Um Livro, Um Fósforo Na Escuridão

1
8/18/2019 Um Livro, Um Fósforo Na Escuridão http://slidepdf.com/reader/full/um-livro-um-fosforo-na-escuridao 1/1 21/04/2016 ..:: Momento Espírita ::.. http://www.momento.com.br/pt/imprimir.php?id=4488 1/1 UM LIVRO, UM FÓSFORO NA ESCURIDÃO (texto do Momento Espírita impresso do site: momento.com.br) Enquanto durou o bloco trinta e um, no campo de extermínio de Auschwitz, abrigou quinhentas crianças. Vários prisioneiros, conhecidos comoconselheiros , apesar da estrita vigilância a que estavam submetidos, contrariando todos os prognósticos, contaram com uma biblioteca clandestina. Era minúscula. Consistia em oito livros, entre eles, Uma breve história do mundo , de H.G. Wells, um livro didático russo e outro de geometria analítica. Ao fim de cada dia , os livros, com ou tros tesouros, como remédios e alguns alimentos, eram confiados a uma das meninas. Era Dita, de quatorze anos de idade. Sua tarefa era protegê-los, escondê-los de tal forma que não pudessem ser descobertos, quando das inspeções dos prisioneiros pelos guardas nazistas. À noite, os livros eram colocados sob uma tábua do piso, num canto. A terra fora escavada o suficiente para cri ar um espaço para depositar a pequena biblioteca. Os livros cabiam com uma exatidão tão milimétrica, que, ainda que os guardas pisassem ou batessem nas tábuas, com as juntas dos dedos, não soariam ocas. Nada levaria a suspeitar que debaixo havia um minúsculo esconderijo. Aqueles oito li vros eram preciosi dades. A jovem bibl iotecária os l ia. Também os acariciava. Muito usados, com as extremidades avermelhadas de umidade, alguns mutilados, eram um tesouro. A fragilidade os tornava ainda mais valiosos. Dita se deu conta de que deveria cuidar daqueles livros como idosos sobreviventes de uma catástrofe. Eles tinham uma importância sem igual.Sem eles, a sabedoria de séculos de civilização poderia se perder. Eles registravam a técnica geográfica, que permitia saber como era o mundo; a arte da literatura, que multiplica a vida de um leitor em dúzias; a gramática que permitia tecer os fios da comunicação entre as pessoas. Que preciosidades! Mesmo que um fosse em francês e ninguém soubesse o idioma. Ninguém, a não ser a senhora Markéta. E ela, como outros, se tornou um livro vivo . E contou, muitas e muitas vezes, a história do Conde de Monte Cristo. Enquanto se absorviam na leitura e releitura daqueles livros, ou ouviam histórias, narradas peloslivros vivos , as crianças esqueciam que estavam em um barracão cheio de pulgas. Deixavam de sentir o cheiro da carne queimada, vinda dos crematórios, deixavam de ter medo. Durante esses minutos, aquelas crianças eram felizes. A realidade era dura demais. Por iss o, era preciso dar asas à imagi nação. Viajar no tempo, com as aventuras desse ou d aquele personagem. Imaginar q ue, um dia, voltariam a ser livres, se sentirem gente outra vez. * * * William Faulkner disse que o que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor. De fato, a cultura não é necessária para a sobrevivência do homem. Apenas o pão e a água. Com pão para comer e água para beber, o homem sobrevive, mas só com isso a humanidade inteira morre. Se o homem não se emociona com a beleza, se não fecha os olhos e põe em funcionamento os mecanismos da imaginação, se não é capaz de fazer perguntas e vislumbrar os limites de sua ignorância, não é uma pessoa. Pensemos nisso. Redação do Momento Espírita, com base em dados do livro A bibliotecária de Auschwitz , de Antonio G. Iturbe, ed. AGIR. Em 10.6.2015.

Transcript of Um Livro, Um Fósforo Na Escuridão

Page 1: Um Livro, Um Fósforo Na Escuridão

8/18/2019 Um Livro, Um Fósforo Na Escuridão

http://slidepdf.com/reader/full/um-livro-um-fosforo-na-escuridao 1/1

21/04/2016 ..:: Momento Espírita ::..

http://www.momento.com.br/pt/imprimir.php?id=4488 1/1

UM LIVRO, UM FÓSFORO NA ESCURIDÃO

(texto do Momento Espírita impresso do site: momento.com.br)

Enquanto durou o bloco trinta e um, no campo de extermínio de Auschwitz, abrigou quinhentas crianças.

Vários prisioneiros, conhecidos comoconselheiros , apesar da estrita vigilância a que estavam submetidos, contrariando todos os prognósticos, contaram com uma biblioteca clandestina.

Era minúscula. Consistia em oito livros, entre eles,Uma breve história do mundo , de H.G. Wells, um livro didático russo e outro de geometria analítica.

Ao fim de cada dia , os livros, com ou tros tesouros, como remédios e alguns alimentos, eram confiados a uma das meninas.

Era Dita, de quatorze anos de idade.

Sua tarefa era protegê-los, escondê-los de tal forma que não pudessem ser descobertos, quando das inspeções dos prisioneiros pelos guardas nazistas.

À noite, os livros eram colocados sob uma tábua do piso, num canto. A terra fora escavada o suficiente para cri ar um espaço para depositar a pequena biblioteca.Os livros cabiam com uma exatidão tão milimétrica, que, ainda que os guardas pisassem ou batessem nas tábuas, com as juntas dos dedos, não soariam ocas.

Nada levaria a suspeitar que debaixo havia um minúsculo esconderijo.

Aqueles oito li vros eram preciosi dades. A jovem bibl iotecária os l ia. Também os acariciava.

Muito usados, com as extremidades avermelhadas de umidade, alguns mutilados, eram um tesouro.

A fragilidade os tornava ainda mais valiosos.

Dita se deu conta de que deveria cuidar daqueles livros como idosos sobreviventes de uma catástrofe.

Eles tinham uma importância sem igual.Sem eles, a sabedoria de séculos de civilização poderia se perder.

Eles registravam a técnica geográfica, que permitia saber como era o mundo; a arte da literatura, que multiplica a vida de um leitor em dúzias; a gramática que permitia tecer os fios da comunicação entre as pessoas.

Que preciosidades! Mesmo que um fosse em francês e ninguém soubesse o idioma. Ninguém, a não ser a senhora Markéta.

E ela, como outros, se tornou um livro vivo . E contou, muitas e muitas vezes, a história do Conde de Monte Cristo.

Enquanto se absorviam na leitura e releitura daqueles livros, ou ouviam histórias, narradas peloslivros vivos , as crianças esqueciam que estavam em um barracão cheio de pulgas.

Deixavam de sentir o cheiro da carne queimada, vinda dos crematórios, deixavam de ter medo.

Durante esses minutos, aquelas crianças eram felizes.

A realidade era dura demais. Por iss o, era preciso dar asas à imagi nação. Viajar no tempo, com as aventuras desse ou d aquele personagem. Imaginar q ue, um dia, voltariam a ser livres, se sentirem gente outra vez.

* * *

William Faulkner disse que o que aliteratura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.

De fato, a cultura não é necessária para a sobrevivência do homem. Apenas o pão e a água.

Com pão para comer e água para beber, o homem sobrevive, mas só com isso a humanidade inteira morre.

Se o homem não se emociona com a beleza, se não fecha os olhos e põe em funcionamento os mecanismos da imaginação, se não é capaz de fazer perguntas e vislumbrar os limites de sua ignorância, não é uma pessoa.

Pensemos nisso.

Redação do Momento Espírita, com base em dados do

livro A bibliotecária de Auschwitz, de Antonio G. Iturbe,ed. AGIR.Em 10.6.2015.