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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “ LATO SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE A GESTÃO ESCOLAR E O DESAFIO DA INDISCIPLINA
Por : Cristiane de Sá Machado
Orientadora Professora: Maria Esther de Araújo Oliveira
Rio de Janeiro 2010
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃP “ LATO SENSU”
PROJETO A VEZ DO MESTRE
A GESTÃO ESCOLAR E O DESAFIO DA INDISCIPLINA
Apresentação de monografia à Universidade Candido Mendes como requisito parcial para obtenção do grau de especialista em Admi- nistração e Supervisão Escolar. Por: Cristiane de Sá Machado
Rio de Janeiro 2010
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RESUMO
O presente estudo trata das relações entre a gestão escolar e os desafios
impostos pela indisciplina nos dias que correm. Buscando amparo no
pensamento de diversos teóricos que se dedicam à questão da indisciplina,
pretendeu-se realizar um trabalho que estabelecesse bases de pensamento e
teoria que fornecessem subsídios para uma ação corretiva por parte dos
gestores.
Desta forma, buscou-se uma contextualização do problema da indisciplina por
meio da investigação dos novos sujeitos da educação , no mudo hodierno: o
alunos contemporâneos. Por último, tratou-se de estudar, brevemente, a
mediação de conflitos como alternativa de ação proposta aos gestores para
lidar com as dificuldades cotidianas.
Palavras-chave :
Indisciplina – gestão escolar – falta de limites – mediação de conflitos- novos
sujeitos
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SUMÁRIO METODOLOGIA............................................................................................................05
INTRODUÇÃO .............................................................................................................07
1. A VIOLÊNCIA CONTEMPORÂNEA E A ESCOLA.............................................09
2. COMPREENDENDO A INDISCIPLINA E A FALTA DE LIMITES E
DISCUTINDO SUAS CAUSAS E EFEITOS..............................................................18
3. OS NOVOS SUJEITOS DA EDUCAÇÃO E O MUNDO DE QUE VIERAM.....28
4. A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO ESTRATÉGIA DE AÇÃO DOS
GESTORES EDUCACIONAIS....................................................................................38
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................42
NOTAS ---------------------------------------------------------------------------------------------
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ----------------------------------------------------------
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METODOLOGIA
A Metodologia utilizada no breve estudo que ora se apresenta teve como
objetivo buscar uma base teórica e de reflexão sobre a grave questão da
indisciplina na escola e os desafios impostos por ela ao gestor escolar. Assim o
trabalho em questão configura-se como uma pesquisa de caráter bibliográfico.
O motivo que levou à escolha do tema e à realização da pesquisa diz
respeito ao destaque que a indisciplina tem alcançado como principal obstáculo
a um efetivo exercício das possibilidades pedagógicas e educacionais do
privado. , por parte das instituições de ensino, tanto do setor público, quanto do
privado.
Primeiramente, buscamos caracterizar um problema grave que afeta as
escolas e parece generalizado na vida escolar, em todos os lugares, bem como
está profundamente implicado com a indisciplina, hoje em dia, a violência. Que
aspectos da violência influenciam as relações que se estabelecem na escola e
como lidar com a questão são os motes do capítulo.
Num segundo momento adentramos mais especificamente na questão da
indisciplina nas escolas, investigando suas possíveis causas e suas
conseqüências.
O terceiro capítulo intenta realizar uma investigação acerca da formação do
mundo contemporâneo e da criação dos novos sujeitos da educação. Para
tanto, buscamos apoio, para a caracterização histórica e social do período em
reflexões de historiadores e cientistas sociais como Hobsbawn e Magnoli. Para
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a caracterização dos efeitos das transformações sociais e políticas sobre as
relações e os indivíduos nos utilizamos das reflexões formuladas por Bauman.
O capítulo de encerramento do estudo trata de uma possível alternativa de
ação e combate aos efeitos nefastos da indisciplina, que pode se utilizada
pelos gestores educacionais, que seria a mediação de conflitos. Não se trata
de propor uma panacéia, mas antes de buscar possíveis opções para lidar com
os problemas causados pela indisciplina no contexto escolar.
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INTRODUÇÃO
Quando pretendemos refletir sobre as graves questões que permeiam a vida escolar
hoje, na sociedade brasileira, não devemos esquecer que a escola, objeto da nossa
atenção , sofre reflexos do meio em que está inserida. Como a proposta do presente
estudo se concentra na questão da ( falta de ) disciplina e limites e a violência no
âmbito do cotidiano escolar, podemos intuir que tais problemas constituem ecos e
repercussões dos conflitos da família e do meio social a que pertencem.
Na escola, a indisciplina está presente nas suas formas mais contemporâneas de
manifestação, mas também, como pretendemos demonstrar, é elemento antigo das
relações que se dão na instituição. Primeiramente há que se definir a que indisciplina
nos referimos, que é aquela produzida nos meandros da relação professor/aluno, hoje
passível de confrontamento físico, agressão e até morte. Buscar compreender em que
momento houve a passagem de uma pretensa dominação a um atrito de tal relevância,
que inclui o perigo físico, é importante no sentido de produzir conhecimentos e
reflexões que embasem ações corretivas. Como os profissionais da educação,
professores, pedagogos,e,principalmente, gestores, devem lidar com as novas
possibilidades de confronto deve se tornar objeto prioritário de atenção.
No trabalho cotidiano em sala de aula é possível presenciar, diariamente, cenas de
indisciplina das crianças e adolescentes e questionamentos às regras da escola. Algumas
escolas aparentam ter como princípio educacional o lema “é proibido proibir” e os
jovens tornam-se verdadeiras “donos”de suas atitudes deixando os professores com
poucos recursos para impor sua autoridade.
A escola enfrenta hoje em dia grandes dificuldades para estabelecer normas e regras
aos jovens, revelando ser uma instituição em crise , gerada pela negação ao diálogo e a
impossibilidade de alcançar uma integração entre jovens e adultos no seio da sociedade.
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Como o gestor escolar atua, no sentido de minorar os efeitos da indisciplina no bom
andamento do cotidiano escolar ? A gestão escolar deve exercer uma liderança capaz de
contribuir para a criação de um ambiente harmônico, mesmo num contexto atual de
conflitos geracionais, violência, novas configurações familiares, drogas e outras graves
questões contemporâneas.
Todos os tópicos apresentados acima serão discutidos nos três capítulos que compõem
o estudo, com auxílio de uma base teórica que sirva de pilar para as nossas reflexões. O
primeiro capítulo versará sobre a apreensão teórica da questão da indisciplina e da falta
de limites. O segundo capítulo tratará das alternativas, das possíveis estratégias para lidar
com o problema, da parte dos profissionais da educação e, finalmente, o terceiro
capítulo, que abordará a visão do tema por alguns pensadores que se dedicam ao assunto.
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PRIMEIRO CAPÍTULO
A VIOLÊNCIA CONTEMPORÂNEA E A ESCOLA
A violência e suas formas contemporâneas de manifestação freqüentam as
paginas dos jornais, as conversas nos corredores, as palavras das autoridades.
Aquela que chama uma considerável atenção, tanto por parte da mídia, quanto
por parte do publico em geral, e a violência dentro da escola. Comum e parece
que aceitável nas escolas públicas, atinge proporções perigosas nas escolas
privadas. Na esfera pública o problema é social, professores mal pagos,
famílias pobres e desestruturadas, escolas de má qualidade, tráfico de drogas,
gravidez na adolescência. Nas escolas particulares o discurso sobre a violência
aponta a crise da autoridade de pais e professores, e a falta de limites impostos
ao jovens como as causas da violência no âmbito escolar.
Se o fenômeno é o mesmo, por que o discurso de pais, professores e
autoridades aponta determinantes diversos para a violência nas esferas publica e
privada Esta é apenas uma das visões estereotipadas ou dos discursos vazios
sobre o tema. O que se verifica, na verdade, é que as relações vigentes dentro
das escolas não seguem mais os padrões estabelecidos na tradição Se o aluno,
alvo da ação educacional, é outro sujeito histórico, por que a escola deveria
estar ainda presa a modelos de ação que já não dão conta das novas realidades?
Poderia se perguntar se os discursos, em geral, dão ênfase tão grande ‘a
transformação do mundo, que é um fato consumado, por que não se pensa na
transformação da escola ?
Cabe também não esquecer do fato que os professores, tão ciosos de seu papel
de intermediários entre o passado e o presente, são, de certa forma,
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conservadores no que diz respeito ao perfil de sua atividade, e estão diante de
um novo aluno, com o qual as abordagens tradicionais não surtem mais efeito.
Há uma série de fatores que determinam essa nova contingência histórica, e a
velocidade com que as mudanças se implementam naturalmente ainda não
chegou a escola. A violência e um elemento bastante presente no mundo
contemporâneo, das mais diversas formas , seja na exposição diária da mídia
sobre as noticias de caráter violento, seja na forma de filmes e jogos eletrônicos
que fascinam os adolescentes, e sem esquecer que vivemos uma era de violência
, com o terrorismo no mundo, e no Brasil, a questão social da criminalidade.
Entretanto não nos devemos deixar iludir, a violência sempre foi parte integrante
do modo humano de viver. A civilização apenas tornou-a menos ritualizada e
mais controlada, mas ela esta lá como sempre esteve e sempre estará.
Ao considerar a violência como algo inerente ao mundo humano, cabe indagar
das suas formas já que nem todas estabelecem o confronto físico. Há a natural
violência das relações humanas, a violência do Estado, a violência das
instituições. Ao atentarmos para isso percebemos que em toda relação em que
uma autoridade se estabeleça , se criam pequenas medidas de forca (violência )
para sujeitar os indivíduos . No caso da relação professor/aluno, ela e
inseparável da possibilidade de violência, dominação e poder. A escola de
modelo tradicional da margem a uma estrutura em que sobressai a autoridade do
professor, da instituição e das normas , logo implica uma certa violência no
trato com os alunos, que devem se submeter.
Como se está pensando a violência , não podemos deixar de relacioná-la com
o poder, pois é muitas vezes através dele que se manifestam as diversas formas
de violência. Para isso Foucault e o melhor guia. Segundo ele, no texto Em
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Defesa da Sociedade, os séculos XVII e XVIII marcam o surgimento de uma
nova mecânica de poder, eivada de novos procedimentos e instrumentos. E um
poder exercido sobre os corpos, dos quais extrai tempo e trabalho. E ainda um
poder que se concretiza por meio por meio da vigilância e cujo principio e tornar
cada vez maior o numero de indivíduos sujeitos a sua influencia e aprimorar a
forca e a eficácia daquilo que os sujeita. Foucault o denominara poder
disciplinar e o considerara uma das maiores invenções da sociedade burguesa.
Prosseguindo nessa linha de pensamento, o filosofo francês aponta a nova forma
de poder como também criadora de uma serie de saberes, as disciplinas.
Não e difícil relacionar o modelo da escola tradicional com a nova forma de
poder disciplinar apontado por Foucault, e como isso certamente se reflete sobre
o indivíduo, que deve se sujeitar as normas. O poder disciplinar implicara a
passagem de uma mentalidade punitiva com base na teoria do direito penal para
uma pratica de penalidade baseada na conduta dos indivíduos e naquilo que
podem vir a fazer. Essa análise de Foucault certamente diz respeito a uma
sociedade já um pouco diversa da nossa, mas que nos serve como modelo para
reflexão . Ao pensar a escola , não podemos deixar de vinculá-la ao esquema
disciplinar proposto por Foucault. Em detrimento de todas as novas
características da escola, ela ainda e muito ligada ao controle dos corpos , do
tempo dos indivíduos. Talvez estes novos indivíduos demandem novas soluções
que a escola ainda não implementou, por estar atrelada, historicamente a
sociedade disciplinar.
Ao refletirmos sobre a escola, sobre a sua própria constituição física , como
um espaço , na maioria das vezes, de constituição panóptica, ( modelo
arquitetônico criado por Bentham que permite uma visualização geral do todo
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por um ponto, favorecendo a vigilância ) verificamos sua profunda vinculação
com a disciplina, com a norma , com a vigilância , que não são realizados
apenas pela própria instituição, mas pelos indivíduos sobre os próprios
indivíduos, como se a professores coubesse o controle sobre os alunos, que pode
ser efetivamente realizado também por alunos sobre professores. E uma
instituição, a escola, profundamente controladora, na sua gênese e nos seus
objetivos. Será a escola contemporânea diversa deste modelo Ousamos afirmar
que a escola ainda vincula-se a um esquema disciplinador e lida com sujeitos
históricos novos , com novas prerrogativas, e certamente não mais tão
docilizados como se espera.
Os alunos que freqüentam as escolas contemporâneas não são mais indivíduos
cujo modo de vida permita uma certa lentidão, uma docilidade ; vivem numa era
de velocidade e estímulos múltiplos a demandar atenção , e tem a disposição
uma facilidade considerável na busca da informação . Os novos alunos detém
um saber que não pode mais ser desconsiderado , pois, em termos gerais, se
atualizam com mais freqüência que a escola e seus professores. Exigem um
deslocamento constante, por parte de professores. A comparação é interessante
quando nos lembramos das antigas salas de aula, com lugares de assento
determinado, todos quietos e silenciosos, enquanto o professor , em posição
dominante , transmite o conhecimento. Essa dinâmica e outra hoje , as posições
não são mais tão fixas , e o movimento constante entre os alunos e o barulho
são novos elementos com os quais os professores devem lidar. As salas de aula,
enquanto espaços físicos destinados a aprendizagem, precisam de uma
reengenharia que busque uma adequação as novas demandas.
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Na sua analise da Microfísica do Poder, Foucault refere-se com freqüência aos
espaços físicos, escolas, hospitais, prisões, fabricas, e como sua constituição foi pensada
a partir de um modelo de sociedade vigente então na sua gênese. Será que a escola hoje
não demanda um novo modelo de constituição física, que estabeleça uma nova dialética
para o processo da aprendizagem. Se os corpos não são mais tão dóceis e ainda
legitimo investir no seu controle no espaço escolar enquanto o espaço público e cada
vez mais controlado pelo marketing, pela lógica do consumo Zygmunt Bauman ( 2005
) , em O corpo do consumidor, parte da obra Modernidade líquida , afirma que
... a sociedade pós-moderna envolve seus membros primariamente em sua condição de consumidores , e não de produtores. A diferença é fundamental. ( ... ) A vida organizada em torno do consumo , por outro lado, deve se bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis - não mais por regulação normativa
(BAUMAN,2005,p.66) .
Na sociedade de consumo, os corpos obedecem a uma nova dinâmica , que não
e a mesma de tempos atrás e impele os indivíduos a uma insatisfação constante,
que lhes faz movimentar-se , continuamente, em busca da saciedade dos
impulsos de consumo. O controle e a vigilância, então, não são mais exercidos
verticalmente pelas instituições ou transversalmente pelos indivíduos sobre os
próprios indivíduos, mas a partir de uma busca incessante pela aptidão, regulada
pelo mercado. Este e o novo indivíduo, que também esta presente nas salas de
aula, e que exige da estrutura educacional um novo posicionamento. Que deve
começar pela postura do professor, que não deve estar alheio a reflexão critica
sobre as novas contingências históricas, políticas e sociais, que engendram os
novos sujeitos, com os quais tem de lidar na sua atividade.
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Voltando ainda a Foucault, poderíamos depreender que para o pensador
francês , qualquer agrupamento humano vai estar sempre permeado por relações
de poder, posto que a existência deste tipo de relação e coexistente a vida
social.
Não devemos pensar, entretanto, que a escola reflita na sua esfera, de modo
imediato, as transformações da sociedade, como nos indica Julio Groppa Aquino
( 1996 ), em seu artigo A violência escolar e a crise da autoridade docente :
Convenhamos, é mais do que evidente que as relações escolares não implicam um espelhamento imediato daquelas extra-escolares. Ou seja, não e possível sustentar categoricamente que a escola tão-somente “reproduz” vetores de forca exógenos a ela .E certo , pois, que algo de novo se produz nos interstícios do cotidiano escola, por meio da (re)apropriação de tais vetores de forca por parte de seus atores constitutivos e seus procedimentos instituídos/instituintes (AQUINO, 1996, p.55)
Atentando para o que diz o autor, devemos pensar se parte do problema da
violência na escola não tem sua gênese e sua solução no contexto da própria
escola. A escola não e ,necessariamente, um espelho da sociedade, mas
certamente espelha algumas de suas questões mais básicas, já que seus atores
são os mesmos. Não se deve imaginar soluções amplas para a sociedade,
esperando que as mesmas sirvam a escola. A solução ou melhor as possíveis
estratégias novas para lidar com o problema da violência na escola, certamente
emergirão da pratica e da reflexão dentro dos “muros” da própria escola. O que
não deve ser visto como um incentivo ao isolacionismo critico e teórico dos
profissionais da educação, antes pelo contrário, pois a análise profunda que
devem empreender não descarta os vínculos com a sociedade.
Há outro fator importante a ser considerado e que foi brevemente citado
anteriormente : a divisão social das escolas e as diferentes perspectivas que
assume a violência nos contextos diferenciados . É curioso perceber que as
causas apontadas são diversas e as soluções mais variadas ainda, para o mesmo
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problema. Quem nos aponta fatos importantes nessa perspectiva é Claudemir
Belintane ( 1998 ), no seu artigo O poder de fogo da relação educativa na mira
de novos e velhos prometeus. No artigo, em que aborda sua experiência pessoal
em duas escolas que atendem extratos sociais distintos, uma, pública, de
primeiro grau, e outra, privada, de caráter confessional, que atende a burguesia,
relata os episódios de violência presenciados.
O autor indica, em seu artigo, a possibilidade de pensar diferentes teorias
explicativas e soluções adequadas a cada caso, quando a violência, que é geral,
atinge escolas direcionadas a públicos de camadas sociais diferentes. É como ele
afirma no seguinte trecho :
Há uma tentação, de imediato, de recortar a “escola do (quase que eu) morro” utilizando a sociologia e a política. Parece até que a situação não pede outra coisa, gangues, crise de autoridade, choques culturais, diferenças sociais, desemprego etc. Dar um tratamento ao indivíduo, as idiossincrasias, seria burguês demais, não ?! A tentação é gritar por políticas educacionais, pugnar por policiamento, por mais pão, por mais verbas etc. Já na “ escola do padre”, para as rusgas, as dificuldades de aprendizagem, alguns desacertos de alguns jovens – antes da expulsão do paraíso - , cabe perfeitamente a psicologia e até mesmo um certa clínica psicanalítica. (BELINTANE, 1998)
A que atribuir visões tão díspares para problemas semelhantes? Talvez os
olhos e ouvidos viciados em discursos psicologizantes ou sociologizantes, que,
em geral, não emergem da reflexão realizada intra-muros na escola. A sensação,
por parte dos professores, passa pela impotência, pelo desespero. Não estão
equipados para lidar com os problemas com que se defrontam.
Há outro aspecto a se considerar e não é de menor relevância, pois diz respeito
à crise da autoridade, que se origina na família e percorre as instituições como
um todo. Cristopher Lasch, no capítulo Autoridade e Família: A Lei e a Ordem
em uma Sociedade Permissiva, do livro Refúgio num mundo sem coração: a
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família, santuário ou instituição sitiada?, referindo-se à sociedade americana,
historia um panorama de decréscimo da autoridade paterna que pode nos servir
de modelo para pensarmos a realidade brasileira. Segundo ele , o decréscimo da
autoridade paterna e a delegação da disciplina a outras instâncias ou instituições
criaria um fosso de grandes proporções entre afeição e disciplina. Apesar disso,
o distanciamento e a corrosão da autoridade dos pais não destroém os conflitos
essenciais entre pais e filhos, apenas os encobrem. Essa mesma decadência da
autoridade paterna levaria a uma nova tolerância a formas de comportamento
distintas da norma. Como segundo Lasch, vive-se numa sociedade permissiva,
esta institui novas formas de repressão como a força, o suborno, a intimidação e
a chantagem, pois como não há respeito pela autoridade, esta se faz valer por
meio da manipulação psicológica e até mesmo da violência aberta. Um
panorama destes poderia se encaixar com perfeição para a escola ? Em que
medida o que se vive hoje na escola é decorrência da ascenção daquilo que
Lasch chama de sociedade permissiva? Certamente, ao levarmos em
consideração os fatos apontados por Lasch, encontramos pontos de contato entre
a realidade indicada por ele e a nossa prática, em que pesem as consideráveis
diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos. Que a nossa sociedade, se
não é permissiva na sua totalidade, é correto afirmar que vivemos um momento
de permissividade e crise da autoridade familiar, cujas evidências vemos
cotidianamente nos jornais. Se a autoridade familiar já não dispõe de suas
antigas prerrogativas, que dizer da autoridade do professor ? Como resgatar uma
possível autoridade de caráter positivo? Talvez já não caiba mais exercer uma
autoridade imposta pelo conhecimento, pela experiência, pela instituição. Talvez
seja o momento de, humildemente, cada professor se despir de sua auto-imagem
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eivada de autoridade e dispor-se a uma possibilidade de negociar, com o fim de
realizar a sua tarefa. Uma negociação dirigida a um objetivo claro: educar.
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SEGUNDO CAPÍTULO
COMPREENDENDO A INDISCIPLINA E A FALTA DE LIMITES E
DISCUTINDO SUAS CAUSAS E EFEITOS
Quando refletimos sobre a vida escolar no Brasil contemporâneo , com todas
as suas vicissitudes , não podemos deixar de pensar sobre os tristes números
revelados pelas pesquisas sobre o universo da educação brasileira, notadamente
em contraste com os indicadores de nações desenvolvidas.
A esse fracasso são relacionados os mais diversos diagnósticos, e as mais
diversas propostas são colocadas em pauta. A bem dizer, nenhuma política
educacional, nos últimos anos, se dedicou a resolver esta questão, no sentido de
incrementar os indicadores qualitativos da educação brasileira, principalmente
por um estímulo a um desempenho mais satisfatório nos testes internacionais.
A este estado de coisas junta-se o grande problema do sistema educacional
brasileiro : ele ainda é incapaz de promover o desenvolvimento social, político,
econômico , cultural e mais que tudo, humano, que a sociedade brasileira
demanda, em tempos tão conturbados.
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Neste contexto, vislumbramos a questão da indisciplina e da falta de limites
como o mais grave problema enfrentado, no cotidiano escolar, pelos
profissionais da educação, notadamente os professores. O
chamado fracasso escolar tem com a indisciplina e a falta de limites uma
profunda vinculação.
Seguindo as indicações de Foucault, considerando a escola como instituição da
sociedade disciplinar em que se estabelecem relações de poder. Há uma outra
profunda relação entre a produção da subjetividade contemporânea e as relações
de poder que circulam na escola, não somente na relação professor-aluno, mas
principalmente colocar em discussão o lugar que a instituição escolar ocupa na
configuração social da atualidade.
Falar em produção da subjetividade significa dizer que esta última não é
entendida como origem, mas como processo, de acordo com a configuração
sócio-histórica em que se localiza . A idéia de produção da subjetividade pode
ser enriquecida através da noção de subjetivação segundo Foucault (1988, 1990)
Pode-se inferir que a subjetividade hoje se produz diversamente do que se
produziu no século XX. Nesse movimento, a escola é um lugar fundamental na
constituição da subjetividade. Desta forma, a engrenagem escolar é atravessada
pela configuração social e também tem o papel de definir o sujeito.
Para discutir a forma pela qual as relações de poder circulam no espaço
escolar e de que maneira a subjetividade se produz através delas, é necessário
lançar mão da concepção de Foucault (1977) sobre a sociedade disciplinar e as
formas de poder.
De acordo com Foucault (1977), as relações de poder estabelecidas no século
XX nas instituições, no âmbito da família, da escola, das prisões ou dos quartéis,
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foram marcadas pela disciplina, cujo objetivo principal era a produção de corpos
dóceis, eficazes economicamente e submissos politicamente . As sociedades
disciplinares distribuíam os indivíduos no espaço através das técnicas de
enclausuramento. As formas de poder exercidas na disciplina podem ser melhor
ilustradas por meio do modelo arquitetônico do Panopticon, de Bentham.
A vigilância sobre os indivíduos possibilita a articulação de um poder
com um saber, que determina a correção ou não da conduta de um indivíduo.
Essa articulação se ordena em torno da norma.
Para Áries (1991), há uma articulação do surgimento da vida escolástica
com a disciplina. A diferença essencial entre a escola da idade Média e a dos
tempos modernos consistiu na introdução da disciplina, que era um método para
isolar e adestrar crianças.
Se nas sociedades disciplinares tinham como projeto vigiar as virtualidades,
docilizar os corpos prendendo- -os a um aparelho de controle e normalização, as
sociedades de controle partem de outros pressupostos. O poder que vige em tais
sociedades é um poder de modulação contínua onde os moldes não chegam
nunca a se constituir totalmente.
Segundo Vaz (1999 ) citado por Prata ( 2005 ) “mudaram as técnicas de poder,
mudou o sentido da vida que nossa cultura nos propõe, mudou o sujeito”.
De acordo com Bauman (2001), o poder hoje pode se mover com a velocidade
do sinal eletrônico e tornou-se verdadeiramente extraterritorial, não mais
limitado pela resistência do espaço.
Num contexto mais geral e político a respeito do poder cabe lembrar de Hardt
e Negri (2001), que refletem sobre uma nova ordenação mundial denominada
“Império” que eles revelam como um regime sem fronteiras.
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Paralelamente,outros modos de subjetivar estão sendo produzidos. Esse
novo modelo de subjetivação marcará presença na escola e também a forma pela
qual as relações entre professores e alunos se constituirão.
Segundo Aquino (1996; 1998), a própria configuração social na qual a escola
está inserida está mudando, e esta modificação está ligada à produção de um
outro sujeito, que vai se apresentar em todas as relações, incluindo a relação
professor-aluno.
Outra vinculação comum, ao pensarmos no assunto, é a entre o fracasso
escolar e a figura do “aluno-problema”, como bem aponta Groppa Aquino
( 2000) :
Pois bem , quando alguém se propõe a investigar as razões do “fantasma” do fracasso que ronda a todos nós, tem despontado ultimamente, dentre as muitas razões alegadas pelos educadores ( desde as ligadas à esfera governamental até aquelas de cunho social ) , uma figura-conceito muito polêmica : o “aluno-problema”. O aluno-problema é tomado, ( ... ), como aquele que padeceria de certos “distúrbios psico/pedagógicos”; distúrbios ( ... ) que podem ser de natureza cognitiva ( os tais “distúrbios da aprendizagem” ) ou de natureza comportamental, ( ... ) . Dessa forma, a indisciplina e o baixo aproveitamento dos alunos tornam-se duas faces de uma mesma moeda, representando ao mesmo tempo os dois grandes males da escola contemporânea bem como os dois principais obstáculos para o trabalho docente ( AQUINO, 2000, p.29).
Essa fala de Groppa Aquino nos remete diretamente a uma reflexão : hoje é
bastante comum o uso de um vocabulário técnico de viés psicologizante no trato
com os problemas disciplinares : são os alunos portadores de transtornos de
déficit de atenção e hiperatividade ( TDAH ) , os alunos portadores de síndrome
de Asperger e Autismo, os alunos portadores de transtornos obsessivos-
compulsivos e outros padecendo de transtornos psicológicos graves, depressões
profundas e outros problemas. Todo este vocabulário tem sido vulgarizado e os
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alunos tem sido , de certa forma, submetidos a um escrutínio que enquadre
aqueles que apresentam problemas disciplinares que a escola não consegue
resolver, numa destas categorias.
Com que propósito isso é realizado ? Uma resposta seria a constatação de que,
ao enquadrar seus alunos numa destas categorias, a escola, por meio de seus
profissionais, transfere um problema do qual não dá conta, para a esfera médica
e psicológica, contribuindo para que se enxergue a questão meramente por um
prisma de saúde mental, desconsiderando outras abordagens.
Uma outra indagação se faz necessária diante do exposto. Se a escola, e o
professor, como seu profissional mais habilitado, transferem a resolução de
problemas disciplinares para a área médico-psicológica, não estariam abrindo
mão de sua área de competência e atuação ? Quem deveria, por formação,
experiência e mesmo, missão, solucionar os problemas no âmbito da escola,
senão os profissionais que nela militam ?
É claro que não desconsideramos, em nossas reflexões, a real existência de
transtornos da área da saúde mental, mas não consideramos que eles constituem
a maior parte dos problemas que envolvam a disciplina. Outro dado interessante
da questão é apontado por Groppa Aquino ( 2000 ) : ( ... ), não é algo estranho e
contraditório para os profissionais da área educacional explicar o sucesso
escolar como produto da ação pedagógica, e o fracasso escolar como produto de
outras instâncias que não a escola e a sala de aula ?5
No trecho destacado, o autor indica uma constatação que também
presenciamos com freqüência : o sucesso escolar é responsabilidade da escola,
de seu método e projeto político-pedagógico, de seus profissionais. O fracasso é
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sempre posto na conta de outros fatores que são sempre externos à escola, os
transtornos psicológicos, a família, a questão social e outros.
Groppa Aquino enxerga, no discurso comum da escola e dos professores, uma
visão do chamado “aluno-problema” , a figura central da indisciplina,
sustentada em três eixos argumentativos : o aluno desrespeitador, o aluno sem
limites e aluno desinteressado. Para o autor são três visões equivocadas da
questão, já que tomam a disciplina como algo inerente ao trabalho pedagógico e
não como um resultado de uma tarefa realizada a contento.
Ainda , na visão do pensador, a indisciplina deveria ser considerada um sinal
de alerta, a indicar que a metodologia e o tema, tratados da maneira que o são,
constituem-se nas causas da indisciplina, já que ela é bem menor , ou não existe,
quando a ação pedagógica é realizada com sucesso.
Groppa Aquino ( 2000 ) divisa, como possível estratégia e até mesmo como
resolução do impasse disciplinar em que os profissionais se encontram hoje, a
reiteração cotidiana do docente com seus cinco compromissos ou regras éticas, a
saber : compreensão do aluno-problema como um porta-voz das relações
estabelecidas em sala de aula ; des-idealização do perfil do aluno ; fidelidade ao
contrato pedagógico ; experimentação de novas estratégias de trabalho e ação
pedagógica que concilie competência e prazer.
Numa outra vertente, Zagury ( 2006 ) , por meio de sua pesquisa, aponta uma
situação preocupante, a dos profissionais da educação que se enxergam reféns
de uma realidade complexa, da qual não encontram saída e são por ela
pressionados até o limite.
A autora inicia sua argumentação colocando em discussão determinados mitos
e visões estereotipadas que circulam livremente quando se comentam as
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dificuldades cotidianas da educação brasileira. Os mitos colocados em xeque
por meio de argumentos lógicos são os seguintes : o afeto e o carinho dos
professores são elementos imprescindíveis para que o aluno aprenda ; com um
bom professor, há aprendizagem sem esforço dos alunos e motivação natural ; a
participação da comunidade é essencial à qualidade do ensino ; se um percentual
expressivo de alunos apresenta maus resultados, significa que o professor
falhou. Zagury discute o caráter axiomático de tais
pensamentos, e como toda reflexão sobre educação termina por repeti-los como
verdades indiscutíveis.
Na visão de Zagury, o desvio das funções precípuas dos educadores são os
motivos pelos quais questões como a indisciplina tomam grande vulto, pois a
energia dos educadores para resolução de problemas está desviada para outras
problemáticas que não lhe diriam respeito. É o que ela revela, a seguir :
Não se pode supervalorizar a relação professor/aluno, ao em detrimento do saber. O professor não é psicólogo, não “trata” alunos. Ele pode e deve sim compreender os problemas, ser afetuoso e ajudar no que for possível em termos humanísticos, mas sua função precípua é ensinar. E ensinar bem, dominando o conteúdo e usando adequadas técnicas de ensino e de avaliação. Mas ensinando, que esta é a sua função. Caso contrário, estará fugindo ao compromisso básico da carreira que elegeu e na qual batalhará ( professor não trabalha, batalha ) por cerca de trinta anos de sua vida . Professor é aquele que ensina ( ZAGURY, 2006,p.73)
Refletindo sobre as palavras de Zagury, mesmo sem concordar inteiramente
com suas conclusões, podemos realmente constatar o quanto a força vital dos
professores tem sido continuamente desviada de seu foco principal que é o
ensino, para uma série de demandas, da escola , da família, dos alunos, e tudo
vinculado a um entendimento da função do profissional do ensino como um
25
indivíduo responsável pelo aluno, pelo sucesso escolar, pela disciplina, pelo
bom andamento das tarefas e pelo sucesso ou fracasso escolar..
Pensando mais profundamente neste aspecto da questão levantado por Zagury,
o papel do professor tem sofrido uma ampliação de funções,
quando se trata de cobrar resultados e um desprestígio funcional e social quando
se trata de cobrar direitos e condições de trabalho.
A questão da disciplina é também tratada de modo ambíguo : se situação é
conflituosa e insustentável, a escola parece não dispor de meios para arbitrar a
questão e até proteger os indivíduos envolvidos, e aí surgem as insinuações
sobre a capacidade de gestão e controle de turma, cobrada aos profissionais,
mesmo quando a instituição não oferece os instrumentos.
Essa não é uma questão que possa ser debatida em termos simples porque
envolve uma série de concepções e visões de mundo, tanto de indivíduos,
quanto de grupos, instituições até a própria sociedade. Nesta apreciação não
devem faltar até mesmo reflexões dirigidas à política educacional dos sucessivos
governos brasileiros, que se têm algo em comum, é a disposição de realizar
reformas educacionais, de cima para baixo, de caráter imediato e quase
automático, sem discussão com a sociedade ou com os especialistas.
Deslocando a questão agora para a indisciplina e a falta de limites e
relacionando-as com a violência, tão presente nas relações sociais hoje em dia,
entendemos que a escola, como qualquer outro espaço social contemporâneo,
não está livre das manifestações de violência. Entretanto, Groppa Aquino ( 2000
) aponta o fato de que a escola ainda é uma das instituições da sociedade em que
a violência se faz menos presente.
26
Se a escola fosse alvo de manifestações da violência com a freqüência com
que elas ocorrem em outras esferas sociais , qualquer trabalho pedagógico seria
de antemão inviabilizado, e não é , felizmente, o que ocorre.
Ainda assim, não se trata de considerar de menor importância a violência que
ocorre na escola, mas de colocá-la em sua real acepção : de fenômeno com
ocorrência real mas longe de representar uma escalada diária.
Devemos pensar esta violência como ocorrência que se estabelece nas relações
que se dão dentro e fora da escola ; os atores são os alunos e também os
professores, alguns como perpetradores, outros como vítimas. Em estudo na
linha das representações sociais e análise de discurso, citado por Groppa Aquino
( 2000 ), Silva ( 1997 ) , revela que alunos , professores e outros profissionais
envolvidos não se percebem como violentos, e só enxergam a violência no
outro :
Para os educadores, a violência se evidencia, de forma mais clara, na relação entre os alunos. Estes é que são violentos e geralmente os educadores não se percebem promovendo atitudes de violência para com os alunos. É como se professores, diretores e coordenadores pedagógicos fossem isentos de práticas violentas. ( ... ) No entanto, os alunos destacam que a relação entre professor e aluno nem sempre é boa, por falta de compreensão e respeito : “ há professores que não se dão respeito na classe. Em geral, não há muito respeito, por falta de respeito á idéia do outro” (AQUINO, 2000,p.55).
Como se pode ver a própria questão da violência é complexa, porque seus
atores são incapazes de enxergar como suas as manifestações dela, legitimando
apenas quando ela parte do outro, seu contrário, na situação específica em que
ocorre.
No prosseguimento de sua argumentação a respeito da violência no cotidiano
escolar , Groppa Aquino ( 2000 ) conclui que a esta difícil questão, deve
corresponder, na escola, um enfrentamento de cunho propriamente pedagógico,
27
tendo como palco privilegiado o interior mesmo da sala de aula e suas relações
constitutivas. Ou seja, no entender do autor, que endossamos, é a própria
instituição escola que deve encontrar, em seus meios e recursos, as estratégias
de resolução do problema, dispensando as instâncias externas.
28
TERCEIRO CAPÍTULO
OS NOVOS SUJEITOS DA EDUCAÇÃO E O MUNDO DE QUE VIERAM
Já se tornou um lugar –comum comentar-se a aceleração das transformações no mundo
contemporâneo. O velho adágio “ o que há de permanente no mundo é a mudança” já
foi incorporado como verdade pelo senso comum e até mesmo por aqueles que têm
como função a produção de uma reflexão mais abalizada sobre o mundo, entre eles não
só os intelectuais e os políticos, mas também os líderes empresariais, e obviamente, os
responsáveis pelo marketing das companhias.
O processo de mundialização ( termo preferível ao desgastado vocábulo globalização
) , que não é novo, mas antes um evento que percorre a história humana, (servem como
exemplos as Grandes Navegações e as expansões colonialista e imperialista ), tem hoje
um caráter acentuadamente veloz, certamente devido ao incremento notável que a
tecnologia , principalmente no que diz respeito à informática, à comunicação , teve, ao
longo dos últimos trinta anos. Essas transformações rápidas embaralharam, de modo
geral, as percepções dos consumidores e também dos departamentos de marketing. Há
novas necessidades, que não substituíram as antigas, e novas demandas para todos,
cidadãos, líderes, empresas, governos e instituições.
Esse processo é composto por um conjunto de transformações que ocorrem, em
termos mundiais, na esfera econômica, financeira, comercial, social, cultural e nos
modos de produção, tornando consideravelmente mais intensa a inter-relação dos países,
das comunidades e dos povos. Os mesmos efeitos acometem a informação, os padrões
culturais e o consumo.
29
Essas constatações apenas reforçam a necessidade de compreender, mesmo que seja
por meio de um breve panorama histórico, o que mudou, no mundo, no marketing, no
pensamento de consumidores e nas empresas, no período denominado pelos pensadores
como modernidade tardia, ou por pós-modernismo.
As mudanças históricas circunscritas neste período delimitado foram tamanhas e em
tão grande número, e como estamos tão próximos, não é fácil vislumbrar o real
significado destas transformações. Ainda assim , é válido o esforço e o conhecimento
histórico que pode servir de base para a compreensão das características do marketing
hoje.
O “breve século XX” , como o caracteriza Erich Hobsbawn ( 1995 ), foi o mais
violento, o mais cruel, e se caracteriza como o século em que a utopia de uma
civilização única para o universo inteiro se viu destruída pelos mais fortes e
contundentes fatores de divisão e dissociação, e, paradoxalmente, enquanto era dos
extremos, realiza, de forma enviesada a noção de aldeia global, por meio da tecnologia.
Outra característica daquele que o historiador inglês denominará de “breve século
XX”, é o aspecto da destruição do passado, e em sua exposição de argumentos para
prová-lo, Hobsbawm teoriza : “ A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos
sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas é um dos
fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens
de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com
o passado público da época em que vivem.”
Como período de crise e conflito, o breve século XX também revela, de acordo com
Hobsbawm, o aspecto de crise moral e identitária, como ele apresenta no seguinte
trecho :
30
Contudo, a crise moral não dizia respeito apenas aos supostos da civilização moderna, mas também às estruturas históricas das relações humanas que a sociedade moderna herdara de um passado pré-industrial e pré-capitalista e que, agora vemos, haviam possibilitado seu funcionamento. Não era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas. Os estranhos apelos em favor de uma “sociedade civil” não especificada, de uma “comunidade”, eram as vozes de gerações perdidas e à deriva. Elas se faziam ouvir numa era em que tais palavras, tendo perdido seus sentidos tradicionais, se haviam tornado frases insípidas. Não restava outra maneira de definir identidade de grupo senão definir os que nele não estavam. ( HOBSBAWN, 1995, p.20, 21 )
A lógica evolucionária do capitalismo industrial, surgido no século XVIII, que
avançaria além das próprias fronteiras, e assumiria as vestes de capitalismo financeiro, é
assim caracterizado por Paul Singer ( 1987 ) :
A característica básica do capitalismo é o dinamismo tecnológico, que ocasiona periodicamente transfor- mações revolucionárias dos processos de trabalho, da organização da produção e das normas de consumo. Um modo de produção que gera mudanças tão amplas quase continuamente não pode deixar de ser flexível no plano institucional. O capitalismo superou crises que pareciam ser “finais” exatamente porque sempre encontrou um novo tipo de regulação de sua dinâmica, que permitiu seu reerguimento.(SINGER,1987,p.85)
É exatamente esse dinamismo tecnológico a que se refere Singer, que gera o paradoxo
fundamental da nossa era : Um mundo cada vez mais dividido em grupos , tribos,
identidades, e cada vez menor, pois tudo é percebido e veiculado mundialmente em
frações de tempo cada vez menores.
Tal dinamismo tecnológico permitiu precisão, rapidez nas informações e facilidades
de comunicação, provocando novas transformações no sistema capitalista. Teria início,
assim, a partir de meados da década de 1970, a chamada Terceira Revolução Industrial,
ou Revolução Informacional. As novas tecnologias de computação e telecomunicação e
31
a evolução dos transportes permitiram uma expansão consideravelmente maior das
empresas chamadas transnacionais, permitindo a localização de unidades produtoras em
outros territórios, para usufruir tanto de vantagens fiscais e custos menores, como de
mão-de-obra e matéria prima baratas. Paralelamente, o capital financeiro obtém maior
fluidez e mobilidade com a expansão de uma rede financeira pelo mundo, passando a
controlar mais efetivamente o setor produtivo.
Um momento no tempo é determinante para analisar a dinâmica histórica do processo
de globalização econômica que é uma das faces primordiais de nossa era. O plano
Marshall, implementado em 1947, num esforço de reconstrução capitalista do pós-
guerra. Assim o enxerga Demétrio Magnoli (1996):
Para revitalizar os fluxos comerciais internacionais, o Plano buscava corrigir a defasagem imensa entre a acumulação de dólares no interior dos Estados Unidos e a dramática carência de dólares dos aliados europeus, transferindo moeda a juros simbólicos de um lado para outro do Atlântico Norte. Estratégia econômica de fundo geopolítico, oPlano Marshall tinha como horizonte a constituição de uma área de economia capitalista no Ocidente europeu, integrada à economia americana. Durante duas décadas, a economia capitalista mundial conheceu um boom ininterrupto, marcado por taxas de crescimento inéditas e por uma estabilidade desconhecida nas tumultuadas décadas anteriores. A Europa ocidental e o Japão tornavam-se, depois dos Estados Unidos, verdadeiras “sociedades de consumo”. Entre 1950 e 1970, os países capitalistas desenvolvidos cresceram a uma média anual de 5,3%. ( MAGNOLI, 1996, p. 146 )
A Comunidade Econômica Européia, que teria suas bases fundamentais lançadas pelo
Tratado de Roma, em 1957, e foi regulamentada pelo Tratado de Maastrich, em 1991, é
o bloco econômico herdeiro do legado do Plano Marshall.
Os anos 70 viram surgir um período de crise e recessão na economia mundial,
marcando o esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico adotado no pós-
32
guerra. Momento que ficou conhecido por “crise do petróleo”. A década de 1980 viu os
preços do petróleo desacelerarem sua tendência crescente em virtude do aumento da
oferta e caracterizou-se da seguinte maneira, no pensamento de Demétrio Magnoli
Um intenso processo de oligopolização acompanhou a abertura de novas fronteiras produtivas. As grandes empresas, favorecidas pelas encomendas do Estado e pelos programas de reconstrução da economia, engoliam os pequenos capitais e expandiam seus negócios além das fronteiras dos países-sede, tornando-se conglomerados transnacionais. ( ... ) A nova organização da base produtiva apoiou-se num esquema parecido com o do pós-guerra, ou seja, na abertura de novos setores de investimentos, direcionados agora para a informática , a biotecnologia, os novos materiais, a pesquisa aeroespacial e a química fina. Como no pós-guerra, esse processo desbravador foi acompanhado e viabilizado por gastos estatais e por estímulos à pesquisa e ao desenvolvimento. (MAGNOLI,1996,p. 151 )
Ainda segundo Demétrio Magnoli, é possível vislumbrar duas tendências antagônicas
na economia mundial contemporânea : uma, que reforça a globalização dos mercados,
intensificando o trânsito de mercadorias e investimento e buscando a extinção de
barreiras à competição no mercado mundial, e outra, de caráter de regionalização, que
busca a constituição de barreiras protecionistas no espaço intermediário entre os grandes
blocos econômicos, visando à manutenção das esferas de influência de cada uma das
zonas econômicas.
Todas as mudanças relatadas, de caráter histórico, político e econômico, refletiram
sobre a vida dos indivíduos, dos grupos, das comunidades e das sociedades.
Obviamente refletiram também sobre o padrões de comportamento. Cabe agora
investigar um pouco dos reflexos que as transformações do período tratado trouxeram
para os indivíduos e a sociedade. Um indicador dessas profundas transformações é a
questão da identidade, ou seja, de como nos identificamos hoje, de como nos
enxergamos como dotados das características típicas de um grupo ou outro. Isso é
33
certamente importante, principalmente quando buscamos compreender o papel do
marketing no mundo contemporâneo.
As transformações advindas da intensificação do processo de globalização na
modernidade tardia trouxeram, também, para o indivíduo e para a sociedade, a erosão de
um sistema econômico-político que oferecia uma “segurança” em termos identitários. O
sociólogo polonês Zygmunt Bauman é um dos teóricos contemporâneos que tem como
objeto de estudo a questão da identidade. Ele afirma : “A questão da identidade também
está ligada ao colapso do Estado de bem-estar social e ao posterior crescimento da
sensação de insegurança, com a “corrosão do caráter” que a insegurança e flexibilidade
no local de trabalho têm provocado na sociedade.”12. Bauman enxerga a globalização
como uma espécie de transformação “radical e irreversível” que atingiu “as estruturas
estatais, as condições de trabalho, as relações entre os Estados, a subjetividade coletiva,
a produção cultural, a vida quotidiana e as relações entre o eu e o outro.” Para Bauman
que denomina a globalização de “modernidade líquida”, ela reflete sobre a questão da
identidade, fazendo-nos perceber que a própria não é algo sólido, como a rocha, nem
possui garantia por toda a vida, mas antes, é passível de negociação e revogação, e é
decisivamente influenciada pelos modos de agir, decisões tomadas e caminhos
percorridos pelo indivíduo. É um momento, como afirma o pensador, em que : “As
identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e
lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para
defender as primeiras em relação às últimas.”
Como podemos perceber é fortemente marcado o caráter de fluidez, no mundo
contemporâneo, daquilo que diz respeito à identidade do indivíduo. Daí, certamente se
origina , no pensamento de Bauman a metáfora da liquidez, de uma modernidade
34
líquida, em que tudo é intercambiável e não tem rigidez, até mesmo nossa própria
identidade. O trecho seguinte explicita melhor essa teoria :
O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo, cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva atraente . Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser “identificado” de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto. ( BAUMAN,2005,p.19)
A fluidez das identidades é apenas uma das faces mais visíveis da ambivalência,
característica fundamental do mundo contemporâneo, de acordo com Bauman. Essa
fluidez também se estende aos relacionamentos do indivíduo, no “mundo em que o
aspecto mais importante é acabar depressa, seguir em frente e começar de novo, o
mundo de mercadorias gerando e alardeando sempre novos desejos tentadores a fim de
sufocar e esquecer os desejos de outrora.” É óbvio supor que esses padrões de
comportamento se refletem quanto ao consumo. A visão de Bauman é bastante crítica
em relação a este aspecto, revelando um mundo em que todas as formas de certeza e
permanência foram deixadas de lado. Tudo isso é resultado de uma maturação, como ele
aponta : “A história moderna também foi ( e ainda é ) um esforço contínuo para afastar
os limites do que pode ser mudado à vontade pelos seres humanos e “aperfeiçoado” para
melhor se adequar às necessidades ou desejos destes. Foi também uma busca incessante
por ferramentas e know-how que permitissem que os derradeiros limites fossem
cancelados e abolidos completamente.” Quando Bauman se refere a desejos e vontades
não podemos deixar de pensar em marketing.
35
Como afirmamos anteriormente a idéia de Bauman a respeito do mundo
contemporâneo, principalmente quando pensa acerca das relações de consumo, é
bastante pessimista. Em outro texto, “O corpo do consumido”, Bauman aprofunda suas
críticas. Segundo ele, a sociedade hodierna revela seus integrantes como consumidores
antes que produtores ; enquanto que a vida regida pela condição de produção é
normativamente regulada, a vida orientada para o consumo é constituída pela ausência
de normas e guiada pela sedução. Deve-se estar sempre pronto, para aproveitar as
oportunidades, desenvolver novos desejos e buscar novas necessidades. Na sociedade
de consumo a possibilidade de liberdade individual e de liberdade de possuir uma
identidade é dependente da condição de consumidor. Para viver numa sociedade em que
a instabilidade é elemento formador das identidades é necessário estar sempre em alerta.
Estar apto e flexível, capaz de reajustar-se aos padrões continuamente cambiantes do
mundo exterior. A escolha do consumidor é um valor em si mesma, é o ato da escolha
que importa, em detrimento daquilo que foi escolhido e as escolhas são elogiadas ou
censuradas, na proporção da gama de escolhas que oferecem. A mudança de identidade
é uma questão privada,mas, implica romper laços e cancelar determinadas obrigações. O
dinamismo e a flexibilidade da identificação na ida às compras é na verdade a
redistribuição das liberdades e tende a gerar reações incoerentes e quase neuróticas. Na
sociedade de consumo a identificação, interna ou compartilhada com os outros, sempre
induz à competição acirrada , encerrando a possibilidade de cooperação e solidariedade.
Como se pode perceber , a conclusão de Bauman é bastante pessimista, porque não
enxerga no mundo contemporâneo, nas atuais relações de consumo, a possibilidade de
geração de riqueza para todos e de desenvolvimento sustentável. Em que pesem estas
negatividades, a análise profunda de Bauman pode contribuir para uma compreensão da
nova face do consumidor atual.
36
Outro teórico contemporâneo que reflete sobre a questão das identidades é Stuart Hall
( 2004 ). E como Bauman, suas reflexões se tecem contextualizadas no processo de
globalização. Isso significa que a questão da identidade não está desvinculada da
problemática maior da vida e das sociedades no mundo contemporâneo. De acordo com
Hall, as “velhas” identidades, que, ao longo da história forneceram uma estabilidade ao
universo social, encontram-se hoje em estágio de franca decadência, sendo substituídas
por novas identidades e conduzindo os indivíduos à fragmentação, destruindo sua
percepção de sujeitos unificados. É o que ele chama de “crise das identidades”, e que
ele classifica como parte de um processo mais amplo de abalo das estruturas e quadros
de referência das sociedades.
Discutindo a visão teórica sobre o tema, partindo da assunção de que as identidades
estão em colapso, ele declara :
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de “um sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.(HALL,2004, p.9 )
Todo esse processo leva , finalmente, à constituição do sujeito pós-moderno, que não
seria, então, dotado de uma identidade constante, essencial ou permanente, e seria da
seguinte maneira, como teoriza Hall :
A identidade torna-se uma “celebração móvel” : formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall , 1987 ). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao
37
redor de um”eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990 ).( HALL, 2004, p. 12,13 )
Nas considerações finais de Hall, no capítulo intitulado Globalização, ele afirma que na proporção em que a chamada vida social se encontra mediada pelo que denomina de mercado global de estilos, lugares, pelas imagens veiculadas pela mass media, de alcance global, mais acentuada se torna a fragmentação das identidades, desvinculando-as, desligando-as, desalojando-as de origens, tempos específicos, histórias e tradições, levando-as a um estado de “livre flutuação”. Ele assim prossegue :
( ... ). Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades ( cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós ) , dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural”. No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas, Este fenômeno é conhecido como “homogeneização cultural”. ( HALL,2004, p.75)
Em que medida essas reflexões sobre a questão ou a crise das identidades nos
importam ? Todas estas mudanças e transformações, nos indivíduos e nas sociedades
implicam também profundas alterações nos padrões de comportamento. Para lidar com
estas mudanças sociais e dos indivíduos , uma alternativa estratégica de ação para os
gestores escolares é a mediação de conflitos.
38
QUARTO CAPÍTULO
A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMO ESTRATÉGIA DE AÇÃO DOS
GESTORES EDUCACIONAIS
A Mediação de conflitos no contexto da vida escolar pode constituir-se numa
alternativa estratégica de ação, a ser utilizada pelos gestores, com o fim de facilitar as
difíceis lidas cotidianas dos profissionais da educação. De qualquer ângulo por que se
observe a questão, é importante lembra que o conflito não é uma situação nova pois
onde existam indivíduos haverá conflito.
Assim é fundamental compreender a essência do conflito em contexto escolar e buscar
o entendimento de que a mediação pode efetivamente significar em relação ao manejo
dos embates cotidianos.
Alguns pressupostos se fazem necessários ao gestor para que, ao lançar mão das
possibilidades oferecidas pela mediação, possa assegurar-se de que é uma real
possibilidade de trabalho. Pode-se dizer, sem incorrer em risco de erro , que uma boa
escuta e uma postura de assertividade são essenciais ao profissional.
Ao se pensar em conflito, ou numa definição mais precisa do que significa , equivale a
determinada situação em que se constata um desentendimento, um choque de visões e
pensamentos, entre dois ou mais indivíduos. Aqui, no caso presente entendemos
conflito em sua acepção negativa, de confronto que necessita de intervenção e
gerenciamento.
É importante compreender que o conflito pode ser enxergado também como uma clara
oportunidade de colocar às claras questões irresolvidas e prementes , em como a
possibilidade de desenvolvimento de laços mais estreitos e de autonomia nas relações.
Já que o conflito se estabelece a partir do choque das opiniões pode significar a
39
possibilidade de conhecer e compartilhar distintos modos de enxergar as questões,
permitindo aos envolvidos a experiência da diversidade.
O gestor, ao agir como mediador de conflitos , deve sempre ter em mente o
“equipamento” necessário para sua ação mediadora e corretiva :a atitude assertiva, a
escuta ativa e empatia. São essas posturas reveladoras aos indivíduos envolvidos de que
há um desejo e uma disposição ativa no sentido de resolver o problema.
É importante, também, conceituar aquilo que denominamos de escuta ativa. É uma
forma de escuta das partes que possibilita a quebra das barreiras de comunicação entre
elas , já que atenta também para os sentimentos e emoções envolvidos, a linguagem
não-verbal e o contexto.
É, a escuta ativa, uma técnica de comunicação que detém uma considerável
importância para a solução de conflitos , já que leva em consideração os aspectos
emocionais das partes envolvidas no conflito.
Como se pode constatar, cotidianamente, a maior parte dos conflitos tem sua gênese
na dificuldade de comunicação e na escuta e aceitação de opiniões divergentes. Assim, a
escuta ativa assume um papel preponderante pois é a partir dela que vislumbramos
entender as necessidades e os interesses dos envolvidos no conflito.
Saber escutar é fundamental já que possibilita a criação de empatia, que é o primeiro
passo para a constituição de um espaço propício à descoberta de soluções para o
conflito.
A não resolução de conflitos estimula a perpetuação de ambientes conturbados,
levando ao desgaste e à desmotivação dos profissionais envolvidos.
Cabe ao gestor, ao escolher a mediação como alternativa estratégica de ação,
estimular a criação de um ambiente em que imperem as possibilidades de diálogo .
40
Destarte, cabe também a ele o treinamento e a habilitação de competências
mediadoras para a administração de conflitos para professores e alunos e para todos que
trabalham no contexto escolar.
É uma tendência aferível, no mundo, o crescimento do número de estudos que se
voltam para o estudo e a análise da mediação, entre outros meios pacíficos de resolução
de conflitos. A escola é um campo privilegiado para estes estudos.
O ambiente escolar é um lugar onde convivem, cotidianamente, indivíduos dos mais
diversos espectros sociais, culturais , econômicos assim, é esperado que ocorram
conflitos, das mais diversas espécies. Torna-se essencial, então uma competente gestão
dos problemas para que não interfiram, de modo negativo, sobre o processo de ensino-
aprendizagem. É como afirmam Sales & Alencar ( 2009 ) : Em face dessa diversidade
de comportamentos e da multiplicidade de conflitos que podem surgir, a mediação se
apresenta como importante meio para tentar solucionar e bem administrar quaisquer
divergências que se desenvolvam na instituição de ensino.17
A mediação de conflitos compõe o grupo dos meios pacíficos e amigáveis de resolução
e gestão competente para a resolução de conflitos. Baseia-se no diálogo e na
solidariedade humana. As partes envolvidas tentam resolver por meio do diálogo,
mediado por um terceiro, habilitado e imparcial que visa facilitar o diálogo e
encaminhar a solução.
Assim a mediação permite a superação da cultura do conflito em prol da cultura do
diálogo. É importante lembrar que busca um acordo que beneficie os dois lados
envolvidos no conflito.
A violência, presença tão constante no contexto escolar da atualidade, pode
promover a erosão os vínculos existentes entre as pessoas, cada vez. A mediação
praticada nas escolas permite aos envolvidos o desenvolvimento da tolerância, do
41
respeito às diferenças, da solidariedade, estimulando o surgimento da igualdade, da
justiça, do desenvolvimento humano, condições básicas para uma democracia
participativa.
42
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As técnicas de mediação constituem uma ferramenta , ou melhor, uma abordagem
para a resolução de conflitos nas relações cotidianas das negociações , que é, senão o
ativo mais valioso, é dos mais importantes no padrão de operações de uma escola.
Vivemos um momento histórico em que as mudanças de padrões de comportamento se
dão numa velocidade tal que o que era certeza ontem é dúvida hoje e amanhã já é
certeza de outra ordem. As escolas buscam adaptar-se a essa realidade em constante
transformação, e lutar pela sobrevivência num mercado repleto de concorrentes e
opções.
Além das mudanças nos padrões de comportamento, há também a transformação do
próprio indivíduo. Há muitas opções de escolha, e há facilidade de buscar informações
sobre as escolas, e mudou o pensamento das famílias. Existem hoje grupos de pais
conscientes, exigentes e que demandam das escolas capacidade e habilidades para lidar
com as questões surgidas em contexto escolar e não medem esforços para fazer cumprir
aquilo que consideram justo.
Estas transformações, relatadas de maneira breve na primeira parte deste trabalho, são
responsáveis também pela tomada de consciência, por parte das escolas e das famílias,
de que há um novo jogo para ser jogado, e as regras não estão em nenhum manual.
Diante de um tempo de incertezas, transformações e mudanças contínuas , o mais
importante é contar com a possibilidade de ter à mão, no momento do conflito , o
conhecimento técnico da mediação , como meio pacífico para resolução de conflitos.
43
É o que esperam as novas famílias, mais exigentes, conscientes, com maior poder de
escolha e de decisão, a demandar das escolas mais qualidade, mais atendimento e mais
conhecimento para lidar com os conflitos.
A utilização da mediação para lidar com os conflitos se constitui numa ferramenta de
gestão moderna para as escolas, num mundo em constante mudança .
44
NOTAS
1- Página 66 in BAUMAN ,Zygmunt Modernidade Líquida . Rio de Janeiro :
Jorge Zahar Ed., 2005
2- Página 55 in AQUINO, Julio Groppa ( org. ) Indisciplina na Escola
São Paulo: Summus, 1996
3- BELINTANE, Claudemir O poder de fogo da relação educativa na mira
de novos e Velhos prometeus. Cadernos CEDES – n. 47 , 1998
4- Página 29 in AQUINO, Julio Groppa Do cotidiano escolar São Paulo :
Summus, 2000
5- Página 30 in AQUINO, Julio Groppa Do cotidiano escolar São Paulo :
Summus, 2000
6- Página 73 in ZAGURY, Tania O professor refém São Paulo: 2006
7- Página 55 in AQUINO, Julio Groppa Do cotidiano escolar São Paulo :
Summus, 2000
8-Páginas 20 e 21 in HOBSBAWN, Eric Era dos Extremos : o breve
século XX : 1914-1991 . São Paulo: Companhia das Letras, 1995
45
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