, sua reação é de aturdimento e incompreensão.

Dentro de sua rusticidade, Fabiano é um homem em estado puro, temente das forças da natureza e

conseqüentemente cego acatador da autoridade estabelecida.», revelando deste modo uma «total

impossibilidade de compreender o real sentido dos gestos e reacções dos outros»74.

Esta atitude de estranhamento perante o mundo social é exemplificada nos capítulos

«Cadeia» e «Festa». Em «Cadeia», Fabiano desloca-se à cidade para comprar mantimentos onde

se torna visível a sua atitude de desconfiança perante os outros:

«Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano, regateando um tostão em côvado, receoso

de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfiança dava-lhe gestos oblíquos. À tarde

puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no

preço e na medida.» (p.25)

No capítulo «Festa», a desconfiança, aliada ao receio e à estranheza assolam novamente

Fabiano. Para este, o espaço da cidade representa um elemento opressor e a personagem sente-se

esmagada e encurralada, numa sensação de claustrofobia:

74 Idem, Ibidem, p. 70.

59

«A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como

se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede.

[...] Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a

noite.» (p.67)

Por outro lado, no contexto social, Fabiano revela também um sentimento de inferioridade:

«Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava

que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim

de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão

realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado

houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o

escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os

comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam

vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes.» (p.17)

Os exemplos permitem-nos concluir que Fabiano revela uma atitude passiva perante as

circunstâncias que o oprimem: como o ter de suportar a seca, não ter meios de se integrar na

sociedade, bem como de se ver impossibilitado de comunicar com os outros. Por estes motivos,

representa um ser humano alienado, condenado ao isolamento e impedido de ser feliz.

Contudo, esta inadaptação ao mundo social também se regista nos comportamentos dos

outros membros da família. Veja-se o caso do vestuário, ao qual as personagens não se

conseguem adaptar, porque algumas peças estão curtas, outras apertam, e até mesmo os sapatos

são desconfortáveis. Sinhá Vitória não consegue comunicar com outras caboclas. Tal como

podemos comprovar pelo excerto que se segue, os meninos sentem medo das pessoas, têm

vergonha e até mesmo a cadela Baleia estranha o ambiente:

«Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso pisavam devagar, receando chamar a

atenção das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos

na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? (...)

Talvez as criaturas desconhecidas não se comportassem como sinha Vitória, mas os pequenos

retraíam-se, encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de rumores

estranhos.» (p.65)

Por outro lado, a forma como as personagens se inter-relacionam constitui igualmente uma

forma de comprovar a componente temática da opressão, dada a existência de episódios que

60

ilustram os sub-temas da violência e da injustiça. Fabiano, devido à sua rudicidade e às suas

diminutas capacidades intelectuais, revela-se incapaz de comunicar com Sinhá Vitória e com os

filhos. Sinhá Vitória, por sua vez, é uma mulher analfabeta e de fracas capacidades intelectuais,

que apenas ambicionava trocar a sua incómoda cama de varas por uma cama de lustro de couro e

de supura. À semelhança de Fabiano, também ela se revelava incapaz de comunicar com os

meninos. Quanto aos filhos do casal, apenas designados como o menino mais novo e o menino

mais velho, são criados num ambiente familiar em que não existe comunicação e não possuem

instrução. Assim, a sua forma de comunicar fica reduzida a gestos, exclamações e sons. No

entanto, como qualquer outra criança constroem a sua identidade a partir dos modelos que estão

ao seu alcance: os seus pais. Todavia, a escassez de faculdades intelectuais e a falta de

comunicação entre os membros da família conduz a um processo de animalização das

personagens, condicionando-os a comportamentos de natureza instintiva.

Desta carência de domínio da linguagem resultam situações em que está presente a

violência, como em «Mudança», quando Fabiano pensa em abandonar o filho mais velho no

meio da catinga; e nos capítulos «O menino mais novo» e «O menino mais velho», em que as

crianças são espancadas por fazerem perguntas ou por quererem um pouco de atenção.

No capítulo «O menino mais novo», este procura imitar Fabiano nas suas lides de

vaqueiro, mas como a sua tentativa sai frustrada, a criança é repreendida. No capítulo «O menino

mais velho», por sua vez, a questão da carência da linguagem torna-se o tópico principal. O

menino mais velho deseja saber o significado da palavra inferno, que tinha ouvido da boca de

sinha Terta, e por isso questiona a mãe. Sinha Vitória não consegue satisfazer a curiosidade do

menino e aplica-lhe um cocorote. Neste contexto a ignorância alia-se à violência e comprova o

estado alienado das personagens: «Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim

de mais, e como o filho exigisse uma descrição encolheu os ombros.» (p.49).

Ao longo do romance podemos encontrar ainda outros episódios em que a carência da

linguagem e a dificuldade de comunicação se tornam os tópicos fundamentais.

A primeira alusão à carência de linguagem, surge no primeiro capítulo, «Mudança»,

quando o narrador nos dá a conhecer o triste destino do papagaio, que havia sido sacrificado para

alimentar a família, e que apenas podia imitar os gritos de Fabiano chamando pelo gado e o

latido de Baleia:

«[Sinhá Vitória] resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se

declarando a si mesmo que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a

família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras

61

curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.» (p.11)

Outro exemplo desta componente temática regista-se no capítulo «O menino mais velho»,

quando um dos meninos sem ter com quem falar, ou quem atendesse às suas curiosidades, tenta

contar uma história a Baleia, valendo-se de exclamações e de gestos:

«O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe

baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que

morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o

rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender.[...] Como não sabia falar direito, o

menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o

barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na catinga , roçando-se.» (pp. 50-52)

Ou no capítulo «Inverno, quando a família se reune à lareira para vencer o frio, e das suas

conversas resulta um balbuciar e um misto de interjeições, exclamações e repetições: «... eram

frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Ás vezes uma interjeição gutural dava

energia ao discurso ambíguo. [...] Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam

remediar a deficiência falando alto.» (p.55)

A cachorra Baleia também surge como vítima de uma violência arbitrária, já que por vezes,

também leva pontapés sem motivo, mas até mesmo para este animal, a violência surge como um

facto necessário, tal como nos revela o narrador:

«Para ela [Baleia] os pontapés eram factos desagradáveis e necessários. Só tinha um meio

de evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-

lhe no traseiro – saía latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas.» (pp.52-53)

62

2. A dimensão ideológica de Seara de Vento e Vidas Secas

2.1. Tal como tivemos oportunidade de verificar, no romance Seara de Vento de Manuel

da Fonseca, o tema da opressão e os sub-temas da alienação, do conflito social, da violência e da

consciência de classe surgem retratados por meio da representação do espaço físico e social e na

função ideológica das personagens. A componente temática da opressão surge representada

através da problematização das condições sócio-económicas dos camponeses e da classe

burguesa e permite descortinar uma determinada visão ideológica assumida pelo narrador.

O narrador de Seara de Vento é heterodiegético e o seu estatuto permite-nos distinguir o

grau de aproximação ou distanciação relativamente às diferentes personagens. Trata-se de um

enunciador que assume uma posição crítica face aos acontecimentos e às atitudes das

personagens e para quem o texto, tal como afirma João de Melo, «é uma espécie de écran onde

os dados essenciais do carácter e do mundo interior do personagem vão sendo projectados». É

um «narrador que se dá e recusa, que ora está do lado de uns ou contra outros, contemporiza,

vigia o erro, condena o vício, vê-lo-emos ao espelho das pessoas e das coisas, contra ou a favor

delas, mas nunca apático.»75.

Para João de Melo, o universo ideológico do narrador de Seara de Vento revela-se através

das personagens, remetendo para o tratamento da temática da consciencialização de classe e para

a apresentação da organização do poder político e do poder social, em separado e em conjunto.

Assim, é através da «antonímia actancial que nos vai sendo dada pela oposição de Palma e Elias

Sobral.»76, que se evidencia a visão crítica da realidade social.

Ao analisar a perspectiva do narrador em relação ao universo diegético, apercebemo-nos

que o enfoque adoptado se centra nos elementos da classe explorada. O relato recria

essencialmente o espaço físico da ruralidade alentejana e o interior de um casebre em ruínas. As

marcas de solidariedade do narrador remetem para as personagens de Mariana e Amanda

Carrusca, personagens que, tal como vimos, concretizam o sub-tema da consciência de classe.

Recordemos a forma como o narrador caracteriza Mariana, através de adjectivos que a

qualificam pela sua constância e serenidade, explicitada no adjectivo «bondosa», a par de outros

qualificativos que revelam uma mudança de comportamento da jovem, que passa de «calada e

arredia» para uma jovem que argumenta com o pai, revelando um comportamento político e um

75 João de Melo, «Contribuição para uma leitura ideológica do romance Seara de Vento», in Toda e Qualquer Escrita. Estudos, ensaios e críticas de literatura, Lisboa, Vega, 1982, pp. 126-127.

76 Idem, Ibidem, p.128.

63

empenho num único assunto: «a miséria dos camponeses».

Como refere João de Melo, os trechos que definem psicologicamente Mariana revelam a

simpatia que o narrador lhe nutre, facto que podemos entender como uma representação de um

conflito geracional de raíz ideológica, situada ao nível familiar e social. Do ponto de vista

ideológico, a preocupação com a miséria dos camponeses reflecte uma atenção ao mundo do

trabalho e ao universo dos explorados contra os exploradores. Igualmente temos a manifestação

de um comportamento político por parte de Mariana, comportamento este que, por sua vez, a

relaciona com uma organização de camponeses, por sua vez impulsionada pela existência de um

partido político proibido, suporte da luta dos camponeses famintos e sem trabalho77.

Repare-se ainda no predomínio das falas em discurso directo, que neste contexto funciona

como um mecanismo exemplar para delegar a responsabilidade da veiculação da ideologia às

personagens. Neste contexto, podemos destacar as críticas proferidas por Amanda Carrusca em

relação à organização social e política (cf. pp. 63-64), bem como o diálogo entre esta e Mariana

(cf. pp. 87-88) e o discurso final do romance (cf. pp.251-252).

Em relação a Palma, o protagonista da narrativa, o enunciador apresenta uma atitude

visivelmente crítica e manifesta a sua indignação perante o evoluir dos pensamentos, atitudes e

comportamentos da personagem, procedendo à análise do seu universo interior. Descrito como

um ser humano solitário, enigmático e individualista, de estatura alta e andrajosa, revoltado,

movido pelo ódio e pelos projectos de vingança, Palma define-se como uma personagem que

encarna a tragédia. De realçar que, tal como afirmou Manuel da Fonseca numa das suas

entrevistas, Palma foi criado para exemplificar o provérbio «Quem semeia ventos, colhe

tempestades»78.

Note-se, por exemplo, a posição do narrador face ao momento eufórico que a família vive,

quando sacia a fome com uma refeição de lombo e Palma projecta a reconstrução do forno.

Neste momento de novo ressoam presságios e se intensifica a força da ventania, enquanto o

narrador, solidarizando-se com Mariana e considerando-a a fonte da solução, condena as atitudes

de Palma:

.

«Nada está mudado. De novo a ferocidade da planície arremete livremente contra o

casebre. De novo se sentem à mercê, nem sabem de que poderosas forças. De onde virá

tamanho ódio? Quem os acossa, cercando-os como a bichos no fojo? Só Mariana parece 77 Cf. João de Melo, «Contribuição para uma leitura ideológica do romance Seara de Vento», in Toda e Qualquer

Escrita. Estudos, ensaios e críticas de literatura, Lisboa, Vega, 1982, pp.127-128.78 Cf. Maria Alzira Seixo, «O romance rural na perspectiva neo-realista: “Seara de Vento” de Manuel da Fonseca »

in Maria de Lourdes Belchior, Maria Isabel Rocheta e Maria Alzira Seixo, Três Ensaios sobre Manuel da Fonseca (A Poesia, O Fogo e as Cinzas e Seara de Vento), Lisboa, Seara Nova, Editorial Comunicação, 1980, p. 93.

64

compreender. Simples, claro, o objectivo da reunião dos camponeses acode-lhe ao espírito.»

(p.133)

Recorrendo à focalização interna e por vezes ao discurso indirecto livre, o narrador

manifesta uma atitude de indignação e até de incompreensão relativamente ao comportamento

desta personagem, que num sentido conotativo representa a inoperância do isolamento e do

individualismo. Destaque-se, neste contexto, o estado alucinado de Palma no momento em que

decide que matar o elemento opressor é a melhor forma de restaurar a justiça, ignorando por

completo, no seu estado de alienação total, os conselhos e as ideias apresentadas por Mariana:

«De que estará ela a falar? Da ida dos camponeses à vila, de dificuldades, denúncias? Apenas lhe

chegam palavras soltas, sem nexo. Por instantes, varre-se-lhe da memória o motivo por que se

encontra ali. Sobressalta-se. De olhar afundado no horizonte, vinca as sobrancelhas.» (p.210)

No desenlace, o narrador revela o trágico destino da personagem, aliás a certeza partilhado

pelos dois, narrador e personagem: «Tanto faz. Venham por onde vierem, que tem isso? Sabe o

fim. Sabe-o de certeza absoluta. Um bicho no fojo. Um bicho que acabará por ser caçado

implacavelmente.» (p.243)

No entanto, apesar de Palma não ter conseguido apreender as palavras de Mariana, e

consequentemente não ter adquirido uma consciência de pertença a uma classe, adquire pelo

menos a consciência de que é um ser humano oprimido e explorado, portanto vítima directa de

um sistema político e social, tal como se pode comprovar pela sua fala: «- Tenho que querer.

Esse Elias Sobral... ele e os outros reduziram-me a isto... Não há que fugir. Eles têm tudo, a

fortuna e o mando, eles é que põem e dispõem da vida de um homem.» (p.95). Palma apercebe-

se dos seus erros de conduta quando se autodenomina de criminoso e pede que não chorem a sua

morte: «- Não. Eu sou um criminoso! Fizeram com que chegasse a isto, nunca te esqueças!...» (p.

246); «- Já disse que não quero que me chorem!» (p.251). Desta forma, ele nega a sua crença na

justiça pelas próprias mãos e apercebe-se que o seu estado e o seu desfecho final é a

consequência directa da sua forma de encarar o mundo.

Se ao longo da narrativa o enunciador se coloca ao lado dos explorados, expressando,

assim, a sua solidariedade para com os seus representantes, a verdade é que tal posição surge

corroborada pela caracterização da classe dominante.

A atitude de distanciamento do narrador em relação aos ideais defendidos pelos

representantes do poder social e político revela-se através da utilização da ironia na

caracterização das personagens. A classe dominante é representada por Elias Sobral, o grande

latifundiário que comanda as possibilidades de emprego dos camponeses, por Asdrúbal

65

Camacho e Esquível que representam o poder político, pelo padre Macário que representa os

valores morais, e, por fim, pelo Sargento Gil, pelo Cabo Janeiro e pelos seus soldados. Como

vimos anteriormente, estas personagens são caracterizadas como figuras ridículas, pela sua

aparência física, característica que se relaciona directamente com a sua mesquinhez e hipocrisia.

Note-se o perfil que o narrador elabora desse «Luzidio grupo»:

«Na sua frente [do doutor Esquível], de mão em concha atrás da orelha, Asdrúbal Camacho

atira, cheio de interesse, o olhar por cima do aro dos óculos, enquanto Elias Sobral, de chapéu

enterrado até às orelhas, finge um ar impassível. A curta distância, de pescoço entumecido na gola

da farda, sargento Gil procura manter discreto aprumo, embora sobressaia a todos pela altura e

corpulência.» (p.158)

No entanto, é pela fala de Doutor Esquível que o narrador nos transmite os valores e os

ideais defendidos por esta camada social: «- Sabem? Isto apenas: olhem para o estrangeiro. Que

triste quadro!... Por toda a parte desassossego, greves, revoltas, e tudo num alevante que nem sei

no que vai dar. Pois, senhores, no meio de tanta anarquia, nós temos paz, organização, bem-

estar!» (pp.159-160). Esta opinião é aliás partilhada pelo grupo reunido no adro da igreja:

«Todas as cabeças se movem de alto a baixo, concordes, graves. E padre Macário, num gesto

que tudo explica e tudo agradece, soergue as mãos e olha para o céu.» (p.160).

Com este trecho, o narrador apresenta os ideais defendidos pelo grupo: a manutenção da

ordem social através da repressão e do controlo das manifestações de revolta dos camponeses,

em defesa de ideais nacionalistas de um regime fascista que controla o direito de expressão e

procura conter as revoltas instaurando o medo. Destaque-se neste contexto a opinião de Sargento

Gil: «- É preciso espalhar o medo entre os trabalhadores, quando não quem os segura?» (p.161)

A atitude irónica do narrador também se regista na descrição que faz da vila, um ambiente

aparentemente harmonioso, denunciado com a «grave lentidão do povo», que nos é apresentado

a partir do olhar de doutor Esquível: «Pausado, contempla o verde escuro das searas, o asseio das

casas e das ruas da vila, a grave lentidão do povo que desce do adro. De roda, todos sentem, com

momentânea surpresa, o agrado que a paisagem lhes causa.» (p.159)

Por último, o universo ideológico do narrador também se revela através da visão que

manifesta em relação às potencialidades do homem e à sua capacidade de transformar a

sociedade, vislumbrando um futuro que permita o combate à desigualdade e à injustiça social.

Esta visão optimista do futuro torna-se visível no discurso final de Amanda Carrusca e no

comportamento do grupo de camponeses que, sem medo, avança na direcção de Palma e da

66

velha:

«Por todos os lados, o confuso clamor de imprecações, apelos, pragas, aumenta cada vez mais.

Exaltados, os camponeses tentam vencer a barreira formada pelos guardas.

- Oiçam!

O grito obriga-os a levantarem a cabeça. [...]

- Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Um homem só não vale nada!

Ouve-se como que um gemido soltado por dezenas de bocas, e os camponeses atiram-se para

diante!» (pp.252-253)

Para Urbano Tavares Rodrigues, Seara de Vento ilustra não apenas uma moralidade,

mas também um conceito político, que se torna evidente na expressão de Amanda Carrusca,

“Um homem só não vale nada”, expressão esta que serve de cartão de visita a um povo que

procura as suas formas de luta. Esse conceito surge expresso também por meio do carácter

didáctico da personagem Mariana e da sua representação do sujeito colectivo. Para além deste

carácter didáctico evidenciam-se ainda valores como a fraternidade, a solidariedade, a unidade e

a organização revolucionária, permitindo assim que o romance finalize com uma esperança no

futuro do homem79 .

2.2. A integração de Vidas Secas na linha de uma estética neo-realista e de uma orientação

filosófica marxista torna fundamental a abordagem da sua componente ideológica.

Tendo em conta a dimensão temática, podemos afirmar que o seu tratamento está

directamente relacionado com um discurso literário que se deseja interventivo e, como tal,

expressão de uma visão crítica das realidades sociais. O tratamento do tema da opressão e de

outros sub-temas que lhe estão ligados, como o da alienação, da violência e da marginalização,

permite evidenciar uma visão crítica da sociedade, colocando o próprio ser humano como o

sujeito da sua própria história e enquanto elemento capaz de transformar a realidade social.

Para evidenciar a vertente ideológica deste romance nordestino, torna-se fundamental a

abordagem do estatuto do narrador e das suas estratégias, em termos de organização sintáctica da

narrativa, na focalização e nos modos de intrusão na diegese.

Do ponto de vista estrutural, os eventos de Vidas Secas são encadeados, técnica própria

dos romances de teor realista. Deste modo, na sua generalidade os acontecimentos sucedem-se

79 Cf. Urbano Tavares Rodrigues, «O Vento. Coro da Tragédia. Signo do Espanto e da Violência em Seara de Vento» in Um Novo Olhar sobre o Neo-Realismo, Lisboa, Moraes Editores, 1981, pp. 47-62.

67

seguindo uma ordem lógica e cronológica, e ainda que se registe a existência de anacronias, estas

não são suficientes para pôr em causa a linearidade temporal. A história tem lugar durante um

ano e meio e a representação temporal adquire uma forma cíclica, facto que, em termos

comunicativos, se traduz na exploração da dimensão trágica do fenómeno natural da seca que

assola o espaço nordestino. Faz também com que aos olhos do leitor o destino das personagens

pareça fatídico: é como se a família de Fabiano estivesse destinada a viver sempre os mesmos

acontecimentos, sem a hipótese de uma evolução do seu estado de alienação.

No domínio pragmático, torna-se fundamental a abordagem do código representativo,

nomeadamente o estatuto do narrador, no que diz respeito às modalidades de focalização e à sua

presença na diegese. Quanto a esta, o narrador é heterodiegético e apresenta o universo

recorrendo às focalizações omnisciente e externa. A focalização externa surge, por exemplo, nos

momentos em que o enunciador apresenta ao leitor um mundo natural caracterizado pela

hostilidade, facto que confirma a opressão. Revela, assim, uma posição ideológica de

perplexidade perante um mundo tão violento. Por outro lado, demonstra afecto pelas

personagens, como acontece, por exemplo, no capítulo «Mudança»:

«Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes

tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco,

mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas.

Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos

galhos pelados da catinga rala.[...]

Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto

e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa

correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra

Baleia iam atrás.» (p.9)

Por sua vez, em várias ocasiões o enunciador intromete-se na narração e expressa a sua

visão dos factos, como acontece quando se refere à mudez do papagaio e, ao mesmo tempo, à

precaridade linguística e comunicacional da família de retirantes:

«Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesmo

que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E

depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro

aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.» (p.11)

68

Mais ainda, dado que Fabiano não consegue ter consciência do seu estado de alienação, o

narrador esclarece-nos acerca da real condição da sua personagem. Vejamos um trecho em que o

narrador justifica a razão pela qual Fabiano não pode ser considerado um homem:

«E pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas

dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e o cabelos ruivos; mas como vivia

em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e

julgava-se cabra.» (p.18)

Os momentos de intrusão do narrador, em momentos-chave da narrativa, abrem as portas

para a focalização interna. Esta técnica narratológica aparece nos momentos em que o sujeito de

enunciação abandona a narração na terceira pessoa e transita para a primeira, recorrendo ao

monólogo interior indirecto e ao discurso indirecto livre. Este tipo de focalização está ao serviço

da análise psicológica de Fabiano. Com a confluência de vozes resultado da utilização do

discurso indirecto livre, o narrador evidencia a sua posição ideológica, solidarizando-se com a

personagem, como acontece, por exemplo, em «Cadeia» e em «Festa».

No capítulo «Cadeia», quando Fabiano, embriagado, é preso e espancado pelo soldado

amarelo, o protagonista revela uma atitude de indignação perante o poder opressivo da entidade

policial. Todavia, o narrador lê o pensamento da personagem enfatizando que a vida daquele

vaqueiro sempre fora repleta de injustiças:

«Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se

pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as

injustiças.[...] E por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse

governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto,

além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O

governo não devia consentir tão grande safadeza. Afinal para que serviam os soldados amarelos?

Deu um pontapé na parede, gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos?» (pp.29-30)

Por meio da focalização interna, o narrador também consegue elaborar a análise psicológica

da personagem. Atentemos nos excertos em que se problematiza a dimensão da alienação de

Fabiano:

«Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por

isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal

69

fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava

as cercas, curava os animais – aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam

ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa?» (pp.31-32)

Em seguida, o narrador apresenta-nos a justificação para o estado de brutalidade de

Fabiano: afinal o vaqueiro é um bruto porque não possui instrução, logo não consegue fazer uso

da linguagem em sua defesa, nem tão pouco reflectir, vendo-se, assim, impossibilitado de

compreender a sua posição no meio daquele conflito social:

«Se não fosse aquilo... Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou – e partiu-se. Difícil

pensar. Vivia tão agarrado aos bichos... Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-

se, botar as coisas no seu lugar. O demónio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para

um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível,

só sabia lidar com bichos. (...) Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um

bruto. (...) Fabiano não sabia falar. Às vezes largava nomes arrevesados, por embromação. Via

perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah!

Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancavam as criaturas inofensivas.» (p.32)

Remetendo para a apresentação dos companheiros de cela de Fabiano, o narrador

apresenta-nos seres humanos alienados, vítimas do sistema social, bêbedos e prostitutas, afinal

membros da mesma classe social de Fabiano. É nesta altura que o enunciador procura explicitar

ao leitor, ou melhor, expressar o sentimento de revolta de Fabiano perante este mundo em que os

oprimidos são alvo da violência dos representantes da classe dominante:

«Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz de direito, ao delegado,

a seu vigário e aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguém prestava para nada. Ele, os

homens acocorados, o bêbedo, a mulher das pulgas, tudo era uma lástima, só servia para aguentar

facão. Era o que ele queria dizer.» (p.33)

Tal como tivemos oportunidade de verificar, o recurso ao discurso indirecto livre por parte

do enunciador justifica-se pelo facto de o universo verbal das personagens ser limitado e, como

tal, tornar inviável a prática do discurso directo. A personagem necessita de um mediador, e esse

mediador é o narrador.

A injustiça social e o abuso de poder da classe opressora surgem igualmente representadas

no capítulo «Soldado amarelo», em que mais uma vez, com recurso à focalização interna, o

70

narrador, em solidariedade com a personagem, manifesta a sua indignação e a sua revolta perante

uma ordem social injusta:

«Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não

entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim, apanhar do governo não é

desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo... Soltou uns

grunhidos. Por que motivo o governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha receio de empregar

tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria

tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles? Não iria.»

(p.90)

Ao abordar estes excertos de Vidas Secas, podemos destacar uma das questões

fundamentais do romance: a precaridade da linguagem em Fabiano que, em termos discursivos,

é resolvida pelo narrador com a utilização do discurso indirecto livre. Ao mesmo tempo torna-se

uma forma de denunciar a precaridade do padrão social e cultural das personagens, e

consequentemente, explicar o seu grau de dificuldade em terem consciência das suas

incapacidades de integração e de compreensão do mundo em que vivem.

O recurso ao discurso indirecto livre, tal como tivémos oportunidade de verificar, torna-se

preponderante em momentos-chave da evolução de Fabiano, nomeadamente quando o vaqueiro

é preso e revela a sua indignação e perplexidade perante a injustiça de que foi vítima, ou quando

no capítulo «Festa», embriagado, desafia os habitantes da cidade. É nestes momentos críticos,

em que Fabiano se revolta e se apercebe das injustiças, mas se vê obrigado a aceitar as condições

impostas pelo meio, que o narrador se solidariza com a personagem, revelando assim o

inconformismo desta perante a impossibilidade de transformar a realidade.

Apesar de se movimentarem num ambiente hostil e opressivo, nos pensamentos das

personagens desenha-se uma visão de futuro, marcada pelo optimismo e pelo desejo de

sobreviver. Deste modo, em termos ideológicos, embora não se faça apelo ao colectivo e à

solidariedade entre os membros de uma mesma classe, como seria possível esperar num discurso

marxista, realça-se o valor da vida humana. Esta crença no futuro, assente numa visão não

determinista da existência humana, surge nos pensamentos das várias personagens: em Fabiano,

Sinhá Vitória, no menino mais novo e até no pensamento de Baleia, no momento da sua morte.

A visão optimista de futuro surge desde logo no pensamento de Fabiano, no capítulo

«Mudança». Exausto da viagem pelo sertão brasileiro, cansado, faminto, com dores e ferimentos,

e enquadrado num ambiente hostil que sugere a destruição e a morte, Fabiano, para encontrar

forças para continuar o seu caminho, idealiza na sua mente um espaço natural renovado pelas

71

chuvas, que contrasta com os tons agrestes da paisagem e com a quentura do deserto. Desta vez a

vegetação estaria verde e renovada e Fabiano imagina-se o vaqueiro daquela fazenda, imagina o

barulho dos badalos dos chocalhos, os animais alimentados, e a sua mulher e filhos, rosados,

gordos e com saúde:

«Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele,

Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a

solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinha Vitória vestiria

saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E toda a catinga ficaria verde.(...) Eram

todos felizes.Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinha Vitória

remoçaria, as nádegas bambas de sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinha Vitória

provocaria a inveja das outras caboclas.(...) A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o

vaqueiro, para bem dizer o dono daquele mundo.(...)Uma ressurreição. As cores da saúde

voltariam à cara triste de sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa dos chiqueiros das

cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria verde.» (p.15)

Sinhá Vitória, por sua vez, sonha com uma cama de lustro de couro, para substituir a de

varas e o menino mais novo projecta seguir as passadas do pai, desejando tornar-se um vaqueiro

importante:

«E precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de pilão, trazer

uma faca de ponta à cintura. Ia crescer, espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha,

calçar sapatos de couro cru. / [...] Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio,

importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo branco e voaria na

catinga como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no

pátio assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho.» (p.48)

Por sua vez, Baleia, que ao longo de toda a narrativa apenas deseja comida, antes de

morrer sonha com um novo mundo, em que exista saúde, fartura e onde possa ser feliz junto

daqueles que mais gosta: «Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E

lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam

com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos,

enormes.» (p.80)

Já no capítulo final, as esperanças num futuro melhor são renovadas, dado que se apontam

várias hipóteses para a superação da sua condição. Para trás ficaram os projectos de vingança em

72

relação aos elementos opressores, como o patrão e o soldado amarelo, porque o objectivo das

suas vidas consiste apenas em sobreviver e em encontrar um novo espaço para começar de novo.

Esses novos projectos têm em conta a hipótese de Fabiano mudar de profissão, a mudança para

a cidade e a educação dos filhos:

«Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num

sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de

terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam

diferentes deles. [...]

Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era.

[...] E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes.

Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias.» (pp.109-110)

Segundo Wilson Martins, a visão optimista de futuro que se esboça em Vidas Secas tem a

ver com o facto de as personagens não se terem deixado dominar pelo mal e tenham mantido a

sua rudicidade:

«É o segredo final de Vidas secas: o livro que seria aparentemente o mais desesperado,

porque preso à fatalidade implacável de uma natureza torturadora, termina como uma aurora, a

felicidade e o conforto surgindo aos personagens em plena caminhada na poeira calcinada pelas

secas e pelos sofrimentos. [...] Fabiano estava contente e pouco a pouco sentia esboçar-se à sua

frente uma vida nova. Todos os livros do Sr. Graciliano Ramos terminam na desgraça

irremediável, menos Vidas secas cujos personagens sabem tirar da maior desgraça o alimento para

as suas esperanças. (...) É que nesse romance o Bem e o Mal não se confundiram. O sofrimento

físico dos personagens lhe manteve intata a rude formação moral.»80

Da análise dos dois romances evidenciamos que o universo ideológico dos respectivos

narradores se revelam através das categorias narrativas do espaço e das personagens, bem como

das marcas de intrusão e processos de focalização utilizados.

No que respeita à componente semântica de cada uma das narrativas, verificamos que em

ambos os casos a opressão é a temática predominante. Por seu lado, os sub-temas da alienação,

da violência, do conflito social e da consciência de classe surgem corroborados através das

categorias narrativas do espaço, considerado na sua componente física e social, e por meio das 80 Wilson Martins, «Graciliano Ramos, o Cristo e o Grande Inquisidor», in Sônia Brayner (org.), Graciliano

Ramos. Fortuna Crítica, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p.42.

73

personagens e da forma como se inter-relacionam.

Relativamente ao espaço físico, em ambos os romances este se configura opressivo, dada a

sua rigidez e agressividade, quer em termos climatéricos, quer em termos da vegetação e do

relevo. Em Seara de Vento, a paisagem alentejana caracteriza-se por uma vegetação agreste que

contempla os plainos, os matos, os cardos, as estevas, a par do acidentado dos córregos e dos

barrancos. A agressividade deste espaço é complementada pela obsidiante presença do vento,

que pela sua caracterização se configura a uma voz que exprime a desolação, a dor e o

sofrimento. Por sua vez, em Vidas Secas surge o flagelo da seca, e para além dos tons

avermelhados de um espaço agreste apenas se conta com a presença de uma vegetação que

consegue resistir à falta de água e ao sol abrasador.

Se o espaço físico exterior, só por si já remete para a opressão, o espaço interior intensifica

esse carácter semântico, pois denuncia a precaridade das condições sócio-económicas das

personagens, dado que os espaços habitados pelas personagens são escuros e sombrios.

Quanto ao espaço social, este revela-se adverso às ambições das personagens e concretiza

a opressão a que estas estão sujeitas. Em ambos os casos, o espaço social remete para o espaço

urbano e para a sede dos representantes dos detentores do poder social e político: as instituições

do poder político, como a câmara municipal e a prefeitura; os representantes da distribuição do

trabalho, como os grandes latifundiários e os patrões, e as forças da autoridade, como a polícia e

a sua instituição repressiva, a esquadra da polícia e a cela da prisão. Da caracterização do espaço

social emerge o sub-tema do conflito social, colocando em posições antagónicas os

representantes da classe exploradora e os da classe explorada.

Relativamente às personagens, em ambos os casos se trata de famílias que têm como

objectivo fundamental satisfazer as necessidades básicas, tais como a alimentação, uma casa e

um terreno para cultivar, no entanto, sobrevivem em precárias condições sócio-económicas.

Os sub-temas da fome, da violência, do conflito social e da alienação estão presentes nas

duas narrativas. Os efeitos da fome e da precaridade das suas condições de vida são bastante

visíveis na debilidade física das personagens. A alienação constitui uma outra vertente temática

que surge exemplicada de modo exemplar em Júlia, dada a sua subserviência ao poder instituído,

ao marido e à polícia. Por outro lado, em Vidas Secas, a precaridade da linguagem, a resignação

e a solidão que marcam a existência da família de retirantes também apontam para esta

problemática. Ela é visível em Fabiano, dado que os sentimentos de revolta e os projectos de

vingança esmorecem perante a primazia concedida ao instinto biológico de sobrevivência.

As personagens de Seara de Vento destacam-se pela sua função ideológica e por

conseguinte pela sua capacidade de evidenciar o sub-tema da consciência de classe. Esta vertente

74

é justificada pelas personagens Mariana, Amanda Carrusca e pelo protagonista Palma. Mariana

representa a consciência colectiva e revela-se conhecedora dos ideais de solidariedade e de

união, enquanto Amanda Carrusca representa o processo de consciencialização. O protagonista

da narrativa Palma, embora seja consciente da sua condição de ser humano oprimido, e que

como tal se revolte contra um sistema social caracterizado pela injustiça social e pela opressão

exercida pelos elementos da classe dominante sobre a classe marginalizada, as suas formas de

luta assentam em valores e em motivos individuais, que acabam por levá-lo à morte.

Assim, tendo em conta a componente semântica das duas narrativas, que como

verificámos revela em comum o tratamento do tema da opressão, resta-nos averiguar a forma

como o narrador de cada uma das narrativas constrói o seu universo ideológico. Estamos perante

dois narradores que apresentam como projecto comum a construção de uma crítica social e a

construção do universo diegético a partir do ponto de vista das classes marginalizadas, por quem

obviamente nutrem sentimentos de afecto e de solidariedade. As atitudes de afectividade pelas

personagens revelam-se determinantes em Vidas Secas, dado que com o recurso à focalização

interna e ao discurso indirecto livre, o narrador não só analisa o universo interior da personagem,

como até o seu discurso se funde com o da própria personagem. Este facto é visível de forma

inequívoca em Fabiano. Já o narrador de Seara de Vento, embora construa o universo narrativo a

partir do ponto de vista das personagens, revela uma atitude crítica e até condenatória em relação

às mesmas. Por Mariana, o narrador nutre sentimentos de simpatia e de solidariedade para com

as causas sociais e políticas por ela defendidas. Revela-se solidário com Amanda Carrusca,

apoiando a personagem no seu processo de consciencialização. Com Palma revela uma atitude

crítica e até condenatória, explora o universo interior da personagem, os seus pensamentos,

sentimentos e impulsos, mas dá a ver ao leitor que a personagem, devido ao seu individualismo e

pelas suas atitudes irreflectidas, está condenada a morrer como «um bicho no fojo».

Em ambas as narrativas se constrói uma visão optimista de futuro e uma crença nas

capacidades do homem e no seu poder de superar a sua condição de alienado e de construir uma

sociedade mais justa. Esta crença no futuro revela-se por intermédio de Amanda Carrusca em

Seara de Vento e pela sua interpelação ao grupo de camponeses que ronda o casebre em ruínas.

Em Vidas Secas, por sua vez, essa esperança revela-se com a projecção de um mundo novo e de

uma vida nova em que seja possível a felicidade e o bem-estar.

Em termos discursivos, em ambos os romances se regista a utilização de um vocabulário

concreto e seco, com frases curtas que permitem recriar um ambiente agressivo, facto que leva o

leitor a solidarizar-se com o sofrimento das personagens. No entanto, a utilização recorrente do

discurso indirecto livre no romance brasileiro contrasta com a recorrente utilização do discurso

75

directo na narrativa do escritor português. Estas opções discursivas permitem que a componente

ideológica, no caso português, se revele mais pela intervenção das personagens que pela

expressão directa do narrador.

76

Conclusão

1. Tendo em conta os objectivos enunciados na nossa introdução, decidimos elaborar um

estudo comparativo da produção ficcional do escritor português Manuel da Fonseca e do escritor

brasileiro Graciliano Ramos, abordando os romances Seara de Vento e Vidas Secas, mas

também os movimentos literários em que estes surgem integrados, respectivamente o Neo-

Realismo e o Romance Social Brasileiro de 30.

Da análise dos dois movimentos literários em causa podemos concluir que em ambos os

casos o fenómeno literário se assume como uma forma de apresentar uma visão crítica da

realidade social, concedendo especial atenção aos espaços geográficos que revelam problemas

sócio-culturais mais flagrantes e incidindo o foco narrativo em personagens provenientes de

classes sociais mais desfavorecidas. Deste modo, a ficção narrativa neo-realista e a ficção

regionalista de 30 caracterizam-se pela sua componente de narrativa documental, que visa

apresentar o retrato fiel de uma sociedade em que reina a injustiça e a desigualdade social.

Retomando em grande parte as características romanescas da estética realista e naturalista

oitocentista, em termos retórico-estilísticos, ambas as correntes literárias se distinguem do

Realismo e do Naturalismo pelas suas componentes temáticas e ideológicas. Assim, do ponto de

vista ideológico, tanto o Neo-Realismo português como o romance brasileiro de 30, assentam

numa ideologia marxista e na crença fundamentada de que é ao Homem que cabe o importante

papel de transformar a sociedade, perspectiva que contrasta profundamente com o socialismo

utópico e com o idealismo oitocentista. Quanto à sua componente temática, na produção neo-

realista figuram como temas fundamentais a opressão, a alienação, a consciência de classe e o

conflito social, enquanto vertentes que surgem ligadas às condições sócio-económicas da classe

operária, e que contrastam com os temas da educação, da hereditariedade e da influência do

meio, que na literatura realista e naturalista se aplicavam à classe burguesa.

O romance brasileiro de 30, ainda que apresente como componentes temáticas aspectos

relacionados com a denúncia das condições sócio-económicas dos habitantes das zonas

geográficas mais desfavorecidas, distingue-se pelo seu carácter regionalista e pelo seu ideal de

defesa de uma identidade e de uma unidade nacional, tornada possível através de uma visão

objectiva e sem preconceitos da realidade regional. É devido a esta componente

determinantemente regionalista que é possível distinguir no conjunto da produção ficcional da

77

década de 30 os seguintes ciclos temáticos: o da seca, onde figura Vidas Secas de Graciliano

Ramos, o da cana-de-açúcar, do cacau e o amazónico.

2. Da análise dos dois romances, podemos concluir que a componente semântica de Seara de

Vento e de Vidas Secas revela-se com a predominância do tema da opressão e com a presença de

outros sub-temas, como o conflito social, a alienação, a violência e a consciência de classe. A

componente temática central surge no ênfase concedido ao tratamento das categorias narrativas

do espaço e da personagem. No que se refere ao espaço, este é abordado nas suas vertentes de

físico e social. O espaço físico, pela sua agressividade e desolação, remete para a dor e para o

sofrimento a que as personagens estão sujeitas. O espaço físico interior, por sua vez, revela as

débeis condições sócio-económicas das personagens. O espaço social remete para o espaço

urbano e para a representação das instituições que legitimam o poder social e político e,

consequentemente, torna possível revelar as relações antagónicas que se operam entre os

membros da classe exploradora e os da classe explorada.

Quanto às personagens, em ambas as narrativas estas se destacam pela precaridade sócio-

económica. As personagens de ambas as narrativas permitem fundamentar os temas da

alienação, da violência e da injustiça social, no entanto, é em Seara de Vento que o tema da

consciência de classe adquire uma maior representatividade.

A componente ideológica nos dois romances surge expressa a partir das marcas de intrusão

e dos processos de focalização utilizados pelos narradores. Ambos os enunciadores apresentam

como projecto comum a crítica social, sustentada a partir da perspectiva das personagens

pertencentes à classe marginalizada e por quem revelam sentimentos de afecto e de

solidariedade. Esta atitude afectiva por parte do narrador torna-se preponderante em relação a

Fabiano em Vidas Secas, dado que o sujeito de enunciação explora de forma detalhada o

universo interior do protagonista e auxilia-o na construção de pensamentos, operando-se, deste

modo, uma fusão de discursos. Já o narrador de Seara de Vento se solidariza com Mariana,

personagem que, pela sua função ideológica, permite representar de forma exemplar a

consciência de classe. Por sua vez, relativamente ao protagonista Palma, o narrador revela uma

atitude crítica e condena a personagem pelas suas atitudes individualistas. Deste modo, o

narrador do romance português coloca em oposição uma atitude comunitária e uma atitude

individual, demonstrando a sua preferência pela primeira.

Ainda no que se refere à componente ideológica, podemos concluir que tanto Seara de

Vento como Vidas Secas findam em esperança, revelando deste modo uma visão optimista no

futuro e uma crença nas capacidades do Homem de transformar o mundo em que vive.

78

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