Unicom 05-2009

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JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – UNISC – SANTA CRUZ DO SUL – DEZEMBRO/2009

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Unicom n.05, dezembro de 2009

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JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – UNISC – SANTA CRUZ DO SUL – DEZEMBRO/2009

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UNISCUniversidade de Santa Cruz do SulAv. Independência, 2293Bairro UniversitárioSanta Cruz do Sul – RSCEP 96815-900

Curso de Comunicação Social – JornalismoBloco 15 – Sala 1506Telefone: (51) 3717-7383Coordenadora do curso:Ângela Felippi

Editor-chefeDemétrio de Azeredo Soster

EditoraEmanuelle Dal-Ri

Sub-ediçãoLuana Rodrigues

ProduçãoTatiane LawishNairo Orlandi

ReportagemAline SilvaÁlvaro NeuwaldAna Paula de AndradeEmanuelle Dal-RiHeloísa PollLuana RodriguesMaria Clara ReisNairo OrlandiPedro GarciaTatiane LawischTiago GarciaWesley Soares

DiagramaçãoHenrique SchererLarissa GrigucAna Paula de Andrade

Direção de arteHenrique Scherer

CapaAmanda MendonçaHenrique SchererMaria Clara Reis

LogotipoSamuel Heidemann

PublicidadeHenrique Scherer

ImpressãoGraphosetTiragem500 exemplares

Bloghttp://blogdounicom.blogspot.com

Este jornal foi produzido pelos alunos da disciplina de Produção em Mídia Impressa, coordenada pelo professor Demétrio de Azeredo Soster, no segundo semestre de 2009.

expediente

Compreender a que jornalismo estamos nos refe-rindo nesta primeira década do século 21 implica ob-servar, em primeiro lugar, o cenário em que a prática se estabelece, marcado por uma profunda imersão tecnológica da sociedade.

Trata-se de um ambiente diferenciado este, que reconfigura formas e processos, que complexifica lu-gares, e que, não raro, torna difícil identificarmos o que entendemos efetivamente por jornalismo.

Um indicativo de que isso se dá desta forma é que o jornalismo, em particular o de jornais e revis-tas impressos, acaba valorizando e desenvolvendo com cada vez mais frequência cacterísticas diferen-ciadas que, somadas, fortalecem ainda mais a iden-tidade de cada veículo, distinguindo-os dos demais e aumentando seu valor em relação a quem os lê.

Estas transformações podem ser percebidas em questões relativas à linguagem – que se torna mais próxima da literatura que do jornalismo dito informa-tivo –, na forma física dos jornais e revistas – que valo-riza ainda mais as imagens, as ilustrações e os brancos nas páginas etc – e incluem, porque não dizer, exercí-cios livres de criatividade comunicacional, caso da re-criação fotográfica de anúncios classificados. Isso para ficarmos em alguns dentre tantos exemplos.

Por que isso se dá dessa forma? Basicamente para que os veículos sigam vivos, e competitivos, em um mercado que disputa de forma cada vez mais acirrada leitores, assinantes e anunciantes.

E é por isso que, nesta segunda edição do Uni-com do segundo semestre de 2009, buscamos, uma vez mais, exercitar, alunos e professores, estas nuan-ças do fazer jornalístico moderno por meio de uma edição cujo norte principal é a diversidade criativa. E que inclui, para além do jornalismo, um diálogo muito estreito com a publicidade, a fotografia, a pro-dução em mídia audiovisual e as relações públicas, em uma perspectiva interdisciplinar.

Isso para que nossos estudantes possam ingres-sar no mercado de trabalho cada vez mais habilita-dos a exercer um jornalismo moderno, de qualidade, como exigem os novos tempos.

UM JORNALISMO DIFERENCIADO

editorial

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Retrô é você...

M inha avó tem cabelo roxo! Sim, isso mes-mo, roxo. Na verdade é um roxo claro, para mulheres mais antenadas diria que

é um lilás. Mas até aí nenhuma novidade, pois, todos os dias nos deparamos com “vozinhas” com esse tom de cabelo. Mas minha vó é diferente. Ela já teve o cabelo de várias cores, já fez inúme-ros permanentes e tudo isso sem medo nenhum. Pensando melhor, minha vó é realmente um tan-to quanto inusitada. Casou três vezes, teve seis filhos, muitos netos e nunca perdeu a felicidade de viver, que lhe é bastante peculiar. Mas sempre deu preferência por cuidar de si, de sua aparência e saúde.

Quando era menor não gostava de ir à casa dela, pois se passasse chimia no pão, não podia colocar açúcar no café, porque isso era doce de-mais. Passado meu “trauma”, hoje vejo que minha vó nunca foi vó. Ninguém nunca a viu fazendo cro-chê, tricô ou enchendo a casa de quitutes a espera dos netinhos, nunca acobertou travessuras e sem-pre gostou de se divertir. Se bem que agora não quer mais ir aos bailes da terceira idade, segundo ela, vai muita mulher e os homens se tornam dis-putados demais para dançar uma “marca*”.

Vovó já deixou convidados esperando na sua festa para buscar uma amiga. Sim, deixou todos os convidados e foi, a pé sozinha. Demorou para retornar e todos se olhavam, alguns com fome, outros sem entender, os parentes sem saber o que fazer, até que alguém gritou: “Lá vêm elas”. Até então, ninguém sabia que a amiga da vovó, era

uma senhora que tinha mais de 80 anos, morava apenas a algumas esquinas, mas por dificuldade de locomoção e uso de bengala, vinha no seu rit-mo e minha vó a acompanhava sorridente, con-versando e seus convidados todos a esperar. Sem contar o ano em que disse a todos que não fossem ao seu aniversário. Sabem por que? Vovó tinha feito tatuagens definitivas, definiu as sobrance-lhas e contornou os lábios. E isso nos seus 70 anos de vida.

Em uma das últimas visitas que fiz a ela, fui convidada para ir até o centro da cidade. Fomos a pé, porque “lembre-se: caminhar faz bem, minha filha”. Ela queria comprar um tênis, foi aí que per-guntei: “Qual tênis vó? Como a senhora quer?”

“Ah, um desses aí que tão usando agora com aquelas coisinhas atrás. Sabe?”

Eu, já perplexa, entendendo e não entendendo, perguntei:

“Com amortecedor?” (Com uma cara de pastel passado)

“Isso, isso mesmo.”Sim, minha avó queria um tênis com amorte-

cedor, e mais, tinha de ser bonito para combinar com suas roupas. Compramos e, assim como uma criança, ela o calçou na loja, enfiou os velhos na caixa e saiu feliz com seu “brinquedo” novo. Fala sério, depois de ler isso, de saber um pouco mais sobre a minha vó, retrô é você, porque minha véia é da hora!

*Marca – música para dançar

Aline Silva

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Retrossexuais

H á quem diga que a virgindade é coisa do passado, meio retrô, meio passada. Mas tem gente que encara esta questão de for-

ma bem original. Sempre há alguma amiga que, aos 30, não tenha conhecido um homem. Sempre? Claro que não, pois na era pós-moderna, ser virgem é as-sinar um atestado de inexperiência. Um prato cheio, e indigesto, para o preconceito. “Fulana? Não acre-dito!!!! Ela está mentindo...” Se no passado a pureza da mulher estava intimamente ligada ao hímen, hoje se mantém na condição única de ainda não ter feito sexo à moda exótica – Kama Sutra que o diga!

Ao longo do tempo, com a libertação da raça feminina dos seres “arianos”, uma nova postura foi assumida. Lógico, essa mudança causou traumas. Quando as mulheres queimaram seus “corpinhos”,

num protesto reconhecido mundialmente, mostra-ram que, além de rainhas do lar, poderiam ser tops no mercado de trabalho. E conseguiram. Aquelas menininas inocentes, na contramão das vontades masculinas, estão extintas. Quase não existem, a não ser as exceções.

Essas raríssimas virgens convictas fazem parte de uma nova classe: as retrossexuais. Essa palavra não será encontrada no dicionário, pois é um neologismo barato, porém bastante útil em termos de classifica-ção. A retrossexual é a típica mocinha que, embora anciã de algumas “brincadeirinhas”, ainda não che-gou aos finalmentes. Romântica, espera o príncipe encantado e não admite, sob qualquer hipótese, en-tregar o que há de mais importante em seu corpo a qualquer um. Sua atitude, aos olhos de quem ob-

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Emanuelle Dal-Ri

A juba de salto

A mãe sempre foi uma figura invejada. Do alto dos seus quase 1,80m, nunca cansou de repetir o quão lindo era andar de salto (agulha acima

de 10cm, obviamente). Certa vez, esperando a mãe ir buscá-la na casa da amiguinha, a pequena gordinha ou-viu a amiga dizer: “Olha só como tua mãe é bonita! Alta, magra, caminha toda cheia de pose”. A loirinha apenas sorriu. Ela admirava mesmo a mãe e sonhava um dia ter a sua postura. Mas nem de longe lembrava a mãe: era gorda, baixinha e loira. Exatamente o oposto daquela mulher que lhe dera a luz há uns cinco anos.

Um dia, porém, aquela admiração toda por sua beleza quase caiu por terra. Olhando Cavaleiros do Zoodíaco, a menina esperava em casa a mãe voltar do trabalho. Já era noite e ela estava demorando mais do que o normal. O mano tinha ido encontrá-la. De re-pente, surge na janela algo com forma de porco: o na-riz espremido no vidro, os olhos virados para dentro e a boca aberta. Ela riu e se levantou logo. Sabia que era o mano fazendo careta no vidro pra assustá-la.

Antes que chegasse à porta para encontrar ele e a mãe, soltou um grito de horror. Uma figura estranha e disforme tinha aparecido na janela. Estava com uma roupa verme-lha, que nem sua mãe, mas ela não tinha aquela juba na cabeça! Seus cabelos eram lindos e ondulados. Agora, esta-vam arrepiados e pareciam um capacete.

Segurando o choro, ela foi encontrá-los na porta. Antes mesmo de abraçá-los, não se conteve e come-çou a chorar. Ela não entendia porque tinham feito aquilo na cabeça da sua mãe. Como é que podiam tê-la deixado feia assim? Foram muitas lágrimas até a mãe conseguir entender porque ela chorava. Rindo, explicou que era só um penteado chamado “perma-nente” e prometeu que se a filha não tinha gostado, ela nunca mais faria aquilo na cabeça.

A menina engoliu o choro e quando se acalmou con-seguiu olhar melhor. Ufa, que alívio... A mãe ainda era a mesma. Só o cabelo estava estragado. Ela ainda era linda, com aquele tailleur vermelho vivo, a meia calça impecável e o sapato de salto alto. Quanto ao cabelo... Bom, a mãe jurou também que ia crescer e voltar ao normal de novo. Mais uma vez, a mãe disse a verdade.

Passaram-se os meses e o cabelo dela ficou bo-nito de novo. Com o passar dos anos, ela abando-nou o tailleur e adotou a calça jeans. Cortou os ca-belos bem curtinhos e diminuiu (um pouco) o salto. Nunca perdeu o porte nem baixou o queixo, mantido sempre à altura do horizonte. E ensinou tudo isso à filha.Se fechar os olhos, ela ainda pode ouvir o barulho do seu primeiro sapato de salto alto. Tinha dez anos quando a mãe decidiu que era hora dela aprender a andar de salto. Foram inúmeras noites andando de um lado para o outro da casa, sob o olhar atento da mãe, até que ela finalmente aprovasse sua postura. Só assim, com a garantia da mãe de que agora ela sabia caminhar de salto, é que a menina tomou coragem para sair à rua com a bota nova.

O tempo passou e os saltos da filha cresceram – e afinaram. Hoje, não há uma festa em que ela não vá com um agulha de pelo menos 10cm. Graças à mãe. Ainda hoje as suas amigas dizem que quando colocam salto se lembram dela. Hoje, a filha usa o mesmo salto que a mãe não largava há vinte e pou-cos anos. Também adota às vezes o cabelão de juba – só que ao invés do permanente, usa o babyliss. Só não usa o tailleur vermelho, que continua guardado, a pedido da menina. Ainda não tem coragem. É pre-ciso classe demais para vesti-lo. E nisso ela ainda não conseguiu copiar a mãe.

Rozana Ellwanger

serva a vida de forma prática e funcional, não passa de bobagem, talvez perda de tempo. Mas elas não se importam. Ainda que um pouquinho recalcadas, vivem com um sorriso nos lábios. Ahhhh... “Sexo é coisa fútil”.

Fãs de novelas e de revistas de fofoca, esses seres merecem um singelo parabéns. Claro, nem se pode levar em conta as questões patológicas/psicológicas, como bloqueios e tudo mais. Cada um faz, a partir de um livre-arbítrio divino, o que achar conveniente. Se as convenções sociais empurram a humanidade para os relacionamentos baseados somente na questão se-xual, que o passado volte à tona. E se você não co-nhece nenhuma mulher que, aos 27 anos, seja virgem, muito prazer. Aliás, prazer deixe para depois dos 30, quando voltar a acreditar em Papai Noel e duendes.

MAR

IA CLAR

A REIS

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Uma vida dedicada ao rádioAs histórias de Cyro Visalli, hoje com 69 anos, confundem-se com a do radiojornalismo gaúcho

TIAGO GARCIA

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ARQUIVO

PESSOAL

M eados de 1970. Um radialista promissor, oriundo da cidade de Turvo, interior de Santa Catarina, com algumas experiên-

cias já adquiridas em rádios do interior, chega a Porto Alegre para trabalhar na Rádio Farroupilha. Com poucos recursos, tendo apenas o seu talento para sobreviver, o atual locutor e gerente da Rádio Princesa, de Candelária, Cyro Visalli, nem de longe lembra o homem franzino que na época precisava escolher entre o café da manhã, jantar ou colocar gasolina no seu Fusca para sobreviver na capital.

Nascido em 1940, ele conta que, juntamente com a sua família, ouvia as noticiais da 2ª Guerra Mundial através do Repórter Esso, em um rádio mo-vido à bateria. “Meu pai nos deixava apenas escu-tar o noticiário para poupar a carga da bateria do rádio.” Ao servir o quartel em Santa Maria, teve a sua primeira experiência em rádio, onde trabalhava aos finais de semana na Rádio Guaratan. Após dois anos, retornou à sua cidade natal. Como já possuía

experiência em rádio, foi contratado para trabalhar na Rádio Herval do Oeste, da catarinense Joaçaba. Iniciou como comentarista, mas sob orientação de Telmo Silva, que era o narrador esportivo, passou a executar as funções de narrador. O locutor traba-lhou até o final dos anos 60 em Santa Catarina, nas rádios Herval do Oeste e Sociedade Catarinense.

Em 1970, o catarinense começou a trabalhar na Rádio Farroupilha, de Porto Alegre. Como já era casado e tinha uma filha, o locutor lembra que os primeiros tempos na “cidade grande” foram difí-ceis. Sem dinheiro no primeiro mês de serviço, ele lembra que utilizava o seu Fusca para transportar um colega que abria a emissora e lhe pagava com o valor que recebia da rádio para pagar o táxi. “Com esse dinheiro, eu revezava o que tinha. Um dia eu tomava o café da manhã, no outro, jantava e ficava um dia sem comer para colocar gasolina”, conta. Devido à necessidade do emprego para sobreviver, Visalli foi persistente e, com o trabalho, aos pou-cos foi ganhando espaço na emissora.

No período de Rádio Farroupilha, além de narrar os jogos de futebol, também apresentava programas tradicionalistas com Darci Fagundes, José Mendes e Teixeirinha. O radialista também contracenou

com Teixeirinha no filme Teixeirinha a sete provas, em que realizou uma das provas com o famoso can-tor gaúcho. Como locutor, um dos momentos mais marcantes na carreira foi em 1972, quando ele foi o primeiro a narrar ao vivo o incêndio ocorrido na Rádio Gaúcha. No período, ele trabalhou como lo-cutor da Rádio Tupi no Rio Grande do Sul, após, como repórter policial no jornal Diário de Notícias, que pertencia ao mesmo grupo da Rádio Farroupi-lha e no final dos anos 70, passou a trabalhar como editor de esportes no Jornal do Comércio.

Em abril de 1978, o Jornal do Comércio adquiriu as Rádios Princesa, de Porto Alegre, Candelária e Cachoeira do Sul, que pertenciam a família Per-tille. Como já possuía uma larga experiência em rádio, a empresa colocou o locutor como gerente das rádios de Candelária e Cachoeira do Sul. No dia 4 de maio de 1978, Visalli chegou a Candelária e assumiu a gerência nas duas emissoras, e como jornalista responsável pela sucursal do Jornal do Comércio, em Santa Cruz do Sul.

Hoje, com 69 anos, atua apenas na Rádio Prin-cesa de Candelária, onde continua como gerente e locutor de vários programas na emissora. Ao longo destes 31 anos residindo no município, o catarinense, que entre 92 e 96, também foi vice-prefeito. Entre outros, criou uma identidade com a população, que o reconhece pela maneira simples, mas sincera, que sempre procura levar a informa-ção ao alcance dos ouvintes.

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Para encher os olhose livrar os ouvidosPesquisadores exploram o cinema do tempo em que não havia some dividem com um público cada vez mais curioso

PEDRO GARCIA

A os olhos de um desavisado, a Sala São Pau-lo pareceria deslocada para outro momento da História em um final de tarde de agosto

último. Centenas de pessoas ocupavam as poltronas e experimentavam algo que hoje nos parece intragável: assistir a um filme mudo. Se vivemos a época em que a técnica vale tanto quanto ou mais do que o conte-údo, é natural que películas mais barulhentas con-quistem o topo das bilheterias. Mas um grupo cada vez maior de pessoas tem dirigido a atenção para o passado, no tempo em que o que se ouvia em sessões de cinema era nada mais do que o acompanhamento ao vivo das orquestras.

Em 2004, pesquisadores da Cinemateca Brasileira ambicionavam resgatar tudo o que fora filmado no país antes do advento do som. Passados cinco anos de inten-so trabalho, a missão se encaminha para a completude. Recentemente, os mesmos profissionais sentiram a ne-cessidade de dividir suas descobertas com um número maior de pessoas. A exemplo da Giornate del Cinema Muto, praticada há 30 anos em Pardenone, na Itália, cria-ram a Jornada do Cinema Silencioso, que em 2009 che-gou à sua terceira edição.

As sessões do francês Estudos sobre Paris (1928) na Sala São Paulo fizeram parte da extensa progra-mação que durou dez dias e atraiu cerca de 6.500 curiosos – muitos para assistir a filmes mudos pela primeira vez. Cada título ganhou duas sessões: uma com acompanhamento musical (no caso de Estudos, da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) e outra no mais absoluto silêncio – situação raríssima mesmo no começo do século passado, mas que foi a opção escolhida por boa parte do público.

Se filmes sem som e com os poucos diálogos re-

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produzidos em letreiros parecem cansativos – ain-da mais para uma geração domesticada com a tec-nologia avançada –, os organizadores da Jornada garantem que certos achados são capazes de sur-preender. “Alguns filmes japoneses que exibimos no ano passado tinham movimentos de câmera vertiginosos e incessantes”, conta o curador Carlos Roberto de Souza.

Outra função importante do evento é divulgar o trabalho de restauração desenvolvido em arquivos de filmes no mundo inteiro, e que chegam a resultados interessantes. Poucos sabem, por exemplo, que os fil-mes silenciosos em sua maioria não eram em preto e branco. O uso de técnicas de colorização e tingi-mento das películas eram predominantes até o final dos anos 20. Por medidas econômicas, no entanto, a maior parte dos filmes foi preservada em P&B e as referências às cores originais se perderam.

Graças ao esforço de pesquisadores, essas informa-ções estão sendo recuperadas. Um dos destaques da Jornada deste ano foi o francês Maldita seja a guerra! (1914), que chamou a atenção justamente pela quan-tidade e qualidade das cores utilizadas no original, bem como por seu uso dramático.

Conquistas como essas estimulam os profissionais a intensificarem as pesquisas. Apesar de poucos pa-íses haverem preservado suas cinematografias silen-ciosas, o conjunto de filmes a serem explorados pare-ce infinito. “O contato com essas produções é sempre muito revelador sobre a arte do cinema e suas dife-rentes linguagens”, relata Souza. Segundo ele, ape-nas a partir de pesquisas iniciadas há cerca de duas décadas é que foram descobertas inovações impor-tantes destes anos formadores do cinema.

FOTO

S:

DIVULG

AÇÃO

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Como vai você?Mais que um espaço onde problemas são compartilhados,o Centro de Valorização da Vida (CVV) é um local onde as pessoas se escutam

LUANA RODRIGUES

A pergunta é simples. A resposta, nem tanto. Saber o que se passa realmente no interior de nós mesmos é, com certeza, uma tarefa

difícil. E entender as angústias e anseios dos outros é mais complexo ainda. E é a isso que se propõe o Centro de Valorização da Vida, ou apenas CVV. Muitas pessoas sabem, de um modo geral, o que é o serviço, mas não percebem como ele funciona na prática. Ou melhor, quem está por trás dele.

O que era para ser apenas uma pauta serviu para mostrar que ainda existem pessoas preocupadas em ter a solução para problemas, que, para alguns, são bem difíceis de resolver, em especial quando se está sozinho.

Rosimeri Goulart, 42 anos, voluntária do centro, é uma destas pessoas. Voz suave, olhar tranqüilo, estatura pequena, parece, numa primeira visão, tão frágil quanto aquele que está ali à procura de ajuda. Mas quando a conversa se inicia é que se percebe que por trás dos olhos claros e dos cabelos de anjo existe uma pessoa pronta pra ouvir e tentar ajudar.

Rosimeri sabe que dividir um problema torna ele mais leve e o apoio emocional é algo que não tem preço. “Quando alguém fala em voz alta sobre suas emoções, acaba se ouvindo e compreende melhor o que se passa dentro de si.”

O sentimento de confiança, sigilo e acolhimen-to são três das principais características do CVV. Quem está ali não precisa se preocupar com crí-ticas ou preconceitos – o que normalmente acon-tece quando os problemas são familiares. Os vo-luntários apenas escutam e tentam promover o desabafo. Não é papel deles aconselhar ou emitir opinião, mas sim, fazer a pessoa se reencontrar e seguir seu caminho. E foi tudo isso que levou Rosi-meri a se tornar uma voluntária. “Me identifiquei muito com o serviço; aqui você aprende a aceitar os outros do jeito como eles são e acaba crescendo pessoalmente.”

O CVV existe em Santa Cruz do Cruz há três anos. Justamente porque em cidades da região, como Venâncio Aires e Candelária, estão localiza-

dos os maiores índices de suicídio do Rio Grande do Sul. Os números chamaram a atenção do órgão nacional, que decidiu abrir uma unidade local, so-mando-se a outros 56 postos no Brasil. Todos os meses, ocorrem cerca de 30 atendimentos no posto de Santa Cruz, que podem ser feitos pessoalmente, na sede da entidade, ou por telefone.

A sala que abriga o centro fica em anexo ao Cor-po de Bombeiros, na rua Tenente Coronel Brito. O espaço é simples, com apenas duas poltronas e me-sas. Mas a dedicação dos voluntários e a nobreza do serviço a que eles se propõem fazer ofusca qual-quer outra coisa. Ali, 12 pessoas se revezam nas escalas para conseguir dar conta do serviço. Cada um ao seu modo disponibiliza parte de seu tempo para dedicar a quem precisa de ajuda.

Para atuar no CVV é preciso ser maior de ida-de, passar por uma seleção e frequentar um curso preparatório, além de estágios. O equilíbrio psi-cológico também é um fator importante porque ali a pessoa acaba lidando com situações delica-das e extremas. “No começo, o voluntário pode até acabar se envolvendo com os problemas, mas aos poucos ele entende que seu papel naquele momento é outro.”

A verdade é que o serviço é bom para ambos os lados, já que, quando se tem consciência da gra-vidade dos fatos que se passam com os outros, é que se percebe que muitos dos nossos problemas chegam a ser ínfimos. Adolescentes e até crian-ças já foram atendidos no CVV, o que comprova que problemas existem com todas as faixas etá-rias e classes sociais. Ao final desta matéria, até mesmo a repórter não escapou da pergunta ini-cial de qualquer atendimento e que nos faz olhar com mais atenção pra nossa própria consciência. E então, como vai você?

SERVIÇO

Em Santa Cruz do Sul, o CVV pode ser encontrado através do telefone (51) 3717-3285, nos seguintes horários: de segunda a sexta-feira, a partir das 16h às 23h e nos domingos das 16h às 20h.

MAR

IA CLAR

A REIS

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Um pai de batina Olívio Heinen, hoje com 57 anos, não quis escolher entreo celibato e o matrimônio: optou pelos dois

ALINE SILVA

D esde criança Olívio Heinen tinha dois so-nhos: Ser padre e ter um filho. Realizou os dois. Apesar de serem sonhos distintos,

nunca pensou em desistir de nenhum deles. Duran-te 19 anos exerceu o sacerdócio, pregando a pa-lavra em diversas comunidades e interagindo com seus fiéis. E foi a própria igreja que fez com que seu destino se cruzasse com o de sua esposa e começas-se assim a história da família de um padre casado.

Olívio é o caçula de uma família de 12 irmãos. Desde jovem frequentava a igreja. Do gosto veio a profissão, pois em em 31 de março de 1969, foi ordenado padre. Como todo jovem, tinha sempre ideias inovadoras e acreditava que todo e qualquer religioso tem de conhecer, saber o que se passa nas comunidades e se nivelar a elas. Buscava sempre formas de aproximar as pessoas da igreja, com mis-sas animadas e até mesmo horários diferenciados para atender a juventude.

No entanto, o convívio paroquial fez com que Olívio percebesse que nem sempre a novidade e a inovação são ideias bem aceitas. “A minha esponta-neidade incomodava algumas pessoas, distorciam meu jeito de ser. Isso me chateava.” Mas não de-sistiu. Logo na primeira paróquia que trabalhou lançou a Missa Jovem, que se iniciava às 19 horas. “Começava às 19 horas e precisava terminar antes das 20 horas, porque havia cinema e todos gosta-vam de ir, inclusive eu.”

Padre Olívio, além de música e cinema, também é apaixonado por uma mania nacional – o futebol. Por muito tempo foi integrante de equipes do in-terior e também do time de futebol de salão dos padres. “Hoje só bato uma bolinha no time Velha Guarda.” Por não gostar de estar sozinho, chamava até sua paróquia pessoas que tocassem instrumen-tos e que cantassem. Foi assim que conheceu a pro-fessora Janice Isabel dos Reis.

Janice, que hoje tem 44 anos, ia às missas jun-tamente com sua irmã para tocar violão e cantar. A convivência dentro da igreja acabou aproximando o casal. O início foi difícil, afinal a igreja faz do celibato uma regra e condena os padres que não seguem à risca os mandamentos. “Está na hora da igreja avançar, mas ultimamente só tem regredido. Um padre com família se torna mais maduro para compreender as coisas, assim consegue auxiliar melhor seus paroquianos”. diz Olívio.

Em junho de 1988, padre Olívio pediu seu afas-tamento, que não foi aceito pelo bispo de sua pa-róquia. Somente em agosto, com a gravidez de sua agora esposa, foi desligado da igreja. Realizaria as-sim seu segundo sonho, o de ser pai, ter seu próprio

filho. Desde então a família constituída continuou a crescer e Olívio não é pai somente de um só filho e sim de três: Samuel, 11 anos; Liana, 9 anos; e Matheus, de 6 anos. “É uma bênção; é muito mais fácil se tornar esposo, pai, do que padre.”

Hoje, Olívio já não pode mais exercer o ministé-rio. No entanto, luta para que os padres com família possam voltar a atuar. Inclusive participa do Gru-po da Fraternidade, que discute pontos como este, além do celibato opcional e também a ordenação de mulheres. “A igreja tem que mudar, pelo menos permitir a experiência na paróquia. Por que só um tipo de padre? Nada na vida é cem por cento.”

Questionado sobre sua profissão, Olívio é pon-tual em dizer que é padre. “Sacerdote para sempre, segundo a Ordem de Melquisedeque.” Por isso não existe o termo ex-padre, que não é aceito por eles. “Foi isso que aprendi, foi isso que estudei, sou for-mado.”

Graduado em licenciatura plena em Filosofia, Sociologia e Teologia, encontra-se desempregado. Um pouco devido à crise. Outra razão, em decor-rência do preconceito. “Algumas escolas não con-tratam padres casados.”

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

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O homem que sabe a horaem que a água dormeCom um conhecimento que perpassa gerações, e com o aprendizado de anos vividos na mata,um morador da região serrana do Vale do Rio Pardo conhece todo os segredos da natureza

ANA PAULA DE ANDRADE

O lmiro de Bastos, 66 anos, não tem a pele negra, mas descende de escravos oriun-dos da África. Como ele próprio se ca-

racteriza, é um “bugre” dos tempos modernos. Mo-rador de Picada Karnopp, Bastos leva sua vida em um chalé às margens da RS-400, em um trecho tão cheio de lombas que andar por ali exige uma habi-lidade própria das lagartas.

E provém destes invertebrados um dos grandes momentos da vida deste que, como muitos, é co-nhecido por “domar” a sabedoria popular. O bu-gre das barbas e cabelos brancos passou um terço de sua vida na mata, para “conhecer a natureza”. Analfabeto, não consegue nem assinar seu próprio nome, mas sempre acha uma explicação para tudo. “A senhorita sabe em que hora a água dorme?” Já disparou no começo da entrevista. “A água dorme à meia-noite.” A princípio, seria ele mais um entre tantos que criam seus próprios contos.

Mas o motivo deste homem querer desvendar a natureza começou quando ele tinha 30 anos de idade. Impulsionado pelo primo, um militar de carreira, que pediu para que ele observas-se a natureza, e, então, seria recompensado por tal. Bastos não hesitou ao conselho e bandeou-se para Canhadão dos Moura, uma área de cerca de 700 hectares, no município de Candelária. Por 20 anos, ficou entre idas e vindas a seu recanto, que

hoje divide os municípios de Candelária e Passa Sete, no Vale do Rio Pardo.

Lá, conforme relatou, pode saber ao certo em que momento as cobras criam seus filhotes. “Pela língua bifurcada”, completou. E pela experiência adquirida, Bastos conheceu ainda mais as plantas medicinais. “Já sabia de muita coisa, pois meu pai sempre me ensinou como trabalhar com vários ti-pos de plantas. Ele herdou esse conhecimento dos meus avós, que herdaram do meus bisavós, negros da África.”

No alto de sua idade, Bastos afirma que jamais foi a um médico. Não toma medicamentos que não sejam feitos por ele e, mesmo assim, considera-se correto sob o seu ponto de vista. “Não posso ir a algo que eu não confio.” Certa vez, quando o filho cortava lenha, foi ferido por uma taturana. Como conhecia um antídoto para o veneno da lagarta, foi direto até a cozinha de sua casa e de lá tirou uma garrafa pet com um líquido esverdeado, dando-lhe um gole para beber.

Para sua surpresa, o filho, sem dor alguma, vol-tou a trabalhar 15 minutos depois. “Nossa, fiquei feliz, pois havia testado muito para que desse cer-to.” Com esse “remédio”, afirma ter salvo muitas vi-das. A simplicidade é marca registrada desse bugre que deixa a modéstia de lado quando fala de seus conhecimentos: “Olha, vou te dizer, já ajudei muita gente e isso me enche de orgulho.”

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MARIA CLARA REIS

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Não convide Nato para almoçarJoão Fortunato Grigollo, o Nato, de 77 anos, por certo deve ter quebrado todos recordes no quesito “bom de garfo”, pelo menos no Vale do Rio Pardo

EMANUELLE DAL-RI

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EMANUELE DAL-RI

V ocê toparia o desafio de comer 85 pêssegos? Seis quilos de carne? 50 laranjas ou 40 ca-quis? Essa quantidade de alimentos talvez pu-

desse ser utilizada para suprir as carências de umas 10 a 15 pessoas, dependendo do apetite de cada uma. Po-rém, os números são provas de vitórias para uma série de desafios propostos ao aposentado João Fortunato Grigollo, o “Nato”, de 77 anos. Ele guarda os “escores” com orgulho, pois ninguém conseguiu derrotar o bom de garfo, pelo menos até hoje, na região do Vale do Rio Pardo. Quem se habilita?

Apesar da voracidade extrema, Nato é pequeno e franzino. Sua dieta sempre foi pesada, entretanto nunca engordou além do que se considera normal para sua estatura. “Jamais passei dos 60 quilos. Posso comer o que quiser.”

Agricultor desde sempre, Grigollo tem uma histó-ria para cada feito. Certa vez, “quando o estômago já gritava”, deparou-se com uma grande quantidade

de pêssegos. Foi comendo, comendo... até chegar até à impressionante marca de 85 frutas durante cerca de uma hora.

Em outro dia, durante almoço num restaurante de Sobradinho, foi desafiado por dois amigos. Os outros pararam – mais que satisfeitos – bem antes de “Nato” completar os seis quilos de carne. Mas ele não parou por aí. 40 caquis foram degustados com calma, de sobremesa.

As 50 laranjas também são oriundas de um desafio feito ao morador de Linha Melchior, Lagoa Bonita do Sul. “Havia duas pessoas colhendo e eu só comendo as frutas com bagaço. Desistiram quando eu cheguei a 50. Isso que eu tinha comido 60 no almoço”, disse. Os fatos não são balelas ou pataquadas, muito pelo con-trário. Tudo foi confirmado por quem foi testemunha ocular desses relatos. “Hoje já não consigo. Como rela-tivamente pouco em virtude da idade. Algo em torno de duas a três servidas no almoço e na janta.”

Nato, além de bom de garfo, nunca teve medo de pe-gar no pesado. É, entre outros, um exímio escalador de pinheiros. Aos 77 anos, faz questão de subir nas árvores para retirar as pinhas e, posteriormente, comercializá-las. Desde pequeno, todos os anos, cumpre o mesmo ritual. Entre os meses de abril e maio, escala pinheiros de 18 a 20 metros. “Quatro a cinco metros eu faço com uma escada. O restante subo a braço mesmo”, contou.

Feliz com o fato de, apesar de idade, conseguir ven-cer os gigantes, Nato deu a receita para os jovens: “Bas-ta ter força de vontade e fé”. Pela experiência, jamais caiu. “Não tenho medo de altura e gosto do frio na bar-riga. Nunca caí, somente desci um pouco, porque meus pés não se agarraram direito”, frisou. O ano de 2010 será um marco na vida de Nato: “Vou parar, pois já não tenho mais tanto pique para isso”. Viúvo e pai de quatro filhos, passou somente a um a incumbência – ou dom – de retirar as pinhas. “Os outros não gostam. Se a gente não tirar, vão apodrecer lá. E isso é desperdício.”

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68 dias a bordo de uma RuralSão poucas as pessoas que deixam de lado a rotina do cotidiano para viver uma aventura.Carlos e Inajara toparam o desafio: foram à Patagônia de Rural

TATIANE LAWISCH

Ambiciosos (no bom sentido), alegres e sem medo de trabalho pesado. É assim que se definem Carlos Knebel, 25 anos, e Inajara

Trentin, 27. Dotados de uma índole aventureira, re-solveram colocar os sonhos em primeiro lugar. Para vivê-los até a “rapa” optaram por deixar de lado a correria diária, as cobranças profissionais e a vida controlada pelos ponteiros do relógio para pegar a estrada e percorrer a Patagônia de Rural.

Assim, movidos pelo desejo fascinante e desafia-dor de se aventurar pela Patagônia com um carro antigo, e com tempo suficiente para percorrer esse caminho, Carlos e Inajara garantem: a sensação de atravessar um lugar inóspito, cheio de animais sel-vagens, fortes rajadas de vento é incrível. Além da aventura e da beleza exótica aos olhos de quem as vê, o casal busca, com esta experiência, ensinamentos para a vida toda.

A segunda edição do Unicom do semestre traz uma entrevista exclusiva com o casal aventureiro que é conduzido por “Ursula” – nome carinhosamente dado a uma autêntica Willys, relíquia de 1968, 6 cilindros e tração nas quatro rodas. A caminhonete não é de-les: foi emprestada por um tio. Porém, com algumas exigências: que fosse fotografada em várias placas pelo caminho e que retornasse cheia de adesivos – lembranças de momentos vividos e compartilhados ao longo da viagem.

Até agora, o casal percorreu 9.000 km, dormindo 16 noites em casas de pessoas que lhes acolheram, 11 em hospedarias, três noites em barraca, 16 noites dentro da “Ursula”, oito em camping e mais oito em

postos de combustíveis. Já percorrem mais da metade do caminho. Além das maravilhas da natureza e di-ficuldades vivenciadas, eles destacam que o mais va-lioso que se pode levar da experiência são as pessoas que encontram pelo caminho. A entrevista:

Como foi que surgiu essa ideia de largar trabalho, rotina e a correria do dia-dia para percorrer a patagônia de rural?

Carlos – Percorrer a Patagônia em um carro antigo sempre foi um sonho meu. Um veículo dá bastante liberdade para escolher onde e quando ir e o fato de ser antigo, além de ser de fácil manutenção, também prende a atenção das pessoas e abre uma brecha para interagir com estas. Inicialmente pensei em construir uma Kombi-home, tendo cama, mesa, fogão, geladei-ra e banheiro, tudo dentro do veículo. Depois de pes-quisar na internet, vi que era possível e então levei a ideia para um tio que possui uma empresa de trans-formações veiculares. Para minha surpresa, ele ofe-receu de empréstimo sua relíquia – a Ursula, que não nos possibilita construir uma casa dentro dela, mas é um veículo mais forte e ainda mais fácil de consertar. A Argentina está cheia de Estancieiras (Rural argen-tina) e de amantes deste tipo de veículo, o que tem nos ajudado bastante. Quanto à questão de largar tra-

balho, rotina e a correria do dia-a-dia, antes de deci-dir realizar a viagem de Rural tomamos outra decisão importante: estudar inglês na Austrália e buscar um trabalho para nos sustentarmos por lá durante alguns anos. Estamos com 25 (Carlos) e 27 (Inajara) anos e este também era um desejo que já vinha crescendo há uns três anos. Decidimos realizar estes sonhos antes que venham os filhos.

De todos os lugares que vocês já passaram o que lhes chamou mais a atenção?

Inajara – O que mais nos surpreendeu e continua sur-preendendo não são os lugares, mas as pessoas. As pai-sagens são belíssimas, a história interessantíssima, mas o que surge como fator surpresa é sempre a atitude das pessoas em relação à viagem que estamos realizando. Temos recebido ajuda em muitos momentos e feito ami-gos por onde passamos. Com certeza isto é o que ficará de mais marcante. Quanto a um “lugar”, o que mais nos surpreendeu foi uma passagem por uma estrada de chão entre os povoados de Palena no Chile e Futalaufquen na

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Argentina, onde não sabíamos o que esperar, pois segui-mos a indicação de um argentino com o qual conversa-mos apenas pela internet, e que se mostrou ser um pa-raíso, ainda bastante inexplorado turisticamente. Lagos de água cristalina, verdes bosques e montanhas nevadas que ainda preservam a tranquilidade e a originalidade do interior destes países.

Como é viver diariamente dentro de uma Rural, percorrendo lugares nunca antes vis-tos?

Carlos – No início tínhamos bastante dificuldade em nos adaptar a um espaço tão pequeno, principal-mente porque não tínhamos lugares definidos para cada coisa. A todo instante procurávamos por algo e não encontrávamos. Além disso, havia o fator “estra-da”, pois percorremos muitos quilômetros em poucos dias, quase sempre com longas retas, fortes ventos e regiões desérticas, sem árvores e quase sem “verde”. O vento na Patagônia costuma ser forte e nos impos-sibilitava de manter velocidades superiores a 70 qui-lômetros por hora, aumentando bastante o tempo das viagens entre uma cidade e outra. Passados 15 dias, já estávamos acostumados com postos de gasolina e com a vivência dentro do carro. Foi aí que chegamos a Ushuaia, onde passamos três ou quatro dias sem pegar a estrada. De Ushuaia em diante estamos per-correndo a região da Cordilheira dos Andes e nossa rotina tem sido viajar um dia e ficar em um local du-rante três ou mais dias, tornando mais tranquila nos-sa vivência, afinal não estamos tanto tempo “tranca-dos” dentro do carro.

Como é a alimentação e como fazem para tomar banho, usar o banheiro etc.?

Carlos – Em geral fazemos comida quente uma vez ao dia, normalmente à noite. Aproveitamos a clari-dade para conhecer os lugares e, quando necessário, viajar. Quanto a tomar banho e usar o banheiro, há estações de serviço (postos de combustível) muito boas, onde há banho quente e muitas vezes internet wi-fi grátis. Além dos postos, também estamos fican-do em casas de donos de Estanciera que conhecemos por meio de grupos de discussões na Internet e em casas de pessoas que conhecemos através do Hospi-tality Club (www.hospitalityclub.org), uma rede na qual pessoas do mundo inteiro oferecem e pedem

hospedagem sem custo, apenas pelo prazer de inte-ragir com diferentes culturas. Poucas vezes, quando estamos muito cansados, ou quando realmente com-pensa financeiramente, nos damos ao luxo de passar uma ou mais noites em albergues da juventude (hos-tels) ou hotéis.

Já houve algum acidente de percurso com a “Ursula”? Ela já lhes deixou alguma vez “na mão”? Se sim, como foi esse episódio?

Inajara – Pouquíssimas vezes, menos do que imaginá-vamos que poderia acontecer. Passamos dois dias parados em Bahía Blanca por conta de uma bomba de gasolina que deixou de funcionar e um em Ushuaia, por conta de uma cruzeta. No episódio da bomba, não houve outra so-lução que não comprar uma bomba de gasolina elétrica, pois não encontramos peça de reposição (isso que Bahía Blanca é uma grande cidade). Contamos com o apoio da Legião Estanciera, um grupo de apaixonados por este car-ro existente em toda a Argentina. Aqueles que se interes-sam a ajudar um Estanciero com problemas cadastram-se no site e aos poucos foi se formando uma grande corrente ou legião. Neste dia, quando estávamos parados na bei-ra da estrada, enviamos uma mensagem de celular a um destes estancieros e ele tratou de contatar um grupo de jipeiros em Bahía Blanca que nos socorreram e ainda cor-reram atrás de resolver o problema para nós. No final das contas, foram dois dias passeando e conhecendo a cidade e, ainda por cima, pagamos apenas pelo valor da bomba nova. Já em Ushuaia a quebra ocorreu porque ficamos atolados em um parque, mas, no dia seguinte, buscamos uma oficina e facilmente resolvemos o problema, sem

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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

precisar chamar pela Legião. Fora isso, alguns parafusos vão ficando pelas estradas de chão (rindo) do interior, que às vezes são ruins, mas nada que uma cinta plástica, uma fita tape ou uma câmera de motocicleta não resolvam. A Rural é um carro muito forte e já passou por mais de 1.000 km de estrada de chão nessa viagem.

De tudo o que já viveram nesses dias em viagem, qual a maior lição de vida que vocês podem compartilhar com os leitores?

Carlos – Estarem abertos a conhecer as diferentes culturas que constituem nosso imenso planeta sem an-tes discriminar. Não existe “pré-conceito”, mas “con-ceito formado”. Se soubermos evitá-lo podemos apren-der a conviver com as pessoas e com isso estaremos crescendo como seres humanos.

O que vocês diriam a um casal aventureiro assim como vocês, que está com vontade de realizar uma façanha dessas?

Inajara – A cada dez pessoas, 11 te chamarão de “louco”, mas nada é tão difícil quanto parece. Vá e faça, pois se você não fizer, nunca saberá como seria e talvez envelheça arrependendo-se de não ter tenta-do. Se você tiver boas atitudes, receberá o mesmo, e, quando precisar, haverá alguém para ajudá-lo. Maus momentos fazem parte do caminho e devem ser lem-brados, pois são nesses momentos que mais crescemos como seres humanos.

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Mais do que o melhor amigoEm geral, os animais de estimação são simpáticos e conquistam a feição da maior parte das pessoas.Mas o que muitos não sabem é que eles também podem ajudar a tratar Estadual

MARIA CLARA REIS

R ecém-chegada a uma casa geriátrica, Dona Nély estava muito triste porque havia per-dido a capacidade de andar, devido graves

problemas de saúde. Entretanto sua vida começou a mudar com a visita do “Capeto” (foto à esquer-da) e sua trupe, cães voluntários. Estimulada a se movimentar, gradualmente foi obtendo pequenos avanços. E assim, ficava a espera da hora do Cape-to chegar. Com muito trabalho de fisioterapia e dos cães, Dona Nély começou a caminhar. Segundo as bolsistas do curso de fisioterapia, ela atribui seu su-cesso aos seus novos melhores amigos, que a tiram da cama e a fizeram andar novamente.

Muito mais do que ser irracional, símbolo de fi-delidade, o cão pode ter outras definições, que vão além dos jargões prontos. A Cinoterapia, Zooterapia ou Terapia Assistida por Animais (TAA) são apenas alguns dos termos existentes para classificar um tra-balho, que além de cães pode utilizar vários outros animais, como: cavalos, coelhos, golfinhos... É um método terapêutico em que o animal é parte inte-grante do tratamento. Nos idosos, segundo estudio-sos, os animais ajudam no estimulo ao movimento por meio de pequenas “brincadeiras”, que são indu-zidos a fazer com o auxílio dos voluntários e a equi-

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FOTOS: MARIA CLARA REIS

pe responsável pelo projeto.Apesar de ser um método alternativo e provocar

estranheza por ser pouco divulgado, não é nenhuma novidade, esta atividade é conhecida desde o século XVIII, quando na Inglaterra foi aplicado em uma ins-tituição de tratamento de doentes mentais. No Brasil a prática iniciou com a Doutora Nise da Silveira, na década de 40, utilizando cães e gatos em processos terapêuticos ocupacionais.

Em 1997, o curso de fisioterapia da UNISC come-çou o planejamento do Projeto: Ações para um enve-lhecimento com qualidade de vida, e dentro dele foi criado a atividade “Cão Terapia”. A motivação maior, que determinou os idosos como grupo a ser atendido nesta atividade foi o isolamento social, desestímulo característico dessas pessoas institucionalizadas, ou seja, aquelas que vivem em instituições de longa per-manência. Em Santa Cruz do Sul, segundo o setor de cadastro da Prefeitura, há 18 casas geriátricas.

Após o planejamento e definição dos objetivos, foi a hora de buscar o seu objeto de trabalho princi-pal: cães voluntários. Atualmente a atividade “Cão Terapia” é feita em 5 instituições geriátricas e mais a AAPECAN (Associação de Apoio a Pessoas com Cân-cer) utilizando 7 cães voluntários, que são acompa-

nhados pelos seus donos. Este trabalho também con-ta com a presença do veterinário Hermes de Souza, que tem a função de identificar o perfil dos cães e selecionar os que sejam aptos a trabalhar com ido-sos. As características básicas para ser “aprovado” é ter uma personalidade dócil, ser muito manso e não se incomodar com a presença de outros cães.

Eles são estimulados a fazer determinadas tare-fas, porém sem muito rigor, de acordo com as ati-tudes espontâneas do cão e do paciente. Objetivo principal desta interatividade é abrir um canal de comunicação. Um ponto observado é que o idoso passa a interagir mais, ser mais sociável e até, ter uma expressiva melhora na memória.

Segundo a coordenadora da atividade, professora Miriam Froemming, existem pesquisas que eviden-ciam que o contato com animais pode fazer com que os pacientes passem, até mesmo, a ter menos neces-sidade de ingerir remédios. Como os ministrados para dor em pacientes com câncer.

Agora, se você tem tempo disponível, amor ao próxi-mo, e claro, um cão com as características citadas: você também pode participar desta atividade. É só entrar em contato com o Setor do Projeto Ações, no ginásio poliesportivo da UNISC ou pelo telefone 3717 7685.

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O mel que ainda existe na ex-capitalConsiderada como a capital estadual do mel no início dos anos 90, Candelária ainda enxerga a apicultura como uma alternativa de renda para pequenas propriedades no interior

TIAGO GARCIA

C apital Estadual do Mel. No início dos anos 90, Candelária foi coroada com esta denominação após a realização de dois grandes eventos que

ficaram marcados no município. A 1ª Festa Estadual do Mel (FEMEL) em 1991 e o IX Congresso Brasileiro de Apicultura em 1992, o qual foi o primeiro e único congresso já realizado no Rio Grande do Sul. O exten-sionista da Emater e ex-presidente da Associação dos Apicultores de Candelária (APICAN), Sanderlei Perei-ra, conta que a idéia de colocar o mel como uma identi-dade para o município surgiu no final dos anos 80.

Ele lembra que na época, a associação, em parceria com a Emater, estava desenvolvendo cursos de apicul-tura no interior. No período, a APICAN chegou a pos-suir 180 apicultores sócios. Com a apicultura crescendo no município, se teve a idéia de realizar uma festa do mel. Com o apoio da prefeitura, a 1ª Festa Estadual do Mel (FEMEL), em outubro de 1991, a qual teve bastan-te êxito e solidificou o município como capital estadu-al do mel. Em novembro de 1992, Candelária acabou sendo sede pela primeira e única vez, de um congresso brasileiro de apicultura. Durante três dias, o evento reuniu mais de 400 congressistas do Brasil, Argentina e Uruguai, o qual colocou a apicultura candelariense em evidência no cenário nacional e internacional. Este

evento em Candelária foi o único em apicultura já rea-lizado no Rio Grande do Sul. Com a mudança da admi-nistração municipal, em 1993, discordâncias políticas acabaram colocando por terra o projeto construído no início da década. Atualmente, o município de Cambará do Sul, localizado na serra gaúcha, possui a atual de-nominação de capital do mel.

RONCADOR – Pereira salientou que atualmente, Candelária possui em torno de 3 mil colmeias, que pro-duzem aproximadamente 60 mil quilos de mel ao ano, com a média de enxames por produtor variando de 5 a 15. A maioria das abelhas são do tipo “africanas”, cujo mel oscila entre R$ 5,00 e R$ 10,00 o quilo. O índice de produtividade varia de acordo com as condições climá-ticas, uma vez que a presença das flores na primavera é fundamental para que as abelhas obtenham o néctar. Com o objetivo de fortalecer a atividade em Candelá-ria, a Emater ainda mantém as parcerias e os cursos de capacitação aos produtores. Na localidade de Ronca-dor, situada a 32 km da sede, oito famílias, membros da Associação Nossa Senhora de Fátima, participaram de um curso técnico em apicultura no Centro de Trei-namentos da Emater, em Tupanciretã. Uma das parti-cipantes foi à família Ullmann. Segundo o relato dos agricultores Pedro Vardi Ullmann e da esposa, Adilice

Elisa Ullmann, há dois anos, a família recebe orienta-ções do Capa (Centro de Apoio ao Pequeno Produtor) e da Emater. Através destas parcerias, os agricultores também conseguiram adquirir os equipamentos neces-sários, que foram financiados pelo CAPA e quitados com a própria produção de mel. No total, a família possui oito colmeias que produzem aproximadamente 200 kg de mel ao ano. As caixas de abelhas, do tipo “africanizadas”, estão situadas no interior da mata, es-tando mais próxima das flores silvestres. “A produção varia de acordo com a florada. Como estamos em um período de chuvas, a tendência é a produção diminuir”, destacou o agricultor. A família, que também trabalha com outras culturas agrícolas, observa a produção de mel como uma renda complementar. “Vendemos o que produzimos aqui na região mesmo, para os vizinhos, parentes e amigos, que sempre procuram levar o nosso mel”, diz Adilice. O extensionista agrícola da Emater salientou que a localidade também está nos planos fu-turos, para utilizar variedades de abelhas sem ferrão. “Vamos fazer os testes com abelhas dos tipos ‘tubuna’ e ‘jataí’ em duas unidades experimentais no Roncador. Essas variedades produzem um mel de cor e sabor di-ferenciados, usado também como medicamento. O va-lor do quilo pode chegar a R$ 30,00”, finaliza.

TIAG

O G

ARCIA

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Lembranças com cheiro de pão quenteO sabor é único. Isso porque além de ser um pão feito no forno à lenha, como antigamente, é uma tradição para a família Roesch

ANA PAULA DE ANDRADE

A casa é no centro. Perto de tudo. Mercado, açougue, creche, padaria, posto de saúde, escola. Enfim, área considerada nobre do

ponto de vista imobiliário. As condições financeiras também são favoráveis. A família de dona Nilva Ro-esch por muitas é tida como exemplo. Exemplo de estrutura: marido e mulher que vivem bem, há anos casados, com filhos adultos e formados. Mas também é uma família que, mesmo nos dias atuais, mantém vivo um costume antigo: fazer pão no forno à lenha.

O Fábio e o Fernando já não tem apenas a Dona Nilva e Seu Irineu para dividirem seu tempo. Eles tem as suas famílias, àquelas que os próprios filhos escolhem depois de adultos. Como pássaros que criam asas, aprendem a voar e saem debaixo das asas da mamãe. O Fábio já casou, e deu à Dona Nilva e Seu Irineu uma netinha, a Manuela. Hoje, a Manu, como é cha-mada, tem quatro anos. Ela é segmento de uma família, segmento de costumes e que, como pássaros, um dia também voará e carregará suas referências; ex-periências; exemplos do ninho que saiu. Assim como o trazido por Dona Nilva que, de gerações, carrega consigo o cos-tume de fazer pão em casa. Para muitos, um costume normal. Mas para ela, “uma tradição familiar”.

Seu Irineu é proprietário de um mi-ni-mercado, que antes era apenas um açougue. Mas a demanda e a boa locali-zação de seu comércio, fez com que ele ampliasse seu rol de produtos. Vende de tudo um pouco e até pães. Mas os da pa-daria. Os da Dona Nilva são apenas para o consumo da família. E para seu Irineu, são especiais. “Coisa bem boa o pão que ela faz em casa. Sabe que a modernida-de, essas tecnologias todas nos ajudam, mas tiram muitas coisas também. O do pão sovado, feito em casa como antiga-mente, ela não conseguiu nos tirar”, co-memora o homem, já nos altos de seus quase 70 anos.

O orgulho a que se refere seu Irineu e que dá o sabor do alimento sagrado, vem de uma construção a mais no ter-reno da família Roesch. Nos fundos da casa de número 1032, da maior rua da cidade, existe um forno. Sim, um forno. Mas à lenha. Daqueles grandes, que ví-amos muito comumente nas casas de in-

terior. Dos nossos avós. É aquele forno, com paredes cor-de-rosa que

combinam com a casa de Dona Nilva, que dá o sa-bor ao pão de Seu Irineu. E não só dele, também do Fábio, do Fernando e da Manu. E devolve à ela, aos 64 anos de idade, as lembranças da infância e da juventude, vividas no bairro Arroio Grande, em Santa Cruz do Sul, mas quando este ainda não era tão grande, tão povoado.

As terras do que hoje é o maior bairro da cidade, eram todas da família da Dona Nilva. E foi onde hoje fica o Morro da Cruz, que ela aprendeu brincando a fazer o que ainda lhe dá muita satisfação. “Quando criança eu e minha mãe fazíamos uns oito pães por dia. Eu adorava e aprendi a fazer brincando.”

E da brincadeira inocente de uma menina, ago-ra restam as lembranças. “Um dia inventei que que-ria fazer fogo no forno pra assar um pão. Só que foi pouco. O pão ficou branco. Daí tive que fazer tudo de novo pra conseguir assar, e aprendi”, recorda. Os gravetos queimados por Dona Nilva, na época, não renderam a brasa suficiente para o seu assado. Aten-ta, hoje ela alerta para o conhecimento que não tinha quando criança e diz que o fazer do pão começa já na escolha da lenha que vai ao forno. “Os paus de lenha eram muito pesados pra mim. Aí eu pegava os gravetos. Mas depois que errei aprendi que o graveto não adianta. Tem que ser um pau mais grosso, que vai dar bastante brasa. Porquê não é o fogo que assa o pão. É a brasa. O fogo, queima.” E quase em tom de

versos, Dona Nilva relembra da infância. Da época em que esperava a lenha virar brasa correndo pelo potreiro.

Os trabalhos no mercado e os de-veres domésticos são consequências da vida moderna e, ao mesmo tempo que tornam mais corrido o dia-a-dia de Dona Nilva - correria que não é mais no potreiro - costumam encobrir cos-tumes saborosos, sagrados à mesa de famílias de antigamente, que se uniam para as refeições e mantinham o sabor da união familiar.

Não contrária às tecnologias, a dona de casa possui as facilidades que tentam manter o paladar da vida moderna. Mas para ela, nada se compara ao pão sova-do à mão e assado no forno de lenha. “Eu sempre que eu posso, gosto de fazer pão no forno. Dá trabalho, é demorado, mas me faz bem. Eu lembro da minha mãe. De várias coisas.”

A neta que Fábio deu a Dona Nilva e Seu Irineu ainda é pequena, não diferen-cia o gosto dos pães e nem compreende a tradição que esse alimento carrega, mas se depender de Dona Nilva, vai com ela, colocar a mão na massa e, assim como ela, ter histórias pra contar da época que fazia pão na casa da avó, que comia os pães da avó e ajudava ela a fazer o fogo no forno de pedra. Forno que assava os pães de que seu Irineu nunca abriu mão. E forno, que Manuela até pode conside-rar seu. Pois do lado, está sua casa de brincadeira, uma casa rosa, como a da avó, mas de boneca. ANA PAULA DE ANDRADE

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O homem que ganhoua vida embaixo d’águaLuiz Carlos Machado, ou Beto, ou Betão, ou Betão Mergulhador,possui um trabalho diferente: aos 66 anos, passou a vida

WESLEY SOARES

Um ermitão. Para os que desconhecem sua his-tória, ele não passa de um ermitão; um su-jeito largado, sempre com sua barba branca

há muito suplicando por uma lâmina. Mesmo para os mais íntimos, os que o conhecem bem demais, Beto é um sujeito no mínimo intrigante. De tempos em tem-pos some. Daí, para achá-lo, só mesmo quando ele re-solve dar notícias. “Faz mais de um mês que não o vejo. Já tentei presenteá-lo com um telefone celular, mas ele não quer nem que fale no assunto”, lamenta Tito, um dos dois filhos de Betão, ao ser indagado sobre o para-deiro do pai.

Como mora sozinho, bater na porta de sua casa é perda de tempo. Mas se chegar bem perto da porta e prestar bastante atenção, escutará um barulho. É o seu velho radinho, sintonizado na Rádio Gaúcha. Além dele, percebe-se as luzes acesas. Isso quer di-zer que o Betão está por perto, correto? Não neces-sariamente. Ele explica: “Já arrombaram minha casa uma dezena de vezes, e depois que eu comecei a sair e deixar o rádio ligado e a luz acesa, nunca mais mexeram”, diverte-se com um ar de malandragem no rosto, ofuscado pela expressão cansada com as marcas do tempo.

Parece não haver um capítulo de sua vida que não tenha uma pitada de excentricidade. Afinal, como se explica um Luiz Carlos Machado virar Beto, e, mais tarde, Betão? Para alguns, ainda, ele é o Betão Loco, para outros, o Betão Mergulhador. O certo é que, in-dependente de como é chamado, dificilmente se en-contrará algum rio-pardense que não conheça esse cidadão da terra, que aos 22 anos já era mergulhador profissional – “um dos melhores da região”, ele faz questão de salientar – e desbravava toda a extensão do Rio Jacuí no município, dinamitando e abrindo ca-nais, saídas de água que possibilitavam a irrigação das plantações de arroz.

Tamanha era a sua habilidade técnica e recursos físicos que, após dois anos dinamitando os barrancos submersos do Jacuí, Betão foi convidado a trabalhar para uma equi-pe responsável pela limpeza dos esgotos do Rio Tietê, em São Paulo. Lá, foram aproximadamente quatro anos de novas experiências, muitas dificuldades, um pouco de dinheiro e algumas boas histórias. Certa vez, em um dia que tinha tudo para ser como qualquer um outro, ao mer-gulhar e se dirigir para o encanamento do esgoto, Betão encontrou um corpo no fundo do rio. Em tal estado de decomposição que já deveria ter boiado, não fosse estar preso no lodo depositado no fundo do rio.

Tudo ia bem em São Paulo, até Betão receber uma proposta. Era começo da década de 70 e a grande

chance de mudar de vida apare-ceu quando engenheiros da obra da hidrelétrica de Itaipu, ainda no seu começo, procuraram o mergulhador para trazê-lo de volta para o Sul, mais precisamente ao Paraná. O salário era m a i s que o dobro do que ele recebia. Segundo Betão, algo em torno de 10 salários mínimos. Ele não titubeou e imediatamente aceitou a proposta. O objetivo era alte-rar o curso do rio Paraná. Para isso, mais de um bilhão de sacos de areia foram utilizados. Em Itaipu, pela pri-meira e única vez, Betão foi um mergulhador profissio-nal mesmo. Com acompanhamento médico periódico e todos os direitos trabalhistas assistidos pelo sindi-cato. “Foram anos bons. Lá deu pra ganhar dinheiro”, confessa. Emocionado, ele respira fundo e conclui: “Tu sabe como é, me engracei com um rabo-de-saia daqui de Pantano (que na época ainda era Rio Pardo), e lar-guei tudo. Não quis saber mais de distância e voltei pra casa”.

Essa decisão até hoje mexe com os sentimentos da-quele que foi um dos maiores mergulhadores do Vale do Rio Pardo. Mesmo que jamais tenha abandonado totalmente o mergulho como uma forma de ganhar dinheiro, Betão nunca mais fez disso uma prática ha-bitual. Há décadas se dedica à agricultura. Já foi capa-taz dos maiores fazendeiros da região e hoje trabalha

15M

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para um tradicional agricultor de Minas do Leão.

Aproveita os finais de semana para fazer bico de mergulhador. Faz qualquer espécie de ma-

nutenção submersa, principalmente em represas de lavouras de arroz, o que lhe ocupa praticamente todos os finais de semana de novembro a abril, safra arrozei-ra. Desde que saiu de Itaipu, onde mergulhava até 32 metros de profundidade, Beto jamais voltou a utilizar o equipamento de mergulho. Todos os reparos neces-sários são realizados nos 2 minutos e 30 segundos de autonomia que seu fôlego lhe permite.

Cada vez que vai ao fundo, Betão volta à tona uns R$ 300,00 – preço aproximado que ele cobra por mergulho – mais rico, ou menos pobre, como ele prefere. Mas isso torna-se insignificante perante as histórias que emergem com esse simpático senhor sexagenário. Histórias tristes como a dos quatro corpos que resgatou de um riacho em Encruzilhada do Sul na década de 90. Algumas diferentes, como a vez em que foi levado até o Uruguai para fazer uma manutenção no açude de um agricultor de lá, ou as vezes em que teve seus serviços solicitados pelo corpo de bombeiros. Mas as que realmente emocionam, e dão for-ças para esse mergulhador seguir sua missão, são as vezes em que seu fôlego é solicitado para salvar vidas. Serviços como estes não têm preço.

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A mulher que caça livrosEm um dos bairros mais carentes de Rio Pardo, o sonho de uma moradora mudou a realidade da comunidade; Maria Leoni da Luz, 43 anos, conseguiu criar uma biblioteca comunitária

ÁLVARO NEUWALD

T udo começou quando Dona Leoni (como gos-ta de ser chamada) deixou a localidade de Arroio das Pedras, no interior de Rio Pardo,

onde nasceu e foi criada, após a morte do primeiro marido. Não vendo possibilidade de sustentar os cin-co filhos que tinha na época, mudou-se para o bairro Parque São Jorge no final de 1999.

Ao chegar ao local, ficou preocupada com a vio-lência na comunidade e com o fato de as crianças do bairro passarem o dia perambulando pelas ruas, en-quanto os pais trabalhavam. Temendo ver seus filhos na mesma situação, resolveu trabalhar em casa, como cabeleireira, e montar a biblioteca. “Fiz isso para aju-dar as crianças e para manter meus filhos em casa; tinha muita criança na rua.” Para atrair a atenção das crianças da rua, reunia-as em frente de casa e conta-va histórias para entretê-las. Mesmo tendo estudado somente até a 4ª série do Ensino Fundamental, Dona Leoni conta que sempre gostou de ler.

O início foi um pouco complicado. As pessoas não acreditavam que a iniciativa daria certo. “Muita gente achava que eu estava pirando porque tinha ficado viúva havia pouco tempo”, lembra ela. E a desconfiança também vinha dos filhos. Nem eles davam crédito ao sonho da mãe que, quando come-çou a investir na ideia, tinha apenas 24 livros. “Vai dizer que não é coisa de louco? 24 livros!”, comenta Denise, filha de dona Leoni.

Mas com o pensamento fixo e o objetivo de trans-formar o sonho em realidade, a cabeleireira começou a pedir doações para todas as pessoas que cruzavam na rua. A biblioteca começou a tomar forma em de-zembro de 1999, quando Dona Leoni entrou em con-tato com uma rádio local. Depois de ter a iniciativa divulgada durante a programação, ela começou a receber inúmeras doações e, em 28 de fevereiro de 2000, a Biblioteca Parque São Jorge foi inaugurada. “Para mim foi maravilhoso quando pude abrir as por-tas da biblioteca. Lembro até hoje das primeiras pes-soas que vieram retirar livros. A primeira foi a Eliete, uma moça que não mora mais aqui no bairro. A se-gunda foi a Rose Gorete, ela retira livros até hoje”, conta com orgulho Dona Leoni.

As doações nunca mais pararam de chegar e hoje já são quase 5 mil títulos. O número correto ela não sabe, pois o cadastramento dos exemplares foi ini-ciado ainda este ano e não foi concluído, mas até o início de 2010 deve estar pronto. Na biblioteca, as prateleiras são bem organizadas, com separações por gênero literário. Entre os autores, nomes como Sydney Sheldon, Clarice Linspector, Machado de Assis, entre outros. Dos livros disponíveis, o mais antigo que dona Leoni tem conhecimento é “Os Mi-seráveis”, de Victor Hugo, editado em Lisboa, em

1914. Todos os detalhes mostrados por ela com um enorme sorriso estampado no rosto.

O sucesso é tão grande que as pessoas vão até de noite retirar livros. E todos são atendidos. Dona Leoni não deixa de atender ninguém, não importa a hora. Mas, de todos os frequentadores da biblioteca, ela tem um carinho especial pelas crianças, e elas por Dona Leoni. “Eu adoro ajudar as crianças a pesquisar. E no final do ano, muitas vêm me mostrar o boletim, dizer que passaram de ano.”

Para poder retirar livros, as pessoas têm que fazer um cadastro gratuito. Feito isso, é só escolher o livro e dar asas à imaginação. O empréstimo é por até uma semana. “Quando alguém retira um livro eu anoto em um caderno o título quando foi retirado, quando vai ser devolvido e a pessoa assina. Até hoje só uma pessoa não devolveu um livro. Nunca mais emprestei pra ela”, afirma ela.

Dona Leoni conta, ainda, que, por se tratar de um

trabalho voluntário e comunitário, as pessoas cuidam dos livros. Não dobram, amassam, ou rasuram. Tudo em prol da comunidade e do conhecimento. E para manter este trabalho, pede para as pessoas que po-dem ajudar, que se associem à biblioteca. Para isto é cobrada uma taxa de R$ 4,00 anuais. Dinheiro utili-zado para melhorar a estrutura. Entretanto, a adesão é mínima, o que torna o espaço disponível para aco-modar os exemplares precário. As últimas doações não têm lugar nas prateleiras. Muitas são guardadas em caixas e outros são empilhados em cima de um lavatório de cabelos.

Agora, o novo sonho de Dona Leoni é ampliar a estrutura da biblioteca para poder acomodar todos os livros e para que as crianças possam ter um lugar adequado para fazer as pesquisas. As dificuldades são grandes para esta senhora que mora com sete filhos e vive de Bolsa Família e de alguns cortes de cabelo, mas para quem já foi taxada de louca...

ÁLV

AR

O N

EUW

ALD

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Trabalhava naquela obraCercado de perigos Não ligou para vidaNão sabia lidar com palavra

Andaime a surfar no céuVoa, brinca, escala e pintaNo esquadro cotidiano, Esquece de amarrar o arame

Vento que lhe enxuga,lágrima banhada a suor Vento que lhe parte Como folha que enrruga

Lá se vai o quartoLá se vai o terceiroLá se vai o segundoLá se vai o primeiro

Rua queima feito fogoInvadida e invasoraRecebe um corpo já frioPelo último suspiro

A morte do João

Multidão que vêOlhos estranhos que povoam aquela avenidaTravessa de partida

A cidade fi cou pequenaselva de pedra que andanum ritmo sem direçãoPouco sabe sobre o João

O sangue banhou o asfalto,Mas logo foi removidoNada mudou, Quando o carro passou

O patrão não falouO chefe não reclamouO colega não explicouSilêncio, e só

Mas aquele meninode pés no chão Sabe quem é o JoãoSeu pai, dos operários o paladino

Voa, brinca, escala e pintaNo esquadro cotidiano, Esquece de amarrar o arame

Vento que lhe enxuga,lágrima banhada a suor Vento que lhe parte Como folha que enrruga

Lá se vai o quartoLá se vai o terceiroLá se vai o segundoLá se vai o primeiro

Rua queima feito fogoInvadida e invasoraRecebe um corpo já frioPelo último suspiro

A cidade fi cou pequenaselva de pedra que andanum ritmo sem direçãoPouco sabe sobre o João

O sangue banhou o asfalto,Mas logo foi removidoNada mudou, Quando o carro passou

O patrão não falouO chefe não reclamouO colega não explicouSilêncio, e só

Mas aquele meninode pés no chão Sabe quem é o JoãoSeu pai, dos operários o paladino

Por: Emanuelle Dal-Ri

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Os velhos moradoresde farmáciasAcne, dor de cabeça, assaduras, odor nas axilas, problemas intestinais e falta de apetite são apenas alguns dos motivos que levam muita gente a procurar pelos medicamentos tradicionais

HELOÍSA POLL

S eja em um pote na cozinha, no armário do ba-nheiro, na gaveta da cômoda ou até mesmo na bolsa, os remédios, pomadas e talcos sempre

têm um lugar especial na vida da qualquer um. Mui-tos, no entanto, estão presentes no cotidiano por mais tempo do que se imagina. Um deles é o Bálsamo Ale-mão (1744), considerado um dos medicamentos mais antigos do Brasil.

E quando o assunto é o tradicional remédio ori-ginário da Alemanha, Nelcy Naysinger Ebling, de 69 anos, pede licença para falar. A dona de casa apo-sentada conheceu o Bálsamo Alemão há aproxima-damente 50 anos. Quando morava em Antônio Lima, zona rural de São Pedro do Sul. Sua mãe, Etelvina Diniz Naysinger, a protegia de gripes, resfriados e ou-tras enfermidades com o remédio. Ela e os outros dez irmãos precisavam enfrentar o cheiro forte do remé-dio para ficar imune às doenças.

Neste ano, Nelcy se preocupou em alertar os três filhos, netos e bisnetos para o uso do mesmo como pre-venção da gripe H1N1. Mas o temido gosto fez com que o genro, Artur Nereu do Carmo Freb, se recusasse a fazê-lo. Apesar da recusa por parte de alguns, muitas farmácias sofreram com a falta do Bálsamo, especial-mente em agosto, quando a nova gripe atingiu seu ápi-ce. Segundo o farmacêutico Ricardo Luís Nicknig, de Santa Cruz do Sul, os clientes tiveram que esperar por trinta dias para comprar o medicamento novamente.

Líder entre os mais vendidos, como comprova a farmacêutica Margareth Bender Hoppe, que trabalha há 11 anos em uma das farmácias mais antigas de Santa Cruz do Sul, a Olina é outro campeão de po-pularidade. Mas ela e o Bálsamo Alemão não estão sozinhos na lista dos retrôs que fazem sucesso. Os “sempre-eficazes” que engrossam a relação são As-pirina, Creo Cálcio Jobim, Vick Vaporub, Biotônico Fontoura, Colometin, Pó Pelotense e os do comple-xo Almeida Prado. No entanto, salienta Margareth, a procura é mais intensa entre os idosos.

O gerente comercial e financeiro, Clodoaldo Ray-mundi ainda não entrou no time da melhor idade, mas faz parte da lista dos usuários de Olina. Aos 33 anos, o estudante de administração de empresas teve maior contato com remédio há poucos meses, devido à reco-mendação da mãe, Neli Raymundi, que reside em Ponte Serrada, no estado de Santa Catarina. Foi por meio do telefone, em um dia que o intestino resolveu não funcio-nar direito, que Clodoaldo decidiu procurar o produto, registrado pelo imigrante alemão João Wesp, em 1919.

Outros medicamentos deste gênero já são apre-sentados a alguns seres desde os primeiros anos de vida. Maria Rozene Ebling Freb, de 43 anos - a filha de Nelcy, a fã Bálsamo Alemão –, curava a assadura das três filhas com o Pó Pelotense. Anos depois, uma delas, Karine Freb da Silva, 22, optou por usar Hi-poglós nos seus dois bebês, Izadora e Mariele. Hoje com três, e um ano e meio, respectivamente, as duas não são mais usuárias, mas Karine afirma que re-comenda o medicamento - introduzido no mercado brasileiro em 1939 - para qualquer mamãe.

Infância e medicamentos para o engenheiro am-

biental Morvan Kaercher, 33 anos, levam a uma lem-brança: AAS Infantil. Quando criança, o venâncio-ai-rense criava estratégias para “roubar” o remédio que ficava em um pote na cozinha, pois adorava o sabor da pastilha rosada. Hoje, a mãe Traudi Kaercher, de 62 anos, guarda o mesmo no quarto, dentro de uma cai-xa. Mas engana-se quem pensa que Morvan continua com a mania. Agora, na casa, o AAS é usado por Trau-di apenas para prevenir a pressão alta. Dessa forma, o passado e o presente dos seres humanos caminham lado a lado com a história dos antigos moradores de farmácias, os medicamentos retrô.

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A tradição cultivadaem tentos trançadosEm Santa Cruz do Sul trabalha um homem que detém uma habilidade tão antiga quanto os gaúchos: Guilherme Silva de Almeida é guasqueiro

NAIRO ORLANDI

Em um pequeno galpão nos fundos de casa, em meio a ferramentas e pedaços de couro, Guilherme Silva de Almeida, de 50 anos, co-

loca toda a sua criatividade e imaginação na confec-ção de produtos, exercendo a profissão que coloca comida em sua mesa. Uma profissão um tanto inco-mum nos dias de hoje: ele é guasqueiro.

Mas você sabe o que é um guasqueiro? Para res-ponder a isso vamos retomar a história. Na época das missões no Rio Grande do Sul, os espanhóis trou-xeram as técnicas de trabalho com o couro. Como aqui havia muito couro devido à criação de gado, e as grandes indústrias só existiam na Europa, alguns começaram a usar esse material para fazer diversos produtos. Já que uma tira de couro cru era chamada de guasca, essas pessoas passaram a ser chamadas de guasqueiros.

O ofício foi passado de geração em geração. O pai de sua avó já trabalhava com isso em escala co-mercial no interior de Pantano Grande. Então, desde pequeno Guilherme já sabia o básico sobre como tra-balhar com o couro, mas não tinha isso como profis-são: trabalhava no setor fumageiro, que deixou há 15 anos. Como na época existia uma grande demanda por trabalhos artesanais em couro, e Guilherme sa-bia fazer bem o trabalho, acabou se tornando guas-queiro. É o que lhe sustenta desde então.

Começou fazendo um trabalho básico, sem mui-tos detalhes. Mas com o tempo foi se aperfeiçoan-do, e hoje diz que “não perde para ninguém”. Tanto que sua agenda de encomendas está lotada. Se não aceitasse mais nenhum pedido a partir de hoje, teria trabalho para seis meses. Como um bom artista, é exigente: sempre procura fazer peças únicas, com sua marca registrada: o desenho de uma tulipa feita com tiras de couro trançadas.

São vários os produtos que Guilherme confec-ciona com o couro: material para encilhar cavalos (rédea, cabeçada, peiteira, travessão etc) e também bainhas de facas, cintos, porta cuias e faixas para

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prendas. Ele trabalha com couro de gado, de cavalo, cabrito e até mesmo o industrializado, pois, segundo ele, há gosto pra tudo. Mas prefere mesmo trabalhar com o natural. E o trabalho é todo feito de maneira artesanal, desde a escolha do tipo de couro específi-co para fazer determinado produto.

Primeiro Guilherme vai até o matadouro e esco-lhe o couro que irá usar, já pensando no trabalho que vai realizar. Daí, leva para a sua oficina nos fun-dos de casa, um pequeno galpão, onde vai trabalhar ele. Depois disso ele inicia o processo de limpeza do material, tirando todos os pedaços de carne que fica-ram e também o pêlo do animal. Com isso, o couro vai ficar com a tonalidade do próprio pêlo. Depois é feito um curtimento artesanal. Para isso Guilherme usa um produto que não conta para ninguém. Após o curtimento ele é colocado para secar na sombra, pois daí fica mais maleável para trabalhar. Orgulho-so, compara seu couro com ouro e prata, que tam-bém são maleáveis. Depois de todo esse processo, o

material está pronto para ser usado.Pelo fato de que, na cultura gaúcha, há forte pre-

sença de materiais de couro, o seu maior mercado é no Rio Grande do Sul. Mas quando Guilherme diz que tem demanda não está mentindo. Realiza tra-balhos também para Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e até es-tados do nordeste. Tanto para pessoas como para lo-jas. A divulgação ocorre mais no boca a boca. Mas Guilherme também se utiliza da internet. “Princi-palmente para conhecer o que os guasqueiros estão fazendo em países distantes como a Argentina.” De resto, é pela fama.

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