Um direito sem faticidade: Uma (des)leitura da teoria do ... · Diante disso, o direito deveria...

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Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 1, 2018, p. 177-202. Lenio Luiz Streck, Daniel Ortiz Matos DOI: 10.1590/2179-8966/2017/25687| ISSN: 2179-8966 177 Um direito sem faticidade: Uma (des)leitura da teoria do fato jurídico A law without facticity: An (un)reading theory of legal fact Lenio Luiz Streck Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] Daniel Ortiz Matos Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] Artigo recebido em 21/09/2016 e aceito em 24/03/2017. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

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Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.1,2018,p.177-202.LenioLuizStreck,DanielOrtizMatosDOI:10.1590/2179-8966/2017/25687|ISSN:2179-8966

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Um direito sem faticidade: Uma (des)leitura da teoria dofatojurídicoAlawwithoutfacticity:An(un)readingtheoryoflegalfact

LenioLuizStreckUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail:[email protected]

DanielOrtizMatosUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. E-mail:[email protected]

Artigorecebidoem21/09/2016eaceitoem24/03/2017.

ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense

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Resumo

Estetrabalhoprocuradesenvolveruma(des)leituradaTeoriadoFatoJurídicodePontes

de Miranda por intermédio de um exercício de Filosofia no Direito e do método

fenomenológico hermenêutico. Ou seja, compreendendo os paradigmas filosóficos

como standards/vetores de racionalidade em que se assentam os paradigmas

científicos, busca-se desvelar qual seria o arcabouço filosófico em que fundamenta o

projetopontesiano.

Palavras-chave:PontesdeMiranda;TeoriadoFatoJurídico;Wittgenstein.

Abstract

This paper aims to develop a (un)reading of Theory of Legal by Pontes de Miranda

through an exercise of Law’s Philosophy and the hermeneutic-phenomenological

method. This is, comprising the philosophical paradigms such as rationality/vectors

standards in which scientific paradigms based, seeks to unveil what would be the

philosophicalframeworkthatunderliesthePontes’sproject.

Keywords:PontesdeMiranda;TheoryofLegalFact;Wittgenstein.

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1.Introdução

Harold Blomm1diz que o olhar para um texto é, na realidade, uma abertura para as

diversas(inter)relaçõesdetextos.Assim,qualquerleituraseperfazcomoumatocrítico

deconstante(des)apropriaçãodesentidos.Partindodessapremissa,descortina-seesta

reflexão.

A proposta é situar a Teoria do Fato Jurídico de Pontes de Miranda neste

ambiente textual e inter-relacional sob o prisma de uma perspectiva denominada de

Filosofia no Direito2. Ou seja, buscar-se-á compreender quais seriam os pressupostos

filosóficossubjacentesnestaconstruçãoteóricapontesiana.

Diante da vastidão intelectual da produção de Francisco Cavalcanti Pontes de

Miranda, o objeto de análise deste trabalho circunscreve-se a sua Teoria do Fato

Jurídico 3 . E dentro desta, as questões de base, tais como: 1) a relatividade do

conhecimento;2)oconceitodemundo(jurídico);3)odireitocomosistemalógico;4)a

regrajurídicaenquantoumaproposiçãologicamenteestruturada;ainterpretaçãocomo

“revelação”. Neste sentido, não será feita uma abordagem dogmática sobre os três

planos–existência,validadeeeficácia–, tampoucoacercadostiposde fatos jurídicos

existentes.

OobjetivoprimazéaassentarolugardefalaemquerepousaateoriadePontes

deMiranda.Note-sequeojuristabrasileirofoiumerudito,transitavapordiversasáreas

do saber, com isto não se quer reduzir em demasia as diversas influências que

provavelmente teve, mesmo que nem sempre as referenciasse. A ideia é perceber

1BLOOM,Harold.Ummapadadesleitura.RiodeJaneiro:Imago,1995.AmençãofeitaaBloomnaaberturado artigo não representa a metodologia aqui empregada. Conforme expresso também na introdução, o“método”utilizadoéfenomenológico-hermenêutico.Nãoobstante,apremissadeBloomdequeolharparaum texto é um deparar-se com uma inter-relação de textos, ainda que não demos conta disto, éamplamente compatível com a tradição hermenêutica que partilhamos e com o modo como estainvestigaçãoé feita.Nestes termos, olharpara aTeoriado Fato Jurídico dePontesdeMirandaé ver umfeixedetextosquelhesãocondiçãodepossibilidade.Dentreestes,buscamosdesvelaraquelesdenaturezafilosófica.Assim,trazerestaperspectivadacríticaliterária,enriquecenossapercepçãobemcomonossituanumespaçointerdisciplinartãonecessáriaparaacompreensãodofenômenojurídico.2Sobreessaabordagem,ofilósofoErnildoSteinlecionaque:ParaenfrentaressaquestãoéprecisoencarardefrenteacontribuiçãodosstandardsderacionalidadequeaFilosofiadesenvolvequandoelaémaisqueuma simples retórica ornamental ou orientação na perplexidade. [...] Dessa maneira, qualquer campoteóricododireitopodeesperarrespostasimportantesdeumstandardderacionalidadefilosófico.Isso,noentanto,pressupõequeocampoteóricodoDireitosevinculeadeterminadoparadigmaquelhedásustentonométodoenaargumentação.STEIN,Ernildo.Exercíciosdefenomenologia:limitesdeumparadigma.Ijuí:Ed.Unijuí,2004.p.136-137.3DiantedaextensabibliografiadePontesdeMirandaopresenteestudoselimitará,porfinsmetodológicos,aTeoriadoFatoJurídicoexpostanasobrasTratadodeDireitoPrivadoTomoIeTratadodasAçõesTomoI,ambasemcotejocomolivroSistemadeCiênciaPositivadoDireito,todasdoreferidojurista.

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certas aproximações comumadeterminada concepção filosófica–oquenão significa

quesejaestaexclusiva–masquetevealgumpredomínio.

Soboaspectometodológico,esteestudo faráusodométodo fenomenológico

hermenêuticoque,demodoresumido,podeserentendidocomoumrevolverdochão

linguísticoemque se assenta certa tradiçãono intuitode seobteruma compreensão

maisorigináriadofenômeno.Nocaso,ateoriadofatojurídicoserádeslidanointuitode

descobriroqueseescondepordetrásdesuaformulação,ouseja,oarcabouçofilosófico

quelhesustenta.

O artigo está dividido em três partes. Na primeira é feita uma abordagem

expositivadateoriadoFatoJurídicodePontesdeMiranda.Nasegundaseráfeitaasua

(des)leitura teórica desta, demonstrando suas aproximações com Hans Kelsen bem

comoasinfluênciasquesofreudoNeopositivismoLógico,comdestaque,àFilosofiada

Linguagem do primeiro Wittgenstein. Na terceira e última, a discussão se volta ao

segundo Wittgenstein e de como este desconstruiu seus próprios pressupostos,

fragilizando, assim, consequentemente, a teoria de Pontes. Ademais, será feita uma

abordagemcríticademonstrandocomoapropostaponteseanaeradeumDireitosem

faticidadealuzdeumacompreensãohermenêutica.

Espera-se que ao final este escrito possa contribuir para leituras e escritos

outrosacercadoempreendimentoteóricodePontesdeMiranda,certamente,umdos

expoentesmaiselevadosdaCiênciaJurídicaemterraebrasilis.

2.AteoriadoFatoJurídicodePontesdeMiranda

Antesdetratarespecificamentesobreateoriadofatojurídicocumpredestacar,mesmo

quedeformamuitobreve,algunsapontamentosbasilaresdopensamentodePontesde

MirandadesenvolvidasemsuaobraSistemadeCiênciaPositivadoDireito.

Pontes defendia a ideia de uma relatividade gnosiológica 4 em que o

conhecimento do real não resulta de um conceito das coisas em-si,mas sim de suas

interelações5.PartindodosofistaProtágorasedesuamáxima–“ohomeméamedida

4 “A relatividade do conhecimento é princípio assaz geral, porque resulta de nós mesmos, daimpossibilidadedeseperceberacoisa,emsua inteirezaeemsua íntimaessência”.Cf.MIRANDA,Pontesde.Sistemadeciênciapositivadodireito.TomoI.Campinas:Bookseller,2000.p.1095Ibidem,p.76.

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detodasascoisas”-ojuristaargumentavainexistirverdadesindependentesdosujeito,

ou seja, objetivas. Sendo, portanto, a finalidade da ciência a formulação de uma

convicçãosubjetiva6.

Nãoobstanteaorelativismo,aomenosumaafirmaçãoseriainconteste,aqueo

mundomaterial existe.Contudo,aperspectivahumanaque se temda realidade seria

uma(re)construçãodorealcircundante.Asciências,portanto,estariamcircunscritasno

conceitodefato,aindaquedeordensdiferentes.Nestalinha,Pontesafirmaque:

Tudooquepodeserconteúdodaconsciênciaéfato.Somenteoquenosdáasensaçãoourepresentaçãosãoelementosdonossomundo:assim, para os seres, não o próprio ser, mas as cores, o som, aelasticidade,oespaço,otempo,équeconstituemtaiselementos.Acoisa, o ser, é símbolo de pensamento para certo complexo desensaçõesderelativaestabilidade.Oobjetodoconhecimentosãoasrelaçõesenãoosseres7.

Diantedisso,odireitodeveriaafastar-sedasabstraçõesparaviverdarealidade

social, pois são as relações sociais os fatos a serem observados, sobretudo, em sua

conexãosimbólicacomasregras jurídicas.Estas,porsuavez“incidemnoespaçoeno

tempoaqueelas sedestinam.Umavezque compõem todoo suporte fático, a regra

jurídicacomoquecoloreoquesecompôs”8.

Assim, para Pontes na aplicação do Direito dois processos deveriam ser

sublinhados: “1) a análise dos conceitos contidos na norma jurídica e, mais

profundamente,daclassedasnormas;2)aanálisedasrelaçõesquetêmdeserregradas

pelalei”9.

NotratadodeDireitoPrivado(TomoI) jáno iniciodoprefácioo juristafazum

afirmaçãocategóricaelapidar:“ossistemajurídicossãosistemaslógicos,compostosde

proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos interesses mais

diversos10”.Estalogicidadeseriaprovenientedaestruturadasregrasjurídicas,quenão

diferentedasdemaisproposições,usariamconceitoscorrespondentesàrealidade,afim

deasseguraracertezaquantoasuaincidência11.

6Ibidem,p.77.7Ibidem,p.83.8Ibidem,p.99.9Ibidem,p.9910MIRANDA,Pontesde.Tratadodedireitoprivado.1.ed.TomoI.Campinas:Bookseller,1999.p.1311Cf.MIRANDA,Pontesde,1999.p.13.

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Comesteprocessoossimplesfatosseriammarcadospela“imposição”daregra

tornando-se jurídicos, e, por isto ingressariam no mundo juridicus. Com isto, nas

relações sociais, o direito seria uma espécie de ordenador do caos (redutor de

complexidade), istoé, imporiaaodevircertaordemque lhepermitisseaestabilização

dasrelaçõessociais12.

A aplicação de uma determinada regra jurídica decorreria da determinação

semântica de seu conteúdo, o que seria realizado pelo intérprete e de modo não

arbitrário.Eistosomenteteriasentidodentrodeumaconcepçãodelinguagememque

cada conceito jurídico presente na regra pudesse ser observado nas relações sociais,

afastando,portanto,dúvidasquantoasuaaplicabilidade.Nestesentido,Pontesdeclara:

Osistemajurídicocontémregrasjurídicas;eessasseformulamcomosconceitosjurídicos.Tem-sedeestudarofático,istoé,asrelaçõeshumanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual osuportefático,aquilosobreoqueelasincidem,apontadoporelas13.

O juristaexemplifica istoapartirdoart.1°doCódigoCivil,àépoca,queassim

prescrevia:“Todohomemécapazdedireitoseobrigaçõesnaordemcivil”.ParaPontes,

este seriaumsuporte fáticomuito simples, centradonoconceitode “Homem”.Deste

modo, havendo um ser humano vivo, logo se teria a incidência do comando legal14.

Destarte,osconceitosdeveriamserexatoseprecisosdirimindoassimdúvidasquantoà

incidênciaounãodeumadeterminadaregrajurídica.

Todavia,sendoodireitoentendidodemodosistemáticoainterpretaçãodeum

comando legal nunca se daria de modo isolado, ao revés, demandaria uma

compreensão do todo, para após revelar seu conteúdo, mantendo a consonância

sistêmica15.

Pontesobservaqueessa“revelação”nãoseriadeumavontadeobjetivada lei

insculpida pelo legislador, pois diante do caráter histórico haveria sempre verificar os

12SobreistoPontesafirmaque:Medianteestasregras,consegueohomemdiminuir,demuito,oarbitráriodavidasocial,adesordemdosinteresses,otumultuáriodosmovimentoshumanosàcatadoquedeseja,oudoquelhesatisfazalgumapetite.MIRANDA,Pontesde.Tratadodasações.TomoI.Campinas:Bookseller,1998-1999.p.13.13Idem,1999.p.1514Cf.Ibidem,p.15.15Ibidem,p.15-16.

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conteúdosdiantedarealidadepresente,eistoemconformidadecomaspossibilidades

dosistema16.

Deste modo, a ciência do direito teria como função precípua efetuar uma

limpeza semântica do conteúdo das regras a fim de manter a pureza lógica e a

completudedosistemajurídico.Emsuaspalavras,Pontesdefineque:

A atividademais relevante da ciência do direito consiste, portanto,emapontarquaisostermos,comquesecompuseramecomoquesehãodecomporasproposiçõesouenunciados,aquesedáonomede regras jurídicas, e quais as regras jurídicas que, através dostempos foram adotadas e aplicadas. A sucessão histórica dessasregrasobedecealeissociológicas.Outraatividade,quenãoémenosinestimáveldoqueaquela,estánointerpretaroconteúdodasregrasdecadamomentoe tirardelas certasnormasaindamaisgerais,demodoaseteremquasecompletaplenitudeosistemajurídico17

Dentrodaproposta teóricapontesianaanoção fundamentaldodireitoéade

fato jurídico18, que surge a partir da incidência de uma regra19. A soma destes fatos

constituiriaomundojurídico,queporsuavezestariacontidonomundodosfatos.Este

esquema pode ser explicado num raciocínio desenvolvido pelo próprio Pontes, que

assimexpôs:

(a) Omundojurídicoestánoconjuntoaquesechamaomundo.(b) Omundoconcorrecomfatosseusparaqueseconstruaomundo

jurídico;porémeste selecionaeestabelecea causação jurídica,nãonecessariamentecorrespondenteàcausaçãodosfatos.

(c) Ajuridicizaçãoéoprocessopeculiaraodireito;noutrostermosodireito adjetiva os fatos para que sejam jurídicos (= para queentremnomundojurídico)20.

Estadistinçãoentreomundofáticoeomundojurídicotambéméretomadapor

PontesjuristanoTratadodasações(TomoI).Nesteeleafirmaque:

Os conceitos que usa o jurista são conceitos de dois mundosdiferentes:omundofático,emquesedãoosfatosfísicoseosfatosdomundojurídico,quandotratadossomentecomofatosdomundofático e omundo jurídico em que só se leva em conta o que neleentrou,coloridopelaregrajurídicaqueincidiu21.

16NestesentidodeclaraPontes:Daí,quandoselêalei,emverdadeseteremmenteosistemajurídico,emqueelaentra,eselernahistória,notextoenaexposiçãosistemática.Ibidem,p.18.17Ibidem,p.19.18Cf.Ibidem,p.20.19Nestalinha,Pontesdeclaraque:Quemdiz“aíestáosistemajurídico”dizháelementosfáticossobreosquais incidiu regra jurídica. Tal regra pode ser escrita, ou não escrita; em ambos os casos, faz parte dosistemajurídico,queéumcálculológico.Ibidem,p.21.20Ibidem,pp.51-52.21Idem,1998-1999.p.21.

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A respeito do surgimento das regras jurídicas Pontes formula um argumento

histórico-antropológico.Parao jurista,oserhumano,diantedetodaasuaexperiência

concretacomarealidadecircundante,passouareconhecer-secomosujeito(sub-iectus).

Nesteprocesso,natentativadeordenarocaos,passouadarordemeprevisibilidadeaos

fatosdavidacomum.Esteseriaogérmen,aindaqueinconsciente,dasregrasjurídicas22.

Por isso, a regra jurídica já nasceria coma indicaçãodos fatos sobreos quais deveria

incidir.

Neste sentido a regra jurídica funcionaria como a técnica que, como a sua

incidência,tornariajurídicososfatosqueoutrorapertenceriamtãosomenteaomundo

fático. Esta regra seria uma proposição, escrita ou não, logicamente estruturada em

antecedenteeconsequente(dadoa,bouc;entãoF).

Osfatosque ingressamnomundo jurídicoteriamcomopressupostoosuporte

fáticodasregrasque,comoumfiltro,definiriaajuridicidadeda(s)ocorrência(s).Coma

incidência da regra jurídica, os suportes fáticos seriam convertidos em fatos jurídicos.

Assim, as regras jurídicas seriam semelhantes a leis da mecânica na física, porém,

voltadasparaaordenaçãoecoordenaçãodavidasocial23.

Aincidênciadasregrasjurídicasseriaumadecorrênciadarealizaçãodosuporte

fáticonomundodosfatos,tornando-os,“automaticamente”jurídicos.Istoocorreriano

mundo dos pensamentos, por isso a aplicação e\ou atendimento do comando legal

poderianãocoincidircomasuaincidência24.

OutroelementofundanteparaPonteséosuportefático(Tatbestand).Esteseria

o fato, ou conjunto deste, que compõe a regra jurídica e delimita seu espectro de

incidência. O jurista entendia que inúmeros fatos do mundo poderiam ingressar no

mundo jurídico por intermédio da regra jurídica. No entanto, com o suporte fático

haveria uma distinção entre fatos relevantes e irrelevantes para o direito oumesmo

ajurídicos.

22CumprenotarqueemPontesestacriaçãoaparentanãoserarbitrária,poishaveriaalgumabasenaturalque limitaria, ou menos, influenciaria neste processo. Esta suposição pode ser observada no excertoseguinteemqueestácomentandosobreosurgimentodasregrasjurídicas:“Nãoexageremos,porém,essepapeldepensamento.Associedadesanimaiseassociedadeshumanassãosubordinadasaleisdesimetriacomotodososfatosdomundoinorgânico”.Ibidem,pp.22-23.23Cf.Idem,1999.p.5624Cf.Ibidem,p.62-63.

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Ofatojurídico,portanto,seriao“queficadosuportefáticosuficientequandoa

regrajurídicaincideeporqueincide25”.Portornar-seumfatodomundododireito,isto

é, por existir nesta dimensão, é que poderia se falar de uma eficácia. Neste sentido,

MarcosBernardesdeMellofrisaqueháduasconotaçõesquedevemserconsideradas

ao tratar do suporte fático, quais sejam: “a) uma que designa o enunciado lógico da

norma em que se representa a hipótese fáctica condicionante de sua incidência; b)

outra,quenomeiaoprópriofatoquandomaterializadonomundo26.”

Comodecorrência,avidadosfatosjurídicosseriacompreendidaemtrêsplanos:

o da existência, da validade, e da eficácia. Esta distinção lógica, com consequências

jurídicasdiversas,buscavadelimitar“oser”,“oserválido”,e“osereficaz”dosfatosdo

direito, o que para Pontes ainda não era levado em conta de modo adequado pela

doutrinacivilistapátria.

Oplanodaexistênciaseriaadimensãosinequanondosdemais,seriaoreinodo

ser.Neleencontrar-se-iamtodososfatosjurídicos.Oplanodavalidadereferir-se-iaaos

fatosqueporpossuíremavontadehumanacomoelementonucleardemandariamuma

análisequantoasuaperfectibilidade, istoé,umaverificaçãoseháounãoalgumvício

invalidante. Já o planoda eficácia trataria dos efeitos dos fatos jurídicos que criariam

situações/relaçõesjurídicas.

3.AteoriadoFatoJurídiconasentrelinhas:oudoqueescondenaquiloquesemostra

Na parte anterior foi feita uma abordagem descritiva da Teoria do Fato Jurídico de

Pontes de Miranda. Nesta seção, os aspectos gerais de base desta construção serão

(des)lidosapartirdaFilosofia,procurandodesvelarosvetoresderacionalidade(Stein)

quelhesserviramdesustentáculo.

Os pontos de análise sobre a Teoria do Fato Jurídico serão: 1) relativismo do

conhecimento;2)Aconcepçãodemundocomototalidadede fatos;3)odireitocomo

sistema lógico; 4) a regra jurídica como uma proposição logicamente estruturada 5)

limites de inteligibilidade da ideia de suporte fático, e 6) a interpretação como

25Ibidem,p.126.26MELLO,MarcosBernardesde.Contribuiçãoateoriadofatojurídico.2.ed.Maceió:1982,p.26.

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“revelação”.Esta separação temfinsapenasmetodológicos,naconstruçãopontesiana

todosestesaspectosestãoconcatenados,comoserádemonstrado.

Pontesacreditaqueoconhecimentodarealidadeérelativoaosujeito,ouseja,

não é um dado que possui um sentido essencial. Ademais, a ideia sobre os entes

tambémnãoseriaresultantedeumrecorteisoladodeumaporçãodoreal,aocontrário,

estes se apresentariam inter-relacionados sendo possível (apenas) conhecer estas

relações.

Destemodo,omundonãoécompreendidoobjetivamentecomoquedotadode

umsentidointrínseco,aorevés,éumaconstruçãoqueordenaocaos:

Avidaéumasucessãopermanentedefatos.Desdeonascimentoatéa morte, com todos os atos que integram a vida, desde a estrelacadentequevai-e-vemdaondadomar,tudoquenoscerca,físicaoupsiquicamente, são fatos. O “mundo mesmo”, na expressão dePontesdeMiranda,“emquevemosaconteceremosfatoséasomadetodososfatosqueocorrerameocampoemqueosfatosfuturosvãodar”27.

O mundo é entendido com uma totalidade de fatos, sendo alguns destes

irrelevantes ao direito. Destamaneira, abarca dentro de si, como um subconjunto, o

mundojurídicoque,porconsequência,seriacompostodatotalidadedosfatosjurídicos.

Estes não seriam assim naturalmente, mas assumiriam esta “natureza” devido à

incidência normativa que impõe esta adjetivação. Deste modo, Pontes define: “o

mundo jurídico, que é o mundo físico em que as regras jurídicas incidem, fazendo

jurídicosfatosque,semelas,estariamsemessacolocaçãoqueohomemlhesdeu28”.

Assim, “o sistema jurídico, que é um sistema lógico, há de ser entendido em

toda a sua pureza29”. O dever ser, a incidência, não opera no mundo ser, natural,

diferentemente,sedánumplanológico:

Osistemadeproposiçõesdaciência jurídicanãosedirigeaosfatos,acrescentemos, sem a mediação das proposições jurídicas quequalificam os fatos. Sem as proposições normativas do direitopositivo, nenhum fato do mundo pertence ao universo jurídico.NormasefatossãoFormundStoffnoserintegraldoDireito30.

Vilanova entende que a expressão da linguagem jurídica é ambígua e se

manifesta em níveis diferentes. O nível da ciência do direito – e nesta se insere o

27Ibidem,p.18.28Idem,1998-1999,p.23.29Ibidem,p.16.30VILANOVA,Lourival.Asestruturas lógicaseosistemadodireitopositivo.1.ed.SãoPaulo:RevistadosTribunais,1977,p.118.

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empreendimentopontesiano–eoníveldodireito,propriamentedito31.Esteserviriade

objeto para aquele. As normas seriam proposições prescritivas e a ciência fariam

descriçõesdestas,formalizandoumsistemalógico.

As regras jurídicas, à primeira vista, encobririam as suas formas lógicas em

virtudedas referências aos fatosdomundoque integram seuuniverso. Retomandoo

próprioexemplotrazidoporPontesdoart.1°doCódigoCivil–“Todohomemécapazde

direitos e obrigações na ordem civil” – na linguagem simbólica seria: havendo F (ser

homem),logoS(capacidadedeterdireitoseobrigações).

ParaPontes a regra jurídica, quepermite a entradadedeterminados fatosno

mundo jurídico (suporte fático), há de ser interpretada, sendo seu sentido uma

“revelação”. Em outras palavras, não seriam criadas no ato interpretativo. Contudo,

diantedosdoisníveisdalinguagem,sualiteralidadenãoseriaprovenientedalinguagem

comum/ordinária, mas sim da Ciência do Direito que conseguiria, artificialmente,

expurgarambiguidadesecontradiçõesdosistema.Desta forma,sobreoconteúdodas

regrasjurídicasojuristaafirmaque

Tem-se de interpretar, primeiro, gramaticalmente, mas já aí aspalavras podem revelar sentido que não coincide com o dicionáriovulgar(podeláestarrescisão,etratar-sederesolução;podeláestarcondição,enãoserdecondicioquesehádecogitar;podefalar-sedeerro, e só se dever entender o erro de fato, e não de direito). Osentidoliteraléosentidoliteraldaciênciadodireito,tendoemvistaqueopróprioredatordaleiaoredigi-la,exerciafunçãodadimensãopolítica, e não da dimensão jurídica, pode não ser jurista ou maujurista,oufalsojurista,oqueépior32.

AlgumasaproximaçõesjápodemserobservadasentreaTeoriadoFatoJurídico

eaTeoriaPuradoDireitodeHansKelsen.Logodeiníciopode-seperceberqueambos

osprojetosalmejamumapurezametodológica33destinadaaosseusempreendimentos

científicosenãoaoDireitoenquantoumapráxissocial.Kelsenfazquestãodefrisarque

(…) la teoríapuradelderechoesunateoríapuradelderecho,no lateoría de un derecho puro como sus críticos han afirmadoerróneamenteaveces.Underecho“puro”podríasolosignificar–siesquepuedesignificaralgo–underechorectoesdecirunderecho

31Ibidem,p.25.32Idem,1999,p.18.33AcercadestacaracterísticateóricaemHansKelsen–note-sequeestatambémpodeservistaemPontesde Miranda – Wayne Morrison acentua que: “A teoria trata do Direito simplesmente em termos deestrutura formal, deixando todas as questões de propósito ou conteúdo para além dos interesses doscientistasjurídicos,tendoasua“pureza”qualificadacomoumestreitamentodopapeldateoriajurídicanateorizaçãosobreomundosocial”.MORRISON,Wayne.Filosofiadodireito:dosgregosaopós-modernismo.SãoPaulo:MartinsFontes,2006.

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justo.Pero la teoríadelderechonoquierenopuedeseruna teoríadel derecho recto o justo pues no pretende dar respuesta a lapregunta:¿quéeslojusto?Entantocienciadelderechopositivoes–como ya se ha dicho- una teoría del derecho real, del derecho talcomo es creado realmente por la costumbre, la legislación o ladecisiónjudicialytalcomoesefectivamenteenlarealidadsocial,sinentrar a considerar si este derecho positivo puede ser calificadodesdeunpuntodevistadealgúnvalor,esdecir,desdedeunpuntode vista político, como bueno o malo, como justo o injusto; tododerechopositivopuedeserconsideradocomojustodesdeunpuntode vista político y como injusto desde otro punto de vista tambiénpolítico; pero esto no puede suceder desde el punto de vista de laciencia del derecho que como toda ciencia verdadera no valora suobjeto sino que lo describe, no lo justifica o condenaemocionalmente,sinoqueloexplicaracionalmente.34.

Deste modo, para Kelsen a interpretação científica seria um ato de

conhecimento,“puradeterminaçãocongnoscitivadosentidodasnormasjurídicas35”.No

âmbito da Recthswissenschaft, ao intérprete caberia apenas apresentar com

neutralidade e imparcialidade as significações normativas possíveis. A pureza buscada

somente seria possível cindindo a linguagem em dois níveis, o nível lógico-científico

(descritivo) e o nível da aplicação concreta do direito (prescritiva). A teoria do Fato

JurídicodePontestambémpressupõeestadistinção.

Noutropasso, tantoPontescomoKelsenpartemdeumaconcepção relativista

para construir suas teorias. Kelsen afirma categóricamente que: “la teoría pura del

derecho es positivismo jurídico, el simplemente la teoría delpositivismo jurídico, y el

positivismojurídicoestaíntimamenteligadoconelrelativismo36”.Comistoojuristase

apartava do Jusnaturalismo que buscava um fundamento último (metafísico) para o

direito.Assim, para ambos a origemdodireito seria a vontadehumana.Destemodo,

34KELSEN, Hans.¿ Qué es la Teoría Pura del derecho? 5. ed. Colonia del Carmen-MEX: DistribucionesFontamara,1997,p.31.LivreTradução:(…)ateoriapuradodireitoéumateoriapuradodireito,nãoumateoriadodireitopurocomoseuscríticostemafirmadoerroneamenteasvezes.Umdireito“puro”somentepoderiasignificar–seéquepodesignificaralgo–queumdireitoretoédireitojusto.Masateoriadodireitonão quer e não pode ser una teoria do direito reto ou justo, pois não pode pretender dar a resposta àpergunta:oqueéojusto?Aciênciadodireitopositivoé–comosetemdito–umateoriadodireitoreal,dodireito tal como é criado realmente pelo costume, pela legislação ou a decisão judicial e tal como éefetivamentenarealidadesocial,sementrarnaconsideraçãoseestedireitopositivopodeserqualificadodesdeopontodevistadealgumvalor, istoé,desdeumpontodevistapolítico,comobomoumal,comojustoouinjusto;todoodireitopositivopodeserconsideradojustodesdeumpontodevistapolítico;masistonãopodeacontecerdesdeumpontodevistadaciênciadodireitoquecomotodaaciênciaverdadeiranão valora seu objeto apenas o descreve, não o justifica ou o condena emocionalmente, mas o explicaracionalmente.35KELSEN,Hans.Teoriapuradodireito:introduçãoàproblemáticacientíficadodireito.Trad.J.CretellaJr.eAgnesCretella.6.ed.rev.datradução.SãoPaulo:EditoraRevistadosTribunais,2009.p.370.36Idem,1997,p.31.

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diferente de uma ciência natural, o elemento volitivo é que torna algo como jurídico

medianteumaimputação(Kelsen),umaincidência(Pontes).

Diante destas similaridades, pode-se inferir que Pontes de Miranda e Hans

Kelsen37partilhavam, ainda que parcialmente, de um mesmo background filosófico.

Neste sentido, apresenta-se o Neopositivismo Lógico do Círculo de Viena e suas

elaboraçõessobreaCiência,comoummovimentoqueinfluenciouoprojetoteóricodos

doisjuristas.

Em síntese, o Neopositivsimo Lógico constitui-se em ummovimento formado

porfilósofosecientistasdeváriasáreasdosaber,quesereuniamemVienanaprimera

metadedoséc.XIXparadiscutir,dentreoutrostemas,osproblemasdosfundamentos

do conhecimento científico. Dentre os membros proeminentes do Círculo de Viena

encontram-seMoritzSchlick,RudolfCarnap,OttoNeurath,HerbertFeigl,PhilippFrank,

FriedrichWaissman,HansHahn.

No primado de uma razão teórica, intentaram produzir um conhecimento

científico rigoroso e exato, livre das ambiguidades e conceitos vazios de sentido

encontrados na linguagem comum.Dessa forma, pensavamacerca da necessidade de

um outro nível de linguagem, mais lógico-analítico, que dava prevalência às análises

sintáticas (relaçãodos signos comos signos) e semânticas (relaçãodos signos comos

objetos que representam) em detrimento da pragmática (relação do signo com o

emissorereceptordamensagem).

Mesmo não havendo uma unidade filosófica quanto aos meios, o Círculo de

Vienacompartilhavaumprogramacomumquepodesersintetizadoemquatropontos:

1)areduçãodafilosofiaaumateoriadoconhecimento;2)adistinçãodasciências,não

mais em ciências da natureza e ciências humanas, e sim em ciências empíricas e

analíticas; 3) o logicismo como programa de redução das ciências analíticas; 4) o

reducionismo como programa de redução das ciências sintéticas ou empíricas38. O

NeopositivismoLógicoficoutambémconhecidocomoempirismológico/científico.

Nointentodeunificaraciênciapensavamnumametodologiacientíficacapazde

evitarasdisputasmetafísicas.Nessesentido,umadasdoutrinasmaiscaracterísticasfoi

37Destaca-se também, apesar de não ser objeto deste trabalho, que juntamente com o NeopositivismoLógicoHansKelsentambémfoibastanteinfluenciadopeloNeokantismo,tantodaEscoladeMarburgocomdaEscoladeBaden.38QUELBANI,Mélika.OCírculodeViena.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2009.p.17.

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denominada de princípio da verificação ou negação, em que a inteligibilidade do

significadodeumaproposiçãoestavacircunscritoasuaverificação(empírica)39.

Neste contexto, forjou-se a concepção fisicalista, que entendia que a

objetividade seria independente da perspectiva humana e que esta seria baseada

apenasemfatosbrutos.Esses fatosestariamcircunscritosàquiloqueseriapassívelde

ser mensurado, quantificado em termos matemáticos. Como resultado ter-se-iam

apenas conceitos extensionais que, acreditavam, não necessitar de um

compartilhamentode formasdevidaparaoseuconhecimento. Istoé,aoafirmarque

águaferveacemgrauscelsius,oenunciadoseriaobjetivamenteválidoeverdadeiroem

qualquerlugarmesmodiantedasidiossincrasiasculturais.

Discorrendosobreainfluênciadestaconcepçãonodireito,CláudioMichelonJr.

Dizque“deumlado,tantorealistasquantoKelsenligamaobjetividade(oquepodeser

descrito)aum“mundofísico”,aum“mundodotempoedoespaço”etc.e,dessaforma,

pretendemprivilegiaraciênciaquesetornouopadrãoparaoconhecimento“absoluto”

(independentementedenossaperspectiva):afísica”40.

Nota-se que isto também é extensível à teoria do Fato Jurídico de Pontes de

Miranda. Observa-se que o mundo jurídico é apenas parte do mundo físico que foi

coloridopelaincidêncianormativa,sendoosuportefáticooelementoindispensávelde

verificabilidade.Masquaisseriamosfatospoderiamsermarcadospelodireito?Pontes

respondeaestaindagaçãonosseguintestermos:

Fatos juridicizáveis (= suscetíveis de entrada no mundo jurídico)podem ser acontecimentos simples, acontecimentos em complexo,estadosouacontecimentos continuativos.Oacontecimento simplesé aquele que não se pode desagregar em dois ou mais. É o fatoatômicodeL.Wittgenstein41.

Qualqueracontecimento,ouseja,umaexternalidadepassíveldecomprovação,

algoqueprovoquealgumaalteraçãonomundofísico,podeconstituirosuportefático.O

que é também bastante significativo neste fragmento é a menção feita ao filósofo

Ludwig Wittgenstein. Diante deste rastro – que permite a inferência acerca do

39Cf.BLACKBURN,Simon.DicionárioOxforddeFilosofia.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,1997,p.304-30540MICHELONJR,CláudioFortunato.Aceitaçãoeobjetividade:umacomparaçãoentreastesesdeHartedopositivismoprecedentesobrealinguagemeoconhecimentododireito.SãoPaulo:R.dosTribunais,2004.p.116-117.41Idem,MIRANDA,Pontesde.1999,p.69.

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conhecimento de sua filosofia – cumpre observar se este filósofo exerceu alguma

influênciadebasenoprojetopontesianosobanálise.

Wittgenstein, apesar de não estar entre os membros do Círculo de Viena,

influenciou significativamente este movimento, sobretudo, em sua obra Tractatus

Logico-Philosophicus. Este escrito, um dos principais da filosofia do séc. XX, contém

teses simples, mas que projetam consequências problemáticas. Franca D’Agostini as

resumenosseguintestermos:

O mundo é o conjunto dos fatos, nós formamos imagens dessesfatos, e algumas dessas imagens são “linguísticas”, isto é, sãoproposições.Essasimagenslinguísticastêmdeterminadaforma,temum sentido, tem um valor de verdade (podem ser verdadeiras oufalsas). Ora, tem sentido somente as proposições (verdadeiras oufalsas) que constituem imagens de fatos do mundo (reais oupossíveis)ouqueconstamdeumacomposiçãodetaisimagens.Dissoresulta que as proposições da metafísica, da ética, da teologia(tambémda psicologia ou da estética) são privadas de sentido, e éimpossívelfalardestesargumentosdemodo“sensato”42.

Sobopontode vista ontológicodoTractatus omundoé entendido comoum

conjunto de fatos, ou seja, é composto das relações entre os objetos e não de entes

isolados.Osfatosmanifestam-secomocomponentesbásicosapartirdosquaisomundo

é construído43. Isto já se evidencia na abertura da obra em queWittgenstein assim

declara:

1.Omundoétudooqueocorre.1.1Omundoéatotalidadedosfatos,nãodascoisas.1.11 O mundo é determinado pelos fatos e por isto consistir emtodososfatos.1.12Atotalidadedosfatosdetermina,pois,oqueocorreetambémtudoquenãoocorre.1.13Osfatos,noespaçológico,sãoomundo.1.2Omundoseresolveemfatos.1.21Algopodeocorrerounãoocorreretodoorestopermanecernamesma.2Oqueocorre,ofato,éosubsistirdosestadosdecoisas.2.01Oestadodecoisaséumaligaçãodeobjetos(coisas)44.

Nestaperspectiva,a linguagemse tornauma figuraçãoda realidade.Assim,as

proposições podem ser verificáveis ou não a partir de sua redutibilidade a fatos

observáveis, e por consequência com a aplicação das leis da lógica, atestar a sua42D'AGOSTINI, Franca.Analíticos e continentais: guia à filosofia dos últimos trinta anos. São Leopoldo:UNISINOS,2002.p.30343Cf.MARQUES,Edgar.Witgenstein&oTractatus.RiodeJaneiro:JorgeZaharEd.,2005,p.31.44WITTGENSTEIN,Ludwig.TractatusLogicus-Philosophicus.SãoPaulo:CompanhiaEditorialNacional,1968,p.55.

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veracidade/falsidade. Destarte, apresentam-se os seguintes aforismas

wittgensteinianos:

4.Opensamentoéaproposiçãosignificativa.4.001.Atotalidadedasproposiçõeséalinguagem45.(...)4.01.Aproposiçãoéfiguraçãodarealidade46.(...)4.1 A proposição representa a subsistência e a não-subsistênciadosestadosdecoisas47.(...)4.2Osentidodeumaproposiçãoésuaconcordânciaousuadiscordância com a possibilidade da subsistência ou não-subsistênciadeestadosdecoisas48.(...)4.3 As possibilidades de verdade das proposiçõeselementaresdenotamaspossibilidadesdasubsistênciaedanão-subsistênciadeestadosdecoisas.(...)4.4 A proposição é a expressão da concordância e dadiscordância com as possibilidades de verdade dasproposiçõeselementares49.

Há para Wittgenstein uma relação entre os fatos e as proposições. O fato

corresponde à realidade, é percebido e projeta uma imagem no pensamento, esta é

expressa linguisticamente (e logicamente) numa proposição. A logicidade das

proposiçõeséumadecorrênciadopensamentoumavezqueesteéumafiguraçãológica

dosfatos50.

Após estas incursões na filosofia do primeiro Wittgenstein51os nexos com a

TeoriadoFatoJurídicodePontesdeMirandasaltamaosolhos,tamanhaasimilaridade,

mesmonãohavendoestereconhecimentoexpressodojurista.

Assim, é possível identificar uma influência wittgensteiniana em Pontes nos

seguintes aspectos: 1) no conceitodemundo físico, comoa totalidadedos fatos ede

mundo jurídico como a totalidade dos fatos jurídicos; 2) na compreensão relacional

acercadoconhecimentosobreascoisasdomundo,ouseja,nãoisolacionista;3)naideia

deregra jurídicacomoumaproposiçãológicaeodireitocomosistemalógicoumavez

45Ibidem,p.70.46Ibidem,p.71.47Ibidem,p.76.48Ibidem,p.82.49Ibidem,p.8450Cf.Ibidem,p.61.51AreferênciaaoprimeiroWittgensteindecorredofatoqueoprópriofilósofoquestionouposteriormentesuasideiasexpressasnoTractatus,períodoquecaracterizaumsegundoWittgensteinequeémarcadocomapublicaçãodasInvestigaçõesFilosóficas.

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queambosresultamdopensamentoqueimagina–nosentidodeformarimagens–o

real;4)nosuportefáticocomofiguraçãodosfatos jurídicos5)na ideiade infalibidade

daincidênciaporoperarnomundodopensamentoque,poróbvio,prescindideefeitos

concretosparasuaexistência;6)nainterpretaçãocomo“revelação”,sendoalinguagem

figurativa ela espelha algo que pode ser verificado, isto é, não é uma criação, é um

projetardopensamento.

NadesleituradaTeoriadoFatoJurídicodePontesdeMirandaencontraram-se

as ideiasfilosóficasqueWittgensteinformulounoTractatus,oquestionamentoquese

impõe é: com a superação desta cosmovisão filosófica não ruiria também o edifício

pontesianoqueseassentousobreela?Sobreistoversaráaparteseguinte.

4.WittgensteinII,oproblema:(Pode)umaTeoriadoFatoJurídicosemfaticidade?

Peloque já foi apresentado,pressupõe-sequeaTeoriadoFato JurídicodoPontesde

Miranda foi edificada sobre a filosofia do primeiro Wittgenstein. Diante disto, faz-se

necessárioapresentar,aindaqueemlinhasgerais,arupturaqueofilósofofezcomasua

própria construção. Esta exposição objetiva observar como a teoria pontesiana

sobreviveriaàs(mesmas)críticasfeitasàtradiçãoquelheserviudefundamento.

Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas, expõe todo um repensar de sua

própriafilosofiaexpressanoTratactus,queestavainseridanumaconcepçãoobjetivista

da linguagem. Nesse primeiro momento, o filósofo entendia que a relação entre a

linguagemeomundo sedavamedianteadesignação.O caráterdesignativoera visto

comooprincipalouatémesmooúnicodalinguagem52.Omundoteriaumaexistência

52 Sobre o tema Manfredo Araújo de Oliveira declara que: ‘Precisamente nisso vai consistir para ele alimitaçãodafilosofiaocidentaldalinguagem.Essateoriadesignativadalinguagemassumiuduasformas:háosqueafirmamqueaspalavrasdesignampurae simplesmenteas coisas singulares,pois,alémdecoisassingularesepalavrasnadaexiste.Ou,então,numaoutra linhamuitomais fortenatradiçãoocidental,dizquecomumapalavrapode-sedesignarmuitascoisas,porqueaspalavrasdesignamnãocoisassingulares,masaessência comoamuitas coisas. [...] Em suma, aspalavras têmsentidoporqueháobjetosqueelasdesignam: coisas singulares ou essências. Esses objetos são dos mais diferentes tipos, havendo mesmoobjetosmuitoespeciais,osfatos,assituaçõesobjetais,designadospelasfrases.AúltimaformadestateorianoOcidenteé,exatamente,a teoriadaafiguraçãocomocorrespondênciaentre fraseeestadodecoisas,respectivamente,fatos,elaboradanoTratactus.Afraserepresenta,porsemelhançaestrutural,oestadodecosias por ela referido. A teoria do Tratactus significa, assim, uma reformulação da teoria tradicional dasemelhança entre linguagem e mundo. Já que a linguagem não passa de um reflexo, de uma cópia domundo, o decisivo é a estrutura ontológica do mundo que a linguagem deve anunciar. A essência dalinguagemdepende,assim,emúltimaanálise,daestruturaontológicadoreal.Existeummundoemsiquenos é dado independente da linguagem, mas que a linguagem tem a função de exprimir. Foi por ter

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“em si” e sua estrutura poderia ser racionalmente conhecida, sendo, a posteriori,

comunicada por intermédio da linguagem, que teria, portanto, uma importância

secundária.

Nas Investigações, o filósofo contrapõe essa (quase) exclusividade da função

designativadalinguagem.Aoindagar“quantostiposdefrasesexistem?”,respondeque

são inúmerosequeessapluralidadenãoé fixa,poisnovos (tipos) jogosde linguagem

nascem enquanto outros envelhecem. Amultiplicidade destes jogos poderia ser vista

pormeiodeváriosexemplos,aconstar:comandar,agirconformecomandos,descrever,

produzir, relatar, conjecturar, expor, apresentar inventar, representar, cantar, resolver

etc53.

Aprofundando essa crítica, Wittgenstein confronta a pressuposição

epistemológicadequeoconhecimentohumanoseriaalgonãolinguístico54.Assim,não

existiriaummundoindependentedalinguagem,equeestadeveriaapenasespelhá-lo.

Omundoseriamanifestonaepelalinguagem.Ora,dessemodo,abandona-seoidealde

exatidãodaspalavras,quepassaaserentendidocomoummitofilosófico.

Noentanto,aindaseriapossíveldeterminarasignificaçãodaspalavras,nãode

modo prévio e definitivo, mas, transitoriamente, por intermédio do contexto

sociopráticoemquesãoutilizadas55.Assim,ManfredoAraújo56concluique

O cerne da reflexão linguística de Wittgenstein deixa de ser alinguagemidealparasetornarasituaçãonaqualohomemusaasualinguagem;entãooúnicomeiodesaberoqueéalinguageméolharseusdiferentesusos.

À filosofia caberia apenas descrever o funcionamento da linguagem, seus

diversos usos, sem justificá-la57. A linguagem é vista como parte constitutiva de um

radicalizadonoTratactustalposiçãoqueWittgensteinsedeixouguiarpeloidealdeumalinguagemperfeitacapaz de reproduzir com absoluta exatidão a estrutura ontológica do mundo’. In: OLIVEIRA, ManfredoAraújode.Reviravoltalingüístico-pragmáticanafilosofiacontemporânea.SãoPaulo:Loyola,1996.p.120-121.53WITTGENSTEIN,Ludwig.InvestigaçõesFilosóficas.SãoPaulo:EditoraNovaCultural,1999.§23,p.35-36.54Idem,OLIVEIRA,ManfredoAraújode.1996,p.127.55Nesta linha, Paulo Alcofarado entende que em Wittgentein ‘[...] a pesquisa acerca do significado dasexpressões linguísticas deve voltar-se para o seu contexto de uso e não para sob o ponto de vista delinguagensformalizadas’.In:ALCOFORADO,Paulo.AFilosofiadaLinguagemOrdinária.ActaSemiológicaetLingvistica, João Pessoa, v. 4, n. 1, 1980. Disponível em:<http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/actas/article/view/16609/9472>.Acessoem:17nov.2014.56OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. SãoPaulo:Loyola,1996.p.13257Idem,WITTGENSTEIN,Ludwig.1999.§124,p.67.

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determinado contexto de ação, denominado de “forma de vida” 58 , que é

necessariamentecompartilhado.Assim,asváriasformasdevidapossibilitariammuitos

usos/jogosdelinguagem.NaspalavrasdeWittgenstein59:

Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta ecomando,talvez?–Háinúmerasdetaisespécies:inúmerasespéciesdiferentes de emprego daquilo que chamamos de “signo”,“palavras”,“frases”.Eessapluralidadenãoénadafixo,umdadoparasempre,mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem,como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e sãoesquecidos. (Uma imagem aproximada disto pode nos dar asmodificaçõesdamatemática).O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar dalinguageméumapartedeumaatividadeoudeumaformadevida.

Estaanalogiacomosjogospossibilitapensarnumaaçãointersubjetivamediante

regrasquetambémsãocoletivamenteaceitas.Araújo60destacaqueoconceitodejogos

delinguagemtemcomoobjetivodenotarqueemcontextosdistintos,diferentesregras

são seguidas, sendoestasnecessáriasparaadeterminaçãodo sentidodasexpressões

linguísticas.Estasregrasdeusoformariamumagramáticaprofundaquerevelariauma

concordância de um modo de vida61. A partir desse quadro de referência, seriam

determinadas as fronteiras das ações possíveis, que seriam “livremente” feitas pelos

participantes, mesmo porque ainda existiriam usos não regulados62. Por isso, mesmo

sobasmesmasregras,cadaumjogariaàsuamaneira.

Outra ideia central na (segunda) filosofia deWittgenstein é a noçãode seguir

uma regra63(Rule-Following). Diferentemente do Tratactus em que a linguagem é

concebida como cálculo e as regras estariam num plano lógico-sintático, nas

58 O conceito de “formas de vida” (Lebensform), apesar de muito importante na segunda filosofia deWittgenstein, aparece poucas vezes nas Investigações e uma vez em Sobre a Certeza. Ainda querelacionadasaosjogosdelinguagem,asformasdevidaassumemumcarátermaisgeraleelementar,comoumpadrãoinjustificadodaatividadehumanaeque,arraigadoculturalmente,manifesta-secomumdado.Éo locus em que a linguagem se constitui, sendo seu “fundamento” último. CONDÉ,Mauro Lúcio Leitão.Wittgenstein:linguagememundo.SãoPaulo:Annablume,1998.p.101-105.59Ibidem,§23,p.35.60Idem,OLIVEIRA,1996.p.139.61Idem,WITTGENSTEIN,Ludwig.1999.§241,p.98.62Ibidem,§68,p.53.63Nessesentido,Glocksustentaque:“Rulesplayacrucial role inWittgensteinphilosophybecauseof twoabiding convictions: firstly, language is a rule-guided activity; secondly, the priori status of logic,mathematics and philosophy derives from such rules”. GLOCK, Hans-Johann. A Wittgenstein dictionary.Malden,MA:Blackwell,2005.p.323.Traduçãolivre:“JogoderegrastemumafunçãocrucialnafilosofiadeWittgensteinporcausadeduasconvicçõespermanentes:primeiramente,linguageméumaatividadeguiadaporregras;emsegundolugar,ostatusantecedentedalógica,matemáticaefilosofiaderivadetaisregras”.

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Investigações as regras se escondem por detrás da superfície da linguagem natural64.

Nãoobstanteaofatodofilósofonãoterintentadodesenvolverumconceito(analítico)

deregra,partindodeváriosexemplos,Hans-JohannGlockextraiseispontosgerais:

a)Regrassãopadrõesdecorreção,elasnãodescrevem,porexemplo,como as pessoas falam, mas ao invés definem o que é falarcorretamenteoucomsignificado.b) Existe uma diferença entre uma regra e sua expressão, aformulação da regra, assim como entre um número e um numeral(e.g., a mesma regra pode ser expressa em diferentes linguagens).Mas a diferença não é entre uma entidade abstrata e seu nomeconcreto,masentrea funçãonormativaea forma linguísticausadapara realizar essa função.Nóspodemosesclarecer anoçãodeumaregrapor intermédioda investigaçãodopapeldas formulaçõesdasregras.c) Diferente dos comandos ou ordens, regras são inerentementegerais uma vez que governam com frequência uma multiplicidadeilimitadadeocasiões.d) Características como (a) ou (c) não são vinculadas às formasparticulares das palavras – uma proposição gramatical expressandoumaregra linguísticanãoprecisaserumaafirmaçãometalinguísticasobreoempregodaspalavras,ouconterexpressõesdegeneralidade(gerais/genéricas). Ao contrário, elas dependem se uma expressãotemumafunçãonormativanumadadaocasião.e)‘Seguir-Regras’éumverbo-realização:existeumadiferençaentreacreditarquealguémestáseguindoaregraerealmentesegui-la.f)OpontocrucialdemudançanaconcepçãoderegraslinguísticasdeWittgenstein está na existência de umadiferença entre seguir umaregraemeramenteagirdeacordo comuma regra. Todavia, seguir-regras pressupõe uma regularidade no comportamento, isto não odistinguederegularidadesnaturaiscomoomovimentodosplanetasou atos humanos que acontecem em conformidade com regrasinvoluntariamente. Se um agente segue a regra em Φing, a regradeve ser partede suas razõesparaΦing, e não apenasuma causa.ElenãotemumaopiniãosobreouconsultaaformulaçãodasregrasenquantoΦing,ésomentenecessárioqueeleaapresente,justifiqueou explique sua Φing. [...]. Esses são casos em que é guiadopassivamente, sem ser capaz de explanar porque ele agiu daquelaforma,ouensinaroutrosatécnicadeseguiressaorientação65.

64Ibidem,p.324.65Livretradução.Nooriginal:‘a)Rulesarestandardsofcorrectness;theydonotdescribe,forexample,howpeoplespeak,butratherdefinewhatitistospeakcorrectlyormeaningfully;b)Thereisadifferencebetweenaruleitsexpression,arule-formulation,justasbetweenanumberandanumeral(e.g.,thesamerulecanbeexpressedindifferentlanguages).Butthedifferenceisnotonebetweenanabstractentityanditsconcretename, but one between a normative function, and linguistic formused to perform that function.We canclarifythenotionofarulebyinvestigatingtheroleofrule-formulations;c)Unlikecommandsororders,rulesareinherentlygeneralinthattheygovernanoftenunlimitedmultiplicityofoccasions;d)Featureslike(a)or(c)arenottiedtoparticularformsofwords–agrammaticalpropositionexpressingalinguisticruleneednotbeametalinguistcstatementabouttheemploymentofwords,orcontainexpressionsofgenerality.Rather,theydependonwhetheranexpressionhasnormativefunctiononagiveoccasion;e) ‘Rule-following’ isanachievement-verb: there is a difference between believing that one is following the rule and actuallyfollowingit;f)ThecrucialpointforthechangeinWittgensteinconceptionoflinguisticrulesisthatthereisa

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Estas regras seriam seguidas porque socialmente adquire-se o hábito de

reconhecê-laseagirdeumadeterminamaneira.Comojogarxadrez,aceitarumaordem

ou fazer uma comunicação, seguir uma regra é um hábito 66 . Por isso, para

Wittgenstein67,“[...]seguirumaregraéumaprática”.Então,acreditarseguiraregranão

é seguir a regra. E daí não ter sentido a ideia de seguir uma regra demodo privado.

Antesdeserumexercício intelectual,éumapráticaquepressupõeumaconvergência

social.

O giro linguístico operado por Wittgenstein alterou significativamente a sua

FilosofiadaLinguagem.Daartificialidadedasproposiçõeslógicasquerepresentavamas

imagens mentais do real, para uma linguagem comum/ordinária e, em certo sentido

não-lógica,masqueseriainteligíveldiantedocompartilhamentodeformasdevida.Há

umaabertura à intersubjetividade e à historicidade, postura que se radicalizou coma

HermenêuticaContinentaldematizheideggeriana.

Ouseja,aquelebackgroundfilosóficofoisuperadopelopróprioWittgensteine

poroutrasconstruçõesposteriores.Destemodo,numprimeiromomento,aTeoriado

FatoJurídico,tambémseapresentariasuperada,ouaomenosfragilizada,umavezque

seuspressupostosforamquestionados.

EmPontesdeMiranda as regras jurídicas formamum sistema lógicoqueestá

fora do mundo, no sentido existencial, para que a partir de sua incidência, pudesse

adentrar certos fatos ao seu universo, designando-os como jurídicos. Isto, dentro de

umadepuraçãoconceitual,quetraçandooscontornosdeprecisosdeseussignificados,

afastariaquaisquerdúvidasquantoasuaaplicação.

Observa-sequenãoháquestionamentosacercadalegitimidade,tudoseresolve

no âmbito da validade. As proposições jurídicas designam os fatos, os marcam,

formando um subconjunto, o direito, dentro da totalidade dos fatos que formaria o

mundo.Odireitoestápré-pronto,antecipandoasocorrênciaselhedandoasrespostas

difference between following a rule andmerely acting in accordancewith a rule. Although rule-followingpresupposes a regularity in behaviour, this does not distinguish it from natural regularities like themovementtheplanetsorhumanactswhichhappentoconformtoaruleunintentionally.IfanagentfollowsaruleinΦing,therulemustbepartofhisreasonforΦing,andnotjustacause.Hedoesnothaveathinkaboutorconsulttherule-formulationwhileΦing,itisonlyrequiredthathewouldadduceitjustifyorexplainhisΦing.(…).Thesearecasesinwhichisguidedpassively,withoutbeingabletoexplainwhyheactsashedoes,ortoteachothersthetechniqueoffollowingthisguidance.’Ibidem,p.324-325.66Idem,1999.§198,199,200e241,p.91-93.67Ibidem,§202,p.93.

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já estabelecidas anteriormente. E o mundo é uma mera externalidade objetual que

apreendemosemsuasrelações.

O problema que Wittgenstein enuncia e isto ficará mais explícito em Martin

Heidegger, é que a experiência com mundo não se esgota numa objetualidade

designativa, ou seja, há algo anterior que a constitui. Para partilhar os jogos de

linguagem,existetambémanecessidadedocompartilhamentodeuma“formadevida”

que lhe é condição de possibilidade. Pensar o direito em termos lógicos esvazia dos

fatos(jurídicos)afaticidade,ouseja,seucaráterexistencial.

MartinHeideggertransformouaHermenêuticaemfilosofia.Oqueantesera

vista comouma técnicade interpretaçãode textosoucomometodologiadas ciências

humanastorna-seumaHermenêuticadaexistência,dafacticidade.JeanGrondinafirma

que:“afacticidadedesignaaquiaexistênciaconcretaeindividualqueinicialmentenão

é para nós um objeto, e sim uma aventura na qual somos projetados e para qual

podemosdespertardemaneiraexpressaounão68”.

Assim,ainterpretaçãovolta-separaaprópriaexistência,ondeoser-humanose

constitui de modo autêntico (Dasein), não podendo substituí-la, mas apenas por

intermédio de “indícios formais” permitir que ela se aproprie das sua próprias

possibilidades.

EmHeideggeraontologiatransforma-seemumahermenêuticadafaticidade,ao

modo-de-ser do próprio Dasein que como ente privilegiado compreende a realidade

compreendendoasimesmo.Todavia,estanãoéumadecorrênciaautomática,épreciso

umdar-secontadesteprojetar-se,pois,aocontrário,oquesedáéumesquecimento

numa existência inautêntica, impessoal. Em Conceitos Fundamentais da Metafísica o

filósofoafirmaque“lapiedraessinmundo,elanimalespobredemundo,mientrasel

hombreconfiguramundo69”.OmundoapareceenquantoocomodoHomem.Assim,a

interpretaçãonãoseriasimplesmenteummododeconhecer,seria,portanto,ummodo

seser,deexistireporissoéontológica.

Os sentidos estão no mundo, todavia, este não é um conjunto de tudo que

existe, uma totalidade de fatos (externos), é o lócus em que os entes se desvelam,

inclusive o Homem como ser-no-mundo. Deste modo, a interpretação é uma

explicitaçãodaquiloquefoicompreendidonoencontrocomooutro.Quandosefalaou68GRONDIN,Jean.Hermenêutica.SãoPaulo:ParábolaEditorial,2012.69HEIDEGGER,Martin.Los conceptos fundamentales de lametafísica.Mundo, finitud, soledad.Madrid:AlianzaEditorial,2007,p.227

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escreveapalavramartelo,existeumhorizontepréviodesentidoqueserefereanossa

prática comoeste ente e quepermite suaenunciaçãonum código linguístico70.Deste

modo, há uma abertura existencial, histórica, finita e temporal na interpretação do

mundo.

Lainterpretaciónsefundaentodosloscasosenun“verprevio”querecorta lo tomado en el “tener previo” de acuerdo con unadeterminada posibilidad de interpretación. Lo comprendido tenidoenel“tenerprevio”yvistoenel“verprevio”sevuelve,porobradela interpretación. (….)Comoquieraque sea, la interpretación sehadecidido encadacasoya,definitivamenteoconreservas,porunosdeterminadosconceptos;sefundaenun“concebirprevio”71.

Desta forma, a interpretação do Homem explicita e elabora as possibilidades

projetadasnacompreensão.Aquiloquefoicompreendidoassumeaformadealgocomo

algo (etwasalsetwas).Contudo,nãose tratadeconceitosabstratos,atemporais,mas

de termos que encontram seu sentido na existência fática. Nesse ambiente, o direito

também está lançado, ao abstraí-lo deste contexto, como tradicionalmente fez o

PositivismoJurídico,perde-seseucaráterexistenciale torna-seapenasumobjetoque

podemosmanejartécnicaelogicamente,comoPontesdeMirandapressupunha.Neste

contexto,ainterpretaçãotorna-seumarevelação,uminstrumentodedepuraçãológico-

conceitual,deumdireitopré-existente.Ouseja,odireitonãoestarianafaticidade,que

éumaexperiênciaintersubjetiva,masnumapretensaobjetividadelógica,quenãomais

respondeasexigênciashistóricasda contemporaneidade, comdestaque, aoproblema

dalegitimidadedodiscursojurídico.

5.ConsideraçõesFinais

É inegável a importância de Pontes de Miranda na história do pensamento jurídico

pátrio.Reconhece-sequeasuaTeoriadoFatoJurídicoaindahojeéaceitaeutilizadapor

parcela significativa de civilistas, porém já se tem percebido a necessidade de um

repensar.

70 “Heidegger deja bastante claro que ya antes de la interpretación predicativa hay una interpretaciónprevia, correspondienteaun comprenderprevioenelmundo”. Tradução livre:Heideggerdeixabastanteclaro que já antes da interpretação predicativa há uma interpretação prévia, correspondente à umcompreender prévio no mundo. BERCIANO VILLALIBRE, Modesto. La revolución filosófica de MartinHeidegger.Madrid:BibliotecaNueva,2001.71HEIDEGGER,Martin.Elseryeltiempo.4.ed.México:FondodeCulturaEconómica,1971p.168

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Conformese tentoudemonstrar,estaconstrução teóricadePontes seassenta

nos pressupostos do Neopositivismo Lógico, mais especificamente, no arcabouço

filosófico do primeiro Wittgenstein. Todavia, com todo um questionamento a este

background feito (também) pelo próprio filósofo e radicalizado pela Filosofia

Hermenêutica percebe-se uma forte fragilização do edifício pontesiano uma vez que

suascategoriascentraisforamtodasprojetadassobreestasbases.

Neste ponto, ao menos, duas possibilidades se apresentam. Uma seria o

abandonoda Teoria do Fatodo Jurídico reconhecendo sua finitudehistórica.Ou seja,

que foi adequadaapenasparaumdeterminadoperíodo.Aoutrapossibilidade seria a

tentativa de operar com as mesmas categorias ou outras equivalentes, sob uma

cosmovisãofilosóficadiferente.Contudo,adiscussãoagorasevoltaparasaberseneste

segundocaminhoaindaestáasefalardateoriapontesiana,ouseoquefoireconstruído

já se faz novo. Ainda assim, o importante para a “dogmática” é manter-se

constantementeabertaparaverificaroslimitesdesuaselaborações,comdestaqueaos

paradigmas filosóficos que as sustenta, e assim, desenvolver olhares adequados ao

momentopresente.

6.Referênciasbibliográficas

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WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logicus-Philosophicus. São Paulo: CompanhiaEditorialNacional,1968.______.Investigaçõesfilosóficas.SãoPaulo:EditoraNovaCultural,1999. SobreosautoresLenioLuizStreckDoutor em Direito (UFSC); Pós-Doutor em Direito (FDUL). Professor Titular daUniversidadedoValedoRiodosSinos–UNISINOS(RS)eUniversidadeEstáciodeSá–UNESA(RJ).Pro¬fessorVisitantedaUniversidadeJaverianadeBogotá,CoimbraeLisboa(PT). Coordenador do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Procurador deJustiça(RS)aposentado.Advogado.E-mail:[email protected]úblicopelaUniversidadedoValedoRiodosSinos–UNISINOS como bolsista CAPES. Graduado em Direito pela Universidade Estadual doSudoestedaBahia-UESB\BA.MembrodoDASEIN–NúcleodeEstudosHermenêuticos.E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.