Uma Teoria Da Cultura - Sobre Violência e o Sagrado de Girard

17
LIVROS

description

.

Transcript of Uma Teoria Da Cultura - Sobre Violência e o Sagrado de Girard

  • L I V R O S

  • GIRARD, Ren . La violence et le sacr. Paris, Grasset, 1972 .

    UMA TEORIA DA CULTURA

    UBALDO PUPPI

    A TEORIA

    O livro de Ren Girard parece situar-se primeira vista entre a retrica, a cincia e a Filosofia. A verdade, aqui, est no meio. Sob roupagem insinuantemente literria, que denuncia as origens intelectuais do autor e a escolha do tratamento dado s mediaes que o conduzem ao objeto, a inteno e o mtodo so estritamente cientficos. A hiptese levantada - original e audaciosa - coerentemente estruturada e, tanto quanto o pode ser, comprovada. Cada um dos trs ltimos aspectos merece, porm, um esclarecimento complementar .

    A teoria, como a polmica nela inspirada, revela uma fora intuitiva incomum, destinada por isso mesmo a ser ou desdenhada e postergada, ou a exercer, a curto ou longo prazo, verdadeira revoluo na concepo do homem, da sociedade e da cultura, e na renovao das cincias humanas ora em curso. No sendo dono do tempo para prever o sucesso ou o abandono da hiptese, s resta ao leitor competente discut-Ia, p-la prova mediante fatos por ela ainda no considerados, ou propor uma hiptese mais satisfatria . Contudo, preciso reconhec-lo, num sentido a de Girard a mais satisfatria de quantas j vieram luz ; refiro-me ao seu alcance fundacional. O que nela h de mais perturbador precisamente que, numa poca em que a fragmentao do saber quase uma lei epistemolgica, ela explica bem demais o fenmeno unitrio e global da cultura .

    Estruturalista no sentido mais amplo da palavra, o autor reconhece mais pelo lado negativo (formativo) o valor do estruturalismo de estrita observncia. "Espcie de retirada estratgica, importante pelas iluses que dissipa, pelas dis-

    T R A N S / FORM / AO 1 241250

  • - 242 -

    tines que opera, esse estruturalismo torna-se esterilizante se se faz dele um absoluto", diz Girard em outro lugar. De acordo com essa tomada de posio, no segue nenhum dos modelos formais contemporaneamente clssicos ; tampouco regride para aqum deles. No reduz previamente o material tratado a um conjunto de puras diferenas abstratas, no manipula com o simbolismo lgico-matemtico, nem isola leis de organizao estrutural. Permanece axiomtico, mas todos os seus conceitos bsicos so operadores estratgicos, sem qualquer compromisso ingnuo ou bastardo com o perceptivo e o vivido. Fiel a seus pressupostos cientficos, constri de modo discursivo - e mesmo prolixa a redundantemente - um modelo terico que governa e preside toda a sua prtica racional .

    Lidando com textos, com a linguagem, com a "simbolizao", nem por isso resigna-se aos limites de um sistema significante no rastro de Saussure, de Barthes ou de Levi Strauss. No ato mesmo do discurso elabora e estrutura os sentidos remotos e radicais descobertos por interpretao dos sentidos prximos e imediatos. A interpretao, no caso, sendo totalmente solidria da hiptese terica, dela sempre dependendo e a ela incessantemente conduzindo .

    A hiptese subjacente interpretao serve de argumento ao autor para recusar que seu procedimento seja considerado como uma hermenutica. A razo disso no comporta ambiguidade : "h hermenutica na medida em que a questo permanece sem resposta". Se a resposta, - sempre tentada (e escamoteada) , sem jamais ser encontrada, por todas as hermenuticas anteriores, - enfim desvelada por Girard, ento ele tem razo de dizer que sua soluo "desconstroi todas essas hermenuticas" . "A tese no constitui pois uma nova hermenutica" . Nem basta "o fato que ela s seja accessvel atravs dos textos para julg-la como tal" . Alis, o critrio epistemolgico que permite distinguir entre a hermenutica e a tese do livro explicitado logo a seguir, no sem tambm contrapor esta ltima s demais cincias que j abordaram o mesmo objeto com o mesmo objetivo (tambm escamoteados) . A hermenutica, com efeito, teria sempre um "carter teolgico ou metafsico, em todos os sentidos que se possa atribuir a esses termos". Sua tese, pelo contrrio, "responde a todas as exigncias de uma hiptese cientfica, o que no se d com as teses psicolgicas e sociolgicas que se querem positivas mas que deixam na sombra tudo o que os

    TRAN S / FORM / AO 1 2 4 1 - 2 5 6

  • - 243 -

    telogos e os metafsicos sempre deixaram na sombra, delas no sendo afinal de contas seno sucedneos invertidos".

    H uma tentao da facilidade, que consistiria em embaralhar os conceitos de cincia e de hermenutica, recusando separ-los na obra de Girard. Pode ser perguntado porm se, numa atitude simetricamente oposta, no ele prprio que estaria recorrendo a uma soluo de facilidade, ao descartar-se sumariamente da hermenutica. No me parece de todo certo que "s" haja hermenutica na medida em que no h resposta, que a hermenutica deva ter "sempre" um carter "teolgico" ou "metafsico", e que ela seja portanto incompatvel com a hiptese cientfica. Efetivamente existem hermenutica ambguas, como existem hermenuticas legitimamente filosficas, estas ltimas sendo melhor definidas como reflexo interpretativa que comea procedendo do sentido patente para o sentido latente de uma linguagem primeira e se completa pelo chamado crculo hermenutico, por sua vez valorizante do vivido . No haveria lugar tambm para uma certa hermenutica cientfica, solidria de uma hiptese terica?

    Reconhecendo os direitos da hermenutica filosfica, autonomamente ou em composio com a cincia (exemplo Ricoeur, intrprete de Freud) , G. Granger chama a ateno para "a existncia de uma outra atitude hermenutica", cientfica agora. Esta hermenutica, concebida como um "sistema significante" est presente na psicanlise "pelo menos como possibilidade" , e corresponde "a uma visada no de reflexo mas de objetivao". A possibilidade postulada por Granger recobre, em parte sim e em parte no, a prtica efetiva de Girard. Esta no se alinha com os sistemas significantes, nem, ao contrrio de Freud, "postula uma forma qualquer de inconsciente", como tampouco "deixa um resduo opaco qualquer" . Alinha-se antes com as explicaes "energticas" , mas como tal permanece insuficiente sem a atitude hermenutica objetivamente ; sem esta, a teoria seria puramente abstrata e vazia e nem sequer poderia ser elaborada como hiptese explicativa, operatria, estratgica .

    Os conceitos fundamentais da hiptese sendo todos operatrios, como vimos, Girard chega a eles por uma prtica hermenutica sobre textos : da retoma dialticamente ao "fato emprico" mediante uma interpretao sobre textos, mas escoimada do "crculo hermenutico" , que o que inconfessadamente parece perturbar o autor. Se a prtica herme-

    TRANS I FORM I AO 1 241-256

  • - 244 -

    nutica global implica, de uma parte, a busca do sentido latente sob o sentido patente e, de outra parte, o crculo hermenutico, este constituindo o que efetivamente a caracteriza como prtica global, a s adoo da primeira parte da prtica hermenutica a reduz a uma "clnica" hermenutica . Clnica sem prtica, recorrendo uma vez mais a Granger.

    Aqui, a clnica hermenutica est, por um lado, associada hiptese cientfica e, por outro lado, dissociada do crculo hermenutico . Aqui, a teoria distingue-se, quer das hermenuticas ambguas, que ela desconstri, porque lhes falta a hiptese terica, quer das hermenuticas filosficas, que ela deve respeitar, porque estas suprem pelo crculo hermenutico a inviabilidade de um equivalente de hiptese cientfica.

    A resposta questo : "h uma hermenutica cientfica?" , nos termos em que a coloco, bem poderia ser a tese do livro de Girard, apesar de expresses suas do teor das acima citadas. Pouco importa, de resto, a manuteno da palavra "hermenutica" , cujo pasado histrico pode torn-la suspeita, o que alis me parece irrelevante ; o que est em jogo o liame que faz a hiptese depender totalmente do que chamo clnico hermenutico, e jamais de qualquer outro recurso metodolgico prprio de modelos formais no sentido estrito, de explicaes puramente energticas, de sistemas significantes. Uma outra diferena entre a hermenutica cientfica proposta por Granger e a usada por Girard, reside nisto que a primeira concebida como independente embora indispensavelmente complementar de uma explicao energtica, ao passo que a segunda acionada de modo complementar mas no independente de uma explicao energtica .

    * * *

    A comprovao da hiptese levanta uma dificuldade inerente perspectiva do autor acerca da hermenutica; dificuldade, se no contornvel de todo, pelo menos melhor circunscrita pela correo proposta acima. "A teoria tem isto de paradoxal que ela se pretende fundar sobre fatos cujo carter emprico no verificvel empiricamente" .

    De fato, ela no evita a impossibilidade de ser testada pela realidade seno pelo recurso interpretao. o que alis Girard no pode deixar de reconhecer: "no temos acesso ao acontecimento fundador seno ao termo de uma srie de vaivens entre documentos sempre enigmticos e que constituem ao mesmo tempo o meio em que a teoria elabo-

    TRANS / FORM / AO 1 2 H 2 5 6

  • - 245 -

    rada e o lugar de sua verifcao" . O descrdito, porm, em que ele prprio lanou a hermenutica, o leva a procurar na analogia com o transformismo a garantia da cientificidade de sua proposta. S podemos obviamente concordar que, tanto no seu caso como no caso do transformismo, " preciso proceder por hiptese" . Mas, precisamente, a aproximao entre "os restos fsseis dos seres vivos" e "os textos em nossa prpria hiptese" , forada .

    No transformismo, so os prprios fatos anatmicos comparativamente estudados que surgerem a hiptese, e a hiptese que supre os elos desconhecidos e ainda no dados . O que equivale a dizer que no transformismo so os prprios fatos constatados que, - num momento de feed back das motivaes, o momento Darwin, - motivam o conceito de evoluo, e portanto a hiptese mesma; ao passo que em Girard a interpretao objetivante dos textos que, - num mesmo momento de implicao recproca das motivaes, o momento Girard, - motiva o conceito e o fato : o fato no conceito operatrio mediante o texto, e portanto a hiptese tambm. Torna-se inevitvel concluir ento na direo de uma hiptese hermenutica. Suas condies de possibilidade e sua validade dependem das condies de possibilidade e da validade de uma clnica hermenutica de cunho cientfico .

    Na dependncia dessas caractersticas gerais, e na verdade essenciais, a hiptese tem a seu crdito outros critrios particulares, de coerncia e de alcance explicativo. "Ela permite uma definio rigorosa dos termos fundamentais" que, mais uma vez e uma vez por todas, esto associados clnica hermenutica. "No deixa de lado nenhum dos temas principais ; nenhum resduo opaco permanece" ; "no recorre jamais s muletas tradicionais da 'exceo' e da 'aberrao' . " "Permite organizar e totalizar a massa enorme dos fatos com uma real economia de meios" . D conta "dos dados aparentemente mais opacos" .

    * * *

    Os trs blocos de esclarecimentos revelam uma filosofia implcita, mas incoercivelmente canalizada pelo controle do critrio cientfico, com pontos de passagem flagrante para a ontologia. Isso se deve ao alargamento do conceito de cincia, sem incidir em compromissos com a filosofia ou com a ideologia da cincia. Ao leitor filsofo ou aberto filosofia, de prolongar suas indicaes para alm de uma epistemologia

    TRANS / FORM / AO 1 2 4 1 - 2 5 6

  • - 26 -

    das cincias, sem abandonar uma eventual - fatal na perspectiva de Girard - reviso desta ltima .

    De qualquer modo, Girard prope em substncia uma nova concepo do ser do homem e, em decorrncia, dos temas que lhe dizem respeito. Para isso ampara-se na psicologia da "double bind" em estreita correlao com o teor da hiptese, desenvolvendo uma descrio que poderiamos classificar de fenomenolgica em sentido amplo e no-husserliano, e chamar de anlise existencial, no por repetio de Heidegger, mas porque culmina apontando para um horizonte ontolgico, de natureza hermenutica : ontologia trgica implicada no comportamento-violncia do homem. Apesar disso e por isso mesmo, aproxima-se do "melhor Freud, que no freudiano", e que a psicanlise elude. Mas aquela anlise existencial se polariza exclusivamente como anlise social do comportamento. Sob esse prisma concorre com Marx, no que este "tem de melhor e que tampouco marxista" . Se, por esses exemplos, a ambio de Girard parece no ter limites, por limites entendendo aqui as cincias atualmente constitudas, ela no provm de extrapolaes incontidas, mas do alcance mesmo de sua teoria .

    DOS ANTECEDENTES A TEORIA

    O itinerrio de Girard neste seu segundo livro se situa entre um primeiro publicado e um terceiro j prometido . O anterior, "Mensonge romantique et vrit romanesque", datado de 196 1 , trata amplamente do estatuto da literatura . O outro, que faz o interesse deste artigo, constri uma teoria da religio e da cultura primitivas. O prometido e "en chantier" versar sobre outra vertente religioso-cultural, o judeu-cristo. Do primeiro para o segundo, h aprofundamento e nova orientao na visada do autor, e como que o encontro de uma definio de interesses. Do segundo para o terceiro haver uma ampliao em direo "religio e civilizao ocidentais e crists" (a expresso, que no de Girard mas recobre perfeitamente a sua, nada tem de um slogan ideolgico. Tudo leva a crer que a ele desconstrura o slogan) .

    A primeira dessas passagens o faz remontar do romance moderno tragdia. squilo, Sfocles, Eurpedes parecem ter sido a ocasio determinante de seus novos interesses, ou estes a ocasio para deter-se naqueles. O fato que, para a com-

    TRA)iS I FORM I AO 1 2 4 ] 2 5 6

  • - 247 -

    preenso da tragdia grega, busca apoio nos dados da etnologia. Mas, se a crtica literria contempornea desconhece o sentido da inspirao trgica, a etnologia nem sequer o coloca como questo. A crtica literria no se interessa seno pela tragdia ; o mito permanece, para ela, um dado imprescrptive I em que no deve sequer tocar. A cincia dos mitos, pelo contrrio, deixa a tragdia de lado ; ela se cr mesmo na obrigao de mostrar a seu respeito uma certa desconfiana" . Ora, precisamente a inspirao trgica toma o mito como tema, denunciando a verdade que ele ao mesmo tempo representa e oculta .

    A tragdia, celebrada perante a comunidade, tem algo a ver com o rito sacrificial, do qual toma o lugar quando este entra em declnio. Em vez de "um templo e de um altar sobre o qual ser realmente imolada uma vtima, tem-se agora um teatro e um palco sobre o qual o destino dessa vtima (o catharma) purgar os espectadores de suas paixes e provocar uma nova catharsis individual e coletiva" . A tragdia grega situa-se pois em um perodo de transio entre uma ordem religiosa arcaica e a ordem mais "moderna", estatal e judiciria, que vai suced-la.

    Leitura trgica do mito e reproduo dessacralizada do rito, a tragdia manifesta sua origem religiosa. Todo o problema concentra ento em torno do religioso primitivo, que se exprime objetivamente nos mitos e nos ritos, e cuja "gnese, funo e estrutura" devem ser procuradas. Devem ser procuradas porque a intuio de Girard no tem precedentes nem modelos a seguir : "No temos nem guia nem modelo ; no participamos de nenhuma atividade definvel. No nos podemos reclamar de nenhuma disciplina reconhecida. O que queremos fazer to estranho tragdia ou crtica literria quanto etnologia ou psicanlise" .

    H uma origem real que os mitos, a seu modo, no cessam de rememorar, e os ritos, a seu modo, no cessam de comemorar. Deve tratar-se de um acontecimento que exerceu sobre os homens uma impresso, no indelvel, posto que eles acabam por esquec-lo, mas de qualquer modo muito forte . Essa impresso se perpetua por intermdio do religioso e de todas as formas culturais . No pois necessrio, para disso se dar conta, postular uma forma qualquer de inconsciente, seja individual, seja coletivo .

    O pensamento mtico se refere sempre ao que se passou

    T H A N S / FOlUI / AO I 2 4 1 - 2 5 6

  • - 248 -

    da vez primeira . E se o sacrifcio tem um lugar to decisivo na comemorao ritual, porque o acontecimento original normalmente a destinao de uma vtima emissaria morte. Exigncia que no passou desapercebida do Freud de "Totem e Tab". A impressionante unidade dos sacrifcios sugere tratar-se do mesmo tipo de imolao em todas as sociedades . O que no quer dizer que a imolao tenha tido lugar uma vez por todas e se tenha refugido numa espcie de pr-histria . Excepcional na perspectiva de toda sociedade particular, da qual marca o comeo ou o recomeo, este acontecimento deve ser completamente banal em uma perspectiva comparativa .

    Se tal acontecimento existisse, dir-se-, a cincia j o teria descoberto. Falar assim no levar em considerao uma carncia verdadeiramente extraordinria dessa cincia . A presena do religioso na origem de todas as sociedades humanas indubitvel e fundamental. De todas as instituies sociais, o religioso a nica qual a cincia jamais conseguiu atribuir um objeto real, uma funo verdadeira. Dai a originalidade de Girard ao afirmar que o religioso tem o mecanismo da vtima emissria por objeto, sua funo sendo a de perpetuar ou renovar os efeitos desse mecanismo, isto , de manter a violncia fora da comunidade.

    preciso, portanto, no reduzir esse acontecimento a uma espcie de caso limite mais ou menos ideal, a um conceito regulador, a um efeito de linguagem, a qualquer mgica simblica sem correspondncia com o plano das relaes concretas. Ele deve ser considerado ao mesmo tempo como origem absoluta (passagem do no-humano ao humano) e como origem relativa (origem das sociedades particulares) .

    Se o acontecimento fundador da vtima emissria expulsa da comunidade a violncia generalizada e recproca, dando origem sociedade, s diferenas culturais, paz, ordem, resta que ele mesmo resulta de um ato de violncia unnime, que s no parece criminoso porque o prprio mecanismo da vtima emissria o reveste de carter sagrado. O deciframento do religioso primitivo leva a uma concepo da violncia humana, do sagrado e da atitude do homem face violncia e ao sagrado . So os trs ttulos a seguir, a partir do ltimo .

    TRANS / FORl\1 / AO 1 241-256

  • - 249 -

    ATITUDE DO HOMEM FACE A VIOLNCIA E AO SAGRADO

    O sagrado se recorta sob o fundo da violncia. Mas os homens no adoram a violncia enquanto tal : no praticam o "culto da violncia" no sentido da cultura contempornea, adoram a violncia enquanto ela lhes confere a nica paz de que jamais possam usufruir. S so capazes de se reconciliar a expensas de um terceiro que, encarnando por transfernciacoletiva a violncia nefasta, ser objeto de venerao pelos benefcios que propicia aps sua expulso . a violncia, por isso mesmo sacralizada, que expulsa a violncia . Ha pois uma violncia ilegitima e uma violncia legitima, esta instaurando um espao de no-violncia que possibilita as condies e a vigncia da Polis.

    O desejo de violncia, jamais extinto, obedece a um mecanismo relativamente constante, e mais difcil de ser contido do que desencadeado. Desencadeado, adquire a forma de represlias interminveis que, se no fossem aplacadas a tempo, provocariam a destruio da comunidade . O jogo "completo" da violncia inclui, porm, essa reciprocidade violenta como crise sacrificial - perda das diferenas ou in diferenciao - e a sua resoluo. No paroxismo da crise, a violncia tende a transferir-se para uma vtima substituta : crime coletivo da unanimidade violenta. Nas condies normais da vida em sociedade, esta se protege do desejo de violncia de dois modos : por interdies, para sustar as ameaas de represlia, sempre pronta a recomear; pelo sacrifcio, que uma transgresso ritual da interdio, mas benfica por sua funo : preventivo de toda violncia maneira de um exutrio .

    A partir da primeira resoluo da crise sacrificial se constitui o sistema sacrificial que repousa sobre uma dupla substituio : "a primeira fornecida pela violncia fundadora que substitui uma vtima nica a todos os membros da comunidade ; a segunda, s e propriamente ritual, substitui vtima emissria uma vtima sacrificvel" . A instituio ritual tira da violncia fundadora uma tcnica de apaziguamento catrtico ; catarse menor, deriva da catarse maior do crime coletivo.

    No sacrifcio, por conseguinte, no h nada a expiar; por ele a sociedade visa desviar para uma vtima relativamente indiferente, uma violncia que expe ao risco de abater-se

    TRANS I FORM I AO 1 2 4 1 2 5 6

  • - 250 -

    sobre seus prprios membros, aqueles que a todo preo ela entende proteger. Deve-se pois inverter os termos da compreenso habitual : a religio no o motivo do sacrifcio ; o sacrifcio, sob sua forma primeira ou derivada, em todo caso como fato primordial e ponto culminante de todos os rituais, que est na origem da religio .

    Desviando-se de modo duradouro para a vtima sacrificial, a violncia perde de vista o objeto inicialmente visado por ela, havendo mesmo a um certo desconhecimento sem o qual o sacrifcio perderia sua eficcia. Nesse desconhecimento, a teologia do sacrifcio evidentemente primordial. Em vez de negar abstratamente a teologia, o que d no mesmo que aceit-la docilmente, preciso reencontrar as relaes conflituais que o sacrifcio e sua teologia dissimulam e apaziguam ao mesmo tempo. Nessas "relaes conflituais" se reconhece o crculo vicioso da vingana .

    Nossa inaptido em atribuir uma funo real ao sacrifcio e s outras formas rituais, assim como a importncia da etnologia e das cincias religiosas a seu respeito, provm do fato que o crculo vicioso da vingana no existe para ns . A diferena entre uma sociedade tal como a nossa e uma sociedade primitiva est em que aquela no possui propriamente ritos e sacrifcios, e esta no possui sistema judicirio. Mas ali a justia desempenha o mesmo papel que aqui o sacrifcio : justia e sacrifcio poem um paradeiro escalada da vingana, ao aniquilamento puro e simples, que passa a ser denominado tambm de violncia essencial.

    No a partir dessa justia que estaremos em condies de atribuir uma funo real ao sacrifcio, e se no compreendemos essa funo real, isso se deve a duas razes : "a primeira que no sabemos absolutamente nada acerca da violncia essencial, sequer que ela existe ; a segunda que os prprios povos primitivos no conhecem essa violncia seno sob uma forma quase inteiramente desumanizada, isto , sob as aparncias parcialmente enganosas do sagrado". Reencontramos os dois conceitos bsicos que resta expor : a violncia e o sagrado .

    o SAGRADO

    "O sagrado tudo o que domina o homem tanto mais

    TRAS / FORM / AO 1 2 4 1 2 5 6

  • - 25 1 -

    seguramente quanto o homem se cr mais capaz de domin-lo" . O que est "sob as aparncias parcialmente enganosas do sagrado" , "o jogo da violncia em seu conjunto" . Dissipando as "aparncias", Girard denuncia sob o sagrado, "a violncia mesma, mas escondida, dos homens, violncia posta como exterior ao homem e confundida desde ento com todas as outras foras que pesam de fora sobre o homem" .

    Entre outras coisas, mas secundariamente, o sagrado tambm : as tempestades, os incndios de floresta, as epidemias, que aterram uma populao. A sexualidade faz parte do conjunto das formas que jogam com o homem com uma desenvoltura tanto mais soberana quanto o homem pretende jogar com elas . As formas mais extremadas da violncia, que so coletivas, no poderiam ser diretamente sexuais, pois no h sexualidade verdadeiramente coletiva . Uma leitura do sagrado fundada sobre a sexualidade elimina ou minimiza sempre o essencial da violncia, ao passo que uma leitura fundada sobre a violncia far sem prejuzo algum sexualidade o lugar , considervel, que lhe compete em todo o pensamento religioso primitivo . Tentou-se crer que a violncia impura porque se relaciona com a sexualidade . S a proposio inversa se revela eficaz sobre o plano das leituras concretas. A sexualidade impura porque se relaciona com a violncia .

    o jogo completo da violncia que revela "a gnese e a estrutura de todos os entes mticos e sobrenaturais" . Isso, porque eles passam por ser a encarnao de toda violncia . "Duplo monstruoso" em dois sentidos : o heri mtico ou a divindade incorpora e funde em si no somente toda violncia malfica, toda m-reciprocidade, assimilando mesmo as diferenas familiares e culturais s diferenas naturais; mas ainda o malfico e o benfico, isto , a "boa" e a "m" violncia, o que bem entendido constitui a monstruosidade primeira e essencial .

    O processo de sacralizao passa por dois momentos opostos e sucessivos. Ao primeiro momento, encarnao de uma violncia exclusivamente malfica, segue-se imediatamente o outro, ativamente benfico. A violncia unnime, com efeito, tem um carter fundador. O presumido culpado tido ento por responsvel dessa fundao. Por isso mesmo fasto e objetivo de venerao pblica aps ter sido expulso como monstro nefasto. Isolados pela interpretao, na divindade esses dois momentos so telescopados e juxtapostos .

    THANS / FORM / AO 1 241.256

  • - 2 52 -

    o Sagrado pois o absoluto da violncia ; une em si todos os contrrios, no porque defira da violncia, mas porque a violncia parece diferir de si prpria : ora refaz a unanimidade em torno dela, ora destri o que tinha edificado. Os deuses encarnam a violncia, exterior e transcedente quando a ordem reina, imanente de novo quando a m-reciprocidade reaparece na comunidade : maus no interior da comunidade, tornam-se de novo bons quando expulsos. Quando os homens negligenciam os ritos e transgridem as interdies, provocam, literalmente, a violncia transcendente a voltar. E toda visitao divina ser vingadora ; os benefcios s viro aps a partida da divindade. Embora lhe deva tudo, a comunidade no pode conviver na intimidade do sagrado, mas precisa mant-lo a uma distncia tima. Excessivamente prxima do sagrado, a comunidade por ele devorada ; afastada demais, perece . Isso quer dizer que os homens no podem viver na violncia, tampouco no esquecimento da violncia .

    A VIOLNCIA ESSENCIAL

    Na perspectiva sociolgica do livro, o homem se encontra numa das duas situaes : estado de paz social ou estado de violncia coletiva, de crise sacrificial. O primeiro explicado pela catarse do sacrifcio, o segundo pelo desejo mimtico. A hiptese da violncia fundadora se articula com o tema do desejo mimtico .

    Nesse contexto deve ser entendido que "nada mais banal que a primazia da violncia do desejo" . A partir daqui comeam as interpretaes. O desejo violento pode ser tachado de sadismo, masoquismo, etc . , se a vemos um fenmeno patolgico, isto , um desvio face a uma norma alheia violncia. A pressuposio subjacente a essa interpretao que existe um desejo normal e natural, .desejo no-violento, do qual a maioria dos homens jamais se afasta muito. Mas, se a crise sacrificial um fenmeno universal, podemos. afirmar que a pressuposio errnea. No paroxismo da crise, " a violncia ao mesmo tempo o instrumento, o objeto e o sujeito universal de todos os desejos" .

    Por isso mesmo e nesta ltima situao, pode ser afirmado que o homem presa de um "instinto de violncia" , Sem dvida, legtimo empregar o termo instinto a propsito de animais providos individualmente de mecanismos reguladores

    TRANS / FORM / AO 1 241.256

  • - 253 -

    que nunca vo at a morte do vencido. Seria porm absurdo recorrer a esse mesmo vocbulo para designar o fato de o homem estar privado de mecanismo semelhante. A idia de um instinto que induzisse o homem violncia - instinto ou pulso de morte, em Freud - no seno uma posio mtica que impele os homens a por a violncia fora deles prprios, dela fazendo um deus, um destino ou um instinto, do qual no mais so responsveis e que os governa de fora .

    Uma outra via se oferece pesquisa . No desejo analisado por Girard no h apenas um objeto e um sujeito ; h um terceiro termo, o rival, que merece a primazia : sistema tridico polarizado sobre o rival. O rival deseja o mesmo objeto que o sujeito ; o sujeito deseja o objeto porque o prprio rival o desej a . Assim, ao desejar tal ou qual objeto, o rival o designa ao sujeito como desejvel . . O rival torna-se o modelo do sujeito, no tanto no plano superficial dos ademanes, das idias, etc . , mas sobretudo no plano mais essencial do desejo.

    Satisfeitos seus desejos primordiais, e mesmo antes, o homem deseja intensamente, mas no sabe o qu, pois o que deseja o ser, do qual se sente privado e que um outro algum lhe parece possuir . O sujeito espera desse outro que ele lhe diga o que preciso desejar para adquirir este ser. Mas no por palavras, por seu prprio desejo que o modelo designa ao sujeito o objeto desejvel. E se o modelo, suposto j dotado de um ser saturado, ainda deseja alguma coisa, esta s pode ser um objeto capaz de conferir uma plenitude total. O desejo essencialmente mimtico.

    O mimetismo do desejo se manifesta como rivalidade, embora nem o modelo nem o discpulo estejam dispostos a reconhecer que se votam rivalidade. Ainda que tenha encoraj ado a imitao, o modelo se surpreende com a concorrncia de que objeto. Quanto ao discpulo, se cr condenado e humilhado : pensa que seu modelo o julga indigno de participar da existncia superior de que desfruta .

    pela situao do discpulo que preciso definir a situao humana fundamental. Ele se v atravs da rivalidade incompreendida e da falsa imagem que ela lhe devolve, e que ele atribui ao modelo. Cada vez que o discpulo cr encontrar o ser diante de si, esfora-se em atingi-lo desejando o que o outro lhe designa; e ele encontra cada vez a violncia do desejo adverso. Por um atalho simultneamente lgico e demente, se convence rapidamente que a violncia o sinal

    TRANS / FOR1\{ / AAO 1 241.256

  • - 254 -

    mais seguro do ser que sempre o elude. A violncia e o desejo so desde ento ligados um ao outro. Reencontramos a esse nvel a ontologia heracliteana : "a violncia pai e rei de tudo" . A violncia vem a ser o significante do desejvel absoluto, da auto-suficincia divina, da totalidade que no mais apareceria como tal se cessasse de ser impenetrvel e inaccessvel . O sujeito adora a violncia e a odeia .

    Esse desejo mimtico o motor da crise sacrificial . Num estgio de in diferenciao (crise das diferenas) , os antagonistas transformam-se em duplos, e no h duplo que no contenha uma monstruosidade. Os duplos so todos intercambiveis , sem que sua identidade seja reconhecida. Fornecem pois, entre a identidade e a diferena, o meio termo equvoco indispensvel substituio sacrificial, polarizao da violncia sobre uma vtima nica : exatamente aquilo de que precisavam os antagonistas para chegar ao mal menor da reconciliao que a unanimidade menos um da expulso fundadora. o duplo monstruoso, so todos os duplos monstruosos na pessoa de um s, que so erigidos em objeto da violncia unnime. O duplo monstruoso na pessoa da vtima emissria apresenta-se na sequncia e no lugar de tudo o que fascinava os antagonistas nas etapas anteriores da crise ; substitui-se a tudo o que cada um deseja ao mesmo tempo absorver e destruir, encarnar e expulsar .

    Compreende-se agora toda a extenso da hiptese de Girard. A progresso fatal dos efeitos do desejo mimtico destruiria a comunidade se no houvesse a vtima emissria (para resolver a crise ) e a mimesis ritual (para impedi-la de desencadear-se de novo) .

    Resumindo, distinguimos trs niveis na progresso da violncia essencial, cada um correspondendo a uma crise . Comeando como crise mimtica, a violncia essencial incoativa suscita pelo jogo da rivalidade os "irmos inimigos", os "gmeos da violncia", os duplos monstruosos. Como crise das diferenas, crise dionisaca propagando-se num crescendo sem fim, ela desintegra toda a ordem social, fundindo os valores religosos ( "deus" e "no-deus" ) e culturais e familiares na indistino com o biolgico e o natural. Finalmente, como crise sacrificial, desdobra-se em crise fundadora e em crise sacrificial propriamente dita . a partir deste segundo tipo de crise sacrificial - qundo o sistema ritual chega usura - que todo o jogo da violncia essencial ameaa repetir-se .

    TRANS / FORM / AAO 1 2 4 1 - 2 5 6

  • - 25 5 -

    UMA TEORIA DO DEVIR CULTURAL

    A intuio de Girard - denunciada na e pela estruturao da obra - pe de novo, em uma perspectiva no mais religiosa ou filosfica mas especificamente sociolgica, a questo do devir cultural .

    A hiptese da violncia fundadora no explica apenas todas as formas mitolgicas e rituais, estende-se a toda a cultura humana. (Uma certa cultura humana, embora ainda atual? ) . Se o mecanismo original de toda "simbolizao" concomitante, como quer coerentemente Girard, ao mecanismo da vtima emissria, evidente ento que no h nada nas culturas humanas que no se enraize na unanimidade violenta, que no seja tributria em ltima anlise da vtima emissria. Mas bem entendido num sacrificial alargado que todas as formas culturais se incluem. L onde a imolao ritual no mais existe ou jamais existiu, surgem outras instituies que lhe tomam o lugar e que permanecem vinculadas violncia fundadora. o caso de sociedade como a nossa ou como as da Antiguidade tardia que j tinha eliminado a prtica das imolaes rituais. H mais do que uma correlao estreita entre de um lado essa eliminao e de outro lado o estabelecimento de um sistema judicirio : o segundo fenmeno deriva do primeiro .

    Alm das instituies religiosas, do processo de "simbolizao" e portanto da linguagem mesma, do sistema judicirio, so devedores das mesmas origens o poder poltico, a arte de curar, o teatro, a filosofia, a antropologia . . . Se nenhum deles tomado isoladamente probante, sua convergncia impressionante. Sobre ou sob uma diversidade aparentemente extrema, descobre-se a unidade, no somente de todas as mitologias e de todos os rituais, mas da cultura humana em sua totalidade, religiosa, "profana" e anti-religiosa, e essa unidade das unidades est inteiramente suspendida em um nico mecanismo sempre operatrio porque sempre desconhecido, aquele que assegura espontneamente a unanimidade da comunidade contra a vtima emissria e em torno dela .

    A sociedade humana no comea portanto com o medo do "escravo" diante do "senhorio" ; tampouco com um "contrato social", explcito ou implcito, enraizado na "razo", no "bom senso", na "benevolncia mtua", o "interesse bem compreendido", etc. Comea com o religioso, como bem viu

    TRANS / FORM / AO 1 241-256

  • - 256 -

    Durkheim, cuja intuio ambgua deve receber seu acabamento. A evocao de Durkheim sintomtica. "Uma cincia que chega finalmente a se constituir, diz Girard alhures, no mais despreza seus antecessores ; neles descobre intuies essenciais; no os exclui de uma histria que reconhece suas continuidades como suas rupturas" .

    * * *

    Sucedendo ao processo arcaico de sacralizao, est em curso desde a antiguidade tardia um processo "moderno" , e inverso, de dessacralizao. De um e de outro, pela comum origem em que banham, o livro de Girard representa o momento de maior acuidade "crtica" . Ainda uma vez "crtica", isto , inspirando-me no autor, instaurao, no discurso, de uma crise cultural, equivalente ilustrado da crise sacrificial, na qual Girard aparece como efetivo sacrificador, mas tambm como possvel vtima de uma certa comunidade cientfica, uma certa comunidade filosfica, uma certa comunidade teolgica .

    TRANS / FORM / AO 1 241-256