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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS PROJETO “A VEZ DO MESTRE” LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO por Maria de Fátima Henriques Pereira Professora Orientadora: Diva Nereida M.M.Maranhão RIO DE JANEIRO FEVEREIRO/2003

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO

por

Maria de Fátima Henriques Pereira

Professora Orientadora: Diva Nereida M.M.Maranhão

RIO DE JANEIRO FEVEREIRO/2003

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO

DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO

Monografia apresentada à Universidade Candido

Mendes como requisito parcial à conclusão do

curso de Pós-Graduação em Psicopedagogia sob

orientação da professora Diva Nereida M. M.

Maranhão por Maria de Fátima Henriques Pereira

RIO DE JANEIRO

FEVEREIRO/2003

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AGRADECIMENTOS

A Deus, autor e princípio de tudo.

Aos meus alunos ao longo de toda a minha carreira, pelo tanto que com

eles aprendi.

Aos meus amigos, pelo incentivo, especialmente à Dora pela parceria no

trabalho e na vida e ao amigo Roger, pelo apoio técnico-operacional.

A todos os colegas que colaboraram na troca de experiências

verdadeiramente enriquecedoras.

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, sem os quais alguém

e algo não existiriam, pelo tudo que

fizeram de mim.

A você, amor, pelo novo sentido que

trouxe à minha vida

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“Ler as folhas das árvores caindo no chão. Tomar

uma folha nas mãos. Ler as árvores florindo.

Sentir seu perfume.

Ler o ninho de passarinho vazio. Ler manga,

abacate e morango no pé e na banca de frutas.

Ler produtos no bar, na quitanda ou no “shopping”.

Ler traços e pistas, estradas e trilhas. Ler

sintomas. Ler sinais luminosos. Ler encontros

de astros no céu. Ler rostos e gestos de

pessoas. Ler modos e modas. Ler relógio. Ler

botão de fogão. Ler o livro amarelecido que a avó

deu. Ler a foto da avó. Ler contos de fadas. Ler

música. Ler revistinha de montão. Ler a Bíblia.

Não ter livro para ler. Ler escondido. Ler

Drummond. Ler Oscar Wilde, Jorge Amado. Ler

Shakespeare em quadrinhos. Digitar no

computador. E ler. Não gostar de ler. Ler a

brisa. Ler as idéias dos outros. Ler o outro

nos textos. Ler memórias. Não precisar ler

escondido. Ler as histórias contadas por muitos.

Re-ler...” (SMOLKA, 1992, p.27)

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RESUMO

O mundo e a sociedade contemporânea trazem em si exigências que até

então passavam despercebidas. Como imaginar o mundo moderno sem

computador? No entanto, de que vale tanta tecnologia quando uma parcela

significativa da população sequer tem acesso à utilização social básica de leitura e

da escrita? Há que se repensar tanto as práticas de ensino/aprendizagem quanto

o que se espera daquele que dominou a tecnologia do ler e escrever, bem como

quais as implicações sociais, políticas e filosóficas do ato de se alfabetizar.

Novos conceitos e concepções de construção de conhecimento avançadas

precisam ser implementadas no sentido de minimizar problemas crônicos que vêm

afetando a instituição escolar, especialmente a de caráter público. A mudança no

olhar sobre as práticas docentes e os mais recentes estudos que mostram de que

forma o alfabetizando constrói seu processo pessoal de leitura e escrita apontam

para uma nova visão de leitor, aquele que vê para além do escrito, o leitor de

mundo.

Palavras-chave: letramento, alfabetização, transformação

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METODOLOGIA

O universo deste estudo estende-se da clientela da pré-escola às duas

séries iniciais do 1º segmento do Primeiro Grau, por se tratar,em tese, exatamente

da fase onde é adquirido o domínio sobre o procedimento de ler e escrever, bem

como a incorporação das várias formas de utilização da linguagem escrita.

O estudo se fundamenta em pressupostos teóricos de diversos autores,

relacionando suas idéias e concepções às experiências práticas cotidianas,

através de método analítico das produções e de observações e participações

relacionadas ao processo de construção do conhecimento em alfabetização.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1. LETRAMENTO: CONSIDERAÇÕES GERAIS 11

2. ALFABETIZAÇÃO: REPENSANDO CONCEITOS E PRÁTICAS 26

3. ENSINAR A LER E ESCREVER 42

CONCLUSÃO 55

REFERÊNCIAS 58

ANEXOS 62

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INTRODUÇÃO

O sistema escolar brasileiro vem discutindo já há algum tempo os

pressupostos teórico-metodológicos que regem seu funcionamento e seu

cotidiano político-pedagógico.

As mudanças sociais e o avanço no conhecimento em muitas áreas do

saber impõem novas questões, além, é claro, das novas tecnologias e de

problemas de natureza ética delimitando novas tensões e contradições vividas em

nosso espaço de vida, dentro de um determinado contexto histórico.

Diante desse quadro, a alfabetização tem-se destacado como área de

profunda revisão conceitual.

Alguns fatores que merecem destaque:

1. Os elevados índices de analfabetismo da população brasileira, fato

relacionado a uma organização social marcada pela má distribuição de

bens econômicos e culturais;

2. A qualidade questionável da educação que vem sendo oferecida aos

alunos;

3. A grande defasagem idade/série encontrada nas escolas, conseqüência

de reprovações consecutivas.

Há, sem dúvida, questões de natureza política envolvidas nessa

problemática: por quê e para quê alfabetizamos, isto é, que expectativas temos

em relação à sociedade que queremos construir, mais igualitária na distribuição

dos bens econômicos e sociais.

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Desse modo, a alfabetização é um bem cultural, uma vez que a língua

escrita na perspectiva político-cultural que essa linguagem ocupa na sociedade é

fator diferencial, bem como a participação social diferenciada daqueles indivíduos

que a dominam.

Durante muito tempo, a língua escrita foi ensinada como uma

tecnologia, ou seja, o funcionamento do código alfabético: juntava-se as

consoantes a vogais, misturavam-se as sílabas para formar palavras e assim por

diante, considerando que desta forma a criança aprenderia a ler e escrever.

Não se mostrava à criança a língua viva, usada em muitos lugares e por variadas

pessoas para variados fins: colada ou escrita nas paredes, distribuída em

panfletos, transformada em histórias, lendas e poesias nos livros, em notícias de

jornais, em receitas de bolos ou bulas de remédios, em anotação do jogo do

bicho, em listas de compras, em mensagens no computador. Em suma,

ensinava-se a escrita e deixava-se de lado a linguagem escrita.

Diante dessa “postura didática”, o desempenho dos alunos varia: nem

todos se saem mal, pois aqueles que já têm um bom contato com a linguagem

escrita percebem essa postura apenas como um método, não como linguagem.

No entanto, aqueles que têm pouco ou nenhum contato com a linguagem escrita

acabam se transformando numa legião de jovens e adultos que, mesmo

escolarizados e sendo considerados alfabetizados, mal conseguem escrever o

nome e mal lêem um pequeno texto. Eles aprenderam a língua escrita, mas não

se apropriaram da linguagem escrita como um saber, como um bem cultural que

lhes alargasse o horizonte de conhecimentos e de participação social.

Diante de todas essas questões, no capítulo 1 discute o novo conceito

incorporado ao vocabulário da Educação e das Ciências Lingüísticas: o

Letramento, suas dimensões, implicações e contribuições no processo de

aquisição social da escrita.

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O capítulo 2, dando prosseguimento às questões levantadas

anteriormente, fala da alfabetização e da necessidade de se compreender como

a criança constrói o seu conhecimento numa escala sucessiva de fases,

compreender que conhecimentos a criança já tem ao chegar à escola e da

necessidade de que os mesmos sejam aproveitados.

O capítulo 3 fecha esse estudo repensando as bases para o

ensino/aprendizagem da leitura e da escrita, o papel do professor nesse

processo e as implicações sócio-político-filosóficas da alfabetização.

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CAPÍTULO 1

LETRAMENTO: CONSIDERAÇÕES GERAIS

Novas palavras são criadas quando emergem novos fatos, novas idéias,

novas maneiras de compreender os fenômenos.

A mudanças nas demandas sociais do uso da leitura e da escrita

apontaram para a necessidade do surgimento de uma nova palavra: letramento.

Embora já presente em outras línguas há mais tempo, somente em

meados dos anos 80 a palavra letramento é incorporada ao vocabulário da

Educação e das Ciências Lingüísticas.

A palavra letramento ainda não está dicionarizada, porque foi introduzida

muito recentemente na língua portuguesa. A criação do termo é decorrência da

necessidade que o ser humano tem de nomear as coisas, como se elas não

existissem antes de serem nomeadas. Portando o termo letramento surgiu

porque apareceu um novo fenômeno ao qual precisava-se dar um nome, um

fenômeno que não existia antes, ou, se existia, não tínhamos nome para ele.

A palavra letramento é uma tradução para o português da palavra

inglesa literacy (traduz-se por “a condição de ser letrado”), embora o sentido que

lhe vem sendo dado em português venha de literate (do francês, “que tem a

habilidade de ler e escrever).

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1.1 Conceito

O que é o letramento?

Letramento não é um gancho Em que se pendura cada som enunciado Não é treinamento repetitivo de uma habilidade Nem um martelo quebrando blocos de gramática. Letramento é diversão, É leitura à luz de vela, ou lá fora à luz dos sol. São notícias sobre o presidente, O tempo, os artistas da TV. E mesmo Mônica e Cebolinha Nos jornais de domingo.

É uma receita de biscoito,

Uma lista de compras, recados colados na geladeira, Um bilhete de amor, telegramas de parabéns E cartas de velhos amigos. É viajar para países desconhecidos, Sem deixar sua cama, É rir e chorar Com personagens, heróis e grandes amigos. É um Atlas do mundo, Sinais de trânsito, caças ao tesouro, Manuais, instruções, guias e orientações em bulas de remédios Para que você não fique perdido. Letramento é, sobretudo, Um mapa do coração do homem, Um mapa de quem você é E de tudo que você pode ser. (SOARES, 2000, p.41)

O letramento ainda não carrega em si uma definição própria e acabada,

uma vez que engloba uma vasta gama de conhecimentos, habilidades,

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capacidades, valores, usos e funções sociais. Esse novo domínio da leitura e da

escrita precede a decifração do código.

O conceito, portanto, de letramento, envolve sutilezas e complexidades

difíceis de serem contempladas em uma única definição.

Há, no entanto, alguns pressupostos básicos que são consenso entre os

estudiosos do assunto: o indivíduo que vive em estado de letramento não é só

aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a

escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas

sociais da leitura e da escrita.

“...ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e escrever: aprender a ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a de decodificar a língua escrita; apropriar-se da escrita é tornar a escrita “própria”, ou seja, é assumí-la como sua propriedade.” (SOARES, 2000, p. 39)

Ser letrado é muito mais complexo que simplesmente ser alfabetizado,

pois alfabetizado define aquele que apenas aprendeu a ler e a escrever, não

aquele que adquiriu o estado ou a condição de quem se apropriou da leitura e da

escrita, incorporando as práticas sociais que as demandam, interagindo com

diferentes portadores de leitura e escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura

e escrita, com as diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham em

nossa vida.

Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler

e a escrever: o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo

como conseqüência de ter-se apropriado da escrita.

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Social e culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que era

quando analfabeta ou iletrada, passa a ter uma outra condição social e cultural –

não se trata propriamente de mudar de nível ou de classe social, mas de mudar

seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, na inserção na cultura –, sua

relação com os outros, com o contexto, com os bens culturais torna-se diferente.

Tornar-se letrado é também tornar-se cognitivamente diferente: a pessoa

passa a ter uma forma de pensar diferente. Tornar-se letrado traz, ainda,

conseqüências lingüísticas: o letrado fala de forma diferente do iletrado, o convívio

com a língua escrita tem como conseqüências mudanças no uso da língua oral,

nas estruturas lingüísticas, no vocabulário.

1.2 O letramento e seus reflexos na leitura e na escrita

O letramento envolve dois fenômenos bastante diferentes: a leitura e a

escrita.

Ler é um conjunto de habilidades e comportamentos que se estendem

desde simplesmente decodificar sílabas ou palavras até a leitura de obras

clássicas. Ou seja, é um conjunto de habilidades, comportamentos e

conhecimentos que compõem um longo e complexo processo contínuo.

Escrever é também um conjunto de habilidades, comportamentos e

conhecimentos que se estendem desde simplesmente escrever o próprio nome

até uma tese de doutorado. É também um processo contínuo.

Cabe aqui questionar em que ponto desse processo uma pessoa pode

ser considerada letrada no que se refere à leitura e à escrita.

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Há, portanto, diferentes tipos e níveis de letramento, dependendo das

necessidades, das demandas do indivíduo e de seu meio, do contexto social e

cultural.

O nível de letramento dos grupos sociais relaciona-se fundamentalmente

com suas condições sociais, culturais e econômicas. É preciso que haja, pois,

condição para o letramento.

Uma primeira condição é que haja escolarização real e efetiva da

população – a necessidade de letramento só foi percebida quando o acesso à

escolaridade se ampliou e tivemos mais pessoas sabendo ler e escrever,

passando a aspirar a um pouco mais do que simplesmente aprender a ler e a

escrever.

Uma segunda condição é que haja disponibilidade de material de leitura.

Para que os alfabetizados se tornem realmente letrados é preciso que estejam

imersos em um ambiente letrado, ou seja, tenham acesso a livros, revistas,

jornais, bibliotecas; é preciso que percebam uma função social para a leitura e

tornem-na uma necessidade e uma forma de lazer.

Embora a leitura e a escrita sejam vistas freqüentemente como

processos espelhados um do outro, há diferenças fundamentais entre as

habilidades e conhecimentos empregados no ato de ler e os empregados no ato

de escrever, bem como na aprendizagem de um e de outro. No entanto, mesmo

sendo constituídas de processos diferentes, a leitura e a escritas são uma única

habilidade, realidades coexistentes no processo de letramento.

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1.3 A dimensão individual do letramento

1.3.1 Na leitura

A leitura, do ponto de vista da dimensão individual de letramento (a leitura

como uma “tecnologia”), é um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas.

Estende-se da habilidade de traduzir em sons sílabas sem sentido a

habilidades cognitivas e metacognitivas; inclui, entre outras: a habilidade de

decodificar símbolos escritos; a habilidade de captar significados; a capacidade de

interpretar seqüências de idéias ou eventos, analogias comparações, linguagem

figurada, relações complexas; e, ainda, a habilidade de fazer previsões iniciais

sobre o texto, de construir significado combinando conhecimentos prévios e

informação textual, de modificar previsões iniciais quando necessário, de refletir

sobre o significado do que foi lido, tirando conclusões e fazendo julgamentos

sobre o conteúdo.

Essas habilidades de leitura devem ser aplicadas diferenciadamente a

diversos tipos de materiais de leitura: literatura, livros didáticos, obra técnicas,

dicionários, listas, enciclopédias, quadros de horário, catálogos, jornais, revistas,

anúncios, cartas formais e informais, rótulos, cardápios, sinais de trânsito,

sinalização urbana, receitas...

1.3.2 Na escrita

A escrita, na perspectiva da dimensão individual de letramento (a escrita

como “tecnologia) é também um conjunto de habilidades lingüísticas

e psicológicas, mas habilidades fundamentalmente diferentes daquelas exigidas

pela leitura.

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As habilidades de escrita estendem-se da habilidade de registrar

unidades de som até a capacidade de transmitir significado de forma adequada a

um leitor potencial.

A escrita engloba desde a habilidade de transcrever a fala, via ditado, até

habilidades cognitivas e metacognitivas; inclui a habilidade motora (caligrafia), a

ortografia, o uso adequado de pontuação, a habilidade de selecionar informações

sobre um determinado assunto e de caracterizar o público desejado como leitor, a

habilidade de estabelecer metas para a escrita e decidir qual a melhor forma de

desenvolvê-la, a habilidade de organizar idéias em um texto escrito, estabelecer

relações entre elas; expressá-las adequadamente.

As habilidades de leitura devem ser aplicadas diferenciadamente à

produção de uma variedade de materiais escritos: da simples assinatura do nome

ou elaboração de uma lista de compras até a redação de um ensaio ou uma tese

de doutorado.

1.4 A dimensão social do letramento

Os estudos que priorizam a dimensão social do fenômeno do

letramento argumentam que ele não é um atributo unicamente ou essencialmente

pessoal, mas é, sobretudo, uma prática social: letramento é o que as pessoas

fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e

como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas

sociais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os

indivíduos se envolvem em seu contexto social.

Letramento envolve mais do que meramente ler e escrever. É o uso

dessas habilidades para atender às exigências sociais.

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O letramento é considerado como responsável por produzir resultados

importantes: desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social,

progresso profissional, cidadania.

Essencialmente, esse conjunto de práticas socialmente construídas que

envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, é

responsável por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição

de poder presentes nos contextos sociais. Sua verdadeira natureza depende

fundamentalmente das instituições que propõem e exigem essas práticas. O

que o letramento é depende fundamentalmente de como a leitura e a escrita são

concebidas e praticadas em determinado contexto social; resulta da concepção de

o quê, como, quando, onde e por quê ler e escrever. As conseqüências do

letramento estão intimamente relacionadas a esses processos sociais mais

amplos e, mais do que isso, determinadas por eles.

O letramento adequado aumenta o controle das pessoas sobre suas

vidas e a capacidade de lidar racionalmente com decisões, porque as torna

capazes de identificar, compreender e agir para transformar relações e práticas

sociais em que o poder é desigualmente distribuído.

1.5 Os diferentes estágios do letramento

Reconhecendo os múltiplo significados de letramento, estudos mostram

que pode-se considerar a existência de diversos níveis de letramento.

1.5.1 O primeiro estágio

É a concepção do letramento como um instrumento. Esse estágio se

inicia com as primeiras percepções da criança sobre o uso que a família faz da

prática da leitura e da escrita.

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Estende-se, ainda, à Educação Infantil formal, quando a criança,

estimulada pelo professor que conduz o processo e pelo ambiente, passa a

experimentar nas situações vivenciais escolares a função da língua como

transmissora de idéias. É nessa fase também que se dão os primeiros

experimentos gráficos.

1.5.2 O segundo estágio

É a aquisição do letramento, a aprendizagem das habilidades de ler e

escrever.

Normalmente, este estágio está associado à entrada da criança na

educação formal básica. É preciso, então, criar condições necessárias para que

os alunos possam atuar - desde o primeiro dia de aula - como leitores e

escritores, isso que dizer, tenham múltiplas oportunidades de entrar em contato

com materiais escritos diversos, façam parte de uma comunidade de leitores e

escritores, estabelecendo intercâmbio com os mesmos, tenham a oportunidade de

produzir textos múltiplos e variados.

1.5.3 O terceiro estágio

É a aplicação prática dessas habilidades em atividades significativas para

o aprendiz. Neste estágio se aprimora a formação de usuários competentes,

autônomos e críticos da língua escrita. É nele que os cidadãos são incorporados

à cultura escrita como intérpretes e produtores eficazes dos diversos escritos

produzidos em sociedade, gerando em todos e em cada um uma posição crítica.

Cada estágio é dependente e conseqüente do anterior, cada um é um

componente necessário ao letramento. No entanto, para se avaliar e medir níveis

de letramento é preciso que se estabeleça uma definição geral e amplamente

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aceita. Sem ela, como determinar critérios que estabeleçam a diferença entre

letrado e iletrado, entre diferentes níveis de letramento?

1.6 Avaliando e medindo o letramento: critérios

O letramento é, hoje, um grande problema até mesmo em países

desenvolvidos.

De acordo com estatísticas educacionais, tanto em países desenvolvidos

quanto em países em desenvolvimento, um número alarmante de crianças não

alcança o letramento nos primeiros anos do ensino fundamental.

1.6.1 O letramento em contextos escolares

Na sociedade contemporânea, a instância responsável por promover o

letramento é o sistema escolar. O letramento é, pois, tanto o objetivo quanto o

produto da escolarização.

Para avaliar e medir o nível de letramento dos seus educandos, o

sistema escolar enfrenta ao mesmo tempo condições favoráveis e desfavoráveis.

As condições favoráveis são determinadas pelo fato de que o letramento

é mais um processo que um produto. As escolas podem fazer uso de avaliações

e medições em vários pontos do contínuo que é o letramento, avaliando de

maneira progressiva a aquisição de habilidades, de conhecimentos, de usos

sociais e culturais da leitura e da escrita, evitando, assim, o problema de ter que

escolher um único ponto do contínuo para distinguir um aluno letrado de um

iletrado, uma criança alfabetizada de uma não-alfabetizada.

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No entanto, há também condições desfavoráveis, pois as escolas são

instituições às quais a sociedade delega a responsabilidade de prover às novas

gerações as habilidades, conhecimentos e crenças, valores e atitudes

considerados essenciais à formação de todo e qualquer cidadão.

O sistema escolar estratifica e codifica o conhecimento, selecionando,

dividindo em “partes” o que deve ser aprendido, planejando em quantos períodos

e em que seqüência deve se dar esse aprendizado, avaliando, periodicamente,

em momentos pré-determinados, se cada parte foi suficientemente aprendida.

Dessa forma, as escolas fragmentam e reduzem o múltiplo significado do

letramento: algumas habilidades e práticas de leitura e escrita são selecionadas e,

então, organizadas em grupos, ordenadas e avaliadas periodicamente, através de

um processo de testes e provas tanto padronizados quanto informais.

O conceito de letramento torna-se, assim, fundamentalmente

determinado pelas habilidades e práticas de leitura adquiridas através de uma

escolarização burocraticamente organizada e traduzida nos itens de testes e

provas de leitura e escrita. É um conceito reduzido de letramento, o que

podemos chamar de “letramento escolar”.

Essa estreita relação entre letramento e escolarização controla mais do

que expande o conceito de letramento. O fenômeno complexo e multifacetado

do letramento é reduzido àquelas habilidades e usos sociais que os testes

avaliam e medem. Mas que garantia há de que as habilidades e usos sociais

medidos nesses testes são condizentes com as habilidades de leitura e escrita e

as práticas sociais necessárias fora das paredes da escola?

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1.6.2 Em busca de soluções

A falta de concordância em relação ao que deve ser medido em

processos de letramento pode ser evidenciada comparando-se os quadros

referenciais adotados por dois estudos relativamente recentes: o National

Assessment of Educacion Progress (NAEP), de 1990 e o National Household

Survey Capability Programme (NHS – CP) , DE 1989.

Ambos propõem uma matriz de habilidades de leitura e escrita aplicadas a

diferentes tipos de materiais escritos, mas os critérios de seleção das categorias

de habilidades e dos materiais de leitura selecionados para compor os

instrumentos são bastante diferentes.

Vejamos:

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HABILIDADES DE LEITURA E ESCRITA

NAEP NHS - CP

PROPÓSITO DO ESTUDO

Descrever a natureza e a extensão dos problemas de letramento apresentados por jovens e adultos de um país desenvolvido, onde o conceito de letramento é, basicamente, “o uso pelo indivíduo de informações impressas e escritas para inserir-se na sociedade, para atingir suas metas pessoais e desenvolver seu conhecimento e potencial”.

Orientar programas e políticas de letramento em países em desenvolvimento, onde o letramento ainda é definido como a capacidade elementar de ler e escrever, e o letramento funcional ainda não se configurou como uma categoria distinta.

CATEGORIAS DE HABILIDADE

Uso de habilidades de leitura e escrita, ou seja, o tipo de informação que os indivíduos buscam quando lêem e escrevem.

Processos básicos envolvidos na leitura e na escrita.

CATEGORIAS DE USO DA LEITURA

. conhecimento

. avaliação

. informação específica

. interação social

. aplicação

. forma lingüística em que a informação é apresentada

. decodificação

.compreensão

. escrita

. localização de informações

. domínios em que as habilidades de leitura e escrita são utilizadas

CATEGORIAS DE MATERIAIS

. signo/rótulo

. instruções

. memorando/carta

. formulário

. tabela

. gráfico

. prosa

. índices/referências

. notícias

. esquema ou diagrama

. anúncio

. conta/fatura

. palavras/frases

. prosa

. documentos

É importante observar que essa falta de congruência entre as propostas

distintas de fragmentação do letramento em componentes específicos para fins de

avaliação explica-se pela exigência a que deve atender qualquer instrumento de

avaliação: a necessidade de selecionar, no universo de comportamentos que se

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25

deseja avaliar e medir, um conjunto de comportamentos de que as questões do

instrumento de avaliação devam ser uma amostragem.

1.7 Reflexos e conseqüências do letramento

O letramento associa-se a muitos outros indicadores de desenvolvimento

social e econômico. Correlacionar índices de letramento com indicadores sócio-

econômicos tais como Produto Interno Bruto, índices de mortalidade infantil, de

natalidade, de nutrição, de muitos outros, permite identificar e compreender o

status econômico, social e cultural de um país ou de uma comunidade,

evidenciando, por exemplo, que o analfabetismo e a pobreza andam de mãos

dadas, como ocorre nos países de Terceiro Mundo.

Medir o nível de letramento da população do país é um passo para a

avaliação da eficácia em programas de desenvolvimento e para a obtenção de

dados precisos necessários à formulação de programas futuros no campo

educacional e social.

A estrutura da educação formal e a natureza e qualidade da educação

primária influenciam enormemente o conceito de letramento, seu valor social,

seus usos e funções, bem como sua avaliação e medição; a interpretação de

dados sobre letramento deve sempre levar em conta as características do sistema

escolar.

Assim, é preciso que se formule um conceito do fenômeno do letramento

– e, portanto, estabeleçam-se as condições necessárias para avaliá-lo/medi-lo –

e, a partir daí, construir um quadro preciso de interpretação de dados em função

dos fins específicos em um determinado contexto.

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O letramento é, sem dúvida alguma, pelo menos nas sociedades

modernas, industrializadas, um direito humano absoluto, independente das

condições econômicas e sociais em que um dado grupo humano esteja inserido.

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27

CAPÍTULO 2

ALFABETIZAÇÃO: REPENSANDO CONCEITOS E PRÁTICAS

Por muito tempo, considerou-se que o domínio da base alfabética, ou

seja, a compreensão do código alfabético e a possibilidade do codificar letras em

sons e vice-versa, marcaria o início do contato com a “escrita”, além dessa

competência ser entendida como condição única e suficiente para garantir a

autonomia do sujeito (no caso, o aluno) como leitor e escritor.

A partir das considerações da Psicogênese da língua escrita, tanto o

momento em que se dá o início do processo de alfabetização como a própria

concepção do aprendizado da leitura e da escrita sofrem mudanças profundas:

passa-se a reconhecer que, muito antes de qualquer contato com a escolaridade

formal, a criança já tem vários conhecimentos relacionados à linguagem escrita, e

sua diferenciação da linguagem oral, quanto à forma como essa linguagem deva

ser representada.

“Há crianças que chegam à escola sabendo que a escrita serve para escrever coisas inteligentes, divertidas ou importantes. Essas são as que terminam de alfabetizar-se na escola, mas começaram a alfabetizar-se muito antes, através da possibilidade de entrar em contato, de interagir com a língua escrita.” (FERREIRO, 1993, p. 26).

Além disso, passa-se a considerar a formação de leitores e escritores

como algo mais amplo. A possibilidade de compreender os diversos usos sociais

da língua e de poder expressar-se através da escrita (enquanto usuário) implica

habilidades muito mais complexas do que a simples possibilidade de transpor

para o plano gráfico um conjunto de sons e vice-versa.

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De acordo com essa visão, o trabalho escolar deve levar em

consideração o saber já constituído pelas crianças mesmo antes de sua entrada

na escola, e ampliar seu papel para contribuir na formação dos alunos como

cidadãos letrados.

2.1 O que as crianças sabem

Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1990) dedicaram-se à pesquisa do

pensamento infantil sobre a leitura e a escrita. O extenso trabalho de pesquisa

chegou a diversas conclusões, entre elas:

· A criança não se depara com a linguagem escrita no primeiro dia de

escola. Na realidade em que se movimenta, em diferentes graus, há, de

qualquer forma, muita escrita.

· A avaliação feita da criança deve ser não só da linguagem que lhe é

ensinada na escola, mas também do que a criança sabe sobre a escrita,

independente do que escola ensina.

As autoras se situaram numa perspectiva genética, evolutiva,

considerando o que se sabe sobre o pensamento infantil, a psicologia da

educação, a lingüística e a psicolingüística. Concluíram que o processo pelo

qual as crianças constroem seu próprio sistema de leitura e escrita é universal no

que se refere a escritas alfabéticas, independentes dos métodos escolares

utilizados.

2.1.1 Sobre a escrita

O mundo que rodeia a criança é, também, um mundo gráfico. Elas

vêem objetos reais, representações e signos diversos. O modo tradicional de se

considerar a escrita infantil consiste em prestar atenção nos aspectos gráficos

dessas produções, ignorando os aspectos construtivos.

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“Os aspectos gráficos têm a ver com a qualidade do traço, a distribuição espacial das formas, a orientação predominante (da direita para a esquerda, de cima para baixo), a orientação dos caracteres visuais (inversões, rotações, etc.) Os aspectos construtivos têm a ver com o que se quis representar e os meios utilizados para criar diferenciações entre as representações. (FERREIRO, 2001, p. 18)

A primeira diferenciação que estabelecerão refere-se à distinção entre os

desenhos e outros signos (letras, números). Na realidade, a maioria das

crianças, ao chegar à escola, já estabeleceu diferença entre desenhar e escrever,

mas não todas.

“A distinção entre “desenhar” e “escrever” é de fundamental importância. Ao se desenhar se está no domínio do icônico; as formas dos grafismos importam porque reproduzem a forma dos objetos. Ao se escrever se está fora do icônico: as formas dos grafismos não reproduzem a forma dos objetos, nem sua ordenação espacial reproduz o contorno dos mesmos.” (FERREIRO, 2001, p.20)

2.1.1.1 Etapas de construção da escrita

1. Grafismos primitivos: rabiscos, pseudoletras

As primeiras tentativas infantis de escrever produzem alguns signos que

já não são desenhos, mas tampouco letras convencionais. São grafias que

tentam se parecer com letras, com maior ou menor sucesso.

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A criança logo notará que existem dois tipos de signos gráficos, além dos

desenhos: letras e números. No começo, usam-nos indistintamente, mas aos

poucos se vai fazendo a diferenciação.

“(...) a diferenciação entre as marcas gráficas figurativas e as não figurativas, por um lado, e a constituição da escrita como objeto substituto por outro.” (FERREIRO, 2001, p.19)

A essa altura, a criança já sabe que para escrever são necessários

determinados signos, que não são desenhos nem números. Sobre esses signos,

ela pode ter determinadas idéias adicionais. Essas idéias podem referir-se à

formas das letras – mais ou menos convencionais - , ao alinhamento horizontal do

que se escreve ou, ainda, à orientação direita-esquerda. Esses aspectos

convencionais da escrita vão sendo adquiridos ao escrever, paralelamente à

aprendizagem da escrita. São conhecimentos que se aprendem ao escrever.

Escrita de listas de palavras por quatro crianças de três e quatro anos.(CURTO, 2000, p. 29)

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2. Escritas sem controle de qualidade

Uma vez que as crianças já sabem que para escrever usam signos

especiais, propõem-se o problema de como podem escrever diferentes coisas.

“As crianças exploram, então, critérios que lhes permitem, às vezes, variações sobre o eixo quantitativo (variar a quantidade de letras de uma escrita para outra, para obter escritas diferentes), e, às vezes, sobre o eixo qualitativo (variar o repertório de letras que se utiliza de uma escrita para a outra; variar a posição das mesmas letras sem modificar a quantidade).” (FERREIRO, 2001, p.24)

Em algumas crianças – não em todas -, aparece um momento evolutivo

em que as escritas ocupam toda a largura da página.

Escrita dos nomes dos personagens de um conto por uma criança de quatro anos. (CURTO, 2000, p. 30)

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Ou, pelo contrário, utilizam uma só letra por palavra, embora, às vezes, a

fúria de escrever leve-as a preencher a linha.

Escrita de listas de nomes por uma criança de quatro anos.(CURTO, 2000, p.30)

Nessas duas primeiras etapas, o escrito não está regulado por diferenças ou semelhanças entre os significantes sonoros. 3. Escritas fixas

Com esta bagagem, a criança já pode escrever qualquer coisa, ou seja,

representar mediante signos específicos os nomes das coisas, das pessoas, etc.

Trata-se de uma autêntica escrita, com leis pessoais, não-comunicável, a não ser

com a ajuda da palavra. Mas é que nossa escrita também não é significativa

para ela: escrevemos alguns signos aos seus olhos incompreensíveis, mas que

adquirem significados ao serem lidos para ela.

Nestas primeiras tentativas de escrita, pode ser que a criança ainda não

tenha percebido a diferenciação que nós, adultos, fazemos entre as palavras:

escreve o mesmo conjunto de signos para qualquer coisa. Algumas crianças,

por exemplo, utilizam seu próprio nome para tudo, uma espécie de senha

universal, que serve para qualquer coisa imaginável.

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Escrita de nomes próprios por uma criança de quatro anos.(CURTO, 2000, p.31)

3. Escritas diferenciadas

As escritas das crianças adquirem rapidamente novas diferenciações:

escrevem palavras longas e curtas; letras grandes e pequenas, variando segundo

critérios estabelecidos. Inclusive têm idéias muito pessoais e interessantes

sobre a gramática do escrito.

Podem escrever partindo da idéia de que o número de letras de uma

palavra – ou o tamanho das letras – tem relação com o objeto que representam.

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Escrita de nomes de animais: urso se escreve com mais letras, porque é maior do que uma borboleta (hipótese de uma criança de três anos). (CURTO, 2000, p.32)

Ou, então, neste outro exemplo, duas bolas iguais são escritas da mesma maneira. Mas se a bola é maior, merece mais letras. Esta é a lógica de uma criança de três anos).(CURTO, 2000, p. 32).

Ou, ainda, para escrever o plural, utilizam o recurso de repetir a palavra

tantas vezes quanto o número de objetos ao qual o objeto plural se refere.

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Escrita de “casa” e seu plural “casas” por uma criança de quatro anos. (CURTO, 2000, p.33))

4. Escritas silábicas

Paulatinamente, as crianças vão descobrindo que nossa forma de

escrever é regida por um determinado ritmo. Essa inquietação as leva a inventar

a escrita silábica: cada letra representa um som. A atenção às propriedades

sonoras do significante leva a criança a descobrir que as partes da escrita (suas

letras) podem corresponder a outras tantas partes da palavra escrita. Como a

unidade de som que se percebe é a silaba, cada sílaba é representada por uma

letra ou grafia.

“Sobre o eixo quantitativo, isso se exprime na descoberta de que a quantidade de letras com que se vai escrever uma palavra pode ter correspondência com a quantidade de partes que se reconhece na emissão oral. Essas “partes” da palavra são inicialmente as suas sílabas. Inicia-se assim o período silábico, que evolui até chegar a uma exigência rigorosa: uma sílaba por letra, sem omitir sílabas e sem repetir letras.” (FERREIRO, 2001, p. 25)

No entanto, cada uma no seu ritmo, descobrem que a escrita não deve

funcionar assim. Começam então alguns conflitos cognitivos. Eis alguns:

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· Como escrever os monossílabos, se, convencionalmente, para escrever

uma palavra necessita-se de mais de uma letra?

· Como se escrever palavras com todas as letras iguais?

A A A - batata

· Como se escrever palavras diferentes com as mesmas letras?

B L – bola / B L - bala

· Os nomes próprios dos colegas da sala não são escritos com ausência de

algumas letras.

Os conflitos mencionados vão desestabilizando progressivamente a

hipótese silábica, até que a criança tem coragem suficiente para se

comprometer em um novo processo de construção.

Escrita silábica (vogais com valor sonoro convencional): casa letra vale por uma sílaba. (FERREIRO, 2001, p.28)

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Escrita silábica (letras de forma convencional mas utilizadas sem seu valor sonoro convencional):cada letra vale por uma sílaba. (FERREIRO, 2001, p. 26)

5. Escritas silábico-alfabéticas

Quando se descobre que uma sílaba pode ser escrita com a vogal ou

com a consoante, acaba-se por escrever ambas.

“O período silábico-alfabético marca a transição entre os esquemas prévios em via de serem abandonados e os esquemas futuros em via de serem construídos.” (FERREIRO, 2001, p.27)

A hipótese silábica – uma letra por sílaba – é tão potente e satisfatória

para as crianças que lhes custa muito renunciar a ela.

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Assim sendo, há um certo período em que se combina o critério silábico

com escritas parcialmente alfabéticas.

Escrita silábico - alfabética por uma criança de seis anos.

(FERREIRO, 2001, p. 29)

6. Escritas alfabéticas

É a etapa onde se chega a escrever todas as letras que nós, adultos,

escrevemos.

No entanto, aparecem novos problemas de escrita: as questões

ortográficas, uso de maiúsculas e minúsculas, acentos, separação de palavras e

etc.

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2.1.2 Sobre a leitura

Algumas crianças, ao chegar à escola, já são capazes de representar que

lêem: pegam o livro, põe-no na posição correta, abrem-no, olham-no atentamente,

soltam um discurso num determinado tom de voz – diferente do coloquial –

passando as páginas, etc. O conteúdo do discurso pode ser o mesmo conteúdo

do conto, caso o conheçam bem, ou a explicação das ilustrações ou outro

qualquer.

Supõe-se, diante desse comportamento, que a criança sabe o que é ler,

que teve uma experiência direta e repetida, habitual, de ver os adultos lerem em

voz alta para ela. Essa criança, provavelmente, será um bom leitor.

Cada criança tem um conjunto de idéias sobre o que se pode ler e o que

não pode ler. Idéias que são muito interessantes e surpreendentes: há um

número mínimo de letras para que uma palavra possa ser lida (geralmente três);

números não podem ser lidos porque não são letras, embora se pareçam com

elas; letras iguais repetidas não podem ser lidas porque não formam palavra

alguma; cartões vazios não podem ser lidos. Também as leituras feitas

incidentalmente diante de uma figura com legenda apresentam uma lógica própria.

A leitura anterior à decifração do código, para ser viável, requer,

naturalmente, certas condições determinadas. A presença, por exemplo, da

imagem, permite previsões plausíveis do conteúdo do texto. O contexto e a

situação em que se convida a criança a ler devem ser limitados e precisos, por

exemplo, procurar seu ou de um colega em meio aos nomes da chamada da

classe. Pode-se, ainda, reconhecer ou localizar palavras num texto previamente

memorizado pela criança: uma poesia, canção, etc. Outra estratégia é ler em

companhia de um leitor experimentado (adulto ou colega) que ofereça a

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informação necessária, estimule o reconhecimento de indicadores, esclareça o

conteúdo da palavra, etc.

A elaboração de hipóteses plausíveis acerca do escrito, além de ser uma

potente ferramenta de reflexão para a criança e um estímulo à aprendizagem das

características do escrito, é uma abertura à possibilidade de interpretar, que é, de

fato, um procedimento de leitura fundamental que todos nós, adultos, utilizamos.

Para a criança, nas primeiras etapas de sua aprendizagem, é muito mais

simples escrever do que ler. No entanto, ler serve para controlar e lembrar do

que escrevemos.

A relação entre leitura e decodificação não é direta nem simples.

Decifrar sem compreender é um sintoma de hábitos prejudiciais, em que se

separou o mecânico do compreensivo. Para que isso não ocorra, é preciso que a

criança tenha contato sempre com textos autênticos, cujo significado seja

necessário desvendar com um objetivo claro e explícito.

Ler é compreender um texto. Compreender é um ato cognitivo, ou seja,

o resultado de uma atividade mental. Não podemos compreender se não lemos

de forma ativa: antecipando interpretações, reconhecendo significados,

identificando dúvidas, erros e incompreensões no processo de leitura.

A decodificação também é necessária, mas como um instrumento a

serviço da compreensão.

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2.1.2.1 A importância do trabalho com textos

Escrita e leitura são instrumentos, ferramentas, para ter-se acesso e

produzir a linguagem escrita. Só se adquire o uso específico da linguagem

escrita em contato com textos de uso social e refletindo acerca desses textos. Os

livros de contos, outros livros infantis, cartas, notas escritas, jornais e revistas,

folhetos, cartazes, etc. são modelos autênticos sobre as propriedades da língua

escrita.

As crianças não têm apenas idéias pessoais sobre o sistema de escrita

ou de leitura das palavras. Elas dispõem, também, de uma grande quantidade de

informações sobre a estrutura da linguagem escrita, de suas diferenças em

relação à linguagem oral, da sintaxe e estrutura textual própria dos diferentes tipos

de texto. Este conhecimento depende evidentemente da experiência prévia e das

condições pessoais de cada um.

Ao chegarem à escola, as crianças não podem ler por si mesmas os

textos com os quais não tiveram contato anteriormente, mas podem conhecer

suas características pela leitura que o adulto lhes faz. Esse conhecimento é

aprofundado e internalizado na situação de escrever textos sociais.

Trabalhando com textos de uso social, as crianças aprendem a

linguagem escrita verdadeira, tal como é, com todas as suas características, com

a sua complexidade léxica, morfológica, sintática e semântica. Em contato com

textos corretos e completos, as crianças conhecem, compreendem e aprendem a

escrever frases subordinadas complexas, consecutivas, causais; figuras literárias,

jogos de palavras, recursos estilísticos, etc. Naturalmente, necessitam de ajuda, e

seu grau de compreensão ou capacidade de produção é muito diverso, mas isso

também acontece com os adultos.

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CAPÍTULO 3

ENSINAR E LER E A ESCREVER

3.1 Bases Psicopedagógicas

As crianças aprendem a falar “espontaneamente” por mera imersão num

universo oral, familiar. Não se requer nenhum método especial de ensino para

aprender a falar, com a única condição de que não haja obstáculos auditivos ou

físicos.

De fato, as crianças, em contato com a linguagem escrita, aprendem,

também, muitos elementos fundamentais sobre a leitura e a escrita. No entanto,

não se aprende espontaneamente a ler e escrever. Ninguém o faz sem que lhe

seja ensinado intencional e explicitamente. Na história da humanidade, por outro

lado, o surgimento da linguagem escrita é um acontecimento tardio.

“ Atrás disso há um sujeito cognoscente, alguém que pensa, que constrói interpretações, que age sobre o real para fazê-lo seu.” (FERREIRO, 2001, p.41)

Uma das funções da língua escrita é, justamente, a função de alfabetizar

a população, ou seja, possibilitar o acesso à cultura escrita. Isso significa que o

saber espontâneo infantil – embora surpreendente – não basta. Em primeiro

lugar, nem todos os alunos dispõem das mesmas idéias prévias em relação à

linguagem escrita. Tais as idéias nascem da reflexão sobre a experiência. Em

muitos lares, não se lêem jornais, livros ou revistas; não se escreve. E, de

qualquer forma, a cultura escrita requer maior informação do que a que

habitualmente é oferecida em casa. Isso cabe à escola oferecer.

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Para ter-se acesso ao uso do sistema alfabético próprio de nosso idioma,

necessita-se de ajuda. Muitos conceitos devem ser revisados, discutidos e

superados. Por outro lado, a cultura escrita supõe uma grande quantidade de

conceitos e conhecimentos que é preciso transmitir à criança, para pô-la ao seu

alcance.

A criança pode elaborar aproximações acerca do processo de ler e

escrever, embora não possa observá-lo, já que é uma atividade interna (mental)

do leitor ou escritor. No entanto, requer um ensino de procedimentos de leitura e

de escrita, antes e depois de poder decifrar e transcrever, a fim de poder construir

os significados culturais que se transmitem pela linguagem e desenvolver as

capacidades comunicativas que requer o uso correto da linguagem.

Aprender a comunicar-se por meio da linguagem escrita também não é

uma necessidade vital, nem intrínseca do ser humano, ou seja, não se adquire

com a maturidade. Requer uma motivação e algumas atitudes positivas para com

a aprendizagem em geral e, especificamente, para a aprendizagem desta mesma

linguagem escrita, que devem ser ensinadas e vividas num contexto especial.

Ensinar a ler e a escrever é a tarefa da escola: o que ela vem fazendo ao

longo dos séculos. No entanto, o pensamento infantil sobre a escrita, tal como o

descrevemos, gera uma grande quantidade de questões sobre os conteúdos

escolares e os modos de se ensinar a linguagem escrita.

3.2 Quando a criança não aprende a ler e a escrever “Quando a criança não está aprendendo a ler e a escrever, é necessário olhar em diferentes direções.” (SOUZA LIMA, 2001, p. 31)

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A escrita é um sistema que revela a capacidade humana de simbolizar.

É, pois, um produto da evolução histórico-cultural da humanidade, um sistema

organizado.

Este é um primeiro ponto a ser considerado quando se pretende entender

porque uma criança não aprende a ler e escrever. Outro ponto a ser considerado

é que hoje já se sabe que no aspecto biológico há uma grande complexidade na

forma como o cérebro processa a linguagem, com áreas de especialização para

as diferentes dimensões da linguagem (fonológico-ortográfica, léxica, sintática,

semântica, prosódia).

A escrita engloba dois tipos de atividades: ler e escrever, ambas

envolvem aspectos distintos, tanto que é possível ler uma língua e não ser capaz

de escrevê-la.

“Sabe-se que o indivíduo que fala uma língua não sabe lê-la ou escrevê-la a menos que passe por um processo de aprendizagem específico para cada uma destas atividades: a leitura e a escrita.” (SOUZA LIMA, 2002, p. 4)

No entanto, na maioria das vezes, responsabiliza-se a criança pela não

aprendizagem, ou então a família. Alguns especialistas tendem a culpar a escola

– na maior parte das vezes quase exclusivamente o professor – pelo fracasso.

Faz-se, então, necessário examinar a dinâmica interacional educando-

educador, mediada pelo conhecimento, a partir das experiências culturais de

ambos. Embora a criança seja sujeito de seu processo de aprendizagem, ela

depende igualmente da participação ativa do adulto, principalmente no que se

refere à aquisição de determinados conhecimentos, como sistemas simbólicos,

conceitos das várias áreas de conhecimento, metodologias de estudo, de

pesquisa, atividades de organização de informações.

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“...ato de conhecimento e ato criador, o processo de alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito. O fato de ele necessitar da ajuda do educador, como ocorre em qualquer relação pedagógica, não significa dever a ajuda do educador anular sua criatividade e a sua responsabilidade na construção de sua linguagem escrita e na leitura desta linguagem.” (FREIRE, 1988, p.19)

As práticas pedagógicas, as dinâmicas intra-escolares, a organização do

tempo e do espaço na escola, o contexto macro em que se insere a instituição

escolar são alguns dos fatores que podem exercer influência direta sobre o mau

desempenho escolar de algumas crianças na alfabetização. É indispensável

avaliar sempre.

“Não é possível praticar sem avaliar a prática. Avaliar a prática é analisar o que se faz, comparando os resultados obtidos com as finalidades que procuramos alcançar com a prática. A avaliação da prática revela acertos, erros e imprecisões. A avaliação corrige e prática, melhora a prática, aumenta nossa eficiência. O trabalho de avaliar a prática jamais deixa de acompanhá-la.” (FREIRE, 1988, p.77)

Além disso, qualquer ser humano, de qualquer idade, pode desenvolver

uma experiência emocional negativa em situação de escrita. Escrever, para

estas pessoas, passa a ser uma situação difícil, penosa, que revela para si e para

o mundo uma incapacidade pessoal. Sendo assim, o indivíduo procura “fugir” da

situação de escrita.

O indivíduo precisa ser ajudado a modificar essa postura diante da

escrita, mas isso só se dará por completo quando ele se vir efetivamente

“realizando” o ato de escrever, vivendo experiências onde a escrita emerja com

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outro significado. A “auto-estima” do aluno se modifica quando ele sente que

aprendeu. Ter consciência de que aprendeu algo é o que muda a baixa auto-

estima de qualquer pessoa.

3.3 O papel do professor

Para que a aprendizagem da leitura e da escrita seja, de fato,

significativa, é necessário construir o pensamento sobre a linguagem escrita: as

idéias das crianças e as idéias do professor sobre o que é aprender e ensinar, e

sobre o que é ler e escrever, compreender e produzir a linguagem escrita.

Dar oportunidade para que as crianças pensem significa partir de suas

idéias, reconhecer sua lógica, para então trazer-lhes informação nova que as

ajude a pensar mais e melhor.

Para isso, a idéia que cada professor tem sobre como as crianças

aprendem é muito importante. Não se trata, pois, de encher um pote vazio,

recheá-lo de informações soltas. Não é recepção passiva, mas atividade mental,

esforço, reconstrução pessoal, debate, controvérsia, interação.

Aprender é ampliar as fronteiras do pensamento. Ensinar não é apenas

transmitir informações a um ouvinte. É ajudá-lo a transformar suas idéias. Para

isso, é preciso conhecê-lo, escutá-lo atentamente, compreender seu ponto-de-

vista e escolher a ajuda certa de que necessita para avançar, nem mais nem

menos. Uma aprendizagem significativa é aquela que se incorpora a um

pensamento e o modifica para melhorá-lo.

“O professor deve trabalhar com as diferentes competências que encontra em classe, propondo situações em que duplas ou grupos de crianças tenham funções diferenciadas, segundo suas

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possibilidades.” (CAVALCANTI, 1997, p. 92)

O relacionamento entre professor e aluno também tem importância

decisiva no êxito do processo, pois o educando precisa sentir no educador um

aliado, aquele que lhe mostra suas possibilidades, não como o detentor único do

saber, mas o facilitador daquele processo. Assim, também, o professor deve

acreditar que o seu aluno tem plena condição de aprender. Essa confiança dará

ao aluno auto-estima para buscar mais, certo de que pode aprender.

“O apreço ou aceitação do facilitador em relação ao aprendiz é uma expressão de confiança e crédito na capacidade do homem como ser vivo.” (ROGERS, 1978, p.115) “... a facilitação da aprendizagem significativa baseia-se em certas qualidades de comportamento que ocorrem no relacionamento pessoal entre o facilitador e o aprendiz.” (ROGERS, 1978, p. 111)

As crianças aprendem reflexivamente, porque alguém as põe em

situação de pensar. Uma concepção moderna da tarefa do professor, tal como

se coloca nas novas propostas educativas, requer não apenas aplicar certas

fórmulas preestabelecidas, como também o exercício profissional competente, que

inclui autonomia, capacidade de decisão e criatividade. Os materiais oferecem

idéias, experiências, mas não receitas. É preciso ousadia.

“Nenhuma prática pedagógica é neutra. Todas estão apoiadas em certo modo de conhecer o processo de aprendizagem. São provavelmente essas práticas (mais do que os métodos em si) que têm efeitos mais duráveis a longo prazo, no domínio da leitura e da escrita como em todos os outros.” (FERREIRO, 2001, p. 31)

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Para que os alunos aprendam reflexivamente, o professor precisa ter

bem claro o que as crianças devem aprender. Precisa organizar atividades

abertas, com sentido, que permitam a reflexão, que possa, permitir a participação

de todos os alunos, apesar da sua diversidade. Precisa oferecer aos alunos

subsídios necessários e compreender seu pensamento, partindo dele para

avançar. Estimular, apoiar, fazer com que os alunos confiem em si mesmos,

avaliar com justiça seu esforço.

“...facilitar a mudança e a aprendizagem. O único homem que se educa é aquele que aprendeu como se adaptar e mudar; que se capacitou de que nenhum conhecimento é seguro, que somente o processo de buscar conhecimento oferece uma base de segurança.” (ROGERS, 1978, p. 110)

O professor deve saber muito e estar em dia quanto aos temas do seu

ofício. É preciso saber muito, mas, acima de tudo, aprender muito. Aprender da

teoria, mas também refletir, discutir e analisar o que acontece a cada dia em aula.

E experimentar, inovar. É importante aprender a ensinar.

“... os professores lêem pouco, escrevem menos ainda e estão mal alfabetizados para abordar a diversidade de estilos da língua escrita. Na realidade, eles são o produto das más concepções de alfabetização (...). É muito difícil que alguém que não lê mais do que o absolutamente indispensável possa transmitir “prazer pela leitura”; que alguém que evite escrever, possa transmitir o interesse pela construção da língua escrita (...).” (FERREIRO, 1993, p. 48)

Além do conhecimento das crianças em sala de aula, é importante

conhecer como cada uma delas se movimenta em seu papel de aluno. Que

idéias têm, quais devem mudar, que procedimentos e estratégias utilizam para

aprender, para escrever, para ler e quais devem aprender para avançar. Que

valores e atitudes as movimentam e como orientá-las de forma a ajudá-las a se

desenvolver.

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O professor deve organizar suas aulas não apenas para que os alunos o

escutem, mas também para o que os alunos dizem; para que os alunos discutam

entre si e cooperem na resolução de problemas; para que tenham maior

autonomia em sua atividade.

As atividades devem ser organizadas de modo a que tenham pleno

sentido para a criança, conectando-a numa rede ampla de relações.Isto favorece

a funcionalidade e a relação da linguagem da escola com o mundo social:

escrever a alguém de uma determinada forma, para conseguir um objetivo claro

para o aluno.

O professor precisa avaliar no aluno suas características e necessidades

concretas. Deve considerar o que a criança é capaz de fazer por sua conta e o

que é capaz de fazer com ajuda. E, a partir daí, decidir sobre o próximo passo.

Deve considerar interesses, motivações e curiosidades que movem seus alunos.

“A transformação destas práticas é que é realmente difícil, já que obriga a redefinir o papel do professor e a dinâmica das relações sociais dentro e fora da sala de aula.” (FERREIRO, 2001, p. 39)

E, principalmente, o professor não deve perder de vista a importância do

trabalho em equipe: professores, coordenadores pedagógicos, supervisores e

direção. A aprendizagem compartilhada e o trabalho cooperativo são mais

eficientes para assegurar maior qualidade e resultados mais sólidos.

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3.4 Implicações sócio-político-filosóficas da alfabetização

Várias foram as mudanças desencadeadas no contexto social mundial –

e no brasileiro, especificamente – a partir da década de 80. A escola, enquanto

instituição oficial, deveria, pois, estar também em constante evolução, atualizando-

se continuamente, a fim de que problemas crônicos como a evasão escolar e a

repetência (mecanismos encobertos de discriminação que dificultam a

alfabetização daqueles setores sociais que mais necessitam da escola para se

alfabetizar) e a produção de massas analfabetas embaladas por medidas

demagógicas como aprovações automáticas incondicionais e infundadas

pudessem ser justificados.

O maior problema em âmbito geral que enfrenta a instituição escola é a

alfabetização, a mais básica de todas as necessidades de aprendizagem, pois é

ela que dá encaminhamento a todas as demais produções de saber.

“E, diante do desacerto do mundo, (...) quais as condições sócio-culturais e escolares para a distribuição igualitária dos meios de produção de sentido?” (BARBOSA, 1994, p.76)

Há vários fatores que influenciam diretamente no êxito dos processos de

alfabetização: fatores sociais, políticos e filosóficos.

É fato que a escola sozinha já não é capaz de mover-se contra os

grandes problemas que a esmagam paulatinamente: as salas de aula

superlotadas, a carência de serviços de apoio, os entraves burocráticos que

impedem, por exemplo, que um aluno possa estar inserido num grupo onde

produza mais e melhor, e os próprios fatores institucionais internos (pessoal,

ambiente, políticas educacionais). Há que se considerar, ainda, que a escola não

está isolada, mas inserida num determinado de tempo e espaço, onde os valores

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estão em constante transformação, onde seu próprio papel enquanto instituição

sofreu grandes mudanças, onde seu público-alvo já não é o mesmo de há vinte

anos.

Por outro lado, a escola – como instituição – se converteu em guardiã

desse objeto social que é a língua escrita, esquecendo-se de que a escrita é

importante na escola porque é importante fora dela, e não o inverso. Ora, se a

escola não gera essa aprendizagem, não pode justificar-se como instituição social.

“... a escola... operou uma transmutação da escrita. Transformou-a de objeto social em objeto exclusivamente escolar, ocultando ao mesmo tempo suas funções extra-escolares: precisamente aquelas que historicamente deram origem à criação das representações escritas da linguagem.” (FERREIRO, 1993, p. 20)

Celeiro, como deveria ser, de pensadores e agentes de profunda

transformação social, a escola deveria estar atenta às questões que entravam seu

bom desempenho. Para que, diante de tantos problemas, ainda se continue

acreditando na escola como único caminho para as mudanças sociais que gerem

uma sociedade mais justa e igualitária se faz necessário atenção à sua qualidade,

especialmente à qualidade na alfabetização.

E o que, afinal, se pode designar por “qualidade” no domínio da

alfabetização? Certamente, não será alcançando-se apenas um nível “técnico

rudimentar”, ou seja, apenas a possibilidade de decodificar textos breves e

escrever algumas palavras. Sabe-se, hoje, que uma alfabetização de qualidade

inclui a compreensão do modo de representação da linguagem que corresponde

ao sistema alfabético de escrita, bem como as funções sociais que determinam

diferenças na organização da língua escrita, e, conseqüentemente, a leitura

compreensiva de textos que correspondem a diferentes registros da língua escrita,

além, é claro, da produção desses mesmos textos.

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“É neste terreno comum, nessa identidade de opções políticas, com prováveis e salutares divergências, que minha prática me vai tornando um companheiro dos nacionais e não um puro aplicador de fórmulas impossivelmente neutras.” (FREIRE, 1988, p. 38)

O exercício profissional é ainda um exercício de cidadania. Por isso,

todos que direta ou indiretamente atuam junto aos grupos de alfabetizandos, de

qualquer idade, precisam ter consciência de que as conseqüências de uma

alfabetização mecânica podem ser permanentemente desastrosas, na medida em

que pode formar cidadãos incapazes de perceber o seu entorno e de atuar sobre

ele.

“O mito da neutralidade da educação, que leva à negação da natureza política do processo educativo e tomá-lo como um quefazer puro, em que nos engajamos a serviço da humanidade entendida como uma abstração, é ponto de partida para compreendermos as diferenças fundamentais entre uma prática ingênua, uma prática “astuta” e uma prática crítica.” (FREIRE, 1988, p.23)

Espera-se, portanto, que esses profissionais, mesmo tendo consciência

de que nem todos aqueles que ali se encontram em busca de enxergar um pouco

mais chegarão às universidades, saibam da importância do domínio de cada

pessoa sobre o seu próprio caminhar, formando indivíduos autônomos na sua

forma de aprender e produtores de saber em qualquer que seja a área que

venham a atuar.

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3.4.1 A alfabetização enquanto leitura de mundo

A compreensão crítica do ato de ler não se esgota na decodificação pura

da palavra escrita ou da linguagem escrita. A leitura do mundo é anterior à leitura

da palavra, por isso a leitura da palavra deve ser uma continuidade dessa leitura

de mundo. A compreensão do texto como leitura crítica não pode prescindir da

percepção as relações entre texto e contexto.

“Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele

contexto se encarnavam no canto dos pássaros –o

do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das

árvores sopradas por fortes ventanias que

acompanhavam tempestades, trovões,

relâmpagos; as águas da chuva brincando na

geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele

contexto se encarnavam também no assobio do

vento, na nuvens do céu, nas suas cores, nos seus

movimentos; na cor das folhagens, na forma das

folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos

jasmins - , no corpo das árvores, na casca dos

frutos. Na tonalidade diferente das cores de um

mesmo fruto em momentos distintos: o verde da

manga-espada verde, o verde da manga-espada

inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga

amadurecendo, as pintas negras da manga além

de madura. A relação entre estas cores, o

desenvolvimento do fruto, a sua resistência à

nossa manipulação e o seu gosto. Foi nesse

tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo

fazer, aprendi a significação da ação de amolegar”.

(FREIRE, 1988, p.13)

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O mundo moderno, apesar de sua acelerada configuração eletrônica, vem

igualmente acompanhado por uma explosão de comunicação escrita. Desse

modo, o texto passou a se interpor entre o indivíduo e as suas aspirações, entre o

indivíduo e sua efetiva participação social. E, diante da profusão de material

impresso, uma modalidade de uso da escrita - mais eficaz e dinâmica - se firmou,

tornando cada vez mais obsoleta a técnica de leitura proporcionada pela

concepção de alfabetização veiculada pela escola. Esse modo de usar a escrita

continuaria, então, sendo exclusividade e privilégio de poucos: os leitores.

De acordo com José Juvêncio Barbosa (1994), a língua escrita é um

objeto de conhecimento para o alfabetizado, para o leitor ela é objeto de uso.

Nesse processo – no ato de ler – o leitor constrói o significado do texto escrito, é

um fabricante de sentido. Sendo assim, aprender a ler é aprender a fabricar

sentidos a partir do estímulo da palavra impressa: ler é um meio de produção de

sentido.

“Enquanto o alfabetizado tem o ouvido atento, o leitor tem olhos em movimento; enquanto o alfabetizado sabe o que procura, o leitor prevê o que vai ler; enquanto o alfabetizado busca o rumor da língua, o leitor contempla o silêncio do texto escrito; enquanto o alfabetizado aprende o suporte sobre o qual se realiza o ato de ler (a língua escrita), o leitor constrói estratégias de leitura.” (BARBOSA, 1994, p. 75)

Assim sendo, o que fundamentalmente se espera de um indivíduo

alfabetizado é que seja verdadeiramente leitor de mundo, de tudo que o cerca,

escritos ou símbolos e que se aproprie deste conhecimento, utilizando-o para

engajar-se socialmente.

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Conclusão

A transformação significativa da visão educacional no Brasil,

especialmente nas séries iniciais, nos últimos quinze anos é crucial importância se

quisermos retomar o papel que a escola outrora possuiu.

As mudanças estruturais da sociedade, da função da família e da postura

do educando acarretaram graves crises na instituição escola, que durante muito

tempo se viu estagnada, acorrentada a pressupostos metodológicos que não mais

supriam as necessidades decorrentes da evolução diária do mundo moderno. A

escola vem se submetendo, ainda, a reformas filosóficas, pois a alteração no

papel da família levou-a a adotar posturas antes atributos domésticos.

A inquietação gerada pelos fracassos corroborados pela escola levou

estudiosos a buscarem explicações e soluções, tentando compreender de que

forma o educando estrutura seu pensamento e como o educador pode colaborar

nesse processo.

A alfabetização hoje é vista como uma prática social que visa atender às

exigências sociais. Isto posto, o indivíduo, mais que alfabetizado, letrado,

alcança sua plena condição de cidadania, atingindo maior desenvolvimento

cognitivo, com conseqüente possibilidade de mobilidade social e progresso

profissional. Esta é, de fato, a verdadeira escolarização, a escolarização efetiva,

não demagógica. Uma escolarização onde o indivíduo possa desenvolver suas

potencialidades, e que o insira num meio onde possa efetivamente participar de

modo consciente, refletindo, criticando, colaborando com o todo.

A educação como um todo – e particularmente a alfabetização – é o

grande alicerce para a transformação da sociedade, pois o crescimento individual

por ela desencadeado, que leva à transformação das idéias de cada um é que

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gera, em maior escala, as mudanças necessárias, com reflexos em todos os

setores sociais.

Por certo, todas as transformações e descobertas no campo dos estudos

sobre o pensamento humano e sua efetiva implementação nas escolas passam

pelas mãos dos educadores. Por isso, uma prática sócio-pedagógica engajada,

comprometida com os interesses e necessidades dos educandos é imprescindível,

pois, ao mesmo tempo que reforça as concepções sócio-político-filosóficas da

educação, filtra decisões demagógicas e determinações que mascaram para o

educando suas reais necessidades e seus efetivos direitos.

“Uma das necessidades mais importantes do homem novo e da mulher nova é a certeza que têm de que não podem parar de caminhar e a certeza de que o novo fica velho se não se renovar. A educação das crianças, dos jovens e dos adultos tem uma importância muito grande na formação do homem novo e da mulher nova. Ela tem de ser uma educação nova também, que estamos procurando pôr em prática de acordo com as nossas possibilidades. Uma educação completamente diferente da educação colonial. Uma educação pelo trabalho, que estimule a colaboração, não a competição. Uma educação que dê valor à ajuda mútua e não ao individualismo, que desenvolva o espírito crítico e a criatividade, não a passividade. Uma educação que se fundamente na unidade entre a prática e a teoria, entre o trabalho manual e o trabalho intelectual e que, por isso, incentive os educandos a pensar certo. Uma educação que não favoreça a mentira, as idéias falsas, a indisciplina. Uma educação política, tão política quanto qualquer outra educação, mas que não tenta passar por neutra. Ao proclamar que não é neutra, que a neutralidade é impossível, afirma que a sua política é a dos interesses do nosso povo.” (FREIRE, 1978, p.79-80)

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É certo que todo esse processo, no Brasil, ainda se encontra em estado

embrionário. Mas a esperança do crescimento desse embrião – sonho de Anísio

Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, entre outros - é que promoverá a verdadeira

construção de um país.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AZEVEDO, Maria Amélia e MARQUES, Maria Lúcia.(Orgs)

Alfabetização hoje. São Paulo. Editora Cortez. 1994.

CAVALCANTI, Zélia. (coordenação) Alfabetizando. Porto Alegre.

Editora ArtMed. 1997.

CURTO, Lluís Maruny e outros. Escrever e ler. Porto Alegre. Editora

ArtMed. 2000.

FERREIRO, Emília. Com todas as letras. São Paulo. Editora Cortez.

1993.

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo.

Editora Cortez. 2001.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo. Editora

Cortez. 1988.

OLIVEIRA, Matha Kohl. Vigotsky: aprendizado e desenvolvimento, um

processo sócio-histórico. Rio de Janeiro. Editora Scipione. 1996.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo

Horizonte. Editora Autêntica. 2000.

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BIBLIOGRAFIA CITADA

CAVALCANTI, Zélia. (coordenação) Alfabetizando. Porto Alegre.

Editora ArtMed. 1997.

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo.

Editora Cortez. 2001.

FERREIRO, Emilia e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua

escrita. Porto Alegre. Editora ArtMed. 1991.

ROGERS, Carl. Liberdade para aprender. Belo Horizonte. Editora

Interlivros. 1978

SMOLKA, Ana Luíza. Leitura na pré-escola e séries iniciais – uma

reflexão em três momentos. São Paulo. Unicamp. 1992.

SOARES Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo

Horizonte. Editora Autêntica. 2000.

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ÍNDICE

Folha do rosto 1

Agradecimentos 2

Dedicatória 3

Epígrafe 4

Resumo 5

Metodologia 6

Sumário 7

Introdução 8

1. Letramento:considerações gerais 11

1.1 Conceito 12

1.2 O letramento e seus reflexos na leitura e na escrita 14

1.3 A dimensão individual do letramento 16

1.3.1 Na leitura 16

1.3.2 Na escrita 17

1.4 A dimensão social do letramento 17

1.5 Os diferentes estágios do letramento 19

1.5.1 O primeiro estágio 19

1.5.2 O segundo estágio 19

1.5.3 O terceiro estágio 20

1.6 Avaliando e medindo o letramento: critérios 21

1.6.1O letramento em contextos escolares 21

1.6.2 Buscando soluções 22

1.7 Reflexos e conseqüências do letramento 24

2. Alfabetização: repensando conceitos e práticas 27

2.1 O que as crianças sabem 28

2.1.1 Sobre a escrita 28

2.1.1.1 Etapas de construção da escrita 29

2.1.2 Sobre a Leitura 39

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2.1.1.2 A importância do trabalho com textos 41

3. Ensinar a ler e escrever 42

3.1 Bases Psicopedagógicas 42

3.2 Quando a criança não aprende a ler e a escrever 43

3.3 O papel do professor 46

3.4 Implicações sócio-político-filosóficas da alfabetização 50

3.4.1 A leitura do mundo 53

Conclusão 55

Bibliografia consultada 58

Bibliografia citada 59

Índice 60

Anexos 62

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ANEXOS

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UNIVERDIDADE CANDIDO MENDES

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO DIRETORIA DE PROJETOS ESPECIAIS

PROJETO “A VEZ DO MESTRE”

LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO

por

Maria de Fátima Henriques Pereira

Avaliado por: ____________________________________________

____________________________________________ ____________________________________________ Conceito