UM OLHAR ATRAVÉS DO VISÍVEL - reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE

    UM OLHAR ATRAVÉS DO VISÍVEL:

    reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

    Lílian de Carvalho Soares

    Dissertação de Mestrado

    Área de Concentração: Teorias da Arte

    Linha de Pesquisa: Análise Crítica

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    Lílian de Carvalho Soares

    Um olhar através do visível:

    reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

    Dissertação apresentada como requisitoparcial para a obtenção de Título de Mestreem Ciência da Arte, pela Pós-Graduação emCiência da Arte, da Universidade FederalFluminense.

    Linha de Pesquisa: Análise Crítica

    Orientador: Luciano Vinhosa Simão

    Niterói

    2011

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    FOLHA DE APROVAÇÃO

    Lílian de Carvalho Soares

    Um olhar através do visível:

    reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

    Dissertação apresentada como requisito parcial paraa obtenção de Título de Mestre em Ciência da Arte,pela Pós-Graduação em Ciência da Arte, daUniversidade Federal Fluminense.

    Linha de Pesquisa: Análise Crítica

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________

    Prof. Dr. Luciano Vinhosa Simão(Presidente e Orientador)

    Universidade Federal Fluminense– UFF

    _______________________________________Prof. Dr. Pedro Hussak

    (Membro Interno)Universidade Federal Fluminense - UFF

    _______________________________________Prof. Dr. Luiz Cláudio da Costa

    (Membro Externo)Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

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    Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

    S676 Soares, Lílian de Carvalho.Um olhar através do visível : reflexões sobre as fotografias de

    Chema Madoz / Lílian de Carvalho Soares.– 2011.95 f.; il.

    Orientador: Luciano Vinhosa Simão.Dissertação (Mestrado em Ciência da Arte)– UniversidadeFederal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação Social,2011.

    Bibliografia: f. 87-90.1. Fotografia. 2. Arte. 3. Tempo. I. Simão, Luciano Vinhosa. II.

    Universidade Federal Fluminense. Instituto de Arte eComunicação Social. III. Título.

    CDD 770

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    Agradecimentos

    Agradecer é sempre uma tentativa de retribuir em palavras gentilezas quemuitas vezes foram a mim ofertadas em forma de gestos e carinhos. Quaispalavras usar para recompensar de maneira justa aqueles que meacompanharam nessa jornada, muitas vezes impensada? Foram tantas pessoasque me guiaram, deram colo, afeto e segurança para que um dia esse trabalhofosse, finalmente, finalizado. Não quero, contudo, tornar meu agradecimento

    prolixo nem tentar alcançar por meio da palavra a dimensão de cada gesto. Aspalavras, por mais belas e poetizadas, não equivalem aos gestos. Esses sempresão maiores, mais doces, mais amorosos. Contudo, não posso deixar de citarnomes, pois sem um deles, talvez, não tivesse chegado até aqui.

    À minha mãe, Rosa de minha vida, sem a qual não estaria aqui.À Nati pelo amor, companheirismo e apoio.Ao meu pai Fábio, poetinha de olhar sempre amoroso.À minha Dandy, irmã querida e eternamente admirada.Ao Fabiano, pelos conselhos acadêmicos sempre lúcidos.À Beatriz, amiga querida, que me ajudou a abrir essa porta.À Eneida e Angelinha, pelo tempo e gentilezas.Ao Luciano Vinhosa, orientador gentil e paciente.

    Ao Luiz Sérgio pelo auxilio acadêmico.Ao Pedro Hussak e Luiz Cláudio pelas palavras esclarecedoras.Ao Chema Madoz pelo diálogo.

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    SOARES, Lílian de Carvalho.Um olhar através do visível: reflexões sobre asfotografias de Chema Madoz. Orientador: Prof. Dr. Luciano Vinhosa Simão. Niterói:UFF/IACS/PPGCA. Dissertação de Mestrado. 2011.

    RESUMO

    O presente trabalho investiga as imagens do fotógrafo contemporâneo espanholChema Madoz. Para tanto, fez-se um estudo sobre o seu processo de criaçãoque abarca não apenas as etapas clássicas de obtenção da fotografia, mas

    também desenhos e construção de coisas peculiares. Com isso, o fotógrafodesenvolve uma poética particular e imagens que colocam em cheque aontologia do fotográfico. Nesse sentido, no desenvolver da dissertação, serediscutem os paradigmas estabelecidos da linguagem fotográfica, no intuito dealcançar os questionamentos suscitados pela fotografia do espanhol. Emseguida, se propõe pensar suas imagens a partir do entrelaçamento com otempo, objetivando expandir a compreensão e fazer suscitar um jogo de

    paradoxos labirínticos, típicos de seu trabalho. A proposta é mostrar, então, queas fotografias sugerem um olhar além do visível.

    Palavras-Chave: Chema Madoz, fotografia, tempo.

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    SOARES, Lílian de Carvalho. A look through the visible: studiesabout ChemaMadoz‟s photography. Advisor: Prof. Dr. Luciano Vinhosa Simão.Niterói: UFF/IACS/PPGCA.Master‟s degree dissertation. 2011.

    ABSTRACT

    This study investigates the images of the contemporary Spanish photographerChema Madoz. To this end, an analysis of his creation process was performed,embracing not only the classic steps of photography, but also the preparation of

    drawings and construction of peculiar things. Therewith, the photographerdevelops particular and poetic images that cast some doubt on the ontology ofphotography. In this sense, in developing the dissertation, the paradigmsestablished on photographic language are re-discussed, in order to achieve thequestions raised by his images. Then, we propose to think about his imagesfrom the entanglement with time, aiming to expand the understanding abouthis photography and raise the labyrinth of paradoxes, typical of his work. Theaim is to show, then, that the photographs suggest a look beyond the visible.

    Keywords: Chema Madoz, photography, time.

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Madoz em seu atelier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

    Figura 2: Estante de objetos usados para elaboração das fotografias . . . . . . . . . . . . . . . . . 12Figura 3: Cadernos de desenhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13Figura 4: Esboço pré-fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14Figura 5 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14Figura 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16Figura 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16Figura 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17Figura 9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

    Figura 10 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18Figura 11 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18Figura 12 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Figura 13 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19Figura 14 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20Figura 15 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28Figura 16 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28Figura 17 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

    Figura 18: Renée Magritte.La trahison des images. 1928-29. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30Figura 19: Renée Magritte.Ceci est un morceau de fromage. 1963-64. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31Figura 20 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31Figura 21 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32Figura 22 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65Figura 23 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66Figura 24 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68Figura 25 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

    Figura 26: Esboço pré-fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69Figura 27 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70Figura 28: Esboço pré-fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70Figura 29 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72Figura 30 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74Figura 31 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76Figura 32 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77Figura 33 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

    Figura 34 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

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    SUMÁRIO

    1. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 02

    2. Chema Madoz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 072.1. Breve retrospecto: trajetória de vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 072.2. Processo de criação das imagens: dos objetos à fotografia . . . . . . . . 112.3. Desconstruindo clichês: reflexões sobre a crítica alheia . . . . . . . . . . 22

    3. A fotografia: teorias e reflexões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 373.1. A questão indicial e suas limitações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383.2. O real e a fotografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463.3. O tempo e a abertura ao paradoxo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

    4. Através do visível: debatendo sobre as imagensmadozianas . . . . . . . . . . . 64

    5. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

    6. Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

    7. Anexo I– Entrevista com Chema Madoz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

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    Creio que vemos em parte com os

    olhos mas não exclusivamente com

    eles.

    Wim Wenders – Janela da Alma

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    1. INTRODUÇÃO

    Tradicionalmente, as dissertações procuram fazer uma investigação pormeio da escrita de determinado tema, geralmente surgido de umquestionamento geral sobre o mesmo. Contudo, nesse caso, o foco destadissertação não veio a mim primeiramente como uma pergunta, mas sim emimagem. Explico-me. Durante uma aula, muito adequadamente intituladaDescondicionamento do Olhar , fui, pela primeira vez, arrebatada pelas fotografiasde Chema Madoz. Até aquele momento, não percebia na linguagem fotográficaseu poder de transfiguração e observava as fotografias com um olharligeiramente jornalístico e testemunhal. Para mim, até esse encontro, asfotografias seriam fruto de um registrar mecânico ora catalogando coisas oratestemunhando acontecimentos. Eis, então, que tais fotografias me ensinaramque é possível ir além desse paradigma

    O mais surpreendente disso foi perceber que, apesar da simplicidade

    dessas imagens, realizadas com o uso de objetos extremamente banais, elaseram capazes de provocar tamanho estranhamento, certas vezes pela aridez1 por se tratar de imagens com a ausência de figuras humanas e contexto. Éevidente que após essa primeira observação passei a investigar a respeito dofotógrafo, seu processo de criação e aprofundar os estudos, já iniciados, sobreessa matéria tão apaixonante: a fotografia. E logo surgiram as primeirasindagações para o desenvolvimento deste trabalho.

    Ademais, as discussões a respeito das fotografias de Madoz irão seentrelaçar com meus questionamentos quanto à ontologia do fotográfico. Adúvida, plantada pelas fotografias e cultivadas neste texto, sobre a dimensãovalorativa dada a essência indicial do fotográfico tornou-se ubíqua, não na

    1Apesar de Madoz possuir algumas séries do início sua carreira de fotografias com figuras

    humanas, elegeu-se debater apenas sobre as fotografias de objetos. Essa escolha objetivapriorizar uma etapa de sua estética que se tornou recorrente, além de ter sido essa fase a queinstigou o debate deste texto.

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    intenção de negá-la, mas sim na tentativa de perceber algo além desse aspectoou ao menos de sugerir que é preciso “ver menos”.

    Não foi à toa que esta dissertação se tornou, não apenas um estudo

    crítico sobre as imagens de Madoz, mas também um meio de investigar aprópria linguagem fotográfica. O intuito neste texto não foi, dessa maneira, darprioridade a um divagar onírico, mas sim de expor como e o que tais imagensnos interpelam e questionam.

    Para tanto, foi preciso primeiramente apresentar Chema Madoz - poucoconhecido - objetivando relatar sua trajetória de vida e sua relação com afotografia. Acredito que essa apresentação situa o espanhol cronologicamente,

    proporcionando uma maior aproximação do leitor com o fotógrafo.Posteriormente, faço uma explanação sobre seu processo de criação das

    imagens. Sua fotografia é fruto de uma longa tomada de consciência sobrecomo e o que será fotografado. Essa é uma atividade incomum a fotógrafos,pois além de usar a máquina fotográfica, Madoz necessita desenhar e construirseus objetos antes de fotografá-los. O que torna ainda mais intrigante suasimagens.

    Nessa etapa do trabalho, a colaboração do fotógrafo espanhol– por meiode entrevistas2 - foi de extrema importância, pois permitiu maior proximidadecom seu ato criador. Além disso, os títulos da editora espanholaLa Fabrica,Obras Maestras 3 - com centenas de imagens, cronologia e esboços– e

    Conversaciones con Fotógrafos4 – com uma longa entrevista feita por AlejandroCastellote - também foram auxiliares importantes nessa pesquisa.

    O passo seguinte foi desconstruir as sucessivas associações do trabalhode Madoz a movimentos modernistas, em especial ao Surrealismo. Faço issoquestionando alguns críticos que buscaram “classificar” as fotografias a partirde um distanciamento crítico, cientificista e designador. Essa crítica insinua

    2 Foram feitas três entrevistas, por meio de correio eletrônico com o fotógrafo, compiladas eanexadas ao fim do trabalho.3 MADOZ, Chema.Obras Maestras. Madrid: La Fabrica, 20094 ______.Conversaciones com fotógrafos:Chema Madoz habla com Alejandro Castellote. LaFábrica y Fundacíon Telefônica, Madrid, p.77, 2003. Entrevista concedida a Alejandro

    Castellote.

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    uma espécie de “ponto de fuga”5 que enquadra o olhar a partir de umaestetização modernizante e reduz as fotografias aos objetos visíveis. Apenas ovisível na fotografia de Madoz fragiliza a discussão, celebrando uma espécie de

    “mutismo contemplativo”6, abdicando da linguagem fotográfica.No capítulo posterior, é o momento de comentar a respeito dos teóricos

    da fotografia. Essa parte se destina a fundamentar teoricamente os debates acerca das imagens. Primeiramente, teóricos como Philippe Dubois7 e RolandBarthes8 são abordados, pois ambos são personagens principais para adisseminação sobre o entendimento da fotografia a partir do referente. No caso,a intenção é expor as limitações que o culto do referente e da teoria indicial

    infligem ao fotográfico. Para isso, os estudos de André Ruillé9 foram de muitautilidade. Deu-nos suporte para demonstrar que as fotografiasmadozianas questionam ao mesmo tempo em que ultrapassam o discurso da ontologia esugerem uma reflexão a qual se considere não apenas o aparato mecânico, mastambém o processo de criação.

    Essa limitação de (apenas) considerar a fotografia como vestígio de umarealidade não é capaz de responder como é possível fotografar com filme– aluminosidade se imprime sobre a película virgem– coisas que não podem serencontradas na realidade tangível, como acontece com as imagens de ChemaMadoz. Logo, é mister desenvolver uma perspectiva que amplie esse olhar. E,para isso, a noção de virtual foi eleita como aquela que permite a compreensãoda fotografia como potência, como uma imagem além do rastro luminoso, dorastro de uma realidade. Nesse caso, alguns princípios de Pierre Levy10 foram

    utilizados.

    5 BASBAUM, Ricardo (org.).Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos,2001.6 ibidem7 DUBOIS, Philippe.O ato fotográfico.Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus,1993.8 BARTHES, Roland.A câmera clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1984.9 ROUILLÉ, André.A fotografia: entre o documento a arte contemporânea. Tradução deConstancia Egrejas. São Paulo: SENAC, 2009.

    10 LÉVY, Pierre.O que é virtual?. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Ed.34, 1996.

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    Para finalizar, as indagações, sobre a relação da fotografia com o tempo,feitas por Lissovsky,11 complementam as bases teóricas desta dissertação. Nessecaso, o autor põe ao alcance um entendimento mais expansivo sobre o ato

    fotográfico, ao demonstrar a existência de um pré-fotográfico, determinado peladuração, que está imbuído da subjetividade do fotógrafo. É na expectação doinstante que o fotógrafo irá imprimir na imagem uma singularidade que lhe éprópria.

    Além disso, há ainda o tempo compreendido como imagem: a imagem-tempo. Nesse caso, faço o empréstimo de alguns apontamentos feitos porDeleuze12 para destacar os paradoxos nas fotografias. As imagens-tempo

    rompem com a linearidade do clichê, produzindo novas formas de imagens pormeio de um transbordamento. O paradoxo de a fotografia ser rastro darealidade, mas ao mesmo tempo apresentar algo irreal é aquilo que convergecom o ponto de indiscernibilidade, característico da imagem-tempo.

    Finalmente, após definir os pilares da discussão, faço uma análise sobre otrabalho de Madoz. Nesse terceiro e último Capítulo, procurei argumentar, pormeio de um estudo sobre processo criativo do fotógrafo– desenhos, objetos efotografia– como suas imagens questionam a si mesmas ao plantar a dúvidasobre sua essência indicial. Nesse sentido, demonstra-se que o rastro luminoso éposterior ao rastro do grafite sobre o papel o qual, por sua vez, é posterior àsprimeiras concepções da imagem em seu pensamento. A fotografia de Madozcarrega consigo a tríplice indicialidade e, ao mesmo tempo, a discute.

    Ademais, fotografar para Madoz vai além do simples contato com o

    aparato mecânico. Seu processo de desenhar e construir é também uma fase doato fotográfico. Um modo de expectar o instante, por meio de uma açãoconstrutiva e ativa. Essa ação reside na duração desse instante que o olhar sobrea imagem é amadurecido para se alcançar o desfecho final, qual seja, fotografar.

    Por fim, com o escopo de aliviar as tensões suscitadas pelos debatesanteriores, opto por desenvolver uma breve interpretação de algumas imagens.

    11 LISSOVSKY, Maurício.A máquina de esperar: a origem e estética da fotografia moderna. Riode Janeiro: Mauad X, 2008

    12 DELEUZE, Gilles.Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34, 1992

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    Com isso, deixo pulular os paradoxos e uma provável invisibilidade (particular)das fotografias de Chema Madoz a partir de um olhar particular. Espera-se,dessa maneira, que este texto seja um instigador de questionamentos sobre a

    fotografia de Madoz e a apresente como uma imagem, uma potência permeadade contradições que busca o olhar que atravesse o visível.

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    2. Chema Madoz

    2.1. Breve retrospecto: trajetória de vidaUm menino começa a receber suas primeiras aulas na casa de uma

    vizinha. Ao chegar, na ausência de uma mesa para seus estudos, sua professorao coloca sentado em um pequeno banco e abre a porta do forno. Com seuscadernos sobre essa porta permanece sentado olhando para a escuridão dointerior do fogão. O que antes era apenas objeto de cozinha torna-se mesa. Omenino chama-se Chema Madoz. E nesse instante o artista passa a entender arealidade como um universo arbitrário de possibilidades e a cada descobertauma nova realidade aflora (MADOZ, 2009).

    Essa breve recordação relatada por Chema Madoz é a melhorrepresentação do que virá a se tornar sua obra e sua forma de encarar as coisasà sua volta. Como esta dissertação trata-se de um texto crítico a respeito de suasimagens é importante contextualizar e relatar sobre a trajetória do

    artista/fotógrafo para melhor compreender o desenvolvimento do trabalho.Filho único do casal espanhol Luis Rodriguez e Carmen Madoz, José

    Maria Rodriguez Madoz, conhecido como Chema Madoz, nasceu em 1958 emMadrid. Teve uma infância financeiramente modesta e em 1962 mudou-se paraum apartamento recém construído para imigrantes na Espanha. Nesse mesmoano inicia seus estudos preparatórios para o ensino primário na residência deuma vizinha, conforme já relatado. Em 1964 entra em contato pela primeira vez

    com a fotografia: recebe de seu pai uma máquina fotográfica instantânea daKodak e aos seis anos fotografa pela primeira vez. A foto é um retrato de seuspais (MADOZ, 2009).

    Seu contato mais consciente com a linguagem fotográfica só vai acontecerem 1978 quando realiza sua primeira série de fotografias com a câmeraemprestada de um amigo. E é na casa desse amigo que toma conhecimento doprocesso de revelação química de filme preto e branco. “Pela primeira vezobservei como aparecia uma imagem do líquido, uma imagem do nada. Foi

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    uma experiência mágica. Soube que esse era o meio pelo qual contaria o quetinha na cabeça.”13.

    Cursou História da Arte (1980 a 1984) naUniversidade Complutense de

    Madri e fez parte de um grupo de estudos sobre a imagem que visava àformação de fotógrafos para os veículos de imprensa, noCentro de Estudios de laImagen. Nesse curso ele relata que os professores tinham o propósito deinstrumentalizar os alunos para a profissão de fotógrafo de forma bem objetiva,sem a compreensão da fotografia como meio de expressão da arte (MADOZ,2009). Além disso, essa formação em fotografia jornalística não impediu queaflorasse em Madoz uma expressiva sensibilidade acerca das produções

    fotográficas do meio artístico. E nesse mesmo ambiente entra em contato com ahistória da fotografia, que lhe desperta a curiosidade por fotógrafos e artistasreconhecidos mundialmente. Entre eles, cita Jan Dobbets, artista holandês, porsuas obras conceituais “em torno dos problemas da percepção e daperspectiva”14; e John Phall “que desenvolvia imagens que insistiam nosenganos visuais”15.

    Prematuramente abandona os estudos universitários para se dedicar àfotografia (idem, 2003.). Foi responsável por organizar sua primeira exposição(1984) em um bar de Madri chamadoLiberdad 8, conseguindo vender algumasde suas imagens. Posteriormente fez exposições noCentro de Estudios de laImagen (1985), no Museu de Arte Reina Sofía (1991) e em diversos países domundo (idem, 2009). Com esforço alcançou prestigio no campo das artes e suasobras passaram a ser expostas nos mais prestigiados circuitos mundiais.

    Em 1986, entra em contato pela primeira vez com a obra do poeta catalão Joan Brossa do qual poucos anos depois se torna amigo. Apesar dessaaproximação, o maior impacto relatado por Madoz em relação à obra de Brossafoi durante visita a uma exposição antológica do poeta no Museu Reina Sofía de

    13 Tradução livre: “Por primera vez observé cómo aparecía una imagen del líquido, una imagende lo nada. Fue una experiencia mágica. Supe que ese era el medio con el que contar lo quetenía en mi cabeza.”(MADOZ, 2009, p.309)14 Tradução livre: “en torno a los problemas de la percepción y la perspectiva.”. (MADOZ, 2009,

    p.311).15 Tradução livre: “que desarrollaba imágenes que insistían en los engaños visuales.”. (ibidem,p.311)

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    Madrid: “[...]Creio que foi no ano de 1992 no Reina Sofía onde recebi minhaprimeira lição de humildade.”16. Quatro anos depois, o próprio poeta seencantou com as fotografias de Madoz. Tornaram-se amigos. “Brossa disse que

    havia esperado setenta anos para conhecer um irmão.”17. A amizade foi breve,devido ao falecimento do poeta, mas permitiu uma parceria, cujo resultado é aelaboração do livroFotopoemario18. Este é um diálogo entre as poesias do poetacatalão, suscitadas da observação das imagens, e imagens do fotógrafo. Cadapoesia vem acompanhada de uma fotografia, originando um belíssimo livro depoesias fotográficas e de fotografias poéticas.

    Ainda nos anos noventa, recebeu diversas propostas de editoras para

    utilizar suas fotografias como ilustração de capas de livros. Além disso, arevista El Mundo o convida para colaborar com imagens criadas a partir decontos e em apenas um ano produziu 14 obras (MADOZ, 2009, p.324). Afirma ofotógrafo: “Aceitei o trabalho como um desafio. Tinha que resolver a obra empoucos dias e não estava acostumado a trabalhar com essa rapidez.”19.

    As fotografias de Madoz são compostas essencialmente por objetos docotidiano modificados por ele. Os objetos são construídos a partir de idéias queusualmente surgem em sua mente. A técnica fotográfica que utiliza é a de filmepreto e branco e todo o processo de revelação é executado por ele e feito daforma mais tradicional.

    No início de sua carreira fez o uso de figuras humanas (geralmenteamigos próximos) e paisagens, mas pouco a pouco foi esvaziando as imagensdesses elementos e focando exclusivamente nos objetos. Ele percebeu que suas

    primeiras fotografias eram fruto de uma tomada de consciência de que suasescolhas por paisagens e pessoas eram catalisadores de imagens previamenteidealizadas em sua mente. Nesse sentido, as figuras humanas são vistas por ele

    16 Tradução livre:“[...] Creo recordar que fue en el año 1992 en el reina Sofía donde recebi miprimera cura de humildad.” (BROSSA; MADOZ, 2008, p.7) 17Tradução livre: “Brossa dijo que había tardado setenta años en conocer a unhermano.”(BROSSA; MADOZ, 2008, p.7)18 Fotopoemário é um livro que consiste em uma reunião de fotografia de Chema Madoz e

    poesias de Joan Brossa, poeta catalão.19 Tradução livre:“Acepté el trabajo como un desafío. Tenía que resolver la obra en un par dedias y no estaba acostubrando a trabajar conesa rapidez.” (MADOZ, 2009, p.325)

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    como elementos os quais não tinham um caráter de personagem apenasobedeciam a um enquadramento formal e, por isso, foram aos poucos sendodescartadas. A escolha por objetos proporcionou, também, imagens mais

    elaboradas tanto esteticamente quanto em termos de linguagem. Portanto, opercurso para o uso de objetos ocorreu de maneira natural e consciente,permitindo maior controle sobre o processo de criação. (MADOZ, 2003, p.21).Assim se expressa:

    Uma decisão consciente, com um motivo que pode parecerabsurdo: é mais fácil trabalhar com objetos do que com pessoas.No entanto, existe um mesmo olhar que atravessa as fases,embora com uma diferença: na primeira fase era mais ingênuo eminhas intenções podiam ser decifradas mais claramente; agoraadministro uma linguagem mais elaborada.20

    Há em suas fotografias uma carga de sua personalidade tímida eobservadora. A ausência de figuras humanas nas imagens atuais também sedeve em parte ao seu temperamento retraído e à sua necessidade por solidão,influenciando na sua forma de trabalhar e na sua maneira de se relacionar como mundo à volta. Ademais, sua capacidade de apreciar pequenos detalhes oestimula a construir objetos e imagens peculiares.

    Assim, o uso da fotografia é essencial para manifestar suas idéias eestimular a imaginação e os jogos de linguagem. É por meio da imagem queMadoz questiona as coisas do mundo e as nossas relações com elas. Nafotografia do espanhol a imagem é estímulo a indagação e a dúvida, em umlabírintico dialógico entre o que acreditamos ver e o não-visto, no intuito de

    alcançar um olhar para além do visível.

    2.2. Processo criativo: dos objetos à fotografia

    20 Tradução livre: “Una decisión consciente, con un motivo que puede parecer absurdo: es máspráctico trabajar con objetos que con personas. Sin embargo, hay una misma mirada que

    atraviesa las dos fases, aunque con una diferencia: en mi primera época era más ingenuo y misintenciones se podían descifrar más claramente; ahora manejo un lenguaje más elaborado.”.(MADOZ, 2009, p.316)

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    Por se tratar de um texto que ambiciona refletir para além da descriçãoimagética se faz necessário imputar um olhar sobre o processo criativo, visto

    que a elaboração das fotografias de Chema Madoz é executada de maneirasingular e influencia diretamente as reflexões sobre seu trabalho. E essedetalhamento trará mais clareza nas discussões que seguirão no decorrer dotexto, além de permitir uma maior aproximação com as imagens. Portanto, oque está sendo enfatizado aqui é o ato criador das imagens para que, vivendoos meandros desse processo, possamos conhecê-las melhor.

    Como explicitado

    anteriormente, as imagensmadozianas são fotografias deobjetos que ele mesmo constrói eidealiza. É importante esclarecerque o uso do termo fotografiamadoziana ou imagem madoziana será recorrente durante otrabalho como uma forma de dardestaque à poética particular dasimagens.

    As imagens de ChemaMadoz são singulares e transitamentre as coisas existentes e ao

    mesmo tempo irreais. Seuprocesso de criação vai além dosimples ato de fotografar o objeto

    e isso ocorre devido a um sistema que foi cuidadosamente refletido e cadapasso é interdependente entre si. Essa escolha supera o uso da técnica comomeio intermediário para solucionar problemas estéticos ou de usá-la como meroveículo de registro dos objetos que constrói. Longe disso, durante todo o

    Figura 1: Madoz em seu atelier

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    processo a linguagem fotográfica é personagem principal nas suas reflexões e asua arte é a imagem.

    Com um olhar sempre sensível, coleciona todos aqueles elementos que

    lhe chamam a atenção: vela, faca, prato, taça, garrafa, copos, castiçais, sapatos etantos outros (figura 1). Apesar de tantas coisas, ele as organizacuidadosamente e, por isso, observar a fotografia do seu atelier é perceber comoseu trabalho resulta de um processo meticuloso: inicia com desenhos,posteriormente constrói objetos, estuda os ângulos mais favoráveis para criarimagem pretendida, os fotografa e finalmente os revela, decidindo por escalas,formatos e modos de apresentação. Assim, um a um, os objetos vão sendo

    cuidadosamente inventariados.

    Seguimos, então, um estudo sobre seu processo de criação. As fotografiasmadozianas são imagens de objetos do cotidiano. E apesar das novas tecnologias,como a fotografia digital, Chema Madoz usa exclusivamente filme preto e

    Figura 2: Estante de objetos usados para elaboração das fotografias

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    branco, usufruindo doclássico processo derevelação e impressão

    de imagens. Contudoantes da obtenção finaldas fotografias há fasesanteriores que precisamser esmiuçadas.

    Com efeito, apresença do fotógrafo

    nas imagens vai além daprodução da foto pelonegativo, há nele anecessidade de intervirdiretamente em seusobjetos. Isso significaque o processo de

    produção de fotografiaspossui dois momentosdistintos e complementares: o ato criador de objetos e a fabricação da imagemtécnica. No primeiro deles, o fotógrafo relata que geralmente suas imagens sãoprévias, ou seja, por meio de um olhar atencioso sobre as coisas à sua volta elecria imagens mentais. A partir disso ele inicia o registro e a elaboração das

    idéias em um caderno através do desenho que corresponderão a futurasimagens (figuras 3, 4 e 5) (MADOZ, 2003, p.22). Posteriormente, busca objetosque possam materializar aquilo que anteriormente foi idealizado e desenhado.Contudo, algumas vezes, ele compra ou adquire objetos sem um objetivo claro esó depois da convivência com os mesmos é que ele irá compreender em quedireção seguirá seu trabalho.

    Figura 3: Cadernos de desenhos

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    Geralmente aprocedência desses objetos évariada; podem ser obtidos ou

    encontrados em casas deamigos, latas de lixo,containers, lojas ou mesmo emfeiras livres. Dentre esseslugares, um dos quaisassiduamente freqüenta é afamosa feiraEl Rastro que de

    acordo com suas palavrasexerce “um atrativo enorme”sobre ele, pois compreendeque nesse lugar os objetos decaráter múltiplo sãoconvertidos em únicos(ibidem, p.23).

    El Rastro é uma feiramadrilena de objetos desegunda-mão; isso significaque cada coisa foi utilizadapor diferentes pessoas e emsituações distintas. E é por

    essa perspectiva que cada objeto, aos olhos poéticos de Madoz, é único. Comoum andarilho que coleciona objetos triviais, ele vai à feira em busca de coisas asquais possam corresponder ao seu planejamento, à sua imagem mental prévia.Algumas vezes, procura apenas adquirir coisas sem objetivo claro, mas quepossam posteriormente contribuir para a criação de novas imagens. ParaMadoz, nem sempre há uma imagem prévia concreta; algumas vezes há apenasuma idéia geral ou conceito que servirá de estimulo para a criação de suas

    imagens:

    Figura 4: Esboço pré-fotografia

    Figura 5

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    15

    Às vezes, primeiro tenho uma idéia e busco objetos que possamsimbolizá-la. Geralmente nesses casos são situações querespondem a uma idéia ou uma sensação ou emoção... Noentanto também podem surgir idéias a partir de um objeto

    concreto.21 Com o conceito do que pretende já estabelecido ou mesmo com a

    imagem já criada mentalmente Madoz inicia a construção de suas coisaspeculiares: primeiro ele desenha (projeta) sobre o papel objetos os quais iráconstruir. Alguns raros objetos são especialmente construídos por artesãos maishabilitados para concretizar seus objetivos. Dessa maneira, consegue visualizarpela primeira vez a imagem que antes era apenas mental. Posteriormente, entraem contato direto com os objetos e os une. Geralmente esses elementos sãodistintos ou não estão originariamente relacionados entre si. Essa união dará aforma inicial para a elaboração da imagem que ele deseja adquirir. Assim,artesanalmente, Madoz vai manipulando cada objeto por um determinadotempo, lhe proporcionando certa intimidade com as coisas. A fluidez para aelaboração dos seus objetos ocorre de forma lenta e gradual cada passo tomado

    é cuidadosamente refletido.Nesse momento de construção do objeto poder-se-ia associar o processo

    criativo do fotógrafo com a de um escritor ou um poeta que manipula aspalavras para construir uma estrofe ou um parágrafo. Cada modificação nosobjetos agrega um novo sentido e vai moldando a futura imagem. E refletindosobre como cada coisa é usada no dia a dia ele transfigura suas funções,construindo coisas inusitadas. Logo, compreender-se-ia que essa etapa de

    construção dos objetos faz parte do processo de manipulação da própriaimagem.

    É mister ressaltar que o interesse de Madoz não reside no objeto em si,mas nas relações que são estabelecidas com eles. Cada coisa adquirida contauma história e a partir dela cria-se uma determinada relação entre os indivíduos

    21 Tradução livre de entrevista concedida: “A veces, primero está la idea y busco los objetos con

    los que la puedo simbolizar. Generalmente en estos casos, son situaciones que responden a unaidea, como tu señalas o bien una sensación o emoción... Sin embargo también puede surgir laidea a partir de un objeto concreto.”

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    e os objetos. Portanto, algumas vezes, no intuito de estabelecer um diálogoparticular com esses objetos, Madoz necessita de um tempo de intimidade quelhe ajudará no processo de modificação de

    seu sentido original.A maioria das fotografiasmadozianas

    utiliza essencialmente objetos triviais, masem outros momentos sobressaem imagenscom componentes mais gráficos comomapas, notas musicais, partituras oumesmo elementos da natureza que não

    possuem as mesmas característicasfuncionais das coisas do cotidiano. Assim,Madoz amplia a noção de objeto para alémda coisa construída pelo homem e propõe,mesmo que pontualmente, um olhardiferenciado até mesmo sobre elementoscomo pedras, água ou areia (figuras 9,10 e11).

    Pode-se afirmar: trata-se de umafotografia; que contrariando o esperado noprocesso analógico do qual faz uso, nãoparte exclusivamente do estímulo exterior– o mundo que o cerca e com o qual se

    julgaria uma relação de dependência– massendo motivada por objetos e cenários docotidiano, fundamenta-se, enquantoimagem elaborada, desde o interior, namente do artista. Comporta-se por assimdizer como uma instância imagéticadialeticamente motivada.

    Figura 6

    Figura 7

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    Ademais, em certas imagens ocenário em torno do objeto torna-secrucial para completar suas intenções e

    essa escolha se assemelha na busca porobjetos, pois o ambiente será aquele queproporcionará às coisas a permuta desentido e a materialização conceitual daimagem. Por exemplo, nas fotografiasem que Madoz troca o corrimão poruma bengala (figura 12) ou o ralo em

    um terreno árido (figura 13). Sem ocenário apropriado em torno da

    bengala ou do ralo não se concretizariamas intenções do fotógrafo. Cada coisaestá cuidadosamente colocada demaneira a dialogar com o meio no qual

    foi inserida. Nessas fotografias adúvida se houve ou não manipulaçãoem suas imagens se insinua. Será queesses objetos já se encontravam naquelelugar? A pergunta geralmente legítimaquando se trata de imagensmadozianas, sobressalta com o uso de paisagens

    visualmente reconhecíveis.Contudo, em imagens mais

    recentes o fotógrafo espanhol tempouco a pouco elegido cenários cada

    vez mais neutros e desnudados dequalquer interlocução com o objeto, como se esse adquirisse maisindependência e destaque. Nesse caso ele usa, por exemplo, materiais como:

    Figura 8

    Figura 9

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    folha branca, mesa de mármoreou elementos de fácil acesso quepossua no seu estúdio.

    Percebe-se que ele abdicade cenários fotográficos commateriais específicos de estúdio eusa exclusivamente fundos“naturais”22. Nessa mesmapostura técnica está a escolhapela iluminação dos objetos.

    Madoz faz uso invariavelmente

    da iluminação não-artificial. E elaé protagonista na obtenção daimagem, contrapondo-se aoobjeto: enquanto ele estávisivelmente manipulado a

    iluminação confere ao objetocerta realidade por se mostrar“natural”.

    A fabricação do objeto e aescolha do cenário já sãoelementos que definem como afotografia deverá ser finalizada e

    já demonstram o alto grau depré-definição da imagem namente de Madoz. Contudo, emseus relatos, o fotógrafo afirmaque nem sempre o planejado e o idealizado correspondem ao resultado final nafotografia e, por esse motivo, o processo poderá ser retomado mais de uma vez

    22 A palavra natural é empregada para se referir ao uso de materiais incomuns a técnicafotográfica de estúdio que geralmente usa fundos feitos de telas e luz artificial.

    Figura 10

    Figura 11

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    até que o resultado final satisfaça oautor (MADOZ, 2003, p.16). Issopode ocorrer por causa de uma das

    principais matérias primas dafotografia - a luz - não permitir oseu controle total, dificultando suamanipulação. Afinal sem a luz, nãoseria possível obter o negativo,somente revelado se exposto àluminosidade. Ou, por outra razão

    qualquer, algumas fotossimplesmente não correspondem,

    como imagem, aos anseios prévios do autor e, por isso, o processo pode serretomado e o objeto reconstruído.

    Essa compreensão de que nem tudo pode ser controlado ecompletamente planejado desconstrói parcialmente o processo anterior23

    meticuloso e quase catalogador doobjeto, mas esse aspecto sobre seuprocesso de criação nãocorresponde às suas intenções.Madoz compreende que afotografia vai além da idéiasimplista de máquina de registro.Ela é uma linguagem possível de jogar com todas as suas nuances,desde o momento de idealizar aimagem mentalmente até ao

    processo de revelação. A fotografiapara Madoz é um meio pelo qual

    23 Defino como “processo anterior” o ato de desenhar o objeto, construí-lo e determinar ocenário.

    Figura 12

    Figura 13

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    aquilo que se vê pode ser questionado.Além disso, em alguns casos seus objetos só são observados na fotografia

    devido à escolha de uma determinada perspectiva, como, por exemplo, a

    fotografia de uma escada encostada sob um espelho. O efeito do espelho que setransforma em janela só ocorre graças ao ângulo de visão da imagem. Esse olharfotográfico está presente na imagemmadoziana, mesmo naquelas imagens maisassépticas e de aparente objetividade. Há nelas um direcionamento do olhar,proporcionando uma determinada visualização do referente. Isso significa dizerque olhar para o objeto concreto não corresponderá necessariamente àquilovisto na fotografia.

    Retomemos: definido oobjeto e o cenário, chegamosfinalmente ao ato fotográfico em si.Madoz usa em todas as suasimagens filme preto e branco, como já dito anteriormente. No princípiode sua carreira eram filmes de 35mm, hoje, contudo, utiliza filmesde médio formato (120 mm) e umacâmera Hassemblad adequada aesse tipo de filme. A câmera demédio formato permite obterimagens mais nítidas e com uma

    qualidade de gradação de cinzassuperiores aos filmes de 35 mm(MADOZ, 2009).

    Tendo controlado o que pode - referente, cenário, tempo de exposição evelocidade do obturador - Madoz agora fará um jogo de olhares sobre o objeto,a luminosidade e as sombras. Em um determinado momento, ao olhar o visorda câmera verá a imagem a qual acredita ser aquela que melhor corresponderá

    ao seu planejamento e com um toque expõe o filme à luz. Isto é, ele faz uma

    Figura 14

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    busca pelas circunstâncias as quais possam servir às suas necessidades. Repetiráesse procedimento algumas vezes até se sentir satisfeito com o resultado.Assim, após vivenciar todo o sistema de construção do referente, ele concretiza

    a conexão luminosa da fotografia.O fotógrafo age como se estivesse em um jogo, pois é consciente da

    impossibilidade de controle de todas as etapas da elaboração da imagem, então,procura o momento em que o planejado poderá ser concretizado. Contudo,ainda que o processo tenha etapas iniciais as quais ambicionam o controle sobreo resultado final da imagem, Madoz adota fatores– como a luz natural– quedão abertura ao acaso por vezes incorporado à fotografia final. É necessário

    compreender que o acaso não diz respeito necessariamente à completamudança do planejamento inicial, mas sim a todo um conjunto de interferênciassurgidas naturalmente e alheias às intenções do artista e que podemproporcionar o emergir de resultados diversos às intenções primárias. Não aesmo, o fotógrafo diz:

    Apesar de a imagem estar muito clara [no pensamento] quando

    começo a trabalhar com ela sempre estou aberto ao que possaacontecer durante o processo. Nesse sentido, há algumasimagens que acabaram de uma maneira bem distinta daquelaque foram concebidas.24

    O instante de exposição do filme à luz é sempre um tempo imprevisto,um centésimo de segundo destituído de controle, mas que expressa as intençõestransformadoras do fotógrafo sobre o objeto que deixará de ser coisa para setornar imagem, conceito e jogo de indagações.

    Posteriormente, ele transforma o filme em negativo por meio de umprocesso de revelação química. Feito isso e sem mais intervenções sobre o filme,o resultado é o negativo. Essa matriz da foto não será mais transformada. Aterceira etapa é a produção da cópia do negativo; isto significa expor o negativo

    24 Tradução livre da entrevista concedida: “A pesar de que la imagen está muy clara cuando

    comienzo a trabajar en ella, siempre estoy abierto a lo que pueda suceder durante el proceso. Enese sentido hay unas cuantas imágenes que acabaron de una manera bien distinta a comofueron concebidas.”.

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    à luz que refletirá sobre o papel sensível; posteriormente o papel fotográficoserá imerso em líquidos químicos, lavado e secado resultando na foto.

    O que há em comum nessas etapas é a obtenção de dois elementos que

    serão definitivos: o negativo e a foto. Entretanto, conseguir o negativo e utilizá-lo são duas atitudes distintas em sua essência. O primeiro é irreversível, ou seja,no momento em que o fotógrafo expõe o filme à luz, esse frame não poderá maisser modificado, mesmo se o fotógrafo repetir a ação. Mesmo o filme sendonovamente exposto, ele não poderá mais voltar à sua condição de filme virgem.No caso quando o fotógrafo trabalha com o negativo, ele pode obter umnúmero infinito de imagens, intervindo de diferentes maneiras em todas as

    etapas de trabalho25. Dessa forma, pode optar por fortalecer o contraste, darnuances aos tons de cinzas, optar por uma tiragem sobre certo tipo de papel.Então, “o trabalho com o negativo é inacabável à medida que pode sempre serretomado e realizado outra vez, e isto de maneira potencialmente diferente.”(SOULAGE, 2010, p.131).

    É na fase de impressão que Madoz irá perceber se o planejadocorrespondeu ao exposto no papel fotográfico. E a partir de suas conclusões farámudanças no objeto, no cenário ou em quaisquer outros elementos queconsiderar necessário. Quando satisfeito com o resultado imagético, teráfinalmente concluído a execução do trabalho. Assim, para Madoz o ato criadorde suas imagens vai muito além do simples apertar de botão, ao contrário seuprocesso de criação é extenso e a imagem é pensada e repensada durante todasas etapas de obtenção da foto.

    2.3. Desconstruindo clichês: reflexões sobre a crítica alheia

    A produção peculiar das imagensmadozianas e as características visuaisde suas fotografias com objetos modificados e estranhos suscitaram críticassobre o aspecto de seus objetos, suas imagens e seu estilo. As primeiras foram

    25 Trabalho com o negativo: expor, revelar, banho interruptor, fixar, lavar e secar

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    publicadas em 1988, ressaltando a originalidade e inovação, sem aprofundar osquestionamentos. A crítica a respeito de seu trabalho passou a ser mais assíduadecorrente dos prêmios e algumas tentaram propor uma leitura modernizante

    das fotografias. A título de exemplo, transcrevo o seguinte:

    Sua obra está fundamentada sobre duas concepções artísticasque raramente coabitam entre si [...] Estou me referindo aoSurrealismo (freudiano, irracional, especulativo) e a ArteConceitual (matemática, fria, cerebral).26. (Antonio Molinero)

    Uma manifestação da estética doinfraleve [...] uma práticahíbrida em que os recursos da poesia visual ou a tradição doobjeto surrealista são incorporados no registro do fotográfico.27 (Fernando Castro)

    As naturezas mortas de Chema Madoz funcionam às vezescomo poemas visuais em que muitas vezes emprega objetospeculiares que chega a inventar guiado quase sempre por umgosto pelos paradoxos de certa ressonância surrealista.28

    Nesses trechos percebemos um direcionamento do olhar sobre asfotografias de Chema Madoz. Antonio Molinero argumenta que as imagensmadozianas estão fundamentadas no Surrealismo e na Arte Conceitual;Fernando Castro cita a tradição do objeto surrealista como característica; e otexto da exposição no Salão Internacional de Fotografia ressalta as ressonânciassurrealistas. Como visto, é recorrente a menção do Surrealismo nos exemplos detextos críticos. E não é rara a referência do movimento Surrealista nas reflexõessobre as fotografiasmadozianas. Será que Madoz possui a atitude proposta peloSurrealismo? Terão suas imagens influência direta do movimento? Torna-se

    imprescindível, portanto, refletir a esse respeito.

    26 Tradução livre:“Su obra está fundamentada sobre dos concepciones artísticas que raramentecohabitan entre si [...]. Me estoy refiriendo al Surrealismo (freudiano, irracional, especulativo) yal arte conceptual (matemático, frio, cerebral)” (MADOZ, 2009, p.322).27 Tradução livre: “una manifestación de la estética de lo infraleve (...), una práctica híbrida en laque los recursos de la poesía visual o la tradición del objeto surrealista quedan incorporados enel registro de lo fotográfico.”. (ibidem, p. 330) 28 Texto da exposição no Salão Internacional de Fotografía no Palácio de Revillagige. Tradução

    livre: “Las naturalezas muertas de Chema Madoz funcionan unas veces como poemas visualesen los que a menudo emplea peculiares objetos que llega a inventar guiado casi siempre por ungusto por la paradoja de cierta resonancia surrealista.”. (ibidem, p.332)

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    A relação da fotografia com o Surrealismo é historicamente conhecida.Nomes como Man Ray são referência para esse movimento modernista e para ahistória da fotografia. Façamos então um breve retrospecto sobre o movimento

    para uma melhor reflexão sobre o assunto.O surrealismo foi um movimento do início do século XX organizado por

    escritores e artistas, concentrados na cidade de Paris e tendo como um dosprincipais líderes André Breton, autor do primeiro Manifesto do Surrealismo (1924). O movimento foi doutrinado por ele e motivado por teorias freudianassurgidas nesse mesmo período. Em vista disso, o movimento está influenciadopela psicanálise que compreende o inconsciente como fonte inesgotável de

    imagens recalcadas e que podem ser exteriorizadas pela arte quando faz uso decertos métodos como, por exemplo, o automatismo psíquico, libertando oindivíduo de sua miséria existencial.

    O espírito revolucionário surrealista procurou derrubar as convençõessociais e morais, afrouxando os limites habituais que separavam a arte da vida. Apesar de estimularem as imagens fantásticas e o onirismo, aceitavam arealidade do mundo físico, “embora julgassem havê-lo penetrado tãoprofundamente que o tinha transcendido.” (CHIPP, 1996, p.374). Com efeito,mais do que arte, os surrealistas pretenderam assumir uma postura em que osujeito tomasse a frente de expressão no mundo em oposição à massa alienada.Acreditavam que somente dessa forma poderiam proporcionar umatransformação radical na sociedade a ponto de engendrar em seu horizonteuma nova humanidade.

    Para Breton, a pintura surrealista e a arte em geral eram meio de registrare dar evasão às imagens do inconsciente. Dentre as técnicas usadas pelosintegrantes do movimento, duas se destacam: a “escrita automática”- usadapelos poetas e escritores -e “desenhos automáticos”- praticada por pintores.Em ambos os casos, a intenção era, desfazer-se das amarras e controles doconsciente e extravasar o inconsciente.“O Surrealismo como movimento foi,assim, de um alcance muito mais amplo do que na literatura ou na pintura, e

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    constitui, nas palavras de Breton, um„automatismo psíquico puro‟.” (idem,1996, p.375).

    Essa fase do automatismo, portanto, tinha como objetivo ultrapassar a

    realidade, propondo uma nova relação do indivíduo com o real. E a descobertada surrealidade está presente nos sonhos, nas narrações oníricas e na hipnose.Breton, então, define o Surrealismo:

    Automatismo psíquico puro pelo qual se pretende exprimir,quer verbalmente, quer por escrito, quer por qualquer outramaneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado dopensamento, na ausência de qualquer controle exercido pelarazão, fora de qualquer preocupação estética ou moral. (CHIPP,

    1996, p.417).Entre os artistas que se destacaram nesse movimento estão: Salvador

    Dalí, Magritte, Man Ray, Miró e Max Ernst. O movimento abarcou um númerogrande de artistas com diversos pensamentos e linguagens formais distintas,mas com ideais que os uniam em uma mesma postura e movimento. WalterBenjamin destacou o Surrealismo como o primeiro movimento a revolucionar oideal de liberdade:

    Foram os primeiros a liquidar o fossilizado ideal de liberdadedos moralistas e dos humanistas, porque sabem que a“liberdade, que só pode ser adquirida neste mundo com milsacrifícios, quer ser desfrutada enquanto durem, em toda a suaplenitude e sem qualquer cálculo pragmático.” (BENJAMIN,1994, p.32).

    Além da influência das teses freudianas o Surrealismo também se

    balizou na filosofia de Nietzsche29

    no que se refere a postura crítica diante davida, na procura pela libertação do homem da alienação imposta socialmente.Para Breton tudo é válido para pôr fim às concepções tradicionais da ética, damoral e dos preceitos religiosos. As idéias do filósofo estimularam acriatividade e as manifestações espontâneas (BRAUNE, 2000, p.25).

    29 Fernando Braune faz referência ao livro Assim falou Zaratustra e cita uma fala representativado movimento Surrealista de Zaratusta em que estimula o indivíduo a falar, cantar e dançar. E o

    importante é o „embalo que desperta a paixão, o ardor, a flama, a vontade de viver.‟. Braunecompreende que nessa fala estão implícitos o estímulo à criação e as manifestações espontâneas(BRAUNE, 2000).

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    No contexto surrealista, a fotografia foi vista como uma estética capaz deromper com as tradições artísticas do passado. Afinal, a priori, ela não estavacompromissada com os cânones da arte e questionava o inquestionável,

    fazendo emergir um novo olhar sobre o mundo. Logo, a linguagem fotográficaajustava-se bem nas concepções e idéias do Surrealismo.

    Braune destaca que a fotografia apesar de ser uma representação darealidade também está habilitada a manifestar o inconsciente por meio dosacidentes fotográficos, ou seja, pelo resultado não esperado do ato fotográfico, oacaso. Para se obter uma fotografia, por mais perfeita que ela seja, é preciso noato, por um milésimo de segundo, uma mínima fração de tempo, não ver; os

    olhos ficam em completa escuridão30 e esse momento é visto por Braune como oinstante no qual tudo é inconsciente. Assim, a oscilação entre inconsciente erealidade torna a fotografia ajustável aos preceitos do Surrealismo e às noçõesde automatismo do movimento. Além disso, a técnica fotográfica faz uso dadeturpação do real - por meio de zoom, recortes, distorções, etc - e sua imagemnão corresponde ao olhar, por isso, estará sempre distorcendo a realidade eproporcionando seu questionamento.

    Man Ray, com seus fotogramas serviu-se de papéis fotográficos e da luzpara produzir imagens sem a máquina fotográfica. Foi com Man Ray que omaterial fotográfico (papéis sensíveis e luz) passou a ser visto como materialartístico. Ademais, suas fotografias estabeleceram diferentes realidades aosobjetos e corpos, apoiadas pelos princípios31 da colagem/montagem domovimento.

    Outra célebre obra do Surrealismo é o livroNadja de Breton no qualfotografias da cidade de Paris são acompanhadas das narrativas do autor.Imagens documentais da capital francesa são usadas para suscitar, por meio do

    30 Ao fotografar o obturador a máquina aciona o movimento dos espelhos e é nesse momentoque os olhos enfrentam a escuridão.31 As colagens e montagens surrealistas, e em destaque as de Max Ernst, estabeleciam relaçõesdiferentes entre os objetos e seres, alterando os conceitos pré-estabelecidos: “a realidade doencontro entre objetos, estabelecida por uma montagem, encerra o seu caráter verdadeiro só e

    somente só enquanto esta durar, isto é, em outra situação, em outra montagem, esses mesmosobjetos compreenderão realidades diferentes, adquirindo, assim, identidades diferentes.”(BRAUNE, 2000, p.40).

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    texto, “uma aproximação entre o devaneio e a realidade” (VINHOSA, 2009,p.114).

    Contudo, essa aproximação da estética fotográfica aos preceitos

    surrealistas não implica dizer que toda e qualquer fotografia estejanecessariamente vinculada ao movimento. A proposta de Braune ao relacionara fotografia com o Surrealismo é em verdade investigar asurrealidade impregnada na estética fotográfica. Não é gratuito o livro se intitularOSurrealismo e estética fotográfica. Evidentemente a escolha por esse movimentonão é ingênua visto que ele proporcionou um novo olhar sobre o uso dafotografia na arte, como nos exemplos brevemente citados.

    Fica fácil, com essa tese de Braune, pôr em paralelo as fotografias deChema Madoz ao movimento Surrealista. Afinal, as imagensmadozianas sãoobtidas por um processo de criação que também necessita passar pelo instantede escuridão no qual não é possível, por uma fração de segundos, ter controlesobre o ato de fotografar. Todavia, será que suas imagens poderiam serreduzidas apenas a essa fração de tempo?

    A comparação com o Surrealismo não é de um todo inábil, porquanto há,em algumas fotografias pontuais, homenagem ou alusão a certas obras domovimento Surrealista, como, por exemplo, na imagem 15 com referência diretaa objetos representados por Magritte e na imagem16 faz uma duplahomenagem a Duchamp e ao cubista Picasso. Além de a própria fotografia seruma técnica que apresenta aspectos de surrealidade, o ato fotográfico sozinhonão exprime esteticamente as imagensmadozianas.

    As imagens acidentais, outras vezes oníricas, tão representativas dessemovimento, não condizem com o processo de criação do fotógrafo, mesmo quesuas imagens de chofre aludam ao universo de sonhos, de irrealidades ou aparadoxos. Para se obter imagens de sonhos, como almejavam os surrealistas,mecanismos psíquicos– influenciados pelas teorias freudianas– precisariam serocasionados para afrouxar as amarras do consciente. Essa intenção não acontececom o fotógrafo espanhol. Para as doutrinas surrealistas não convinha refazer

    uma imagem porque ela não corresponde esteticamente ao almejado– como

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    algumas vezes ocorre com Madoz– fazer isso é abrir mão doinconsciente e seguir com as

    amarras do consciente. Portanto,há um equívoco na crítica deMolinero ao apontar que asimagens de Chema Madoz estãofundamentadas pelo Surrealismofreudiano e irracional, a fotografiacuidadosamente trabalhada por

    Madoz não carrega consigo essairracionalidade nem mesmo aatitude revolucionária domovimento, ao contráriodesenvolve uma posturaparticular ao seu momento

    histórico e a partir de suasinfluências culturais propõe um jogo de linguagem característicode suas fotografias.

    De acordo com relatos dofotógrafo, antes mesmo de tomarconhecimento de alguns

    movimentos estilísticos, ele estavainteressado em aspectos visuaisdos quadrinhos e outroselementos da cultura popular.Após o desenvolvimento de suaestética, passou a realizar imagensque faziam certa referência aoSurrealismo sem, no entanto,

    Figura 15

    Figura 16

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    haver uma preocupação formal de seguir diretrizes ou posturas. Seu intuito nãoé desenvolver um “novo surrealismo” nem de obter imagens doutrinadas.Assim se expressa o fotógrafo:

    Quando comecei a fazer fotografia tinha uma certa culturavisual, porém creio que se alimentava mais de cartazes,quadrinhos ou capas de disco do que um conhecimentoprofundo de história da arte32.

    Se a crítica vê nas imagensmadozianas Surrealismo, isto se deve em partepelo fato de suas fotografias apresentarem objetos que se tornaram conhecidosnas pinturas desse movimento modernista. A obraLa trahison des images, como os

    dizeres “Ceci n'est pas une pipe” (Isto não é um cachimbo) de Magritte tãoamplamente discutida é rapidamente lembrada na imagem 15. Há entre os doisartistas algumas similitudes: ambos utilizam objetos do cotidiano e os retiramde suas banalidades; para Magritte assim como para Madoz há umapreocupação com os jogos de linguagem, no caso do surrealista: jogos entre aimagem e palavra compõem o questionamento sobre a representação e o real.Para Madoz a fotografia é entendida como uma linguagem muito além do

    aparato técnico, ela é uma linguagem com a qual se questiona o real e a simesma. Não é à toa seu processo de criação das imagens necessita não apenasda máquina fotográfica como também de desenhos, criação de objetos, etc.Além disso, ambos usam da conexão entre um objeto imaginário e outro objetoexistente para evocar estranheza no familiar. Como na imagem do porta-queijoo qual faz referência direta a Magritte (figuras 18 e 19): o próprio objeto estáfatiado aludindo ao queijo. Por esse motivo também, o crítico Fernando Castrorelata a tradição do objeto surrealista nas fotografias de Chema Madoz.

    É importante observar que Magritte, assim como outros artistassurrealistas, apresenta uma singularidade estilística em relação ao movimento.O Surrealismo em si é bastante heterogêneo. Rosalind Krauss constatou33 que as

    32 Tradução livre: “[...]Cuando comencé a hacer fotografías tenía ya una cierta cultura visual,pero creo que se alimentaba más de carteles, cómics o portadas de discos que de un

    conocimiento profundo de la historia del arte.”. (MADOZ, 2003, p. 28).33 As contradições de Breton percebidas pela autora são debatidas no textoFotografia eSurrealismo e estão focadas nas distinções entre escrita e visão, percepção e representação. Para

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    tentativas de Breton de doutrinar omovimento não foram concretizadas,pois no cerne de seus manifestos há

    contradições que o impedem deconstruir uma explanação clara sobre omovimento, tornando complexa eimprecisa a definição do Surrealismo.Portanto, relacionar em alguns aspectosas imagens madozianas às obras deMagritte não é torná-las surrealistas,

    mas sim apontar que algumas sereferenciam a obras de artistas desseperíodo.

    Essa citação modernista é postaem dúvida em fotografias com aspectosmais gráficos, como no caso da imagem20 em que gotas de água aludem a umquebra-cabeça ou mesmo na imagem 21onde Madoz se utiliza de dois elementos– mármore e corda– para criar um jogovisual de texturas. Há, dessa maneira,imagens de Madoz que expressamdespreocupação com estilo ou postura. Por isso, designar o trabalho do

    fotógrafo a partir de algumas aproximações estilísticas é um equivoco. Apostura dos integrantes do Surrealismo não condiz com as do fotógrafo que, aocontrário do Movimento, não está interessado propor rompimento com asconvenções sociais e políticas.

    ela Breton não esclarece suas escolhas: ora escolhe a escrita em detrimento da visão ora o

    contrário. Durante o Movimento Surrealista Breton vai construindo um discurso contraditóriosem conseguir definir com clareza quais dos meios está mais próximo do inconsciente, se avisão ou a escrita. (Krauss, 2002)

    Figura 17

    Figura 18: Renée Magritte.La trahisondes images. 1928-29

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    Molinero considera ainda que alémdesse movimento modernista, asfotografias de Madoz estão

    fundamentadas na Arte Conceitual. Essaarte está à frente historicamente doSurrealismo, surgindo na década de 1960.Os artistas desse período não seintitulavam pintores ou escultores,fabricavam a chamada arte conceito: “Aarte conceitual é um tipo de arte na qual o

    material é linguagem.” (WOOD, 2002,p.8). Para a arte conceitual fazia-se necessário abolir a apreciação “física” daobra e a expressividade e converter a materialidade da obra em um conceito.

    Quando o crítico baliza as imagensde Madoz nesses dois estilos estárecortando características na tentativa deconstruir uma análise que defina o estilo dofotógrafo. Todavia, essa busca incansávelpor um enquadramento estilístico perde devista outros elementos de sua fotografia. NaArte Conceitual, por exemplo, a fotografianão era usada como um meio expressivo daarte, mas sim como uma técnica para

    romper com a materialidade, usando afotografia pelo olhar documental, sem sepreocupar com a técnica ou asparticularidades do fotográfico. Madoz não faz uso da fotografia comoferramenta para documentar seus objetos. A linguagem fotográfica é pensada evivida muito antes do próprio ato, o objetivo do fotógrafo é produzir imagem.Ademais, o fotógrafo não se baliza apenas no conceito, na idéia. Esse conceito(imagético ou não) é desencadeador para a concretização da imagem e trabalha

    Figura 19: Renée Magritte.Ceci est unmorceau de fromage.1963-64

    Figura 20

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    em conjunto com ela, sem hierarquizar ou suplantar um elemento pelo outro. Sea obra de Madoz se aproxima da de Magritte, do Surrealismo ou da ArteConceitual em alguns aspectos, por outro ela vai se distanciar dessas referências

    para engendrar um universo poético próprio. Afinal, o uso da linguagemfotográfica é capital para a definição de sua poética.

    O desconforto de Chema Madozcom a crítica “estilizadora” dasfotografias é percebido em seus relatos:

    [...] Creio que também incorporo códigos que foram utilizadosem outros movimentos, porém o que acontece é que me custamuito definir onde encaixar meu trabalho. Não poderiaclassificar como um trabalho conceitual, porque há uma sériede componentes que não são parte dessa tendência, apesar deque é próxima a ela no uso de alguns recursos (...). Semprecompreendi [meu trabalho] como terra de ninguém, bebendode diferentes fontes e cada vez que colocam etiquetas meacomete a sensação de que se perdem muitas coisas.34

    Essas críticas que procuramestabelecer e identificar estilos nosartistas são reflexo da crise dasvanguardas nas décadas de 60 e 70 doséculo XX. As críticas acostumadas àfacilidade de leitura das obras doperíodo modernista e da identificaçãodos ismos característicos de cadamovimento engessaram o olhar sobrea arte atual, contemporânea queapresenta identidades cada vez menosfixas e mais híbridas. Há umanecessidade do público e da crítica em

    34Tradução livre:“[...] Creo que también incorporo claves quese han utilizado en otrosmovimientos, pero sucede que me cuesta muchísimo definir dónde encaja mi trabajo. No lopodría classificar como un trabajo conceptual, porque hay una serie de componenetes que noformam parte de esa tendência, aunque es cercano a ela en el uso de algunos recursos.(...)

    Siempre lo he percibido un poco en tierra de nadie, bebiendo de diferentes fuentes, y cada vezque le ponen una etiqueta me asalta la sensación de que se quedan fuera muchas cosas.” (MADOZ, 2003, p.28-29).

    Figura 21

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    geral de identificar padrões, reconhecer e designar com precisão as produçõesartísticas da atualidade. O artista contemporâneo age de maneira inversa aoperíodo modernista e, em vez de usar uma única referência, mistura diferentes

    repertórios e dilui as fronteiras entre os diversos materiais (COCCHIARALE,2006, p.217).

    O fazer arte não pode ser mais enquadrado nos olhares modernizantes,pois está em trânsito contínuo entre as diversas formas expressivas eidentitárias. Isso não significa negar as lições do período modernista, mas simdizer que o artista, no caso Madoz, se utiliza de diferentes fontes, movimentosou estéticas, sem priorizar e sem abdicar das indagações a respeito da

    fotografia.Assim, a crítica assume um olhar objetivo, distanciado e

    demasiadamente cientificista ao tentar distinguir uma determinada estética ouestilo nas imagensmadozianas. Esse olhar historiográfico provoca a perda deelementos particulares de sua poética. É preciso entender que Madoz constróias imagens sem se preocupar com normatizações ou regras. Ele procura apenasdialogar ou, em algumas imagens pontuais, incorporar aspectos de movimentosestéticos da história da arte, como o Surralismo, mas sempre mantendo umolhar diferenciado por meio do uso da linguagem fotográfica.

    Além disso, a procura por uma estética que explique as fotografias deChema Madoz é provocada por um olhar sobre o objeto, renunciando ofotográfico. Tanto Molinero - com sua associação à Arte Conceitual eSurrealismo - como Castro - com a referência dos objetos surrealistas - parecem

    se esquecer da fotografia e de suas particularidades. Esse apego à coisafotografada é resultado de uma tradição histórica do uso da fotografia na artecomo documento, ou seja, a fotografia tende a ser vista no campo da arte comoum meio para mostrar a arte, para registrá-la.

    A fotografia foi incorporada no meio artístico como uma linguagemexpressiva, mas as críticas feitas às imagens do fotógrafo espanhol tendem acair no olhar modernizante devido a seu singular método de produção da

    imagem: em um momento, ele constrói objeto, em outro fotografa. Se entendida

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    a partir do objeto, a fotografia de Madoz torna-se documento, porém acompreensão dessas etapas deve ser feita por um olhar complementar: o objetoé fotografia não concretizada; ele é uma imagem antes de ser objeto. Logo, a

    fotografia não é meio para se ver o objeto, mas sim o objeto torna-se um veículopara se concretizar a imagem.

    Esse entendimento sobre as fotografias de Chema Madoz deve-setambém ao que Rouillé (2009) identificou como uma resistência àdesmaterialização da arte, cada vez mais intensa com o advento da fotografiadigital. A fotografiamadoziana deve ser entendida como tal: como fotografia,como imagem. Caso se observe, com cuidado, seus objetos tais como são vistos,

    eles só são concretizados como imagem final quando flagrados pordeterminado ângulo ou iluminação escolhidos pelo fotógrafo. A fotografia daescada sobre o espelho é exemplo disso; percebe-se que só é possível visualizaruma janela por causa da posição e lugar em que a fotografia foi tirada. Sem aescolha do fotógrafo, essa imagem não se concretizaria e nem se realizaria comoconceito.

    Por fim, há na fotografia de Chema Madoz a ressonância de diversosmovimentos históricos, de diversas estéticas, assim como há eco das fotografiaspublicitárias, dos quadrinhos, das capas de disco. As imagens são um acúmulode informações visuais, culturais e ao mesmo tempo a expressão de umapoética particular do fotógrafo.

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    O passo entre a realidade que é

    fotografada na medida em que

    nos parece bonita e a realidade

    que nos parece bonita na medida

    em que foi fotografada écurtíssimo.

    A aventura de um fotógrafo –

    Ítalo Calvino

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    3. A fotografia: teorias e reflexões

    Para se desenvolver um olhar que atravesse o visível e, portanto, para iralém do olhar exclusivo sobre a coisa fotografada o escopo principal desseCapítulo é desconstruir barreiras para posteriormente refazer um caminhoparticular de reflexão sobre as fotografias de Chema Madoz.

    O primeiro obstáculo é desfazer o uso recorrente das teorias ontológicaspara discutir a fotografia. Há certa tendência em reduzir as discussões às noçõesindiciais, ou seja, em repetir o discurso de rastro da realidade, sujeitando afotografia apenas à coisa fotografada e ao seu aparato tecnológico. Desfeitoisso, o pensamento se iluminará sobre as imagensmadozianas. Nesse caso, ostijolos desse muro construído com Roland Barthes35 e Dubois36, os quaisestudaram a fotografia como objeto teórico de essência a ser desvelada, serãorealinhados a partir dos estudos de André Rouillé37 e sua defesa por umfotográfico para além dos olhares ontológicos.

    É mister ressaltar que não será negada a tese da conexão física com arealidade como essência do fotográfico - até porque este elemento é intrínseco aela - mas salientar que ela não é suficientemente esclarecedora nas discussõessobre a fotografia e em especial aquelas produzidas pelo fotógrafo espanhol.

    Delineadas as limitações, é imprescindível o debate sobre a relação dafotografia com a realidade para dar continuidade às reflexões anteriores. Nesteitem, o intuito é esclarecer como o observador compreende a realidade na

    imagem fotográfica e, nesse sentido, desfazer a noção habitual de recorte doreal, propondo o uso de conceitos como o virtual e o atual emprestados de

    35 BARTHES, Roland.A câmera clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1984.36 DUBOIS, Philippe.O ato fotográfico. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus,

    1993.37 ROUILLÉ, André.A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Tradução deConstancia Egrejas. São Paulo: SENAC, 2009.

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    Pierre Lévy38. Contudo, a intenção não é aprofundar as teorias sobre virtualversus atual, mas sim de alumiar a potência da imagem.

    Em seguida, para finalizar as bases teóricas da dissertação, será

    desenvolvida a compreensão sobre o tempo fotográfico por meio dasargumentações e estudos de Mauricio Lissovsky39. As discussões sobre oinstantâneo e seu estudo sobre o pré-fotográfico permitirão o entendimentomais completo sobre a construção das imagensmadozianas para além de seusobjetos. Ademais, as noções de imagem-tempo elaboradas por Deleuze40 complementarão o debate sobre o tema ao introduzir o olhar paradoxal sobre asimagens.

    3.1. A questão indicial e suas limitações

    O universomadoziano é feito de imagens, um número infinito delas. Aoobservar as fotografias de Chema Madoz o pensamento procura normatizar e

    classificar essas imagens. O impulso é visualizar apenas o que está explicito aoolho, apontar e dizer: “eis aqui...”; “isto é...”. Como numa tentativa de descreveraquilo que está sendo visto. É a busca pela descrição da coisa fotografada, doreferente. Eis, portanto, o questionamento que norteou os estudos da fotografia:terá o referente esse domínio absoluto na imagem? Será preciso, portanto,esclarecer e refletir sobre a teoria do referente e as discussões construídas porRoland Barthes e Dubois para melhor compreender esse impulso inicial que afotografia de Chema Madoz parece nos proporcionar.

    Dubois esclareceu em o Ato Fotográfico, a partir das teorias Semióticas dePeirce, que a compreensão da fotografia fez um trajeto da verossimilhança,passando pelo símbolo ao índice. No princípio do surgimento da técnica, a fotoera compreendida como uma imitação fiel da realidade enquadrando-se na

    38 LÉVY, Pierre.O que é virtual?. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Ed.34, 1996.39

    LISSOVSKY, Maurício.A máquina de esperar: a origem e estética da fotografia moderna. Riode Janeiro: Mauad X, 2008.40 DELEUZE, Gilles.Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed.34, 1992

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    perspectiva deícone, ou seja, um signo que remete ao objeto ausente apenas porcausa de sua similitude, a fotografia nesse caso seria espelho do real. Emseguida, na tentativa de desconstruir esse discurso da verossimilhança passou-

    se a questionar essa suposta característica para compreender a fotografia apenascomo uma espécie de ilusionismo ou efeito de espelho do real. Então, nessecaso, ela seria da ordem dosímbolo, ou seja, um “signo que remete ao objeto queele denota em razão de uma lei [...] que determina a interpretação do símboloem referência a esse objeto” (SOULAGE, 2010, p.91). Assim, na tentativa dedesconstruir o entendimento da fotografia pela verossimilhança, buscou-sedemonstrar que a foto não é ingênua, mas sim um instrumento de interpretação

    e de transformação do real.Essas compreensões acarretam duas maneiras de receber a foto: a

    interpretação icônica em que apenas o referente é visto e a simbólica com o focoapenas no observador o qual está livre para atribuir qualquer sentido à imagem.Geralmente o ícone é reivindicado para fotografias documentais ou fotografiasde famílias como no caso das fotos discutidas por Barthes. O discurso sobre afotografia a partir do símbolo é usado para relacionar aquelas fotos quegostariam de se originar na arte.

    Após descrever esses dois aspectos Dubois sugere que a fotografia possuialgo particular em seu modo de representação e que tanto a visão de “espelhodo real” (DUBOIS, 1993, p.44) como a de “transformação do real” (op.cit) nãodão conta de imagem fotográfica. Ademais, Dubois rediscute os argumentos deRoland Barthes41 para iniciar sua tese de que a fotografia é rastro de um real. Ao

    fazer isso, Dubois critica que essa linguagem vista pelo olhar barthesianoproporciona um excesso de “transferência da realidade” (op.cit.) ou do “cultoda referência pela referência” (op. cit.). No intuito de expandir essepensamento, o autor deO ato fotográfico se apropria da noção de índice daSemiótica. A fotografia seria o traço do real, ou seja, para a foto existir é precisohaver uma conexão física, uma impressão luminosa, portanto, ela não deverá

    41 Barthes em aCâmera Clara propõe uma análise da fotografia a partir do seu referente, contudoseus argumentos se limitam a este. E por isso construiu uma soberania do espectador e um culto

    do referente pelo referente.

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    necessariamente se assemelhar ao objeto fotografado. Com essa concepçãoindicial da fotografia, o referente não está tão claro como na visão icônica dafoto, deixando um mistério em torno do objeto. Expande-se, então, a noção de

    aderência com o referente.Assim, a categoria de signo indicial definido por Peirce pertence à ordem

    da impressão, do traço, da marca e do registro (ibidem p.61). Isso significa quepor um determinado tempo a foto esteve em conexão com o real (contigüidadefísica). Essa relação com o referente trás à tona não uma reprodução do real,mas a indiscutível existência deum referente, deum real. Contudo, o intuito deDubois não foi fazer uma análise semiótica precisa, mas sim se apropriar de

    certos conceitos para melhor discutir a respeito da fotografia.Ele constata que a contigüidade física proporciona à fotografia o atestado

    de existência; portanto não é preciso fotografar para haver fotografia. O maiorexemplo disso são as célebres Raygrafias (fotogramas) de Man Ray quesobrepunha objetos em papeis fotográficos, expondo-os à luz. Logo, ofotograma é a literalidade do ideário indicial refletido por Dubois.

    Se de fato a imagem fotográfica é impressão física de umreferente único, isso que dizer, por outro lado, que, nomomento em que nos encontramos diante de uma fotografia,esta só pode remeter à existência do objeto do qual procede.(DUBOIS, 2008, p.73)

    Dessa maneira, antes das fotografias serem representações: elas sãoimpressões luminosas. Elas são rastro de algo que existiu. Antes de ser afotografia de um espelho e escada (figura 14)42, a imagem é rastro de seu

    referente– aqueles objetos. Aquela escada existiu. E essa é a primeira reflexão.A escada esteve em um instante qualquer presente para poder se mostrar diantedos olhos na fotografiamadoziana. Ela esteve ali.

    Fica claro que o princípio de atestação proporciona a fotografiaindiscutível conexão com uma determinada realidade e como conseqüência aeste há o princípio de designação, ou seja, o índice não determina, ele aponta.Peirce esclarece:“O índice não afirma; só diz: Ali.” (apud Dubois, p. 76). É a

    42 Ver imagem na página 20.

  • 8/19/2019 UM OLHAR ATRAVÉS DO VISÍVEL - reflexões sobre as fotografias de Chema Madoz

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    retomada dos argumentos barthesianos feita por Dubois, mas esse retorno édebatido separando o sentido da referência. Ele constata que o discurso deRoland Barthes em seu livro A Câmera Clara é uma soberania do espectador na

    qual o“eu” do observador impõe a fotografia a aderência do referente, ou seja,a foto reflete“a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetivasem a qual não haveria fotografia” (ROUILLE, 2009, p.70). O que importa, paraBarthes, ao olhar a imagem é aquilo que está aderido nela. O ato fotográficousado para mostrar esses elementos é esquecido. “A fotografia é sempre apenasum canto alternado de „olhem‟, „olhe‟, „eis aqui‟; ela aponta com o dedo umcerto vis-à-vis e não pode sair dessa pura linguagem dêictica.” (BARTHES,

    1984, p.14).Barthes nos aponta: “não importa o que ela mostre e qualquer que seja

    sua maneira, uma foto é sempre invisível, não é ela que vemos.” (ibidem, p18-19). E,