Um Estudo da Pessoa Teantrópica de Cristo a Partir dos Concíl.doc
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PRESBITÉRIO LESTE DE GOIÂNIA
Bacharelando em Teologia.
UM ESTUDO DA PESSOA TEANTRÓPICA DE CRISTO A
PARTIR DOS CONCÍLIOS ECUMÊNICOS E DAS
CONFISSÕES DE FÉ REFORMADAS
Por
Marcos Luiz Duarte Quaresma
Monografia apresentada ao Presbitério Leste de Goiânia, sob a
Orientação do Rev. Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante. Como
exigência do Presbitério para Licenciatura e Ordenação
ao Sagrado Ministério, conforme Cap. VII Seção
4a art. 120 “b” da C.I.P.B.
Goiânia
2001
INTRODUÇÃO
O objetivo desse trabalho é mostrar a construção do dogma das duas
naturezas presentes em Cristo. Partindo das formulações pré-nicenas até as concepções
ulteriores à Reforma, presentes nas principais Confissões de Fé Reformadas.
Entre os séculos IV e XVII onde tais formulações foram efetuadas, há uma
concentração no período patrístico e no início do período moderno. Porém, foge a
proposta do trabalho deter-se na cristologia medieval.
Algumas cristologias estranhas surgiram e têm surgido na
contemporaneidade. Não obstante, suas raízes remontam à Antigüidade. Algumas
priorizam o lado humano de Jesus a ponto de negar a divindade. Tornam Cristo um
conceito da igreja e apenas um exemplo para a comunidade.
Existem aqueles que mesmo sem negar a teantropia, vulgarizam a
divindade. Colocam Cristo em situações triviais, reduzem-no a um serviçal das
necessidades humanas hodiernas. Outros, de linha esotérica, transformam Jesus em
apenas mais um entre os demais “avatares” da história da humanidade.
Enfim, para a consciência pós-moderna é premente a rejeição de absolutos.
Importa mais, verdades individuais, do que uma “verdade” que sobrepõe.
Diante de tais considerações contemporâneas, esse trabalho tem por fim, dar
ênfase a importância que tem a História para a compreensão de um dogma. Portanto,
parte do momento histórico que ensejou a necessidade da criação de concílios
ecumênicos, com suas influências políticas, filosóficas e religiosas. Dessa forma, trata
2
os dois concílios de maior importância para a cristologia: Nicéia (325) e Calcedônia
(451).
Para se chegar às Confissões de Fé no período Pós-Reforma, é realizada
uma breve análise da transição do período medieval para o moderno. Onde o
Renascimento é colocado como mola propulsora da modernidade. Nesse ambiente
histórico são produzidas as Confissões reformadas que corroboram as decisões
conciliares de Nicéia e Calcedônia.
Por último é colocado o dogma cristológico, tal qual aparece na teologia
reformada. A Pessoa de Cristo em sua divindade, humanidade e distinção das duas
naturezas.
O trabalho é desenvolvido a partir do viés da abordagem histórica,
obedecendo aos seguintes pressupostos metodológicos:
a) Perspectiva sistêmica da Teologia A teologia é vista como sistema e a
Pessoa de Cristo não é desvinculada dos demais elementos;
b) Perspectiva dialética da História Os fatos históricos não são
apresentados como unidades estanques, mas analisados contextualmente. Prioriza-se a
inter-relação dos mesmos e as possíveis sínteses decorrentes;
c) Perspectiva reformada das Escrituras A citação e análise de textos é
feita sob a ótica de uma hermenêutica reformada.
3
CAPÍTULO I
ALGUMAS RAZÕES PARA O SURGIMENTO DE CONCÍLIOS
ECUMÊNICOS NA ANTIGÜIDADE
A tradição reformada reconhece como concílios ecumênicos, os sete
primeiros concílios: Nicéia I (325); Constantinopla I (381); Éfeso (431); Calcedônia
(451); Constantinopla II (553); Constantinopla III (680-681) e Nicéia II (786-787).
Porém, iremos concentrar nossa atenção em apenas dois deles, Nicéia I (325) e
Calcedônia (451). Pois, foram esses os concílios que definiram o dogma da Pessoa
Teantrópica de Cristo.
Porém, antes de focarmos a nossa atenção diretamente nos concílios
precisamos responder à seguinte pergunta: que razões motivaram a criação de concílios
ecumênicos na Antigüidade? Vejamos:
1.1 – Expansão do Cristianismo
A expansão do cristianismo deu-se de forma lenta, processual. “Desde sua
origem no século I, o cristianismo deitou raízes firmes no século II, cresceu bastante no
século III e tornou-se a religião oficial do Império Romano no século IV”.1
1 Marvin Perry, Civilização Ocidental – Uma História Concisa (São Paulo: Martins Fontes, 1999), 131.
4
A partir de 313 – data do Edito de Milão, que concedia liberdade religiosa
no Império – o cristianismo era dominante na Ásia Menor, na Trácia e na Armênia.
Também era uma influência poderosa em Antioquia, na Síria, nas costas da Grécia e
Macedônia, nas ilhas gregas, no norte do Egito, na província da África, na Itália, no Sul
da Gália e na Espanha. Menos forte, porém, em outras regiões do Império como
Britânia, Gália Central e do Norte. Alcançou povos das mais variadas línguas
originários de uma civilização não greco-romana. Ademais, não restringiu-se aos limites
do Império, pois até ao leste da Síria e da Mesopotâmia estendeu sua influência.2
Segundo Eusébio de Cesaréia, “a doutrina do Salvador irradiou-se pelo mundo inteiro,
como os raios do sol”.3
Tal florescimento do cristianismo dentro de uma cultura pagã, deve-se entre
outras razões ao declínio do helenismo. Após a morte de Alexandre Magno, em 323
a.C. tem início a chamada “idade helenística”, que termina em 30 a.C., quando o Egito,
o último reduto helenístico, cai em poder de Roma.4 A filosofia grega divulgada dentro
da “idade helenística” era um privilégio de poucos, no vastíssimo Império Romano.
Povos das mais variegadas raças e culturas foram incluídos no Império.
Se de um lado temos um vasto Império com sua filosofia, suas religiões de
mistério, seus deuses; do outro, temos pessoas comuns, de diferentes culturas, buscando
respostas práticas à suas angústias existenciais. Mais do que a filosofia grega e as
religiões de ministério, o cristianismo oferece essas respostas. Pois traz a mensagem de
um Salvador que pode conceder liberdade tanto na vida como na morte.
2 Robert Hastings Nichols, História da Igreja Cristã (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997), 34.
3 Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica (Rio de Janeiro: CPAD, 1999), 51.
4 Perry, Civilização ocidental, Op. Cit., 74.
5
Além do que o cristianismo é uma religião inclusivista, pois, agrega o
senhor e o escravo; o culto e o inculto; o homem e a mulher; o rico e o pobre. Assim, o
cristianismo vai abrindo os seus “tentáculos” e estendendo-se pelo mundo antigo.
1.2 – Diversidade Cultural no Império Romano
A partir de Otávio Augusto (27 a.C.), tem início um período de dois séculos
denominado de Pax Romana, ou como denominava os romanos “era da felicidade”.5
Com a cessação das guerras de conquistas melhorou consideravelmente às
condições de vida dentro do Império. A tarefa das legiões restringia-se à defesa do
território e à manutenção de paz. As várias culturas existentes dentro do Império
puderam manifestar-se com mais liberdade.
Movimentos mítico-religiosos de vários matizes florescem em
contraposição à filosofia humanista clássica. As religiões de mistérios orientais trazidas
para o ocidente por escravos, mercadores e soldados vindos da Pérsia, Babilônia, Síria,
Egito e Ásia Menor encontram um ambiente propício à sua proliferação.6
O cristianismo encontra-se dentro desse contexto. Convivendo com o
humanismo clássico, com as religiões de mistério e com o emergente neoplatonismo
(séc. II). Influenciando e sendo influenciado.
5 Ibid, 107.
6 Ibid, 116.
6
1.3 – Legalização do Cristianismo
Em 313, com o Edito de Milão, Constantino, confere tolerância religiosa aos
cristãos. Esse é o ponto de partida para tornar o cristianismo a religião oficial do
Império, o que foi feito por Teodósio I em 392.
Com a cessação das perseguições ao cristianismo, houve maior liberdade
para ampliação do pensamento cristão. Podia-se falar e discutir acerca de questões
doutrinárias.
Apesar da discussão sobre a “conversão” de Constantino, há que se ressaltar
que antes de tudo, ele foi um grande estrategista político. Conquistou o apoio dos
cristãos com a tolerância religiosa e restituiu à igreja seus bens confiscados pelos
antecessores. “Visava manter o cristianismo unificado e poderoso, para melhor servir a
seus fins”.7 Quer tenha convertido ou não, é inegável sua contribuição para a fé cristã.
1.4 – Necessidade de Unidade da Igreja
Uma vez localizada, dentro dos limites do Império, a igreja precisa de uma
“linguagem” uniforme para fazer-se coerente.
7 Lincoln Martins, ed., Grande História Universal: Roma (Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1976), 128.
7
1.4.1 – Dogmática
Vimos que a Pax Romana propiciou um ambiente de liberdade cultural no
Império. Essa liberdade cultural também se faz sentir na doutrina da igreja, pois não há
unidade de pensamento em questões doutrinárias.
Percebe-se na doutrina cristã dos primeiros séculos, traços do humanismo
clássico, das religiões de mistério, gnosticismo, neoplatonismo, entre outras tendências.
A igreja tem a tradição dos apóstolos permeada com elementos das variadas
culturas que circulavam no Império. “Começa-se a tomar consciência de que o concílio
é a única possibilidade de se dar expressão à unidade da igreja”.8
1.4.2 – Disciplinar
A questão disciplinar é um problema na igreja desde o seu nascedouro.
Encontramo-la nas cartas de Paulo, como nos exemplos que seguem:
Eu; na verdade, ainda que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e o meu espírito, com o poder de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás, para destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor [Jesus]. (I Co. 5:3-5).
“E dentre esses se encontram Himeneu e Alexandre, os quais entreguei a
Satanás, para serem castigados, a fim de não mais blasfemarem”. (I Tm. 1:20).
8 Giuseppe Alberigo (org.), História dos Concílios Ecumênicos (São Paulo: Paulus, 1995), 15.
8
O mesmo fenômeno que provocava as divergências doutrinárias – o
pluralismo dentro do Império Romano – também servia de elemento complicador na
questão disciplinar.
A maneira de resolver impasses dentro da igreja, era apelar para a
autoridade civil. Na opinião de Alberigo, “a celebração de grandes assembléias
conciliares constitui uma marca que atravessa toda a secular história cristã”.9 Tais
assembléias, então, surgirão sob o poder imperial. Um bom exemplo é o impasse entre
Ceciliano, bispo de Cartago, com os donatistas10, que deu origem ao cisma donatista. Os
donatistas apelam para Constantino, que convoca um Concílio em Roma (313) e um
Sínodo em Arles (314).
À luz do que foi apurado, o Imperador conclui:
A investigação me fez ver que Ceciliano estava sem qualquer culpa: era homem observante de sua religião e devotado a esta como deveria sê-lo. Saltava à vista que não podia se encontrar nele falta alguma, contrariamente às acusações que pesavam contra ele, resultante das investigações alegadas em seu desabono, por seus inimigos, em sua ausência.11
Assim, as assembléias conciliares servem como normatizadoras da
disciplina na igreja, contribuindo para sua unidade.
A preocupação com a unidade da igreja é uma constante em registros
oficiais da época. Em carta do Imperador Constantino na qual ordena a realização de um
Concílio em Roma, ainda sobre a questão do cisma donatista, é expressa a intenção do
Imperador em manter unida a igreja.9 Ibid, 5.10
? Sobre “donatismo” ver J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã (São Paulo: Vida Nova, 1994), 310-312.
11 H. Bettensom, Documentos da Igreja Cristã (São Paulo: Aste, 1998), 52.
9
Constantino Augusto a Milcíades, bispo de Roma, e a Marcos. Como muitas comunicações deste tipo foram enviados a mim de Anulino, o mais ilustre procônsul da África, nas quais diziam que Ceciliano, bispo de Cartago, era acusado em muitos aspectos pelos seus colegas na África, e como isto parece ser grave, que nessas províncias que a Providência divina confiou livremente à minha fidelidade e na qual há uma população vasta, a multidão encontra-se inclinada a se decair e até certo ponto está dividida em dois partidos e entre outros, que os bispos estavam em discrepâncias; resolvi que o mesmo Ceciliano, junto com dez bispos que parecem acusá-lo e outros dez, que ele possa considerar necessários à sua causa, irão a Roma. Que vós, estando lá presentes, como também Retício, Materno e Marino, vossos colegas, a quem ordenei que se dirigissem às pressas a Roma para este propósito, possam ser ouvidos segundo julgais entender ser mais consistente com a mais sagrada lei... Visto que não escapa de vossa diligência que eu mostre tal consideração à Santa Igreja, que desejo, sobretudo, que vós não deixeis lugar para cisma ou divisão.12
Portanto, a questão levantada sobre os motivos que ensejaram a criação de
Concílios Ecumênicos, além das descritas acima, temos, segundo Matos, a prática de
assembléias localizadas desde o final do século II. “Os bispos desde o final do século II
se reúnem de vez em quando, por província ou região; as reuniões se tornam mais
freqüentes e até anuais no final do século III e início do século IV. São os Sínodos ou
Concílios”.13
Segue-se então, à partir do século IV (325), os chamados Concílios
Ecumênicos. A palavra “ecumênico” deve ser entendida não no sentido moderno, mas
12 Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, 394-395.
13 Henrique Cristiano José Matos, Introdução à História da Igreja (Belo Horizonte: “O Lutador”, 1987), 35.
10
pela sua raiz semântica (do grego “ecumene”, ou seja: toda a terra habitada). Com isso,
queria-se dizer que a abrangência do concílio, tanto em representatividade como na
extensão de suas decisões, seriam universais.14
14 Cf. Alberigo, História dos Concílios, 8.
11
CAPÍTULO II
ALGUMAS DISTORÇÕES SOBRE A PESSOA DE CRISTO QUE
LEVARAM AO CONCÍLIO ECUMÊNICO EM NICÉIA
2.1 – Gnosticismo
O gnosticismo marcou presença no seio da igreja, principalmente no
segundo e terceiro séculos. Pais da igreja, como Irineu, Tertuliano e Hipólito,
combateram essas escolas de pensamento considerando-as como heresia.
O gnosticismo como escolas de pensamentos era formado por um conjunto
de seitas, promovendo um sincretismo entre a doutrina dos apóstolos, filosofia pagã,
astrologia e religiões de mistério.15
De acordo com J. N. D. Kelly, a essência do gnosticismo pode ser resumida
da seguinte forma:
O Pai supremo, Bitos, a Mônada não gerada e o Éon perfeito, e a seu lado está o Sige (Silêncio), que é o seu Enóia (pensamento). Destes, procedem, por emanações sucessivas, três partes de éons, Nóus (ou Monogenes) e Aletéia (verdade), Logos e Zoe (vida), Autropos (homem) e Eclesia (igreja), assim completando a Ogdôade. A partir do Logos e da Zoe, originam-se mais cinco pares de éons (a Década), e de Autropos e Eclesia, mais seis pares (a Duodécada). Estes trinta éons constituem o Pleroma, ou a plenitude da Divindade, mas apenas o Nóus unigênito tem a possibilidade de conhecer e revelar o Pai. No entanto, o mais inferior dos trinta, Sofia (Sabedoria), cedeu a um desejo
15 Ver Kelly, Doutrinas Centrais, 16.
12
incontrolável de aprender a natureza dele. Ela labutou, experimentando o anseio culpado que concebera (Entímese), e teria sido dissolvida no todo, se Horos (limite: também chamado Stauros ou Cruz), que foi nomeado guardião do Pleroma, não a tivesse convencido de que o Pai é incompreensível. Assim, Sofia descartou sua paixão e obteve permissão para continuar dentro do Pleroma. Enquanto isso, Nóus e Aletéia, por determinação do Pai, produzem um novo par de éons, Cristo e o Espírito Santo, para instruir os éons a respeito de sua verdadeira relação com Ele. Tendo, dessa forma, restaurado a ordem, eles cantam louvores ao Pai e produzem o Salvador Jesus como fruto perfeito do Pleroma”.16
O ponto de vista básico do gnosticismo é o dualismo, onde o ponto de
partida estabelece um contraste entre o mundo do espírito e o mundo material, bem
como o contraste entre o bem e o mal.
O gnosticismo gera uma cristologia que coloca o Cristo como criatura,
sendo gerado num dos éons mais elevados. Sua tarefa é a de livrar as almas dos homens
do seu cativeiro no mundo material e inseri-las de volta ao mundo do espírito, de onde
caíram.17 Os gnósticos consideravam o Cristo apenas como uma essência espiritual, que
emanara dos éons. Em sua concepção nunca poderia ter assumido a forma de homem, o
que apareceu na terra era apenas uma aparência humana. Eram docéticos.18
16 Ibid, 17.
17 Ver, Bengt Hägglund, História da Teologia (Porto Alegre: Concórdia, 1995), 29-30.
18 Ibid, 30.
13
2.2 – Adocionismo
Está presente na Igreja Cristã desde o segundo século. “Hermas identifica o
filho de Deus com o Espírito Santo, com o Nome de Deus e com a Lei de Deus”.19
Porém, o primeiro a tentar definir com precisão quem era Jesus, foi Teódoto de
Bizâncio, no século II. A ele, deve-se, a sistematização do adocionismo: “Jesus era puro
homem, nascido naturalmente da Virgem, o qual, no batismo, havia recebido uma força
especial”.20
De forma que o adocionismo esvazia Jesus de toda divindade e atribuem-lhe
extraordinária virtude. Ele é o instrumento de Deus para a implantação do Reino. A
ressurreição não pode ser apontada como forma de sua divindade, mas “o modo como
Deus legitima a pessoa e obra de Jesus, credenciando-o definitivamente como o Messias
de Israel”.21
2.3 – Monarquianismo
Também chamado de monarquianismo modalista, para diferir do outro tipo
de monarquianismo (dinâmico) ou adocionismo. “chamava-se Monarquianismo
19 Roque Frangiotti, História das Heresias (São Paulo: Paulus, 1995), 17.20
? Ibid, 22.
21 Ibid, 26.
14
modalista porque concebia as três pessoas da trindade como modos pelos quais Deus se
manifestava”.22
Tertuliano combateu com veemência esse tipo de heresia:
O demônio tem lutado contra a verdade de muitas maneiras, inclusive defendendo-a para melhor destrui-la. Ele defende a unidade de Deus, o onipotente criador do Universo, com o fim exclusivo de torná-la herética. Afirma que o próprio Pai, em suma, foi pessoalmente Jesus Cristo ... Práxeas foi quem trouxe esta heresia da Ásia para Roma ... Práxeas expulsou o Paráclito e crucificou o Pai.23
Os monarquianos partiram da fé na unidade de Deus, num monoteísmo
restrito. Por um lado não abriam mão do monoteísmo judaico, do outro, reconheciam a
divindade de Cristo. Diante de tal paradoxo, a solução seria admitir que o único Deus
tinha modos distintos de manifestar-se. Assim, Jesus, não é uma pessoa distinta do Pai,
mas uma modalidade do próprio Pai, em forma de Filho.
Sendo assim o próprio Deus Pai desceu dos céus, nasceu de Maria, viveu no
mundo, morreu e ressuscitou. “O monarquianismo salvaguarda o monoteísmo, mas
destrói a autonomia, a existência autônoma do Filho”.24
22 Louis Berkhof, A História das Doutrinas Cristãs (São Paulo: PES, 1992), 72.23
? Bettensom, Documentos da Igreja, 81.
24 Frangiotti, História das Heresias, 46.
15
2.4 – Arianismo
Doutrina veiculada por Ário, presbítero em Alexandria. A profissão de fé,
que Ário e seus colaboradores mandaram ao bispo Alexandre, dizia: “Nós
reconhecemos um só Deus, que é o único não-gerado, único eterno, único sem começo,
único verdadeiro, único detentor de imortalidade, único sábio, único bom, único
soberano, único juiz de todos, etc”.25
Ário defendia que por ser transcendente e indivisível, a divindade não pode
ser partilhada nem comunicada. Porém para criar o mundo, Deus criou um ser
intermediário para ser o instrumento da criação. Este ser é o Logos. Apesar de ser
anterior a todas as criaturas não é eterno.
De tais proposições resultam a cristologia de Ário. Jesus é uma criatura,
receptáculo do Logos. Ele é um “deus” em relação as outras criaturas, por estar acima
de toda a criação. Ao encarnar foi adotado como Filho de Deus.26
Entre todas as heresias, o arianismo, foi a mais importante, a ponto de
provocar divisões no império (pró-arianos e contra-arianos). Restava ao imperador
convocar um concílio ecumênico para resolver essas controvérsias, pois poderiam
causar também divisões políticas.
Entretanto, existem historiadores insistindo que a querela religiosa não tinha
conotações políticas. “Mas a distinção entre esfera do religioso (e, portanto, do privado)
e esfera do político (e, portanto, do público) nunca existira no mundo antigo”.27 Em 25 Kelly, Doutrinas Centrais, 172.
26 Ver, Frangiotti, História das Heresias, 86-87.
27 Claudio Moreschini & Eurico Norelli, História da Literatura Cristã Grega e Latina (São Paulo: Loyola, 2000), 49.
16
relação a política Constantina, não cremos que tal asseveração seja verdadeira. Pois,
Constantino, vê na religião cristã – desde o Edito de Milão – como um elemento
agregador do Estado. Uma vez que o Império, via-se ameaçado, principalmente em sua
parte ocidental pelos bárbaros.
“A unidade de religião seria concebida como meio de alcançar a unidade
política, fortemente ameaçada pelas misturas de novas etnias e pelos bárbaros que se
agitavam nas fronteiras”.28
Assim, não podemos crer que as divisões doutrinárias existentes no seio da
igreja, não tinham conotações políticas. Pois, tais divisões poderiam causar rupturas na
igreja e se não fossem sanadas levariam à graves conseqüências políticas no Império,
fragilizando-o ainda mais.
Embora as discussões doutrinárias não tivessem em si elementos políticos,
não obstante, poderiam levar o Império a uma crise de natureza política.
CAPÍTULO III
28 Lincoln Martins, ed., Grande História Universal, 144.
17
O CONCÍLIO DE NICÉIA (325)
3.1 – Convocação
A princípio, Constantino não havia pensado na cidade de Nicéia como sede
da Assembléia conciliar. Sua intenção original era que a cidade de Ancira na Galácia,
sediasse o Concílio.
A cidade de Ancira estava mais afastada dos centros eclesiásticos – onde
havia uma grande efervescência das idéias doutrinárias – e da própria residência do
Imperador. Contudo, na cidade de Ancira morava um grande opositor do arianismo –
Marcelo de Ancira – que, pode ter sido o fator determinante para a escolha da cidade
como sede conciliar.
No entanto, Constantino decide optar por uma política mais moderada, o
que o faz mudar de Ancira para Nicéia, a sede do Concílio. A intenção do Imperador,
“era evitar o aprofundamento das diferenças entre os lados adversários”.29
Nicéia estava próxima a residência imperial de Nicomédia, “submetida à
influência direta da corte”30, o que tem sido interpretado como um favorecimento
imperial aos arianos.
Portanto, o fato de considerar é que a decisão de mudar a sede conciliar não
pode ser entendida apenas como necessidade prática (razões logísticas e climáticas),
29 Alberigo, História dos Concílios, 23.
30 Ibid, 24.
18
mas também como um ato político. Tanto a mudanças de sede, como a própria
convocação do Concílio:
Por outro lado, as razões que levaram o imperador a convocar o concílio não residiam unicamente nos problemas (ainda que urgentes) levantados no oriente cristão pela controvérsia ariana. O programa de Constantino era de alcance maior e visava realizar a pacificação geral e a nova organização da igreja, que já se tornara importante instituição de apoio do império romano”.31
Destarte, o cristianismo favorece ao Império, como elemento de coesão
política. Por outro lado, o Império também favorece ao cristianismo. Pois, a proteção
Imperial, a partir de 311, garantia ao cristianismo possibilidade de especulações e
enriquecimento doutrinário.32
A convocação desse Concílio é uma prova disso. Feita pelo Imperador e
realizado sob sua proteção, além de tentar conciliar possíveis divergências políticas no
âmbito do Império, o Concílio de Nicéia irá formatar o primeiro ensaio oficial de uma
cristologia. Segundo Berkouwer, “o ano 325 figura na História da Igreja como o mais
decisivo na expressão da Cristologia”.33
3.2 – Pressupostos Filosóficos
31 Ibid, 24.
32 Justo L. González, História del Pensamiento Cristiano, Tomo 1 (Miami: Editorial Caribe, 1992), 254.
33 G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo (São Paulo: Aste, 1964), 48.
19
Para o mundo antigo o papel da Filosofia era conduzir o homem ao
verdadeiro conhecimento. Assim, embora a Filosofia esteja intimamente ligada ao
cristianismo, às vezes essa relação torna-se paradoxal. Portanto, os apologistas, a partir
do segundo século, passaram a considerar o cristianismo como “a única filosofia
verdadeira, pois, tão-somente ele possui as respostas corretas para questões
filosóficas”.34 Nesse sentido, então, a Filosofia transforma-se em uma serva do
cristianismo.
Podemos ter uma idéia clara a esse respeito no Diálogo com Trifão, obra de
Justino ( c. de 165). Justino pergunta ao judeu Trifão:
Mas será possível, disse eu, que possas tirar tanto proveito da filosofia quanto do teu legislador e dos profetas? Este responde: Como? Acaso não se refere a Deus todo o discurso filosófico? E não é em torno de sua unidade e de sua Providência, que giram sempre as disputas filosóficas? Porventura não pertence à filosofia inquirir sobre a divindade?35
De forma que, a filosofia tem papel eminente nas discussões teológicas que
se seguem e conseqüentemente nas formulações doutrinárias.
3.2.1 – Neoplatonismo
34 Hägglund, História da Teologia, 22.
35 C. Folch Gomes, Autologia dos Santos Padres (São Paulo: Edições Paulinas, 1979), 69.
20
Prioriza a tendência de tornar Deus fundamentalmente transcendente.
Derivando-se do sistema platônico, incorpora elementos aristotélicos, estóicos e
orientais. Tem em Plotino (250-270) seu maior expoente.36
O neoplatonismo será a base filosófica do gnosticismo, pois Plotino era
monista e via a realidade estruturada de forma hierárquica, dividida em níveis além do
ser e abaixo do ser. Atribui o princípio original a Deus, chamado de Uno.
O Uno está além do ser e além da mente, sendo a fonte de onde deriva o ser.
Aquilo que procede do Uno, procede como emanações, como a luz que sai do Sol, sem
contudo haver qualquer perda.
Abaixo do Uno está a segunda hipóstase, a mente; abaixo dela a terceira
hipóstase, chamada Alma. A mente atinge o mundo das Formas, ela é o princípio causal
no mundo fenomenal ou o demiurgo, segundo o sistema de Platão.
A tendência religiosa do neoplatonismo, segundo J. N. D. Kelly é a de que
“tudo que existe é um transbordamento do Uno, e, permeando toda a realidade em seus
diferentes níveis, encontramos o anseio ardente por uma união com o que é superior e,
em última instância, com o próprio Uno”.37
A alma então é desafiada a essa união que ocorre em etapas: purificação,
conhecimento (Gnosis) e união mística.
Portanto, o neoplatonismo é considerado o suporte filosófico do
gnosticismo, arianismo e de outras correntes de pensamento que perpassaram ao
pensamento cristão, nos primeiros séculos do cristianismo.
36 Kelly, Doutrinas Centrais, 15.
37 Ibid, 16.
21
3.2.2 – Orígenes
Nasceu no Egito por volta de 185 e viveu cerca de 70 anos. Foi aluno de
Clemente de Alexandria, mas o superou em talento e atividades.
Seu arcabouço filosófico encontra-se na obra intitulada De Principiis, “a
primeira tentativa de sistematização da fé e a doutrina cristã em geral”.38
A obra divide-se em quatro partes:
1ª - “Deus” fala sobre as três pessoas divinas, das criaturas espirituais, origem,
natureza, liberdade, queda e restauração; faz ainda a diferença entre o material e o
imaterial.
2ª - “O Universo” mostra o mundo criado, sua essência, começo e fim; a criação de
novos mundos; a união de corpo e alma; a queda do homem; a redenção pela
encarnação do LOGOS, iluminação e santificação pelo Espírito Santo; Deus da Antiga e
da Nova Aliança; o fim do mundo, juízo, o inferno e a bem-aventurança.
3ª - “A Liberdade” relação homem - Deus; pecado e redenção; liberdade humana e
justiça divina; influências malignas e paixões; educação que Deus dá ao mundo.
4ª - “Revelações” inspiração, tríplice sentido da Bíblia e a necessidade de sua
exposição.39
O objetivo dessa obra é didático: ensinar aos fiéis e infiéis as verdades
básicas da fé. Orígenes é um filósofo cristão, não obstante, vale-se dos recursos da
filosofia grega.
As marcas da filosofia de Platão permeiam o pensamento de Orígenes: “À
semelhança da tricotomia platônica, Orígenes distingue um tríplice sentido na Escritura: 38 Philotheus Boehner & Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã (Petrópolis: Vozes, 2000), 50.
39 Ibid, 50-51.
22
o somático (literal, histórico-gramatical), o psíquico (moral) e o pneumático (alegórico-
místico)”.40
Em relação a criação:
Orígenes concebe a criação com um ato eterno. A onipotência e a bondade de Deus nunca podem ficar sem um objeto para sua atividade. Numa eterna emanação, o Filho sai do Pai, e do Filho procede o Espírito Santo. Ao atual mundo visível precedeu outro mundo de espíritos, inteiramente perfeitos. Parte deles apostatou de Deus – entre as quais também as almas humanas preexistentes – por isso passaram a viver como exilados, dentro da matéria.41
Ainda com relação ao Filho:
Orígenes aderiu ao subordinacionismo, quanto às relações das três pessoas em Deus. Apesar de anteceder a eternidade do Filho de Deus, é de o chamar homooúsios, só o Pai é autótheos; o Logos denominado deúteros theós, não é, como o Pai. O Espírito Santo é inferior ao Filho. O Logos assumiu um corpo verdadeiro e é Homem-Deus (Theán-Thopos). Orígenes foi quem plasmou essa expressão. A união das duas naturezas em Cristo é extremamente íntima”.42
É possível constatar que orígenes “bebeu” da filosofia grega: platonismo,
aristotelismo, estoicismo, etc. Não obstante, Orígenes combateu veementemente a
ignorância espiritual desses filósofos. Em sua opinião, os ensinos mais profundos de
Platão (quem o mais influenciou) eram de procedência judaica e não grega.43
40 Berthold Altaner & Alfred Stuiber, Patrologia (São Paulo: Paulinas, 1988), 211.41
? Ibid, 212.
42 Ibid, 212-213.43 Boehner e Gilson, História da Filosofia, 56.
23
3.2.3 – Conceito de Logos
O conceito de Logos foi originado na filosofia grega, em particular, no
estoicismo. Os filósofos gregos denominaram o Logos de “razão universal”, para os
apologistas cristãos o Logos era uma forma de “como Cristo se relacionara com Deus
Pai”.44
Para os filósofos, uma parte do Logos (razão) está presente em todos os
homens. Para os apologistas, o Logos é Cristo (palavra) que esteve com Deus, desde
toda eternidade. Assim o Logo (razão / palavra) procedeu da essência de Deus, quando
da criação do mundo. “Na plenitude do tempo esta mesma razão divina revestiu-se de
forma física e tornou-se homem”.45
Em Filon há uma tentativa de amalgamar a tradição hebraica com a filosofia
grega.46 Assim, Filon entende o Logos como um princípio que Deus gerou de si mesmo
antes de todas criaturas. Ele é chamado “glória do Senhor”, “Sabedoria”, “anjo”,
“Deus”, “Senhor” e “Logos” (verbo-palavra) e nasceu da vontade do Pai, sem contudo,
diminuição do Pai. Diferindo assim do estoicismo onde o Logos era “racionalidade
divina que preenche o cosmo e lhe dá coesão e harmonia”.47
Para Filon, antes de criar o mundo físico, Deus criou o “cosmo inteligível”,
ou seja, as idéias como modelo ideal. Esse modelo ideal é o Logos, pelo qual Deus
criara o mundo. Filon distingue o Logos de Deus, chamando-o “Filho primogênito do
Pai incriado”, um “Segundo Deus” ou “Imagem de Deus”.48 O Logos de Filon é o fio
44 Hägglund, História da Teologia, 23.
45 Ibid, 23.46
? Christopher Stead, A Filosofia na Antigüidade Cristã (São Paulo: Paulus, 1999), 63.47 Frangiotti, História das Heresias, 81.48
? Ibid, 83.
24
condutor que mantém o mundo unido, princípio que conserva e norma que governa.
Tais concepções de Filon influirão na posição ariana, que irá discutir a Cristologia a
partir da noção de Logos.49
3.3 – Elaboração de uma Cristologia Nicena – Afirmação da Divindade de Cristo
O credo de Cesaréia, proposto por Eusébio, serviu de base para a elaboração
do Credo Niceno. Dizia o credo de Cesaréia:
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus, Deus de Deus, Luz de Luz, Vida de Vida, Filho unigênito, primogênito de toda a criação, por quem foram feitas todas as coisas; o qual foi feito carne para nossa salvação e viveu entre os homens, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e subiu ao Pai e novamente virá em glória para julgar os vivos e os mortos; cremos também em um só Espírito Santo.50
Não obstante, ortodoxo, o credo de Eusébio não resolvia os problemas
levantados pela controvérsia ariana. De forma que foi aperfeiçoado pelo concílio e os
318 bispos conciliares reunidos em Nicéia aprovaram – a exceção de dois muito ligados
a Ário51 - o seguinte símbolo de fé:
Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus
49
? Ibid, 83.50
? Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, 61.51 Alberigo, História dos Concílios, 35.
25
verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: “Ele era quando não era”, e “Antes de nascer, Ele não era” ou que “foi feito do não existente”, bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência” ou “feito”, ou “mutável”, ou “alterável”, a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatematiza.52
Entre 20 de maio de 325 até aproximadamente 25 de julho do mesmo ano, a
assembléia conciliar esteve reunida no palácio imperial de Nicéia. O imperador esteve
no centro da assembléia.53
A fórmula descrita acima foi cunhada, a partir da visão da maioria do
episcopado que reconhecia haver erros na posição ariana. Assim, a primeira dessas
formulações é dada pela expressão “da essência [substância] do Pai”.54 O objetivo é
refutar a afirmação ariana de que o Logo é criado do nada, sem que haja comunhão
ontológica entre Filho e Pai.55 Para afirmar que o filho compartilha a essência do Pai,
introduziu-se o conceito de homooúsios (= da mesma essência ou substância). Tal
expressão não era nova, fora cunhada um século antes de Nicéia, por Tertuliano.
Expressão que também foi usada por Novaciano e Orígenes.
A segunda formulação introduzida em Nicéia em função antiariana
“consiste na asserção: Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”.56 No que concerne ao
Filho. Enquanto a teologia ariana insistia na unicidade absoluta do Pai.
52
? Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, 62.53
? Alberigo, História dos Concílios, 27.54
? Ibid, 30.55 Ibid, 30.56
? Ibid, 31.
26
Com relação a expressão “gerado, não criado”, pretendia-se refutar uma das
idéias mestras do arianismo, a assimilação entre “gerado” e “criado”.57 Contudo, a
fórmula “consubstancial (homoóusios) ao Pai”, é em xeque-mate a rejeição do
arianismo, pois afirma que o “Filho compartilha e participa do mesmo ser do Pai”.58
Para Berkouwer, o mais importante de toda a discussão de Nicéia e a
fórmula dela resultante, foi a inclusão da palavra técnica homoóusios (consubstancial).
“Pois, nesta palavra evidentemente, antiariana, o concílio definia sua própria
definição”.59 Embora, homoóusios, não fosse um termo original, passou a ser a marca
registrada de Nicéia.
A iniciativa da inclusão do termo homoóusios no credo niceno é do próprio
Imperador. Para alguns, Constantino optou por um termo com pluralidade de
significados (de Tertuliano a Orígenes, passando por Plotino, todos usaram esse termo
com significados diferentes), para atender a sua “política de pacificação”.60 E o fez
consciente, auxiliado pelo seu conselheiro para assuntos eclesiásticos, Ósio de Córdoba.
“A hipótese de papel bastante direto do Conselheiro de Constantino seria
confirmada pela informação transmitida por Filostórgio, segundo o qual, antes do
concílio, Ósio e Alexandre tinham alcançado em Nicomédia um acordo a respeito do
uso de homoóusios”.61
Contudo, não seria de bom alvitre afirmar que o credo de Nicéia nasceu
somente de uma articulação política. Questões teológicas que já enfocamos acima,
57
? Ibid, 32.58
? Ibid, 3259
? Berkouwer, A Pessoa de Cristo, Op. Cit., 49.60 Alberigo, História dos Concílios, 34.61
? Ibid, p. 34.
27
dentro de um fundo sócio-cultural e o imperativo de manter a paz e a unidade do
império, motivaram a realização desse concílio.
Entretanto, Deus usa os métodos que lhe apraz para fazer cumprir a sua
vontade. Não obstante, as manobras políticas, Nicéia é de importância focal para a
história da dogmática Cristã, pois define a base mais elementar da cristologia: a
divindade de Cristo.
CAPÍTULO IV
CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA (451)
4.1 – Entre Nicéia e Calcedônia
Após o Concílio de Nicéia e firmados em sua decisão sobre a plena
divindade de Cristo, surgiram correntes que passaram a negar a plena humanidade de
28
Cristo. As raízes do docetismo, gnosticismo e modalismo que no passado negaram a
divindade de Cristo estavam presentes nesse interregno Nicéia-Calcedônia.
4.1.1 – Apolinarismo
Apolinário de Laodicéia (310-390), foi um ferrenho opositor do arianismo
no que concerne a Divindade de Cristo. Mas, Nicéia deixou um vácuo ao não definir
como se dava a relação entre o divino e o humano na Pessoa de Cristo. Apolinário
lança-se a essa tarefa.
Tendo como base a antropologia de Platão que concebe a constituição
humana em três partes: alma espiritual-intelectual, alma sensitiva e corpo material –
Apolinário elabora sua cristologia. Em Cristo, o Logos toma o lugar da alma espiritual.
Assim, somente o corpo é realmente humano em Jesus. Subjaz à definição de
Apolinário em princípio soteriológico: “Se Jesus tivesse alma intelectual-espiritual e
liberdade humana, nossa salvação não teria base firme, pois a alma humana é, por
essência, mutável, acessível ao mal”.62 Apolinário exclui do ser de Jesus a razão, a alma
racional superior como entidade humana. O seu lugar é ocupado pelo Logos. Para
Apolinário, “o Cristo é mais um homem celeste que terrestre. Há encarnação, mas não
verdadeira humanização”.63
4.1.2 – Nestorianismo
62 Frangiotti, História das Heresias, 101.63
? Ibid, 102.
29
Embora tenha vindo da tradição teológica de Antioquia, Nestório acabou
sendo condenado como herege.
Sua Cristologia fundamentava-se nos princípios da Cristologia antioquiana,
ou seja: as naturezas divina e humana em Cristo não devem ser confundidas, mas
consideradas como completamente distintas.
Porém, Nestório, ao distinguir-se e contrapor-se à teologia alexandrina que
considerava Maria como Theotókos (mãe de Deus), ele acaba afastando-se também da
teologia antioquiana. Pois, Nestório opô-se à expressão Theotókos.
Maria, dizia ele, deu a luz ao filho de Davi, no qual o Logos passou a residir. O elemento divino em Cristo não se encontra em sua natureza humana; estava presente apenas porque o Logos se unira a este homem. Esta união tivera lugar por ocasião do nascimento de Cristo. Por ensinar sobre esse ponto como fazia, era impossível a Nestório referir-se à Maria como Theotókos. No máximo, dizia, pode-se denominá-la Xristotókos”.64
Nestório falava de Cristo como sendo uma pessoa, não obstante, distinguia
as duas naturezas a tal ponto que quebrava a unidade dessa pessoa. “Dizia, por exemplo:
‘Distingo entre as duas naturezas, mas adoro apenas um Cristo’.”65 Este é o problema
em Nestório, fica difícil em sua cristologia encontrar a unidade da pessoa de Cristo. Era
como se as naturezas divina e humana ficassem lado a lado.
4.1.3 – Cirilo de Alexandria
64
? Hägglund, História da Teologia, 80.65 Ibid, 81.
30
Cirilo foi o mais ferrenho opositor do Nestorianismo. Ao contrário deste,
Cirilo, “ressalta a unidade da Pessoa de Cristo”.66 A formulação cristológica de Cirilo
rejeita qualquer separação real das naturezas de Cristo, defende a união hipostática
(substancial) e enfatiza que o sujeito da humanidade de Cristo era a pessoa divina.67
Em conseqüência de suas teses cristológicas e em oposição a Nestório,
Cirilo envia-lhe uma carta sinodal (sínodo dos bispos do Egito em 430), contendo os 12
anátemas.68
Para Cirilo, o conceito de Cristo como segundo Adão, o autor de uma raça
nova, regenerada, exigia uma união do Logos com a carne muito mais íntima que a
defendida por Nestório.69
Os pontos cristológicos definidos por Cirilo são: a) a conjunção inseparável
das duas naturezas; b) a impersonalidade e dependência da varonilidade, que o Logos
usa como seu instrumento; c) a unidade e continuidade da Pessoa de Cristo”.70
Contudo, Cirilo acabou criando uma confusão de termos ao aplicar o termo
physis (natureza) somente ao Logos, e não à humanidade de Cristo. Usar o termo como
sinônimo de hypostasis. Isso irá servir de base, mais tarde, aos monofisistas para
afirmarem que após a encarnação houve apenas uma única natureza divino-humana em
Cristo.71
66
? Berkhof, História das Doutrinas, 97.67
? Frangiotti, História das Heresias, 131.68
? Os 12 anátemas de Cirilo contra Nestório encontram-se em Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, 93-94.69
? Kelly, Doutrinas Centrais, 240.70 Berkhof, História das Doutrinas, 97.71
? Ibid, 97.
31
4.1.4 – Eutiquianismo
Êutiques nasceu em 378, tornou-se monge de um convento próximo a
Constantinopla. A vida mística, espiritual dos monges da época, influiu na sua
concepção cristológica. Pois, sendo homens (monges) renegaram e desprezaram de tal
forma a natureza humana em prol do que acreditavam “viver só do espírito”.72
Assim, não admitia duas naturezas no Cristo encarnado. Duas naturezas
houvera antes da encarnação, mas depois dessa, a natureza divina sobrepunha a humana,
tornando uma única natureza: a natureza divina.73 Sua aversão às duas naturezas deve-se
ao fato da influência alexandrina na sua teologia, “entendia que physis (natureza)
significava uma existência concreta”.74
4.2 – Convocação do Concílio
Diferente do Concílio em Nicéia (325), agora, o império está dividido em
oriente e ocidente, com dois imperadores. No ocidente reina Valentiniano III e no
oriente reina Marciano. Tornou-se mais complexo a realização de um Concílio
Ecumênico.
Não obstante, com o oriente mais forte que o ocidente, tanto política, como
econômica, militar e eclesiasticamente, é de se esperar que este conduza todo o
processo. As controvérsias cristológicas fermentam o ambiente teológico e o Papa Leão,
a 13 de outubro de 449, escreve a Teodósio II (então imperador do Oriente, antecessor
72
? Frangiotti, História das Heresias, 141.73
? Ibid, 140.74
? Kelly, Doutrinas Centrais, 251.
32
de Marciano), pedindo a convocação de um Concílio Ecumênico no Ocidente.75 Pedido
este negado por Teodósio II. Porém, com a morte de Teodósio II, Marciano (450-457),
será o novo imperador do Oriente.
A mudança no cenário político dá reflexos também no cenário religioso. O
novo imperador é favorável a realização de um Concílio, contudo, no Oriente.
O Concílio foi convocado a 23 de maio de 451 para reunir-se em Nicéia no
mês de setembro. Segundo a carta de convocação as razões seriam: “estado de incerteza
e confusão em relação à fé, testemunhada pela carta de Leão”.76
Em função de compromissos militares do Imperador – que fazia questão de
participar dos trabalhos conciliares – o concílio foi deslocado de Nicéia para
Calcedônia. A carta do Papa Leão serviu de base para os trabalhos de Calcedônia.77
4.3 – Elaboração de uma Cristologia Calcedônica –
Afirmação da Humanidade de Cristo
Para Berkouwer, o Concílio de Calcedônia é de importância primordial na
história eclesiástica.78 Pois, este indica os caminhos errados que a igreja, até então,
vinha tomando para a solução do mistério da união das duas naturezas.
O propósito do imperador Marciano ao convocar o concílio e as intenções
do papa Leão, de condenar as posições extremas e heresias anteriores, parecem até certo
ponto frustados em Calcedônia. Isto porque Calcedônia foi muito além, ao produzir uma
75 Alberigo, História dos Concílios, 91.76
? Ibid, 93.77
? Hägglund, História da Teologia, 83. 78 Berkouwer, A Pessoa de Cristo, Op. Cit., 55.
33
Definição de Fé, de acordo com a quase totalidade dos bispos presentes.79 Segundo
algumas estimativas, cerca de 600 bispos. Exagero ou não, o fato é que o Concílio de
Calcedônia foi o maior da Antigüidade.
Enquanto Éfeso – vinte anos antes – afirmava ser Cristo a união do homem
com a divindade, Calcedônia insiste na humanidade de Deus.80 Pode-se dizer que
Calcedônia é o ponto de equilíbrio entre os modelos cristológicos alexandrino e
antioqueno.
Calcedônia traz uma riqueza conceitual muito mais abrangente que os
concílios anteriores. Enquanto, Nicéia caracterizou-se com o termo homoóusios,
Calcedônia traz conceitos como physis (natureza), prosopon (pessoa), hypóstasis
(hipóstase). “Jesus Cristo é conhecido com duas naturezas, sem confusão, mudança,
divisão, separação”.81 A realidade das duas naturezas não desaparece após a encarnação,
uma absorvendo a outra, antes, co-existem e concorrem para formar uma só Pessoa.
Calcedônia rejeitou tanto a separação como a fusão das duas naturezas de Cristo.82
Tornou-se marca registrada desse concílio a afirmação: “Jesus Cristo é verdadeiro Deus
e verdadeiro homem”.83
Enfim, Calcedônia chegou a seguinte fórmula dogmática:
Fiéis aos santos pois, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto a divindade e perfeito quanto a humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente
79
? González, História del Pensamiento Cristiano, 362-363.80
? Alberigo, História dos Concílios, 100.81 Ibid, 100.82
? Berkouwer, A Pessoa de Cristo, 55.83
? Ibid, 57.
34
homem, constando de alma racional e corpo; consubstancial ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; “em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado”, gerado, segundo a divindade, antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa Salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus.Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência (hypóstasis); não dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiram.84
CAPÍTULO V
TRANSIÇÃO DO PERÍODO MEDIEVAL
PARA O PERÍODO MODERNO (XIV – XV – XVI)
A tão falada “Idade das Trevas” parece mais uma interpretação
preconceituosa de alguns historiadores do que veracidade histórica. Seus proponentes
rejeitam ter havido “luz” no chamado “Período Medieval” o que parece inverossímil,
haja vista, que “o fim da Idade Média abriu possibilidades para outra fase da civilização
ocidental – a Idade Moderna”.85 Outrossim, rejeitar a relação dialética nessa transição
84
? Bettenson, Documentos, 101.85 Marvin Perry, Civilização ocidental, 207.
35
histórica seria uma tentativa de departamentalização dos períodos históricos em
unidades estanques.
Falar de transição é falar de mudança processual, o que nas esferas das
realidades históricas e mudanças de pensamentos, podem acontecer de forma bem lenta.
Assim, já temos o embrião da transição a partir do século XII, onde começa o que
convencionou-se chamar “Baixa Idade Média”. A mola propulsora, digamos assim,
desse início do processo, pode-se chamar de Renascimento Urbano. Característica essa
de uma época em que o feudalismo começa a decair e em conseqüência disso emerge
uma nova forma de organização social.
Sem dúvida, sempre houve cidades no ocidente, mas restos de cidades romanas do Baixo Império não encerravam dentro de suas muralhas mais que um punhado de habitantes organizados em torno de um chefe militar, administrativo ou religioso. Cidades episcopais, sobretudo, elas reuniam apenas em pequeno laicado em torno de um clero um pouco mais numeroso, sem qualquer vida econômica além de um pequeno mercado local destinado às necessidades cotidianas.86
A partir do século XII então, talvez por uma influência do mundo oriental
que requer para suas cidades de Bagdá, Damasco, Córdoba e outras, matérias-primas do
ocidente, tais como: madeira, espadas, peles, escravos – desenvolve-se então no
ocidente, embriões de cidades (burgos) para atender essa demanda.87
Esse Renascimento Urbano, aliado ao renascimento comercial dado pela
abertura do Mediterrâneo – fechado pelos muçulmanos no século VII e reaberto pela
primeira cruzada no século XI (1096) – viabilizou uma incrementação do comércio
entre oriente e ocidente. As cidades italianas de Gênova e Veneza fazem essa ponte
86 Jacques Lé Goff, Os Intelectuais na Idade Média, (São Paulo: Brasiliense, 1995), 21.87
? Ibid, 21.
36
comercial, levando ao oriente matérias-primas da Europa e trazendo ao ocidente, além
de sedas e especiarias, cultura clássica. Dessa forma entram na Europa não só
mercadorias, mas idéias reminescentes da antigüidade clássica. Tais idéias, a partir do
século XV com o advento da impressa, circularão muito mais rápido por toda a Europa.
5.1 – Renascimento e Humanismo
O período histórico denominado de Renascimento (ou Renascença) é dos
mais difíceis de ser caracterizado. A concepção de que a Renascença não constituiu uma
época cultural distinta, mas somente uma fase de transição entre a Idade Média e a
Moderna, é a que vem sendo corretamente aceita. Coexistiram no Renascimento
“princípios antigos e novos, religiosos e profanos, pagãos e cristãos, conservadores e
liberais, autoritários e individualistas”.88
A imagem do Renascimento que se deve ter sempre em mente é a de uma
época entre os fins do século XIV e final do século XVI, na qual ocorreu uma série de
modificações das estruturas materiais e mentais, permitindo um grande avanço social,
político e econômico na Europa. Cada um desses fenômenos de transformação agiu, de
maneira direta ou indireta, sobre os demais, e sofreu deles, por sua vez, as pressões
conseqüentes. As transformações então ocorridas não se basearam e nem puderam ser
formuladas nas teorias políticas e sociais estabelecidas durante a Idade Média, pois o
caráter e a rapidez destas mudanças ultrapassaram as antiquadas concepções medievais.
88 Lincoln Martins, ed., Grande História Universal, V. II (Rio de Janeiro: Bloch, 1976), 274.
37
O palco dessas transformações foi a Europa Ocidental: a Itália, os Países
Baixos, a Espanha, a França, a Alemanha e a Inglaterra.89
Ao comparar a sociedade renascentista com a sociedade medieval, poder-se-
ia dizer que no Renascimento a sociedade secularizou-se. Há um verdadeiro fascínio
pela vida na cidade, os prazeres terrenos, dinheiro e ausência de preocupação com a
salvação, tão característica do período feudal.
Outra característica do período renascentista é o individualismo. Há um
enaltecimento das potencialidades humanas, os valores individuais são assegurados e o
homem torna-se mais confiante em si mesmo. Tal visão contribui para: “à convicção de
que o indivíduo deveria libertar-se do jugo das preocupações com o outro mundo, do
dogma teológico e da autoridade eclesiástica, dedicando-se em vez disso ao pleno
desenvolvimento dos talentos humanos e a melhorar a qualidade da existência
terrena”.90
A intenção dos humanistas da Renascença é um retorno à cultura clássica,
não como fizeram os escolásticos medievais que usaram-na para corroborarem dogmas
cristãos. “Para os humanistas, os clássicos eram um guia para a felicidade e a vida
ativa”.91
Não obstante, ser o humanismo renascentista um movimento
fundamentalmente secular, não era anticristão. Quando os problemas religiosos e
teológicos eram abordados, a fé cristã não era colocada em dúvida e nem a Bíblia
submetida à prova. O cristianismo continua em evidência durante esse período, ainda
que com um matiz diferente do medieval.89
? Ibid, 274.90 Marvin Perry, Civilização Ocidental, (São Paulo: Martins Fontes, 1999), 220.91
? Ibid, 221.
38
Um dos maiores humanistas da Renascença, precursor da Reforma
Protestante, foi Erasmo de Roterdã. Havia – segundo Justo Gonzalez – “na França,
Espanha, Inglaterra, Alemanha e Países Baixos, eruditos que sonhavam com a
restauração do cristianismo antigo, seguindo os métodos dos humanistas”.92
Para Erasmo, a doutrina vinha em segundo lugar. Pois, em primeiro estava a
vida reta. A reforma por ele proposta, passava por uma reforma dos costumes, “a prática
da decência e a moderação”.93
Mesmo sem concordar com a visão preconceituosa de que o Renascimento
trouxera luz à “Idade das Trevas”, deve-se entender que o resgate da cultura clássica
possibilitou uma nova fase na história da humanidade. A força do dogma concorre com
a força da razão; e os títulos nobiliários concorrem com a emergente burguesia. Espaços
para individualidade e criatividade humanas foram criados.
O humanismo renascentista preparou o cenário histórico para a Reforma
Protestante.
5.2 – Reforma Protestante
A velha imposição dogmática que a igreja medieval fez cair sobre a
sociedade e a nova visão humanista engendrada pelo Renascimento, são incompatíveis.
92 Justo L. Gonzalez, A Era dos Sonhos Frustados (São Paulo: Vida Nova, 1995), 153.93
? Ibid, 155.
39
Dialeticamente o novo entra em choque com o velho, provocando uma síntese. Tal
síntese, é a mudança do cristianismo. “Contudo, a Reforma Protestante não teve origem
nos círculos elitistas dos eruditos humanistas. Ela foi desencadeada por Martinho Lutero
(1483-1546), um desconhecido monge alemão e brilhante teólogo”.94
A igreja católica fora profundamente afetada pelas discórdias que
dilaceravam o mundo medieval. O estado permanente de conflito entre senhores e
vassalos, a negação da ética cristã pela vigência de certos preceitos e código de
cavalaria e a influência do averroísmo e do nominalismo na filosofia escolástica eram o
fermento sobre o qual, no alvorecer da Idade Moderna, se realizariam as disputas
religiosas que tiveram profundas conseqüências para o mundo ocidental.
A dissidência de Martinho Lutero, que dividiu a cristandade ocidental, foi
precedida de fortes inquietações religiosas.95 Havia uma insatisfação generalizada com
relação aos padrões da igreja e conduta do clero.
A sociedade medieval concedia poder e riqueza aos membros do clero, que
apareciam bem situados na hierarquia social daquela época, o que provocou o
surgimento de várias tendências contrárias a este estado de coisas. O antipapismo, o
anticlericalismo e o erastianismo (doutrina do teólogo suíço Tomás Erasto, que defendia
a submissão da igreja ao Estado) do século XVI mergulhavam suas raízes em tradições
mais antigas de oposição ao papado, ao poder do clero e que defendiam a submissão do
poder espiritual ao temporal.96
Portanto, era patente o clima de insatisfação na sociedade com relação aos
rumos da igreja. A Reforma Protestante que tem o seu marco histórico em 31 de
94 Marvin Perry, Civilização Ocidental, 231.95 Lincoln Martins, ed., Grande História Universal, 338.96
? Ibid, 340.
40
outubro de 1517, quando Lutero afixa suas 95 teses na porta da Catedral de Wittemberg,
não foi nenhum acontecimento inusitado na história da humanidade. Na verdade, ela
estavam em curso nas entrelinhas dos acontecimentos históricos.
Ao estudar a vida de Lutero e também sua obra, uma coisa fica bem clara: é que a tão esperada reforma se produziu, não porque Lutero ou outra pessoa se havia proposto a isso, mas porque ele chegou no momento oportuno e porque nesse momento o Reformador, e muitos outros junto dele, estiveram dispostos a cumprir sua responsabilidade histórica.97
Esse novo cisma que ocorreu na igreja – o primeiro foi no século XI (1054),
dividiu a igreja em Católica romana e ortodoxa – produziu duas correntes: luteranos e
reformados. Ambos, luteranos e reformados, concordavam no princípio básico da
Reforma: sacerdócio universal dos crentes e na única mediação de Jesus Cristo. Mas
havia grandes diferenças entre ambos. O cristianismo reformado desenvolveu-se na
parte européia onde houve mais penetração dos ideais humanistas e havia mais
liberdade política. Sua ênfase estava na atividade e criatividade, conforme o humanismo
da Renascença.
Quando ao luteranismo – embora tenha também recebido influências
humanistas – sua ênfase estava no quietismo. Para os luteranos, o papel da igreja
restringia-se a pregar o Evangelho e ministrar os sacramentos. Diferem dos reformados,
para quem a função da igreja é executar a vontade de Deus nos indivíduos e na
sociedade. Daí, as igrejas reformadas exercerem mais influência na vida social e
política.98
A paixão pelas letras – marca característica do humanismo renascentista –
ampliou-se pela descoberta da impressa. Diminuem os custos e aumentam o mercado 97 Justo L. Gonzalez, A Era dos Reformadores (São Paulo: Vida Nova, 1997), 45.98 Robert Hastings Nichols, História da Igreja Cristã, 191.
41
para os livros impressos. “Calcula-se em 75% pelo menos a proporção das obras
religiosas na produção tipográfica entre 1445 e 1520”.99
No período da Reforma, a igreja com o seu magistério são colocados
“subjúdice” e a procura pela verdade eterna buscada a partir da Escritura.
O humanismo pretendeu purificar a linguagem pela qual é transmitida a Palavra eterna, desembaraçar a Escritura de suas imperfeições e apresentá-la sob uma nova luz. Fazendo isso, ele contribuiu para a Reforma pondo em dúvida a autoridade da Vulgata e colocando a ciência filológica acima de qualquer magistério. Introduziu o método crítico nas ciências religiosas.100
Para contrapor à Vulgata, tradução aceita inquestionavelmente até então,
uma paixão pelo grego e o hebraico leva os sábios humanistas a buscarem, a partir das
línguas originais, a melhor tradução para seu tempo. Assim, “Lutero irá aprofundar seus
conhecimentos de grego e hebraico para traduzir a Bíblia para alemão”.101
Destarte, a grande contribuição do humanismo para a Reforma, foi a
liberação do espírito humano das amarras institucionais da igreja romana. Nesse
sentido, o humanismo foi muito mais religioso do que se acreditou por muito tempo.102
Embora, no extremo oposto tenha contribuído – por esse mesmo espírito livre – à
manifestações eminentemente anticristãs, contudo, no conjunto foram os humanistas,
“espíritos religiosos, mas independentes”.103
99
? Jean Delumenau, Nascimento e Afirmação da Reforma (São Paulo: Pioneira, 1989), 77.100 Ibid, 79.101
? Ibid, 79.102
? Ibid, 79.103
? Ibid, 79.
42
CAPÍTULO VI
ALGUMAS RAZÕES PARA O SURGIMENTO DE
CONFISSÕES DE FÉ NO PERÍODO PÓS-REFORMA
O “espírito livre” proposto pelo humanismo trouxe contribuições, mas
também perigos à fé cristã. O livre exame da Escritura é estimulado pelos reformadores,
contudo, a livre interpretação, condenada.
Destarte, uma vez que a Reforma propõe ruptura com o magistério da igreja
e aproximação do indivíduo às verdades eternas, através da única mediação de Cristo,
era necessário estabelecer limites.
As declarações doutrinárias que surgiram no período pós-reforma –
confissões e catecismos – resultam de necessidades tanto teológicas como pastorais. À
medida que surgiam novos grupos, era preciso fixar a identidade desses grupos em meio
da complexidade religiosa, cultural, social e política do cenário histórico.104 Para o
teólogo John H. Leith, “uma confissão era a compreensão de uma comunidade 104 Alderi Mattos, “O Catecismo de Heidelberg: Sua história e influência” Fides Reformata I: 1 (Janeiro-Junho 1996), 25.
43
particular a respeito da fé cristã num determinado tempo e lugar, e houve uma grande
hesitação em se dar a qualquer confissão um status maior que esse”.105
Enquanto as confissões luteranas foram escritas em sua maioria por Lutero e
Melanchthon, num período de aproximadamente oito anos, as reformadas tornam-se
numerosas e escritas por vários autores. Estima-se que a comunidade reformada
escrevera mais ou menos cinqüenta confissões, de grande relevância, nos primeiros 150
anos.106
Essa profícua produção de confissões deve-se ao momento histórico vivido
pela Europa no século XVI. Pois, a hegemonia da “toda-poderosa” igreja católica
romana do período medieval, agora, era desafiada por vários seguimentos sociais.
“Se os reformadores desafiavam a interferência católica no estado e na
economia, do mesmo modo os monarcas das novas nações-estados questionavam o
papel político da igreja, e a classe dos comerciantes, que então florescia, desafiava sua
autoridade tradicional no mundo e no comércio”.107
Houve por parte da primeira geração de reformadores uma tentativa de
reformulação da igreja como um todo. A idéia era que a igreja é única, mas que estava
corrompida e necessitava de ser reformada. Após Lutero ter desistido da idéia de um
concílio que pudesse corrigir a situação geral da igreja como um todo, Melanchthon e
Bucer continuaram tentando por algum tempo.108
Em função de tal unificação em torno de ideais reformadores não ter
acontecido, a segunda fase da Reforma é marcada por “formas de cristianismo
105
? John H. Leith, A Tradição Reformada (São Paulo: Pendão Real, 1996), 191.106 Ibid, 191.107
? M. A. Noll, “Confissões de Fé” em Walter A. Elwell, ed., Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I (São Paulo: Vida Nova, 1988), 336.108
? Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo (São Paulo: Vida Nova, 2000), 197.
44
deliberadamente locais, particulares e nacionais”.109 Tal eclosão de diferentes matizes do
cristianismo carecia de normatização. Assim, essas comunidades viram-se forçadas a
escreverem declarações, confissões e catecismos, como elementos normatizadores da fé.
As confissões, além de servirem como elementos normatizadores da fé,
também enriquecem a doutrina da igreja.
“Observe-se também que a reforma constituiu-se no segundo grande período
do desenvolvimento doutrinal. Os credos ecumênicos foram elaborados entre 325 e 451,
mas muitos credos e confissões protestantes, desenvolvidos entre 1530 e 1648,
continuaram a ser usados pelos vários ramos do protestantismo”.110
Enfim, às razões para surgirem confissões de fé no período pós-reforma,
acrescenta-se à necessidade de um reposicionamento do cristianismo face ao nascimento
de uma Europa moderna.111
109
? Ibid, 186.110 Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos (São Paulo: Vida Nova, 1988), 290.111
? M. A. Noll, “Confissões de Fé”, 336.
45
CAPÍTULO VII
AS DUAS NATUREZAS DA PESSOA DE CRISTO NAS
PRINCIPAIS CONFISSÕES REFORMADAS
O período da Reforma e Pós-Reforma elabora uma cristologia, sem contudo
romper com as formulações ecumênicas antigas. Todas essas formulações cristológicas
são feitas a partir das conclusões de Nicéia (divindade) e Calcedônia (humanidade).112
7.1 – Confissão Belga (1561)
Escrita em francês por Guido de Brès. O autor foi perseguido em várias
cidades, foi para Genebra onde tornou-se aluno de Calvino.113 Brès foi um pastor
corajoso das comunidades de fala francesa nos Países Baixos, martirizado em
Valenciennes em 1567.
112 Berkouwer, A Pessoa de Cristo, 59.113
? Confissão de Fé e Catecismo de Heidelberg (São Paulo: Cultura Cristã, 1999), 4.
46
Com relação à Pessoa de Cristo, diz a Confissão em seu Artigo 10:
Cremos que Jesus Cristo, segundo sua natureza divina, é o único Filho de Deus (Mt. 17.5; Jo. 1.14,18; Jo. 3.16; Jo. 14.1-14; Jo. 20.17,31; Rm. 1.4; Gl. 4.4; Hb. 1.1,2; 1 Jo. 5.9-12, gerado desde a eternidade. Ele não foi feito nem criado, pois assim ele seria uma criatura; mas é de igual substância do Pai, co-eterno, “o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser” (Hb. 1.3), igual a ele em tudo (Jo. 5.18,23; Jo. 10.30; Jo. 14.9; Jo. 20.28; Rm. 9.5; Fl. 2.6; Cl. 1.15; Tt. 2.13; Hb. 1.3; Ap. 5.13). Ele é o Filho, não somente desde que assumiu a nossa natureza, mas desde a eternidade (Jo. 8.58; Jo. 17.5; Hb. 13.8.114
E no Artigo 19, em relação as duas naturezas de Cristo:
Cremos que, por essa concepção, a Pessoa do Filho está unida e conjugada, inseparavelmente, à natureza humana (Jo. 1.14; Jo. 10.30; Rm. 9.5; Fl. 2.6,7). Não há, então, dois filhos de Deus nem duas pessoas, mas duas naturezas unidas numa só Pessoa, mantendo em cada uma delas suas características distintas. A natureza divina permaneceu não-criada, sem início nem fim de vida (Hb. 7.3) preenchendo céu e terra (Mt. 28.20).
Do mesmo modo, a natureza humana não perdeu suas características; mas permaneceu criatura, tendo início, sendo uma natureza finita e mantendo tudo o que é prórpio de um verdadeiro corpo (1 Tm. 2.5). E ainda que, por meio da ressurreição, Cristo tenha concedido imortalidade à sua natureza humana, ele não transformou a realidade da mesma (Mt. 26.11; Lc. 24.39; Jo. 20.25; At. 1.3,11; At. 3.21; Hb. 2.9) pois nossa salvação e ressurreição dependem também da realidade de seu corpo (1 Co. 15.21; Fl. 3.21).
Essas duas naturezas, porém, estão unidas numa só Pessoa de tal maneira que nem por sua morte foram separadas. Então, ao morrer, ele entregou nas mãos de seu Pai um verdadeiro espírito humano, que saiu de seu corpo (Mt. 27.50). Mas a natureza divina sempre continuou unida à humana, mesmo quando ele jazia no sepulcro (Rm. 1.4). A divindade não cessou de estar nele, assim como estava nele quando era criança, embora, por algum tempo não se tivesse manifestado.
Por isso confessamos que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem: verdadeiro Deus a fim de vencer a morte por
114 Ibid, 11.
47
seu poder; verdadeiro homem a fim de morrer por nós na fraqueza de sua carne.115
7.2 – Segunda Confissão Helvética (1562)
Mediante a convocação por parte do Papa Paulo III de um concílio geral; o
desejo de entendimento com os luteranos; a necessidade de uma confissão suíça,
levaram os magistrados da Suíça a designarem delegados para redigirem uma nova
confissão. Esses redatores são Bullinger, Oswald Myconius, Simom Grynäeus e Leo
Jud.116
A Segunda Confissão Helvética, que se originou da primeira – uma
Confissão de Fé Pessoal de Bullinger – é uma declaração teológica que “demonstra a
coerência da posição reformada com a dos pais gregos e latinos de igreja”.117
Em relação a Pessoa de Cristo, diz no capítulo XI:
Cristo é verdadeiro Deus. Nós cremos e ensinamos que o Filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, foi predestinado desde a eternidade pelo Pai, para ser o salvador do mundo. E nós cremos que ele foi nascido, não somente quando se tornou carne da Virgem Maria, não somente antes da fundação do mundo, mas do Pai antes de toda a eternidade (Is. 53.8; Mq. 5.2; Jo. 1.1). Portanto, com respeito a sua divindade, o Filho é co-igual e consubstancial com o Pai; verdadeiro Deus (Fl. 2.1), não somente em nome ou por adoção ou qualquer mérito, mas substância e natureza, como o apóstolo João tem dito em
115
? Ibid, 18.116 R. V. Schnucker. “Confissões de Fé”, 341.117
? Ibid, 342.
48
1 Jo. 5.20... Cristo é verdadeiro homem tendo real carne. Nós também cremos e ensinamos que o Filho eterno do Deus eterno foi feito o filho do homem, da semente de Abraão e Davi, não de coito do homem, como os Ebionitas dizem, mas concebido pelo Espírito Santo e nascido da Virgem Maria, como a história evangélica cuidadosamente explica-nos (Mt. 1)...
Duas naturezas em Cristo. Portanto, nós reconhecemos duas naturezas ou substâncias, a divina e a humana, em um mesmo Jesus Cristo nosso Senhor (Hb. 2). E nós dissemos que elas são ligadas e unidas uma a outra, de tal modo que elas não são absorvidas, ou confundidas, ou misturadas, mas estão unidas e ligadas juntas em uma pessoa – as propriedades das naturezas existem inalteradas e permanentes...118
7.3 – Catecismo de Heidelberg
O catecismo de Heidelberg foi composto em 1563 a pedido do príncipe
eleitor do Palatinado da Alemanha, Frederico III. O motivo principal para a composição
desde catecismo foi a ignorância do povo, especialmente da juventude. A intenção do
príncipe eleitor era instruir as igrejas para defenderem-se da Contra-Reforma, como
acabar com as disputas eclesiásticas.119
A composição de tal catecismo, deve-se a dois catedráticos da Universidade
de Heidelberg: Zacarias Ursino (1534-1583) e Gaspar Oleviano (1536-1587). O
primeiro, erudito e conciliador, lutou pela paz teológica. O segundo, eloqüente e
ativista, atacava as práticas católicas.120
118 The Second Helvetic Confession, em The Book Of Confessions, Secondedition, General Assembly, Presbyterian Church (U.S.A.), ch. XI – tradução do autor119
? Confessiones de Fe de La Iglesia (Barcelona: Literatura Evangélica, 1990), 15.120
? Alderi Mattos, “O Catecismo de Heidelberg”, 28-29.
49
Em relação a Pessoa divino-humana de Cristo, diz o catecismo na pergunta
35:
P. O que você entende quando diz que Cristo “foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria?”R. Entendo que o eterno Filho de Deus, que é e permanece verdadeiro e eterno Deus (Mt. 1.23; Mt. 3.17; Mt. 16.16; Mt. 17.5; Mc. 1.11; Jo. 1.1; Jo. 17.3,5; Jo. 20.28; Rm. 1.3,4; Rm. 9.5; Fp. 2.6; Cl. 1.15,16; Tt. 2.13; Hb. 1.3; 1 Jo. 5.20), tornou-se verdadeiro homem (Mt. 1.18,20; Lc. 1.35), da carne e do sangue da Virgem Maria (Lc. 1.31,42,43; Jo. 1.14; Gl. 4.4), por obra do Espírito Santo. Assim ele é, de fato, o descendente de Davi (2 Sm. 7.12; Sl. 132.11; Mt. 1.1; Lc. 1.32; At. 2.30,31; Rm. 1.3) igual a seus irmãos em tudo, mas sem pecado (Fl. 2.7; Hb. 2.14,17; Hb. 4.15; Hb. 7.26,27).121
Em relação as duas naturezas de Cristo, diz o catecismo na pergunta 48:
P. Mas, se a natureza humana não está em todo lugar onde a natureza divina está, as duas naturezas de Cristo não são separadas uma da outra?R. De maneira nenhuma; a natureza divina de Cristo não pode ser limitada e está presente em todo lugar (Is. 66.1; Jr. 23.23,24; At. 7.49; At. 17.27,28).
Por isso, podemos concluir que a natureza divina dele está na sua natureza humana e permanece pessoalmente unida a ela, embora também esteja fora dela (Mt. 28.6; Jo. 3.13; Jo. 11.15; Cl. 2.8).122
7.4 – Confissão de Westminster (1648)
121 Confissão de Fé e Catecismo de Heidelberg, 49.122
? Ibid, 52.
50
O Parlamento inglês nomeou no dia 12 de junho de 1643, os componentes
da Assembléia de Westminster: 121 clérigos e 30 membros do Parlamento.123
Da Assembléia de Westminster brota “o padrão doutrinal comum de todas
as Igrejas Presbiterianas no mundo de derivação inglesa e escocesa”.124
Em relação a Pessoa de Cristo, diz a Confissão de Westminster na Seção II
do capítulo VIII:
O Filho de Deus, a segunda Pessoa da Trindade, sendo vero e eterno Deus, de uma só substância com o Pai e igual a ele, quando chegou a plenitude do tempo, tomou para si a natureza humana (Jo. 1.1,14; 1 Jo. 5.20; Fl. 2.6; Gl. 4.4), com todas as propriedades essenciais e fraquezas comuns a ela, contudo sem pecado (Hb. 2.14;16,17; 4.15); sendo concebido pelo poder do Espírito Santo, no ventre da Virgem Maria, e da substância dela (Lc. 1.27,31,35; Gl. 4.4). De modo que as duas naturezas inteiras, perfeitas e distintas, a Deidade e a Humanidade, foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão (Lc. 1.35; Cl. 2.9; Rm. 9.5; 1 Pe. 3.18; 1 Tm. 3.16). Pessoa esta verdadeiro Deus e verdadeiro homem, contudo um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem (Rm. 1.3,4; 1 Tm. 2.5).125
123
? Guilherme Kerr, A Assembléia de Westminster (São José dos Campos, SP; Fiel, 1992), 13.124 A. A. Hodge, Confissão de Fé de Westminster (São Paulo: Puritanos, 1999), 32.125
? Ibid, 191.
51
CAPÍTULO VIII
O DOGMA CRISTOLÓGICO DA PESSOA
TEANTRÓPICA NA TEOLOGIA REFORMADA
8.1 – Conceito de Dogma
A cristandade divide-se em três vertentes distintas, a saber: ortodoxia
oriental, catolicismo romano e o protestantismo com os seus variados matizes. Cada
uma dessas vertentes trás a sua conceituação de dogma.
Para a ortodoxia oriental, o dogma vem revestido de uma carga mística,
onde as formulações doutrinais da fé encontram-se ancoradas na liturgia, são hinos de
adoração. Ou seja: o dogma antes de ser uma imposição legal da igreja, é uma aceitação
consciente da comunidade. O dogma é parte da adoração.
Para o catolicismo romano, o dogma vem revestido de uma carga jurídica,
onde as formulações doutrinais são imposições legais à comunidade da fé. O ocidente
entende o relacionamento Deus-homem dentro de categorias jurídicas. Nessa relação, a
52
igreja, com o seu magistério, detém o poder mediatório de ligar ou desligar o homem a
Deus.
Essa cosmovisão da igreja ocidental define o seu conceito de dogma.
Diferindo da ortodoxia oriental, o dogma não nasce da comunidade para a igreja, mas
da igreja para a comunidade. Assim, para a igreja ocidental, “dogma é o conjunto de
doutrinas da fé necessárias para a salvação”.126
Para a terceira vertente do cristianismo, que se origina na Reforma, a
conceituação do dogma fica num meio termo, entre as perspectivas ortodoxa oriental e
católico-romana. Segundo Hägglund, “considera-se dogma não apenas algo herdado do
passado, mas também a realidade contemporânea, que se relaciona intimamente com a
proclamação da Palavra”.127 Dessa forma, dogma é compreendido, num sentido mais
amplo, dentro de uma perspectiva divino-humana: princípio transcendente da revelação
(uma vez que flui das Escrituras) e complementação científica da mensagem pregada
pela igreja (uma vez que é sistematizado pelo homem).128
Entretanto, tal conceituação não significa que os reformadores ou
formulações ulteriores, reconheçam qualquer forma de magistério oficial e infalível por
parte da igreja. Somente as Escrituras são infalíveis e os dogmas são extraídos delas,
embora sejam apresentados como fruto da reflexão da igreja – corpo dos crentes – não
obstante, sujeitos as “formulações oficiais de corpos representativos competentes”.129
126 Para uma discussão completa sobre o assunto, ver Ernst Benz, Descrição do Cristianismo (Petrópolis-RJ: Vozes, 1995), 123-131. 127
? Hägglund, História da Teologia, 10.
128 Ibid, 10.
129 Berkhof, História das Doutrinas, 19.
53
Em suma, dogma é o eixo sobre o qual move-se a teologia da igreja. Não
obstante as divergências no conceito de dogma, a cristologia é a área da teologia que
mais aproxima a cristandade (protestantes, católicos e ortodoxos).
O dogma da Pessoa de Cristo é apresentado sem muitos nuances dentro
dessas vertentes do cristianismo. O escopo desse trabalho é mostrar apenas o dogma na
teologia reformada.
8.2 – Divindade da Pessoa de Cristo
As heresias antigas e modernas que não aceitam a divindade plena de Jesus
Cristo são totalmente contrárias ao testemunho das Escrituras. Para o eminente teólogo
reformado Charles Hodge, há prova cabal nas Escrituras de que Cristo é Deus.
São-lhe imputados todos os atributos divinos. Fala-se dele como onipresente, onisciente, onipotente e imutável, o mesmo ontem, hoje e para sempre. Ele é apresentado como o criador, sustentador e governador do universo. Todas as coisas foram criadas por ele e para ele; e nele todas as coisas subsistem. Ele é o objeto da adoração de todas as criaturas inteligentes, inclusive das mais exaltadas; ordena-se que todos os anjos (ou seja, todas as criaturas entre o homem e Deus) se prostem diante dele... Declara que ele e o Pai são um; que aqueles que o viram, viram igualmente o Pai. Chama a si a todos os homens; promete perdoar-lhes os pecados; enviar-lhes seu Espírito Santo; dar-lhes repouso e paz; ressuscitá-los no último dia; dar-lhes a vida eterna. Deus não é mais, não pode prometer mais, nem fazer mais do que se diz de Cristo, que promete e faz. Portanto, ele foi desde o princípio o Deus do cristão, em toda época e lugar.130
130 Charles Hodge, Teologia Sistemática, (São Paulo-SP: Hagnos, 2001), 767.
54
Contudo as Escrituras não usam o termo “divindade” para se referir a Jesus
Cristo, de forma explícita. Porém, a igreja adota o termo “encarnação”, para se referir ao
evento histórico onde Deus Filho assumiu natureza humana.131
Há sete passagens no Novo Testamento que se referem a Jesus como Deus.
São elas: Jo. 1.1; 1.18; 20.28; Rm. 9.5; Tt. 2.13; Hb. 1.8; 2 Pe. 1.1. Em todas essas
passagens a palavra é empregada referindo-se a Jesus Cristo. “Só um afastamento
pertinaz dos testemunhos escriturísticos poderia causar receios de falar em divindade de
Cristo”.132
A incompreensão é patente por parte daqueles que pretendem interpretar o
Cristo, segundo fenômenos e qualidades próprios de criaturas.
Stanffer, à margem do pronome plural “nós” de Jo. 17, comenta: “Este nós seria uma blasfêmia na boca de qualquer outro... O eu de Cristo nos depara. Com uma singular autoproclamação: revela-se Cristo como o plenipotenciário absoluto... Se eu sou, fórmula própria de Javé, é a expressão plena de sua identidade sem par e sem limites”.133
Há três passagens nos Evangelhos que são suficientes para a sustentação do
dogma da divindade de Cristo. São elas: Jo. 1.18; Mt. 11.2-5 e Mc. 2.10-11.
8.2.1 – “Unigênito do Pai”
131
? Wayne Grudem, Teologia Sistemática, (São Paulo-SP: Vida Nova, 1999), 447.132 Berkouwer, A Pessoa de Cristo, 126.133
? Ibid, 126.
55
“Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é
quem o revelou”. Jo. 1.18 (ARA).
A expressão “Deus unigênito” foi traduzida do grego, .134
Somente João utiliza-se dessa expressão como título cristológico. Tal expressão destaca
Jesus de modo sem igual, superior a todos os seres, quer terrestres, quer celestiais.
“Jesus como é aquele que pode dizer ‘Eu e o Pai somos um’, Jo. 10.30”.135
Está plenamente incluído na unicidade do Pai.
Outra expressão significativa na passagem é, “
”.136
O verbo (estar) no presente do particípio indica uma ação linear,
durativa da situação.137 Tratando-se de um particípio, a melhor tradução seria “estando”.
Ou seja: somente Jesus estando com o Pai, pode revelar o Pai através da sua Pessoa.
Esse é um indicativo que não houve esvaziamento da divindade na encarnação.
A palavra (peito) utilizada no sentido metafórico traz uma conotação
de amor, de estreito relacionamento. Amor mútuo do Pai e do Filho.138 Esse
relacionamento também indica unidade.
A filiação não só implica igualdade, mas identidade de natureza. O que é gerado deve compartilhar da mesma natureza daquele que o gerou. Caso contrário não há geração de natureza, não há geração verdadeira. Nosso Salvador disse, “Eu e o Pai somos um” (Jo. 10.30). Por está no neutro se refere a uma substância,
134 The Greek New Testament (Stuttgart: United Bible Societies, 1994), 314.135 K. H. Bartels. “”, em Lothar Coenem e Colin Brown, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (São Paulo-SP: Vida Nova, 2000), 2566.136
? The Greek New Testament, 314.
137 Waldyr Carvalho Luz, Manual de Língua Grega, Vol. III (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991), 1812.
138 J. A. Motyer, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, 446-447.
56
não no masculino que se referiria a uma pessoa. Assim, a relação de Cristo ao Pai é um argumento incontestável da divindade de Cristo.139
Enfim, outros podem tornar-se filhos de Deus, mas a filiação de Jesus não se
enquadra na categoria de adoção, ela é única. Por isso ele é o “unigênito do Pai”.140
8.2.2 – Características de messianidade
Quando João ouviu, no cárcere, falar das obras de Cristo, mandou por seus discípulos perguntar-lhe: És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço. Mt. 11.2-6 (ARA).
Jesus apresenta as características da era messiânica nesta resposta dada a
João Batista. Tudo aquilo que fora anunciado pelos profetas é cumprido nele.141 Assim,
“Jesus iniciou um movimento que levou muitas pessoas a crerem que ele era o
messias”.142
8.2.3 – Autoridade para perdoar pecados
139 W. E. Best, Estúdios En La Persona y la Obra de JesuCristo (Houston: Webbmt, 1994), 14-15 (trad. do autor).140 George Eldon Ladd, Teologia do Novo Testamento, (São Paulo: Exodus, 1997), 232.141
? Ver Is. 26.19; 29.18-19; 35.5-6; 61.1.
142 Ladd, Teologia do Novo Testamento, 135.
57
Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade
para perdoar pecados – disse ao paralítico: Eu te mando: Levante-se, toma o teu leito e
vai para a tua casa. Mc. 2.10-11 (ARA).
Essa ação de Jesus também revela uma característica da era messiânica e
de sua divindade. Ao comentar essa passagem, diz Berkouwer: “O ato de perdoar
demonstra a realidade e atualidade do tempo messiânico agora inaugurado... Jesus não é
o intermediário neutro que profere o perdão de parte de Deus, mas é a origem e o
conteúdo do perdão”.143
Jesus demonstra a sua autoridade, causa espanto e admiração nos
circunstantes, sem contudo, compreenderem o mistério divino. Porém, o fato de Jesus
ter poder para perdoar pecados, também é um indicativo de sua soberania divina.
8.3 – Humanidade da Pessoa de Cristo
Também não condizem com as Escrituras, os ensinos que não aceitam a
plena humanidade de Jesus Cristo. Na verdade, a tendência moderna é mais de uma
excessiva ênfase na humanidade, em detrimento da divindade plena.144 Todavia, a
teologia reformada dá crédito tanto a plena divindade, como a plena humanidade de
Jesus Cristo.
Sobre a plena humanidade de Cristo, diz Charles Hodge:
143 Berkouwer, A Pessoa de Cristo, 129.
144 Louis BErkhof, Teologia Sistemática, (Campinas-SP: Luz para o Caminho, 1990), 318.
58
Por um corpo verídico entende-se um corpo material, composto de carne e sangue, em tudo semelhante ao que é essencial ao corpo dos homens ordinários... possuía uma alma racional. Ele pensava, raciocinava e sentia... Tais elementos, um verdadeiro corpo e uma alma racional, constituem uma natureza humana perfeita, completa, e assim fica demonstrado que ela fez parte da composição da pessoa de Cristo.145
A igreja lutou, principalmente nos primeiros séculos, contra tendências
docéticas e gnósticas, que engendravam estranhas cristologias. Contudo, mesmo
algumas correntes atuais, embora reconheçam a historicidade de Jesus, não quer isso
dizer que esse reconhecimento condiz com a fé da igreja na humanidade de Jesus.
Mesmo admitindo a historicidade, teólogos liberais, negam o dogma cristológico em sua
essência.146
A questão está na humanidade plena. Um Jesus sujeito às mesmas
limitações, necessidades, alegrias, dores e sofrimento que os demais homens, sem
contudo, pecar. Pois, “a natureza humana de Cristo deve ser distinguida da natureza
humana caída do homem”.147 Tal mistério, divide liberais e ortodoxos, mesmo ambos
crendo na humanidade.
O teólogo Wayne Grudem, traz algumas considerações elucidativas sobre a
humanidade e ao mesmo tempo ausência de pecado em Jesus. Grudem parte da
importância do nascimento virginal: o nascimento virginal mostra que a salvação deve
vir do Senhor como ele mesmo prometera em Gn. 3.15, da “semente da mulher”; o
nascimento virginal possibilitou a união da divindade plena com a humanidade plena,
numa só pessoa; o nascimento virginal tornou possível a humanidade de Cristo sem a 145 Hodge, Teologia Sistemática, 766-767.146
? Berkouwer, A Pessoa de Cristo, 146.147
? Best, Persona y la Obra de JesuCristo, 61. (trad. do autor)
59
herança do pecado. Pois, a linha contínua de descendência de Adão foi interrompida,
sendo Jesus concebido pelo poder do Espírito Santo. A herança de Adão (pecado
original) não tinha poder sobre Jesus.148
A esse respeito assevera Calvino: Mas, deblateram puerilmente que, se Cristo é isento de toda mancha, e pela secreta operação do Espírito foi gerado da semente de Maria, logo, não é impura a semente da mulher, mas somente a do homem. Ora, nem fazemos a Cristo isento de todo labéu apenas porque haja sido gerado da mãe sem o concúbito do homem, mas porque foi santificado pelo Espírito, para que a geração fosse pura e íntegra, qual houvera de ter sido antes da queda de Adão. E absolutamente estabelecido nos permaneça isto: quantas vezes a Escritura nos chama a atenção acerca da pureza de Cristo, referida é a [sua] verdadeira natureza de homem, portanto seria supérfluo dizer que Deus é puro. Também a santificação de que João fala [no cap. XVII do Evangelho] não teria lugar em [sua] natureza divina.149
Ora, é inconcebível crer que as Escrituras são palavras de Deus e descrer na
plena humanidade de Cristo. O apóstolo João afirma categoricamente: “Nisto
reconheceis o Espírito de Deus: todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em
carne é de Deus” 1 Jo. 4.2 (ARA). A negação desse axioma teológico implica
exatamente no extremo oposto, “o espírito do anticristo”.
Além de 1 Jo. 4.2, temos também Jo. 1.14 e 1 Tm. 3.16, afirmando que
“Jesus Cristo veio em carne”. Entretanto, “carne” nessas passagens não refere-se à
distinção de outras partes do corpo; nem o corpo humano total, distinto da alma e nem a
natureza pecaminosa do homem. “O sentido de ‘carne’ em Jo. 1.14; 1 Jo. 4.2 e
1 Tm. 3.16 é o de natureza humana completa total, incluindo corpo e alma”.150
148 Grudem, Teologia Sistemática, 436-437.149
? João Calvino, As Institutas, Vol. II, (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985), 247.150
? Heber Carlos de Campos, “Cristologia”. Material não publicado.
60
8.4 – Unidade da Pessoa de Cristo
Uma vez firmados os dogmas da divindade plena e da humanidade plena,
compete definir como essas duas naturezas harmonizam-se numa só pessoa.
“Terceiro, ele era, além de homem perfeito e Deus perfeito, uma pessoa una.
Em primeiro lugar, não existe absolutamente evidência de haver em Cristo dupla
personalidade. As Escrituras revelam o Pai, o Filho, e o Espírito como pessoas distintas
na Deidade, visto que usam os pronomes pessoais em referência um ao outro”.151
A grande confissão feita em torno desse dogma, deve-se em parte, a não-
compreensão adequada dos conceitos natureza e pessoa.
Berkhof define “natureza” como, “a soma total de todas as qualidades de
uma coisa, daquilo que faz uma coisa ser o que é”.152 Já o termo “pessoa”, é definido
como, “uma substância completa, dotada de razão e, conseqüentemente, um sujeito
responsável por suas ações”.153 Sendo assim, a personalidade não é parte da natureza, e
sim, da pessoa.
“Se Calcedônia insistiu nas duas naturezas diferentes de Cristo foi porque os
que diziam ‘uma natureza’, confundindo a divina e a humana em uma só, na realidade
queriam dizer que a humana se havia perdido na divina”.154
151 Hodge, Teologia Sistemática, 767.152
? Berkhof, Teologia Sistemática, 321.153
? Ibid, 321.
154 D. M. Baillie, Dios Estaba En Cristo (México, D.F.: “La Aurora”, 1960), 143. (trad. do autor)
61
A distinção entre “natureza” e “pessoa” é focal para o entendimento da
pessoa divino-humana.
Destarte, no Cristo, há somente uma pessoa, “o logos imutável”.155 O logos é
a base da personalidade de Cristo. A encarnação possibilitou uma pessoa sui generis:
Deus-homem.
Por natureza humana, jamais pode-se entender pessoa humana, haja vista à
distinção de termos apresentada acima. Portanto, o logos156 não adotou uma pessoa, mas
assumiu uma natureza humana.157
Todavia a natureza humana de Cristo não pode ser tida como impessoal no
sentido pleno. É impessoal apenas no sentido de não ter subsistência independente, mas
dependente da pessoa do logos.158
Portanto, não se pode dizer que a natureza humana de Cristo seja imperfeita
ou incompleta. Ela é completa, dotada de todas as qualidades essenciais, possui
individualidade dentro da pessoa do mediador. “É in-pessoal, e não impessoal”.159
Não obstante, a subsistência pessoal da natureza não ser independente, mas
dependente da pessoa do logos, não se pode concluir com isso que não tenha
consciência e volição. Apesar da natureza humana de Cristo, por si mesma, não ter
subsistência pessoal, consciência e volição não pertencem à pessoa, mas à natureza.160
155 Berkhof, Teologia Sistemática, 322.156
? A palavra logos é empregada no sentido em que aparece em Jo. 1.1, ver J. N. Birdsall, Novo Dicionário da Bíblia, (São Paulo-SP: Vida Nova, 1998), 959-960.157
? Berkhof, Teologia Sistemática, 322.158
? Ibid, 322.159
? Ibid, 322.160
? Ibid, 322.
62
Assim, a pessoa divina com sua natureza divina desde a eternidade, em
Jesus, assume natureza divina, tornando-se divino-humana.161 Sem que houvesse
comprometimento de qualquer forma uma das duas naturezas, nenhuma fusão ou
mistura ou qualquer espécie de natureza híbrida.
Mas, naturezas distintas, numa única pessoa.
Tais conclusões podem ser comprovadas à luz das Escrituras. Não se pode
afirmar biblicamente que haja dupla personalidade em Jesus. Nenhuma passagem de
Jesus se referindo a ele mesmo utilizando o pronome “tu”, como pode ser visto em
algumas passagens onde fica evidente a distinção da Trindade.162
As Escrituras apresentam as duas naturezas unidas numa só pessoa.163 E
fazem referência a pessoa utilizando os atributos próprios de uma das duas naturezas.164
161 Ibid, 322.162
? Ver Sl. 2.7; 40.7-8; Jo. 17.1,4,5,21-24.163
? Ver Rm. 1.3-4; Gl. 4.4-5; Fp. 2.6-11; Jo. 1.14; 1 Tm. 3.16; 1 Jo. 4.2-3.164
? At. 20.28; 1 Co. 2.8; Jo. 3.13; Rm. 9.5.
63
CONCLUSÃO
O pensamento moderno, em curso e desenvolvimento, a partir da
Renascença possibilitou o engendramento da pós-modernidade, que poderia com
propriedade ser rotulada, “era das indefinições”. Inicia-se nas idéias que não se definem,
perpassa a sociedade que não se estabiliza e alcança o indivíduo que não se encontra –
traço tão característico da contemporaneidade. Esse é o quadro de um mundo onde
impera a ausência de absolutos.
O homem pós-moderno encontra no relativismo o desencontro consigo
mesmo. Isso em relação à fé é ainda mais catastrófico, pois a via-de-mão-única para
Deus, propalada no passado, já não tem seu locus na concepção contemporânea. É como
se encontrar num quarto escuro tateando a saída e descortinasse diante de si, não “a
saída”, mas milhões de alternativas que não oferecessem “a saída”, porém, evasivas.
Assim, o homem pós-moderno vive de paliativos enquanto espera a cura.
O cristianismo, enquanto fenômeno religioso, portanto desvinculado de
a-temporalidade, não está isento das indefinições e contra-definições conceituais. No
âmago do cristianismo está a Pessoa de Cristo, base de sustentação de todo sistema
cristão. Em última instância seu conhecimento vem do mistério divino auto-revelado.
Contudo, tal mistério é pensado e dogmatizado na história. Destarte, sujeito a
formulações nem sempre verdadeiras.
Num mundo onde impera a crise da ausência de absolutos, a ortodoxia da
igreja, sustenta o dogma do Cristo como Pessoa divino-humana. Um absoluto em meio
64
a um universo de alternativas relativas. Embora contestado, o dogma permanece
impoluto no seio da igreja.
A História como ciência da cultura contribui sobremaneira para a
compreensão desse dogma.
Afinal, onde está a verdade? A verdade está nos documentos, como
propalaram os positivistas? Está no conceito? Está na cultura? (Entenda-se como cultura
o sentido que lhe atribui a Nova História, ou seja, todo traço ou vestígio criado e
deixado pelo homem).
A verdade está na Revelação e dela flui para a comunidade cristã,
responsável pela organização, sistematização e formulação dogmática. O papel da
História, qualquer que seja o paradigma de abordagem, é fazer a ponte entre o sujeito
epistêmico e à comunidade onde o dogma fora formulado. Uma vez que a verdade flui
da Revelação para a comunidade, é mister saber como a comunidade a entendeu.
Somente a História pode promover essa interação com a comunidade. E a partir dessa
interação o dogma pode ser melhor compreendido.
A moderna rejeição dos absolutos trás consigo, subliminarmente, um clamor
por socorro. Enquanto duvida, o homem “acredita” poder encontrar algo confiável. A
busca, nem sempre consistente, o leva muitas vezes a andar em círculos. Talvez esse
seja o alto preço que teve que pagar pela modernidade e muito mais alto pela pós-
modernidade. Quem sabe o homem contemporâneo pudesse ser mais feliz trocando
todas as complexas incertezas conquistadas pela certeza, por mais simples que fosse!
A História é o viés que pode possibilitar esse encontro. Por mais paradoxal
que possa parecer, a História como via de mão dupla, promove uma relação dialética
65
entre o passado e o presente. Assim, na compreensão do passado, o presente pode
encontrar os absolutos que dão sentido à vida.
Destarte, nessa via de mão dupla é que o homem deve caminhar. Ir e vir,
levando dúvidas, trazendo respostas. Às vezes, mais dúvidas! Contudo, não se pode ser
ingênuo o bastante para crer que todas as dúvidas serão dirimidas e todas as respostas
encontradas. Não obstante, o caminho deve ser explorado. Mesmo porque, embora nem
todas as respostas sejam encontradas, o caminho estará aberto até que a história se
consuma.
66
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69
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................2
CAPÍTULO I.....................................................................................................................4
ALGUMAS RAZÕES PARA O SURGIMENTO DE CONCÍLIOS ECUMÊNICOS NA
ANTIGÜIDADE...............................................................................................................4
1.1 – Expansão do Cristianismo....................................................................................4
1.2 – Diversidade Cultural no Império Romano...........................................................6
1.3 – Legalização do Cristianismo................................................................................7
1.4 – Necessidade de Unidade da Igreja........................................................................7
1.4.1 – Dogmática......................................................................................................8
1.4.2 – Disciplinar.....................................................................................................8
CAPÍTULO II..................................................................................................................12
ALGUMAS DISTORÇÕES SOBRE A PESSOA DE CRISTO QUE LEVARAM AO
CONCÍLIO ECUMÊNICO EM NICÉIA........................................................................12
2.1 – Gnosticismo........................................................................................................12
2.2 – Adocionismo.......................................................................................................14
2.3 – Monarquianismo.................................................................................................14
2.4 – Arianismo...........................................................................................................16
CAPÍTULO III................................................................................................................18
O CONCÍLIO DE NICÉIA (325)....................................................................................18
3.1 – Convocação........................................................................................................18
3.2 – Pressupostos Filosóficos.....................................................................................20
3.2.1 – Neoplatonismo.............................................................................................21
3.2.2 – Orígenes.......................................................................................................22
3.2.3 – Conceito de Logos.......................................................................................24
3.3 – Elaboração de uma Cristologia Nicena – Afirmação da Divindade de Cristo. . .25
CAPÍTULO IV................................................................................................................29
CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA (451)...........................................................................29
4.1 – Entre Nicéia e Calcedônia..................................................................................29
4.1.1 – Apolinarismo...............................................................................................29
4.1.2 – Nestorianismo..............................................................................................30
70
4.1.3 – Cirilo de Alexandria....................................................................................31
4.1.4 – Eutiquianismo..............................................................................................32
4.2 – Convocação do Concílio.....................................................................................33
4.3 – Elaboração de uma Cristologia Calcedônica –...................................................34
Afirmação da Humanidade de Cristo..........................................................................34
CAPÍTULO V.................................................................................................................36
TRANSIÇÃO DO PERÍODO MEDIEVAL PARA O PERÍODO MODERNO
(XIV – XV – XVI)..........................................................................................................36
5.1 – Renascimento e Humanismo..............................................................................37
5.2 – Reforma Protestante...........................................................................................40
CAPÍTULO VI................................................................................................................44
ALGUMAS RAZÕES PARA O SURGIMENTO DE CONFISSÕES DE FÉ NO
PERÍODO PÓS-REFORMA...........................................................................................44
CAPÍTULO VII...............................................................................................................47
AS DUAS NATUREZAS DA PESSOA DE CRISTO NAS PRINCIPAIS
CONFISSÕES REFORMADAS.....................................................................................47
7.1 – Confissão Belga (1561)......................................................................................47
7.2 – Segunda Confissão Helvética (1562).................................................................49
7.3 – Catecismo de Heidelberg....................................................................................50
7.4 – Confissão de Westminster (1648)......................................................................51
CAPÍTULO VIII.............................................................................................................53
O DOGMA CRISTOLÓGICO DA PESSOA TEANTRÓPICA NA TEOLOGIA
REFORMADA................................................................................................................53
8.1 – Conceito de Dogma............................................................................................53
8.2 – Divindade da Pessoa de Cristo...........................................................................55
8.2.1 – “Unigênito do Pai”......................................................................................56
8.2.2 – Características de messianidade..................................................................58
8.2.3 – Autoridade para perdoar pecados................................................................58
8.3 – Humanidade da Pessoa de Cristo.......................................................................59
8.4 – Unidade da Pessoa de Cristo..............................................................................62
CONCLUSÃO.................................................................................................................65
BIBLIOGRAFIA 68
71
72