Um direito sem faticidade: Uma (des)leitura da teoria do ... · Diante disso, o direito deveria...
-
Upload
vuongtuyen -
Category
Documents
-
view
214 -
download
0
Transcript of Um direito sem faticidade: Uma (des)leitura da teoria do ... · Diante disso, o direito deveria...
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
177
Um direito sem faticidade: Uma (des)leitura da teoria dofatojurídicoAlawwithoutfacticity:An(un)readingtheoryoflegalfact
LenioLuizStreckUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail:[email protected]
DanielOrtizMatosUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail:[email protected]
Artigorecebidoem21/09/2016eaceitoem24/03/2017.
ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
178
Resumo
Estetrabalhoprocuradesenvolveruma(des)leituradaTeoriadoFatoJurídicodePontes
de Miranda por intermédio de um exercício de Filosofia no Direito e do método
fenomenológico hermenêutico. Ou seja, compreendendo os paradigmas filosóficos
como standards/vetores de racionalidade em que se assentam os paradigmas
científicos, busca-se desvelar qual seria o arcabouço filosófico em que fundamenta o
projetopontesiano.
Palavras-chave:PontesdeMiranda;TeoriadoFatoJurídico;Wittgenstein.
Abstract
This paper aims to develop a (un)reading of Theory of Legal by Pontes de Miranda
through an exercise of Law’s Philosophy and the hermeneutic-phenomenological
method. This is, comprising the philosophical paradigms such as rationality/vectors
standards in which scientific paradigms based, seeks to unveil what would be the
philosophicalframeworkthatunderliesthePontes’sproject.
Keywords:PontesdeMiranda;TheoryofLegalFact;Wittgenstein.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
179
1.Introdução
Harold Blomm1diz que o olhar para um texto é, na realidade, uma abertura para as
diversas(inter)relaçõesdetextos.Assim,qualquerleituraseperfazcomoumatocrítico
deconstante(des)apropriaçãodesentidos.Partindodessapremissa,descortina-seesta
reflexão.
A proposta é situar a Teoria do Fato Jurídico de Pontes de Miranda neste
ambiente textual e inter-relacional sob o prisma de uma perspectiva denominada de
Filosofia no Direito2. Ou seja, buscar-se-á compreender quais seriam os pressupostos
filosóficossubjacentesnestaconstruçãoteóricapontesiana.
Diante da vastidão intelectual da produção de Francisco Cavalcanti Pontes de
Miranda, o objeto de análise deste trabalho circunscreve-se a sua Teoria do Fato
Jurídico 3 . E dentro desta, as questões de base, tais como: 1) a relatividade do
conhecimento;2)oconceitodemundo(jurídico);3)odireitocomosistemalógico;4)a
regrajurídicaenquantoumaproposiçãologicamenteestruturada;ainterpretaçãocomo
“revelação”. Neste sentido, não será feita uma abordagem dogmática sobre os três
planos–existência,validadeeeficácia–, tampoucoacercadostiposde fatos jurídicos
existentes.
OobjetivoprimazéaassentarolugardefalaemquerepousaateoriadePontes
deMiranda.Note-sequeojuristabrasileirofoiumerudito,transitavapordiversasáreas
do saber, com isto não se quer reduzir em demasia as diversas influências que
provavelmente teve, mesmo que nem sempre as referenciasse. A ideia é perceber
1BLOOM,Harold.Ummapadadesleitura.RiodeJaneiro:Imago,1995.AmençãofeitaaBloomnaaberturado artigo não representa a metodologia aqui empregada. Conforme expresso também na introdução, o“método”utilizadoéfenomenológico-hermenêutico.Nãoobstante,apremissadeBloomdequeolharparaum texto é um deparar-se com uma inter-relação de textos, ainda que não demos conta disto, éamplamente compatível com a tradição hermenêutica que partilhamos e com o modo como estainvestigaçãoé feita.Nestes termos, olharpara aTeoriado Fato Jurídico dePontesdeMirandaé ver umfeixedetextosquelhesãocondiçãodepossibilidade.Dentreestes,buscamosdesvelaraquelesdenaturezafilosófica.Assim,trazerestaperspectivadacríticaliterária,enriquecenossapercepçãobemcomonossituanumespaçointerdisciplinartãonecessáriaparaacompreensãodofenômenojurídico.2Sobreessaabordagem,ofilósofoErnildoSteinlecionaque:ParaenfrentaressaquestãoéprecisoencarardefrenteacontribuiçãodosstandardsderacionalidadequeaFilosofiadesenvolvequandoelaémaisqueuma simples retórica ornamental ou orientação na perplexidade. [...] Dessa maneira, qualquer campoteóricododireitopodeesperarrespostasimportantesdeumstandardderacionalidadefilosófico.Isso,noentanto,pressupõequeocampoteóricodoDireitosevinculeadeterminadoparadigmaquelhedásustentonométodoenaargumentação.STEIN,Ernildo.Exercíciosdefenomenologia:limitesdeumparadigma.Ijuí:Ed.Unijuí,2004.p.136-137.3DiantedaextensabibliografiadePontesdeMirandaopresenteestudoselimitará,porfinsmetodológicos,aTeoriadoFatoJurídicoexpostanasobrasTratadodeDireitoPrivadoTomoIeTratadodasAçõesTomoI,ambasemcotejocomolivroSistemadeCiênciaPositivadoDireito,todasdoreferidojurista.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
180
certas aproximações comumadeterminada concepção filosófica–oquenão significa
quesejaestaexclusiva–masquetevealgumpredomínio.
Soboaspectometodológico,esteestudo faráusodométodo fenomenológico
hermenêuticoque,demodoresumido,podeserentendidocomoumrevolverdochão
linguísticoemque se assenta certa tradiçãono intuitode seobteruma compreensão
maisorigináriadofenômeno.Nocaso,ateoriadofatojurídicoserádeslidanointuitode
descobriroqueseescondepordetrásdesuaformulação,ouseja,oarcabouçofilosófico
quelhesustenta.
O artigo está dividido em três partes. Na primeira é feita uma abordagem
expositivadateoriadoFatoJurídicodePontesdeMiranda.Nasegundaseráfeitaasua
(des)leitura teórica desta, demonstrando suas aproximações com Hans Kelsen bem
comoasinfluênciasquesofreudoNeopositivismoLógico,comdestaque,àFilosofiada
Linguagem do primeiro Wittgenstein. Na terceira e última, a discussão se volta ao
segundo Wittgenstein e de como este desconstruiu seus próprios pressupostos,
fragilizando, assim, consequentemente, a teoria de Pontes. Ademais, será feita uma
abordagemcríticademonstrandocomoapropostaponteseanaeradeumDireitosem
faticidadealuzdeumacompreensãohermenêutica.
Espera-se que ao final este escrito possa contribuir para leituras e escritos
outrosacercadoempreendimentoteóricodePontesdeMiranda,certamente,umdos
expoentesmaiselevadosdaCiênciaJurídicaemterraebrasilis.
2.AteoriadoFatoJurídicodePontesdeMiranda
Antesdetratarespecificamentesobreateoriadofatojurídicocumpredestacar,mesmo
quedeformamuitobreve,algunsapontamentosbasilaresdopensamentodePontesde
MirandadesenvolvidasemsuaobraSistemadeCiênciaPositivadoDireito.
Pontes defendia a ideia de uma relatividade gnosiológica 4 em que o
conhecimento do real não resulta de um conceito das coisas em-si,mas sim de suas
interelações5.PartindodosofistaProtágorasedesuamáxima–“ohomeméamedida
4 “A relatividade do conhecimento é princípio assaz geral, porque resulta de nós mesmos, daimpossibilidadedeseperceberacoisa,emsua inteirezaeemsua íntimaessência”.Cf.MIRANDA,Pontesde.Sistemadeciênciapositivadodireito.TomoI.Campinas:Bookseller,2000.p.1095Ibidem,p.76.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
181
detodasascoisas”-ojuristaargumentavainexistirverdadesindependentesdosujeito,
ou seja, objetivas. Sendo, portanto, a finalidade da ciência a formulação de uma
convicçãosubjetiva6.
Nãoobstanteaorelativismo,aomenosumaafirmaçãoseriainconteste,aqueo
mundomaterial existe.Contudo,aperspectivahumanaque se temda realidade seria
uma(re)construçãodorealcircundante.Asciências,portanto,estariamcircunscritasno
conceitodefato,aindaquedeordensdiferentes.Nestalinha,Pontesafirmaque:
Tudooquepodeserconteúdodaconsciênciaéfato.Somenteoquenosdáasensaçãoourepresentaçãosãoelementosdonossomundo:assim, para os seres, não o próprio ser, mas as cores, o som, aelasticidade,oespaço,otempo,équeconstituemtaiselementos.Acoisa, o ser, é símbolo de pensamento para certo complexo desensaçõesderelativaestabilidade.Oobjetodoconhecimentosãoasrelaçõesenãoosseres7.
Diantedisso,odireitodeveriaafastar-sedasabstraçõesparaviverdarealidade
social, pois são as relações sociais os fatos a serem observados, sobretudo, em sua
conexãosimbólicacomasregras jurídicas.Estas,porsuavez“incidemnoespaçoeno
tempoaqueelas sedestinam.Umavezque compõem todoo suporte fático, a regra
jurídicacomoquecoloreoquesecompôs”8.
Assim, para Pontes na aplicação do Direito dois processos deveriam ser
sublinhados: “1) a análise dos conceitos contidos na norma jurídica e, mais
profundamente,daclassedasnormas;2)aanálisedasrelaçõesquetêmdeserregradas
pelalei”9.
NotratadodeDireitoPrivado(TomoI) jáno iniciodoprefácioo juristafazum
afirmaçãocategóricaelapidar:“ossistemajurídicossãosistemaslógicos,compostosde
proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos interesses mais
diversos10”.Estalogicidadeseriaprovenientedaestruturadasregrasjurídicas,quenão
diferentedasdemaisproposições,usariamconceitoscorrespondentesàrealidade,afim
deasseguraracertezaquantoasuaincidência11.
6Ibidem,p.77.7Ibidem,p.83.8Ibidem,p.99.9Ibidem,p.9910MIRANDA,Pontesde.Tratadodedireitoprivado.1.ed.TomoI.Campinas:Bookseller,1999.p.1311Cf.MIRANDA,Pontesde,1999.p.13.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
182
Comesteprocessoossimplesfatosseriammarcadospela“imposição”daregra
tornando-se jurídicos, e, por isto ingressariam no mundo juridicus. Com isto, nas
relações sociais, o direito seria uma espécie de ordenador do caos (redutor de
complexidade), istoé, imporiaaodevircertaordemque lhepermitisseaestabilização
dasrelaçõessociais12.
A aplicação de uma determinada regra jurídica decorreria da determinação
semântica de seu conteúdo, o que seria realizado pelo intérprete e de modo não
arbitrário.Eistosomenteteriasentidodentrodeumaconcepçãodelinguagememque
cada conceito jurídico presente na regra pudesse ser observado nas relações sociais,
afastando,portanto,dúvidasquantoasuaaplicabilidade.Nestesentido,Pontesdeclara:
Osistemajurídicocontémregrasjurídicas;eessasseformulamcomosconceitosjurídicos.Tem-sedeestudarofático,istoé,asrelaçõeshumanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual osuportefático,aquilosobreoqueelasincidem,apontadoporelas13.
O juristaexemplifica istoapartirdoart.1°doCódigoCivil,àépoca,queassim
prescrevia:“Todohomemécapazdedireitoseobrigaçõesnaordemcivil”.ParaPontes,
este seriaumsuporte fáticomuito simples, centradonoconceitode “Homem”.Deste
modo, havendo um ser humano vivo, logo se teria a incidência do comando legal14.
Destarte,osconceitosdeveriamserexatoseprecisosdirimindoassimdúvidasquantoà
incidênciaounãodeumadeterminadaregrajurídica.
Todavia,sendoodireitoentendidodemodosistemáticoainterpretaçãodeum
comando legal nunca se daria de modo isolado, ao revés, demandaria uma
compreensão do todo, para após revelar seu conteúdo, mantendo a consonância
sistêmica15.
Pontesobservaqueessa“revelação”nãoseriadeumavontadeobjetivada lei
insculpida pelo legislador, pois diante do caráter histórico haveria sempre verificar os
12SobreistoPontesafirmaque:Medianteestasregras,consegueohomemdiminuir,demuito,oarbitráriodavidasocial,adesordemdosinteresses,otumultuáriodosmovimentoshumanosàcatadoquedeseja,oudoquelhesatisfazalgumapetite.MIRANDA,Pontesde.Tratadodasações.TomoI.Campinas:Bookseller,1998-1999.p.13.13Idem,1999.p.1514Cf.Ibidem,p.15.15Ibidem,p.15-16.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
183
conteúdosdiantedarealidadepresente,eistoemconformidadecomaspossibilidades
dosistema16.
Deste modo, a ciência do direito teria como função precípua efetuar uma
limpeza semântica do conteúdo das regras a fim de manter a pureza lógica e a
completudedosistemajurídico.Emsuaspalavras,Pontesdefineque:
A atividademais relevante da ciência do direito consiste, portanto,emapontarquaisostermos,comquesecompuseramecomoquesehãodecomporasproposiçõesouenunciados,aquesedáonomede regras jurídicas, e quais as regras jurídicas que, através dostempos foram adotadas e aplicadas. A sucessão histórica dessasregrasobedecealeissociológicas.Outraatividade,quenãoémenosinestimáveldoqueaquela,estánointerpretaroconteúdodasregrasdecadamomentoe tirardelas certasnormasaindamaisgerais,demodoaseteremquasecompletaplenitudeosistemajurídico17
Dentrodaproposta teóricapontesianaanoção fundamentaldodireitoéade
fato jurídico18, que surge a partir da incidência de uma regra19. A soma destes fatos
constituiriaomundojurídico,queporsuavezestariacontidonomundodosfatos.Este
esquema pode ser explicado num raciocínio desenvolvido pelo próprio Pontes, que
assimexpôs:
(a) Omundojurídicoestánoconjuntoaquesechamaomundo.(b) Omundoconcorrecomfatosseusparaqueseconstruaomundo
jurídico;porémeste selecionaeestabelecea causação jurídica,nãonecessariamentecorrespondenteàcausaçãodosfatos.
(c) Ajuridicizaçãoéoprocessopeculiaraodireito;noutrostermosodireito adjetiva os fatos para que sejam jurídicos (= para queentremnomundojurídico)20.
Estadistinçãoentreomundofáticoeomundojurídicotambéméretomadapor
PontesjuristanoTratadodasações(TomoI).Nesteeleafirmaque:
Os conceitos que usa o jurista são conceitos de dois mundosdiferentes:omundofático,emquesedãoosfatosfísicoseosfatosdomundojurídico,quandotratadossomentecomofatosdomundofático e omundo jurídico em que só se leva em conta o que neleentrou,coloridopelaregrajurídicaqueincidiu21.
16NestesentidodeclaraPontes:Daí,quandoselêalei,emverdadeseteremmenteosistemajurídico,emqueelaentra,eselernahistória,notextoenaexposiçãosistemática.Ibidem,p.18.17Ibidem,p.19.18Cf.Ibidem,p.20.19Nestalinha,Pontesdeclaraque:Quemdiz“aíestáosistemajurídico”dizháelementosfáticossobreosquais incidiu regra jurídica. Tal regra pode ser escrita, ou não escrita; em ambos os casos, faz parte dosistemajurídico,queéumcálculológico.Ibidem,p.21.20Ibidem,pp.51-52.21Idem,1998-1999.p.21.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
184
A respeito do surgimento das regras jurídicas Pontes formula um argumento
histórico-antropológico.Parao jurista,oserhumano,diantedetodaasuaexperiência
concretacomarealidadecircundante,passouareconhecer-secomosujeito(sub-iectus).
Nesteprocesso,natentativadeordenarocaos,passouadarordemeprevisibilidadeaos
fatosdavidacomum.Esteseriaogérmen,aindaqueinconsciente,dasregrasjurídicas22.
Por isso, a regra jurídica já nasceria coma indicaçãodos fatos sobreos quais deveria
incidir.
Neste sentido a regra jurídica funcionaria como a técnica que, como a sua
incidência,tornariajurídicososfatosqueoutrorapertenceriamtãosomenteaomundo
fático. Esta regra seria uma proposição, escrita ou não, logicamente estruturada em
antecedenteeconsequente(dadoa,bouc;entãoF).
Osfatosque ingressamnomundo jurídicoteriamcomopressupostoosuporte
fáticodasregrasque,comoumfiltro,definiriaajuridicidadeda(s)ocorrência(s).Coma
incidência da regra jurídica, os suportes fáticos seriam convertidos em fatos jurídicos.
Assim, as regras jurídicas seriam semelhantes a leis da mecânica na física, porém,
voltadasparaaordenaçãoecoordenaçãodavidasocial23.
Aincidênciadasregrasjurídicasseriaumadecorrênciadarealizaçãodosuporte
fáticonomundodosfatos,tornando-os,“automaticamente”jurídicos.Istoocorreriano
mundo dos pensamentos, por isso a aplicação e\ou atendimento do comando legal
poderianãocoincidircomasuaincidência24.
OutroelementofundanteparaPonteséosuportefático(Tatbestand).Esteseria
o fato, ou conjunto deste, que compõe a regra jurídica e delimita seu espectro de
incidência. O jurista entendia que inúmeros fatos do mundo poderiam ingressar no
mundo jurídico por intermédio da regra jurídica. No entanto, com o suporte fático
haveria uma distinção entre fatos relevantes e irrelevantes para o direito oumesmo
ajurídicos.
22CumprenotarqueemPontesestacriaçãoaparentanãoserarbitrária,poishaveriaalgumabasenaturalque limitaria, ou menos, influenciaria neste processo. Esta suposição pode ser observada no excertoseguinteemqueestácomentandosobreosurgimentodasregrasjurídicas:“Nãoexageremos,porém,essepapeldepensamento.Associedadesanimaiseassociedadeshumanassãosubordinadasaleisdesimetriacomotodososfatosdomundoinorgânico”.Ibidem,pp.22-23.23Cf.Idem,1999.p.5624Cf.Ibidem,p.62-63.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
185
Ofatojurídico,portanto,seriao“queficadosuportefáticosuficientequandoa
regrajurídicaincideeporqueincide25”.Portornar-seumfatodomundododireito,isto
é, por existir nesta dimensão, é que poderia se falar de uma eficácia. Neste sentido,
MarcosBernardesdeMellofrisaqueháduasconotaçõesquedevemserconsideradas
ao tratar do suporte fático, quais sejam: “a) uma que designa o enunciado lógico da
norma em que se representa a hipótese fáctica condicionante de sua incidência; b)
outra,quenomeiaoprópriofatoquandomaterializadonomundo26.”
Comodecorrência,avidadosfatosjurídicosseriacompreendidaemtrêsplanos:
o da existência, da validade, e da eficácia. Esta distinção lógica, com consequências
jurídicasdiversas,buscavadelimitar“oser”,“oserválido”,e“osereficaz”dosfatosdo
direito, o que para Pontes ainda não era levado em conta de modo adequado pela
doutrinacivilistapátria.
Oplanodaexistênciaseriaadimensãosinequanondosdemais,seriaoreinodo
ser.Neleencontrar-se-iamtodososfatosjurídicos.Oplanodavalidadereferir-se-iaaos
fatosqueporpossuíremavontadehumanacomoelementonucleardemandariamuma
análisequantoasuaperfectibilidade, istoé,umaverificaçãoseháounãoalgumvício
invalidante. Já o planoda eficácia trataria dos efeitos dos fatos jurídicos que criariam
situações/relaçõesjurídicas.
3.AteoriadoFatoJurídiconasentrelinhas:oudoqueescondenaquiloquesemostra
Na parte anterior foi feita uma abordagem descritiva da Teoria do Fato Jurídico de
Pontes de Miranda. Nesta seção, os aspectos gerais de base desta construção serão
(des)lidosapartirdaFilosofia,procurandodesvelarosvetoresderacionalidade(Stein)
quelhesserviramdesustentáculo.
Os pontos de análise sobre a Teoria do Fato Jurídico serão: 1) relativismo do
conhecimento;2)Aconcepçãodemundocomototalidadede fatos;3)odireitocomo
sistema lógico; 4) a regra jurídica como uma proposição logicamente estruturada 5)
limites de inteligibilidade da ideia de suporte fático, e 6) a interpretação como
25Ibidem,p.126.26MELLO,MarcosBernardesde.Contribuiçãoateoriadofatojurídico.2.ed.Maceió:1982,p.26.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
186
“revelação”.Esta separação temfinsapenasmetodológicos,naconstruçãopontesiana
todosestesaspectosestãoconcatenados,comoserádemonstrado.
Pontesacreditaqueoconhecimentodarealidadeérelativoaosujeito,ouseja,
não é um dado que possui um sentido essencial. Ademais, a ideia sobre os entes
tambémnãoseriaresultantedeumrecorteisoladodeumaporçãodoreal,aocontrário,
estes se apresentariam inter-relacionados sendo possível (apenas) conhecer estas
relações.
Destemodo,omundonãoécompreendidoobjetivamentecomoquedotadode
umsentidointrínseco,aorevés,éumaconstruçãoqueordenaocaos:
Avidaéumasucessãopermanentedefatos.Desdeonascimentoatéa morte, com todos os atos que integram a vida, desde a estrelacadentequevai-e-vemdaondadomar,tudoquenoscerca,físicaoupsiquicamente, são fatos. O “mundo mesmo”, na expressão dePontesdeMiranda,“emquevemosaconteceremosfatoséasomadetodososfatosqueocorrerameocampoemqueosfatosfuturosvãodar”27.
O mundo é entendido com uma totalidade de fatos, sendo alguns destes
irrelevantes ao direito. Destamaneira, abarca dentro de si, como um subconjunto, o
mundojurídicoque,porconsequência,seriacompostodatotalidadedosfatosjurídicos.
Estes não seriam assim naturalmente, mas assumiriam esta “natureza” devido à
incidência normativa que impõe esta adjetivação. Deste modo, Pontes define: “o
mundo jurídico, que é o mundo físico em que as regras jurídicas incidem, fazendo
jurídicosfatosque,semelas,estariamsemessacolocaçãoqueohomemlhesdeu28”.
Assim, “o sistema jurídico, que é um sistema lógico, há de ser entendido em
toda a sua pureza29”. O dever ser, a incidência, não opera no mundo ser, natural,
diferentemente,sedánumplanológico:
Osistemadeproposiçõesdaciência jurídicanãosedirigeaosfatos,acrescentemos, sem a mediação das proposições jurídicas quequalificam os fatos. Sem as proposições normativas do direitopositivo, nenhum fato do mundo pertence ao universo jurídico.NormasefatossãoFormundStoffnoserintegraldoDireito30.
Vilanova entende que a expressão da linguagem jurídica é ambígua e se
manifesta em níveis diferentes. O nível da ciência do direito – e nesta se insere o
27Ibidem,p.18.28Idem,1998-1999,p.23.29Ibidem,p.16.30VILANOVA,Lourival.Asestruturas lógicaseosistemadodireitopositivo.1.ed.SãoPaulo:RevistadosTribunais,1977,p.118.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
187
empreendimentopontesiano–eoníveldodireito,propriamentedito31.Esteserviriade
objeto para aquele. As normas seriam proposições prescritivas e a ciência fariam
descriçõesdestas,formalizandoumsistemalógico.
As regras jurídicas, à primeira vista, encobririam as suas formas lógicas em
virtudedas referências aos fatosdomundoque integram seuuniverso. Retomandoo
próprioexemplotrazidoporPontesdoart.1°doCódigoCivil–“Todohomemécapazde
direitos e obrigações na ordem civil” – na linguagem simbólica seria: havendo F (ser
homem),logoS(capacidadedeterdireitoseobrigações).
ParaPontes a regra jurídica, quepermite a entradadedeterminados fatosno
mundo jurídico (suporte fático), há de ser interpretada, sendo seu sentido uma
“revelação”. Em outras palavras, não seriam criadas no ato interpretativo. Contudo,
diantedosdoisníveisdalinguagem,sualiteralidadenãoseriaprovenientedalinguagem
comum/ordinária, mas sim da Ciência do Direito que conseguiria, artificialmente,
expurgarambiguidadesecontradiçõesdosistema.Desta forma,sobreoconteúdodas
regrasjurídicasojuristaafirmaque
Tem-se de interpretar, primeiro, gramaticalmente, mas já aí aspalavras podem revelar sentido que não coincide com o dicionáriovulgar(podeláestarrescisão,etratar-sederesolução;podeláestarcondição,enãoserdecondicioquesehádecogitar;podefalar-sedeerro, e só se dever entender o erro de fato, e não de direito). Osentidoliteraléosentidoliteraldaciênciadodireito,tendoemvistaqueopróprioredatordaleiaoredigi-la,exerciafunçãodadimensãopolítica, e não da dimensão jurídica, pode não ser jurista ou maujurista,oufalsojurista,oqueépior32.
AlgumasaproximaçõesjápodemserobservadasentreaTeoriadoFatoJurídico
eaTeoriaPuradoDireitodeHansKelsen.Logodeiníciopode-seperceberqueambos
osprojetosalmejamumapurezametodológica33destinadaaosseusempreendimentos
científicosenãoaoDireitoenquantoumapráxissocial.Kelsenfazquestãodefrisarque
(…) la teoríapuradelderechoesunateoríapuradelderecho,no lateoría de un derecho puro como sus críticos han afirmadoerróneamenteaveces.Underecho“puro”podríasolosignificar–siesquepuedesignificaralgo–underechorectoesdecirunderecho
31Ibidem,p.25.32Idem,1999,p.18.33AcercadestacaracterísticateóricaemHansKelsen–note-sequeestatambémpodeservistaemPontesde Miranda – Wayne Morrison acentua que: “A teoria trata do Direito simplesmente em termos deestrutura formal, deixando todas as questões de propósito ou conteúdo para além dos interesses doscientistasjurídicos,tendoasua“pureza”qualificadacomoumestreitamentodopapeldateoriajurídicanateorizaçãosobreomundosocial”.MORRISON,Wayne.Filosofiadodireito:dosgregosaopós-modernismo.SãoPaulo:MartinsFontes,2006.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
188
justo.Pero la teoríadelderechonoquierenopuedeseruna teoríadel derecho recto o justo pues no pretende dar respuesta a lapregunta:¿quéeslojusto?Entantocienciadelderechopositivoes–como ya se ha dicho- una teoría del derecho real, del derecho talcomo es creado realmente por la costumbre, la legislación o ladecisiónjudicialytalcomoesefectivamenteenlarealidadsocial,sinentrar a considerar si este derecho positivo puede ser calificadodesdeunpuntodevistadealgúnvalor,esdecir,desdedeunpuntode vista político, como bueno o malo, como justo o injusto; tododerechopositivopuedeserconsideradocomojustodesdeunpuntode vista político y como injusto desde otro punto de vista tambiénpolítico; pero esto no puede suceder desde el punto de vista de laciencia del derecho que como toda ciencia verdadera no valora suobjeto sino que lo describe, no lo justifica o condenaemocionalmente,sinoqueloexplicaracionalmente.34.
Deste modo, para Kelsen a interpretação científica seria um ato de
conhecimento,“puradeterminaçãocongnoscitivadosentidodasnormasjurídicas35”.No
âmbito da Recthswissenschaft, ao intérprete caberia apenas apresentar com
neutralidade e imparcialidade as significações normativas possíveis. A pureza buscada
somente seria possível cindindo a linguagem em dois níveis, o nível lógico-científico
(descritivo) e o nível da aplicação concreta do direito (prescritiva). A teoria do Fato
JurídicodePontestambémpressupõeestadistinção.
Noutropasso, tantoPontescomoKelsenpartemdeumaconcepção relativista
para construir suas teorias. Kelsen afirma categóricamente que: “la teoría pura del
derecho es positivismo jurídico, el simplemente la teoría delpositivismo jurídico, y el
positivismojurídicoestaíntimamenteligadoconelrelativismo36”.Comistoojuristase
apartava do Jusnaturalismo que buscava um fundamento último (metafísico) para o
direito.Assim, para ambos a origemdodireito seria a vontadehumana.Destemodo,
34KELSEN, Hans.¿ Qué es la Teoría Pura del derecho? 5. ed. Colonia del Carmen-MEX: DistribucionesFontamara,1997,p.31.LivreTradução:(…)ateoriapuradodireitoéumateoriapuradodireito,nãoumateoriadodireitopurocomoseuscríticostemafirmadoerroneamenteasvezes.Umdireito“puro”somentepoderiasignificar–seéquepodesignificaralgo–queumdireitoretoédireitojusto.Masateoriadodireitonão quer e não pode ser una teoria do direito reto ou justo, pois não pode pretender dar a resposta àpergunta:oqueéojusto?Aciênciadodireitopositivoé–comosetemdito–umateoriadodireitoreal,dodireito tal como é criado realmente pelo costume, pela legislação ou a decisão judicial e tal como éefetivamentenarealidadesocial,sementrarnaconsideraçãoseestedireitopositivopodeserqualificadodesdeopontodevistadealgumvalor, istoé,desdeumpontodevistapolítico,comobomoumal,comojustoouinjusto;todoodireitopositivopodeserconsideradojustodesdeumpontodevistapolítico;masistonãopodeacontecerdesdeumpontodevistadaciênciadodireitoquecomotodaaciênciaverdadeiranão valora seu objeto apenas o descreve, não o justifica ou o condena emocionalmente, mas o explicaracionalmente.35KELSEN,Hans.Teoriapuradodireito:introduçãoàproblemáticacientíficadodireito.Trad.J.CretellaJr.eAgnesCretella.6.ed.rev.datradução.SãoPaulo:EditoraRevistadosTribunais,2009.p.370.36Idem,1997,p.31.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
189
diferente de uma ciência natural, o elemento volitivo é que torna algo como jurídico
medianteumaimputação(Kelsen),umaincidência(Pontes).
Diante destas similaridades, pode-se inferir que Pontes de Miranda e Hans
Kelsen37partilhavam, ainda que parcialmente, de um mesmo background filosófico.
Neste sentido, apresenta-se o Neopositivismo Lógico do Círculo de Viena e suas
elaboraçõessobreaCiência,comoummovimentoqueinfluenciouoprojetoteóricodos
doisjuristas.
Em síntese, o Neopositivsimo Lógico constitui-se em ummovimento formado
porfilósofosecientistasdeváriasáreasdosaber,quesereuniamemVienanaprimera
metadedoséc.XIXparadiscutir,dentreoutrostemas,osproblemasdosfundamentos
do conhecimento científico. Dentre os membros proeminentes do Círculo de Viena
encontram-seMoritzSchlick,RudolfCarnap,OttoNeurath,HerbertFeigl,PhilippFrank,
FriedrichWaissman,HansHahn.
No primado de uma razão teórica, intentaram produzir um conhecimento
científico rigoroso e exato, livre das ambiguidades e conceitos vazios de sentido
encontrados na linguagem comum.Dessa forma, pensavamacerca da necessidade de
um outro nível de linguagem, mais lógico-analítico, que dava prevalência às análises
sintáticas (relaçãodos signos comos signos) e semânticas (relaçãodos signos comos
objetos que representam) em detrimento da pragmática (relação do signo com o
emissorereceptordamensagem).
Mesmo não havendo uma unidade filosófica quanto aos meios, o Círculo de
Vienacompartilhavaumprogramacomumquepodesersintetizadoemquatropontos:
1)areduçãodafilosofiaaumateoriadoconhecimento;2)adistinçãodasciências,não
mais em ciências da natureza e ciências humanas, e sim em ciências empíricas e
analíticas; 3) o logicismo como programa de redução das ciências analíticas; 4) o
reducionismo como programa de redução das ciências sintéticas ou empíricas38. O
NeopositivismoLógicoficoutambémconhecidocomoempirismológico/científico.
Nointentodeunificaraciênciapensavamnumametodologiacientíficacapazde
evitarasdisputasmetafísicas.Nessesentido,umadasdoutrinasmaiscaracterísticasfoi
37Destaca-se também, apesar de não ser objeto deste trabalho, que juntamente com o NeopositivismoLógicoHansKelsentambémfoibastanteinfluenciadopeloNeokantismo,tantodaEscoladeMarburgocomdaEscoladeBaden.38QUELBANI,Mélika.OCírculodeViena.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2009.p.17.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
190
denominada de princípio da verificação ou negação, em que a inteligibilidade do
significadodeumaproposiçãoestavacircunscritoasuaverificação(empírica)39.
Neste contexto, forjou-se a concepção fisicalista, que entendia que a
objetividade seria independente da perspectiva humana e que esta seria baseada
apenasemfatosbrutos.Esses fatosestariamcircunscritosàquiloqueseriapassívelde
ser mensurado, quantificado em termos matemáticos. Como resultado ter-se-iam
apenas conceitos extensionais que, acreditavam, não necessitar de um
compartilhamentode formasdevidaparaoseuconhecimento. Istoé,aoafirmarque
águaferveacemgrauscelsius,oenunciadoseriaobjetivamenteválidoeverdadeiroem
qualquerlugarmesmodiantedasidiossincrasiasculturais.
Discorrendosobreainfluênciadestaconcepçãonodireito,CláudioMichelonJr.
Dizque“deumlado,tantorealistasquantoKelsenligamaobjetividade(oquepodeser
descrito)aum“mundofísico”,aum“mundodotempoedoespaço”etc.e,dessaforma,
pretendemprivilegiaraciênciaquesetornouopadrãoparaoconhecimento“absoluto”
(independentementedenossaperspectiva):afísica”40.
Nota-se que isto também é extensível à teoria do Fato Jurídico de Pontes de
Miranda. Observa-se que o mundo jurídico é apenas parte do mundo físico que foi
coloridopelaincidêncianormativa,sendoosuportefáticooelementoindispensávelde
verificabilidade.Masquaisseriamosfatospoderiamsermarcadospelodireito?Pontes
respondeaestaindagaçãonosseguintestermos:
Fatos juridicizáveis (= suscetíveis de entrada no mundo jurídico)podem ser acontecimentos simples, acontecimentos em complexo,estadosouacontecimentos continuativos.Oacontecimento simplesé aquele que não se pode desagregar em dois ou mais. É o fatoatômicodeL.Wittgenstein41.
Qualqueracontecimento,ouseja,umaexternalidadepassíveldecomprovação,
algoqueprovoquealgumaalteraçãonomundofísico,podeconstituirosuportefático.O
que é também bastante significativo neste fragmento é a menção feita ao filósofo
Ludwig Wittgenstein. Diante deste rastro – que permite a inferência acerca do
39Cf.BLACKBURN,Simon.DicionárioOxforddeFilosofia.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,1997,p.304-30540MICHELONJR,CláudioFortunato.Aceitaçãoeobjetividade:umacomparaçãoentreastesesdeHartedopositivismoprecedentesobrealinguagemeoconhecimentododireito.SãoPaulo:R.dosTribunais,2004.p.116-117.41Idem,MIRANDA,Pontesde.1999,p.69.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
191
conhecimento de sua filosofia – cumpre observar se este filósofo exerceu alguma
influênciadebasenoprojetopontesianosobanálise.
Wittgenstein, apesar de não estar entre os membros do Círculo de Viena,
influenciou significativamente este movimento, sobretudo, em sua obra Tractatus
Logico-Philosophicus. Este escrito, um dos principais da filosofia do séc. XX, contém
teses simples, mas que projetam consequências problemáticas. Franca D’Agostini as
resumenosseguintestermos:
O mundo é o conjunto dos fatos, nós formamos imagens dessesfatos, e algumas dessas imagens são “linguísticas”, isto é, sãoproposições.Essasimagenslinguísticastêmdeterminadaforma,temum sentido, tem um valor de verdade (podem ser verdadeiras oufalsas). Ora, tem sentido somente as proposições (verdadeiras oufalsas) que constituem imagens de fatos do mundo (reais oupossíveis)ouqueconstamdeumacomposiçãodetaisimagens.Dissoresulta que as proposições da metafísica, da ética, da teologia(tambémda psicologia ou da estética) são privadas de sentido, e éimpossívelfalardestesargumentosdemodo“sensato”42.
Sobopontode vista ontológicodoTractatus omundoé entendido comoum
conjunto de fatos, ou seja, é composto das relações entre os objetos e não de entes
isolados.Osfatosmanifestam-secomocomponentesbásicosapartirdosquaisomundo
é construído43. Isto já se evidencia na abertura da obra em queWittgenstein assim
declara:
1.Omundoétudooqueocorre.1.1Omundoéatotalidadedosfatos,nãodascoisas.1.11 O mundo é determinado pelos fatos e por isto consistir emtodososfatos.1.12Atotalidadedosfatosdetermina,pois,oqueocorreetambémtudoquenãoocorre.1.13Osfatos,noespaçológico,sãoomundo.1.2Omundoseresolveemfatos.1.21Algopodeocorrerounãoocorreretodoorestopermanecernamesma.2Oqueocorre,ofato,éosubsistirdosestadosdecoisas.2.01Oestadodecoisaséumaligaçãodeobjetos(coisas)44.
Nestaperspectiva,a linguagemse tornauma figuraçãoda realidade.Assim,as
proposições podem ser verificáveis ou não a partir de sua redutibilidade a fatos
observáveis, e por consequência com a aplicação das leis da lógica, atestar a sua42D'AGOSTINI, Franca.Analíticos e continentais: guia à filosofia dos últimos trinta anos. São Leopoldo:UNISINOS,2002.p.30343Cf.MARQUES,Edgar.Witgenstein&oTractatus.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,2005,p.31.44WITTGENSTEIN,Ludwig.TractatusLogicus-Philosophicus.SãoPaulo:CompanhiaEditorialNacional,1968,p.55.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
192
veracidade/falsidade. Destarte, apresentam-se os seguintes aforismas
wittgensteinianos:
4.Opensamentoéaproposiçãosignificativa.4.001.Atotalidadedasproposiçõeséalinguagem45.(...)4.01.Aproposiçãoéfiguraçãodarealidade46.(...)4.1 A proposição representa a subsistência e a não-subsistênciadosestadosdecoisas47.(...)4.2Osentidodeumaproposiçãoésuaconcordânciaousuadiscordância com a possibilidade da subsistência ou não-subsistênciadeestadosdecoisas48.(...)4.3 As possibilidades de verdade das proposiçõeselementaresdenotamaspossibilidadesdasubsistênciaedanão-subsistênciadeestadosdecoisas.(...)4.4 A proposição é a expressão da concordância e dadiscordância com as possibilidades de verdade dasproposiçõeselementares49.
Há para Wittgenstein uma relação entre os fatos e as proposições. O fato
corresponde à realidade, é percebido e projeta uma imagem no pensamento, esta é
expressa linguisticamente (e logicamente) numa proposição. A logicidade das
proposiçõeséumadecorrênciadopensamentoumavezqueesteéumafiguraçãológica
dosfatos50.
Após estas incursões na filosofia do primeiro Wittgenstein51os nexos com a
TeoriadoFatoJurídicodePontesdeMirandasaltamaosolhos,tamanhaasimilaridade,
mesmonãohavendoestereconhecimentoexpressodojurista.
Assim, é possível identificar uma influência wittgensteiniana em Pontes nos
seguintes aspectos: 1) no conceitodemundo físico, comoa totalidadedos fatos ede
mundo jurídico como a totalidade dos fatos jurídicos; 2) na compreensão relacional
acercadoconhecimentosobreascoisasdomundo,ouseja,nãoisolacionista;3)naideia
deregra jurídicacomoumaproposiçãológicaeodireitocomosistemalógicoumavez
45Ibidem,p.70.46Ibidem,p.71.47Ibidem,p.76.48Ibidem,p.82.49Ibidem,p.8450Cf.Ibidem,p.61.51AreferênciaaoprimeiroWittgensteindecorredofatoqueoprópriofilósofoquestionouposteriormentesuasideiasexpressasnoTractatus,períodoquecaracterizaumsegundoWittgensteinequeémarcadocomapublicaçãodasInvestigaçõesFilosóficas.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
193
queambosresultamdopensamentoqueimagina–nosentidodeformarimagens–o
real;4)nosuportefáticocomofiguraçãodosfatos jurídicos5)na ideiade infalibidade
daincidênciaporoperarnomundodopensamentoque,poróbvio,prescindideefeitos
concretosparasuaexistência;6)nainterpretaçãocomo“revelação”,sendoalinguagem
figurativa ela espelha algo que pode ser verificado, isto é, não é uma criação, é um
projetardopensamento.
NadesleituradaTeoriadoFatoJurídicodePontesdeMirandaencontraram-se
as ideiasfilosóficasqueWittgensteinformulounoTractatus,oquestionamentoquese
impõe é: com a superação desta cosmovisão filosófica não ruiria também o edifício
pontesianoqueseassentousobreela?Sobreistoversaráaparteseguinte.
4.WittgensteinII,oproblema:(Pode)umaTeoriadoFatoJurídicosemfaticidade?
Peloque já foi apresentado,pressupõe-sequeaTeoriadoFato JurídicodoPontesde
Miranda foi edificada sobre a filosofia do primeiro Wittgenstein. Diante disto, faz-se
necessárioapresentar,aindaqueemlinhasgerais,arupturaqueofilósofofezcomasua
própria construção. Esta exposição objetiva observar como a teoria pontesiana
sobreviveriaàs(mesmas)críticasfeitasàtradiçãoquelheserviudefundamento.
Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas, expõe todo um repensar de sua
própriafilosofiaexpressanoTratactus,queestavainseridanumaconcepçãoobjetivista
da linguagem. Nesse primeiro momento, o filósofo entendia que a relação entre a
linguagemeomundo sedavamedianteadesignação.O caráterdesignativoera visto
comooprincipalouatémesmooúnicodalinguagem52.Omundoteriaumaexistência
52 Sobre o tema Manfredo Araújo de Oliveira declara que: ‘Precisamente nisso vai consistir para ele alimitaçãodafilosofiaocidentaldalinguagem.Essateoriadesignativadalinguagemassumiuduasformas:háosqueafirmamqueaspalavrasdesignampurae simplesmenteas coisas singulares,pois,alémdecoisassingularesepalavrasnadaexiste.Ou,então,numaoutra linhamuitomais fortenatradiçãoocidental,dizquecomumapalavrapode-sedesignarmuitascoisas,porqueaspalavrasdesignamnãocoisassingulares,masaessência comoamuitas coisas. [...] Em suma, aspalavras têmsentidoporqueháobjetosqueelasdesignam: coisas singulares ou essências. Esses objetos são dos mais diferentes tipos, havendo mesmoobjetosmuitoespeciais,osfatos,assituaçõesobjetais,designadospelasfrases.AúltimaformadestateorianoOcidenteé,exatamente,a teoriadaafiguraçãocomocorrespondênciaentre fraseeestadodecoisas,respectivamente,fatos,elaboradanoTratactus.Afraserepresenta,porsemelhançaestrutural,oestadodecosias por ela referido. A teoria do Tratactus significa, assim, uma reformulação da teoria tradicional dasemelhança entre linguagem e mundo. Já que a linguagem não passa de um reflexo, de uma cópia domundo, o decisivo é a estrutura ontológica do mundo que a linguagem deve anunciar. A essência dalinguagemdepende,assim,emúltimaanálise,daestruturaontológicadoreal.Existeummundoemsiquenos é dado independente da linguagem, mas que a linguagem tem a função de exprimir. Foi por ter
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
194
“em si” e sua estrutura poderia ser racionalmente conhecida, sendo, a posteriori,
comunicada por intermédio da linguagem, que teria, portanto, uma importância
secundária.
Nas Investigações, o filósofo contrapõe essa (quase) exclusividade da função
designativadalinguagem.Aoindagar“quantostiposdefrasesexistem?”,respondeque
são inúmerosequeessapluralidadenãoé fixa,poisnovos (tipos) jogosde linguagem
nascem enquanto outros envelhecem. Amultiplicidade destes jogos poderia ser vista
pormeiodeváriosexemplos,aconstar:comandar,agirconformecomandos,descrever,
produzir, relatar, conjecturar, expor, apresentar inventar, representar, cantar, resolver
etc53.
Aprofundando essa crítica, Wittgenstein confronta a pressuposição
epistemológicadequeoconhecimentohumanoseriaalgonãolinguístico54.Assim,não
existiriaummundoindependentedalinguagem,equeestadeveriaapenasespelhá-lo.
Omundoseriamanifestonaepelalinguagem.Ora,dessemodo,abandona-seoidealde
exatidãodaspalavras,quepassaaserentendidocomoummitofilosófico.
Noentanto,aindaseriapossíveldeterminarasignificaçãodaspalavras,nãode
modo prévio e definitivo, mas, transitoriamente, por intermédio do contexto
sociopráticoemquesãoutilizadas55.Assim,ManfredoAraújo56concluique
O cerne da reflexão linguística de Wittgenstein deixa de ser alinguagemidealparasetornarasituaçãonaqualohomemusaasualinguagem;entãooúnicomeiodesaberoqueéalinguageméolharseusdiferentesusos.
À filosofia caberia apenas descrever o funcionamento da linguagem, seus
diversos usos, sem justificá-la57. A linguagem é vista como parte constitutiva de um
radicalizadonoTratactustalposiçãoqueWittgensteinsedeixouguiarpeloidealdeumalinguagemperfeitacapaz de reproduzir com absoluta exatidão a estrutura ontológica do mundo’. In: OLIVEIRA, ManfredoAraújode.Reviravoltalingüístico-pragmáticanafilosofiacontemporânea.SãoPaulo:Loyola,1996.p.120-121.53WITTGENSTEIN,Ludwig.InvestigaçõesFilosóficas.SãoPaulo:EditoraNovaCultural,1999.§23,p.35-36.54Idem,OLIVEIRA,ManfredoAraújode.1996,p.127.55Nesta linha, Paulo Alcofarado entende que em Wittgentein ‘[...] a pesquisa acerca do significado dasexpressões linguísticas deve voltar-se para o seu contexto de uso e não para sob o ponto de vista delinguagensformalizadas’.In:ALCOFORADO,Paulo.AFilosofiadaLinguagemOrdinária.ActaSemiológicaetLingvistica, João Pessoa, v. 4, n. 1, 1980. Disponível em:<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/actas/article/view/16609/9472>.Acessoem:17nov.2014.56OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. SãoPaulo:Loyola,1996.p.13257Idem,WITTGENSTEIN,Ludwig.1999.§124,p.67.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
195
determinado contexto de ação, denominado de “forma de vida” 58 , que é
necessariamentecompartilhado.Assim,asváriasformasdevidapossibilitariammuitos
usos/jogosdelinguagem.NaspalavrasdeWittgenstein59:
Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta ecomando,talvez?–Háinúmerasdetaisespécies:inúmerasespéciesdiferentes de emprego daquilo que chamamos de “signo”,“palavras”,“frases”.Eessapluralidadenãoénadafixo,umdadoparasempre,mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem,como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e sãoesquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar asmodificaçõesdamatemática).O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar dalinguageméumapartedeumaatividadeoudeumaformadevida.
Estaanalogiacomosjogospossibilitapensarnumaaçãointersubjetivamediante
regrasquetambémsãocoletivamenteaceitas.Araújo60destacaqueoconceitodejogos
delinguagemtemcomoobjetivodenotarqueemcontextosdistintos,diferentesregras
são seguidas, sendoestasnecessáriasparaadeterminaçãodo sentidodasexpressões
linguísticas.Estasregrasdeusoformariamumagramáticaprofundaquerevelariauma
concordância de um modo de vida61. A partir desse quadro de referência, seriam
determinadas as fronteiras das ações possíveis, que seriam “livremente” feitas pelos
participantes, mesmo porque ainda existiriam usos não regulados62. Por isso, mesmo
sobasmesmasregras,cadaumjogariaàsuamaneira.
Outra ideia central na (segunda) filosofia deWittgenstein é a noçãode seguir
uma regra63(Rule-Following). Diferentemente do Tratactus em que a linguagem é
concebida como cálculo e as regras estariam num plano lógico-sintático, nas
58 O conceito de “formas de vida” (Lebensform), apesar de muito importante na segunda filosofia deWittgenstein, aparece poucas vezes nas Investigações e uma vez em Sobre a Certeza. Ainda querelacionadasaosjogosdelinguagem,asformasdevidaassumemumcarátermaisgeraleelementar,comoumpadrãoinjustificadodaatividadehumanaeque,arraigadoculturalmente,manifesta-secomumdado.Éo locus em que a linguagem se constitui, sendo seu “fundamento” último. CONDÉ,Mauro Lúcio Leitão.Wittgenstein:linguagememundo.SãoPaulo:Annablume,1998.p.101-105.59Ibidem,§23,p.35.60Idem,OLIVEIRA,1996.p.139.61Idem,WITTGENSTEIN,Ludwig.1999.§241,p.98.62Ibidem,§68,p.53.63Nessesentido,Glocksustentaque:“Rulesplayacrucial role inWittgensteinphilosophybecauseof twoabiding convictions: firstly, language is a rule-guided activity; secondly, the priori status of logic,mathematics and philosophy derives from such rules”. GLOCK, Hans-Johann. A Wittgenstein dictionary.Malden,MA:Blackwell,2005.p.323.Traduçãolivre:“JogoderegrastemumafunçãocrucialnafilosofiadeWittgensteinporcausadeduasconvicçõespermanentes:primeiramente,linguageméumaatividadeguiadaporregras;emsegundolugar,ostatusantecedentedalógica,matemáticaefilosofiaderivadetaisregras”.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
196
Investigações as regras se escondem por detrás da superfície da linguagem natural64.
Nãoobstanteaofatodofilósofonãoterintentadodesenvolverumconceito(analítico)
deregra,partindodeváriosexemplos,Hans-JohannGlockextraiseispontosgerais:
a)Regrassãopadrõesdecorreção,elasnãodescrevem,porexemplo,como as pessoas falam, mas ao invés definem o que é falarcorretamenteoucomsignificado.b) Existe uma diferença entre uma regra e sua expressão, aformulação da regra, assim como entre um número e um numeral(e.g., a mesma regra pode ser expressa em diferentes linguagens).Mas a diferença não é entre uma entidade abstrata e seu nomeconcreto,masentrea funçãonormativaea forma linguísticausadapara realizar essa função.Nóspodemosesclarecer anoçãodeumaregrapor intermédioda investigaçãodopapeldas formulaçõesdasregras.c) Diferente dos comandos ou ordens, regras são inerentementegerais uma vez que governam com frequência uma multiplicidadeilimitadadeocasiões.d) Características como (a) ou (c) não são vinculadas às formasparticulares das palavras – uma proposição gramatical expressandoumaregra linguísticanãoprecisaserumaafirmaçãometalinguísticasobreoempregodaspalavras,ouconterexpressõesdegeneralidade(gerais/genéricas). Ao contrário, elas dependem se uma expressãotemumafunçãonormativanumadadaocasião.e)‘Seguir-Regras’éumverbo-realização:existeumadiferençaentreacreditarquealguémestáseguindoaregraerealmentesegui-la.f)OpontocrucialdemudançanaconcepçãoderegraslinguísticasdeWittgenstein está na existência de umadiferença entre seguir umaregraemeramenteagirdeacordo comuma regra. Todavia, seguir-regras pressupõe uma regularidade no comportamento, isto não odistinguederegularidadesnaturaiscomoomovimentodosplanetasou atos humanos que acontecem em conformidade com regrasinvoluntariamente. Se um agente segue a regra em Φing, a regradeve ser partede suas razõesparaΦing, e não apenasuma causa.ElenãotemumaopiniãosobreouconsultaaformulaçãodasregrasenquantoΦing,ésomentenecessárioqueeleaapresente,justifiqueou explique sua Φing. [...]. Esses são casos em que é guiadopassivamente, sem ser capaz de explanar porque ele agiu daquelaforma,ouensinaroutrosatécnicadeseguiressaorientação65.
64Ibidem,p.324.65Livretradução.Nooriginal:‘a)Rulesarestandardsofcorrectness;theydonotdescribe,forexample,howpeoplespeak,butratherdefinewhatitistospeakcorrectlyormeaningfully;b)Thereisadifferencebetweenaruleitsexpression,arule-formulation,justasbetweenanumberandanumeral(e.g.,thesamerulecanbeexpressedindifferentlanguages).Butthedifferenceisnotonebetweenanabstractentityanditsconcretename, but one between a normative function, and linguistic formused to perform that function.We canclarifythenotionofarulebyinvestigatingtheroleofrule-formulations;c)Unlikecommandsororders,rulesareinherentlygeneralinthattheygovernanoftenunlimitedmultiplicityofoccasions;d)Featureslike(a)or(c)arenottiedtoparticularformsofwords–agrammaticalpropositionexpressingalinguisticruleneednotbeametalinguistcstatementabouttheemploymentofwords,orcontainexpressionsofgenerality.Rather,theydependonwhetheranexpressionhasnormativefunctiononagiveoccasion;e) ‘Rule-following’ isanachievement-verb: there is a difference between believing that one is following the rule and actuallyfollowingit;f)ThecrucialpointforthechangeinWittgensteinconceptionoflinguisticrulesisthatthereisa
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
197
Estas regras seriam seguidas porque socialmente adquire-se o hábito de
reconhecê-laseagirdeumadeterminamaneira.Comojogarxadrez,aceitarumaordem
ou fazer uma comunicação, seguir uma regra é um hábito 66 . Por isso, para
Wittgenstein67,“[...]seguirumaregraéumaprática”.Então,acreditarseguiraregranão
é seguir a regra. E daí não ter sentido a ideia de seguir uma regra demodo privado.
Antesdeserumexercício intelectual,éumapráticaquepressupõeumaconvergência
social.
O giro linguístico operado por Wittgenstein alterou significativamente a sua
FilosofiadaLinguagem.Daartificialidadedasproposiçõeslógicasquerepresentavamas
imagens mentais do real, para uma linguagem comum/ordinária e, em certo sentido
não-lógica,masqueseriainteligíveldiantedocompartilhamentodeformasdevida.Há
umaabertura à intersubjetividade e à historicidade, postura que se radicalizou coma
HermenêuticaContinentaldematizheideggeriana.
Ouseja,aquelebackgroundfilosóficofoisuperadopelopróprioWittgensteine
poroutrasconstruçõesposteriores.Destemodo,numprimeiromomento,aTeoriado
FatoJurídico,tambémseapresentariasuperada,ouaomenosfragilizada,umavezque
seuspressupostosforamquestionados.
EmPontesdeMiranda as regras jurídicas formamum sistema lógicoqueestá
fora do mundo, no sentido existencial, para que a partir de sua incidência, pudesse
adentrar certos fatos ao seu universo, designando-os como jurídicos. Isto, dentro de
umadepuraçãoconceitual,quetraçandooscontornosdeprecisosdeseussignificados,
afastariaquaisquerdúvidasquantoasuaaplicação.
Observa-sequenãoháquestionamentosacercadalegitimidade,tudoseresolve
no âmbito da validade. As proposições jurídicas designam os fatos, os marcam,
formando um subconjunto, o direito, dentro da totalidade dos fatos que formaria o
mundo.Odireitoestápré-pronto,antecipandoasocorrênciaselhedandoasrespostas
difference between following a rule andmerely acting in accordancewith a rule. Although rule-followingpresupposes a regularity in behaviour, this does not distinguish it from natural regularities like themovementtheplanetsorhumanactswhichhappentoconformtoaruleunintentionally.IfanagentfollowsaruleinΦing,therulemustbepartofhisreasonforΦing,andnotjustacause.Hedoesnothaveathinkaboutorconsulttherule-formulationwhileΦing,itisonlyrequiredthathewouldadduceitjustifyorexplainhisΦing.(…).Thesearecasesinwhichisguidedpassively,withoutbeingabletoexplainwhyheactsashedoes,ortoteachothersthetechniqueoffollowingthisguidance.’Ibidem,p.324-325.66Idem,1999.§198,199,200e241,p.91-93.67Ibidem,§202,p.93.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
198
já estabelecidas anteriormente. E o mundo é uma mera externalidade objetual que
apreendemosemsuasrelações.
O problema que Wittgenstein enuncia e isto ficará mais explícito em Martin
Heidegger, é que a experiência com mundo não se esgota numa objetualidade
designativa, ou seja, há algo anterior que a constitui. Para partilhar os jogos de
linguagem,existetambémanecessidadedocompartilhamentodeuma“formadevida”
que lhe é condição de possibilidade. Pensar o direito em termos lógicos esvazia dos
fatos(jurídicos)afaticidade,ouseja,seucaráterexistencial.
MartinHeideggertransformouaHermenêuticaemfilosofia.Oqueantesera
vista comouma técnicade interpretaçãode textosoucomometodologiadas ciências
humanastorna-seumaHermenêuticadaexistência,dafacticidade.JeanGrondinafirma
que:“afacticidadedesignaaquiaexistênciaconcretaeindividualqueinicialmentenão
é para nós um objeto, e sim uma aventura na qual somos projetados e para qual
podemosdespertardemaneiraexpressaounão68”.
Assim,ainterpretaçãovolta-separaaprópriaexistência,ondeoser-humanose
constitui de modo autêntico (Dasein), não podendo substituí-la, mas apenas por
intermédio de “indícios formais” permitir que ela se aproprie das sua próprias
possibilidades.
EmHeideggeraontologiatransforma-seemumahermenêuticadafaticidade,ao
modo-de-ser do próprio Dasein que como ente privilegiado compreende a realidade
compreendendoasimesmo.Todavia,estanãoéumadecorrênciaautomática,épreciso
umdar-secontadesteprojetar-se,pois,aocontrário,oquesedáéumesquecimento
numa existência inautêntica, impessoal. Em Conceitos Fundamentais da Metafísica o
filósofoafirmaque“lapiedraessinmundo,elanimalespobredemundo,mientrasel
hombreconfiguramundo69”.OmundoapareceenquantoocomodoHomem.Assim,a
interpretaçãonãoseriasimplesmenteummododeconhecer,seria,portanto,ummodo
seser,deexistireporissoéontológica.
Os sentidos estão no mundo, todavia, este não é um conjunto de tudo que
existe, uma totalidade de fatos (externos), é o lócus em que os entes se desvelam,
inclusive o Homem como ser-no-mundo. Deste modo, a interpretação é uma
explicitaçãodaquiloquefoicompreendidonoencontrocomooutro.Quandosefalaou68GRONDIN,Jean.Hermenêutica.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2012.69HEIDEGGER,Martin.Los conceptos fundamentales de lametafísica.Mundo, finitud, soledad.Madrid:AlianzaEditorial,2007,p.227
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
199
escreveapalavramartelo,existeumhorizontepréviodesentidoqueserefereanossa
prática comoeste ente e quepermite suaenunciaçãonum código linguístico70.Deste
modo, há uma abertura existencial, histórica, finita e temporal na interpretação do
mundo.
Lainterpretaciónsefundaentodosloscasosenun“verprevio”querecorta lo tomado en el “tener previo” de acuerdo con unadeterminada posibilidad de interpretación. Lo comprendido tenidoenel“tenerprevio”yvistoenel“verprevio”sevuelve,porobradela interpretación. (….)Comoquieraque sea, la interpretación sehadecidido encadacasoya,definitivamenteoconreservas,porunosdeterminadosconceptos;sefundaenun“concebirprevio”71.
Desta forma, a interpretação do Homem explicita e elabora as possibilidades
projetadasnacompreensão.Aquiloquefoicompreendidoassumeaformadealgocomo
algo (etwasalsetwas).Contudo,nãose tratadeconceitosabstratos,atemporais,mas
de termos que encontram seu sentido na existência fática. Nesse ambiente, o direito
também está lançado, ao abstraí-lo deste contexto, como tradicionalmente fez o
PositivismoJurídico,perde-seseucaráterexistenciale torna-seapenasumobjetoque
podemosmanejartécnicaelogicamente,comoPontesdeMirandapressupunha.Neste
contexto,ainterpretaçãotorna-seumarevelação,uminstrumentodedepuraçãológico-
conceitual,deumdireitopré-existente.Ouseja,odireitonãoestarianafaticidade,que
éumaexperiênciaintersubjetiva,masnumapretensaobjetividadelógica,quenãomais
respondeasexigênciashistóricasda contemporaneidade, comdestaque, aoproblema
dalegitimidadedodiscursojurídico.
5.ConsideraçõesFinais
É inegável a importância de Pontes de Miranda na história do pensamento jurídico
pátrio.Reconhece-sequeasuaTeoriadoFatoJurídicoaindahojeéaceitaeutilizadapor
parcela significativa de civilistas, porém já se tem percebido a necessidade de um
repensar.
70 “Heidegger deja bastante claro que ya antes de la interpretación predicativa hay una interpretaciónprevia, correspondienteaun comprenderprevioenelmundo”. Tradução livre:Heideggerdeixabastanteclaro que já antes da interpretação predicativa há uma interpretação prévia, correspondente à umcompreender prévio no mundo. BERCIANO VILLALIBRE, Modesto. La revolución filosófica de MartinHeidegger.Madrid:BibliotecaNueva,2001.71HEIDEGGER,Martin.Elseryeltiempo.4.ed.México:FondodeCulturaEconómica,1971p.168
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
200
Conformese tentoudemonstrar,estaconstrução teóricadePontes seassenta
nos pressupostos do Neopositivismo Lógico, mais especificamente, no arcabouço
filosófico do primeiro Wittgenstein. Todavia, com todo um questionamento a este
background feito (também) pelo próprio filósofo e radicalizado pela Filosofia
Hermenêutica percebe-se uma forte fragilização do edifício pontesiano uma vez que
suascategoriascentraisforamtodasprojetadassobreestasbases.
Neste ponto, ao menos, duas possibilidades se apresentam. Uma seria o
abandonoda Teoria do Fatodo Jurídico reconhecendo sua finitudehistórica.Ou seja,
que foi adequadaapenasparaumdeterminadoperíodo.Aoutrapossibilidade seria a
tentativa de operar com as mesmas categorias ou outras equivalentes, sob uma
cosmovisãofilosóficadiferente.Contudo,adiscussãoagorasevoltaparasaberseneste
segundocaminhoaindaestáasefalardateoriapontesiana,ouseoquefoireconstruído
já se faz novo. Ainda assim, o importante para a “dogmática” é manter-se
constantementeabertaparaverificaroslimitesdesuaselaborações,comdestaqueaos
paradigmas filosóficos que as sustenta, e assim, desenvolver olhares adequados ao
momentopresente.
6.Referênciasbibliográficas
ALCOFORADO, Paulo. A Filosofia da Linguagem Ordinária. Acta Semiológica etLingvistica,JoãoPessoa,v.4,n.1,1980.BERCIANOVILLALIBRE,Modesto.LarevoluciónfilosóficadeMartinHeidegger.Madrid:BibliotecaNueva,2001.BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd.,1997.BLOOM,Harold.Ummapadadesleitura.RiodeJaneiro:Imago,1995.CONDÉ,MauroLúcioLeitão.Wittgenstein:linguagememundo.SãoPaulo:Annablume,1998.D'AGOSTINI,Franca.Analíticosecontinentais:guiaàfilosofiadosúltimostrintaanos.SãoLeopoldo:UNISINOS,2002.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
201
GLOCK,Hans-Johann.AWittgensteindictionary.Malden,MA:Blackwell,2005.GRONDIN,Jean.Hermenêutica.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2012.HEIDEGGER, Martin. Los conceptos fundamentales de la metafísica. Mundo, finitud,soledad.Madrid:AlianzaEditorial,2007.______.Elseryeltiempo.4.ed.México:FondodeCulturaEconómica,1971.KELSEN,Hans.Teoriapuradodireito: introduçãoàproblemáticacientíficadodireito.Trad.J.CretellaJr.eAgnesCretella.6.ed.rev.datradução.SãoPaulo:EditoraRevistadosTribunais,2009.______.¿ Qué es la Teoría Pura del derecho? 5. ed. Colonia del Carmen-MEX:DistribucionesFontamara,1997.MARQUES,Edgar.Wittgenstein&oTractatus.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,2005.MICHELONJR,CláudioFortunato.Aceitaçãoeobjetividade:umacomparaçãoentreasteses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento dodireito.SãoPaulo:R.dosTribunais,2004.MIRANDA,Pontesde.Tratadodasações.TomoI.Campinas:Bookseller,1998-1999.______.Tratadodedireitoprivado.1.ed.TomoI.Campinas:Bookseller,1999.______.Sistemadeciênciapositivadodireito.TomoI.Campinas:Bookseller,2000.MELLO,Marcos Bernardes de.Contribuicão a teoria do fato juridico. 2. ed.Maceio:,1982.MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo:MartinsFontes,2006.STEIN, Ernildo.Exercícios de fenomenologia: limitesdeumparadigma.Ijuí: Ed.Unijuí,2004.OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofiacontemporânea.SãoPaulo:Loyola,1996.QUELBANI,Mélika.OCírculodeViena.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2009.VILANOVA, Lourival.As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 1. ed. SãoPaulo:RevistadosTribunais,1977.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966
202
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logicus-Philosophicus. São Paulo: CompanhiaEditorialNacional,1968.______.Investigaçõesfilosóficas.SãoPaulo:EditoraNovaCultural,1999. SobreosautoresLenioLuizStreckDoutor em Direito (UFSC); Pós-Doutor em Direito (FDUL). Professor Titular daUniversidadedoValedoRiodosSinos–UNISINOS(RS)eUniversidadeEstáciodeSá–UNESA(RJ).Pro¬fessorVisitantedaUniversidadeJaverianadeBogotá,CoimbraeLisboa(PT). Coordenador do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Procurador deJustiça(RS)aposentado.Advogado.E-mail:[email protected]úblicopelaUniversidadedoValedoRiodosSinos–UNISINOS como bolsista CAPES. Graduado em Direito pela Universidade Estadual doSudoestedaBahia-UESB\BA.MembrodoDASEIN–NúcleodeEstudosHermenêuticos.E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.