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  • Uma Santa Reforma: as vilas de ndios da Paraba colonial (1750-1800)1

    Jos Inaldo Chaves Jr. Universidade Federal do Sul e Sueste do Par

    Introduo

    A descrio aterradora e denota enorme crueldade. Como uma espcie de Facundo dos sertes da Paraba colonial,2 Teodsio Alvarez arrastara o capito dos ndios Panati pelas ruas do pequeno povoado no serto do Pianc, dando-lhe muitas pancadas e bofetadas e exigindo o encarceramento do dito ndio, executado pelo visitador, um religioso do Carmo transeunte pela regio naqueles dias e que fora praticamente obrigado a dar voz de priso ao ndio.3 Preso, o Principal fora vtima de mais um ataque de fria de um colono, desferido dessa vez por Manoel da Silva, que lhe atingiu com inmeras cutiladas, deixando-o pela hora da morte. Sem que saibamos o motivo da omisso talvez por medo de sofrerem represlias da parte dos acusados, ou simplesmente por concordarem com seus atos , nenhum dos que presenciaram esta malevolncia, dada no caminho da rua at o crcere de Pianc, ocupou-se de socorrer o ensanguentado ndio, que morreu sem lhe curarem as mortais feridas. Doravante, os sequazes preocuparam-se em dissimular o homicdio, atando-lhe uma corda ao pescoo para fingir que o mesmo Cappitam mor ndio se enforcara, o que era falsssimo e verdade que eles o mataro, como se prova pella sertido junta do Mestre de Campo Mathias Soares Taveira [...].4 1 Este artigo integra as pesquisas de minha Tese de Doutorado em Histria, em andamento na Universidade Federal Fluminense (Niteri/Rio de Janeiro Brasil). Esta pesquisa recebe apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq/MCT). Sou particularmente grato generosidade da Dra. Elisa Fruhalf Garcia (UFF), que leu uma primeira verso deste texto. As doutoras Maria Fernanda Bicalho (UFF) e Maria Regina Celestino de Almeida (UFF) tambm contriburam com sugestes primorosas. As faltas e omisses so, contudo, de minha inteira culpa. 2 Naturalmente, refiro-me ao personagem central da clssica trama de SARMIENTO, Domingo. Facundo: civilizacon y barbrie. Santiago: Imprenta del Progreso, 1845. 3 At 1774, data da importante Ida da populao da capitania de Pernambuco e das suas anexas, escrita pelo governador-general de Pernambuco Jos Cezar de Menezes, a Paraba contava com seis ribeiras: Pianc, Piranhas, Espinharas, Sabugi, Pat (que hoje pertence ao territrio do estado do Rio Grande do Norte) e Rio do Peixe, todas no serto, alm da principal no rio Paraba, que deu nome a Capitania. Por essa poca tambm havia dez freguesias, sendo elas: a freguesia da Capitania de Nossa Senhora das Neves (Capital), a freguesia do Taipu da Senhora Rainha dos Anjos, a freguesia e vila de Senhora do Pilar, a freguesia da Campina Grande da Senhora da Conceio, a freguesia dos Cariris de Fora de Nossa Senhora dos Milagres, a freguesia de Nossa Senhora da Conceio no termo da vila do Conde, a freguesia de Nossa Senhora DAssuno na vila de Alhandra, a freguesia de So Miguel na vila da So Miguel de Taipu, a Freguesia de So Pedro e So Paulo (Mamanguape) na vila de Monte-mor e a freguesia de Bom Sucesso na vila de Pombal. A esse respeito, cf. JOFFILY, Ireno. Notas sobre a Parahyba. Fac-smile da primeira edio publicada no Rio de Janeiro, em 1892, com prefcio de Capistrano de Abreu. Braslia: Thesaurus Editora, 1977, vol. I, p. 318ss. 4 AHU PB, doc. 1435 (1755, maio, 5, Paraba). Matias Soares Taveira era mestre de campo do Tero dos Auxiliares da Capitania da Paraba.

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    Essa queixa fizeram os ndios Panati em maio de 1755, dois anos aps o sinistro evento. At a data da suplica, nenhum dos acusados havia sido punido, estando sem castigo a referida morte. E no mesmo ano de 1755, os Panati sofreram uma nova baixa, pois outro ndio de nome Antnio Dias levou um tiro que lhe tirou a vida, disparado, sem cauza, pelo filho de Antnio Alvarez, talvez um parente de Teodsio, o primeiro agressor. Os suplicantes, que fizeram o flagrante da morte, imediatamente levaram o acusado justia de Pianc, mas o juiz ordenou a soltura do dito-cujo, alegando que este no poderia ser prezo sem proceder mandado da justia.5 Porm, se os algozes de Antnio Dias e de seu capito-mor no poderiam ser presos sem ordem judicial bem provvel que fossem figuras proeminentes, nobres locais sobre quem recaam isenes e privilgios a notcia da morte dos dois indgenas, entretanto, ganhou o Atlntico e chegou ao Pao. Junto com ela foi escrutinada a situao de uma das principais naes indgenas da Capitania da Paraba, de tempos aliada dos portugueses nas guerras contra os tapuios bravios dos sertes das capitanias do Norte.

    Pelas palavras de um tal Vicente Ferreira Coelho, os iletrados Panati representaram Sua Majestade que sendo os mais leais vassalos que nunca em tempo algu deixaro de merecer o mesmo nome, nem tomaro vingana contra os Brancos [...] deram sua verso das tenses que assolaram as ribeiras do serto do Pianc em meados do sculo XVIII e que resultaram no derramamento de sangue. Tal como visto na representao dos Panati ao rei d. Jos I, o vocabulrio do Antigo Regime foi estrategicamente utilizado por populaes indgenas, que recorreriam mediao rgia frente aos agravos de uma sociedade fortemente hierarquizada, na qual as leis definiam-se no cotidiano das relaes entre os agentes sociais e conforme situaes prticas que iam surgindo.6 Embora ser um sdito cristo no implicasse em condio de igualdade, canais da comunicao poltica, como o direito de petio, abriam-se a todos, a despeito da qualidade ostentada (ou omitida), e conectavam as partes deste Imprio com o seu rei, promotor da justia, um valor essencial na ordem do Antigo Regime.7

    5 Op. Cit. Sobre o estabelecimento de instncias judiciais nos sertes da Paraba, Irineu Pinto e Celso Mariz afirmam que, em 1711, foram criados por carta rgia juzes ordinrios e escrives nos distritos do interior. Cf. PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a Histria da Paraba. vol. 1. Edio Fac-similar. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 1977, p. 105; MARIZ, Celso. Apanhados histricos da Paraba. 2 ed. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 1980, p. 62. Para o relevante debate acerca da criao de julgado na povoao de Nossa Senhora do Bom Sucesso em 1711, no serto do Pianc (futura vila de Pombal, erigida em 1772), cf. o estudo de SARMENTO, Christiane Finizola. Povoaes, Freguesias e Vilas na Paraba Colonial. Pombal e Souza, 1697-1800. Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo), Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2007, p. 69-75. 6 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indgenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013, p. 116. 7 De acordo com Souza & Bicalho, o direito de petio consistia no envio de cartas peties ou representaes ao rei, solicitando ttulos, mercs ou privilgios em troca do bom desempenho em alguma batalha, conquista ou descoberta; ou queixando-se dos maus governantes, expondo as violncias e vexames sofridas nos longnquos

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    A apropriao dos cdigos, rituais e vocabulrio do Antigo Regime pelos ndios-aliados de acordo com os processos de territorializao vivenciados interessantemente demonstrada noutra petio, dessa feita escrita por volta de 1752 pelos ndios Cariri que, por intermdio de seus capites Manoel Homem Rocha e Francisco Quaresma, pediram a Sua Majestade o prmio pelos servios prestados por sua nao nas batalhas lideradas pelo sertanista Antnio de Oliveira Ledo, chegado Paraba em 1668. Consoante a petio dos Cariri,

    [...] estes sendo a sua na-/ turalidade serem oppostos a todos os brancos, parece que por / permio (sic) divina tanto eles como a seus ascendentes / mudando a prpria natureza recebero o dito capito Antonio de Oliveira Ledo / com o maior obzequio que na mesma aldeia podia pra-/ ticarce, dando lhe cazas para a sua habitao, e assistindo-/ lhe com todo o necessrio segundo a possibilidade do pas [...] Depois disto ficaro aos supplicantes to agradados aos mesmos brancos que conciliando / com estes huma voluntria paz, em todas as occazioens / que estes tem tido batalhas com os brancos, tem sido / os supplicantes os primeiros que oferecidos aos maiores perigos / soubero conseguir o merecimento, mostrando sempre o ma-/ yor valor e zello que pode considerar se para bom / sucesso a favor do prprios brancos. E por que Vossa Magestade tem premiado aos ndios da Bahia, e Cear, no tendo feito tantos servios / como os supplicantes, e estes se no devem considerar de menor condio antes pela sua lealdade e zello se fazem dignos / de mais avultados prmios.8

    Referindo-se a eventos ocorridos h quase um sculo, os nativos

    rememoravam sua lealdade ao rei de Portugal na tentativa de receber a sua ddiva, o prmio por seu merecimento. Servindo-se do Conselho Ultramarino, o rei mandou que o governador da Paraba, poca o capito-mor Lus Antnio Lemos de Brito, emitisse um parecer sobre o pleito. Em seu juzo, Lemos de Brito mostrou-se contrrio petio dos Cariri, alegando que os mesmos no se faziam merecedores, pois, alm de no haver motivo para o prmio, haja visto a regio onde habitavam encontrar-se pacificada h mais de trinta anos, de modo que seus talentos militares no poderiam ser testados, os tais prstimos de 1668 nem so servios prprios, nem dos seos ascendentes, seno de ndios antigos da sua nao, que foro premiados com as terras de Bultrins e Genipapo, e seu chefe, dom Pedro de Valcacer, com o hbito de Aviz.9

    Doravante, investigando melhor o caso, ficam mais claros os motivos da representao dos Cariri em meados de Setecentos. A disputa de terras com os colonos foi o mote que fez os ndios recorrerem ao rei na busca pela proteo de

    territrios do imprio (SOUZA, Laura de Mello & BICALHO, Maria Fernanda B.. 1680-1720: o imprio deste mundo. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 87 (Coleo Virando Sculos). 8 AHU PB, doc. 1335 (ant. 1752, outubro, 5, Lisboa). 9 Op. Cit.

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    suas terras, que, embora concedidas pelo capito-mor Joo da Maia da Gama e pelo vice-rei do Brasil enquanto merc pela lealdade de seus ancestrais no sculo XVII, jamais foram demarcadas nem confirmadas pela Coroa, estando suas medidas sob forte presso e cobia dos moradores pelos idos de 1750. A disputa era antiga e envolveu at o procurador das misses no Brasil, o superior dos capuchos Frei Boaventura Fontre Motte, que defendeu o pleito dos Cariri, suplicando a Sua Majestade que ordenasse aos oficiais rgios competentes no consintam que os ditos ndios sejo privados da posse das suas terras, com pertexto de quaisquer dattas posteriores [...].10

    Em 1757, o governador Luiz Antnio Lemos de Brito voltou a ser inquirido pelo Conselho Ultramarino sobre a situao das terras dos Cariri e, novamente, rejeitou o pleito dos ndios, mas sugeriu que Sua Majestade mandasse um juiz de fora realizar correio e dirimir as dvidas sobre as terras da contenda, [...] porque nem os ndios justamente se podem queixar de lhe usurparem as terras, sem terem as suas medidas por ignorarem as que lhe pertencem.11 Os conflitos de terras envolvendo Cariris e moradores continuaram na segunda metade do sculo XVIII e os ndios seguiram fazendo um uso direcionado dos canais polticos do Imprio, a despeito de muitas vezes contarem com a indisposio de oficiais rgios.

    De acordo com o incontornvel estudo de Maria Regina Celestino de Almeida, terra e proteo parecem ter sido os principais atrativos para que os ndios se aldeassem, mas, se o ingresso na vida das aldeias era um refgio diante de uma ordem tendencialmente hostil, os acordos de paz e os descimentos revelam que os ndios possuam expectativas prprias ao ingressarem na comunidade de sditos. Ao oferecer lealdade Monarquia e apoio nas guerras por ela travadas, sobretudo aquelas contra etnias rebeladas, a posio indgena no se resumia a uma submisso passiva, sem nenhuma possibilidade de manobra ou negociao. Por seu turno, apesar das irregularidades em suas posturas ao longo do perodo colonial, havia um alto grau de dependncia dos portugueses em relao aos ndios aliados, o que rendeu Coroa uma conspcua preocupao em coibir os abusos e defender a poltica de aldeamentos, distinguindo os aliados dos inimigos.12 Destarte, as representaes dos Panati e dos Cariri, com as quais iniciamos essa histria, assinala a construo de estratgias de sobrevivncia poltica em relaes de poder conflituosas que fizeram interagir indgenas, oficiais rgios e colonos luso-brasileiros.

    Doutra feita, os meados do sculo XVIII tambm assinalaram uma inverso na poltica indigenista da Coroa portuguesa, marcada decisivamente pelo reinado de d. Jos I, pelas chamadas reformas pombalinas e pelos acertos diplomticos nas franjas de um Imprio cujas fronteiras ainda eram objeto de ferrenhas disputas 10 AHU PB, doc. 1336 (ant. 1752, outubro, 9, Lisboa). 11 Op. Cit. 12 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indgenas... p. 118-119.

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    internas e externas, sendo o apoio indgena cobrado e esperado pela metrpole.13 Como endossou Almeida, ocupar espaos e estender a administrao portuguesa aos chamados sertes envolvia direta e fundamentalmente populaes indgenas e, sobretudo a partir de 1750 e dos debates em torno do Tratado de Madri, o papel de guarda das fronteiras ultramarinas, j conferido aos ndios desde ao menos o sculo XVII, seria ainda mais acentuado.14

    No plano regional, a segunda metade de Setecentos foi marcada por reformas territoriais que produziram impacto profundo no ordenamento urbano das capitanias do Norte, com destaque ao caso da Paraba que, a partir de 1756, foi subordinada vizinha capitania de Pernambuco, intensificando um quadro crnico de conflitos de jurisdio que advinha de centrias anteriores.15 Os nativos novamente foram acionados pela Coroa portuguesa, desta vez para integrar uma poltica de urbanizao que, a rigor, foi tambm um projeto civilizatrio, cujos marcos foram as novas vilas de ndios institudas e reguladas pelo Diretrio de 1757, e em sua verso local, a Direo com que interinamente se devem regular os ndios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da Capitania de Pernambuco e suas anexas, escrita pelo governador-general Luiz Diogo Lobo da Silva em 1759.

    Territrio, violncia e intercmbio

    As hostilidades contra os aldeados Panati tiveram seu pice quando os

    moradores do serto do Pianc, conduzidos pelo capito-mor Jos Gomes de S, com poderes e astcias despejaram os ndios de suas terras com o pertexto de que comio e furtavo lhes os gados.16 Sem que lhes fosse apresentado um lugar adequado para pouso, os ndios vagaro pelos sertes, enxotados de um canto a outro. Tentaram estabelecer-se nas ribeiras das Piranhas, mas de l tambm foram expulsos pelos moradores. Recorrendo ao governador-general de Pernambuco, receberam a autorizao para retornarem antiga aldeia, no Pianc, contanto que o Cappitam mor dos ndios fizece prender qualquer que cometesse furto dos gados e o emtregace ao Cappitam Mor para o remeter para Pernambuco [...].17 Assim foi 13 Sobre a conjuntura de meados do sculo XVIII no Imprio portugus, cf. BICALHO, Maria Fernanda B. A cidade e o imprio: o Rio de Janeiro no sculo XVIII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003, notavelmente o captulo 5. Ver tambm MAGALHES, Joaquim Romero. Labirintos Brasileiros. So Paulo: Alameda, 2011 e MAXWELL, Kenneth. Marqus de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. Sobre as disputas territoriais entre os imprios ibricos, marcadas, sobretudo, pelas demarcaes do Tratado de Madrid (1750), em sua relao com a poltica indigenista portuguesa para zonas de fronteira, cf. GARCIA, Elisa Fruhalf. As diversas formas de ser ndio: polticas indgenas e polticas indigenistas no extremo sul da Amrica portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009, notavelmente o captulo 1. 14 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os ndios na Histria do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 107. 15 A esse respeito, cf. CHAVES JNIOR, Jos Inaldo. As duras cadeias de hum governo subordinado: histria, elites e governabilidade na Capitania da Paraba (c.1755-c.1799). Dissertao (Mestrado em Histria), Niteri, Universidade Federal Fluminense, 2013. 16 AHU PB, doc. 1435 (1755, maio, 5, Paraba). 17 Op. Cit.

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    feito e os ndios regressaram, o que no agradou nenhum um pouco a populao, que logo tomou-se de grande dio em virtude do capito-mor indgena ter alcanado a restituio da sua aldeia, a qual querio os ditos moradores para fazendas de gados.18

    Os indgenas em contexto colonial tiveram que ressignificar suas identidades nos contatos com a alteridade colonizadora em novos espaos fsicos e simblicos, construindo, assim, sentimentos de pertencimento, defendendo direitos adquiridos sobre os territrios do ps-contato,19 como pudemos verificar no caso acima relatado dos ndios Cariri dos sertes da Paraba, que reivindicavam a confirmao de suas terras, doadas no sculo XVII durante os eventos da interiorizao da Capitania. Cabe lembrar tambm que, a despeito do carter genrico e etnocntrico da categoria ndio-aldeado, ela foi apropriada pelos nativos na afirmao de suas etnicidades, estando no seio das estratgias de preservao dos territrios frente aos ataques dos colonos, que, no caso das terras dos aldeamentos e, posteriormente, das vilas e lugares erigidos em meados de Setecentos, assumiram a forma de processos de territorializao no sentido proposto por Joo Pacheco de Oliveira, i.., o movimento pelo qual um objeto poltico-administrativo [...] vem a se transformar em uma nova coletividade organizada, formulando uma identidade prpria, instituindo mecanismos de tomada de deciso e de representao, e reestruturando as suas formas culturais [...].20

    Noutro sentido, o homicdio do capito-mor Panati revela o degringolar de uma situao traumtica naquelas paragens, pois as lideranas indgenas, via de regra, desempenhavam o importante papel de intermedirios do contato.21 Alis, muitas chefias acreditaram francamente que sua funo primordial repousava no necessrio apaziguamento do branco a cosmologia indgena poderia inverter a razo colono-civilizacional ocidental.22 O malogro dos Panati no teve fim rpido, pois a impunidade dos crimes foi garantida pela omisso dos oficiais rgios, especialmente do ouvidor-geral da comarca da Paraba, Domingos Monteiro da Rocha, que recebeu ordem rgia para devassar os homicdios, apontar os culpados e puni-los exemplarmente. Em 1758, cinco anos aps o assassinato do capito-mor ndio, o referido magistrado informou ainda no ter procedido a correio nem,

    18 Op. Cit. 19 APOLINRIO, Juciene Ricarte. Povos Timbira, territorializao e a construo de prticas polticas nos cenrios coloniais. Revista de Histria. So Paulo, n 168, p. 244-270, janeiro/junho de 2013. 20 OLIVEIRA FILHO, Joo Pacheco de. Uma etnologia dos ndios misturados? Situao colonial, territorializao e fluxos culturais, Mana, vol. 4, n 1, p. 47-77, 1998, p. 56. 21 Segundo Rafael Ale Rocha, as chefias indgenas baseavam-se em dois pilares fundamentais, em primeiro lugar, nas bases tradicionais das comunidades, e em segundo, no reconhecimento das autoridades metropolitanas. Voltaremos a este ponto. Cf. ROCHA, Rafael Ale. Os ndios oficiais na Amaznia Pombalina: Sociedade, Hierarquia e Resistncia (1751-1798). Dissertao (Mestrado em Histria), Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2009, sobretudos os captulos 2 e 3. 22 CUNHA, Manuela Carneiro da Cunha. Apresentao in ALBERT, Bruce & RAMOS, Alcida Rita. Pacificando o branco: cosmologia do contato. So Paulo: UNESP, 2002, p. 7.

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    portanto, devassado como previa a ordem de d. Jos I, alegando a distncia e os perigos dos ermos sertes, longnquos de mais de cem lguas da cidade da Paraba, sem contar a intemprie do clima.23

    Nos sertes das capitanias do Norte, a questo agrria esteve envolta num complexo explosivo, que se articulou s polticas indgena e indigenista, atuao dos missionrios nos aldeamentos, constante do cativeiro indgena e precria governabilidade naquelas plagas, dotadas do fortssimo imaginrio do desgoverno e da desordem, tpico das reas de fronteira espacial e, sobretudo, tnica. A prpria noo de fronteira praticada pelos reinos ibricos veiculava o princpio de que os ndios eram parte integrante do territrio e no os seus possuidores,24 o que muitas vezes serviu para justificar as investidas dos colonos no apenas frente aos autctones inimigos, mas tambm diante dos aliados-aldeados, como ocorreu nos casos dos Coremas e dos Panati, no serto do Pianc, cujas terras eram disputadas com olhos na expanso pecuria.

    Uma historiografia da interiorizao da Capitania da Paraba tradicionalmente valorizou a violncia como nico elemento constituinte da sociedade sertaneja. Horcio de Almeida, por exemplo, assinalou que rios de sangue correram nos sertes do Rio Grande do Norte, Paraba e Cear.25 Todavia, no poderamos deixar de fazer justia ao clssico historiador paraibano Ireno Joffily, que tratou a fazenda, cone dos sertes do Brasil, enquanto ncleo populacional dessa civilizao do couro, tomando de emprstimo a sugesto de Capistrano de Abreu,26 forjada nas franjas do Imprio, representada pelos Portuguezes conquistadores e pelos Carirys subjugados, dessa convivncia no podio (sic) deixar de nascer relaes especiaes, usos e costumes prprios. O colono portuguez ou fazendeiro apezar de seu orgulho de raa superior [...], sentia comtudo que dependia deste robusto filho das selvas para todos os arriscados servios da vida sertaneja [...].27

    Neste sentido, se no h como negar a carnificina que abunda na documentao coeva sobre os processos de conquista e ocupao dos sertes do atual Nordeste brasileiro, igualmente no seria adequado analiticamente desconsiderar que a violncia colonial jamais teria sido um elemento definidor do processo de conquista das reas ermas dos imprios ibricos sem que houvesse outros fatores de igual importncia, fundados sobre a negociao e os intercmbios entre foras endgenas e exgenas para o controle do territrio e das gentes. Considerar apenas a violncia da conquista igualmente negar aos ndios o lugar 23 AHU PB, doc. 1590 (1758, dezembro, 23, Paraba). 24 ARAJO, Renata Malcher de. A urbanizao do Mato Grosso no sculo XVIII: discurso e mtodo. Tese (Doutoramento em Histria da Arte), Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2000, p. 52. 25 ALMEIDA, Horcio de. Histria da Paraba. Vol. II. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 1978 (documentos paraibanos, 7), p. 59. Ver tambm MELLO, Jos Octvio de Arruda. Histria da Paraba... p. 77. 26 ABREU, Capistrano de. Captulo de histria colonial. Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2006. 27 JOFFILY, Ireno. Notas sobre a Parahyba... p. 156.

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    de sujeitos histricos capazes de traar estratgias polticas e organizar-se a partir de seus prprios interesses, dando-lhes to-somente as opes do desaparecimento sumrio ou da aculturao (o que tambm implica em desaparecimento). Seguindo um caminho que se consolida no campo da histria indgena, nossa reflexo considerar a insero das prticas nativas em seus respectivos contextos histricos e o recente interesse pelas estratgias e discursos elaborados pelos prprios ndios, buscando dar conta, segundo a sugesto de Guillaume Boccara, de las conceptualizaciones nativas relativas al tremendo choque que representaron la conquista y colonizacin de Amrica como de las capacidades de adaptacin y reformulacin de las tradiciones.28

    O estudo das fronteiras pode indicar melhores entendimentos desse tema, considerando trs categorias relacionadas, tomadas da antropologia poltica: territrio, violncia e intercmbio.29 De antemo, preciso ter em conta que as definies mais usuais entendem a fronteira como a diviso entre reinos ou estados nacionais, o que no se aplicaria ao caso das capitanias do Norte do Estado do Brasil, uma regio tida como de fronteiras estveis porque de colonizao e explorao econmica que remontam ao sculo XVI, alm do que plenamente compreendida nas demarcaes geopolticas mais primrias dos reinos ibricos acerca de suas possesses atlnticas.30

    Doutra feira, a Colnia de Sacramento, o Mato Grosso e a Amaznia, reas de constantes conflitos com a Monarquia hispnica nos sculos XVII e XVIII representam os casos clssicos de litgios diplomticos e blicos pela demarcao das fronteiras imperiais que, diga-se de passagem, tambm no foram resolvidos meramente pelas letras dos tratados, mas precisaram transpor a barreira do territrio apenas virtualmente conquistado, isto porque, segundo uma geografia poltica portuguesa de base contratual, a representao do domnio valia tanto quanto o domnio em si. Segundo Arajo, nessas reas a prpria construo da ideia de territrio portugus forjou-se numa situao de confronto com os domnios espanhis,31 o que, via de regra, no ocorreu nas capitanias do Norte.

    Uma leitura historiogrfica tradicional entendeu que a colonizao portuguesa no Nordeste colonial consolidou-se ainda no Seiscentos, malgrado as investidas estrangeiras e a Guerra dos Brbaros, relativamente sanados ainda nesta centria. Doravante, o termo fronteira implica maiores cuidados, pois seus usos e significados podem abranger fatores de ordem cultural, lingustica, econmica e at psicolgica ou afetiva,32 extrapolando muitssimo o tradicional sentido de uma linha 28 BOCCARA, Guillaume. Mundos nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2005. 29 QUIJADA, Mnica. Repesando la frontera sur Argentina: concepto, contenido, continuidades y descontinuidades en una realidade espacial y tnica (siglos XVIII-XIX). Revista de Indias, vol. LXII, n 224, p. 103-142, 2002. 30 O que, evidentemente, no imiscuiu as pretenses de outras potncias europeias nas costas do Atlntico Sul, especialmente de franceses e neerlandeses. 31 ARAJO, Renata Malcher de. A urbanizao do Mato Grosso no sculo XVIII... p. 45. 32 Idem, p. 51.

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    divisria entre os estados nacionais. Na verdade, em nossa era ps-colonial, o incremento de uma economia mundializada e a imigrao acentuada s fizeram revelar as fragilidades das fronteiras nacionais, demonstrando serem muito mais que espaciais as divises entre os grupos.

    Neste sentido, por aqui consideraremos a noo de fronteira enquanto espao ainda no submetido ordem colonial, mas tambm como territrio movedio, indeciso e, especialmente, como palco privilegiado de trocas culturais e materiais e de intercmbios simblicos e polticos. De acordo com o reconhecido brasilianista A. J. Russel-Wood, ao se referir s regies de fronteira na Amrica portuguesa, mais adequado empregar o termo serto33 e esse mote que utilizaremos para equacionar o impasse quanto ao estudo de fronteiras tnicas e culturais numa regio tradicionalmente considerada portuguesa. Para o diplomata e valido de d. Joo V, Alexandre de Gusmo, o territrio era uma extenso de terras e de campos onde se exerce jurisdio;34 sua antinomia era o deserto, entre o domnio formal e o informal, entre a norma e a prtica, uma zona de ningum que constitui uma marca, pela negativa, de fronteira, sem que a fronteira corresponda a esta linha precisa.35

    Governos e fronteiras

    Domingos Jorge Velho, sertanista famoso por debelar Palmares, era um

    daqueles homens do caminho dos quais falou Sergio Buarque de Holanda, entendido das iguarias de bugre, podendo at confundir-se com este de to aproximados que viviam. Era um mameluco nascido em So Paulo, mas que se encontrara nos caminhos de ps descalos, de passagens estreitas no meio do mato, caminhos de ndios. Quando o Velho pousou em Olinda, conseguiu escandalizar o Bispo que revelou ao rei de Portugal aqui esteve um selvagem que nem nossa lngua fala; o sertanista carregava consigo um lngua e era acompanhado de sete concubinas.36 Os sertes do Nordeste colonial foram tomados de homens assim, habituados s asperezas dos caminhos e familiarizados com os artifcios de que se socorre o gentio em qualquer contingncia, de modo que dificilmente poderiam prescindir do auxlio constante de ndios amigos e bons vaqueanos, sobretudo nas horas de aperto contra os gentios rebelados.37

    De acordo com Holanda, o conceito de fronteira j era visvel na primeira fase da colonizao do Brasil, indicando os limtrofes culturais entre o Velho Mundo 33 RUSSEL-WOOD apud GARCIA, Elisa Fruhalf. As diversas formas de ser ndio... p. 45. 34 ARAJO, Renata Malcher de. A urbanizao do Mato Grosso no sculo XVIII... p. 47. 35 HESPANHA, Antnio Manuel. Debate. In A Unio Ibrica e o Mundo Atlntico. Lisboa: Colibri, 1997, p. 119. 36 MELLO, Jos Octvio de Arruda. Histria da Paraba: lutas e resistncias. 2 ed. Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 1995, p. 81. 37 HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, Departamento de Cultura da Guanabara, 1975, p. 23.

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    e a selvagerias americanas, como uma espcie de linha civilizatria (wilderness). Todavia, o prprio Sergio Buarque de Holanda relativizou os usos de uma definio to hermtica dos limites entre civilizao e barbrie ao expor que o conceito de fronteira da historiografia estadunidense do sculo XIX, tributrio das propostas de F. J. Turner que, por sua vez, fez uso de concepes populares preexistentes, no servia ao caso brasileiro, to cheio de peculiaridades e mestio.38 Por aqui jamais foi efetivamente construda a barreira que separava nativos e conquistadores, muito ao contrrio, a sociedade colonial portuguesa nasceu graas a arraigados processos de interao social, mesmo que delineados pelo signo da violncia tnica e cultural.39 Os grupos sociais, tanto indgenas quanto luso-brasileiros, definiram-se no contato que lhes permitiu reconhecerem-se e serem reconhecidos em espaos onde os recursos polticos eram disputados.40

    S aos poucos, embora com extraordinria consistncia, consegue o europeu implantar num pas algumas formas da vida que trazia do Velho Mundo. Com a consistncia do couro, no a do ferro ou do bronze, dobrando-se, ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do meio.41 O incipiente sistema de viao indgena mostrou-se primoroso ao sertanista

    e ao mameluco; dele fizeram uso sem parcimnia, fazendo do caminho uma verdadeira vocao para o movimento. Ao lado deles, os sentidos aguados do ndio eram cruciais na hora de embrenhar-se pelo mato, seu senso de orientao geogrfica e sua perspicaz capacidade de decodificar os territrios definiram, em larga medida, o xito ou o insucesso das empresas conquistadoras. Cheiros, galhos quebrados e arbustos marcados, rudos e rastros de gentes e animais eram os instrumentos da capacidade de mover-se dos ndios, transmitida aos bandeirantes. O jesuta Ferno Cardim admirou-se desses

    38 Idem, p. 8. Segundo Mnica Quijada, o conceito de fronteira presente na historiografia de Frederick Jackson Turner foi inspirado numa viso popular preexistente, assente na ideia de uma espcie de linha civilizatria em zonas extremas. Esta forma espacial definida por la presencia de poblaciones (que aumque no se lo explicite siempre son occidentales y civilizadas) al borde de un espacio natural que no forma parte de lo que se entende por civilizado, es la tpica vison turneriana [...] sta es la conceptualizacin de la frontera que ms presente est en el nimo de los pobladores de la sociedade mayoritaria, es decir, el margen del territrio poblado por occidentalees y modificado por los ritmos de la ocupacin (QUIJADA, Mnica. Repensando la frontera sur argentina... p. 106). 39 A historiografia estadunidense tambm realizou uma substantiva crtica do conceito de fronteira proposto por Turner, como indica o estudo de AXTELL, James. Natives and newcomers: the cultural origins of North America. Oxford: Oxford University Press, 2000. 40 Tomando de emprstimo a antropologia de Fredrik Barth, responsvel, a partir dos anos 1960, por uma substantiva inverso analtica na definio do conceito de grupo social, Mnica Quijada afirma: Segn este autor la diferencia tnica se plasmaria no en el aislamiento sino precisamente en el contacto, y ah la importancia de los ethic boudaries, que implican tambin espacios donde se produce la competencia por los recursos (QUIJADA, Monica. Op. cit. p. 107). 41 HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras... p. 5.

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    Bichos do mato, porque entro pelo serto a caar despidos e descalos sem medo nem temor algum. Vem (sic) sobre maneira, porque lgua enxergo qualquer coisa, e da mesma maneira ouvem; atino muito; regendo-se pelo sol, vo a todas as partes que querem, duzentas e trezentas lguas, por matos espessos sem errar ponto; ando muito, e sempre, de galope, e principalmente com cargas, nenhum a cavalo os pode alcanar [...].42

    Uma verdadeira cartografia indgena, portadora de precioso acervo de informaes espaciais, foi transmitida pelos indgenas a sertanistas como Domingos Jorge Velho, que terminou por pousar nos sertes do Pianc, na capitania da Paraba, onde desapareceu no incio de Setecentos.43 Em um dos momentos mais agressivos da chamada Guerra dos Brbaros, Domingos Jorge Velho encontrou-se com outros dois sertanistas, os mestres de campo Manoel Soares de Abreu, que descia da ribeira do Au, no Rio Grande, para as Piranhas, na Paraba, e Antnio de Albuquerque, que por l se encontrava. Unindo suas foras militares repletas de ndios aliados, os trs chefes marcharam pelo serto por cerca de vinte e cinco dias, sem outro alimento que o das razes, frutas e caas que apanhavam durante a jornada.44 Por essa poca, o pndulo da guerra favorecia os rebeldes e por trs meses os confrontos dizimaram os portugueses e seus ajudadores.45

    Somente com o ingresso, no serto das Piranhas, do capito Constantino de Oliveira Ledo, que advinha da ribeira do Cunha, na divisa litornea entre o Rio Grande do Norte e a Paraba, foi possvel algum sinal de vitria ao bando conduzido pelos trs mestres de campo, com a inverso de foras que dizimou muitas naes indgenas rebeladas, especialmente os Jandu, alguns dos mais ferozes inimigos dos lusitanos. Em finais do sculo XVII, a poltica indigenista da Coroa portuguesa e, precisamente, do Governo Geral, recomendava de forma explcita a eliminao dos ndios arredios. Numa instruo ao capito-mor Manoel Soares de Abreu, o Governador-Geral do Brasil, Matias da Cunha, dissera sem meias palavras: Vossa Merc dirija a entrada e a guerra que h de fazer aos brbaros como possa ser mais ofensiva, degolando-os e seguindo-os at os extinguir, de maneira que fique o

    42 CARDIM, Ferno. Tratado da terra e gente do Brasil [1584]. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: EDUSP, 1980, p. 31. 43 Segundo Glria Kok, Nessas empresas coloniais, as contribuies dos grupos nativos foram imprescindveis no que se refere a fornecer informaes detalhadas no s sobre a topografia e a geografia, bem como outros conhecimentos, necessrios elaborao de mapas, esboos, tcnicas de representao e orientao nos caminhos terrestres e fluviais do serto. Estes conhecimentos integravam a cartografia indgena, isto , um acervo de informaes espaciais, construdo pela memria e enraizado, principalmente, nos sentidos (KOK, Glria. Vestgios indgenas na cartografia do serto da Amrica portuguesa. Anais do Museu Paulista, So Paulo, vol. 17, n 2, p. 91-109, julho/dez. 2009. 44 ALMEIDA, Horcio de. Histria da Paraba, vol. II, p. 38. 45 Para mais detalhes sobre a Guerra dos Brbaros e a conquista dos sertes, cf. o estudo de PUNTONI, Pedro Lus. A Guerra dos Brbaros: povos indgenas e a colonizao do serto do Nordeste do Brasil, 1650-1720. So Paulo: EDUSP, 2002.

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    exemplo deste castigo a todas as mais naes que, confederadas com eles, no temiam as armas de Sua Majestade.46

    No por menos, os capites-mores dos sertes marcaram o imaginrio da interiorizao do Brasil. No Nordeste, sua imagem ficou gravada numa arqueologia dos coronis dos sculos XIX e XX, opressores vorazes da matutada. A historiografia paraibana de finais de Oitocentos, tendencialmente liberal, no foi complacente com os mandatrios do serto, culpando-os pelo estabelecimento de uma sociedade deletria. Segundo Maximiano Lopes Machado, eram esses potentados locais os responsveis pelo terror, opresso e abuso dos povos.47 Posteriormente, Horcio de Almeida, chamando-os de homens do oito oeste responsabilizou-os pelos massacres da Guerra dos Brbaros, pois o cativeiro indgena por eles conduzido constituiu-se no estopim dos confrontos.48 Malgrado o interesse declarado dos sertanistas pela mo-de-obra indgena, razo precpua de muitas rixas com os missionrios das ordens religiosas, no menos verdadeiro que o prprio Governo-Geral, em diferentes ocasies, incentivou o apressamento, como se v no anseio de Matias da Cunha expresso ao velho Domingos: Espero que no s tero todas as glrias de degolarem os brbaros, mas a utilidade de os aprisionarem.49

    Doravante, esses homens eram plenamente adaptados a vida nas fronteiras do Imprio, habituados a viverem s margens da norma, tantas vezes a expensas das autoridades metropolitanas, porm eram igualmente fundamentais manuteno da ordem colonial e dos domnios de el-rey de Portugal nas reas longnquas. Em 1687, quando posto diante do governador de Pernambuco, Joo da Cunha Souto Maior, Domingos Jorge Velho apresentou-se declarando sua utilidade inigualvel Coroa portuguesa, valorizando tudo aquilo que aprendera nas correrias dos sertes, no encalo dos gentios rebeldes, mas tambm nos contatos diuturnos com aqueles que lhe ensinaram os teis saberes de bugre: como mui conhecedor das artes e ardiz das guerras do matto no Brazil pelas campanhas que fizera nos sertes, em bandeiras contra os ndios.50

    46 ALMEIDA, Horcio de. Histria da Paraba, vol. II, p. 41. 47 MACHADO, Maximiano Lopes. Histria da provncia da Paraba, vol. II, Joo Pessoa: Editora Universitria/UFPB, 1977, p. 335. 48 ALMEIDA, Horcio de. Histria da Paraba, vol. II, p. 29. 49 Ibidem, p. 41. 50 MACHADO, Maximiano Lopes. Histria da provncia da Paraba, vol. II, p. 334. De acordo com Beatriz Perrone-Moiss, a despeito das excees e posturas legislativas locais, possvel traar duas linhas-mestras da poltica indigenista da Coroa portuguesa, aquela para os ndios aldeados-aliados e aquela para o gentio brbaro. Ambas se relacionam s duas atitudes bsicas diante da dominao colonial lusitana: a aceitao do sistema ou a resistncia. Contudo, a autora adverte-nos que, se no se alteram os princpios bsicos da poltica indigenista na colnia, vo-se modificando, por outro lado, as polticas efetivas destinadas a garanti-los, como no caso dos aldeados-aliados, quando so levantados problemas prementes: quem administra as aldeias, como sero regulamentados o seu trabalho e seus salrios, quem e como lhes administrar a justia. Doutra feita, preciso considerar que Se no se pode tratar a todos os indgenas do Brasil do mesmo modo, porque eles no reagem colonizao do mesmo modo (PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos. Os princpios da legislao indigenista do

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    Foi por meio da posse das terras que iam sendo conquistadas, produzindo territrios, que esses homens do oeste e suas parentelas estabeleceram mandos quase irrestritos e poderosas redes clientelares verticais. Na Paraba, os primeiros capites-mores, afora os governadores, foram os de ndios e de bandeiras, Lus Soares e Teodsio de Oliveira Ledo, em finais de Seiscentos. No sculo seguinte, outras capitanias-mores foram criadas na Paraba, Nestas circumscripes (sic), como em toda parte onde chegava a autoridade dos capites-mores, faziam elles o que queriam sem receio, nem responsabilidade perante as leis e a administrao. Eram os nicos governadores das localidades, assim como a sua vontade a nica lei a se respeitar, assim definiu enfaticamente Maximiano Machado.51 O poder local exercido pelos mandatrios do serto, tidos por alguns historiadores como reis das aldeias longnquas,52 obscureceu, de certo modo, uma compreenso mais acurada da participao da Coroa portuguesa nas empresas de conquista e colonizao dos sertes, quase sempre lidas como projetos particulares.53

    Essa impresso , de certo modo, confirmada pelas esparsas fontes, especialmente nas falas dos governadores das capitanias, preocupados com os numerosos excessos cometidos pelos capites-mores nos sertes. Nos finais do sculo XVIII, por exemplo, o governador da Paraba, brigadeiro Jernimo Jos de Mello e Castro, transmitiu a rainha d. Maria I as queixas dos oficiais da cmara da vila de Pombal, nas quais denunciavam a tirania do capito-mor Francisco de Arruda Cmara, ferino, ardente e vingativo. Em virtude das opresses do capito Arruda, o governador da Paraba alertara para um temido levante de ndios, pretos e pardos, vtimas de prises sem causa formada, expondo-os a ferros e fogo. Mas os prprios moradores eram tambm vtimas das vinganas de Arruda Cmara, que, injustamente favorecido pelo General de Pernambuco, arrogava-se o direito de cometer perseguies inauditas contra seus desafetos.54

    Alis, as rivalidades entre potentados locais eram comuns por essas bandas, haja visto que Desta proteo, despensada pelo poder, apareciam no poucas vezes desavenas entre elles e outros menos protegidos, e se delas no vinha immediato desforo, eternizava-se o dio nas famlias [...], e as vezes produzindo solues explosivas.55 Na verdade, para o caso das queixas da cmara de Pombal s aes de seu capito-mor, a compreenso tambm deve perpassar a conjuntura da segunda metade de Setecentos, na qual a capitania da Paraba perodo colonial (sculos XVI a XVIII). In.: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: FAPESP/Companhia das Letras, 1992, p. 117, 129). 51 MACHADO, Maximiano Lopes. Histria... vol. II, p. 411. 52 MARIZ, Celso. Apanhados histricos da Paraba... p. 61. 53 Para Maximiano Lopes Machado, por exemplo, o governo da Capitania da Paraba foi omisso quanto s entradas, no lhes dedicando o mnimo interesse, de modo que a conquista e guerra aos brbaros fora um empreendimento particular e desintegrado da dinmica colonial impressa no litoral (MACHADO, Maximiano Lopes. Histria da provncia da Paraba, vol. II, p. 334). 54 AHU PB, doc. 2149 (1786, abril, 28, Paraba). 55 MACHADO, Maximiano Lopes. Histria... vol. II, p. 411.

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    encontrava-se anexada ao governo de Pernambuco (1756-1799). De acordo com o governador da Paraba, a falta de jurisdio para nomear os capites-mores dos sertes, que lhe fora tirada pela dita sujeio poltico-administrativa e militar capitania vizinha, provocara o ingresso de figuras pouco comprometidas com o servio rgio e o bem comum, uma vez que o General de Pernambuco era incapaz, pela extenso de sua jurisdio, de conhecer as realidades locais e nomear acertadamente os ditos oficiais.56

    Numa capitania de gente feroz e indmita, que precisa do formidvel temor de hum governador, a supresso de sua autoridade sobre os teros auxiliares e ordenanas dos sertes era vista por Jernimo de Mello e Castro como um enorme prejuzo para o governo dos povos. Para completar o quadro, ele denunciara que Arruda Cmara, que era protegido do governador de Pernambuco e gozava de um salvo-conduto para seus crimes, cumpria ordens do referido general para recrutar pardos e ndios para as tropas militares da vizinha Capitania, o que muito desagradara os desvalidos, pondo-os a beira de um levante contra os brancos, seguindo se damnos irreparveis de se despovoarem as terras que Vossa Magestade manda povoar [...]. Por fim, acerca dos recrutamentos militares violentamente conduzidos por Francisco de Arruda Cmara, a mando do governador-general de Pernambuco, Mello e Castro advertia no se poderem praticar nestes vastos sertoens povoados de homens indmitos, o que he regular no Reino [...].57

    Sabe-se tambm que abundam na documentao coeva as cartas de sesmarias doadas aos tais capites, muitos dos quais foreiros da prestigiada Casa da Torre de Garcia Dvila, como era Jos Gomes de S, capito-mor das ribeiras do Pianc, ou dos ramos dos Oliveira Ledo vindos de Pernambuco. Esses colonos ocuparam uma rea composta por, pelo menos, vinte e oito propriedades no vale do Pianc e nas ribeiras do Piranhas e Rio do Peixe, no alto serto da Paraba. Com efeito, entre a segunda metade de Seiscentos e as primeiras dcadas de Setecentos, repetiram-se, dessa vez nos sertes da Capitania, alguns dos fenmenos de reproduo social das elites coloniais a partir da limpeza do terreno, antes ocupado por nativos; de alargamento gradativo dos poderes metropolitanos e da economia das mercs, que consagrou a aliana entre a Coroa e seus vassalos ultramarinos na colonizao da Amrica portuguesa. As cenas desse movimento desbravador, mas tambm de choque entre mundos to distintos o do colonizador, vido por terras e mercs, e o do tapuia ainda so vivas, e podem ser percebidas atravs das cartas de sesmarias.

    56 Sobre o contexto dos sertes da Paraba colonial em meados do sculo XVIII, considerando uma interessante reflexo sobre cultura poltica e transgresso na Amrica portuguesa, cf. o estudo de GUEDES, Paulo Henrique Marques de Queiroz. No ntimo do serto: poder poltico, cultura e transgresso na Capitania da Paraba (1750-1800). Tese (Doutorado em Histria), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. 57 AHU PB, doc. 2149 (1786, abril, 28, Paraba), grifos nossos.

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    Em 5 de agosto de 1700, o sargento-mor Gonalo de Oliveira Ledo e outros que o acompanhavam nas entradas diziam ter gados no serto para povoar terras, das quaes estavam faltas, e alguns havio feito servios a Sua Magestade na defea (sic) do tapuio, e porque no serto das Piranhas estavo terras devolutas que nunca foram dadas, e se o foram no povoaram [...], por isso, pediam ao rei a concesso de quatro lguas para cada suplicante.58 Ao defender o estado devoluto da terra pretendida, seja porque nunca fora cultivada, seja porque fora abandonada, a petio de Gonalo de Oliveira Ledo tambm nos revela a permanncia por aquelas plagas do princpio da efetiva ocupao como fundamento da posse, definido pela remota lei de sesmarias de 1375. O rei, por sua vez, endossou o fundamento da concesso de sesmarias no Imprio ao condicionar a garantia da terra ao seu pleno proveito:

    Fao merc a cada um dos supplicantes de duas legoas de terra de comprido e uma de largo successivamente pelo rio das Piranhas acima para o da Vacca-Morta [rea solicitada por conter fonte dgua], sem enterpollao de terra alguma, no se havendo feito delas outra merc, com condio de que em cada porem um curral de gado dentro de hum anno de que lhes passe carta [...].59

    , portanto, uma falsa questo achar que a colonizao dessas fronteiras

    do noroeste deu-se revelia das autoridades metropolitanas e dos interesses da Coroa. Destarte, preciso entender a prxis poltica adotada visando a garantia da soberania rgia. Fazer dos sertanistas, amalgamados com as coisas de bugre, vassalos do rei de Portugal era uma etapa decisiva desse trmite. As sesmarias, as comendas e postos militares eram os principais prmios recebidos pela participao na empresa de expanso dos domnios do rei, demonstrando copiosamente a inteno da Coroa em integrar os bandos dos sertes ao Imprio. A rigor, a presena daqueles capites-mores, no mais das vezes tomadas de poderes desmedidos, representou o controle mnimo sobre o territrio, a expresso local da soberania portuguesa nas franjas do Imprio, esta fundada sobre uma cultura poltica que valorizava a dinmica centro-periferias por meio das relaes entre poderes locais e poder central como paradigma da governana ultramarina.60

    58 Apud TAVARES, Joo de Lyra. Apontamentos para a histria territorial da Parahyba. Vol. I. Cidade da Parahyba: Imprensa Official, 1910, p. 40. 59 Ibidem, p. 41, grifos nossos. 60 Para uma discusso acerca dos conceitos centros e periferias aplicados ao mundo atlntico portugus, cf. RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e Periferias no Mundo Luso-Brasileiro, 1500-1808. Trad. Maria de Ftima Silva Gouva. Revista Brasileira de Histria. Vol. 18, n 36, So Paulo, 1998. Ao tratar das relaes entre poder central e poderes locais nas monarquias ibricas de Antigo Regime, o historiador catalo alertou que a maior contradio do dito absolutismo monrquico da poca moderna residiu na progressiva centralizao de poderes no centro, operada, contudo, com bases numa profunda dependncia das foras sociais e polticas perifricas. Cf. PUNJOL, Xavier Gil. Centralismo e localismo? Sobre as relaes polticas e culturais entre capital e territrios nas monarquias europeias dos sculos XVI e XVII. Penlepe. Fazer e desfazer a histria, n 6, Lisboa, 1991, p. 129-30.

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    Outra importante dimenso do exerccio da soberania e governana portuguesa no ultramar residiu na preocupao, ainda mais acentuada em meados do sculo XVIII, em fazer dos ndios sditos, minorando os conflitos com os colonos que punham em risco a estabilidade poltica das possesses ultramarinas, especialmente nas fronteiras. preciso ter em conta que o papel das populaes indgenas transcende o mero estatuto de inimigos perptuos dos colonizadores, de modo que ningum em s conscincia seria tolo para desprezar a colaborao de grupos indgenas interessados em construir acertos estratgicos de paz, pois estaria perdido o territrio caso os portugueses no pudessem contar com a pluralidade dos posicionamentos polticos dos nativos frente ao colonizadora. Da parte dos ndios, os intercmbios foram igualmente necessrios, estando no bojo de processos de ressignificao cultural e reorganizao social de suas comunidades.

    A integrao dos ndios ordem colonial no teve como pressuposto o simples engodo destes, mas a adoo de aes especficas diante dos recursos polticos disponveis num cenrio de guerra aberta com os colonos, mas tambm de possibilidades reais (embora nem sempre abundantes) de negociao e reduo de perdas. Numa conjuntura poltica desfavorvel, prestar vassalagem e jurar lealdade ao monarca portugus, podendo, assim, usufruir de sua proteo e gozar de suas ddivas, poderia ser uma das melhores alternativas da poltica indgena em contexto colonial.61 Por seu turno, a mudana da situao poltica provocada, por exemplo, pelo descumprimento de pactos pretritos, poderia conduzir a uma redefinio da estratgia indgena, como tantas vezes ocorreu nos aldeamentos que, aps serem invadidos por colonos que cobiavam suas terras, lanavam os ndios em revolta e redirecionavam os esforos para uma eventual ruptura da aliana.

    [...] e este o verdadeiro caminho [...] de se povoar este largussimo pas, no podendo ser de outra sorte seno fazendo ns os interesses comuns com os ndios, e reputando tudo a mesma gente. Deus me ajude para que possa conseguir um negcio em que se interessa no menos que o servio de Deus, o de Sua Majestade, e o bem comum deste Estado.62

    61 Elisa Garcia, tratando das alianas indo-portuguesas no palco das guerras guaranticas, afirmou: Assim, no obstante terem desempenhado uma funo fundamental no contexto da guerra guarantica, as ddivas [rgias] no eram uma garantia automtica da manuteno das alianas ou um sinnimo de manipulao dos ndios pelos portugueses. Antes inseriam-se tambm nos objetivos dos missioneiros, que as aceitavam, embora nem sempre correspondessem ao que os lusitanos esperavam em troca (GARCIA, Elisa Fruhalf. As diversas formas de ser ndio... p. 49). 62 Carta de Francisco Xavier de Mendona Furtado, governador-geral da Capitania do Gro-Par e Maranho, Gonalo Jos da Silva Preto. Mariu, 12 de outubro de 1756. In.; MENDONA, Marcos Carneiro. A Amaznia na era pombalina. Correspondncia indita do governador e capito general do Estado do Gro Par e Maranho Francisco Xavier de Mendona Furtado, 1751-1759. Rio de Janeiro: IHGB, 1963, p. 948

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    Diretrio dos ndios: da catequese civilizao Comeamos essa histria das fronteiras nas capitanias do Norte contando

    o ocaso dos Panati, que sofreram com os assassinatos de seu capito-mor e do ndio Antnio Dias, envoltos em acirrados conflitos agrrios com os colonos do serto do Pianc. At a data da queixa, em maio de 1755, os homicidas no tinham sido punidos a contento, a despeito das ordens rgias para que fosse executada a justia, dirimindo, assim, os excessos praticados. O detalhe desta trama que envolveu figures locais, como o ouvidor Domingos Monteiro da Rocha, que supostamente teria acobertado os acusados, protelando a devassa, e o mestre de campo Matias Soares Pereira, que testemunhara a favor dos indgenas foi a projeo poltica que ela tomou, chegando aos ouvidos do monarca e motivando uma Proviso de d. Jos na qual manifestara seu desagrado diante das atitudes nocivas dos colonos, declarando sua proteo no apenas aos Panati, mas a todos os ndios do Brasil.

    Attendendo ao que se representa na carta incluza; e a que se mandei severamente castigar os excessos que nella se referem sendo certos; e dar a conhecer as estes, e aos mais Indios do Brazil, que devem viver seguros na minha Real proteo: sou servido ordenar que o ouvidor da Paraba passe logo ao distrito em que se dizem cometidos os delitos de que se trata, e achando ser verdade a maior parte do que se dis na dita carta, tire devaa de todos elles pronuncie, e prenda os culpados, dando-lhes livramento, como foi justia. Hey outro sim por bem se passe ordem ao governador da Parahiba, para que tenha especial cuidado, em que estes Indios se conservem na sua alde livre de toda a violncia e opreo (sic), fazendo entender aos mesmos ndios esta minha real ordem, e aos povos circunvizinhos, que quando os insultem, ou de algum modo vexem, e inquietem mandarei proceder contra elles, e castigallos com todo o rigor que merecem pella sua culpa, e por no atenderem particular proteo com que favoreo aos Indios do Brazil. O Concelho Ultramarino o tenha assim entendido, e nesta conformidade passe as ordens necessrias. Mafra, quatro de outubro de mil settecentos e cincoenta e cinco. Rei. 63 Como notrio, polticas de alianas com os indgenas eram praticadas h

    muito tempo pela Coroa, pois sabia ela ser imperiosa a necessidade da cooperao dos autctones em qualquer empreendimento colonial na Amrica.64 Entretanto, o reinado de d. Jos I assinalou a mudana mais decisiva na direo de uma poltica indigenista que integrasse os amerndios ao Imprio enquanto vassalos do rei a particular proteo com que favoreo aos ndios do Brasil. A partir da, o destino 63 AHU PB, doc. 1435 (1755, maio, 5, Paraba), grifos meus. 64 A esse respeito, cf., por exemplo, GONALVES, Regina Clia. Guerras e acares: poltica e economia na Capitania da Parayba, 1585-1630. Bauru: EDUSC, 2007, e o supracitado PUNTONI, Pedro Lus. A Guerra dos Brbaros...

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    dos indgenas passou a preocupar cada vez mais a Monarquia que, adotando uma leitura etnocntrica capciosa, acreditava que o xito da colonizao do Brasil dependia da civilizao dos indgenas e de sua integral absoro comunidade de sditos, aplacando, portanto, as diferenas com os portugueses e prescrevendo a desintegrao das antigas comunidades aldeadas, sob a superviso dos missionrios, elevando-as condio de vilas e lugares secularizados. Nunca uma viso da fronteira enquanto wilderness, a barreira entre civilizao e barbrie, foi to forte na poltica indigenista portuguesa.

    O Directorio, que se deve observar nas povoaoens dos ndios do Par, e Maranho em quanto Sua Magestade no mandar o contrrio, de 1757, redigido pelo ento governador do Estado do Gro-Par e Maranho, Francisco Xavier de Mendona Furtado (1751-59), confirmado pelo rei e mando publicar para todas as conquistas da Amrica portuguesa como Alvara em 17 de agosto de 1758, visou instrumentalizar a Lei de 6 de junho de 1755 e o Alvara com fora de Lei de 7 de junho de 1755 que restituam a Liberdade a todos os ndios deste Estado, abolindo, deste modo, o governo temporal exercido pelos missionrios sobre as comunidades indgenas. Em termos formais, esse conjunto de leis fazia dos ndios vassalos juridicamente iguais aos portugueses, de modo que suas terras fossem consideradas e respeitadas enquanto territrio lusitano.65 O Diretrio e as Leis das liberdades dos ndios tambm tinham como objetivo, por meio de uma poltica territorial que pretendia integrar brancos e ndios por meio da mestiagem, combater a disperso populacional em lugares ermos, considerada um empecilho administrao e ao bom governo das possesses ultramarinas.66

    Estabelecendo uma sequncia de medidas que garantissem o tratamento igualitrio entre brancos e ndios, como a valorizao do casamento misto e a proteo fsica destes contra quaisquer maus-tratos praticados pelos colonos, que deveriam ser exemplarmente repreendidos pelas autoridades locais, o Diretrio tinha como um de seus principais propsitos conter as histricas contendas com os colonos, provocadas, sobretudo, pela questo agrria e pelo uso da mo-de-obra indgena. De acordo com a historiadora Elisa Fruhalf Garcia, o fino trato dispensando aos indgenas representou a estratgia portuguesa de aproximao, tendo a imagem do rei como anfitrio.67 Na Paraba, as primeiras recomendaes das Leis da Liberdade dos ndios chegaram s mos do ouvidor-geral Domingos Monteiro da Rocha, o mesmo que engavetara as investigaes contra as mortes dos ndios Panati, e afirmaram enfaticamente a limpeza dos casamentos entre 65 SANTOS, Antnio Cesar de Almeida. Aritmtica poltica e a administrao do Estado portugus na segunda metade do sculo XVIII. In.: DOR, Andra & SANTOS, Antnio Cesar de Almeida (orgs.). Temas Setecentistas: governos e populaes no Imprio portugus. Curitiba: UFPR-SCHLA, Fundao Araucria, 2009, p. 143-152. 66 Para uma pertinente discusso sobre os objetivos e contedo da legislao indigenista do Diretrio, cf. LOPES, Ftima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de ndios do Rio Grande do Norte sob o diretrio pombalino no sculo XVIII. Tese (Doutorado em Histria), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005. 67 GARCIA, Elisa Fruhalf. As diversas formas de ser ndio... p. 50.

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    ndios e portugueses, os quais no fico com infama alguma, antes se faro dignos da minha Real ateno68

    Porm, como nos lembra Maria Regina Celestino de Almeida, as leis indigenistas de meados de Setecentos no foram originais em seus principais quesitos, j que, anteriormente, houve duas outras grandes leis de liberdade (1609 e 1680) que proibiam a escravizao indgena em quaisquer circunstncias, e ambas foram revogadas poucos anos depois de promulgadas, pela violenta reao dos colonos.69 preciso considerarmos que, tradicionalmente, a poltica indigenista portuguesa foi marcada por seu carter difuso e contraditrio, seguindo o padro pluralista do exerccio do poder no Antigo Regime, cujas solues aplicadas s localidades denotavam um fortssimo pragmatismo e dirigiam a governana dos ndios em funo do jogo de foras na colnia entre os atores envolvidos e sua capacidade de influenciar o rei e seus conselheiros.70

    Neste sentido, diversidade regional da colnia portuguesa na Amrica contribua para a fragilidade de leis gerais, aplicadas invariavelmente. O prprio Diretrio foi um documento inicialmente experimentado na Amaznia e s depois transposto s demais capitanias atlnticas. E mesmo essa transposio no prescindiu de adaptaes locais, do que testemunha a Direo com que interinamente se devem regular os ndios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da Capitania de Pernambuco e suas anexas, escrita pelo governador-general Lus Diogo Lobo da Silva em 1759.71 De modo geral, tanto o Diretrio quanto sua verso adaptada s capitanias do Norte a Direo reconheciam a imperiosa necessidade da integrao dos ndios reunio dos sditos como condio sine-qua-non para o sucesso das reformas que o Imprio tanto aspirava.

    O fundamento desses dois documentos era que os ndios vivessem imitao dos brancos. Falava-se emblematicamente em reforma dos costumes ao orientar-se os diretores das novas vilas que para desterrar dos ndios as ebriedades e os mais abusos ponderados, uzem dos meios da suavidade e brandura, para que no suceda, que, degenerando a reforma em exasperao, se retirem do grmio da Igreja, a que naturalmente os convida de sua parte o horror do castigo, e da outra a inclinao aos brbaros costumes [...].72 A agricultura, ao lado do comrcio, era

    68 AHU PB, doc. 1466 (1756, maro, 29, Paraba). 69 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indgenas... p. 141. 70 Ibidem, p. 116-118. Para uma pertinente leitura da legislao indigenista portuguesa, cf. PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos... 71 De acordo com Ricardo Pinto de Medeiros, os dois documentos convergiam em praticamente todos os seus itens, com exceo de dois pontos: a forma de repartio das terras e da distribuio dos ndios, adotando-se solues locais para tais itens. Para mais detalhes, cf. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Poltica indigenista do perodo pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da Amrica portuguesa. Actas do Congresso Internacional Espao Atlntico de Antigo Regime: poderes e sociedades. Lisboa, novembro de 2005, p. 3. 72 Direo com que interinamente se devem regular os ndios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da Capitania de Pernambuco e suas anexas. In.: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (RIHGB) n. XLVI, 1883, p. 127.

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    entendida como uma prtica civilizatria e integrar os nativos s atividades de cultivo dos portugueses era visto como um eficaz mtodo para a execuo dos planos do Diretrio o til e honrado exerccio de cultivarem as terras. A Direo, de 1759, alm de obrigar o plantio de milho, feijo e outros gneros de subsistncia nas novas vilas, recomendava que os indgenas cultivassem o algodo e o anil, dois valiosos produtos de exportao na segunda metade do sculo XVIII e que vinham tendo safras promissoras nas capitanias do Norte.73

    Contudo, a nova legislao indigenista no foi aceita sem ressalvas ou recusas, especialmente no tocante a real possibilidade de civilizar os ndios, fazendo-os iguais aos portugueses. A ideia de que os nativos eram naturalmente inferiores era arraigada na colnia, notavelmente entre aqueles com quem estes realizavam os contatos mais diretos e, segundo Elisa Garcia (que tratou do caso do Rio Grande de So Pedro), Boa parte da sociedade local [...] no se mostrava disposta a aceitar a possibilidade de os ndios serem ou virem a ser iguais, ou seja, pessoas da mesma qualidade, suscitando objees como a impureza de sangue dos gentios.74 Na Paraba, o carter selvagem e incivilizvel dos ndios foi defendido pelos prprios clrigos que conviveram nos aldeamentos antes do Diretrio. No incio da dcada de 1740, um tal irmo Diogo da Conceio, do qual desconhecemos a origem bem como a que ordem religiosa pertencia, agitou os nimos entre os missionrios dos aldeamentos da capitania ao propor a Sua Majestade vivo os ndios na sua plena liberdade, o que seria o milhor meyo para reduzirem a Nossa Santa Fe [...].75 Tal proposio irritou muitssimo seus pares.

    O irmo Diogo justificava sua proposta ao considerar a notria ineficincia dos aldeamentos em cristianizar os ndios, manifestando que conceder-lhes liberdade, garantindo o convvio com os demais cristos do reino, lhes facultaria os exemplos de f e piedade de que precisavam para se edificarem. Diogo da Conceio destacava tambm a escassez de curas para administrar os sacramentos e correr os sertes cristianizando as misses. Chama-nos a ateno seu posicionamento em favor da liberdade dos ndios justamente por ter sido feito antes mesmo da legislao pombalina, prevendo, de certo modo, a extino dos aldeamentos e o fim do governo dos missionrios. O Conselho Ultramarino solicitou pareceres de trs religiosos que atuaram em misses na Paraba. Todos eles mostraram-se veementemente contrrios s opinies de Diogo da Conceio. Frei Calisto de So Caetano, que servira no mosteiro de So Bento na cidade da Paraba, dissera que:

    73 Ibidem, p. 130. Sobre o comrcio colonial e a pauta de exportaes da Amrica portuguesa no final do sculo XVIII, cf. ARRUDA, Jos Jobson de Andrade. O Brasil no comrcio colonial. So Paulo: tica, 1989. Sobre o comrcio colonial nas capitanias do Norte, cf. CHAVES JNIOR, Jos Inaldo. As duras cadeias de hum governo subordinado... sobretudo o captulo 4. 74 GARCIA, Elisa Fruhalf. As diversas formas de ser ndio... p. 97. 75 AHU PB, doc. 1204 (1747, abril, 18, Paraba), grifos nossos

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    sem considerao proferio o dito Irmo esta propozio, por que vivendo os Indios na sua liberdade como outro qualquer vassalo de Vossa Magestade no haver lavoura, gado ou rossa que no assaltem, roubando para se sustentarem, por ser esta gente naturalmente preguisoza e vadia, e inclinada a robs, e tando (sic) dispersos cauzaro grande perturbao ao Povo, e ainda muitas vezes das aldeyas onde vivem com sujeio aos missionrios saem para fazer semelhantes robos pelos quais sam castigados.76 Alm de segregar os ndios daquilo que entendia como povo, tratando-os

    enquanto gente naturalmente preguisoza e vadia, Frei Calisto de So Caetano indagava: Nem vivendo na sua liberdade ser meyo para reduzirem a nossa Santa Fe, porque se os que estam nas aldeyas doutrinadoz, e com o conhecimento de Deuz, algumas vezes se esquesem da obrigao catholica, e querem praticar os seus ritos gentlicos [...], como estando na sua plena liberdade se ham de reduzir maiz depressa a Nossa Santa Fe? Antes me parese, que se esquesero de todo do mesmo Deos. Finalizando seu parecer, Frei Calisto fora enftico: Sem dvida que se esqueceu o Irmo Diogo da natureza dos ndios.77 Por sua vez, o Prior do mosteiro do Carmo na Paraba, Frei Joo de Santa Rosa, tambm engrossou o coro contrrio s propostas de liberdade dos ndios veiculadas pelo irmo Diogo da Conceio.

    No que diz respeito aos nativos aprenderem a Santa F pelo exemplo observado dos colonos, cristos-velhos e, em tese, mais experimentados na piedade, o carmelita Joo de Santa Rosa tambm no conteve suas palavras, considerando que os moradores somente se aproximavam dos ndios com o interesse de se servirem deles enquanto escravos, de modo que d-los a dita liberdade seria o mesmo que reduzi-los a uma sujeio ainda maior, o cativeiro, pois os luso-brasileiros no se importavam se os ndios sabiam pouco ou muito acerca da salvao de suas almas, s o que dezejavam he se fizero ou no o servio, sem contar que eram estes colonos to rsticos que ignoro a maior parte dos mistrios de nossa Santa F, e como pode hum cego guiar outro, sem que ambos se precipitem?.78 Com efeito, tal como fez o Frei Calisto de So Caetano, o Prior do mosteiro do Carmo tambm ressaltou a suposta natureza indmita dos ndios, de inclinao to rebeldes, e contrrios ao culto divino, de modo que a figura do missionrio da aldeia era absolutamente crucial afim de se evitar os seus depravados vcios.79

    No ltimo parecer solicitado pelo Conselho Ultramarino falou Francisco do Padre Eterno, guardio do Convento de Santo Antnio da Paraba, que teceu um voto mais complacente com o irmo Diogo, concordando com este nalguns pontos, 76 Op. cit., grifos nossos. 77 Op. cit. 78 AHU PB, doc. 1201 (1747, abril, 17, Paraba), grifos nossos. 79 Op. cit.

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    mas posicionando-se contrrio no aspecto central de sua proposio: a liberdade dos ndios e a extino das misses. De acordo com Francisco do Padre Eterno, eram, de fato, clarividentes as perturbaes que padeciam os aldeamentos e seus prelados, que lutavam contra os maus ritos, vcios e costumes, naturais nos tapuias, tendo ainda que enfrentar a escassez de meios humanos e materiais, de sorte que a multiplicao (sic) dos presbteros, vigrios, curas ou coadjuctores nas distancias das dez legoas que na copia requer o Irmo Diogo da Conceyo he muito necessria para que se administre a seu tempo ao povo, e sem detrimento do povo os sacramentos.80

    Data vnia tal constatao, Francisco do Padre Eterno discordava justamente quanto a estarem os ndios aldeados em liberdade, livres do governo das misses e com sujeio (sic) no temporal aos capites mayores dos distritos, e no espiritual aos Excelentissimos e Reverendissimos Senhores [Bispos], haja vista ter mostrado a experincia a grande runa que se seguiu aps proposituras dessa natureza, porque estes ndios assim estavo no princpio com a sujeio que pede a copia, e por se ver a pouca ou nenhuma utilidade para o Servio de Deos e da Santa f nos sobreditos ndios, se puzeram misses [...]81 Destarte, se, avanado o sculo XVIII, proposies incomuns, como a do irmo Diogo da Conceio, j dividiam os prprios religiosos, a partir da poltica indigenista do marqus de Pombal, a secularizao do governo dos ndios passou a indicar a opinio corrente de que os aldeamentos e seu padro preservacionista haviam havia fracassado na misso de cristianizar os nativos, ao passo que a convivncia e a mistura com os brancos eram vistas como mecanismos mais eficazes para atingir esse mister.

    Surpreendentemente, as heterodoxias do irmo Diogo da Conceio no tardaram at se tornarem uma realidade poltica, pelo menos no que tange ao fim do governo temporal dos religiosos, pois o Diretrio dos ndios bani-os da colnia, erigindo vilas com administrao leiga no lugar dos antigos aldeamentos. Entretanto, se, na prtica, as novas vilas de ndios no significaram uma mudana abrupta com relao ao modelo territorial das antigas misses e ao modelo de governo por tutela, que passou dos religiosos aos diretores (mantendo, assim, a tradicional concepo da infantilidade dos nativos, dessa feita laicizada), a principal novidade da legislao pombalina foi sua proposta assimilacionista, na qual a ideia de civilizao passou a preponderar sobre a de catequese.82

    80 AHU PB, doc. 1203 (1747, abril, 17, Paraba). 81 Op. cit. 82 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os ndios na Histria do Brasil... p. 112. De acordo com Maria Helena Flexor, O objetivo, na prtica, era civilizar, educar e obrigar os ndios a falar a lngua portuguesa e integr-los na sociedade dos brancos, num ncleo urbano para, assim, povoar e tomar conta do solo. Dava-se a liberdade aos ndios, mas baseada nas teorias de Jean-Jacques Rousseau, sobre a origem e fundamento da desigualdade entre os homens [...] especialmente na teoria da inocncia dos primitivos (FLEXOR, Maria Helena Ochi. A rede urbana brasileira setecentista. A afirmao da vila regular. In.: TEIXEIRA, Manuel C. (org.). A construo da cidade brasileira. Lisboa: Livros Horizonte, 2004, p. 205).

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    Tal poltica provocou um reposicionamento territorial e urbanstico na capitania da Paraba, obrigando novos arranjos tanto da parte dos grupos indgenas quanto dos colonos e oficiais rgios. De antemo, preciso ter em conta que, at 1760, o sistema concelhio da capitania era concentrado na cidade da Paraba, cujo nico termo estendia-se por toda a extenso litornea e pela vastssima rea interiorizada, o que evidentemente no implicava em um domnio de fato, mas, ao contrrio, na precariedade das formas institucionais para o controle da crescente populao dos sertes.83

    As novas vilas de ndios: termos e jurisdies

    A criao de cinco vilas de ndios na dcada de 1760, para onde foram

    alocados os aldeados, revolucionou a estrutura urbana e administrativa da Paraba,84 porm igualmente provocou a insatisfao de inmeros sujeitos, a comear pelos edis do senado da cmara da cidade da Paraba de Nossa Senhora das Neves, que sentiram as mudanas sobretudo de um ponto de vista fiscal, pois houve uma reduo da arrecadao em virtude da diminuio do termo da municipalidade.85 At o final de Setecentos, as novas vilas da Paraba somariam nove, alm de Nossa Senhora das Neves, que permanecia como nica cidade. Foram elas: vila de Monte-mor (1762), vila de So Miguel da Baa da Traio (1762), vila de Nossa Senhora do Pilar (1763), vila do Conde (1764-5) e vila de Alhandra (1765), completando o circuito de erees na zona da mata da Capitania, para onde se destinaram as populaes indgenas dos sertes. Alm destas, foram criadas posteriormente a vila de Pombal (1772), vila Nova da Rainha (Campina Grande, 1790), vila Real de So Joo (Cariri Velho) e vila Nova de Souza (1800), todas localizadas para alm da Serra da Borborema, nos chamados sertes. Consoante Roberta Marx Delson:

    [...] o verdadeiro significado das cartas rgias que conferiam formalmente o ttulo de vila no era o reconhecimento do crescimento fsico do arraial ou aldeia, mas sim a percepo pragmtica de que, dentro daquela rea especfica, era preciso assumir determinadas responsabilidades administrativas.86

    83 SANTOS, Antnio Cesar de Almeida. Aritmtica poltica e a administrao do Estado portugus na segunda metade do sculo XVIII... p. 123. 84 CARVALHO, Juliano Loureiro de. Formao territorial da Mata Paraibana, 1750-1800. Dissertao (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008, p. 124. 85 Escrita em cmara a 28 de julho de 1766, os vereadores da cidade da Paraba queixaram-se ao secretrio de Estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendona Furtado, acerca da aplicao da ordem de criao das vilas, que, segundo os mesmos, havia sido feita em detrimento da sempre leal Cidade da Parayba, tendo em vista a excessiva reduo de seu termo. Cf. AHU PB, doc. 1800 (1766, julho, 21, Paraba). 86 DELSON, Roberta Marx. Novas vilas para o Brasil-Colnia: planejamento espacial e social no Sculo XVIII. Trad. e reviso de Fernando de Vasconcelos Pinto. Braslia: Editora Alva-Ciord, 1997, p. 5.

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    A criao de uma vila ou cidade era uma atitude genuna de urbanizao e, dentro da tica do urbanismo lusitano, urbanizar e civilizar eram expresses quase sinnimas.87 No obstante, no caso da capitania da Paraba, o formato urbanstico das cinco vilas parece ter obedecido, em larga medida, os velhos traados das misses, como prope Juliano Loureiro de Carvalho,88 o que pode ser explicado pela prpria precariedade material destes pequenos ncleos urbanos, que seguiram a tendncia em toda a Amrica portuguesa, onde a maioria das elevaes, instaladas a partir dos aldeamentos, no possua mais que casa de cmara e cadeia, igreja, casa do proco e dos moradores, sem muitas esperanas de verem instalados outros equipamentos, como Casa de Misericrdia e Hospital.89

    Pelos idos de 1803, portanto, aps a revogao da lei do Diretrio (em 1798), uma carta da ouvidoria-geral da Paraba ao prncipe-regente deixou-nos indcios do melhoramento das vilas criadas pelas reformas pombalinas. Na ocasio, o escrivo Jos Antnio Pereira de Carvalho, a pedido do prprio ouvidor-geral, desembargador Manuel Leocdio Rademaker, encaminhou corte a notcia que todas as vilas da comarca da Paraba, a exceo da dita Cidade [da Paraba] e da villa de Goianna, no tem rendimento nem patrimnio e que apenas podem suprir a despesa anual das mesmas cmeras, sua subsistncia, e que nada pagavo ao secretrio do Conselho Ultramarino [...].90 A fonte no se refere apenas s vilas de ndios das capitanias da Paraba e Rio Grande do Norte, que integravam a jurisdio da comarca da Paraba, mas certamente inseri-as no documento, citando a sequncia de elevaes realizadas na Paraba na dcada de 1760.

    A despeito da latente pobreza, muitas das quais mal podiam arcar com os dividendos de sua criao e sustento (a maioria dos custos recaa sobre os prprios moradores), em geral, no se desprezou o tradicional ritual de origem medieval, tendo na cmara o principal smbolo do novo estatuto assumido pelos lugares feitos vilas. O juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco foi designado intendente pelo operoso governador de Pernambuco, Lus Diogo Lobo da Silva

    87 ARAJO, Renata Malcher. A urbanizao do Mato Grosso no sculo XVIII... p. 107. A criao de uma vila ou cidade tambm obedecia um cerimonial bastante simblico. A esse respeito, cf. FLEXOR, Maria Helena Ochi. A rede urbana brasileira setecentista. A afirmao da vila regular. In.: TEIXEIRA, Manuel C. A construo da cidade brasileira... p. 210. 88 CARVALHO, Juliano Loureiro de. Vilas Pombalinas na Capitania da Paraba: espaos urbanos de confluncia. In.: Anais do II Encontro Internacional de Histria Colonial. Mneme Revista de Humanidades. UFRN, vol. 9, n 24, set/out de 2008. 89 FLEXOR, Maria Helena Ochi. A rede urbana brasileira setecentista. A afirmao da vila regular... p. 212. 90 AHU PB, doc. 2870 (1803, outubro, 4, Paraba). A referida fonte cita nominalmente as vilas em situao financeira deficitria: vila de Alhandra (Paraba), vila do Conde (Paraba), vila do Pilar (Paraba), vila da Rainha (Paraba), vila Real de So Joo (Paraba), vila do Prncipe (Rio Grande do Norte), vila de Pombal (Paraba), vila de Souza (Paraba), vila de Portalegre (Rio Grande do Norte), vila da Princeza (Paraba), cidade do Natal (Rio Grande do Norte), vila de Extremoz (Rio Grande do Norte), vila de So Jose (Rio Grande do Norte), vila de Ares (Rio Grande do Norte), vila Flor (Rio Grande do Norte), vila de So Miguel (Paraba) e vila de Monte-mor (Paraba)

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    (1755-62),91 para erigir as novas vilas ao norte de Pernambuco, fazendo descer as populaes indgenas dos sertes em direo aos seus novos estabelecimentos, estando responsvel, ainda, pela instalao dos pelourinhos, pela demarcao dos locais de construo das cmaras e das cadeias, alm de ser encarregado de conduzir as eleies municipais e proceder a escolha de capites-mores de ndios e diretores.92

    Nos anos de sua atuao, Miguel Carlos de Pina Castelo Branco tornou-se, sem dvida, um dos homens mais poderosos e influentes das capitanias do Norte, dada a prpria natureza e dimenso da misso que lhe foi conferida. Ele enfrentou gigantescos desafios na execuo de uma ambiciosa confluncia entre as polticas urbanizadora e indigenista da Coroa portuguesa, a comear pelas resistncias impostas por seus pares, magistrados que atuavam na ouvidoria-geral da Paraba, ofendidos pela repartio dos termos que afetara diretamente suas jurisdies e ganhos nos servios da justia. Em uma poderosa fala durante a cerimnia de fundao da vila de Portalegre, no Rio Grande do Norte, o governador-general Lus Diogo Lobo da Silva reiterou a relevncia e o alcance do que classificou a Santa Reforma dos extensos termos das antigas vilas, destacando que os vassalos de Sua Magestade Fidelssima padessem grandes vexaoens nos exorbitantes salrios que lhe extorquem os oficiais da Justia pelos dilatados caminhos que conto, de modo que nem eu sey como aplicar territrio para as justias que estabelesso sem uma nova regenerao da Amrica (sic).93

    Numa poca em que a cultura poltica ainda era fortemente marcada por valores de Antigo Regime, como a indistino entre o pblico e o privado, uma concepo centrfuga do poder e a consequente concorrncia pelo privilgio de falar em nome do rei,94 memorveis conflitos de jurisdies se sucederam nas capitanias do Norte durante o processo de aplicao da lei do Diretrio, tendo como protagonistas o prprio Lus Diogo Lobo da Silva, alm do intendente Pina Castelo Branco, vereadores das cidades de Natal e Paraba, capites-mores das capitanias 91 De acordo com Laura de Mello e Souza, Lus Diogo Lobo Silva, durante seus sete anos de governo nas capitanias do Norte, trabalhou sem cessar na aplicao da Lei do Diretrio, em decorrncia da qual criou 25 novas vilas e arrebanhou 25.370 almas, fazendo vezes de um executor aplicado da poltica pombalina (SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: poltica e administrao na Amrica Portuguesa do sculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 332. 92 O bacharel Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco j havia servido como juiz de fora em Beja e, em 1758, foi enviado pelo rei Pernambuco. No decreto do rei que nomeou Castelo Branco, lia-se ainda a concesso de hum lugar ordinrio, que primeiro vagar na Relao da Bahia (AHU PE, doc. 7100 1758, maro, 10, Lisboa). A regio ao sul de Pernambuco, correspondente comarca das Alagoas, ficou sob a responsabilidade do ouvidor-geral Manuel de Gouvea Alvares, que se ocupou de 23 aldeias, reduzindo-as e criando as respectivas vilas. Cf. MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Poltica indigenista do perodo pombalino e seus reflexos nas capitanias do norte da Amrica portuguesa... p. 4. 93 AHU PE, doc. 7721 (1762, outubro, 5, Lisboa). 94 Sobre a cultura poltica dos tempos modernos, cf. GOUVA, Maria de Ftima Silva & SANTOS, Marlia Nogueira dos. Cultura poltica na dinmica das redes imperiais portuguesas, sculos XVII e XVIII. In.: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel & GONTIJO, Rebeca (orgs.). Culturas polticas e leituras do passado: historiografia e ensino de histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.

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    subordinadas a Pernambuco e o ouvidor-geral da comarca da Paraba, cuja jurisdio curiosamente estendia-se at o Rio Grande do Norte. Segundo a acusao de Castelo Branco, munidos de despachos do doutor Joo Roiz Colao, os vereadores de Natal estariam entrando nos termos das novas vilas para fazer correio, o que motivou a ameaa do general Lobo da Silva: no procedo a acto algum nos referidos destrictos, por que de o fazerem se proceder contra vossas mercs como notrios e violentos uzurpadores da jurisdio que lhes no compete.95

    Numa carta enftica ao ouvidor Joo Roiz Collao, o governador-general pressionou-o dizendo: seno, diga-me como se podem formar villas sem lhes assignar termo, e como se lhes pode regular termos, sem os separar do da Cmara do destricto em que se forma sem huma nova regenerao da Amrica.96 Reafirmando que a criao das novas vilas nas capitanias do Norte era uma determinao rgia que para com os ndios deste continente se observasse em tudo o mesmo systema que havia estabelecido para os do Par e Maranham , Lobo da Silva advertia o ouvidor-geral da Paraba que era de Sua Majestade Fidelssima a jurisdio que vossa merc exercita, e sendo livre ao mesmo Senhor amplia-la ou restringi-la a seu arbtrio, sem dvida que vossa merc e os officiaes da cmara do Natal em lhes obstarem, fazem uma vigorosa, violenta e notria transgresso da Sua Real Determinao, que designou Miguel Carlos de Pina Castelo Branco para a creao das villas e lugares que se erigissem das antigas aldeas, independentes dos ministros actuaes do territrio em que se formo por se no lhes conferir esta deligncia [...].97

    Em seu ultimato ao ouvidor-geral, o governador de Pernambuco e suas anexas destacou, ainda, que a matria de criao das novas vilas lhe era estranha, de modo que embaraar o que he privativo dos [seus] executores lhe he proibido, e completou com uma ordem expressa para que escreva logo s cmaras [de Natal e Paraba] para que seno oponho ao que se acha estabelecido por ordens rgias [...], porque do contrrio obrarey o que pede hu notria usurpao de jurisdio em matria que necessita de toda a reflexo.98 As novas vilas bem como a jurisdio sobre seus termos recm-criados continuaram sendo palco de intensas disputas e objeto da reivindicao de poderes concorrentes, aumentadas pela boataria de

    95 AHU PE, doc. 7721 (1762, outubro, 5, Lisboa). 96 Op. cit. 97 Op. Cit., grifos nossos. 98 Op. cit. Outros incidentes marcaram o cotidiano do trabalho de criao das vilas, desempenhado por Pina Castelo Branco, a exemplo dos rumores de um levante de ndios do Rio Grande do Norte, anunciado pelo prprio capito-mor desta Capitania pelos idos de 1760. O juiz de fora Miguel Carlos de Pina Castelo Branco fez uma circunstanciada defesa dos ndios da antiga aldeia de Garja, elevada vila de Extremoz, que foi seguida pelo governador-general de Pernambuco, que ordenou devassa que contestou o figurado levante (AHU PE, doc. 7418, 1760, junho, 26, Recife; AHU- PE, doc. 7735, post. 1763, fevereiro, 10). Sobre esse caso, cf. LOPES, Ftima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de ndios do Rio Grande do Norte sob o diretrio pombalino no sculo XVIII. Tese (Doutorado em Histria), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.

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    supostos de levantes indgenas e por dios entre os oficiais da Coroa, como no episdio em que moradores da Paraba, instigados pelo capito-mor desta Capitania, denunciaram ao governador de Pernambuco que o juiz de fora Miguel Carlos Castelo Branco havia entregue a guarda da plvora aos ndios da recm-criada vila de So Miguel da Bahia da Traio, o que teria provocado grande medo na populao local, que acreditava poderem os ndios armados sublevarem-se contra os brancos. Irritado diante dos rumores que punham em cheque a lealdade dos nativos, mas que, intrinsecamente, revelaram os jogos polticos em um momento de ebulio, o intendente das erees contestou ironicamente o capito-mor da Paraba, Joo Henrique de Carvalho,

    Se o cappitam mor / da Parayba desejava outras sentinelas podia / mandar fazellas por soldados pagos, e se quer / se quer aos da Parayba os privilgios e socegos das Tropas do Papa podia remeter dinheiro / com que se fizesse huma caza a prova de bomba, pois / que eu no tenho virtude para fazer o milagre de / construir sem despeza semelhante obra, nem tinha / outros homens com que podesse evitar algum incen-/ dio, mais que os referidos ndios, que at agora reputo fidelssimos.99 O prprio capito dos ndios da vila de So Miguel, Francisco Xavier do

    Rosario, em carta Pina Castelo Branco, lamentou as acusaes que sua gente vinha sofrendo da parte dos moradores da Paraba e atribuiu ao cime diante das honras que nos faz Sua Magestade Fidelssima a razo de toda a infmia com que nos querem manchar, atribuindo a nossa constncia menos fidelidade [...], pelo que a realidade demonstrava, contudo, nas ocasies em que lhe procura a minha gente para o servio de Sua Magestade he Vossa Merc fiel testemunha que nunca tam faltado [...].100 Neste sentido, em um cenrio de incertezas sobre a eficcia do Diretrio e consequente embate com os colonos, os nativos no deixaram de novamente utilizar os canais de articulao poltica do Antigo Regime, alianando-se com aqueles oficiais que poderiam conduzir suas queixas ao rei. Este parece ter sido o intuito do ndio Francisco Xavier Rosario quando, em dezembro de 1762, rememorou ao intendente Miguel Carlos de Pina Castelo Branco a fidelidade de seu povo a Coroa do Nosso Fidelssimo Monarcha.101

    Neste sentido, deve-se notar que a valorizao das lideranas indgenas, seguindo princpios j apontados por Rafael Ale Rocha, como as bases tradicionais da comunidade e o reconhecimento das autoridades metropolitanas bem como de seus cdigos polticos e simblicos, foram alguns dos principais instrumentos usados na construo de relaes amigveis com os ndios, o que era indispensvel

    99 AHU- PE, doc. 7735 (post. 1763, fevereiro, 10) 100 Op. Cit. 101 Op. Cit.

  • PROMONTORIA Ano 11 Nmero 11, 2014 116

    ao xito das novas vilas.102 A prpria legislao indigenista pombalina previa um tratamento especial dispensado s chefias, copiando tudo aquilo praticado para os demais militares do Imprio, estabelecendo que sobre estes Principais, sargento-mores e capites das aldeias e seus filhos, ningum tenha jurisdio neles, seno os