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TÍTULO:O caso do sapato da ladra AUTOR: GARDNER, Erle Stanley GÉNERO: Romance policial CLASSIFICAÇÃO: Literatura norte-americana - Século XX - Ficção EDITORA: Livros do Brasil Lisboa, 19** COLECÇÃO:Obras Escolhidas de Erle Stanley Gardner nº 2 DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR: Aventino de Jesus Teixeira Gonçalves Maio de 2003 *** Os livros desta colecção são constituídos por dois títulos. Este é o segundo , sendo o primeiro: O caso do rosto substituído Nota do digitalizador O CASO DO SAPATO DA LADRA Tradução de ALFREDO MARGARIDO * Capa de ANTÓNIO PEDRO * Título da edição original THE CASE OF THE SHOPLIFTER'S SHOE Copyright (g) 1938 by Erie Stanley Gardner Reservados todos os direitos pela legislação em vigor CAPÍTULO I Grossas gotas de chuva estalavam no passeio. Corramosdisse Perry Mason apertando com a mão o cotovelo de Della Street, que se lançou para a frente. Ela caminhava com ligeireza, na ponta dos pés, em largas passadas, desembaraçadamente, mantendo-se, com facilidade, a par de Mason.

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TÍTULO:O caso do sapato da ladraAUTOR: GARDNER, Erle StanleyGÉNERO: Romance policialCLASSIFICAÇÃO: Literatura norte-americana - Século XX - FicçãoEDITORA: Livros do BrasilLisboa, 19**COLECÇÃO:Obras Escolhidas de Erle Stanley Gardner nº 2DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR: Aventino de Jesus Teixeira GonçalvesMaio de 2003

***Os livros desta colecção são constituídos por dois títulos. Este é o segundo ,

sendo o primeiro: O caso do rosto substituídoNota do digitalizador

O CASODO SAPATODA LADRA

Tradução deALFREDO MARGARIDO

*

Capa deANTÓNIO PEDRO

*

Título da edição originalTHE CASE OF THE SHOPLIFTER'S SHOE

Copyright (g) 1938 by Erie Stanley GardnerReservados todos os direitos pela legislação em vigor

CAPÍTULO I

Grossas gotas de chuva estalavam no passeio. Corramosdisse Perry Mason apertando com a mãoo cotovelo de Della Street, que se lançou para a frente.Ela caminhava com ligeireza, na ponta dos pés, em largaspassadas, desembaraçadamente, mantendo-se, com facilidade,a par de Mason.

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O aguaceiro tinha-os surpreendido numa ruazinha quenão oferecia nenhum abrigo. No canto, os algerozes descarregavam já torrencialmente. A porta do armazém estava a unsvinte metros. Precipitaram-se. As gotas de chuva, enormesprojécteis líquidos, pareciam ressaltar no passeio antes deexplodir.Mason meteu Della Street na porta giratória: Entremos. Isto ainda está para uma boa meia hora.Há um restaurante no último andar.Ela fitou-o através dos longos cílios e comentou:Já entrou alguma vez no salão de chá de um grandearmazém, patrão? Não é coisa muito do seu género.Mason contemplava as gotas de chuva que deslizavampela aba do seu chapéu de palha. É o destino, minha querida. Mas não julgue que a vouacompanhar às secções para lhe carregar os embrulhos.Tomamos o elevador para uma viagem directa. Não ouvireias indicações do ascensorista:253"Segundo andar: confecções para senhoras e crianças!Terceiro bijuterias, pérolas falsas e brincos. Quarto: relojoaria, medalhões." E o quinto? interrompeu ela. Flores, chocolates,livraria. Podia parar aí e dar uma alegria a uma pobreassalariada... Nada a fazer. Sexto andar: restaurante e salão de chá.Directamente.O ascensor subiu lentamente, parando em todos os andares.A empregada recitava a sua monótona litania: Esquecemo-nos dos brinquedos no quinto notou DellaStreet. Um dia destes disse Mason, sonhadordepois de umnegócio rendoso, hei-de comprar um comboio eléctrico comestações, túneis e sinais para o instalar nos nossos escritórios.Para ligar o meu gabinete à biblioteca e...Ela torceu-se de riso. Que lhe aconteceu? Estou a ver Jackson com o sobrolho carregado, a estudar um ponto de direito e o seu comboio a atravessar aporta para parar na mesa em frente dele.Mason conduziu-a a uma mesa vazia, perto de uma janela.Jackson não devia gostar da brincadeira. Esse tipo nuncafoi criança.Ela pegou na lista. Como é você quem paga, patrão, vou tratar de tirar oventre de misérias. Estava a julgar que você seguia um regime?perguntou, fingindo-se consternado. É verdade. Tenho quilo e meio para perder. Então o melhor é um biscoito, com uma chávena de chá

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sem açúcar... , . Veremos isso esta noite observou ela. Sou uma assalariada e sei aproveitar as boas ocasiões. vou comer uma sopade creme de tomate, salada de abacate e toranja, um filete254zinho, alcachofras, batatas recheadas e plum-pudding deconhaque.Mason ergueu os braços ao céu, num espanto. E cá estamos! Lá se vai todo o meu dinheirinho! Voucontentar-me com uma fatia de queijo muito fininha e umcopinho de água.Apareceu a criada. Menina! Duas sopas de creme de tomate, duas saladasde toranja, dois filetezinhos, duas alcachofras, duas batatasrecheadas e dois plum-puddings de conhaque. Mas, patrão exclamou Della Street, eu estava abrincar!À mesa nunca se brinca anunciou severamente Mason. Nunca conseguirei comer tanta comida!Justo castigo dos céus. Ficarei vingado.E, dirigindo-se à criada: Traga isso depressa e não dê atenção aos protestos.A rapariga afastou-se, sorrindo. E vou ficar reduzida a pão e água para o resto dasemana, pelo menos gemeu Della Street. Não é engraçadoexaminar o rosto das pessoas, patrão?Ele aquiesceu com um abanar de cabeça, enquantoexaminava os ocupantes das mesas próximas. Diga-me, patrão continuou ela, já que está habituadoa ver o lado mau da vida, a analisar as más paixões, filhas dahipocrisia social... isso não o tornou cínico? Pelo contrário, encantadora criança. A natureza humananão tem só pontos fracos. A verdadeira filosofia toma as pessoaspelo que são e não espera muito delas. O cínico parte de umerro inicial e lamenta-se. Na verdade, a causa de quase todasas gatunices diárias deve-se ao desejo de satisfazer as nossasconvenções económicas. No fundo de si próprio, o indivíduoé honesto. O vizinho que lhe rouba meio quilo de açúcarestá pronto a arriscar a pele para lhe roubar a água.Como as pessoas são diferentes!exclamou Della255Street, pensativa. Olhe aquela mulher agressiva, à esquerda,que está a maltratar a pobre criada... Este contraste comaquela velha senhora de cabelos brancos, que está de péperto da janela, com aquele belo olhar maternal. É tão calma,tão amável... Uma cleptómanainterrompeu Mason.-Hem? Sim. E o homem que está na caixa a fingir pagar aconta é na verdade um detective do armazém que a seguiu

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até aqui. Uma cleptómana? Como o conseguiu saber, patrão? Repare que ela tem o braço colado ao corpo. Escondequalquer coisa debaixo da capa. Conheço o detective. Vi-ono tribunal... Olhe, a mulher vira a cabeça. Sabe que estáa ser seguida. Irá almoçar aqui? É pouco provável. Não pode tirar a capa... Repare, lávai ela para os lavabos.-Então?Vai procurar ver-se livre da presa... O detective estáa falar com a criada negra. Estão a arranjar as coisas de modoa evitar o escândalo.Aquela velha senhora... uma cleptómana? Não possoacreditar. Aqueles cabelos brancos, aquele olhar franco,aquela boca bem modelada... Não, é impossível.A experiência ensinou-me que as ladras procuramaparentar um ar respeitável. Treinam-se. É uma coisa que fazparte da ética do ofício.A criada trouxe a sopa que fumegava. A criada negra apareceu à porta dos lavabos e fez um sinal com a cabeça aodetective. Um momento depois a senhora dos cabelos brancosapareceu e veio sentar-se numa mesa junto da de Mason, muitocalma, muito senhora de si mesma.Até que enfim a encontro, tia Sarah! Perdi-a no meioda multidão.256A exclamação vinha de uma rapariga alta e com ar decidido. Logo no primeiro relance Mason se deu conta do medoque havia nos seus olhos cinzentos e brilhantes.A velha senhora não perdeu um átomo da sua calma. Pois eu não me preocupei nada, Ginny. Aconteça o queacontecer, sei o que hei-de fazer...O detective interpôs a sua pessoa entre Mason e a velhasenhora. Peço-lhe muita desculpa, minha senhora, mas vejo-meobrigado a pedir-lhe que venha ao meu escritório.Mason pôde ouvir a exclamação abafada da rapariga. Não tenho vontade nenhuma de o fazer, rapaz replicoua senhora, sempre muito calma. vou almoçar, se não vênisso qualquer inconveniente. Se alguém dos escritórios mequiser falar, sabe onde me pode encontrar. Desejava evitar o escândalo recomeçou o detective,muito digno.Muito interessado, Mason afastou o guardanapo. O detective tinha-se colocado atrás da cadeira da sua interlocutoraque, pegando numa fatia de pão, começou lentamente acobri-la de manteiga. Não vale a pena incomodar-se comigo, rapaz. Façacomo quiser.

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A senhora não me está a facilitar as coisas.-Verdade? Não julga, minha tia... arriscou a rapariga. Não sairei daqui enquanto não tiver almoçado interrompeu secamente a tia Sarah. Parece-me que a sopa detomate é uma maravilha... Estou desolado, minha senhora recomeçou o inspector.Vejo-me obrigado a prendê-la em público. Prender-me ?A mão que levava a fatia de pão à boca parou a meiocaminho. " Que me diz você?17-VAMP. G. 2 257Prendo-a por roubo nos escaparates disse o homem.Mordiscando o pão com manteiga, a velha senhoracomeçou a mastigá-lo tranquilamente. Parecia pesar, noespírito, as possibilidades da situação. Que coisa divertida! murmurou, pegando no copo. Seguia-acontinuou o inspector, levantando a voz. Vi-a esconder vários artigos debaixo da capa.E como a mulher pretendesse abrir a capa: É inútil. Sei muito bem que deixou os artigos nos lavabos.Fez um sinal à empregada, que afastou a cortina e desapareceu. Não acredito retorquiu a velha senhora, que pareciaquerer recordar-se. Não me lembro de ter sido alguma vezpresa por roubo nos escaparates... Não, na verdade!Tia! Este homem não está a brincar. Está a falar asério...A empregada reapareceu com uma braçada de roupainterior. Meias de seda, roupas interiores de seda, uma blusa,uma echarpe, um pijama.A rapariga abriu a bolsa e tirou um livro de cheques. A minha tia é muito excêntricaexplicou rapidamente. Às vezes faz as suas compras de maneira bem curiosa.Diga-me quanto é. vou liquidar... Certamente que não replicou o detective. Assimseria muito fácil. O truque já tem barbas. Fazer as suascompras! Aquilo a que nós chamamos roubar, minha senhora ?Levantaram-se algumas cabeças na sala. A raparigaestava vermelha de vergonha. A velha senhora apenas davaatenção ao menu. vou comer croquetes de galinha. Senhora!gritou o detective pousando-lhe a mão noombroPrendo-a! Na verdade? comentou ela olhando-o por cima dosóculos. Você é um empregado da casa, rapaz? Sou. Sou detective. Tenho o meu cartão...258 Nesse caso continuou a velha senhoraficar-lhe-ia

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muito agradecida se chamasse a criada. Quero almoçar e nãojantar. Prendo-a repetiu o homem. Quer seguir-me semresistência, ou vou ser obrigado a arrastá-la? Tia! Peço-lhe! Vá com ele suplicou a rapariga. Vamos arranjar isto... Eu fico aqui.O detective dispunha-se a empregar a força quandoMason, levantando-se, deixou cair no ombro do homem umamão possante. Um minuto, meu amigo!O outro voltou-se, vermelho de furor. Você talvez seja um detective continuou Mason, masignora visivelmente a lei. Em primeiro lugar, o sítio não émuito conveniente para uma prisão. Em segundo lugar,você não tem mandado de captura e não foi cometido nenhumcrime na sua presença. Em terceiro lugar, se soubesse o mínimoindispensável acerca do seu ofício, saberia que é impossívelacusar alguém de roubo nos escaparates antes da pessoa emquestão ter abandonado o armazém ou as suas dependências.Qualquer pessoa pode pegar nas mercadorias numa secçãoe levá-las para onde lhe apetecer. Você não tem nenhumapossibilidade de agir, antes do culpado ter saído a porta doarmazém. Quem diabo é você?perguntou o detective. Umcúmplice?Não. Um advogado. Chamo-me Perry Mason. Se istolhe pode dizer alguma coisa...O homem tomou outro ar. E mais aindacontinuou Mason. Você arrisca-se aobrigar os seus patrões ao pagamento de indemnização porprejuízos morais. Chega de brutalidade, ou então vejo-meobrigado a acalmá-lo, para lhe ensinar duas ou três regrasbásicas do ofício.259 Estou pronta a pagar tudo o que minha tia apanhoudisse a rapariga mostrando o livro de cheques. Muita vontade tenho eu de os enjaular aos doisatirouo detective, raivoso. Ponha a mão nesta mulher e aconselhá-la-ei a pedir aindemnização de vinte mil dólares por prejuízos moraisdisse tranquilamente Mason. Toque-lhe, seu asno, e quebro-lhe esses rins!Um subdirector precipitou-se, evidentemente chamadopelo telefone. Que aconteceu, Hawkins? Apanhei esta mulher em flagrante delito de rouboexplicou o homem. Sigo-a há mais de meia hora. Veja,senhor, o que trazia com ela! Deve ter notado que estava aser seguida e deixou tudo nos lavabos.

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É evidente disse Masonque o seu detective não estáà altura das funções. Mas quem é o senhor?O advogado entregou-lhe um cartão e o outro estremeceu. Venha ao meu gabinete, Hawkins. Oxalá você nãotenha cometido um erro.Já lhe disse que não, senhor! Seguia-a... Venha ao meu gabinete, já lhe disse!Uma vez mais, a jovem brandiu o livro de cheques:Já me fartei de dizer a este homem que a minha tiaestava a fazer compras. Se quiser ser tão amável que me dê omontante das suas compras, passar-lhe-ei imediatamente umcheque.O subdirector olhou a velha senhora, sempre muito calma,a rapariga e depois o sorridente advogado. vou mandar embrulhar tudo, minha senhora. Quer quelho mande a casa ou leva o embrulho consigo? Mande-me o embrulho, senhor. E já que é o patrão digaà criada para nos dar atenção... Ah! Cá está ela. Traga-nos260duas sopas de creme de tomate. Depois quero croquetes degalinha. E tu, Ginny?Corada até à raiz dos cabelos, a rapariga abanou a cabeça. Nada, minha tia. Não sou capaz de comer. Que estupidez, Ginny! Não te deixes impressionar porestas pequenas coisas. Este homem enganou-se, como elemesmo reconheceu.E, levantando os olhos para Mason: Estou-lhe muito agradecida, meu caro jovem. Aceitareium dos seus cartões, se não vê nisso inconveniente.Mason estendeu-lho, sorrindo. E poderei convidá-la, minha senhora, a juntar-se a nós ?Há dois lugares na nossa mesa. E baixando a voz para arapariga: Será menos notada. com muito prazeranuiu a velha senhora afastando acadeira. Eu sou Mrs. Sarah Breel e esta é a minha sobrinhaVirgínia Trent. Tenho muito prazer em conhecê-lo. Miss Della Street, minha secretária apresentouMason.Tomaram lugar sem. dar atenção aos olhares curiosos. Acabe a sua sopadisse Mrs. Breel. Não a deixearrefecer. Nós os apanharemos. Não tenho fome declarou Virgínia Trent. É ridículo, Ginny! Vamos, acalma-te! Na verdade este creme de tomate está delicioso interveio Mason. É coisa que lhe fará esquecer a... a chuva.Virgínia examinou o prato fumegante de Mason, os olhosamistosos de Della e comentou com ar dubitativo: Nunca se deve comer quando estamos mal dispostos. Acalma-te repetiu a tia.

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Dois cremes de tomate disse Mason à criada. Tragajá. Parece-me que há croquetes de galinha. Peça dois disse Mrs. Breel. Ginny gosta muito.E duas chávenas de chá, minha querida, com limão. Chámuito forte.261E recostou-se na cadeira, com um ar de profunda satisfação. Gosto muito de almoçar aqui continuou. Tem muitoboa cozinha e o serviço é bem feito. É a primeira vez quetenho razão de queixa da casa.É uma vergonha disse Masonque a tenham incomodado desta maneira. Incomodado, a mim? Mas não me incomodaram nada.A minha sobrinha é bastante mais sensível. Pessoalmente,tudo isto me deixa muito fria. Vivo como entendo, e... Ah!Cá vem o homem com as compras. Ponha aqui, se'nhor. Quanto é? perguntou Virgínia. Vinte e sete dólares e oitenta e três cêntimos, impostoIncluído enunciou o subdirector com dignidade.Virgínia preencheu o cheque. Quando ela tomou nota notalão e fez a subtracção, Mason, mais curioso do que desejaria,deitou um rápido olhar. Depois de pago o cheque, a contaficaria reduzida a vinte e dois dólares e quinze cêntimos.A rapariga estendeu o cheque ao subdirector.Tenho de lhe pedir o favor de vir ao meu gabineteassinar um impresso de crédito.A sr.a Breel interpôs-se.Não vale a pena. Ainda aqui estaremos uma meia hora,tempo mais do que suficiente para mandar descontar o chequeao banco, que é numa destas ruas vizinhas... Espero que o seuembrulho seja sólido, senhor. Continua a chover. Espero que satisfaça inteiramente respondeu o subdirector suavemente. Verifico acrescentou fitando PerryMasonque a sua mesa aumentou. Será que vai intentaruma acção por prejuízos morais à nossa casa?A sr.a Breel respondeu à pergunta. Nãodisse, magnânima. O que lá vai, lá vai. Masforam muito grosseiros... Cá está a criada com a minha sopa.Afaste-se, faça favor, para a deixar passar.O subdirector inclinou-se, afável.262Se nas suas compras houver alguma coisa que a nãosatisfaça, Mrs. Breel, faremos a troca com muito prazer.Fez as suas escolhas com muita rapidez e não pôde examinarbem os artigos...Não se preocupe, senhor. Tenho sempre muito cuidado.Ainda que não seja já muito nova, possuo excelente memória.Escolhi o que havia de melhor.O subdirector inclinou-se afastando-se, seguido de algunsolhares.

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Mrs. Breel, ignorando visivelmente a sua notoriedade,atacava vigorosamente a sopa. Prova, minha querida; está deliciosa. É na verdade umaboa casa.Virgínia mostrava pouco entusiasmo, mas a sua tia nãoperdia uma colherada. O episódio pareceu esquecido. Masem todo o caso ninguém falava. Mason contentava-se em representar o perfeito anfitrião e Della Street, habituada porlongos anos de treino a ler o seu pensamento, imitava-o.Pouco a pouco o mal-estar desapareceu. Tudo conspiravapara fazer esquecer a Virgínia o interesse que lhe dedicavamos ocupantes das mesas vizinhas. Para terminar, Masonanunciou a sua partida. Tinha uma entrevista à uma e meia.Na rua, sob um céu onde se adivinhava o azul entre asnuvens, voltou-se para Della Street.Foi um almoço muito agradável, não foi? Como a classifica o patrão? Não sou capaz e é isso mesmo que me diverte.Julga que se trata de uma profissional?Duvido muito. A atrapalhação da rapariga não erafingida.Então?Nada, Della. Aquela mulher não é do tipo delinquente.Ela tem mesmo uma filosofia interessante... Vamos marcareste dia com uma pedra branca, minha querida. Este almoço263é um capítulo isolado, interessante e incompreensível porquenão conhecemos o princípio do livro. Esta manhã perguntava-me você se o estudo dos meus semelhantes tinha feito demim um cínico e eu respondi-lhe que não. Conhecer bem oshomens é retirar todo o interesse à vida. Tudo se torna monótono, evidente. Passa a não haver nada novo. Fica apenas umalonga procissão de mediocridade precipitando-se no longocaminho da vida, esforçando-se por dar satisfação aos seusmais pequenos desejos. Mas às vezes a vida sobressalta-nos,mostrando-nos um tipo novo, ainda não classificado. É o casode hoje. Agradeçamos à vida e não pensemos mais nisso.CAPÍTULO II

Perry Mason estava enganado: ia conhecer os acontecimentos posteriores. Estudava um processo quando Della oavisou que Miss Trent perguntava se podia ser recebida. Virgínia? perguntou o advogado. Disse o quequeria ?Não.Veio sozinha?-Veio. Está bem. Mande-a entrar.Afastando os cotovelos fincados na mesa para criar espaço,Mason acendia um cigarro quando Virgínia entrou, escoltada

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por Della. Quando do seu primeiro encontro, o advogadosó tinha atentado na tia. Estudava agora a sobrinha, queavançava para se sentar na grande poltrona de couro escuro,no canto do gabinete. Uma rapariga grande, com uma bocatalvez muito firme, sem "baton". Grandes olhos cinzentos,usando um vestido de linhas severas. As mãos eram finas,nervosas, denotando muita sensibilidade. Que posso fazer por si?perguntou Mason, cujo tom264indicava que deixara de ser o conviva amável para ser apenaso advogado. É por causa da minha tia Sarah.-Ah! Sabe o que se passou no início do almoço. A minhatia não me chegou a convencer. É evidente que roubou ascoisas nos escaparates.E porque fez ela aquilo? Não faço a menor ideia.Ela tinha necessidade daqueles artigos?Não. Tem dificuldades de dinheiro? Não muitas.Os olhos de Mason brilharam. Está bem, estou a ouvi-la. Mas seja breve. Limite-seao essencial. Minha tia é viúvacontinuou a rapariga. O seumarido morreu há muito tempo. Meu tio, George Trent,nunca se casou. É perito de diamantes, compra e vende àcomissão, corta, talha e pule. Tem oficina e escritório noúltimo andar de um edifício, 913, South Marsh Street, e temquase sempre ao seu serviço dois a quatro operários. Diga-meuma coisa, Mr. Mason, interessa-se pela psicologia? Pela psicologia prática, sim respondeu o advogado.A teoria não me interessa grande coisa. É, todavia, necessário interpretar os factos teoricamentepara os compreenderenunciou doutoralmente a rapariga. Pelo meu lado direi que é necessário interpretar praticamente a teoria para a podermos compreender. Sem isso,não tem interesse. Voltemos ao tio George. O pai morreu-lhe muito cedo e teve de sustentar afamília. Safou-se muito bem, mas não teve juventude. Nãoteve prazeres, nem alegrias... Isto relaciona-se com a sua tia?Já lá vamos. Quero fazer-lhe compreender que o meu265tio era um recalcado e que um sentido de rebelião inconsciente o levava...A fazer o quê?Ela hesitou, mas por fim disse:A beber...

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Perfeito comentou Mason. Embebeda-se. Bem. Eentão?Ele bebe periodicamente. É uma rebelião inconscientecontra a monotonia da vida...E, interrompendo-se a um gesto do advogado, apressou-sea acrescentar:Acontece-lhe levar uma vida muito regular durantemeses. Depois aparece um pequeno facto que o faz sair doseixos. Pobre tio! É tão metódico nisso como em tudo o mais!Quando sente chegar a crise, fecha tudo na oficina, fechatambém o cofre forte de que a minha tia connhece o segredo.Mete num sobrescrito as chaves do carro, endereça o sobrescrito a si próprio e depois... começa a beber. Quando estábêbedo, joga. Três, quatro ou oito dias mais tarde aparece,com os bolsos vazios, os olhos injectados de sangue, com abarba por fazer, esfarrapado. E que faz a sua tia?perguntou Mason, muito interessado. Não lhe faz a mínima censura. Manda-o a um banhoturco, manda as roupas para a tinturaria e manda-lhe outraspara o estabelecimento de banhos. Quando volta a ser elemesmo, regressa ao escritório. Entretanto, a tia Sarah abreo cofre e põe os operários a trabalhar. É muito bonito tudo isso comentou Mason. Bonitacolaboração. Sim, mas pense nas angústias da minha tia, no choquenervoso sofrido... tanto mais violento quanto ela nada exterioriza. Que blague! A sua tia é mulher para desafiar o Mundo.É mulher que não sabe o que é o medo. Aí temos uma que266sabe aproveitar o lado bom da vida. Essa mulher não temnervos! É isso que se pode julgar à primeira vista continuouVirgínia em tom austero. Mas, quanto a mim, estou convencida de que este complexo surpreendente que a levou a roubarno armazém se deve a uma pequena perturbação reflexado subconsciente. É possível. Há muito tempo que isso dura? É a primeira vez. Qual é a explicação dada pela sua tia? Nenhuma. Deixou-me à porta do armazém sem dizeronde ia. Tenho a impressão de que está transtornada. Receioque o seu equilíbrio psíquico tenha sido alterado por... " Resumindo, você receia que ela recomece? Sim.Julga que a prenderam e quer que me ocupe dela?É isto mesmo o que quer?Não. Não exactamente. < Então diga.Virgínia baixou os olhos.Para lhe dizer tudo, Mr. Mason, receio que ela tenha

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roubado os diamantes Bedford. Conte-me lá issopediu o advogado, inclinando-separa a sua interlocutora. Mrs. Bedford confiou-os a meu tio. Tratava-se de ostalhar novamente e de os voltar a montar, dando-lhe umaspecto moderno. Não conheço as minúcias da encomenda. Devo admitir que o seu tio anda na pândega ? Sim. No sábado à noite não voltou a casa. E nós sabemos o que isto quer dizer. Naturalmente, não houve correiono domingo, mas a minha tia foi ao escritório preparar otrabalho para o dia seguinte.Abriu o cofre? Certamente. Esta manhã foi ao escritório, falou como chefe da oficina e regulou as coisas com ele. Como se pre-267via, as chaves do carro do tio chegaram pela primeira distribuição. Mas onde estava o carro? Só perto do meio-diaé que a polícia nos telefonou. Estava num parque de estacionamento limitado a trinta minutos... O que significa queas multas choviam desde manhã. Foi procurar o carro? Fui. com a minha tia. Pusemo-lo na garage. Depoisa minha tia quis fazer compras. Entramos no armazém eestava a provar sapatos quando a minha tia, que eu julgavaatrás de mim, desapareceu... e sabe o resto. Voltou a encontrá-la no restaurante. Sim. Depois de ter corrido todas as secções. Justamenteantes... do escândalo. Fale-me então desses diamantes. Foi Austin Cullens que os entregou a meu tio. Quem é o sujeito? Um velho amigo da família. Conhece o tio e a tiahá muitos anos. Grande viajante, colecciona pedras preciosas e tem muitas relações. O tio Georges trabalha beme barato e Mr. Cullen arranja-lhe frequentemente trabalhobem pago. Voltemos aos diamantes. Mr. Cullens levou-os a meu tio no sábado. Mrs. Bedforddevia lá passar por toda esta semana. Quando é que você soube que eles faltavam? Há mais ou menos meia hora. E decidi logo vir vê-lo. Continue. A nova desaparição de minha tia tinha-me desesperadototalmente. Fui ao escritório do meu tio, pensando que aencontraria lá. O chefe da oficina mostrou-me uma notado tio dando instruções para o que era necessário fazer aosdiamantes de Mrs. Bedford. Mas... não estavam lá. O cofre estava aberto? Estava. Tinha sido aberto de manhã pela minha tia. Confia totalmente nos operários?

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268Sim. E que a leva a acreditar que a Sua tia levou os diamantes? Por Deus... depois de tudo o que se passou no armazém... Quando um complexo... Não sei se estudou a cleptomania, Mr. Mason. É... terrível. A doente não pode resistirao desejo de se apoderar do que lhe não pertence... Emtodo o caso, a minha tia esteve no escritório onde, disse,foi atacada de vertigens. Não se lembra do que fez. É ocoração, diz ela. Quis chamar o médico. Ela recusou. Tinha,explicava ela, a sensação de ter feito o que não devia fazer.Como se tivesse matado alguém, cometido uma falta grave,um crime. Chegou a chamar o médico? Não. Ela dormiu algumas horas e quando acordoudisse-me que se sentia melhor. Ao jantar já se parecia comela mesma. Não vejo bem o que posso fazer por agora disseMason. O melhor será você encontrar a sua tia e se possívelo seu tio. Deve ter algumas indicações. Ele tem hábitos... É que... Mrs. Bedford reclama os diamantes. Há quanto tempo? Telefonou ao meio-dia. Ao que parece, a senhoramudou de opinião e já não quer que lhe toquem nas pedras.Tem um comprador que se interessa por pedras antigas equer oferecer-lhas com as montagens.-Falou com Mrs. Bedford? Não. Foi o chefe da oficina que a atendeu. Que lhe disse ele?~-Que o patrão tinha saído e que quando voltasse lhetelefonaria.Nesse caso previna a polícia e faça procurar a sua tia.Pode ter uma recaída. Talvez a tivessem conduzido de urgência ao hospital. Ou talvez...A porta abriu-se deixando passar a empregada.269 Que há?perguntou o advogado. Um tal Mr. Cullens deseja ver imediatamente MissTrent. Parece muito enervado.Virgínia Trent reprimiu uma exclamação de desagrado. Preciso de esconder-me, senhor. Diga-lhe que não estouaqui, que já saí, que... Nada disso! interveio Mason. Arrumemos já oassunto. Como sabe ele que a Miss está aqui? Tinha dito no escritório. Mr. Cullens deve ter lá ido.O chefe da oficina deve ter-lhe dito. Foi ele quem arranjou o negócio a seu tio? Foi, nãofoi? Pois bem! Mais vale pô-lo ao corrente sem mais delongas. Deve ter dado uma garantia a Mrs. Bedford. Provavelmente.

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Diga-lhe que entre disse Mason à empregada.As mãos de Virgínia Trent agitaram-se nervosamente. Que vou eu dizer-lhe?gemia ela.A verdade, muito simplesmente. Mas é coisa de que não tenho a certeza. Diga-lhe. Porque lhe havia de esconder o que se passa?Eu... não sei. É tão duro...A porta abriu-se, brutalmente empurrada por um homemgrandalhão, já muito perto dos cinquenta anos que, desprezando inteiramente Mason, caminhou para a rapariga, quecontinuava sentada na poltrona. Que vem a ser esta história, Virgínia?começou ele. Que história? Não sei a que se refere respondeua rapariga, atrapalhada. Onde está sua tia?Não sei. Na cidade, sem 'dúvida. A fazer compras,suponho.O grandalhão deitou uma breve e viva olhadela aoadvogado, pareceu medi-lo e tornou a voltar-se para a rapariga.Um grande diamante brilhava na mão que lhe pousou noombro.270Vamos, explique-se, Virgi. Que significa esta visitaa um advogado? Queria falar-lhe da tia Sarahexplicou timidamentea rapariga. Que lhe aconteceu? Roubou num armazém.Cullens recuou e começou a rir um bom riso francoe sonoro que pareceu clarear a atmosfera. E, estendendo amão a Mason:Você é Perry Mason. Eu chamo-me Cullens. Tenhomuito prazer em conhecê-lo. Desculpe-me esta intrusãobrusca, mas o assunto é grave. Vamos, Virgi, faça o favorde se explicar. Que aconteceu aos diamantes de Mrs. Bedford ?Não sei.E quem mo poderá dizer? A tia Sarah. bom. Onde está ela?Já lhe disse. Ela roubou.É uma pessoa espantosa. Consegue tudo em que semete. George anda na pândega, pela certa?Virgínia inclinou a cabeça.Mrs. Bedford telefonou recomeçou Cullens. Quer osdiamantes. Telefonou para George e a resposta que lhederam não lhe agradou muito. Pensou que a queriam levarà certa e telefonou-me logo a seguir. Compreendi imediatamente. Mas sabia mais: que trataria também de mandaras chaves pelo correio e que a sua tia o substituiria no escritório. Na verdade, lone Bedford tem um comprador para

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os diamantes... e não quer perder o negócio. Precisa dasjóias imediatamente.Virgínia apertou os lábios.Já lhe disse que a tia Sarah fez um roubo num armazém. Pode rir; mas é a verdade. Mr. Mason pode confirmar.Deve ter tido uma crise e pegou nos diamantes de Mrs. Bedford e suponho que os escondeu.271É verdade tudo isto?atirou Cullens, perplexo e consultando o advogado com o olhar.De seguida acrescentou: Diabos me carreguem!Sentou-se, puxou um charuto, cortou-o com um pequenocanivete de ouro e, virando-se para Virgínia: Conte-me lá isso tudo. Não tenho nada a dizer replicou a rapariga. Aminha tia teve um ataque nervoso. É evidentemente vítimade uma ideia fixa. Mas deixemos isso. Tem também lapsosde memória. Quando lhe sobrevêm a crise torna-se cleptómana e pega em tudo que lhe vem à mão. Esta manhã,num grande armazém, apanharam-na e quase fiquei semsaldo no banco para evitar que fosse parar à cadeia.Cullens acendeu o charuto, contemplou pensativamentea chama do fósforo e apagou-a. Quando foi a primeira vez que isso aconteceu, Virgi? Hoje, pelo meio-dia. E os primeiros sintomas? Quando ontem passou pela oficina sentiu-se perturbadae não conseguiu lembrar-se do que tinha feito na meia horaprecedente. Voltou a casa muito preocupada, com a sensaçãode que tinha matado alguém. Deve ter sido durante esseespaço de tempo que se apoderou dos diamantes de Mrs. Bedford para os esconder em qualquer parte. Ela...Cullens tirou o charuto da boca. Tinha os olhos brilhantes.É idiota! Ela não é uma ladra. Procura esconder o seutio, é o que é. Que quer dizer? Ontem ela deu-se conta de que os diamantes não estavam no cofre. Aqui para nós: Ela sempre temeu que o seutio, numa das suas pândegas, levasse uma ou duas pedrasno bolso. Tratou de a iludir e a mim também, por tabela.Deve andar à procura de George.272Não acredito que ela seja capaz de agir assim: dementir... Quer-me fazer acreditar que a senhora sua tia resolveupôr a saque os grandes armazéns? Vi com os meus olhos!Está bem. Não discutamos. Vamos pôr lone Bedforda par dos acontecimentos.

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Oh, não! Não faça isso! Haja o que houver é precisoesconder...Cullens ignorou-a e voltou-se para o advogado:Desculpe-me, doutor, incomodá-lo, mas julgo necessária a sua presença. O negócio é importante. Pode ser gravepara mim. Estas pedras valem entre vinte e cinco a trinta mildólares. O meu carro está à porta. Um Sedan verde, descapotável. Mrs. Bedford está lá à minha espera. Quer fazero favor de a mandar chamar?...Vá, Della disse Mason e traga-me Mrs. Bedford. Desaprovo inteiramente esta maneira de agir dissecom firmeza Virgínia Trent. A minha tia procederia de maneira muito diferente, tenho a certeza. É possível, mas esta é a minha maneira replicouCullens E, sobre tudo, sou o principal interessado. Lembre-se de que fui eu quem arranjou este trabalho a seu tio.Que pensa disto, Mr. Mason?Nada respondeu o advogado, amuado. Estou forada questão. A sorte destinou-me o papel de testemunha daprimeira demonstração de cleptomania de Mrs. Breel. Quefoi muito edificante.Não o duvido foi o comentário sorridente de Cullens.Como se passou? Aguentou-se muito bem. E acabou por se sentar à minhamesa com a sobrinha. Eu já não pensava no caso quandoMiss Trent me veio consultar. E não sei ainda exactamenteo que pretende ela de mim. Você tinha direito a uma explicação. Portanto já lha dei.18-VAMP. G. 2 273Quererá você fugir com o corpo ao manifesto e deixar-me aguentar as consequências sozinho?perguntou secamente Cullens à rapariga.Certamente que não!Foi, portanto, Mason que insistiu para que você seavistasse comigo?Ela não respondeu.Que queria você de Mason?continuou Cullens. Quero que ele encontre a minha tia e que... pensenum meio de parar as coisas, de modo a tirarmos o ponto.Podemos tirá-lo muito bem, mas agindo francamente afirmou Cullens.É o que lhe parece. Você fica com a sua reputaçãolimpa à custa do tio George. Mrs. Bedford vai declarar queele roubou as pedras... e vai fazer uma bonita cena!...Você não conhece lone Bedford. É uma mulher corajosa e capaz de aguentar o golpe. O que precisamos é encontrar os diamantes.E que conta fazer?Ainda não sei replicou Cullens. Veremos.

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Percebeu-se o passo rápido de Della Street no corredor.A porta abriu-se. Uma mulher com cerca de trinta anosapareceu no limiar. Mrs. Bedfordanunciou Della, 'que a seguia.Entre, lone convidou Cullens sem se levantar. Peguenuma cadeira e esteja à sua vontade. Apresento-lhe PerryMason, o advogado. Os seus diamantes deram às de viladiogo, lone!Imóvel, Mrs. Bedford analisava os ocupantes do gabinetecom os seus olhos negros ligeiramente lânguidos. Um poucomais forte que Della Street, parecia bem feita e a sua blusacor de ferrugem e o "tailleur" cinzento sublinhavam agradavelmente a sua linha. O chapéu era igual à blusa, assimcomo os sapatos, de que os altos tacões realçavam a pequenezdo pé, muito arqueado. Adiantando-se para a cadeira, teve274uma ligeira paragem ao ver Mason abrir a cigarreira; ergueuos sobrolhos em interrogação muda e, a um sinal de cabeça,tirou um cigarro. Inclinou-se para o acender no isqueiroque Mason lhe estendia e disse:Bem. Ao menos há novidades. Conte-me lá isso, Aussie.Ainda não conheço os pormenores. Georges Trent nãodeixou ainda de ser um dos melhores lapidadores do país.Trabalha bem e faz preços razoáveis. Inteiramente honesto,só tem um defeito. Um vício, se quiser. Bebe por acessos.Nessas alturas joga e não tem método. Fecha todas as suaspedras no cofre, mete no bolso uma quantia razoável, põeno correio as chaves do carro e vai para a pândega. Quandoestá teso quer dizer, sem tostão recobra a razão, voltaa casa e regressa ao trabalho. Desta vez, parece que, pordistracção, levou com ele os seus diamantes. Dei-lhos nosábado de tarde. Começou a beber nessa mesma tarde. E aquiestão, resumidas, notícias muito más.Aspirando uma boa fumaça, ela deitou-a pelo nariz, cujasnarinas tremiam:E que faz o advogado neste assunto?perguntou,indicando Perry Mason com o queixo.Cullens riu-se.Virgínia Trent, que vê aqui, é sobrinha de George,pensa que a tia se tornou subitamente cleptómana. E persuadiu-se de que a tia pegou nos diamantes para fazer não seio quê. Que vem a ser isso?perguntou lone Bedford a Virgínia Trent com uma voz quente, um pouco gutural. Leualguma vez os contos de Grimm, minha filha?E, vendo que a rapariga se empertigava, indignada,a boca crispada, Cullens interveio:Não. Psicologia, ideias fixas, complexos e o resto damúsica. A pequena estuda, compreende? Freud, histórias desexo, de crime, recalques...

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275 Infelizmente e a voz de Virgínia era ácida, a minhatia entregou-se à sua mania na presença de testemunhas.Foi apanhada com a boca na botija, ainda não há quatrohoras.lone Bedford, virando-se para Austin Cullens, ergueu ossobrolhos, espantada.Tratava-se, evidentemente, de um hábito e Mason notouque ela tinha os olhos grandes. lone Bedford parecia sabê-lo,tal como sabia ter uma graciosa curva da perna, que uma saiacurta mostrava generosamente. É um estratagema, lone disse Cullens. Se vocêpudesse ver Sarah Breel dez segundos que fosse, ficariaelucidada. O chefe da oficina deu esta manhã pela falta dosdiamantes. Sarah percebeu imediatamente que George ostinha levado com ele. Quis ocultá-lo, como mulher corajosaque é! A ideia não era má! Infelizmente, é ideia que nãoconduz a nada.Uma enorme esmeralda brilhou em toda a sua belezano dedo de lone Bedford, quando sacudiu a cinza do cigarro. E, na sua opinião, o que é que precisamos fazer?Vou tratar de encontrar George TrentrespondeuCullens. Está para aí num tasco qualquer, perdido debêbedo. Os seus diamantes devem estar na bolsa de camurçaque traz agarrada à pele e esqueceu-os de todo em todo.O perigo está em ele se lembrar das pedras para as vendera um jogador mais feliz do que ele. Parece-lhe, Mr. Mason,que poderemos invocar o abuso de confiança para os recuperar,se tal caso se der? Não sem processo. É coisa que dependerá das circunstâncias., da maneira como as pedras se encontram em seupoder e da pessoa que lhas entregou. Fui eu quem lhas levou. Mas não queremos acção judiciária, não é verdade, lone?Ela abanou a cabeça e sorriu a Mason.Perde-se sempre com a justiça. Só o advogado ganha.276 E mesmo assim não se ganha grande coisa retorquiuMason. Então que vamos fazer, Lone? continuou Cullens. Supondo que ele as tenha vendido, quanto pensa vocêque terá conseguido pelas pedras?perguntou ela, analisandoa ponta do cigarro.Não mais de três a quatro mil dólares. Estava bêbedo.Ninguém, no estado em que ele se devia encontrar, lhe dariamais de um quinto do valor da mercadoria.E quanto custarão as investigações?perguntou ela,dirigindo-se a Mason. Uns três a quatro mil dólares. Sim? Bem, isso decide-me (a esmeralda brilhou-lhe no

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dedo). Encontre Trent, Aussie. Se ele tem as pedras, tire-lhas.Senão trate de encontrar o penhorista e pague-lhe a quantiaemprestada. Será coisa mais barata e mais rápida do que umprocesso. ' ...compreendo muito bem o que sente, minha filhaacrescentou voltando-se para Virgínia Trent. Tem, semdúvida, medo de mim. De resto, sem razão. De qualquermaneira, a culpa não é sua.Já não sou criança respondeu suavemente Virgínia. Continuo a pensar que a minha tia agiu em consequênciade uma grande emoção... Vamos embora interrompeu Cullens, levantando-se.Temos de trabalhar e não há necessidade de fazer perdertempo a Mr. Mason.As duas mulheres seguiram-no em direcção à porta.Virgínia Trent falava outra vez de psicologia e lone Bedfordlançou um olhar brejeiro a Cullens, antes de se virar para arapariga: Depois de tanta conversa, o que 'sabe dos recalques,minha pequenina? Não falava exactamente disso replicou Virgínia,muito direita e muito digna.277Mason que olhava Della (esta segurava a porta prontaa fechá-la sobre os visitantes) juraria que Mrs. lone Bedfordlhe tinha deitado um olhar de despedida. Quando penso disse ele à secretária depois de fechadaa porta que ao meio-dia me lamentava pelo facto de osnossos semelhantes passarem pela vida sem a compreender! É raro encontrar um trio igual a este reconheceu Della. Destes, poderemos esperar tudo. Infelizmente não têm nada de misterioso. São todos magnificamente normais. Talvez possamos exceptuar Virgínia Trent. Onde imagina que possa estar a tia?Tendo-a visto em acçãocontinuou Mason de olhosFechados sou levado a aceitar a explicação de Cullens.Tenta tapar o irmão. Mas é coisa que viremos a saber, Della.O destino enredou-nos nesta história. Chame o comissariadocentral da polícia. Assim, saberemos se foi presa ou se deuentrada no hospital. Tome nota dos acidentes de viação e daschamadas das ambulâncias.CAPÍTULO III

Cerca das sete e meia, chamaram Mason ao telefone dovestíbulo do seu hotel. Reconheceu a voz profunda de loneBedford, antes dela se ter identificado. Suponho que Mr. Mason já tem notícias da tia?Ainda não. A sua desaparição é aparentemente voluntária. Mandei telefonar às esquadras policiais, mas nada consegui. E não foi presa por roubo?insistiu Mrs. Bedford.

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Se o foi, a polícia não o sabe. Suponho que os meus diamantes estão em segurança.Telefonei-lhe só para tranquilizar a nossa florzinha ávida desensações e de psicologia.278Já os encontrou? Não precisamente, mas Aussie telefonou-me para medizer que Trent os tinha empenhado. Trata-se de uma casade segunda categoria, na rua 3, este, uma boite que se chamaO Prato de Ouro. No rés-do-chão é um café-restaurante. Emcima há um pouco de tudo. George Trent parece ter conseguido seis mil dólares pelos brilhantes. Respondi a Aussieque não iria além dos três mil. Aussie supõe que foi a quantiaobtida por Trent. O resto são os juros. Resumindo, ele pensaganhar. Disse-lhe para continuar para a frente. Entender-nos-emos com Trent, quando ele tiver voltado a si... Quis apenaspô-lo a par da situação. Muito obrigado. Cullens não encontrou Trent? Cullens diz que ele já tem idade suficiente para tomarconta de si. Aussie já está a caminho a fim de reaver os diamantes. Terei notícias dele dentro de uma hora. Como conseguiu arranjar o número do meu telefone?Respondeu-lhe uma risada, um riso sensual, um poucorouca, estudada para incitar o macho à conquista. Mr. Mason está a esquecer-se de que é uma pessoa célebre! Mais ainda: interessante. Boa noite, Mr. Mason.Já tinha desligado e o advogado, maquinalmente, consultou o relógio e tomou nota da hora, antes de voltar aococktail.Depois de madura reflexão, pediu a Della Street queavisasse Virgínia Trent de que os diamantes estariam em brevenas mãos do seu proprietário. Após o que jantou só, comode costume. Estava a acabar de beber o café quando seaproximou um groôm. Estão a chamá-lo ao telefone, Mr. Mason.Toma nota do número porque depois chamo.Desculpe, Mr. Mason. É o sargento Tremont, doComissariado Central da Polícia. Diz que é um assuntoimportante.279O advogado afastou a chávena, pousou o guardanapo e agorjeta na mesa e seguiu o groom à cabina.A voz do sargento chegou-lhe, seca, cortante e fria. Mr. Mason, o seu escritório fez chamadas para todos oshospitais, de tarde, à procura de uma tal Mrs. Breel? É verdade, sargento respondeu jovialmente Mason,mantendo-se em guarda. E então? Mrs. Breel foi atropelada, há uma meia hora, por umautomóvel no Boulevard Saint-Rupert. Está a recebertratamento. Perdeu os sentidos. Fractura do crânio, uma

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perna partida e lesões internas, provavelmente... Gostaríamosmuito de saber, Mr. Mason, as razões que o levaram a prevereste acidente.Mason começou a rir, tão naturalmente quanto pôde. Então eu prevejo os acidentes? Na verdade... sargento... Se julgarmos pela sua solicitude...O sargento parecia muito céptico. Estava a tratar de saber o que lhe tinha acontecido.É tudo. Está bem! Agora já o ficou a saber. E que vai fazer dainformação ? Conheço a sobrinha dela. Uma tal Virgínia Trent.Vou avisá-la.Já o tentámos fazer, mas não conseguimos encontrá-la declarou o sargento. É um assunto muito interessante.Faria melhor se viesse ao Comissariado Central para falarcomigo.O convite era nitidamente uma ordem e Mason assim oentendeu. A ideia não é má. Quem é o autor do desastre? Um sujeito chamado Diggers. Parece muito chocado. Continua detido à sua ordem? Até ver. Vamos deixá-lo sair dentro de minutos.É evidente que ela se atirou para debaixo das rodas do carro.Acabei agora mesmo de jantar e já vou.280Mas depressínha, hem? Gostaríamos de lhe fazeralgumas perguntas acerca de uns certos diamantes. Diamantes?repetiu Mason como um eco. Sim, simconfirmou Tremont desligando.Enquanto esperava o carro que tinha pedido à garagem,Mason telefonou a Della Street.Já conseguiu encontrar Virgínia Trent? Não, patrão. Estou a chamá-la de dez em dez minutos.Mas ninguém me atende. Deixe correr. Mrs. Breel foi atropelada no BoulevardSaint-Rupert. Parece ter sofrido uma fractura de crânio,tem uma perna partida e lesões internas. A polícia está a verse consegue encontrar Miss Trent. O sargento pediu-me,mas, de facto, intimou-me, oficialmente, que comparecesse noComissariado Central, a fim de responder a um certo inquérito acerca de diamantes. Alguns aspectos da questão desagradam-me. Ligue para a Agência Drake. Trate de informarpessoalmente Paul Drake do que se trata. Diga-lhe para semeter num taxi e ir ao Comissariado Central. O meu carrodeve estar num parque próximo. Não estará fechado à chave.Que se meta nele e que me espere. E que leve com ele doisdos seus melhores homens. Entendido, patrão. vou tratar disso imediatamente.Mas porquê tantas precauções?

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Não sei. O tom do sargento Holcomb desagradou-me.No dia em que o tom de um polícia lhe agradar, patrão... Sua patifona!Quando desligava, vieram dizer-lhe que o carro estavapronto.Mason rolou lentamente, absorvido pelos seus pensamentos.Tinham-se descuidado e não sabia o endereço de lone Bedford,o que era muito aborrecido. Por razões pessoais, Mason erade opinião de que o melhor era saber o que se tinha passadono Prato de Ouro antes de falar à polícia.Parando o carro perto do posto de socorros, ainda não281tinha dado vinte passos, quando Tremont saiu da sombra e,agarrando-lhe um braço com mão cordial, mas firme,perguntou: Quem é esta mulher, Mason? Uma das suas clientes? Não exactamente, sargento. Uma amiga ? Também não. Almocei hoje com ela, por puro acaso.-Onde? No restaurante de um grande armazém. Desde há quanto tempo frequenta esses estabelecimentos?O advogado acendeu um cigarro. Fique sabendo, então, se é coisa que lhe possa interessarprofissionalmente, que se come lá muito bem. E, por outrolado, não tinha por onde escolher. Talvez se lembre de que,perto do meio-dia, começaram a cair pedras. Nesse caso é evidente que você não convidou a senhorapara almoçar. Encontrou-a, sem mais. A isso chama-se ter espírito de análise e de deduçãoredarguiu Mason. Mas não respondeu à minha pergunta. Foi você mesmo que se encarregou de o fazer.Tremont estendeu bruscamente a cabeça. E os diamantes, Mason? Que diamantes? Sabe muito bem o que quero dizer. Interesso-me muito pouco por diamantes, sargentovolveu Mason, abanando a cabeça. Se quer falar de criminosos, de honorários... experiência incluída, compreendo.O crime é o inevitável subproduto dos ódios e das rivalidadesnascidas de uma civilização que se baseia na concorrência.Sabe, sargento, que até o facto de não medearem quarenta ecinco dias de intervalo entre um crime e outro crime, meencanta positivamente? Imagine-se no Comissariado Centralda Polícia, quando o quadragésimo quarto dia está a findar.282Os minutos passam. Vão matar alguém em qualquer parte.Senão o "record" é batido... É apaixonante! Se julga que está a ganhar tempo ou a enfiar-me o

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barrete, está muito enganado cortou Tremont. Que sabevocê dos diamantes? Os diamantes? Sim. Os diamantes! Essas pequeninas pedras brilhantesque as mulheres usam nos dedos ou em qualquer outra partedo corpo. São polidas e brilhantes. E também muito duras.Servem também para cortar vidros. Também conhecidas comocachuchos ou calhaus. Se a minha descrição lhe não basta,posso emprestar-lhe uma enciclopédia. Temos uma excelente,no gabinete do comando.Ah! Os diamantes! exclamou Mason.Já me lembrode me ter falado neles. Ela tinha-os ou ia procurá-los, já nãosei bem como era. O irmão dela é lapidador. Sim, já sabemos. Quando o seu escritório se começou ainteressar pela mulher, achámos de bom aviso interessarmo-nos também. Quando você se interessa por alguém, é muitoraro que não acabemos embrulhados num crime, mais cedoou mais tarde. Muito obrigado pela confidência. De futuro não aesquecerei. Peço-lhe que o faça. Faça-o, pois. É um prazer poder-lhe ser útil. Mas ainda não respondeu à minha pergunta. Não lhe posso dizer nada respondeu Mason, que parecia esforçar-se por juntar as suas recordações. Ela falou-mede um irmão excelentemente colocado no ramo dos diamantes.Na sua ausênciapara que ela dava não sei que razãoeladirigia o negócio. Não me sinto capaz de lhe dizer, comexactidão, o que ela me contou. Está bem. Voltaremos a falar do assunto. Entre entãopor aqui, Mason.E conduziu o advogado a uma sala de espera. Avistando-o,um homem aparentando cinquenta anos, muito magro,283levantou-se precipitadamente para se voltar a sentar rápida- 'mente, depois de ver a expressão do rosto de Tremont. Este cavalheiro é Harry Diggers, que guiava o carroapresentou o sargento. Perry Mason, o advogado.Mason fez com a cabeça um sinal tranquilizador a Diggers,que lhe veio apertar a mão.Dê-me a bolsa de Mrs. Breelordenou o sargento a umfuncionário que estava atrás de um "guichet" gradeado.Entregaram-lhe uma bolsa preta, com asas redondasimitando jade, com cerca de quinze centímetros de diâmetro.Afastando as asas, via-se nitidamente o conteúdo do saco. Parece-me realmente a bolsa da senhoraobservouMason. Olha, ela faz "tricot"!O sargento tirou a ponta de uma camisola e um par deagulhas espetadas num novelo de lã azul escura. Depois vinhameia dúzia de pares de meias de seda. Repare nas etiquetas que trazem, o preço e o número de

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venda. Estes artigos não passaram pela caixa, foram roubadosnos escaparates.É plausívelassentiu Mason.Já sabia?O advogado abanou a cabeça.Espere. Ainda não viu tudo continuou Tremont que,remexendo na bolsa, tirou uns pacotezinhos feitos com umtecido branco e fino, para os abrir um a um.Cinco grandes diamantes, com engaste antigo, brilharamsob os olhos do espantado Mason. Caramba! Não sou perito, mas isto parece-me valer unsbons cobres. Não está nada enganado. Não tem uma ideia qualqueracerca da sua proveniência?Mason sacudiu a cinza do cigarro e plantou-se diante doinspector. Quando encontrei Mrs. Breel, discutia ela com umdetective do armazém que a acusava de ter roubado algumas284mercadorias dos escaparates. A sobrinha declarou que elaandava a fazer compras. Os artigos não tinham saído doarmazém. Intrometi-me e pedi ao detective que se mostrassemais caridoso. Então? Então sentámo-nos e almoçámos. Um modelo, estamulher. Mais tarde, a sobrinha foi-me visitar. Falou de unsdiamantes entregues a George Trent. Na minha opinião,sargento, pode averiguar facilmente a origem das pedrascom o auxílio de Miss Trent. São sem dúvida as que foramconfiadas a George Trent. E que fazem elas nesta bolsa? Ignoro-o inteiramente, E isto? perguntou o sargento, batendo com os nós dosdedos nas meias de seda. Isto foi roubado. Então os diamantes...Mason deu uma larga gargalhada. Apliquemos o mesmo princípio ao "tricot" e poderemosadmitir também que é produto de um roubo. Não se faça esperto, Mason. É vulgar uma mulhertrazer o seu "tricot" na bolsa. Você parece esquecer que o irmão dela é técnico dediamantes. Compra e vende à comissão, repara ou modificaum engaste, lapida e pule todas as pedras preciosas. Quandoele não está é Mrs. Breel que toma conta do negócio. E onde está ele agora? Na pândega, ao que parece. Pois bem! Ela terá muita sorte, na minha opinião,se estas pedras estiverem legalmente em seu poder. Como semeteu você neste assunto, Mason? Meteram-me nele à força. Depois de ter almoçado coma tia e a sobrinha, esta foi visitar-me, de tarde, para me dizer

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que a tia tinha desaparecido. Pediu-me que a mandasse procurar, E logo a seguir entraram outras pessoas que queriam285ver imediatamente a sobrinha. A conferência deu-se no meuescritório. Os sapatos, Bill! ordenou o sargento ao funcionário,que lhe entregou um par de sapatos de camurça cinzenta comtacões e biqueiras muito estropiados.O sargento pegou no sapato esquerdo. Olhe-me para isto, Mason.O advogado examinou cuidadosamente a camurça cheiade manchas castanhas. A sola estava também castanha. Como explica você estas manchas de sangue? perguntou o sargento.Não faço a menor ideia replicou Mason levantando acabeça. Como já lhe disse, vi esta mulher pela primeira eúltima vez no restaurante do armazém, quando paguei aconta na caixa. Devia ser uma hora e um quarto, ou umae dezassete, para ser exacto. Tinha uma entrevista à uma emeia, no escritório, a que não queria faltar. Isso não explica as manchas de sangue. Não é o dela? Se ela teve um desastre... Partiu uma perna. Fractura simples replicou o sargento. Sem derramamento de sangue. E, depois, como explicar esta sola completamente embebida em sangue. A sua cliente não teria dado cabode alguém para reaver os diamantes?Mason julgou chegado o momento de mostrar a suaimpaciência: Como diabo o posso saber? Em primeiro lugar, não éminha cliente. Em segundo, não sei nada dela. Limitei-mea tentar reconfortar uma infeliz rapariga de olhos cinzentos,rosto liso e que parecia respeitar muito as convenções. Tanto pior redarguiu o sargento com uma careta. Estávamos a pensar que nos podia ajudar... Lamento cortou Mason, esmagando o cigarro nocinzeiro. Poderei ir-me embora daqui a pouco? perguntou ohomem. ,286 Sim. Um momento respondeu o sargento sem desfitarMason. Como se deu o acidente?perguntou o advogado aDiggers. Mr. Mason é advogado interveio Tremont. O senhorjá fez o seu depoimento e não é obrigado a responder. Não tenho nada a esconder replicou o interpelado.Rodava no Boulevard de Saint-Rupert a quarenta à hora,não mais, encostado à direita. Um Sedan azul, que estavaparado junto do passeio, arrancou à minha frente e torci ovolante para a direita, para o evitar. Já está a ver como ia

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devagar! Tinha passado a rua 91. Quando raspava pelo passeio,essa mulher atirou-se para debaixo das rodas, no sítio ondetinha estado o Sedan azul. Quando me viu assustou-se elevantou os braços. Travei bruscamente, buzinei e torci ovolante. O estribo direito apanhou-lhe uma perna, acima dojoelho e partiu-lha. Caiu de bruços. A bolsa estava junto dela.Ia metê-la no meu carro para a levar ao hospital, mas jáalguns transeuntes tinham chamado uma ambulância... epreferi deixar-lhes a responsabilidade. Ia sozinho no carro? perguntou Mason.-Ia.Viu a mulher muito antes de a atropelar? Não mais de um ou dois segundos. Saltou do passeiomesmo diante das rodas e parou imediatamente. E mandeiarrolar o conteúdo da bolsa. Imaginem: havia uma pistolaque tinha caído da bolsa... Uma pistola! exclamou Mason.Já o sargento agarrava Diggers por um braço. Vamos, Diggers. Não vejo a necessidade de o reter aquimais tempo. É inútil responder às perguntas deste senhor.Mason dirigiu-se para a porta.Agora vou ver Mrs. Breel, sargento.Não, Mason!Vai proibir-me, não? 287Exactamente replicou afàvelmente Tremont. Em primeiro lugar, o médico que a trata proibiu as visitas. Em segundo, está sob vigilância policial. E como você já me explicouque se não trata de uma sua cliente, não a poderá ver.Mason reflectiu. Os seus argumentos convencem-me, sargento admitiucom uma careta.CAPÍTULO IV

Paul Drake, director da Agência Drake, era alto, magroe pessimista. E contudo, no seu rosto corado, os lábios decantos levantados por uma perpétua contracção dos músculos faciais pareciam rir-se para a vida.Estava dobrado num banco do carro de Mason, com acabeça baixa, um cigarro colado aos lábios e endireitou-seligeiramente quando avistou o advogado, que vinha sentar-se ao volante. Que horas são, Perry? Acusaram-no de cumplicidade?Ainda não retorquiu alegremente Mason. As investigações continuam.As investigações? Parece. Não sei mais nada. Quando começamos ? Logo que tenhamos consultado um anuário e arrancado do ninho um tal Austin Cullens.

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Que relação? Se ele mora no Boulevard Saint-Rupert, entre a rua 91e a rua 92, será muito fácil estabelecer a relação.Arrancando suavemente, virou a esquina da rua e paroudiante de uma farmácia. Espere-me aqui, Paul. vou consultar o anuário.Um minuto depois estava de posse da informação pre-288tendida. Austin Cullens morava no n.º 58 da rua 92, Boulevard Saint-Rupert.Mason meteu uma moeda na fenda do aparelho e marcouo número de Della Street. Sinto-me desolado por ter de a incomodar, Della.Espero não perturbar as suas numerosas entrevistas... Em nada, patrão. Estou sempre à espera do toque dotelefone. Que aconteceu?Ainda não sei bem. Temos o endereço de Mrs. Bedford?Não me parece.É muito de lamentar. Trate de a procurar. Arranjemaneira de estabelecer relações com ela e trate de desaparecer. Para a polícia, claro. E ela deve saber o que pretendemos, chefe?Sentia-se na sua voz um interesse diferente. Evite-o, se for possível. Conte-lhe uma história qualquer. Diga-lhe que a mandei para junto dela na expectativade acontecimentos importantes. Faça-se sedutora. Convide-apara jantar. Dou-lhe carta branca. Mas arranje-se de maneiraque a polícia não a possa encontrar e sem ela o pressentir.Entendido, patrão. Onde o poderei encontrar se a coisafalhar? Mantenha-se em contacto com a Agência Drakecontinuou Mason. Deixe um recado à pessoa que a atenderDiga-lhe que um de nós, Drake ou eu, telefonará um poucomais tarde. Para o- resto, silêncio. Naturalmente, se nãoconseguir encontrar a senhora... Confie em mim, patrão interrompeu Della Street. Consegui-lo-ei. Mas que aconteceu?Ainda não sei bem. Procuro saber. Não se esqueça dese pôr em contacto com a Agência Drake.Entendido. vou lançar-me ao trabalho.Mason voltou imediatamente para o volante e arrancoubrutalmente. Paul Drake, sentado de esguelha no banco,espantou-se:19-VAMP. G. 2 289 Então, que vamos fazer? Andar. E depois ? Paramos para tocar uma campainha. Assim já se fica a saber alguma coisa murmurou

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Drake recostando-se no seu canto Quando chegar acorde-me, sim ?Fechou os olhos e pareceu efectivamente adormecer.Mason lançou o carro no máximo autorizado, virou noBoulevard Saint-Rupert e travou junto do passeio, do ladooposto ao de uma residência bastante pretensiosa, um poucoafastada das casas vizinhas, cercada por um relvado bemtratado. Um passeio cimentado conduzia a uma vasta garagem, por cima da qual se via a residência do motorista. Quem mora aqui, Perry? perguntou Drake abrindoos olhos. Austin Cull ens. Venha.Atravessando o passeio, encaminharam-se para a portada mansão e Mason premiu o botão da campainha. O somrolante levantou ecos no interior, mas nada se mexeu atrásdas janelas sombrias. A porta está entreaberta notou Drake.É curioso! Sem dúvida. Vamos entrar.Acontece que às vezes disparam contra os ladrões observou o detective, tirando uma lanterna eléctrica dobolso. Dizem que sim. Trate de encontrar o comutador, Paul.Ah! Cá está!Mason avançou e girou-o duas vezes, sem sucesso. Fusíveis fundidos observou Drake. Está bem. Continuemos a inspeccionar. Alumie osoalho. Poderemos...O fecho luminoso iluminou uma mancha vermelha queDrake examinou. Olhe, antes de ir mais adiante, faria melhor dizendo...290O advogado arrancou-lhe a lanterna da mão. Se é aquilo que pensa, Paul, não temos tempo a perderem discussões.Um rasto vermelho conduzia a uma porta. Mason empurrou-a e Drake reprimiu uma exclamação quando o focoluminoso parou sobre o corpo estendido e sem vida de AustinCull ens. Experimente o comutador, Paul.O detective girou-o, mas em vão. Vamos deixar as nossas impressões por todos os lados observou. Precisamos de avisar a polícia... Num casarão destes interrompeu Mason há várioscircuitos. Um fusível fundido não corta a corrente para todasas lâmpadas. É evidente que podem ter fechado o interruptorgeral, mas continuo a pensar que há um curto circuito.Experimente os comutadores dos outros compartimentos,Paul, até conseguir obter luz. Isto não nos conduz a nada. Vamos espalhar por todaa parte as nossas impressões.

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Então não toque em nada. Passe-me a lanterna. ' Não. Dê um pequeno giro. Não se esqueça de que estáa procurar o telefone para avisar a polícia. E que vai você fazer durante todo esse tempo? vou também procurar o telefone. Não se engane, Perry. Olhe que vou chamar imediatamente os "chúis". Espero que sim. A sua história está pronta: você encontrou o corpo, procurou o telefone, encontrou-o e chamou.Não percamos tempo.Drake dirigiu-se ao vestíbulo. Mason analisou o compartimento e o corpo estendido por terra. O homem tinha sidovisivelmente abatido com uma bala que penetrara umpouco acima do coração. O casaco e a camisa estavamabertos descobrindo uma cinta de pele de camelo a que291tinham revistado as algibeiras, íiavía uma larga poça desangue ao lado do cadáver. Parecia terem andado por cimadela.O compartimento era um vasto salão. Na parede, havialivros. Duas grandes poltronas entre o fogão de sala e umapesada mesa de acaju. Uma meia dúzia de tapetes orientaiscobria o pavimento, cuidadosamente encerado. Numa cadeira, negligentemente abandonados, um sobretudo, umcachecol, um chapéu e luvas, que pertenciam, sem dúvida,a Cullens.Tomando o cuidado de não tocar em nada, Mason aproximou-se do corpo e inclinava-se sobre ele quando umavoz de homem se ergueu subitamente no salão:"Carro dezasseis, dirija-se imediatamente à esquina dasruas Washington e Maplet. Acidente de automóvel. Carrotrinta e dois, chame o seu posto. Carro catorze, dirija-se ao3819 da Rua Walpole. Mulher atacada por um vadio".O rádio calou-se.Mason ouviu os passos de Drake no vestíbulo. Uma luzfrágil coava-se pela porta de entrada, que estava entreaberta.Drake entrou.Já está, Perry. Chamei a Secção Criminal. Disse-lhe que eu estava cá?... Não. Só falei do corpo e...A voz vinda do canto do salão interrompeu-o:"Carro vinte e dois. Dirija-se imediatamente ao 58 doBoulevard Saint-Rupert. Um detective particular chamadoDrake acaba de telefonar dizendo que descobriu o corpode um homem assassinado. Trata-se provavelmente deAustin Cullens. Detenha qualquer pessoa que se encontrena casa. A Secção Criminal vai imediatamente para o local."Repetiram a mensagem. Foi você que pôs o aparelho no comprimento de onda

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da polícia? perguntou Drake.Mason acenou com a cabeça.292Você não devia ter dado o nome do morto, Paul. Perguntaram-me e, igualmente, a razão por que meencontrava aqui. Respondi que tinha vindo visitar AustinCullens em companhia do advogado do morto. Mencionou o meu nome? Não. Disse apenas "o seu advogado". Que ambiguidade! exclamou Mason, sarcástico.Havia necessidade de lhe contar a sua vida desde pequenino!Você tinha apenas de falar do cadáver e mais nada. O tipo que estava do outro lado do fio não era dessaopinião. Pode sempre iludir-se a pergunta. Eh, eh! Talvez você, mas não eu. Tenho de renovara minha licença no mês que vem. E além do mais não tem importânciaconcedeu Mason. Eles acabariam por vir a sabê-lo. O que me contrafaz é orádio ter falado. Nunca se sabe quem ouve. E a luz? Só este lado da casa está isolado. O circuito que alimenta as lâmpadas da sala de jantar, de escritório, da cozinhae das escadas, está em bom estado. Deixou as lâmpadas acesas? Deixei. " Onde está o telefone? Encontrei um na sala de jantar. Deve haver um outropor aqui.Mason examinou o salão com o foco da lanterna. Olha!exclamou Drake. Lá está um, naquele canto. É verdade. Não o tinha visto. Bem! Paul, ligue para oseu escritório. Um tal Harry Diggers atropelou e feriu umamulher diante desta casa, há cerca de uma hora, umaMrs. Sarah Breel. Ele pretende que ela saía daqui. A políciadeteve-o algum tempo. Preciso do seu depoimento completoe minucioso antes de os "chúis" lhe deitarem outra vez a mão.Há também uma casa de jogo na Rua 3 Este, por cima deum café-restaurante chamado O Prato de Ouro. Mande dois293dos seus homens fazer uma investigação por lá. Um lapidadorchamado George Trent meteu-se na pinga. Mande-o procurar. Consiga uma fotografia, se possível. Se for necessário,assalte-lhe o escritório. Vive com uma sobrinha chamadaVirgínia. Tem telefone. Vai encontrá-lo, provavelmente,num tasco qualquer, a beber e a jogar. E com mulheres?Talvez. Não sei. Pouco importa. Ande-me depressaantes de chegarem os "chúis".com uma agilidade que desmentia o seu aspecto despreocupado, Drake dirigiu-se ao vestíbulo e, poucos segundos

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depois, ouvia-se a sua voz ao telefone. Na rua, um automóveldeteve-se com um guincho de pneus brutalmente travados.Para dar tempo a Drake, Mason encaminhou-se para osagentes e abordou-os no meio da vereda cimentada que conduzia à casa. Você é o tal Drake?perguntou um dos agentes. Não. Chamo-me Mason respondeu o advogado.Encontrei o cadáver.Julgava que você se chamava Drake. Não. Pode ver o meu bilhete de identidade.Procurou nos bolsos, ganhando preciosos minutos. De que se trata? perguntou o agente. Não sei volveu Mason. Vim visitar Cullens porcausa de um negócio. Encontrei as lâmpadas apagadas ea porta aberta. Entrei e encontrei-o...As lâmpadas estão acesas interrompeu um dos agentesmostrando as janelas iluminadas no lado direito da mansão.É um outro circuito explicou o advogado. Deveter-se fundido um fusível no circuito do compartimento ondeestá o corpo. Um circuito apenas. O rádio funciona. Quem acendeu as lâmpadas do outro lado? Foi para encontrar o telefone... Entendido. Vamos ver. O relatório diz que você sechamava Drake.294 Eram impossíveis mais delongas.\ Mr. Drake estava comigoesclareceu o advogado.\ Onde está ele agora? Na casa.E porque não tratou de o dizer mais cedo? Porquê?perguntou Mason que parecia sinceramenteespantado. Mas... não me perguntou! Queria explicar-lhecomo se tinha passado... E o que está ele a fazer, o Drake? Está à sua espera.Um agente agarrou o braço de Mason. O outro correupara a porta. Drake dirigia-se para eles, com um cigarronos lábios. bom dia, camaradas! Estou a ver que não perderamtempo. Avisei a Secção Criminal. Está bem, mas que estava você a fazer metido ládentro ?Drake mostrou o bilhete de identidade e a sua licençade detective particular.Você não tocou em nada? Em nada, se exceptuarmos o telefone.E porquê no telefone? Tinha de os avisar!Drake não se quis servir do aparelho do salãointerveio Mason. Não tocámos em nada. O homem foi atingido

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com uma bala. O móbil do crime parece ter sido o roubo.Ao longe, silvou uma sirene. Eh! Jim ordenou um dos agentes. Cá está a Secção.Deitemos uma olhadela antes de cá chegarem... bom Deus!Como está escuro!Já lho tinha dito respondeu Mason. Há um contacto inutilizado.Como encontrou você o cadáver ? com uma lanterna eléctrica.Mason tirou-a da algibeira.295 É hábito seu trazer semelhante Coisa consigo?per-guntou, desconfiado, um dos agentes. ' É a de Drake. O agente tirou a sua, examinou o compartimento edeteve o círculo luminoso sobre o cadáver. Está morto. Não há lugar para enganos.As sirenes silvaram diante da casa. Um carro travou,rangendo, encostado ao passeio. Sentiram-se passos pesadosna vereda de cimento e nos degraus da escada. O sargentoHolcomb, da Secção Criminal, apareceu e imobilizou-seao avistar Mason.Você está metido nisto?Não, sargento. Estou apenas na casa onde isto foicometido. E que carga de água o trouxe para estes lados? Queria avistar-me com Mr. Cullens para tratar de umnegócio. Que negócio? Tinha-me consultado. Era um dos seus clientes? Não precisamente. Então? Explique-se. Andava à procura de um sujeito chamado GeorgeTrent, que é lapidador. Tinha razões para acreditar queCullens sabia alguma coisa acerca do meu homem. E quais são as razões que o levam a pensar assim? Ponha isto na conta da intuição, se quiser.Tudo isso me parece pouco lógico. Como quiser, sargento retorquiu azedamente o advogado. Não há intuição nem lógica. E depois? Prenda-me estes dois cágados separadamente ordenouHolcombe a um agente. Não lhes fale e não lhes responda.Não os deixe telefonar. E, sobretudo, não os deixe passearpor estes lados!... Entrem vocês também. Vamos começarpelo salão... Mande guardar as saídas... Vamos.296Passaram-se vinte minutos antes do sargento Holcombvir interrogar o detective e o advogado, e um quarto dehora de esforços não lhe indicou nada que não soubesse já.

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Está bem, podem pôr-se a andar concluiu. Mas voutê-los debaixo do olho. Tudo isto me parece pouco limpo.Não vejo o que poderíamos ter feito para mais completaColaboração retorquiu Mason. Drake preveniu imediatamente a polícia. Onde esteve você antes de vir para aqui?A telefonar, numa farmácia. A quem? À minha secretária, se isso lhe interessa. (A propósito de quê?Procurava o endereço de um cliente.De Cullens?Não.De quem?Nada tem a ver com este assunto. E, para mais, nãoconsegui nada. E porque veio você aqui?Para ver Cullens.Já compreendo. Você queria perguntar-lhe o endereçoque a sua secretária lhe não tinha podido dar?De facto procurei o endereço de Cullens no anuárioda farmácia concordou Mason.Está bem. Desapareça... Não se esqueça de que a sualicença acaba no mês que vem, Drake.Aqui está o que eu chamo uma tentativa de intimidação protestou Mason. Drake não teve desvios, nesteassunto. Ambos respondemos a todas as perguntas feitas.É possível. Resta saber se eu fiz todas as perguntas quedeveria fazer. Estamos à sua disposição, sargento. Como diabo querem vocês que eu saiba aquilo quedevo perguntar?297 E como diabo quer você que nós respondamos?opôsMason levantando a voz.com o polegar, Holcomb apontou a porta: Desapareçam! E, sobretudo, nada de novo cadáverantes de amanhã, compreenderam? Há casos em que umdetective particular corre sérios riscos mostrando-se excessivamente astucioso. Atenção, Drake...Drake tentou responder, mas Mason antecedeu-o. Quer dizer, que deve evitar, de futuro, indicar-lhe oscadáveres que possa descobrir no decorrer do seu trabalho?O rosto de Holcomb sombreou-se.Vocês compreenderam-me muito bem. Vamos! Rua!Os agentes empurraram Mason e Drake, fazendo-osatravessar o vestíbulo cheio de fotógrafos, e onde se viamum representante do procurador e uma meia dúzia de agentes de segurança. Diabos o carreguem! praguejou Drake entrando no

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carro. Este estupor vai-me fazer voar a licença... Mais devagar! Ainda é preciso que ele tenha umarazão para tentar agir sobre o conselho. Há muitos tiposdestes que precisam de ser postos no seu lugar para não nosaborrecerem. Pouco importa. Tratemos de não encontrar maiscadáveres. Onde vamos agora?Vai telefonar para o seu escritório para saber de quelado sopram os ventos. Se não se passou nada de extraordinário, vamos fazer uma pequena visita ao Prato de Ouro etratar de fazer a nossa investigação antes da polícia.Aqui está justamente o que me desagrada na suamaneira de agir observou Drake. Você procura andarsempre à frente dos "chúis". É a melhor forma de proteger os meus clientes. E qualquer dia isso vai-me custar a licença.Por que razão?298Acusar-me-ão de reservar certas informações para mim,entravando a acção da polícia. Que sabe você das necessidades actuais da polícia? Nada. Mas tenho para mim que não sucede o mesmoconsigo. Não tente ler os meus pensamentos, meu velho! Naminha qualidade de seu advogado, Paul, aconselho-o afazer-se de parvo. Siga as minhas instruções sem procurarcompreender. Entendido, Perry. Assim se fará.CAPÍTULO V

Mason dobrou a esquina da rua, procurando um lugarjunto do passeio para parar. Então, Paul, que conseguiu saber? Muito pouco desculpou-se o detective. Os meushomens só dispuseram de alguns minutos... Bem sei... Vamos aos factos. Diga-me o que conseguiurespigar. De início, era apenas um restaurante comum. Os actuaisproprietários abriram uma casa de jogo no primeiro andar. Os proprietários? Bill Golding e Eva Tannis, que passam por marido emulher. Na realidade não são casados. Percebem do negócio?A fundo e há muito tempo. Golding dirigiu um clubeclandestino em S. Francisco. Mais tarde, foi inspector de umgrande casino, no México. O casal chegou aqui sem um tostão,mas soube encontrar comanditários. E a rapariga? Eva Tannis trabalhava como atracção em S. Francisco,

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na boite de Golding. Tem a seu cargo fornecer ideias aos299clientes e despertar os apetites. Então, meu Deus... essascorajosas pessoas abrem os cordões à bolsa e arriscam algumasnotas. Naturalmente está tudo viciado?perguntou Mason,virando à direita para ficar na mão junto do passeio.Não. É regular. Só atraem os pontos e mais nada. E os jogadores felizes? Eva intervém. Retêm-nos até a casa ter recuperado osseus fundos. Se o ponto sai ainda com alguns lucros, ela saicom ele, marca uma entrevista para a noite seguinte e atrai-opara a mesa. O tipo está convencido de que basta aparecerpara ganhar. Então, está perdido. Tudo isso me parece bastante sujo, Paul. Trata-se apenas do primeiro lance. Enquanto se esperaa grande partida. Pois bem! Vamos lá! concluiu Mason, consultando osnúmeros.Entraram, sem dar atenção à loura mal arranjada queestava na caixa e Drake apontou com o dedo uma porta quedava para as escadas. Subiram, sem provocar qualquerprotesto. No primeiro andar, o fundo do corredor servia desala de espera. Havia uma escrivaninha, um livro de registo,uma campainha e um cartão onde se lia: "Chame o gerente".Drake deixou cair a mão sobre a campainha. Faríamos bem, fingindo que estamos um pouco tocadospropôs ele ao advogado.Este tirou a carteira do bolso, apoiou-se à escrivaninhae começou a contar as notas com a gravidade de um bêbedoque se esforça por parecer em jejum. Abriu-se uma porta paradeixar passar um homem de ombros largos. Que querem vocês?Mason olhou-o, sorrindo com ar estúpido. Drake teve umgesto vago na direcção do corredor. Bem... que... tentar um velho golpe...Não os conheço.300Metendo as notas na carteira, Mason inclinou-se, vacilante,para Paul.Vamos, Paul. Não nos querem aqui. Vamos p'ra outraboite... Nada a fazer meu velho replicou Drake, peremptório.Eles devem-me cento e quarenta notas nest'urno. Quero-as! Está bem, rapazesdisse o homem. Entrem. Segundaporta à esquerda.Foram pelo corredor, muito parecido ao de qualquercasa mobilada, e Drake premiu o botão da porta indicada.Do outro lado ressoou uma campainha. Correram um ferrolhoe a porta abriu-se.

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De vários quartos tinham feito uma grande sala, mobiladacom bastante pretensão. O pavimento, pintado, estava cobertode carpetes berrantes. Na parede, telas baratas iluminadascomo se fossem quadros de mestres, cada quadro com umalâmpada tubular cromada. Havia duas mesas de roleta, umade "poker", duas de monte e uma de burro americano.No fundo, havia um bar cheio de copos e de lâmpadas veladas.Havia na sala uns trinta a quarenta homens, calculou Mason,e umas quinze mulheres, das quais sete ou oito com vestidosde noite muito decotados. Quase todos os homens estavamde jaqueta. O advogado notou dois "smokings".Não percamos tempo disse Mason a Drake. Estamosonde queríamos. Vamos até ao fim. Entendido.Os dois homens aproximaram-se do bar e o advogadopôs uma nota de cinco dólares em cima do balcão. Dois cocktails. Diga a Bill Golding que lhe queremosfalar. Quem?perguntou o barman.Nós dois. E quem são vocês? Mason pôs um cartão sobre o mogno húmido do balcão.O barman chamou um criado e falou-lhe em voz baixa,301sem tirar os olhos de Mason e Drake. Entregou o cartão aocriado que, praguejando, desapareceu atrás de uma portacom reposteiro. O barman estava a servir as bebidas, quandoo criado voltou e lhe fez um sinal afirmativo. Está bem assentiu o barman. Golding vai recebê-los. Espere-me aqui, Drake disse Mason, afastando-sesem ter tocado no copo. Abra os olhos.O criado abriu a porta; o advogado, afastando um reposteiro verde, encontrou-se num pequeno escritório. Um homemsentado atrás de uma mesa analisava-o friamente. Umamulher, alguns anos mais nova do que o seu companheiro,usando um vestido de seda que lhe realçava as formas, estavade pé, perto da mesa. Nos seus cabelos de um preto de azeviche brilhavam travessas de fantasia. Os lábios, muito vermelhos, não sorriam. Adivinhava-se nos seus olhos escuros ebrilhantes uma emoção mal dominada. O pescoço redondo eliso denunciava a vitalidade, o desejo de prazer, em contrastecom o rosto jovem e ossudo do homem, nos lábios do qual sedesenhava o sorriso estereotipado do oportunista vivendoda ruína dos seus semelhantes. Nas maçãs do rosto viam-seduas rosetas de mau indício. Os olhos brilhavam não de vida,mas de febre. Sente-seconvidou o homem em voz baixa e rouca.O advogado sentou-se numa poltrona de couro e cruzouas compridas pernas. O silêncio que se seguiu provava quenão haveria apresentações. E, todavia, era evidente que a

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mulher não estava na disposição de sair. Mason tirou um cigarro e olhou a mulher. Permita-me que fume? Certamente. E vou seguir-lhe o exemplo.Ela deu um passo e via-se a agitação dos músculos do seucorpo bem feito sob o vestido muito justo. Peço-lhe que se não levante disse ela.Mason riscou um fósforo. Ela segurou a mão do advogadoentre as suas para acender o cigarro.302 Então, que quer você? resmungou o homem. Onde estão as pedras que você recebeu de GeorgeTrent?perguntou brutalmente Mason.O homem pareceu mortificado, agitou-se e corou.Ah! É por isso... Devagar, Bill interveio a mulher, que se sentou aolado de Mason, com o braço nu apoiado nas costas da poltronae tão perto do advogado que este podia aspirar-lhe o perfumeda nuca. George Trent não me deu pedras nenhumasrespondeuGolding.Há duas ou três horas, no máximo, esteve aqui AustinCullens continuou Mason.Austin Cullens? Não conheço. Um grandalhão, com um metro e oitenta, cerca dequarenta anos, cabelos castanhos e ondulados, um grandediamante num dedo e outro na gravata. Não vi.Veio tirar informações de George Trent e propôs-lheresgatar as pedras que Trent lhe tinha deixado.Não vi ninguém. Não é essa a minha opinião continuou Mason, muitocalmo. Estou a mentir, talvez?Digamos que está enganado corrigiu o advogado comum sorriso irónico.Não minto, nem estou enganado. Pode ir pelo caminhopor onde veio. E aconselho-o a fazê-lo imediatamente, antesde resolver dar-lhe uma ajuda.Você tem ali um bonito aparelho de rádioobservouMason. Gosto dele e é o essencial.Porque não gira o botão para ouvir um pouco demúsica ?Não sou vendedor.303A minha sugestão foi feita na esperança de que vocêporia no comprimento de onda reservado à polícia. Poderiaficar a saber que assassinaram Cullens. Não percebo o que quer dizer.

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Mason mantinha o tom ameno de conversa. Cullens fez um telefonema, antes de vir visitá-lo.Você está enganado!Compreendo muito bem a sua situação. Como pro prietário de boite, você não tem nenhum desejo de atrair asatenções. Você prefere não se ver misturado, mesmo de longe,a um assassínio.Vamos! comentou Golding, em ar de chacota. Diga lá a sua cantiga. Mas não conte comigo para o acompanhamento. Se você fosse mais amável, poderíamos falar amigavelmente. Senão, telefonarei ao meu amigo sargento Holcomb,da Secção Criminal, para lhe dar uma pequena indicação.Queixa-se, ele, ultimamente, de que não colaboro estreitamente com a polícia. E esse aviso arranjaria muita coisa. Continue, meu velho! Estou perdidamente divertido.Pode até telefonar ao papa, se isso lhe agradar. Bastará Holcomb volveu Mason.Virá para lhe fazermilhentas perguntas, não apenas a si, mas também aos frequentadores da sala de jogo. Talvez eles tenham visto entrare sair Cullens.O homem, atrás da mesa, fixava o advogado com olhosinexpressivos. Isto já o preocupa, hem?continuou Mason, sempreirónico.Golding molhou os lábios com a ponta da língua. Virandoa cabeça, pareceu interrogar a mulher sentada ao lado deMason.Apanhou-nos disse ela com voz rouca e pouco firme.! É uma chantagem.É possível. Mas os trunfos são dele.304Obrigado disse Mason à vizinha, por cima do ombro,sem deixar de fitar Golding.Não há de quê replicou ela. Você tem sorte, é tudo.Na roleta você levaria esta noite a banca à glória.Pois bem! Sim, ele veio disse Golding. Queria falarcomigo. Contou-me uma história de fazer dormir em pé,dos diamantes que me teria deixado George Trent. Tive delhe dizer que era tudo uma invenção, pois já há mais de doismeses que não vejo George Trent. Discutimos um bom pedaçoe depois ele retirou-seFoi tudo?-Tudo. Isso não acerta bem com os factos que conheço disseMason.bom, conte lá então a sua históriaconcedeu Golding. Cullens soube que você ficou com as pedras de Trent.Preveniu-o de que as pedras não pertenciam a Trent. Vocêsdiscutiram para decidir se você tinha o direito de ficar com elas,ou se esses direitos pertenciam a Cullens. Você dizia que tinha

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dado pelas pedras seis mil dólares. Cullens oferecia-lhemetade da soma contra entrega das jóias. O que a si nãoagradou. Mas você estava com o mau jogo e viu-se obrigadoa aceitar a proposta. Aceitou o dinheiro e deu as pedrasa Cullens que regressou a casa para ser abatido. Onde pescou você essa história de malucos?, Foi um passarinho que ma contou. O passarinho que tenha tento no caçador.Você, não?É possívelrespondeu Golding, ameaçador.Bill!gritou a mulher. Cala o bico!Mason puxou tranquilamente a cigarreira.Em todo o caso, para Cullens, a caça terminoudisse ele.Golding quis replicar. Cala-te, Bill Golding repetiu a mulher, atemorizada.Tu falas demais!20-vAMP. G. 2 305 Ou muito pouco disse Mason. Você sabe tudo insistiu ela. Ele já lhe contou tudo. Esta história não tem pés nem cabeça. Isso é coisa que você poderá verificar. Vocês souberam da morte de Cullens insistiu Mason e acharam imediatamente que o melhor era esquecer avisita que ele lhes tinha feito. Avisaram os empregados, masnão esperavam que fossem notados tão depressa. Quandofalei de fazer interrogar os vossos clientes pela Secção Criminal,vocês compreenderam. E decidiram confessar que ele os tinhavindo visitar e calar o resto. Vocês julgam que ninguém vospoderá contradizer. Essa é a sua históriadisse Golding. Eu agarro-meà minha-. Continue a chatear-me e vou mostrar-lhe a lenhacom que ardo. Impossível, meu velho volveu Mason, o dedo estendido na direcção da sala de jogo. com esta instalação tãopequena, você não pode meter medo a ninguém. Porque não se vai embora com o seu companheiro?disse a mulher encostando-se a Mason. Isso é o que eu quero, mas tratem de despejar primeiroo saco.Já está vazio. Você sabe tudo. Você estava aqui quando Cullens apareceu? perguntouMason virando-se para ela.-Não. Onde estava então? Não sei. Estava aqui alguém contigo, Bill? Ninguém replicou o homem com um pequeno sorrisode satisfação. Só ele e eu. Está bem disse Mason, levantando-se. Vocês podemcontinuar a esconder os factos. Mas não se esqueça de que foi

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a última pessoa que viu Cullens vivo. Quer ele lhe tenha pagoou ameaçado apenas, tudo se explica: você seguiu-o e abateu-o.306O furor descompunha o rosto de Golding. Se acertei as minhas contas foi com um de seis tiros!E então? Ainda tenho cinco balas para...A mulher precipitou-se para ele, os olhos brilhantes,e o homem recuperou a sua máscara impassível. Basta!gritou a mulher em voz dura. Você, advogado, desapareça! Basta de gracejos. Nada más as bebidas que vocês servem no bardisseMason. Se soubesse o que você vinha cá fazer, ter-lhe-ia servidooutra coisa.Sem dar resposta, o advogado abriu a porta e arrastouDrake para a rua. Então ? perguntou o detective. Cullens passou por aqui, não há dúvida. Ligue para oseu escritório, Paul. Ponha esta casa sob a vigilância de doisou três homens, dos bons. Que sigam de perto Golding e amulher. E preciso do nome de alguns clientes, de possíveistestemunhas. Meu Deus, Perry! Não se pode entrar numa boite destegénero e pedir testemunhas voluntárias... Faça-as seguir à saída. Tome nota dos números doscarros. Mas não falarão gemeu Paul. Depois de estar emcasa, todos protestarão a sua completa ignorância. Acorde, meu velho! gritou Mason, impaciente.Escolha os tipos prósperos acompanhados de bonecas bemparecidas, com menos de metade da idade dos melros. Essespassarões farão tudo para evitar a publicidade. Contente-seem identificá-los. Eu me encarregarei do interrogatório.Que lhes dê na veneta não pretenderem conhecer a casa esaberei refrescar-lhes a memória! Sim, é melhor isso ficar a seu cargo!Então mexa-se e ponha-me tudo em movimento.Enquanto trata desse assunto, faça procurar lone Bedford,uma amiga de Austin Cullens. Arranque dela tudo quantopuder. Mande um dos seus homens apresentar-se a HarryDiggers na qualidade de inspector de seguros, para conseguirdele um depoimento pormenorizado do acidente. Trate deconseguir um inventário completo do conteúdo da bolsa deMrs. Breel.Entendido. vou já. Alguns dos meus homens conhecempela certa Bill Golding e Eva Tannis. E isso me poupará otrabalhão de regressar ao escritório para dirigir as operações.Vou vigiar a boite enquanto você telefona. Vamos,depressa!

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Drake correu para um estanco de tabaco e saiu segundosdepois.Agora é consigo, Paul. Vigie bem. Conte comigo, Perry.CAPÍTULO VI

Mason abriu a porta do carro e, de sobrolhos franzidos,reconsiderou bruscamente. Batendo a porta, entrou numrestaurante nocturno para consultar uma lista telefónica.Levantando o aparelho, pediu um número:Desejava falar com o dr. Charles Gifford, para umassunto urgente. Da parte de Perry Mason.Da outra ponta da linha veio um ruído de passos apressados. E, um momento depois:É você, Mason. Que há?Trata-se de uma mulher chamada Sarah Breel. Estáno posto de socorros do Comissariado Central. Uma pernapartida, fractura do crânio e prováveis lesões internas. Estáinconsciente e vigiada pela polícia. Você já os conhece, poucolhes interessa a vida de um ferido. Vão esmagá-la com per-308guntas, mal consiga abrir um olho. Oficialmente, ela não éminha cliente e não posso intervir. Não tem médico particular. Encarregue-se dela, por minha conta. Isto fica entrenós, bem entendido. Faça-a conduzir para o melhor hospitalda cidade. Senão, trate de lhe arranjar o máximo do confortoque se possa conseguir com o dinheiro. Ponha-lhe duas enfermeiras à cabeceira. Esteja sempre a par da situação. Logoque a ferida recupere o conhecimento corra para lá.Tem outras instruções a dar-me?perguntou o médicono seu tom mais profissional. Isto não basta? Sem ter visto a doente, Masoncontinuou o médicocom a sua voz seca e nítida de técnico posso dizer que elasofre de um violento abalo nervoso. Precisa calma. Muitatranquilidade. Impossível interrogá-la antes de passadosmuitos dias, sem comprometer gravemente as possibilidadesde cura. Exijo que lhe garantam um repouso absoluto.Nenhuma visita será autorizada...Você é o melhor dos médicos, doutor... Leve duasenfermeiras ruivas.Ruivas?É uma ideia minha. Para o caso de os "chuis" seremmuito violentos, é sempre bom dispor dos serviços de umaruiva bem característica. Uma ruiva não deixa que lhe façamo-ninho atrás da orelha.Tenho o que precisamosvolveu o dr. Gifford. Umpar de rapariguinhas muito decididas, uma ruiva e outracastanha. Excelentes enfermeiras e que se não deixam levar.Brincadeira à parte, Mason. A tranquilidade é indispensável

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a um ferido sofrendo de choque traumático.Diabo de médico!exclamou jovialmente Masonpousando o telefone.Chamando a Agência Drake, soube que a sua secretáriatinha conseguido encontrar a pessoa que lhe tinham designadoe que agia de acordo com as instruções recebidas.309Alguns minutos mais tarde, o advogado parava o carrojunto do n.º 913 da Rua South Marsh, onde George Trenttinha o escritório e oficina.Mason tocou para o porteiro, de quem fez desaparecero ar carrancudo com uma nota dobrada em quatro. Trent? Sim. Mora cá. No quinto. A sua sobrinha subiuainda não há cinco minutos. Virgínia? perguntou Mason. Parece-me que é assim que se chama. Uma raparigaalta e magra.Vou vê-ladisse o advogado. Leve-me lá.O porteiro obedeceu.No fundo do corredor à esquerda indicou quando oelevador parou no quinto andar.Mason caminhou para a porta envidraçada e bateu. Quem é? Mason. Um momento.Rangeu um ferrolho. Mason entrou no pequeno compartimento mobilado para o escritório. Uma pequena carteira,classificadores, uma mesa com uma máquina de escrever.Uma porta lateral. Uma outra ao fundo. Virgínia Trentvestia uma ligeira capa de "tweed" com dois grandes bolsos.Nas mãos, luvas de pele. Na cabeça, um chapéu castanho,inclinado sobre a orelha direita, guarnecido com uma grandepluma de cores vivas. Qual o motivo da sua agradável visita?Mason olhava-a, enquanto ela fechava a porta, colocandoa barra no seu lugar. Apenas o desejo de falar consigo.A que propósito?com o olhar, o advogado procurava onde sentar-se.Ela indicou-lhe a cadeira diante da máquina de escrever.A rapariga tinha pousado sobre ela a sua bolsa de courocastanho.310Você estava a escrever? Cheguei agora mesmo. Onde tem estado você, então ? Procurei, em vão, encontrá-la. Fui ver uma exposição de pintura, para me distraire deixar de me preocupar com a minha tia. Nada como issopara recuperar o equilíbrio mental. Nunca o faz, doutor,quando um assunto o preocupa?

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Não retorquiu Mason com um sorriso. Receariamuito que o adversário se aproveitasse para me passar à frente.E era boa essa exposição?Não era má... Mr. Mason, tenho uma pergunta afazer-lhe.Faça-a então. O que vem a ser um detector de mentiras?Não se lia nada nos seus olhos.A que propósito vem essa pergunta? A nenhum. Apenas para saber.Unicamente? Interesso-me pelo lado psicológico da questão, se insisteem sabê-lo.Não é mais do que um aparelho registando a pressãoarterial do paciente. O seu princípio é o seguinte: admite-seque uma testemunha disposta a mentir reúne as suas forçasmentais. Este esforço revela-se por uma modificação da pressãoarterial, registada pela agulha de um quadrante. Pelo contrário, a verdade é fácil e não necessita de qualquer esforço.Este aparelho tem um real valor? Sem dúvida, mas depende sobretudo da habilidade dointerrogador em pôr as perguntas. Por outras palavras:a máquina regista apenas uma modificação do estado psíquicodo paciente. Sabe, Mr. Mason, que estou convencida de que, pelaminha parte, poderia fazer falhar este método se me fosse311aplicado?disse a rapariga fixando atrevidamente o advogado. com que fim? Simples experiência psicológica. Gostaria de a tentar. E sobre que recairia a sua mentira? Sobre qualquer assunto. Acerca das suas ocupações aqui mesmo? Eu... eu não o estou a compreenderdisse Virgínia,espantada. Vim aqui escrever algumas cartas particularesa alguns amigos. Há quanto tempo está aqui? Cinco ou dez minutos, no máximo.E, todavia, você ainda não tinha começado a escreverquando eu bati.-Não.Que estava você a fazer, então?Será isto replicou a rapariga rindo uma espécie deterceiro grau? Pensa mesmo em mentir se lhe aplicarem o detector?Não brinque, Mr. Mason. O aparelho, repito-lhe,não tem para mim mais do que um interesse científico, psicológico... É você, Mr. Mason, que me quer ver, ao que suponho.A que propósito? Queria falar-lhe de sua tia disse o advogado, observando-a.

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Minha tia Sarah? Sim.Meu Deus! Já o sabia. Este pressentimento preocupou-me durante o tempo em que estive na exposição.Isso devia acontecer. O quê?, Diga.Ela foi detida, evidentemente. Porquê? Por roubo nos "caparates. Ou então... por causa dosdiamantes.312Falemos então destes últimos. Pode-me descrevê-los? Posso. O tio George tinha apontamentos... Mas fale-mede minha tia Sarah. Que aconteceu? Onde a prenderam? Foi atropelada por um automóvel. Um carro? No Boulevard Saint-Rupertcontinuou Mason. Pertoda Rua 91. Isto não lhe diz nada? Que andava ela a fazer por lá?Não é nesta rua que mora'Cullens?Ela franziu os sobrolhos. Parece-me que sim. Espere. Tenho o endereço aqui,nas nossas fichas, e... É inútil. É nessa rua que ele mora. Ou melhor,morava. Ele partiu? Mudou-se?Não. Mataram-no. Morto ?! Sim. com uma bala no coração. Onde quer chegar, Mr. Mason? Fale, peço-lhe.A sua tia saiu de casa dele a correr e atirou-se parabaixo de um automóvel, que a atropelou, quebrando-lheuma perna e fracturando-lhe o crânio. Não houve derramamento de sangue e, no entanto, a sola dos seus sapatosestá manchada...Deteve-se, vendo a rapariga, lívida escorregar pela cadeira.Acalme-se disse ele.Ela tentou sorrir. Você tem whisky?perguntou o advogado.Ela indicou a mesa e Mason, abrindo a gaveta, tirouuma garrafa meio cheia que estendeu a Virgínia, depoisde ter tirado a rolha. Ela bebeu, desajeitadamente, pelogargalo, manchando a blusa e fazendo uma careta. Precisa de aprender a beber pela garrafa disse Mason. É necessário deixar entrar o ar. Assim.Ela observou como ele fazia e sorriu.313 Você tem, pelo que vejo, experiênciadisse ela. Continue, Mr. Mason. Estou a sentir-me melhor.Não tenho nada a acrescentar, ou quase nada. A sua

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tia ainda não recobrou os sentidos. Encontraram-lhe nabolsa um revólver, diamantes, alguns pares de meias de sedafurtados no escaparate de qualquer grande armazém e um"tricot". Pobre tia... Conseguirão salvá-la?Acredito que sim. Mandei-lhe o melhor médico dacidade. E tratei de lhe arranjar duas enfermeiras.Os olhos da rapariga agradeceram-lhe. Voltemos aos cinco diamantes continuou o advogado. Estavam embrulhados em papel de seda. Estou a pensarque se trata dos diamantes Bedford. São realmente cinco. Onde... onde teria conseguidominha tia...?Aqui está a questão. Cullens trazia com ele, debaixodas roupas, uma cinta de couro. As algibeiras foram abertas. Mas onde teria Cullens conseguido encontrar as pedrasde Mrs. Bedford? Provavelmente num tasco conhecido pelo nome dePrato de Owo. Cullens telefonou a Mrs. Bedford dizendo queo seu tio tinha conseguido seis mil dólares, entregando osdiamantes como penhor, mas que contava reavê-los pormetade desta quantia. Mas a minha tia não os teria tirado a Mr. Cullens.Mr. Cullens não lhos teria podido dar, é verdade... Se ela não os conseguiu de Cullens, então é porqueela os tinha, muito simplesmente, tirado do cofre de seu tio. É possível, efectivamente murmurou Virgínia Trent.Lamento não ter pensado em lhe revistar o saco. É umaautêntica mala, pelo tamanho e pelo peso. O que ela conseguemeter lá dentro!... Ela não a trazia consigo quando nos encontramosno restaurante do armazém?314Não. Tinha-a deixado no carro. O que não teria certamente feito, se trouxesse lá osdiamantes.É difícil de dizer... Se a tia Sarah tinha a intenção deroubar nos escaparates, era, todavia, o melhor lugar ondea podia deixar. É justo reconheceu lentamente Mason...A ideianão é má... Que há atrás desta porta? A oficina?Ela aquiesceu com um sinal de cabeça e o advogado foiabrir a porta em causa, lançando uma olhadela para o aposento escuro. Dispõem aqui de muito espaço observou o advogado. Sim. Mais do que o julgado necessário pelo tio George.Mas, a não ser assim, teria ficado muito apertado num escritório vulgar. Onde está o comutador ? Não há. Cada lâmpada acende separadamente, por

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meio de um puxador preso ao quebra-luz. Isto impede osoperários de desperdiçarem energia... Olhe, pegue numalanterna, se quer entrar.Tirou do bolso uma pequena lanterna niquelada, comcerca de quinze centímetros de comprimento e quatro dediâmetro. Que coisa tão bonita comentou Mason. Traz issosempre consigo? Sim... Sirvo-me dela muitas vezes.Utilizando a lanterna, Mason encontrou a cadeia daprimeira lâmpada. Avançava para a puxar quando o feixeluminoso, iluminando uma pilha de caixas, a um canto,revelou uma larga mancha avermelhada. O que é aquilo? perguntou o advogado.Aquilo o quê?Aquela pilha de caixas... A caixa de cima tem uma...Vou ver aquilo.Mason deu alguns passos e examinou mais de perto a315mancha suspeita. Para terminar, subiu para uma caixa,que flectiu sob o seu peso e rebentou. O advogado, procurando um ponto de apoio, agarrou com a mão o canto deuma caixa e o conjunto oscilou perigosamente. Atenção! gritou Virgínia da soleira.Mason atirou-se para o lado. A pesada caixa deslizou e,com grande estrondo, veio rebentar no chão, projectando nomeio dos seus destroços o corpo inerte de um homem, irreconhecível na semiobscuridade.Virgínia Trent, os olhos arregalados pelo horror, pôs-sea lançar gritos agudos, interrompidos por soluços. Cale-se! gritou Mason. Uma lâmpada! Depressa!Às apalpadelas (tinha deixado cair, na queda, a lanterna),encontrou a cadeia que movia o interruptor. Virgínia afastou-se dele com um salto, como o teria feito diante de umassassino. Da sua boca completamente aberta saiu um gritocontínuo, uma espécie de estertor muito agudo.Ressoaram passos no corredor. Bateram à porta, empesados golpes. Cale-se, imbecil zinha! disse Mason, irritado, dirigindo-se à rapariga. Você não compreende...?Sempre a berrar, ela correu para o aposento vizinho.Martelavam na porta, com grandes punhadas. Virgíniaescondeu-se num canto. O vidro da porta estilhaçou-se euma mão entrou para girar o botão.Mason encontrou-se face a face com o sargento Holcomb. Que se passa aqui?interrogou este.Ainda não sei bem, sargento. Venha você mesmo ver.Virgínia Trent continuava a gritar. O que tem aquela rapariga? perguntou Holcomb. Uma crise. '

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A rapariga apontava com um dedo trémulo a oficina,sem poder falar. Mason dirigiu-se para ela: Calma, vejamos!316Afastando-se dele com horror, ela lançou-se nos braçosdo sargento, agarrando-se a ele, a tremer. Que diabo quis você fazer aqui?perguntou Holcomba Mason. Porte-se com juizo, sargento! Esta criança está fora desi. Há um cadáver ali ao lado. Um cadáver? Sim.-Quem é? Não sei. Tinham-no metido numa caixa. Repareinuma mancha que me pareceu suspeita. Quando quis vermais de perto, fiz desequilibrar a pilha das caixas. O corporolou pelo chão. Ela pôs-se a gritar e tentei acalmá-la.Vamos a ver issodisse o sargento.Virgínia continuava agarrada ao sargento, aterrorizada.Em vão Holcomb procurava livrar-se dos braços frágeis quelhe rodeavam o pescoço. Calma! Não grite assim!... Mas... ela está bêbeda! Nãoesclareceu Mason. Desmaiou há bocadinhoquando lhe falei da tia e dei-lhe um pouco de whisky. Quando foi isso? Há poucos minutos. Sim. O porteiro garante-me que você tinha acabadode subir reconheceu o sargento de muito má catadura. Onde está essa garrafa?Nessa gaveta.Holcomb pegou na garrafa, depois, abaixando-se, tirouum revólver. E isto? É um "trinta-e-oito"respondeu Mason, analisandoa arma.Ajude-me a agarrar-lhe os braços enquanto lhe metoalgumas gotas de álcool pelo bico. Ela não mo quer deixarfazer, a cadela!A rapariga berrou de terror ao ver aproximar-se Mason.317 Ela tem o aspecto de o considerar responsável disseHolcomb. Cale-se para aí! Ela é doida. Vamos, Virgínia, bebaisto... Você não vê que ela está com uma crise?A rapariga virava a cabeça para todos os lados, recusando-se a beber. Só há um meio continuou Mason. Aguente-a, sargento. Felizmente tem as luvas calçadas. Não nos podearranhar.Reunindo as suas forças, os dois homens conseguiram

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obrigar a rapariga a beber uma golada. Ela engasgou-se,tossiu. Isto impedi-la-á de gritar. Vamos, Virgínia, coragem.O porteiro enquadrava-se na porta. Que aconteceu? Olhe, trate dela disse Holcomb pondo-lhe a rapariganos braços. Virgínia agarrou-se imediatamente a ele, comoo tinha feito ao sargento.Holcomb e Mason passaram para a oficina, acendendouma lâmpada. Penso que é George Trent disse Mason. Está mortohá vários dias. Eh, você!gritou Holcomb. Venha agora aqui paranos dizer se reconhece este homem.O porteiro avançou, pousou Virgínia na cadeira dadactilógrafa, e a rapariga meteu a cabeça nas mãos e começoua soluçar. É George Trent disse o porteiro, simplesmente.Já Holcomb se dirigia para a mesa e, estendendo o braçopor cima dos ombros trémulos da rapariga, levantava otelefone. Secção Criminal... Aqui Holcomb. Sim. Uma descoberta no 913 da Rua South Marsh. Desta vez é George Trent.Despachem-se.E, desligando:318 Mostre-me onde estava.Mason indicou a pilha de caixas. Ouvi-o cair ao sair do elevadoradmitiu o sargento. Como sabia você que estava lá? Não fazia a menor ideia respondeu Mason. Repareinuma mancha castanha no fundo da caixa. Subi para outracaixa para ver melhor e acabou por cair tudo.. Onde estava ele? Metido nesta grande caixa de embalagem. Mesmo noalto da pilha. É evidente que o meteram dentro depois de o teremMorto notou o sargento, inspeccionando o aposento. E içado para o alto da pilhaajuntou Mason. Porque não tinha tampa e queriam esconder o corpo. Mas deviam pensar que viria a ser descoberto, cedoou tarde. O assassino pretendeu ganhar tempo.Pensativo, analisou o corpo estendido a seus pés. Raio de esconderijo, apesar de tudomurmurou. Muito!Houve um silêncio, apenas perturbado pelos soluços abafados de Virgínia.Veja o que tem debaixo da camisa continuou Mason.Veja se traz uma cinta de pele de camelo.

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Só começarei a minha investigação depois da chegadado juiz disse o sargento em tom azedo. Se pretende informações complementares, Mr. Mason, encontrá-las-á nosjornais. Você quer dizer que a minha presença é supérflua? O porteiro disse-me que você apenas me tinha precedido aqui um ou dois minutos. Eu mesmo ouvi cair a caixae a rapariga começar a gritar. Não tenho receio de si, destavez, mas qualquer coisa me diz que conseguirei mais coisasdesta jovem se você não estiver presente com os seus conselhos. Ela não está em estado de lhe responder.319Já está melhor. Será uma vergonha interrogá-la agora. Você vai-lhedar cabo dos nervos. Que estava ela a fazer aqui? Ela trabalha regularmente no escritório. Eh, eh! A esta hora aqui? E você, como sabia que apodia encontrar neste lugar? Nem sequer pensava que tal pudesse acontecer. Elaregressava de uma exposição de pintura e queria escreveralgumas cartas. A quem? Não imagino.com o polegar, o sargento Holcomb apontou o fimdo corredor. Está bem, Mason. Ela fala inglês. Não terei necessidadede intérprete.CAPÍTULO VII

Mason ligou para o escritório de Drake. Há recados para mim? Sim, Mr" Mason. A sua secretária pede-lhe que lhetelefone para a Câmara Verde, do Maxime Hotel, É importante, parece. Nada mais? Mr. Drake está a entrar. Quer falar-lhe.Mason percebeu o clique do comutador e reconheceua voz do detective. Qual a razão desta agitação na Secção Criminal, Perry ? Encontrei-lhes um novo cadáver.-Não?- Sim. Isso é que é sorte!320Como assim? Sorte o não ter estado consigo. O corpo de quem, Perry ? George Trent.Drake emitiu um assobio de surpresa. Onde estava ele?

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Numa caixa de embalagem, na sua oficina. Já tratoude se informar acerca dele, Paul?Ainda não sei grande coisa. Apenas sinais. Estamos atrabalhar na coisa. vou chamar os meus homens.A sinalética é minuciosa? Bastante. Cinquenta e dois anos, altura um metro eoitenta, noventa e um quilos, cabelos e olhos castanhos...Diga-me, Perry, está certo de que se trata do nosso homem ? Quase certo. A sobrinha arranjou uma crise de nervos.O porteiro reconheceu-o. Tinham metido o cadáver numacaixa. Quis fazer o meu inqueritozinho, mas Holcomb pôs-meno olho da rua. Quer interrogar a rapariga a despeito do seuestado. Nada mais, Paul? Fiz investigar a clientela do Prato de Ouro, Estou atratar de conseguir os endereços dos proprietários dos carros,seguindo os números. E lone Bedford? Está na Câmara Verde, no Maxime Hotel, com Della.Aproveite para mandar um homem a casa dela. Talvezse consiga qualquer coisa, não? Pode ser. Ah! outra coisa: transferiram Sarah Breel.Afinal não tem fractura de crânio. Onde a puseram?No Hospital Deaborn Memorial.Já recobrou a consciência? Não acredito. Mas, à parte o perigo de poderem existirlesões internas, tem apenas a fractura da perna. E Trent,Perry? De que morreu ele?Aparentemente, com uma bala esclareceu Mason.A propósito, havia numa das gavetas um revólver de21-VAMP. G. 2 321

grande calibre, um trinta-e-oito. Havia também uma garrafade whisky. Dei-o a beber à sobrinha. Holcomb puxou a gavetaum pouco mais do que eu e encontrou a arma.Vou pôr os meus homens no negócio a ver o que sepoderá fazer. Della pediu que o chamasse.Agora mesmodisse Mason, desligando para pedirimediatamente o Hotel Maxime.Alguns minutos depois, Della estava na linha. Quanto tempo vai durar isto, patrão? perguntou elanuma voz mais aguda do que lhe era habitual. Durar o quê? Bem sabe...Você quer dizer quanto tempo ainda terá de se ocuparde lone Bedford? Precisamente.Não muito tempo. Porquê? É que ela tem ideias.

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Ideias ? Ela quer continuar. Continuar ?A beber, por conta do cliente.Aguente volveu Mason. Não se incomode com aconta.Della Street teve um soluço. Mason foi incapaz de avaliarse se tratava de um acto involuntário... Desculpe-medisse ela, muito digna. É o estômago...Não é pela conta, é por mim que me preocupo. Um pouco de paciência. vou já. Está a ouvir a música, patrão? Então? Isto gira... isto gira...Della desligou. Cinco minutos depois, Mason parava ocarro diante do Maxime, entrava e encontrava a sua secretária sentada à mesa com Bedford e três desconhecidos.322 Mas... é Mrs. Bedfordexclamou fingindo-se surpreendido. Que prazer!... Não maior que o meu respondeu lone Bedford,sorrindo. É o dia de anos da sua secretáriaexplicou Mrs. Bedford.Um criado trouxe uma cadeira e Mason sentou-se. Oshomens dirigiram-lhe, sem o menor entusiasmo, um ligeiroaceno de cabeça. Nenhum fez menção de se apresentar.Della Street agitou-se, chamou o criado. Estou até à bocadeclarou ela sem delongas. Pagoe desapareço.Abriu a bolsa, remexeu-a, abriu um pequeno porta moedase pareceu consternada. Meu Deus murmurouesqueci-me da carteira!Mason, que queria tirar a sua carteira, recebeu umdoloroso pontapé nas canelas.A orquestra iniciou uma música de dança. Desculpe-me disse um dos desconhecidos. Vou dançar com uma rapariga de S. Francisco.Della Street piscou os olhos ao criado. Os três homensempurraram barulhentamente as suas cadeiras e eclipsaram-se.Della tirou da bolsa um rolo de notas. Isso é muito aborrecido comentou Mrs. Bedford. Precisávamos de nos ver livres deles replicou DellaStreet. O patrão quer falar à vontade. Quem eram? perguntou Mason. Chulos de dancing explicou a rapariga. Vão e voltam, instalam-se a uma mesa, bebem por conta alheia,dançam e regressam.Ela voltou a meter as notas na bolsa. Eis o que dá deixar à vontade duas raparigas comovocês comentou Mason. Venha, Della, vamos dar uma

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volta.O criado aproximou-se.323 Que devo eu trazer para a senhora? A conta disse Della. Não sei, decididamente, o quefiz ao meu dinheiro. Devo tê-lo deixado em casa.Gravemente, o criado pousou a nota diante de Mason,que tirou uma nota de vinte dólares para pagar. Guarde o troco.O criado inclinou-se. Onde vamos? perguntou lone Bedford.Ao Comissariado Central esclareceu Mason.À polícia? Sim. Queria que você identificasse uns diamantes. Os meus?É provável... Um momento. Tenho um telefonemaa fazer.Aproveitaremos para refazer a beleza disse lone.Venha, Della. Dê-me o seu apoio moral.O advogado chamou imediatamente o escritório de Drake.Atenção, Paul. É importante. Nós vamos para o Comissariado Central, lone Bedford, Della e eu, para ver os diamantes que foram encontrados em poder de Mrs. Breel.Farei de modo a afastar Mrs. Bedford. Agora é consigoo saber onde irá e o que fará depois de nos ter deixado.Utilize homens que nos conheçam, a Della e a mim, demaneira a poderem identificar Mrs. Bedford sem dificuldades.É possível que ela saia só do Comissariado. Entendido respondeu Drake.As duas mulheres voltavam. Mason ajudou-as a pôras capas e conduziu-as ao carro. Qual a razão que o leva a acreditar que se trata dosmeus diamantes ? perguntou Mrs. Bedford.Nenhuma. Quero simplesmente que os veja. Onde os encontraram e como pode acontecer estaremem poder da polícia? Mrs. Breel foi atropelada por um automóvel. Levaram-na para o hospital. Os diamantes estavam na sua bolsa.324 É impossível que sejam os meus, pois Aussie já os tinharecuperado no Prato de Ouro. Ele declarou-lhe expressamente que os tinha no bolso? Não em absoluto. Tinha-os encontrado. Reclamavamseis mil dólares e ele pensava liquidar com três mil. Disse-lhepara aceitar e pagar. Desculpar-me-á, Mrs. Bedford declarou Mason seme recusar a discutir este ponto antes de ter visto os diamantes. Ah! Um mistério! Adoro isto disse Mrs. Bedfordmuito animada. Você pode mostrar-se menos sério num dia de anos,

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Patrão interveio Della. O que lhe falta é um cocktail ouvários. O remédio é conhecido retorquiu Mason, consultandodiscretamente o relógio. Não sou da sua opiniãodisse Della, muito grave. O mal é incurável. Você trabalha e o álcool desliza sobre sicomo a água sobre as penas do pato.lone Bedford estava muito divertida e Della virou-se paraela, com ar de reprovação: Não estou a brincar! Sei isso muito bem e é justamente isso que me faz rir. Uma mulher não deve rir assim de uma outra na presença de um homem continuou severamente Della Street. Deve manter-se cortês e delicada. Você quis insinuar coisas...incorrectas. Pouco -importa, apesar de tudo. Quem podiasonhar em embriagar um pato? A sua secretária é mais nova do que eu pensava disselone Bedford ao advogado. É exacto. E ela não bebeu mais de cinco ou seis cocktails. Mas istoainda não acabou. Estou cheia de ideias... Desculpe-me. Voutelefonar.Mrs. Bedford mergulhou na cabina, tomando a precauçãode fechar cuidadosamente a porta.325 Sabe quem está ela a chamar?perguntou o advogadoa Della Street. Não faço a menor ideia. Que se passou na reunião? Ela fez-me beber, para me fazer falar disse Della,irónica. Não sabendo quando você chegaria, fingi ser muitosensível aos efeitos do álcool.lone Bedford regressava e metia o braço no de Mason. Pois bem! A caminho! Parece-lhe que encontraremosno Comissariado alguma coisa que se beba? É coisa que se verá.No carro, as duas raparigas, muito alegres, divertiram-seimenso. Tudo servia para rir: os carros ultrapassados, osanúncios luminosos, os sinais eléctricos.No Comissariado, o empregado do guiché acolheu combastante secura o advogado. Mason apontou lone Bedford. Mrs. Bedford explicou tinha confiado a AustinCullens alguns diamantes para os entregar a George Trent.Trata-se, possivelmente, dos diamantes que se encontraramna bolsa de Mrs. Breel. E então? Que deseja? retorquiu o outro atrás das suasgrades. Mrs. Bedford não os pode ver? Um momento disse o homem levantando um telefonemunido de uma espécie de corneta que impedia que ouvissem

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o que dizia. Como se chama essa senhora? Mrs. Bedford. lone Bedford.O homem aproximou o auscultador dos lábios e faloudurante alguns minutos. Depois, pousando o aparelho, foiabrir o cofre, tirou as pedras, desdobrando o papel de seda em que estavam embrulhadas.Mrs. Bedford, que já não pensava em rir, examinou asjóias com cuidadosa atenção.Nãodisse ela por fim. Estes não são os meus diamantes.326 Está certa? perguntou Mason. Certíssimaconfirmou ela, voltando-se para ele. Estasnunca as vi na minha vida. Estas pedras parecem-se com asminhas, mais nada. Está bem. Obrigado.O empregado refez cuidadosamente os embrulhos. Porque trazia Mrs. Breel estes diamantes na sua bolsa ? perguntou Mrs. Bedford. Valem muito dinheiro. Ainda não sabemos volveu Mason. Mrs. Breel saiude uma casa do Boulevard Saint-Rupert entre a rua 91 e arua 92. Que fazia ela por lá? perguntou Mrs. Bedford, cujavoz subitamente se transformou e se tornou dura. Não sei. Ninguém sabe. Evidentemente, a políciadepois de ter descoberto o corpo de Cullens, supõe... O corpo de Cullens? Como? Você ainda não sabia? Não sabia o quê ?Ela martelava as palavras. Oh! Na verdade... Lamento...-Vamos! Fale! Mataram Cullens esta noite, com uma bala. Encontraram o seu cadáver no salão da casa.Rígida, lone Bedford ouvia, sem comentários. Porque não mo disse, patrão? espantou-se DellaStreet.Julguei que já o tinha feito.Ela abanou energicamente a cabeça.Tudo isto é tão complicado suspirou Mason, confundido. Deve ter-me esquecido... Acredite, Mrs. Bedford,que lamento muito ter-lhe infligido este golpe... Já o conheciahá muito tempo, sem dúvida?com um movimento brusco, lone tinha-se virado paraDella. Lia-se-lhe a suspeita nos seus olhos frios.327 Vocês podem continuar sozinhos o giro. Eu não jogomais. Quer que a leve a qualquer parte ? perguntou amavelmente Mason. O meu carro está à sua disposição.Não, obrigada atirou ela secamente, dirigindo-se para

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a porta, que bateu atrás dela. Foi cruel, patrão fez notar Della. Ela amava-o talvezmuito. Queria ter a certeza volveu Mason.CAPÍTULO VIII

Mason, barbeado de fresco, pulando como uma bola deténis nova, pôs o chapéu no cabide de cobre, dirigiu-se parao seu gabinete, pegou no classificador de cartas importantes,posto ao alcance da mão pelos cuidados de Della Street, eafastou-o para a ponta da mesa.Della abriu a porta ao seu chefe.bom dia, patrão. Alguma novidade?E esse aniversário ? retorquiu Mason.Vai melhor, mas não volto a beber.Não há notícia dos scheiks?Dos scheiks? Os seus admiradores de ontem à noite, na mesa doMaxime. Recusou-se a dar-lhes o seu número de telefone?O rosto de Della Street iluminou-se. Declarei que me chamava Virgínia Trent e dei-lheso número dela. Espero que isto lhe dê sorte.Mason estalou numa gargalhada. Paul Drake deseja falar-lhe. Chame-o. Que há nos jornais? Nada de novo? Pilhas de coisas, e Drake está cheio de informaçõesconfidenciais. vou chamá-lo.328Enquanto esperava, Mason pegou nos jornais e percorreu-os avidamente. Decorreram alguns minutos. Depois,Della Street, indo postar-se à porta que dava para o corredor,abriu-a e empertigou-se numa impecável posição de sentido.Paul Drake apareceu.Alo! Della! Bom dia, Perry.Mason apontou-lhe uma cadeira. Que há de novo, Paul?O detective sentou-se e passou as pernas sobre o braço dapoltrona. Montes de truques disse ele. Então vamos, meu velho. Comece pelo meio e marchenos dois sentidos. Esta história da sala de jogo, primeiro começouDrake. Fiz seguir dois gordos clientes do género ricaço.Um empreiteiro de cerca de cinquenta e cinco anos, com umarapariga de uns trinta anos e que parecia ter vinte. E umgerente bancário com uma loirinha muito brejeira. É exactamente aquilo que procuramos. E lone Bedford? Mandou-a seguir? Claro que sim. E que se passou?

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Saindo do Comissariado Central começou Drake,abrindo o seu caderno de apontamentos parecia estar muitoapressada. Correu para o canto da rua para fazer grandessinais a um táxi, sem resultado. Então foi a pé pelo passeioaté ao Hotel Spring, na estação de táxis. O motorista levou-a,rapidamente, aos Apartments Milpas, em Canyon Drive.Ela subiu para o apartamento 314, alugado por um talChennery. Ela é provavelmente sua mulher.Todavia o apartamento em Bixel Arms, em MadisonAvenue, está em seu nome fez notar Della Street. A listatelefónica não a menciona porque a assinatura é recente,mas as informações dão o seu nome. Porquê supor que ela é a mulher de Pete Chennery?329Os meus homens tiraram informações por todos oslados. Onde está ela actualmente? Nos Milpas... de acordo com as últimas notícias.Já mandou revistar o apartamento? Sim, mas não tivemos tempo de fazer uma revista emregra. Logo que ela saiu do Comissariado, mandei retiraros meus homens. Apesar de tudo, fizeram um bom trabalho.Não havia cartas, nem correspondência, nem livro de cheques.Só coisas comuns: escovas, cremes, robes e um cento decartões de visita gravados. E Chennery ? Já voltou ? Não. Gostaria muito de conhecer esse sujeito disse Mason, Preciso dos sinais dele. Pete Chennery não seria, por acaso,Austin Cullens? vou mandar outros homens disse Drake para sabero máximo possível dela, sem lho dar a conhecer. Você nãoquer que ela se dê conta da nossa vigilância? Em nada. Ela não deve...O telefone tocou e Della levantou-o. O dr. Gifford, patrão.Mason pegou no aparelho. O médico falava depressa,em voz sacudida.Atenção, Mason! Ouça-me bem. Não terei tempo derepetir. Mrs. Breel já recobrou a consciência. Agora está adormir. Um simples choque. Nada de fractura do crânio nemde lesões internas. A fractura da perna já está reduzida.O membro está engessado. Ela está sob prisão. Um agenteguarda a porta. Ela recusa-se a qualquer declaração, exceptona sua presença. Você é o seu advogado, garante ela. O sargento Holcomb acaba de anunciar a sua visita. Seria melhorque você viesse. Quarto 620. Você está no hospital? ' Estou.330

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Porque foi ela pronunciada? Acusada do assassínio de Austin Gullens. Ela não fez qualquer declaração, nem mesmo às enfermeiras?Nem uma palavra. Estou a telefonar-lhe sem ninguémsaber, aqui. Não me denuncie. Até logo.Desligando o aparelho, Mason foi buscar o chapéu. Sarah Breel recobrou a consciênciaanunciou aos seusamigos. Até agora não disse nada. Foi acusada de homicídiopremeditado. Então tudo é claro, Perrydisse Drake.-O quê? Que o serviço de balística comparou a bala que matouGullens com as do revólver encontrado na bolsa deMrs. Breel. Tem a certeza de que havia um revólver no saco dasenhora?perguntou Mason. Diggers é taxativo respondeu Drake. Da presençada arma, ele deduziu que a bolsa tinha objectos de valor, e foipor esta razão que ele fez inventariar o que havia no sacopelo pessoal da ambulância.Você dispõe de uma testemunha do acidente? Quer você dizer se há alguém que tenha visto Mrs.Breel atirar-se para debaixo do carro? Isso mesmo. Não reconheceu Drake. Só lhe deram atençãodepois de ter sido atropelada.Apalpe Diggers a esse respeito. Trate de se informaracerca dele também. Eu raspo-me. Posso acompanhá-lo, patrão?perguntou Della Street.Não. A polícia deve ter um estenógrafo. Sozinhopoderei desembaraçar-me melhor.Rápido, correu para o elevador. Trinta segundos depoisestava na rua. Apanhou imediatamente um táxi.-331 Hospital Deaborn Memorial. A toda a velocidade!Durante o trajecto, Mason recapitulou as informaçõesde que dispunha. Sem qualquer dúvida possível, o revólverencontrado na bolsa era o factor determinante da decisãotomada de inculpar Mrs. Breel. Era evidente que esta armatinha disparado a bala que matara Cullens. As solas manchadas de sangue não teriam sido elemento suficiente. Mas estastrês provas acumuladas, os sapatos, o revólver, a presençaindiscutível de Mrs. Breel nas proximidades do local docrime no momento fatal, tudo concordava para tornar bastante difícil o caso da acusada.No hospital, Mason foi de elevador até ao sexto andar eencontrou sem dificuldade o quarto da ferida. Um agenteguardava a porta. Ouvia-se o rumor de uma discussão. Oadvogado tentou abrir a porta. O braço do agente deteve-o. Não se pode passarrosnou o homem.

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Quero ver Mrs. Breelrespondeu Mason, muito digno. Ela pediu-me que a viesse ver. Isso não me importa. Não se pode entrar sem autorização escrita. Quem está lá dentro? O médico, o substituto do procurador, um escrivãoe o sargento Holcomb. Eu sou o advogado de Mrs. Breel. Perfeitamente. Desejo entrar.Já o tinha dito. Avise o sargento Holcomb. Nada a fazer. Pagam-me para isto. Guardo a portae é tudo.com um gesto rápido, Mason levantou o punho e bateubrutalmente na porta.O agente empurrou-o. Que é que você tem? Quem lhe permitiu...?Não falemos mais nisso, meu amigo volveu Mason,

332conciliador. Você está aqui para me impedir de passar.Mas, apesar de tudo, pode bater-se...A porta entreabriu-se. Apareceu uma cabeça. Que quer você? Eu sou Perry Mason, o advogado de Mrs. Breel. Querover a minha cliente. Entre, Mr. Mason!gritou a ferida do seu leito.No mesmo instante, o agente e o civil que tinha abertoa porta, reunindo as suas forças, atiraram Mason para ocorredor. Tinham-lhe dito para não deixar entrar ninguém!disse severamente o civil ao guarda. Foi ele que bateu defendeu-se o guarda. Eu recusei-me a deixá-lo passar. Que isto se não repita! concluiu o outro, fazendomenção de voltar para o quarto.O agente segurava Mason. Este esperou que a porta seabrisse e, em voz suficientemente alta para ser ouvido dedentro, disse: Mrs. Breel não responderá se eu não assistir a esteinterrogatório!A porta fechou-se. O agente fixou o advogado com arbelicoso. Você é um advogado porcalhão, é o que é! resmungou.Mason sorriu e ofereceu-lhe um cigarro. Eu? Nada disso.O agente hesitou, depois aceitou, riscou um fósforo e,mostrando o corredor com o queixo:Vamos, corra! Desapareça!

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Não. Esperarei aqui. Isso é o que vamos ver!Você está a guardar o quarto, mas não o corredor. Não tem nada que fazer aqui. Mas vou tê-lo daqui a pouco.Caiu o silêncio. O agente, de sobrolho franzido, estudava333a situação. Do outro lado da porta discutia-se vigorosamente.O tom crescia. De repente, a porta abriu-se e o sargentoHolcomb meteu a cabeça pela fresta. Está bem, Mason. Entre.O advogado passou o umbral. Um escrivão tinha tomadolugar a uma pequena mesa, com um caderno de estenógrafoaberto diante dele, a caneta na mão. Larry Sampson, substituto do procurador, estava de pé, de mãos nos bolsos, juntodo leito. Perto da janela, o dr. Gifford aguardava, de olho vivo,espreitando. Ao lado dele, uma enfermeira de cabelos domais belo vermelho, grandes olhos castanhos, pele de pêssegoe rosa, a blusa de folhos, dura.Na cama, onde o travesseiro tinha sido levantado parasustentar melhor a sua cabeça ligada, Sarah Breel observavaa cena com um olhar calmo. Uma corda presa à goteira quelhe protegia a perna partida saía de sob as cobertas, passavapor uma roldana e sustentava um peso que pendia ao pé dacama. Senhores dizia o dr. Giffordvolto a repetir que estadiscussão não os conduz a nada. A ferida sofre as consequências de um forte abalo nervoso. Não permitirei que avenham pôr em perigo com um interrogatório prolongado ebrutal.Basta! cortou secamente o sargento Holcomb. Ninguém quer matar a sua doente!Ao primeiro sinal de fadiga, faço parar tudo concluiuo médico, teimoso.Sarah Breel sorriu para Mason. Um sorriso de esguelha,pois as ligaduras rodeavam-lhe a cabeça e o inchaço damaxila.bom dia, Mr. Mason. Tenho empenho em que seja omeu advogado.Mason inclinou a cabeça. Sou, ao que parece continuou ela acusada de assas-334sínio. Recusei-me a fazer qualquer declaração antes da suachegada.A senhora compreende disse o sargento que o seusistema de defesa...Deixe-me falar interrompeu Larry Sampson. Vouexplicar mais uma vez a Mrs. Breel, e para informarMr. Mason que o fim desta reunião não é provocar qualquerconfissão. As provas materiais, sem mais nada, bastam para

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a acusação de crime premeditado. Se, todavia, ela estáinocente e pode anular estas presunções, abandonaremos aacusação. Damos-lhe a possibilidade de evitar a publicidadee a mancha indelével de um processo público.Brincadeiras! comentou Mason. É um truque jámuito gasto, Mrs. Breel. Estas gentes inculparam-na e seriapreciso um milagre para as levar a supor o contrário. Trata-sesimplesmente de a fazer falar para retirar das suas declarações qualquer contradição aparente que possa justificar asua acção.Sampson corou. Se você continua nesse tom vai pôr-se a andar daquiameaçou o sargento Holcomb. Tenho o direito de ver a minha cliente e de a aconselhar. De a convencer a não responder às nossas perguntas?perguntou Sampson. Nada disso retorquiu Mason. O que eu fiz foi apenascorrigir as inexactidões das suas declarações. A minha clientetem liberdade absoluta de fazer aquilo que quiser. Masconsidero, contudo, do meu dever recomendar-lhe que nãoresponda se se sentir ligeiramente nervosa. Ela só tem deadiar a conversa para mais tarde, depois de ter ouvido aminha opinião. Depois de você lhe ter ensinado a lição, não é verdade?ironizou o sargento. Sustento aquilo que disse. Tudo isso está muito bem interrompeu Mrs. Breel.335 É inútil continuar a discutir. Estou pronta a fazer um depoimento completo. Queria apenas que o meu advogado estivesse presente.Assim já está melhor concordou Sampson calorosamente. A senhora é uma mulher inteligente. A senhoracompreende o efeito desastroso, para si, que o seu silênciocausaria. As provas que possuímos... As vossas provas?perguntou Mrs. Breel. Não compreendo o que quer dizer. Serei franco, Mrs. Breel. Brutalmente franco. Para seubem. Quando o automóvel a atropelou, ontem à noite, tinhana sua bolsa um revólver de calibre 38. A polícia disparou umabala com essa arma. Comparou-a com a bala que matouAustin Cullens. Microfotografaram os dois projécteis. Saíram,é uma certeza, do mesmo tambor. Por outras palavras, Mrs.Breel, o revólver que trazia consigo disparou ontem a balaque pôs fim aos dias de Austin Cullens.Mrs. Breel contemplou severamente o substituto.Tem a certeza, meu caro jovem, de que encontraramum revólver na minha bolsa?Absoluta respondeu Larry Sampson. A bolsa estavaa seu lado quando a levantaram.

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E era mesmo a minha?interrompeu Mrs. Breel. Estava então sem sentidos. Não me pode tornar responsávelpor uma bolsa só pela simples razão de a terem encontradoa meu lado. Ignoro quem a poderá ter posto lá.Mason dirigiu um pequeno sorriso de cumplicidade aodr. Gifford. E aqui está disse o sargento com ar desgostoso amulher que nos queriam impedir de interrogar, sob o pretextode não estar no gozo de todas as faculdades!Não sem hesitar, Larry Sampson abriu uma sacola quetinham posto no chão, a um canto. Cá está a bolsa, Mrs. Breel. Diga-me então se é a sua.336Dramático, agitava sob os olhos da doente a bolsa pretacom punhos de imitação de jade.Mrs. Breel contemplou o objecto com um olhar frio edesinteressado. Parece-me bemcomeçou ela que tive, em tempos,uma bolsa desse género, mas não o posso garantir. Não, meucaro jovem, é-me impossível declarar se essa bolsa me pertence... Isso foi em...Sampson não tentava esconder a sua surpresa. com umgesto brusco, exibiu o "tricot". Vai-me negar também que este é o seu trabalho? Istoé mesmo seu, não é verdade? Acredita que sim? Sabe-o muito bem.-Não.Vejamos, Mrs. Breel, não estamos a brincar. O assuntoé grave. É acusada de assassínio, que é o crime mais graveregistado pelas nossas leis. Quer as perguntas que lhe faço,quer as suas respostas, estão a ser estenografadas. Podem servirde elementos de acusação em qualquer -altura. Não gostariade aproveitar as circunstâncias para a prejudicar. A suasituação é difícil. As presunções abundam. Mas é, todavia,possível que se possa justificar. Colaborando com a polícia,pode conseguir-estabelecer a sua inocência. Uma falsa declaração terá efeito contrário, comprometê-la-á irremediavelmente. Mr. Perry Mason, seu advogado, está presente. Elepoderá confirmar-lhe a verdade das minhas palavras. Sepersiste em negar que esta bolsa seja sua propriedade e nósconseguirmos provar o contrário, essa simples mentira bastará para a fazer incorrer no rigor da lei. Uma vez mais, lhefaço a pergunta, Mrs. Breel: Esta bolsa é sua?Volto a repetir-lhe que não sei nada. Examine-a atentamente continuou Sampson. Peguenela e responda-me. Não sei.22-vAMP. G. 2 357

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Vai pretender dizer-me que se sente impossibilitadade dizer se é ou não a sua bolsa? Exactamente. Ontem trazia consigo uma bolsa? Não sei. Como! A senhora não sabe se tinha uma bolsa de mãoquando foi visitar Mr. Austin Cullens?Nem sequer me lembro de ter ido a casa dele. Como! Disso também não? Não respondeu ela, muito plácida. E tenho quebradoa cabeça a pensar desde que recobrei os sentidos. Lembro-mede ontem de manhã... quer dizer... daquilo que, julgo eu,era ontem.E, virando-se para o advogado: Estamos realmente na segunda, hoje, Mr. Mason?E recebendo uma resposta afirmativa: Sim, lembro-me da manhã de ontem, minuciosamente,com todos os seus detalhes. Recebi pelo correio as chavesde meu irmão. Fui procurar o carro e levei-o para uma garagem. Estou a ver-me na secção de sapataria de um grandearmazém. Mais tarde, fui acusada de roubo nos escaparates.Almocei com Mr. Mason... Depois mais nada. O vácuo. Vamos! comentou Sampson, irónico. Não vai agoraconvencer-nos de que perdeu a memória? Isso não é uma pergunta, mas sim um ataque, Sampson interveio Mason. E depois? Mr. Mason tem razãointerveio o dr. Gifford. O senhor pode interrogar a ferida dentro dos limites do razoável,mas não discutir com ela, da mesma forma que não deveprocurar intimidá-la. Esperteza de luvas brancas chasqueou o sargento. Fiquem sabendo, meus senhores insistiu o médico que acontece frequentemente a um ferido perder completamente a memória depois de um violento abalo, isto por338muitas horas e às vezes, até, por dias. Pouco a pouco, vairecuperando a memória. Dentro de quanto tempo poderemos ver Mrs. Breelrecuperar a memória ? perguntou o substituto do procurador, muito sarcástico.' Ignoro-o respondeu o médico. É coisa que dependede uma série de factores imprevisíveis. Estou a ver foi o seco comentário de Sampson. Posso perguntar-lhe, doutor interveio Masonse umatal perda de memória é coisa surpreendente depois de umchoque tal como o que acaba de vitimar a nossa cliente? Não é nada surpreendente.Vejamos, Mrs. Breel! gritou Sampson exibindo o"tricot" da bolsa. Não pode reconhecer o seu trabalho ?

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Dá-me licença de ver, senhor?Sampson estendeu-lho. Ela examinou-o com olhos dequem sabe.Bonito trabalho comentou por fim. Uma mão hábil.A senhora tricota, Mrs. Breel? Sim.- Considera-se muito hábil? Muito boa, realmente.Reconhece o seu ponto ? ,_Não.Pretende dizer que este ponto não é seu?Também não. ' Se tivesse de fazer um "tricot" com um azul igual a este,fá-lo-ia desta maneira? Qualquer pessoa que saiba o faria assim. Isso não é responder à minha pergunta. Faria o tricot"desta maneira?Parece-me que sim.E não pode garantir que este seja seu?Não. Não me lembro de o ter visto, fosse quando fosse.339Sampson trocou com o sargento um olhar exasperadoe, com um gesto raivoso, meteu o "tricot" na bolsa.Está bem, senhora. Vou-lhe mostrar outra coisa, quetalvez tenha o condão de lhe refrescar a memória.E desdobrando o papel de seda que embrulhava osdiamantes:Já alguma vez viu estas jóias ? Não sou capaz de lho dizer. Não é capaz? Não me lembro de já as ter visto. Mas, antes de terrecobrado todas as minhas faculdades, não serei capaz defazer uma afirmação. Oh! Não, pela certa observou Sampson, furioso.A senhora está disposta a ajudar-nos em tudo quanto puder,não é verdade? Devo voltar a lembrar-lhe, Mr. Sampson interveionovamente o médico, que esta senhora sofreu um violentochoque nervoso? É nítido que ela precisa de um conselheiro. Pobremulher indefesa, transformada em pasto de feras...Na minha qualidade de advogado de Mrs. Breelinterrompeu Mason sinto-me na obrigação de lhes pedir,meus caros senhores, que se ponha termo a este interrogatório.É a mais elementar humanidade que o impõe. Têm outrasperguntas a fazer? Temos respondeu o sargento Holcomb. Mrs. Breel,a senhora foi visitar Austin Cullens? Não me lembro. Sabe o seu endereço?

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Também não me lembro. Mas está certamente nas fichas que existem no escritório do seu irmão!Acredito... E julgo mesmo que já lhe mandei algumascartas... Espere aí... ele mora para os lados do BoulevardSaint-Rupèrt, parece-me...340 Exactamente. A senhora saiu ontem à noite. A quehoras? Repito-lhe que não me lembro de nada.A senhora entrou nessa casa continuou o sargento. sub-repticiamente. Deu-se conta de uma lâmpada e meteuno suporte uma moeda de cobre, para provocar um curtocircuito, logo que se girasse o comutador.Não estou a perceber onde quer chegar. Não se está a lembrar?Absolutamente nada. Lembro-me, apenas, de ter apertado a mão de Mr. Mason no restaurante do armazém. Nesse caso continuou Holcomb, triunfante se nãose lembra dos seus actos, não pode jurar que não pegou numrevólver de calibre 38 e morto Mr. Cullens ontem à noite,aí pelas sete e meia? Não. Evidentemente. Não sei o que fiz, o que significaque também me não lembro daquilo que não fiz. Até possoter assassinado o Presidente da República. Feito descarrilarum comboio. Posso ter mentido ou ter-me casado. Nãosei nada. Então não nega que matou Cullens?Não tenho a menor ideia. Mas não nega ? , Não me lembro de o ter feito. E contudo é possível. Isso já é outra coisa replicou Mrs. Breel. Garanto-lhe que não lhe posso dizer aquilo que se passou. Sei apenasque não matei ninguém na noite de anteontem e não tenhoideia de ter agido de maneira diferente dos outros dias natarde de ontem. Está preocupada por causa de seu irmão?Não mais que das outras vezes. Sabia que ele tinha ido para a pândega? Supunha-o, pelo menos.341 Mais uma pergunta disse Sampson. Lembra-se deter subtraído artigos nos escaparates?Mrs. Breel hesitou. Sim reconheceu finalmente.Realmente? Sim. Onde ? Quando ? Ontem de manhã, ao meio-dia mais precisamente,

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justamente antes de ter encontrado Mr. Mason.A senhora roubou? Sim. E peço-lhe que me compreenda: O meu irmãoestava de proa a uma das suas crises de intemperança. Estavapreocupada. No domingo fui ao escritório inventariar o conteúdo do cofre-forte. Não fui capaz de encontrar os diamantesque, na véspera, Mr. Cullens tinha confiado a meu irmão.Compreendi que meu irmão os levara consigo. Cullensconhece a fraqueza de George. É o único, além de mim ede minha sobrinha. Receio que ele me venha pedir as pedrasantes de meu irmão regressar da sua fuga. Não pretendiao escândalo e esforcei-me por o encobrir, fingindo-me cleptómana. Ideia estúpida, estou agora a ver, mas que de momentome pareceu excelente. A única maneira de retardar as coisas,de me dar tempo para procurar George e tratá-lo. Foi então deliberadamente que resolveu roubar...Não em absoluto. Tinha lido, em qualquer parte, quenão se podia acusar uma pessoa de roubo antes dela tersaído do armazém, ou das suas dependências. Eu pretendiafazer-me prender dentro do armazém, e se não fosseMr. Mason... Está bem interrompeu o sargento Holcomb. Outracoisa. O seu irmão foi encontrado...O dr. Gifford precipitou-se. Não! Cale-se! gritou. Pedi-lhe para poupar os nervos da minha cliente. Comprometeu-se a fazê-lo. Não tem odireito...342 Procederei como entender declarou Holcomb. Osenhor não tem aqui nenhuma autoridade. Posso...É possível, mas sou o responsável pela doente. Aceiteique a interrogassem. Mas não lhe vai provocar um novoabalo nervoso. O senhor prometeu... Mudei de opinião replicou o sargento. Esta mulherestá na plena posse das suas faculdades...O dr. Gifford fez um sinal à enfermeira, que abriu oestojo que tinha debaixo do braço. O médico avançou. Um momento, peço-lhe. Deixe-me ver o seu braçoesquerdo, Mrs. Breel.A doente estendeu-lho e o médico debruçou-se. Que está a fazer?perguntou, desconfiado, o sargento.O dr. Gifford tapava-lhe a vista. A enfermeira estendeu-lhe um pedaço de algodão que o médico embebeu em álcoolantes de esfregar o braço da sua cliente. Pode observar, escrivãodisse ele , que acabo deinjectar a Mrs. Breel, por via hipodérmica, um poderosonarcótico que a põe desde já ao abrigo de qualquer novaemoção. Estou-me nas tintas para tudo o que lhe tenha injectado ! gritou o sargento, furioso. Não deixarei de continuar...

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Tudo o que quiser, sargento replicou amavelmenteo médico. A doente está já sob a influência do narcótico.Como médico, posso-lhe garantir que qualquer resposta dadapor ela não tem valor nenhum.com um ligeiro suspiro, Mrs. Breel deixou cair a cabeçano travesseiro e fechou os olhos. Distinguia-se-lhe, no cantodos lábios, um leve sorriso.Está a fingir! berrou Holcomb. Esta picadela nãopode ter dado efeito em tão pouco tempo! Está a pretender que os seus conhecimentos médicossão superiores aos meus?perguntou o dr. Gifford.O sargento perdia completamente o sangue-frio. Estavaescarlate.343 Sei muito bem o que digo! É fingimento! É um truquepreparado! Pode brincar aos avestruzes enquanto quiser,mas não deixa de ser verdade que o seu irmão foi...Sampson, precipitando-se para o sargento, tapou-lhea boca. Cale-se lá, imbecil! Quem manda aqui sou eu!Recuando um passo, Holcomb fez-lhe frente, os punhosfechados, ameaçadores: Está bem. Já que assim quer... Cale-se! Não está a perceber que está a ir no jogo deles ?O punho do sargento falhou por pouco o queixo deSampson. Senhores interveio o médico, vou chamar algunsenfermeiros para fazer evacuar este quarto. Esta cena éescandalosa e pode ter sobre a doente consequências muitograves.Não esteja a fazer-se tolo, Holcomb! disse o adjuntodo procurador. Não está a ver que... Defenda-se, em vez de se deixar bater como umacabaça! gritou Holcomb, furioso, os punhos cerrados. Não vou nisso!E, mantendo o adjunto a distância, virou-se para a camae berrou:Já vamos ver isso... Encontraram o corpo do seu irmãona oficina. Mataram-no com um tiro e meteram-no numacaixa de embalagem.Mrs. Breel não devia ter percebido. com os olhos fechadosrespirava pausadamente, aparentemente mergulhada numprofundo sono. Muito bem!, já lá chegou, meu pobre diabo de "chui"! comentou Sampson. Jogou o seu único trunfo antes detempo. Ela está a dormir tanto como eu! continuava Holcomb a teimar, com uma voz onde, entretanto, já se infiltrara a indecisão.344

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E nesse caso você não a consegue apanhar. Deixa-lheimenso tempo para reflectir.Aproveitemos a calma interveio Mason para termosa certeza de que o escrivão tomou nota da hora a que odr. Gifford ministrou o narcótico à doente. Quero que digano seu relatório que, a despeito do estado nervoso da paciente,o substituto do procurador e o sargento da Secção Criminalsustentaram um combate de boxe, com os punhos nus, porcima da cama...Não houve luta corrigiu Sampson. Não se façatolo, Mason. Houve combate! repetiu o advogado.Não. Eu não levantei a mão para Holcomb. Até meafastei dele. Holcomb atirou-lhe um soco. Mas não me acertou. É possível, mas figurará na acta e saberei o que fazerdele.Já cá está disse o escrivão, de mau humor. Obrigado.Houve um silêncio. Mrs. Breél, na sua cama, emitiu umrumor da garganta, muito semelhante a um ronco. É impossível que este narcótico tenha agido com tantarapidez garantiu o sargento mais uma vez. Tomou nota da hora exacta da injecção? perguntouMason. Não. Mas não passaram dois minutos, desde então. O tempo passa depressa, sargento, sobretudo quandose trava luta com o representante do procurador no quartode uma ferida cujo estado físico é tão grave que o médicoproibe que lhe inflijam qualquer fadiga nervosa. Tudo isto não nos leva a nada disse Sampson, despeitado. Estamos simplesmente a fazer o jogo de Mason. Ele terá muito a dizer retorquiu o sargento. Mas não aqui volveu secamente Sampson.345O sargento fitava a doente como se a quisesse arrancardo sono, apenas com a força dos olhos. Seria melhor que fossem discutir para outro sítiosugeriu o dr. Gifford. A paciente está a dormir.Você terá notícias minhasatirou Holcomb, virando-separa ele. E você minhas. Se surgir a menor complicação, torná-lo-ei pessoalmente responsável. É-lhe naturalmente possível, doutor, obter do tribunalum mandado interdizendo qualquer interrogatório da suacliente sem a sua prévia autorização disse Mason. Essa interdição continuou com dignidade o dr. Gifford será indispensável. E estará naturalmente prolongadapelo facto mesmo da fadiga a que acabam de sujeitar

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Mrs. Breel. Senhores, ficar-lhes-ia muito grato se fizessemo favor de sair daqui.E como parecia haver hesitações: Devo pedir ajuda ao pessoal do hospital? Vamos, Holcomb disse Sampson. Não temos nadaa fazer aqui. Em todo o caso replicou o sargento, não vou permitirque Mason fique atrás de mim para ensinar a lição à acusada.Mason dirigiu-se para a porta, na ponta dos pés, fingindo enormes cautelas.Não vejo necessidade de perturbar o sono da doente disse, baixando a voz.O dr. Gifford baixou a cabeça e Sampson não pôdeimpedir-se um sorriso. O sargento Holcomb rebentava deindignação. Basta, sargento disse-lhe Sampson, pondo-lhe a mãono ombro.346CAPÍTULO IX

Mason entrou na cabina telefónica do hospital para ligarpara Drake. As coisas estão a ir depressa por aqui confiou-lhe. Dê-me notícias de Virgínia Trent. Puseram-na sob a vigilância de uma enfermeira dapolícia respondeu o detective. Interrogaram-na brutalmente e teve uma crise de lágrimas. Para acabar, o médicoministrou-lhe um enérgico calmante e a enfermeira levou-apara casa, onde está guardada à vista. Foi inculpada?Até agora não. Vêem nela, sem dúvida, uma testemunhaimportante de que se poderão servir, se houver necessidade.O tio foi morto por uma bala de 38, disparada pelo revólverencontrado na gaveta da secretária. Você estava lá quandoo sargento encontrou a arma. Então? perguntou Mason. Ela chegou lá uns brevesminutos antes de mim. O cadáver estava já há muito tempona caixa. Bem sei. Mas a polícia pergunta-se se Virgínia nãoterá voltado ao local do crime para se desfazer do corpoou para despejar as algibeiras do morto, ou então...Tudo isso é absurdo. Não é essa a questão continuou Drake, filosófico. Estou-lhe simplesmente a repetir o que pensam as autoridades. Essas corajosas pessoas que não fazem a sua primeira burrice e que continuarão. Que se passa do seu lado,Perry? Você está a parecer-me muito belicoso. Quiseram intimidar Mrs. Breel. Conseguiram alguma coisa? Nada replicou prontamente Mason com um chasqueio

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de alegria. E lone Bedford? Continua nos Apartamentos Milpas.347Pete Chennery ainda não apareceu? Não. De acordo com as últimas informações.Agora vamos ocupar-nos da casa de jogo. Estou noHospital Deaborn. Passe por aqui para me levar. Dentro de dez minutos.Pousando o aparelho, Mason seguiu ao longo do comprido corredor, desceu a grande escadaria de mármore edeixou-se aquecer ao sol, um cigarro nos lábios, até que ocarro de Paul Drake travou encostado ao passeio. Vamos então ver o banqueiro de que me falou, Paul. Entendido. Parece que o Prato de Ouro lhe interessaParticularmente fez notar o detective, atento ao volante. Sim. As contas não se equilibram lá muito bem. Precisamos de um perito contabilista. Como vem a ser isso?De acordo com as informações dadas por Gullens alone Bedford, George Trent teria ido ao Prato de Ouro nanoite de sábado e empenhado os diamantes por seis mildólares. Cullens projectava recuperá-los por três mil. E então? O cadáver de Trent foi encontrado no seu escritório continuou Mason. Quando andava na borga, nem selavava, nem se barbeava, nem mudava de roupas. Ora eleestava correctamente vestido, barbeado de fresco. Deve tersido assassinado no escritório. Se ele foi jogar à casa de jogo,deve ter regressado ao escritório nessa mesma noite de sábado. E qual é a impossibilidade? Não quadra com o resto. Primeiro, ele meteu as chavesno correio. Saiu para se embebedar. Levou com ele os diamantes Bedford? A pergunta merece discussão. É, em todoo caso, surpreendente que tenha empenhado jóias que lhenão pertenciam e logo no início da excursão. Depois de doisdias de bebedeira, seria diferente e mais verosímil. Onde quer você chegar?A isto: se Trent não empenhou os diamantes no Prato348de Ouro por seis mil dólares, porque o afirmou Cullens-a loneBedford? Se Trent não dispôs dos diamantes e se Gullens,julgando que ele o tivesse feito, foi fazer escândalo em casados donos da casa de jogo, não é de supor que estes tenhamreagido e regulado as suas contas com Cullens? O truqueda moeda metida no suporte de uma lâmpada não é deamador. Finalmente, se os diamantes Bedford eram mesmoaqueles que se encontraram na que parece ser a bolsa deMrs. Breel, nada prova que provenham da cinta de Cullens.Note também que lone Bedford garante que se não trata

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das suas jóias. Tudo isto, como pode verificar, complicasingularmente o assunto. É verdade reconheceu Drake. Temos um gatinhoque se enrodilhou numa tira de papel apanha-moscas. É essencial voltar aos princípios básicos. Quero saberse realmente os diamantes foram empenhados no Pratode Ouro. E como poderá informar-nos o freguês que vamos agoravisitar ?Ajudar-nos-á. Suponha que Cullens fez uma cartadapessoal destinada a ludibriar lone Bedford? Que não foiao Prato de Ouro, mas agiu de combinação com Bill Golding?Já compreendo. Você pretende verificar tudo.Até aos mais ínfimos pormenores. Pois bem! Cá estamos! exclamou Drake encostandoo carro ao passeio. O banco fica em frente.Atravessaram a rua para penetrar no sumptuoso edifícioonde se pavoneava nobremente um polícia. Empregados,sentados atrás das suas mesas de acaju, ditavam, tomavamnotas, discutiam gravemente. Os caixas afadigavam-se,pagando cheques, aceitando depósitos. Qual é o nosso homem?perguntou Mason.Aquele tipo de cabelos brancos, à esquerda. Caramba! Que ar! Tipo a quem se daria a absolviçãosem confissão!349 Sim reconheceu Drake abafando um riso malicioso. São todos os mesmos, estes farçantes.Aproximaram-se de uma secretária de mármore comuma placa de cobre, onde estava gravado o nome do chefede serviços: Mr. Marquad. O homem de cabelos brancosouvia, impassível, o visitante sentado diante dele. Este,inclinado para a frente, falava com tanto calor que dava aimpressão de querer passar por cima da mesa para melhorconvencer o interlocutor.Para terminar, o banqueiro abanou a cabeça.O homem, febril, recomeçou a sua argumentação. Um.novo sinal de cabeça negativo, travou-o. Estou desolado, senhor. Mas é impossível.E como o outro insistisse: Isto é, evidentemente, apenas a minha opinião. Posso,se quiser, consultar a administração. Está entendido. Voutomar nota. Terá a resposta amanhã, às dez e meia.Um frio sorriso despediu o importuno e o banqueiro,levantando-se, deu alguns passos para Mason. com o olhar,Drake consultou o advogado. Eu trato do assunto murmurou este. Mr. Marquad, não é verdade? continuou imediatamente. Posso-lhe perguntar se leu os jornais da manhã? A que propósito?

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Mason deu-lhe um cartão. Um relâmpago passou nosolhos do homem.Já ouvi falar de si, Mr. Mason. De que assunto setrata?De assassínio de Austin Cullens.-Verdade? Estou a tentar reconstituir a maneira como Cullensempregou o seu tempo continuou o advogado. Deve tervisto a sua fotografia, muito parecida, de resto. No casode não ter lido, faça favor de tomar conhecimento do artigo,Mr. Marquad.350Mason tirou do bolso um recorte de jornal. Marquadlançou-lhe um olhar. Leia estes sinais, peço-lheinsistiu Mason.O banqueiro fê-lo, não sem que mostrasse uma certa surpresa.E que referência tem isto comigo, doutor? Não conhecia a vítima?Não. Não me lembro de o ter encontrado, nem visto. Reflicta, Mr. Marquad. Na noite passada... O que o leva a acreditar...As minhas informações respondeu Mason. Mr. Gullens passou pelo Prato de Ouro pouco antes de morrer. Pelo Prato de Ouro?repetiu o banqueiro, reprimindoum estremecimento. A que se refere, Mr. Mason?É um restaurante e uma casa de jogo. Rua 3, Este.Essa casa não deve constar dos nossos clientes observouMarquad, desdenhosamente.Não se trata de números, nem de contas correntes.volveu Mason, de que a maxila inferior ganhou um súbitorelevo. Estou-lhe a perguntar se não esteve ontem à noiteno Prato de Ouro.Eu?perguntou o banqueiro endireitando-se. Emsemelhante lugar? Na verdade, Mr. Mason...com o olhar, o advogado consultou Paul Drake, que lherespondeu com um sinal de cabeça.Está bem, Mr. Marquad. Vamos precisar as coisas,se o desejar. O senhor estava acompanhado por umaloirinha. Mr. Mason retorquiu o banqueiro, muito dignopeço-lhe que me desculpe. Está a insultar-me gravemente.Há aqui um agente de serviço e...O senhor saiu à meia-noite menos um quarto interrompeu Drake, que tinha tirado do bolso um caderno deapontamentos. Acompanhou a garota até ao seu apartamento, na Avenida Phyliss. Subiu a casa dela. As janelas351iluminaram-se e foi mesmo o senhor que desceu os estores.Às três menos um quarto da manhã desceu e...Chiu! Senhores, suplico-lhes!

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Está bem. Então, que responde?perguntou-lhe Mason.O banqueiro molhou os lábios secos.Trata-se de uma chantagem?De modo algum respondeu Mason. Quero simplesmente saber se o Cullens em causa foi ao Prato de Ouro nessamesma noite, entre as seis e as sete da noite. Reflicta um pouco.Tem a'intenção de me chamar ao tribunal como testemunha?Se me der as informações que preciso, não será provavelmente necessário. Senão, terá de comparecer. Demonstrareia sua presença no estabelecimento e perguntar-lhe-ei aquiloque viu. O senhor não pode fazer isso!Lamentarei muito! Uma palavra mais e entrego-lhejá a intimação.Tinha tirado do bolso um papel dobrado, que Marquadfez menção de afastar com a mão.Não, não, Mr. Mason. Suplico-lhe! Não está a compreender? Estamos num lugar público.Viu Cullens?Houve uma ligeira agitação na sala respondeu Marquad com os olhos no chão. Não me lembro exactamenteda hora. Eu estava no bar: sentia necessidade de um ligeiroestimulante. Um homem, correspondendo aos sinais que medeu, entrou para se dirigir imediatamente ao gabinete particular do gerente. Ouviu-se uma violenta discussão. O barmanmeteu no bolso, um objecto que apanhou atrás do balcão eentrou no gabinete. Pouco depois, o visitante saiu. Percebeu o que eles diziam?-Não. O tom da conversa?Nitidamente hostil.352 Que viu mais?Nada mais.Estava na sala quando nós chegámos? Estava.Ficou ainda muito tempo depois de nós partirmos? Cerca de uma hora. A minha... eh... a rapariga queestava comigo não fez mais do que andar entre o bar e a mesade jogo... Julgo que tudo isto ficará entre nós, meus carossenhores'Bebeu? Muito moderadamente. O barman poderá confirmá-lo.Não me parece que tenha despejado mais de três copos emtoda a noite.Está bem. Quem lhe indicou esse local? Que quer dizer?Não frequenta habitualmente as casas de jogo? Oh, não! Pagou o que consumiu?

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Quer dizer que... eu era, de certa maneira, um convidado da gerência. Já muitas vezes me tinham pedido paralá aparecer.Bill Golding? Sim.Ele tem aqui crédito aberto? Sim, eu... Conhece-o bem ? Falei-lhe bastantes vezes. Conhece a mulher que vive com ele? Quer dizer a sua mulher? Se assim o prefere. Também a conheço, sim.Falou a um ou a outro depois da visita de Culens?-Não. Mas viu-os?Apenas quando saíram. 23-VAMP. G. 2 353Mason tinha os olhos semicerrados.A que horas?Não poderei dizer-lhe com precisão. Algum tempodepois da saída de Cullens e antes da sua chegada.Viu-os voltar?-Vi. Quanto tempo estiveram ausentes? Ignoro-o em absoluto, Mr. Mason. Uma meia hora, talvez? É muito possível. Não liguei muita atenção... Eu...Sinto-me feliz por não me terem notado. Quer dizer que arapariga que estava comigo... Compreendo volveu o advogado. Viu-nos entrar,a mim e a Mr. Drake?-Vi.Bill Golding e a mulher já tinham regressado. Sabe-medizer quanto tempo antes, pouco mais ou menos? Não lho saberia dizer exactamente. E quanto tempo decorreu entre a saída de Cullens e ado gerente acompanhado de sua mulher? Digamos... um quarto de hora pelo menos. Uma meiahora no máximo. Estávamos no bar quando Cullens chegoue jantávamos quando Golding saiu com a mulher. Tantoquanto me posso lembrar, tínhamos acabado -de jantarquando voltaram. Está bem assentiu Mason. Quero apenas verificaros movimentos de Cullens.Não vai dar nenhuma publicidade às minhas declarações, pois não, Mr. Mason? Nenhuma, se o puder evitar. Obrigado. Vamos, Paul.Saíram, deixando Marquad na sua secretária muito

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inquieto.E agora falemos do carro de Bill Goldingdisse Masonao seu companheiro.Um Sedan azul estava parado juntodo passeio, um pouco antes de Mrs. Breel ter saído da casa354de Cullens. Era talvez o de Golding. Diggers declarou-meque tinha um guarda-lamas amolgado.É fácil. Sabê-lo-ei rapidamente. Quer que telefone aoescritório ?Agora não. Depois. Que temos mais no programa? lone Bedford. Não quer esperar o regresso de Pete Chennery?Não. Não temos tempo. Quero adiantar-me à políciae falar com esta mulher.Agarre-se bem disse Drake. Vamos andar depressa.A opinião de Drake era que o carro de um detective deviapassar despercebido por toda a parte, não despertar curiosidade, nem deixar recordações. Mason, estirado no bancodeste carro ligeiro já com dois anos, observava Drake, via-odeslizar no meio das vagas dos veículos, arriscar alegrementeos guarda-lamas, que todavia não tinham nada a temer deum erro do condutor. Se Cullens recebeu os diamantes de Golding disselentamente Mason porque não preveniu ele lone Bedford?E se eram realmente os dela, porque se recusou Mrs. Bedforda reconhecê-los? Se, pelo contrário, lhe não pertencem,de onde vieram as pedras? Se Bill Golding ficou com eles,porque não quis dizê-lo?Se, por outro lado, Cullens os conseguiu de um terceiroe não do Prato de Ouro, como pôde reavê-los assim tão depressa ?Duas horas antes de morrer, parecia convencido de que BillGolding os detinha como garantia de seis mil dólares e sedeixaria persuadir a largar o penhor por metade desta quantia. Por outras palavras comentou Drake é mais complicado que uma declaração de impostos de rendimento. Quantomais se anda, menos se compreende.Não sabia que o inspector de finanças tivesse qualquerrazão para se inquietar com as agências de detectives particulares comentou Mason.355Muito pelo contrário.Mason calou-se, pensativo. Drake acabou por pararjunto de um passeio. Cá estamos, Perry. Preparar a armadilha é consigo. Uma armadilha? vou fazer jogo franco. E pensa que pode conseguir alguma coisa? Não sei. Esta mulher deu-me a impressão de ser muitofranca. Mas nem por isso deixa de levar uma vida dupla fez

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notar Drake.Não me esqueço. Diga-me lá: não é o seu homem quese pavoneia na esplanada do outro lado da rua?Drake fez um sinal de cabeça. O homem tocou na abado chapéu, acendeu um cigarro, sacudiu o fósforo para oapagar e mexeu-se na cadeira como se estivesse a arranjarespaço para outra pessoa que se fosse sentar a seu lado.Drake traduziu: A mulher está em casa. O homem ainda não apareceu. Está bem. Vamos lá decidiu Mason.O elevador levou-os ao terceiro. Diante da porta doapartamento, depois de ter batido, o advogado agarrou obraço de Drake. Se ela abrir, nós entramos. Se ela fizer perguntas,diga-lhe que tem uma encomenda e um telegrama para ela. Quem está aí?perguntou de dentro lone Bedford. Um telegrama e uma encomenda para Mrs. Chennery respondeu Drake.Abriu-se a porta. Mason, afastando-se ligeiramente, pôsa palma da mão nas costas de Drake e empurrou-o.Então! exclamou ela, impaciente. Onde está o telegrama? Não entre...Demasiado tarde. O advogado já estava a empurrar obatente. Uma expressão consternada apareceu no rosto damulher. Tranquilamente, Mason fechou a porta, dirigiu-sea uma cadeira e sentou-se.356Que significa...Mr. Drake é detective, Mrs. Bedford esclareceu Mason. Chennery rectificou ela. Como quiser. Não deixa por isso de ser um detective.Ela riu-se.Você está a brincar comigo. É impossível. Diga lá porquê?perguntou Mason pegando numcigarro.Está sem chapéu. Um verdadeiro detective nunca tirao chapéu.Mason sorriu e ofereceu-lhe um cigarro, que ela aceitou.Mas a mão tremia-lhe.Estou a ver que você vai muitas vezes ao cinema.Não. Mas já vi muitos detectives. Cadastro criminal? Não respondeu ela secamente. Então sente-se e falemos. Não tenho nada a dizer-lhe.Não sou da mesma opinião. De que falarei eu então? perguntou ela num tom dedesafio. Se quer saber, fique sabendo que sou na verdadeMrs. Chennery, legalmente casada. É menos romântico, mas mais conveniente.

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Sentando-se na borda de uma cadeira, ela cruzou aspernas. Por onde devo começar? Pelo princípio. Eu e Pete discutimos. A sério? Não muito. A que propósito? Duas louras e uma ruiva. Motivo bastante para uma batalha feroz,Deixei-o. -Então?357Voltei a encontrar Aussie. com a ideia de que seria divertido demonstrar ao seumarido que você também era capaz de baralhar as cartas?Ela abanou a cabeça, abriu a boca e voltou a fechá-la.Não me tente enganar observou Mason. Não hánecessidade.E o seu amigo?perguntou ela indicando Drake como queixo. Fechado como uma porta de prisão. Entra tudo e nãosai nada.Ela observou longamente as unhas. Está bem. Você ganhou. O quê?Encontrei Aussie num barco. Agradou-me. Muito ?Bastante.E então?Que quer saber?Tudo. Pois bem! Aussie sabia defender-se. Estava muitobatido, encarando a vida pelo lado bom. Tudo lhe servia.Eu tinha embarcado com o coração doente, amaldiçoandoo casamento. Eu... Tudo isso me é indiferente interrompeu Mason. Via-a com Cullens. O meu ofício não é conhecer o lado mauda vida conjugal. É inútil insistir. No fim de contas, que quer você? Os diamantes.-Oh! Isso!...Mason sorriu. Ela tinha voltado a contemplar as unhas. Sim, as pedras insistiu o advogado. Não sei grande coisa disse ela levantando os olhos. Mas que sabe?Naturalmente, eu não andava a nadar em ouro continuou ela. Tinha um pequeno depósito num banco. Tinha-lhe358feito uma larga brecha ao abandonar Pete, para ver mundo

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e procurar fortuna. É evidente que poderia arranjar trabalho,mas Pete ter-me-ia localizado e pedido que lhe perdoasse.Para concluir, eu teria voltado e ele teria ganho tudo. E se euo tivesse deixado para bem, teria sido eu a perder. No fundo, você gostava da coisa, hem? Como qualquer pessoa de bom gosto... começou ela,desdenhosa. Vamos cortou Mason, irónico. Decidi então comprar um fato de viagem, levar os meusmelhores vestidos, fazer um cruzeiro e deixar Pete com assuas reflexões. Naturalmente você estava interessada em que elesoubesse que não se aborrecia na viagem.Ela sorriu.Enviei-lhe um postal ilustrado de Cartagena.Nada mais? Sim. Pedi à companhia de navegação que lhe mandasseum prospecto elogiando os encantos do cruzeiro, luares nomar das Caraíbas, saraus a bordo, banhos sob as palmeiras,danças e passeios sentimentais sob a brisa dos trópicos. De maneira que, com o prospecto numa das mãos e opostal na outra, ele podia tirar as suas próprias conclusões.Justamente. Continue. Naturalmente- eu esperava encontrá-lo no portaló dovapor quando voltasse. Mas a um ou dois dias do porto,compreendi a minha burrice. Pete não faria nada que separecesse. Ele é orgulhoso. É do Sul. Sangue quente? Muito quente. Ciumento ? Sim.Então? Tinha ido muito longe para recuar. Não tinha mais um359tostão. Impossível pensar em trabalhar. Teria sido coisamuito humilhante. Que fez então?Aussie compreendeu muito bem. Ele tinha um discernimento seguro. Tinha viajado muito e... conhecia as mulheres. E você também. Sim, ele conhecia as mulheres. Em seguida? Fez-me uma proposta. Tinha jóias que queria vender,utilizando a actividade de um corretor. Ele coleccionavabelas pedras. Explicou-me ser como o negócio de automóveisusados. As pessoas hesitam muitas vezes em comprar a umgaragista, com medo de serem levadas, e mostram-se maisinteressadas por um proprietário que quer vender o seu carro.É por isso que os intermediários arranjam particulares que

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fiquem em casa ao domingo e confiam-lhes os carros paravender...Bem sei disse Mason. Continuando, você deviapassar por possuir belas jóias para vender. Sim. E qual era o seu lucro?Uma base e uma comissão. E mais: tinha uma casa.Seria a jovem e brilhante divorciada, uma mulher da sociedadeelegante dando pouca atenção às convenções. Quais ? Isso dava-me um motivo válido para mostrar as jóiase para pretender vendê-las a preços baixos. Aussie dizia queos compradores comprariam as pedras a uma bela mulherque parecesse desconhecer o seu valor e temporariamenteem baixo de pecúnia. Resumindo: Cullens servia-se de si como isca? Se quiser dar-lhe esse nome... Mas estas velhas pedras não convinham ao seu papelfez notar Mason, interessado. Sim. Isso fazia parte da montagem do espectáculo.360Diga-me como eram elas. Não seria capaz, Nunca as vi. Aussie tinha-me dito queas ia entregar a Trent para as lapidar e montar de novo. Depois disso você se encarregaria de as vender"?Não. Era assunto de Trent. Eu ficava em segundo plano.Se alguém fizesse um inquérito, era eu a proprietária. Para que Trent pudesse conseguir um preço melhor?Ela fez um sinal de assentimento. Portanto, você telefonou para George Trent na segunda-feira de manhã. Você tinha, dizia-lhe, um comprador e tinhadecidido...Era uma ideia de Aussie.Ele disse-lhe? Quando?Uma meia hora antes de eu telefonar. Ele tinha ensaiadocuidadosamente aquilo que eu deveria dizer. E enquantodurou a ligação esteve sempre perto de mim.Você chamou Mr. Trent? Sim. Que lhe responderam? Que tinha saído. Então? Perguntei quem é que falava. Disse-me ser o chefe daoficina.E participou-lhe a sua intenção de reaver as jóias?Sim. Cullens sabia que Trent não estava? Sabia. Eu devia perguntar por Mr. Trent, que tinhadesaparecido para a borga. Procurariam ganhar tempo e eunão me deixaria levar. Devia reclamar a restituição imediata.

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Mason contemplava a fina espiral de fumo do cigarro.Um momento disse ele. Recapitulemos. Você nuncatinha visto essas pedras de que era presuntiva proprietária?Nunca. Quer dizer que, no Comissariado Central, você não361podia responder-me, garantindo-me que as jóias não eramrealmente suas?Exactamente.Você declarou mesmo, categoricamente, que lhe nãopertenciam! Era necessário que eu dissesse qualquer coisa. Podia-lhedeclarar que nunca as tinha visto ? E depois tive medo. Julgueique você me estava a armar uma cilada. Você ainda não sabia da morte de Cullens?Ela virou os olhos, depois, erguendo a cabeça, olhou oadvogado bem de frente, não sem esforço. Claro que não disse por fim.É evidente que nãosabia. Como o poderia ter sabido?Poderia estar a ganhar tempo.Talvez. Mas você tinha-me agarrado pela garganta.Não tive tempo de reflectir.Mason levantou-se e aproximou-se da janela para deitarpara a rua uma olhadela distraída. Um descapotável comrodas de aros metálicos parava. Um homem jovem, muitoalto, saiu. Mason meneou a cabeça virando-se para lone. Isso não pega sempredisse ele. É-me indiferente volveu ela, agressiva.A seguir recomeçou Mason depois de ter tido conhecimento da morte de Cullens, do seu assassínio, você saiu comoum furacão para vir para aqui queimar o pavimento. Sim. Sabia que ia haver um inquérito e não me queriaver enredada nele. Porquê? Por causa de Pete. Não quero que ele saiba aquilo quefiz. Por outro lado, também não queria que ele interviesse.Se, quando o deixei, eu me tivesse limitado a fixar-me emqualquer parte, ele ter-me-ia aparecido sem dificuldade.Teria fingido arrependimento, mas, no fundo, ficaria convencido de que eu lhe pertencia de facto. Ter-me-ia deixadotrabalhar um bom pedaço de tempo para me ensinar. Par-362tindo para o cruzeiro, dava-lhe tempo para reflectir, mastambém me não queria comprometer definitivamente noseu juízo. Concluindo, o inquérito metia-lhe medo? Céus! Eu era lone Bedford, vivendo numa casa montadapor Aussie Bedford. Era bem claro e teria podido protestarsempre. Pete nunca engoliria isso.No seu desejo de evitar o inquérito, correu para aqui.

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Foi assim?Foi.Mason, com os polegares nas cavas do colete, caminhavapelo aposento. Ela seguia-o com os olhos, não dando nenhumaatenção a Drake, que se tinha aninhado num canto da poltrona, com o queixo na mão.Não, isso não pega continuou o advogado depois deum breve silêncio.Não pega o quê?A sua corrida para aqui.E todavia é um facto. É preciso aceitá-lo.Ela teve um pequeno riso agastado. Isso não pega repetiu Mason. Logicamente, vocêdevia ter-se dirigido para um quarto de hotel, com um nomeinventado e avisado Pete. Deixando o seu marido, o seu únicoobjectivo era fazê-lo voltar para si. Você é muito inteligentee muito calculista para depor as armas no momento exactoem que a vitória lhe pertencia. E, no entanto, voltei. Por uma única razão, lone retorquiu Mason. Tomando conhecimento do assassínio de Cullens, surgiu-lhe aideia de que o seu marido tinha sabido que Cullens lhe tinhamontado a casa e que, dado o seu temperamento violento,o seu sangue quente de meridional tinha...É falso!gritou ela.É falso!A porta do corredor abriu-se brutalmente. Um rapaz forte,de cabelos pretos, olhos azuis e frios, deteve-se na soleira:363O que é que é falso?-Pete!Drake levantou-se.Ela correu para ele e Drake agarrou-a pela cintura paraa deter. Ela defendeu-se, arranhando-o como uma gata brava.O homem deu dois passos para a frente. Drake viu o seu olhar,quis pôr-se em guarda, mas já era tarde. O golpe atingiu-ono queixo. Foi atirado para cima do canapé, de pernaspara o ar.A mulher rodeou o homem com os braços. Ele empurrou-apara fechar a porta com um pontapé. Ignorando o detective,veio plantar-se diante de Mason.Agora é consigo. Fale! Será melhor começar você a fazê-lo, Chennery dissecalmamente Mason, sem tirar os polegares das cavas docolete.Este é Perry Mason, o advogado disse a mulher. E que vem ele aqui cheirar?Drake tinha-se levantado e endireitava-se, ameaçador. Onde vamos continuar isto?atirou ele a Chennery.Esse nem sequer virou a cabeça. E, encarando Mason: Então? Isso vem?

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Apalpe-lhe os bolsos disse Mason a Drake. Veja seele não tem por acaso um "38" no bolso. Pete! Não os deixes fazer! gritou a mulher. Tu não,sabes! Eles, eles sabem... coisas... eles vão-te... Pode saber-se a razão desse "38"?perguntou friamente Chennery.Austin Cullens foi assassinado com uma bala desseCalibre esclareceu Mason.Austin Cullens? Quem vem a ser esse cavalheiro?lone voltou para o advogado uns olhos aterrorizados.Um tipo a quem regularam a conta com um revólverrespondeu Mason.E você quer-me meter no barulho?364Viram um carro diante da casa no momento do crimeexplicou Mason, encolhendo cuidadosamente as palavras. Um "coupé" vermelho descapotável com rodas amarelas.Podem ter-se enganado no número da placa de matrícula,mas parece que tudo coincide... a descrição do carro e a dohomem que o guiava.E você quis fazer falar minha mulher, insinuando queeu o poderia ter morto?Nós fizemos-lhe algumas perguntas. Ela parece ter-nosAdivinhado disse Mason.Chennery teve um risinho frio.Está bem. Apalpem-me os bolsos.Tinha posto os braços horizontalmente, as mãos abertas,os polegares afastados. Drake passou uma mão hábil ao longodo homem e apalpou-lhe o casaco debaixo dos sovacos.Nada concluiu.Nada mal comentou o advogado. Deve ter abandonado a arma no local do crime.Vocês estão a perder tempo disse Chennery. Vocêsnão conseguirão provar semelhante acusação.Você não entrou em casa na noite passada disse Mason.Chennery lançou um olhar raivoso à mulher.Não a acuse, meu velho disse o advogado. Ela nãofalou. Temos este apartamento vigiado desde as onze horasda noite de ontem.Está bem. Não estava em casa. E depois?Nada. Só quero saber onde estava você?Você é advogado? Sou.E o outro é detective disse a mulher.Da Segurança?Não. É um detective particular que trabalha por minhaconta.Chennery caminhou para a porta e abriu-a:Vamos. Saiam. Os dois365

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Pete!implorou a mulher, pousando a mão no braçodo marido. Ouve-me! Não faças isso... Eles são...Ele afastou-a.Já disse: desapareçam!Mason parecia não ter ouvido. De pé, junto da janela,os polegares no colete, olhava para a rua. Será preciso ver... disse Drake agressivo. Está tudo visto. Paguei o aluguer. Aqui, estou em minhacasa. Vocês não têm mandado para a buscar. Ponham-selá fora, imediatamente! Isso poderá ser um mandado de capturadisse Drake. Um detective particular? Um'mandado de captura?Tu fazes-me rir!Mason virou-se bruscamente, piscando um olho a Drake.Vamos, Paul. Não vale a pena insistir. Ele tem todosos trunfos. Quer dizer que nos vamos embora? Pois.Chennery continuava com a porta aberta.Sem uma palavra, Mason e Drake passaram para ocorredor. A porta bateu-lhes nos calcanhares.Apesar de tudo! comentou o detective, fora de si: Só faltava este chulo acreditar que me pode tratar assim!No momento em que íamos resolver o problema Cullens...Mason agarrou Drake pelos ombros. Deixemos isso, Paul. E depois, nós não temos nadaque identificar o criminoso. Que está você para aí a cantar? Se nós resolvemos o problema continuou o advogadoo detective Holcomb, da Secção Criminal, não tirará vantagem alguma. Terá então tendência para recusar a nossasolução, onde só verá o nosso desejo de pôr em liberdadeSarah Breel. Se, por outro lado, o sargento resolve investigarpelo lado de Pete Chennery, admitirá muito naturalmente...366É verdade, Perry interrompeu Drake. Desculpe-me.Este soco deve-me ter abalado a cabeça. Fez-lhe mal?perguntou o advogado. com os diabos!Drake virou-se para o apartamento de onde tinha saídoe Mason viu a manga do casaco ganhar relevo com a contracção muscular do seu companheiro que empurrou parao elevador. Um comprimido de aspirina o aliviarádisse-lhe.Outra coisa: Chennery sabe que o mantemos vigiado. E nãoterá dificuldade em notar o seu homem. O seu primeirocuidado vai ser dar-lhe uma sova para se desembaraçardele. Previna o seu tipo, para que a correcção não seja muitodura. Entrementes, vamos pôr-lhe mais três rapazes noscalcanhares. Dos bons. Está a perceber?

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Perfeito. Será um grande prazer pregar uma boapartida a esse bruto.Vamos então telefonar desta farmácia e tome a suaaspirina. E depois? perguntou Drake, a quem já tinha voltadoo sorriso. Depois, vai fazer o favor de me organizar uma listados roubos de jóias de certo valor feitos nestes últimos cincoanos. Se lone Bedford não puder identificar as jóias roubadas,há muitas possibilidades de que outra pessoa o possa fazer.Longe de mim querer gerir os seus próprios interesses, masé possível que consiga arrancar alguma boa recompensaao controlar os factos e os gostos de Austin Cullens.Drake friccionou cuidadosamente a maxila. Decididamente, sou um parvo reconheceu ele.367CAPÍTULO X

Virgínia Trent sentou-se na cama e olhou para Mason.Tinha os olhos inchados pelo sono.bom dia, Mr. Mason. Como se sente? perguntou o advogado. Não sei muito bem. A enfermeira acordou-me agoramesmo.Você estava muito nervosa disse esta, de pé, ao ladoda cama. O médico deu-lhe um calmante. Muito enérgico, sem dúvidacontinuou Virgíniaesfregando os olhos. Devo estar horrorosamente feia. Dê-meum espelho e um copo de água.Veio o copo de água, sem o espelho, e a rapariga bebeu-aavidamente. Depois, baixando os olhos, analisou a camisade flanela que a cobria até ao pescoço.Aqui está uma camisa que não visto nunca. Onde aencontrou ? Na última gaveta da direita. Eu...Porque não tirou uma camisa mais leve, da gavetade cima ? Você estava esgotada e receei que apanhasse frio.A sua resistência estava muito diminuída. O calmante começou a agir no táxi.Ah! Já me lembro! Estes polícias! Que brutos sádicos!Adoram torturar os fracos. Que lhe fizeram eles? perguntou Mason.Arrasaram-me com perguntas, até quase me enlouquecerem. Parece-me bem que acabei por ter uma crise denervos. Isso mesmo disse a enfermeira.E então? Para terminar, um médico deu-lhe um sedativo eencarregaram-me de a trazer para sua casa.

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Para me guardar. Você garante que não me escaparei?368A enfermeira, com muito tacto, não respondeu. Onde está minha tia?No hospital. O choque foi menos grave do que sepensava e dormiu muito bem. Não se preocupe com ela.É perfeitamente capaz de se defender sozinha.Que significa essa história do revólver encontrado nasua bolsa?Ainda não se conseguiu demonstrar que a bolsa era dela.Ela bocejou largamente, quase deslocando o queixo. Lamento fazê-lo esperar, Mr. Mason. Mas tenho defazer a minha "toilette". Entendido. Lamento tê-la incomodado, mas temos detrabalhar.A propósito do senhor meu tio, encontraram alguma. coisa ?Nada, que eu saiba. Em todo o caso, não me disseramnada. Ele está...? Quer dizer...Vão proceder à autópsia esclareceu Mason. Estáactualmente na Morgue.Vire-sedisse a rapariga. Vou levantar-me.Vou fazer ainda melhor. vou esperá-la lá em baixo,na biblioteca. Você julga que pode falar com o estômagovazio ? Não. Onde está Itsumo? Lá em baixo respondeu a enfermeira. Muito bem. vou tomar um duche. Diga-lhe que queroum copo de sumo de tomate, um bife com muito molho deWorcestershire, café, ovos mexidos e torradas. Não mequer fazer companhia? Sem dúvida. Uma chávena de café e um cigarro.,Espero-a lá em baixo.Ela só apareceu vinte minutos depois. O japonês serviu-os, rapidamente e em silêncio.24-vAMp. G. 2 369Agora falemos disse o advogado depois dela terbebido uma segunda chávena de café. De quê?De tudo.Você sabe tanto como eu.Diga-me alguma coisa acerca do revólver que estavana gaveta. Você sabia que estava lá? com certeza! Já me servi dele muitas vezes. Sim? Quando?Só durante os últimos seis meses. Uma vez por semanavou treinar-me para o campo. Posso perguntar-lhe para que faz esse treino?

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É muito simples. Estou muitas vezes aqui sozinha.Há neste cofre pedras no valor de milhares de dólares. Euentendia não dever deixar o primeiro larápio ordinárioesvaziar este cofre à minha vista, arruinando assim o tioGeorge. Não está no seguro? Só em parte. Mas não se trata só dos perigos,Mr. Mason. Cuidei sempre de desenvolver a minha personalidade. Entendo poder desenvencilhar-me pelos meus próprios meios... Não há nada melhor para fazer perder o usodas pernas do que umas muletas... Tenho um camarada,um amigo que... gosta das mulheres de carácter... e atiranotavelmente bem. Eu quero ser aquilo que ele ama,uma companheira digna dele. Uma mulher que se nãorende aos gostos do homem que lhe interessa, comete umerro muito grave. Em Biologia, sabemos que os polos opostosse atraem, mas quando aparece o hábito, é necessária, parapreservar a união, uma comunidade de interesses. Não sepode construir nada de sólido só com base na atracção biológica. A camaradagem entre os sexos divide-se em duas épocas.Primeiro, temos a atracção biológica, depois temos... Nós estávamos a falar de tiro de revólver interrompeuMason, docemente. E você derivou para o casamento.370Isso não! Estava a falar apenas das reacções essenciais.O casamento é apenas o produto, a consequência natural.Pouco importa. Não falemos, peço-lhe, senão daquiloque me interessa.A rapariga corou. ...E portanto do tiro de revólverconcluiu o advogado. Não vejo que mais possa acrescentar àquilo que já lhedisse. Treino-me no tiro de revólver há dez meses e fiz notáveis progressos. Você usa sempre aquela arma? Quase sempre. Tentei o modelo regulamentar doexército, mas recua muito. Falou aos polícias desse treino de tiro?Ela fez sinal que sim. E como os conseguiu convencer de que não tinhamorto o seu tio? Em grande parte, porque ele foi assassinado na tardede sábado e pude justificar o emprego do meu tempo, minutoa minuto. Julga, Mr. Mason, que essa gente me vai continuara torturar esta manhã? Não me parece. Que razão o leva a pensar assim ? Porque eu estarei aqui. Mas não o deixarão ficar. Devem deixar. A não ser que não a inculpem de assassínio e não a metam na cadeia. Coisa que muito me admiraria.

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Tenho uma nota do juiz que me autoriza, como seuadvogado, a conferenciar consigo. Naturalmente a enfermeiranão viu nada mais urgente a fazer que telefonar... Olhe!Cá estão eles!Uma sirene uivou e Virgínia pousou a chávena de café. Espero aguentar disse ela. Mas esta provação...depois destes desgostos... e este desastre... Prometa-me que não se vai enervar. Deixe-se estarsentada e deixe-me falar.371Atitude que lhes não dará muito prazer.Antes de Mason poder responder, ouviu-se um rumorde passos no vestíbulo e a enfermeira alcançou a porta antesde Itsumo, abrindo-a" dizendo: Estão na sala de jantar.O sargento Holcomb apareceu nos umbrais, rodeadopor dois agentes. Que faz você aqui?perguntou a Mason.Autorização do juiz respondeu Mason exibindo umpapel. Devia tê-la mandado para a prisãocontinuou o sargento, voltando-se para Virgínia Trent. Aqui está a minharecompensa por a ter poupado. Não tenho nada a ver com isto protestou a rapariga. Mr. Mason veio acordar-me. E se a tivesse guardado à sua disposição interveioo advogado teria conseguido uma ordem de habeas corpus.A prisão não teria alterado nada. Suponho que lhe vai dizer que não responda às minhasperguntas, não?continuou o sargento, sentando-se. Fazervaler os seus direitos?Pelo contrário. Vamos fazer tudo para lhe facilitaro trabalho. Quero ver como isso vai ser! comentou sarcásticamente o sargento. Fique desde já sabendo que esta jovemsenhora admite que sabia da existência do revólver na gavetae se treinou longamente no tiro. Então? Tire as suas próprias conclusões.Já fizeram a autópsia?Holcomb aquiesceu com um sinal de cabeça. Conversemos então, sargento. George Trent foi assassinado de tarde. Como é que o sabe?É fácil. Ignoro os resultados da autópsia, mas basta-me372o estado do corpo e das roupas. A camisa estava limpa.Por outro lado, o corpo foi metido numa caixa, no alto deuma pilha. A sobrinha seria tão capaz de lá o colocar, comode deslocar uma parede da casa.

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Um cúmplice?sugeriu Holcomb.Isso...Não se esqueça de que o nosso homem tinha saído parase embebedar. Tinha saído, deixando o carro num parque,para meter depois as chaves no correio.Isso mesmo e, contudo, voltou ao escritório. Por querazão ?Não seivolveu Holcomb.É justamente isso quequero saber.Não lhe parece melhor tratar de investigar por esselado, em vez de brutalizar Miss Trent, só porque conheciaa existência do revólver e sabia utilizá-lo?Não brutalizei ninguém.Você interrogou-a até tornar necessária a intervençãode um médico. Mandei-a para casa dela. Agora está a parecer-me deexcelente saúde.Tenho razões continuou Mason para julgar queTrent só foi a uma casa de jogo, ao Prato de Ouro, daRua 3, Este. E que deduz você?Que se viu obrigado a voltar ao escritório. A minhaopinião é ser esse o lado por onde devemos conduzir as investigações.A orientação do inquérito é dada por mim.Bem entendido que sim, mas não receia que a defesaacuse a polícia de não querer pôr em cheque uma sala dejogo clandestino que visivelmente essa mesma polícia protege ? Uma casa clandestina? Nesse endereço? atirou Holcomb, agressivo.Sim. E depois, sargento, que vai fazer?373 Orientar as minhas investigações nesse sentido respondeu o sargento após breve reflexão. Perfeito. E eu vigiarei as suas averiguações. Entretanto, dar-lhe-ei conta, minuto a minuto, da maneira comoMiss Trent empregou o tempo no sábado de tarde... Vocêfechou o escritório ao meio-dia, Virgínia?

Fechei. Para onde foi? Para o campo. Passear ? Sim. O meu amigo e eu queríamos... Depois veremos isso, entre nós. Agora vamos deixartempo ao sargento para proceder às suas averiguações...A resposta da senhora fechou-lhe o bico, hem, Mason? disse Holcomb.A mim? Porquê?Você está a andar muito depressa, Mason. Esta raparigacontou-nos tudo. Como tinha levado o revólver na sua bolsa,

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para se treinar ao alvo, garantiu ela.O advogado deitou uma breve olhadela a Virgínia Trent,que fez um sinal confirmativo. E depois?perguntou ela. Há seis meses que metreino no tiro. O meu amigo poderá dizer-lho... Quem é o seu amigo? perguntou Mason. O tenente Ogilby. É meu colega nos cursos de psicologia.Mason consultou Holcomb com os olhos.É exacto respondeu este. Partiram os dois, por voltada hora e meia. Nessa altura, Trent estava a almoçar numrestaurante próximo. Ela regressou por volta das seis horas.Não se separaram.Desculpe-mepediu Mason. Tenho um telefonema afazer. Onde está o aparelho, Miss Trent?"Na entrada.374O advogado foi fazer uma chamada para o escritóriode Drake. É você, Paul? Os seus homens conseguiram informações do porteiro de Trent? Tenho um relatório minucioso, Perry Trent fechouno sábado ao meio-dia, mas há no edifício grande númerode escritórios que estão abertos todo o dia, e os elevadoresfuncionam até às seis e meia. A partir dessa hora só funcionaaquele que está a cargo do porteiro, e os que o usam têmde assinar o livro das subidas e descidas.Esse livro prova que Virgínia Trent voltou no sábadocerca das oito horas, para só descer às nove e dez. SarahBreel, vinda no domingo de manhã às dez e meia, ficou noescritório até ao meio-dia e cinco. É tudo. Nenhum vestígioda passagem de Trent. É crível que, tendo fechado oescritório ao meio-dia, tenha lá voltado antes das seis e meiada tarde. Depois dessa hora, seria obrigado a dar o seu nomeao porteiro.Este último subiu às sete e meia para fazer a limpeza.Esteve sozinho no escritório cerca de uma meia hora. Quandosaía, deu-se conta de Virgínia saindo do elevador e deixou-lhea porta aberta. Ela também estava só.Mas não é tudo, Perry. Um jornalista disse-me que omédico legista tinha estabelecido com muita precisão a horada morte. Pôde saber-se que Trent tinha almoçado, e a quehoras, e julga-se que o mataram por volta das quatro e meiada tarde, às cinco, o mais tardar. Isto não agradou à polícia,que, todavia, se viu obrigada a aceitá-lo. Obrigado foi a resposta breve de Mason, desligandopara regressar imediatamente à sala de jantar. Então, sargento, tem a intenção de inculpar Miss Trent ?Não se preocupe comigo, peço-lhe. Não penso em tal. O que pretendo, são factos. Aqui estão: George Trent foi assassinado antes da

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cinco da tarde. Miss Trent tem um alibi irrefutável.375Mason disse o sargento inclinando-se para o advogado já nos defrontamos muitas vezes. Pouco importa.Falemos razoavelmente. Concorde comigo ser impossívelter Miss Trent conservado este revólver consigo durante todaa tarde. Está enganada, pela certa; e se ela persiste no seuerro, isso vai muito simplesmente impedir a condenação doculpado, quando o pusermos diante dos juizes. Tudo o quepeço é que ela nos ajude, que coopere connosco. Não vejo nisso nenhum inconveniente concordouMason, irónico. Então não está a ver... ? começou a rapariga. Talvez o sargento ignorasse ontem à noite o que sabehoje: que tinham assassinado o seu tio antes das sete e meiada noite.Não com o revólver encontrado na gaveta, em todo oCaso ripostou Virgínia. Por Deus, o que não falta sãorevólveres do mesmo calibre...Alto lá! cortou o sargento. O nosso serviço de peritagem microfotografou a bala que matou o seu tio e comparou-a com uma outra disparada pela mesma arma. Osprojécteis têm marcas idênticas. A que horas voltaram,você e o tenente Ogilby, para a cidade? Por volta das seis. O seu amigo ficou para jantar? Não.Vamos lá interrogar esse criado japonês continuouHolcomb.Um agente voltou pouco depois, trazendo o homenzinho,que mostrou um rosto fechado, indecifrável. Deixou os olhospresos nos de Holcomb.O seu nome? Itsumo. Tem outro? Sim, senhor. Itsumo Shinahara. Há quanto tempo trabalha aqui?376Há cinco meses e três dias. Lembra-se do dia de sábado? Muito bem, senhor. A que horas serviu o jantar?Às seis e meia, senhor. Quem estava à mesa? Miss Virgínia e Mrs. Sarah Breel. Mr. George Trentnão apareceu.Você sabia que ele não viria? Não, senhor.Pôs-lhe o lugar na mesa? Sim, senhor.

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Sabe a que horas entrou em casa Miss Virgínia, nosábado de tarde?Uns vinte minutos antes do jantar. Olhei para o relógiopara pôr a carne a cozer. Que qualidade de carne? Carne de vitela. Quanto tempo estiveram à mesa? Aos sábados tenho licença de sair à noite respondeuItsumoe encontro-me sempre com um amigo para irestudar na escola de fotografia. A aula é às oito horas. Despacho-me depressa, acabo de lavar a louça pelas sete e meia,telefono ao meu amigo e apanho o "tramway" das oito menosvinte. Chego precisamente antes de começar a lição, umminuto talvez. Onde estavam Mrs. Breel e Miss Virgínia quando asdeixou ? Miss Virgínia tinha saído um pouco antes de mim,talvez uns cinco minutos. Mrs. Breel ficou.O sargento Holcomb virou-se para Virgínia Trent.Limpou o revólver depois de ter atirado? Certamente. Limpei-o e oleei-o no meu quarto. O meutio tinha-me ensinado a fazê-lo.Voltou a carregar a arma?377 Claro. E voltou a pô-la no sítio, no escritório, antes das oitohoras? Deviam ser precisamente oito horas. Vejamos, Miss Trent! Está enganada, garanto-lhe! Foiesta arma que matou o seu tio por volta das quatro e meiada tarde de sábado. É impossível que tivesse esse revólverconsigo. Não me deixou. Um momento! Você julgava tê-lo consigo, mas nãodeu um cuidado especial à arma. Que quer dizer? Você não lhe verificou o número. Não, com certeza disse a rapariga, sorrindo. Você pegou nela maquinalmente para a meter nabolsa? Sim. Sabe apenas que se tratava de um 38? Era da mesma marca. Disso estou certa. Mas nada a autoriza a identificá-la mais completamente? Não, é verdade. Portanto, às oito da noite, você voltou ao escritórioe meteu na gaveta o revólver que trazia na bolsa? Sim. E havia outra pistola na gaveta?Não.

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Como estava vestida quando voltou ao escritório?Não estou a compreender... levava um vestido depasseio. Levava luvas ?Ela reflectiu. Quando cheguei ao escritório levava luvas, mas eu...Não. Estava sem hluvas.Tinha o revólver na bolsa?378Sim.Tirou-o da bolsa para o meter na gaveta? Sim. Verificou-o, quero dizer: verificou se estava carregado? Girei o tambor para me certificar de que estava carregado. Faço-o sempre. Muito bem, Miss Trent! exclamou o sargento, triunfante. Era isso que eu pensava. Não tinha consigo a armaque matou seu tio.O silêncio da rapariga provava a sua absoluta falta deconvicção. Qual a razão dessa sua afirmação ? perguntou Mason. O nosso exame prova que a última pessoa que mecheuno revólver estava de luvas calçadas. As impressões antigasforam safadas a ponto de perderem o interesse para nós,e o nosso perito garantiu que o manejaram com luvas.Mason dirigiu a Virgínia Trent um olhar furtivo, antesde se voltar para o sargento. Continue, sargento. Aqui tem uma boa razão para trabalhar connosco,Mason. Está a ver o que se passou. Uma terceira pessoa tirouo revólver de George Trent para deixar outro em seu lugar.Na manhã de segunda-feira, essa mesma pessoa voltou a pôro revólver de Trent no seu lugar, levando aquele que tinhadeixado no sábado. Porque diz você na manhã de segunda? perguntouMason. Porque não entrou ninguém no escritório desde as seise meia de sábado até às oito da manhã de segunda-feira,exceptuando Miss Trent, no sábado à noite e Mrs. Breel nodomingo. Que quer que se faça para o ajudar? Os jornalistas vão entrevistar esta jovem criaturagemeu Holcomb. Gostaria que ela não falasse do revólver.Está a ouvir, Miss Trent?perguntou o advogado,379voltando-se para a rapariga. Na qualidade de seu advogado,peço-lhe que guarde o mais completo silêncio no que se referea este pormenor.O sargento estendeu a mão ao advogado.É muito gentil o que está a fazer, Mason!

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Mas não, sargento. Isto não é nada. É sempre umprazer colaborar consigo.CAPÍTULO XI

Nada mais engraçado que a raposa apanhada pela suaprópria armadilha declarou Mason a Della Street.Meu Deus!suspirou ela. Vejo pelo seu ar satisfeitoque nos vai mergulhar noutra história suja... Em nada protestou Mason. Pelo contrário. Garanto-lhe a nossa segurança. Sabe, Della, que o mais grave defeitode um polícia é a sua falta de imaginação?A que propósito vem essa alusão? Não ignora que desde alguns anos atrás se conseguemidentificar ás balas de revólver ou de espingarda graças àsmarcas deixadas pelas estrias dos canos. Uma espécie deimpressão pessoal, de assinatura individual de cada arma.É na verdade novo, patrão. Como o rádio. E admiratambém os progressos realizados pelos preços, pelos impostos... Falemos a sério. Não há nada de espantoso em, servindo-nos de uma invenção científica, procurarmos documentar-nosacerca de uma história. Eu não quereria, patrão, de maneira alguma,desviá-lo das suas altas especulações filosóficas, mas permita-me, já que estamos a falar seriamente, que lhe comuniqueas últimas notícias. Notícias que lhe tirarão toda a vontadede rir.Vamos a isso.380~-Um dos homens de Drake procura-o, com os olhosinjectados de sangue. Injectados de sangue, diz você? Não será melhor dizerque lhos meteram dentro, por acaso? Caramba! Sabe ? Simples dedução da minha parte. Se o homem chega a saber quem lhe pregou estapartida...Bateram à porta três pancadas secas. Só podia ser Drake,que entrou imediatamente. O nosso amigo Chennery parece gostar dos métodosdirectos, Perry! Que aconteceu? Cinco minutos depois de termos saído do apartamentode Chennery, este saiu, atravessou a rua e aproximou-se daesplanada onde estava o meu empregado."O teu amigo advogado disse que me andavas a seguire queria conhecer-te." Então ? O meu homem não se lembra muito bem do que aconteceu a seguir continuou Drake, disfarçando um sorriso. Garante que o edifício lhe caiu nas costas, mas deve exagerar.

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Os homens que o teriam de substituir encontraram-nodez minutos mais tarde atado no fundo do carro, os olhos e aboca colados com adesivo. E Chennery?Tinha desaparecido. Voado. Mas estamos a seguir amulher e, cedo ou tarde, ela nos levará para junto dele. Ela ficou em casa? O tempo de fazer as malas. Estava a sair quando osmeus reforços chegaram. Onde está ela agora?No Hotel Monadnock, com o nome de Mrs. Peabody,de New-Orleans. Óptimo. Não a perca de vista. Trate de pôr um micro-381fone registador no quarto dela e os seus homens na vizinhança"Você vai esperar monsieur Charles Peabody.-Tudo feito já. Diga-me uma coisa, Paul, amordaçar e cegar umapessoa com adesivo é um truque de profissional? Sem dúvida. Esse Chennery conhece a música. Quando ele soubeque você não era da polícia regular, tratou logo de ajustaras contas consigo.-Logo. Por outro lado, o estratagema da moeda inserida nosuporte da lâmpada, em casa de Cullens, para provocar umcurto-circuito, é também de um profissional. Você está no bom caminho sentenciou Drake. Mrs.Breel nunca teria pensado em semelhante coisa. Sim, tudo se combina. O adesivo e a moeda. Tudo istovem da mesma pipa. Um método firme, eficaz. Coisas detécnico. Você quer que o meu homem apresente queixa porgolpes e ferimentos? Não retorquiu vivamente o advogado. Mencionoestes dois pontos para sua edificação pessoal, para o caso de seencontrar em frente de Mr. Charles Peabody, de New-Orleans. Compreendo. Ah! Outra coisa, Perry: Bill Goldingtem um novo Sedan vermelho escuro. Este adjectivo interessa-me, Paul. O vermelho escuro? Sim. Estou a compreendê-lo... Mas o carro não é novo.Trate de ter a certeza, meu velho. Entendido. Volto ao essencial. Identifiquei os diamantesBedford. Você tinha cem por cento razão. Foram roubadosem New-Orleans, há uns seis meses atrás. Um grupo deperitos despejou um cofre de jóias antigas e, desde essa altura,382as companhias de seguros moveram céus e terra para encontrar

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os ladrões.Já avisou a companhia? Queria falar-lhe primeiro. Devo ir para diante ? Há umarecompensa que poderíamos dividir, dois mil dólares... As recompensas que vão para o diabo!exclamouMason.E, como o rosto do detective se alongasse. No que se me refere, pelo menos. Você pode ficar comtudo, mas permita-me que lhe dê um bom conselho: Paul...não seria mau que você a dividisse com Holcomb. com essa múmia! exclamou o detective. E porquê,diga-me lá ? Estaria de melhor vontade a nosso lado para o que sevai seguir. O que se vai seguir? Não compreendo. Sim, o resto. Verificando a origem das outras pedrasou jóias confiadas por Cullens a Trent, talvez consiga outrosprémios. Para si, Cullens seria, então... Era um receptador, não restam dúvidas. Se vocêguardar esses dois mil dólares, vai entrar em competição coma polícia e estará tramado para o resto. Holcomb tratará deestar alerta. Vai começar por declarar nula a sua intervenção,sob o pretexto de que as pedras estão nas mãos da polícia, e... Estou a ver. Mas parece-lhe que o devo pôr ao corrente ? Estabeleça com ele um acordo minucioso. Eu já estoua colaborar com o sargento.Você? Que boa piada! É como lhe estou a dizer, Paul! Desde quando? Desde que ele mo pediu. É muito esquisito... Mais do que isso. É espantoso. É a primeira vez, nahistória...383O procurador vai fazer passar este caso do Cullensdiante do júridisse Drake. Tenho um depoimento minucioso de Diggers, assinado por ele... Este negócio das jóiasvai fazer um barulho dos diabos.Estou certo de que Holcomb fará tudo para implicarPete Chennery e a mulher.Desde que saiba tanto como nós.Nós cooperamosrepetiu enfaticamente Mason. Será que você está na disposição de lhe contar a história de Mrs. Chennery? Oh! Não irei tão longe, Paul! O sargento poderá ficarvexado, mas... Mrs. lone Bedford, saindo do ComissariadoCentral, onde se tinha recusado a reconhecer os diamantes,foi direitinha ao apartamento de Pete Chennery. Bastariasoprar ao sargento para se informar acerca do movimento

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dos táxis, saber onde o motorista de Mrs. Bedford a levou.Isto dar-lhe-ia uma visão muito clara dos acontecimentos,sem que tivesse de se indignar com a nossa intervenção.Bah! Você está a brincar, Perry?...Faça por ser razoável, Paul!exclamou o advogado,parecendo ofendido. Você começa logo aos saltos com opretexto de que lhe vou pôr a polícia às costas, e quando lheofereço a oportunidade de ficar bem colocado perante aSecção Criminal põe-se a discutir.Você tem qualquer coisa que me esconde, mas tantopior. Não tenho tempo para discussões. Vou-me pôr a andar.Você poderá sugerir também a Holcomb que estude asimpressões digitais encontradas no apartamento de Chennery.Esse rapaz deve ser um reincidente, a avaliar pelos seusmétodos.Entendido. vou dar um salto a casa de Holcomb.Um momento mais. Ainda falta uma coisa.-O quê?Uma fotografia do interior do cano do revólver queserviu para matar George Trent.384Você quer, sem dúvida, falar daquele que foi encontradona bolsa de Mrs. Breel ? O que serviu para liquidar Cullens ?Faça o favor de não voltar a dizer "a bolsa de Mrs.Breel"interpôs Mason em tom áspero. Essa bolsa aindanão foi identificada. Há uma dúvida. Não, quero referir-meà arma que matou George Trent. Precisa de uma fotografia do cano? Sim. Uma ampliação, se possível. E no estado actualda arma, com as balas.Nada mais fácil quando começar a colaborar com essessenhores da polícia! Então trate de andar depressa.Drake partiu e Mason voltou-se para Della Street, comum sorriso no canto dos lábios. Ela estudava-lhe o rosto. Se o patrão fosse meu filho, e ainda criancinha, iria acorrer verificar o armário das compotas, com a certeza dechegar muito tarde. Mr. Perry Mason, o senhor está a meditarum mau golpe. Venha dizer à sua mamãzinha o que é.Enfiando as mãos nos bolsos, o advogado reprimiu, nãosem contrariedade, a sua alegria.Tenho uma bela surpresa para si, Della. Uma destassurpresas... Mas discrição, hem? Promete?Diga já. Você faz-me desesperar...Della! Virgínia Trent tem um amiguinho. Trata-se deuma relação séria...Patrão! Suplico-lhe! Tenha modos! Veja bem, patrão,como fala com a sua escrava assalariada...Ela foi passear com ele no sábado continuou Mason.Para o campo, num qualquer valezinho discreto, à sombra

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de grandes árvores, atrás das colinas...Flanqueada por dois guarda-costas e munida de um tratado de psicologia de noivado, certamente?disse Della Street.Não. Mas não se trata evidentemente do amigo, talcomo se imagina habitualmente. É um rapaz extremamentesério que também segue os cursos de psicologia.25-VAMP. G. 2 385Não diga mais, patrão. Deixe-me adivinhar... Naturalmente apanham ferraduras de cavalo... não, praticam astronomia... Espere! Já descobri! Armados de lupa passam emrevista a flora e a fauna locais, trocando graves ideias acerca davida em geral. Quando, desajeitadamente, ele lhe toca numamão, pede-lhe imediatamente desculpa, e ela tem suficientegrandeza de alma para não voltar a pensar no acidente. Está muito quente, Della. Ele é tenente do activo, estudapsicologia nos momentos livres, e estes passeios têm apenascomo objectivo treinarem-se ambos no tiro à pistola. Então o patrão admite que um homem de inteligênciamédia, que lê os jornais -e sabe que a caça ao marido estáautorizada durante todo o ano, não encontrou nada melhorpara ensinar à sua futura mulher que a servir-se de uma armade fogo? E para que serve aprender ? Leia a crónica dos acidentescitadinos. Nunca uma mulher ciumenta falhou um tiro. Confesso que estou a zero, patrão. Instrua-me e diga-meo que tenho a fazer. Porque aquilo que adivinho... Ele chama-se Ogilby. Tenente Ogilby. Ela conheceu-onum curso de psicologia. Encontre-o.Para fazer o quê? Entrar em relações com ele e ganhar-lhe confiança. Então é isso! Para que ele me comece a fazer a corte,talvez? Ou então devo convencê-lo a atrever-se a pegar namão de Virgínia e desvendar-lhe?... Você ainda não percebeu. Leve-o ao mesmo lugar ondeele estava no sábado com a sua doce amiga. Fale de tiro,de armas de fogo... e faça com que ele junte todas as cápsulasvazias que por lá haja.Todas? Sim. O patrão quer falar das cápsulas picadas pelos revólveres de ambos, durante o treino ao alvo que fizeram nosábado de tarde?386Exactamente. E depois? Mais nada. Deixe-as em qualquer lugar de confiança,onde o sargento Holcomb as possa encontrar e de tal formaque ele não possa suspeitar que foram propositadamentejuntas. O melhor será confiá-las ao próprio tenente.

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E se Virgínia julga que lhe vou roubar o amigo?... Ela ignorará tudo. Faça com que o tenente prometanão lhe dizer nada. Porque não encarregar da operação um dos homens deDrake ? Não sei se o patrão se está a dar conta. Ir pegar nesterapaz pela mão... Não interrompeu Mason. Você é que tem de ir paraa frente. Quero que Drake ignore tudo. Porquê ? Ele colabora com Holcombdisse o advogado, muitosério. Mas eu julgava que o patrão também?... Está entendido. Mas a palavra colaboração tem umsentido muito elástico. Qual será a significação que o sargento lhe dá?Mason acendeu um cigarro. A mesma que eu, pouco mais ou menos.Já compreendo volveu Della, passando um dedo pelagarganta antes de desligar o gravador.CAPÍTULO XII

O melhor será vestir o seu colete de cota de malha,Patrão disse Della Street, fechando suavemente a portaatrás dela. Que aconteceu? Mr. e Mrs. Golding estão na sala de espera, cheiosde raiva.387Mr. Golding, o gerente da casa de jogo conhecida porPrato de Ouro? Ele não disse a profissão, mas parece que o patrão ocitou para comparecer como testemunha de defesa no processo de Sarah Breel e atirou-se pelo caminho da guerra. E a mulher? O patrão também a citou sob o nome de Eva Tannis,e está louca de cólera. Ela pretende chamar-se Eva Golding. Ela mostrou-lhe a certidão de casamento? Bincadeira à parte, patrão. Estão furiosos. Óptimo disse Mason afastando a pilha de cartas queestava a ler. Mande-os entrar, Della.A mulher entrou à frente, cabeça levantada, olhos brilhantes, seguida de Bill Golding, de rosto impassível. Maslia-se-lhe nos olhos uma cólera prestes a rebentar. Sentem-seconvidou o advogado, muito amável. Feche a porta, Della. Que significa esta citação?começou Golding semesperar mais. Tenho necessidade do seu testemunho.Para a defesa? Sim.

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E eu que o julgava bom advogado! exclamou Golding,sarcástico.As opiniões divergem admitiu Mason, muito calmo.Você insultou a minha mulher! recomeçou o homem,de dentes cerrados.Apresento-lhe as minhas desculpas e acredite quelamento muito. Que razão o levou a citá-la sob o nome de Eva Tannis ?Julgava que era o seu nome. Pois está enganado. É minha legítima mulher.Apresento-lhe as minhas desculpas, minha senhoradisse polidamente Mason. Para dizer tudo, queria ter acerteza de que os teria presentes na bancada das testemunhas.388,. Ela contemplava-o com os olhos semicerrados. Mas aagitação das narinas provava a sua emoção,i Ainda o virá lamentar, Mr. Mason! Lamentar o quê?A sua citação, assim como a que enviou a meu marido.Não sou da mesma opinião. Mas é a minha.Vejamos, Mason interpôs Golding. Você sabe, tantocomo eu, que sou gerente de uma casa de jogo. Você obriga-mea comparecer e a dar o meu nome, o meu endereço e a minhaprofissão. Vão esmagar a minha mulher com perguntas.Tudo isto nos vai causar grandes prejuízos. Se tudo é para bem'da minha cliente...Tem a certeza?Um cigarro, madame?propôs Mason sem responderà pergunta. Não. Obrigada. E você, Golding?-Não.Mason serviu-se. Muito bem! Eu tiro um. Você tem, um carro novo,meu caro senhor, pelo que me disseram. . E que tem você a ver com isso? Oh! Na verdade muito pouco. Mas parece-me quevocê o comprou um dia depois do assassínio de Cullens, não ?-Então? O seu antigo carro interessava-me. Estava em perfeitoestado. Você tinha-o há menos de seis meses.É um pouco forte! explodiu a mulher. Devemosmandar uma nota a todos os advogados da cidade cada vezque comprarmos um carro? Realmente o assunto interessa-me continuou Masonsem fazer caso da interrupção. Pus os meus detectives emcampo. Era um Sedan azul, que tinha o guarda-lamas daesquerda, na retaguarda, um pouco amachucado. Não sei se389

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sabem que Diggers garante que, antes de atropelar Mrs. Breel,teve tempo de ver um carro arrancar à sua frente e virarbruscamente para a esquerda. Era um Sedan azul com oguarda-lamas da retaguarda amolgado.Golding e a mulher trocaram um rápido olhar. Isso não prova nada disse por fim Golding. Qualqueragência de detectives pode encontrar, em vinte e quatro horas,centenas de viaturas azuis com um guarda-lamas amolgado. É possível admitiu Mason. Então porque exige o nosso testemunho? Para dizerem simplesmente ao júri onde foram depoisde Cullens ter saído de vossa casa. Outra coisa continuou Golding. Você foi dar àlíngua para o meu banco. Você emporcalhou-me.A palavra é um pouco forte, Mr. Golding. Mas mantenho-a. Emporcalhou-me. Um momento, Bill interveio a mulher. As coisasassim não nos levam a parte alguma. Sou da mesma opinião apoiou Mason.A mulher levantou-se. Eu gostaria de dizer uma palavra a meu maridodisse ela. Não tem para aí um canto onde possamos conversar? Porque não aqui? Na verdade, porque não? Cala-te, Eva disse Golding. Foste tu que me fizeste falar!gritou a mulher, com osolhos brilhantes de cólera. Eva, cala-te, já te disse! Oh, tu não te faças estúpido! É o que ele quer. Não lhe digas nada insistiu Golding. Vamos falarprimeiro ao nosso advogado. É o nosso advogado que se deveentender, com Mason. É então tão grave ? perguntou Mason. Não, Bill disse a mulher deixando-se cair na poltrona.Não há necessidade de advogado. Ele falará a Mason, masa quem mais falará também? Tu estás doida, cala-te!Eva já não o olhava. Pois bem! Aqui está, Mr. Mason. Sim, estávamos lá.Era mesmo o nosso carro que tínhamos parado diante dacasa de Cullens. Tínhamos saído de casa uns vinte minutos'depois dele... Eva! Suplico-te! Cala-te! pediu Golding levantando-separa se aproximar da mulher. Tu, vai-te sentar e cala o bico! impôs ela no tom queteria empregado com um cão. Senta-te! Tu és um jogadormuito divertido, tu! Tu nunca soubeste perder!Virando-se para Mason, continuou o seu relato, numa vozcalma, sem dar mais atenção a Bill, que hesitou e acaboupor voltar ao seu lugar.

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Não compreendíamos porque fazia Cullens tantobarulho continuou. Tudo aquilo tinha o aspecto de umgolpe combinado. Decidimos então não nos deixar enrolar.Primeiro, fomos ao escritório de Trent. Ninguém. Telefonámosà irmã. Também não estava em casa. Resolvemos então irvisitar Cullens e pôr as cartas na mesa.Parámos o carro defronte da casa dele. Não havia luz nasjanelas.Vamos tocar, apesar de tudo" disse-me Bill. Quem conduzia ? interrompeu Mason.-Eu. Continue. Subitamente, Bill disse-me:"Olha! Há alguém na casa, com uma lanterna eléctrica." Era verdade: via-se um feixe luminoso da lanterna.Não era muito forte, ou então estava tapada. No rés-do-chão ou no primeiro andar?perguntouMason. Em baixo.391Continue.Isto não tinha nada a ver connosco, mas sempre háuma curiosidade, não é verdade? Então deixei o motor atrabalhar, para nos permitir partir rapidamente. E depoisouvimos dois tiros.Dois? Sim. Dois.Vindos da casa? Sem possibilidade de erro.Depois de terem visto a luz? ' Sim.Prossiga. Vimos outra vez a luz e depois saiu uma mulher acorrer. Trazia uma bolsa na mão e procurava meter qualquercoisa nela. Eu estava ao volante, à esquerda, e Bill estava ameu lado."Olha, lá está a irmã de George Trent"sussurrou-meele. Não esperei mais. Larguei a toda a velocidade. Quer dizer, você não viu o acidente? Não. E que fez depois? Primeiro fomos para a garagem, depois para casa. Para pôr o aparelho de rádio no comprimento de ondareservado à polícia?-Sim.Vocês ouviram que tinha sido encontrado o corpo deCullens? Sim.Avisaram a polícia?

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Não. Porquê?Não nos queríamos imiscuir na história.Vocês não falaram a ninguém?Evitamos fazê-lo.392Está bem concluiu Mason. Vou reflectir.Reflectir? Para quê? Você cala a história e nós também. Na minha qualidade de advogado, devo aconselhá-losa dizer à polícia tudo quanto sabem. Pois bem, é isso mesmo! Você cumpriu o seu deverDisse a mulher levantando-se.Pelo vosso lado, vocês não falarão.A menos que sejamos obrigados a comparecer na barrado tribunal. Isso faria um barulho dos diabos, desde que fosse ditodiante do júri.Tanto pior para Sarah Breeldisse Bill, E para vocêsacrescentou Mason. Nós aguentaremos. Mas Sarah Breel... Isso é o que vamos verinterrompeu o advogado. É inútil fazer "bluff"atirou Golding tirando a citaçãoda algibeira. Que vou eu fazer desta coisa? Qual é a sua opinião?perguntou Mason olhando ohomem nos olhos.Lentamente, Golding rasgou o papel e fez sinal à mulherpara se levantar.Vamos, Eva.Saíram, sem uma palavra. Mason mergulhou fundamenteas mãos nos bolsos e pôs-se a fixar pensativamente o cantoda sua mesa de trabalho. Eles mentem, patrão comentou Della Street. Estahistória foi completamente inventada para o obrigarem a nãofalar do carro azul.Nesse caso, é espantosamente forte comentou oadvogado. Sim. Isto deixa-o de mãos atadas, Inteiramente.Mas se eles mentem? Então? Apenas para se defenderem?393-De quê? Para evitar darem explicações da sua presença dianteda casa de Cullens. Talvez de serem acusados de assassínio. Você tem razão. Por outro lado, eles jogam uma partidaperigosa... Chame Drake. Diga-lhe para controlar os actose os gestos destes indivíduos, e que trate de lhes encontrarum móbil. Está a perceber o que quero dizer? Até aqui,a acusação contra Sarah Breel é apenas feita de presunções.

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Ela estava nas vizinhanças; encontraram com ela a arma docrime e os diamantes que poderiam ter estado em poder davítima. Mas, uma vez mais, são apenas presunções. Mas agoraaparecem duas testemunhas que se encontravam no local do crimeno momento exacto em que este era cometido. Se mentem, é apenaspara não serem acusados de assassínio. Se, pelo contrário,dizem a verdade... está bem!... Então ?Mason, franzindo os sobrolhos, fixava a biqueira dossapatos. Ligue-me para Drake.A rapariga levantou o aparelho e colocou quase imediatamente a mão no bocal. Não está lá, patrão. Quer falar com um empregado? Não. Diga para me vir ver logo que chegue.E Mason, levantando-se, começou a percorrer o aposento,de cabeça baixa.Bateram três golpes secos na porta que dava para o corredor e Mason foi abrir. Drake entrou, ofegante. Que vem a ser esta história, Perry? Uma história? Qual? Esta história das testemunhas?Mason, surpreendido, trocou um breve olhar com DellaStreet. Que sabe você na verdade, Paul?Drake tinha-se ido sentar na sua poltrona favorita e tiravado bolso um maço de cigarros.394 Começo por lhe garantir que não tenho a mínimaintenção de me ocupar de coisas que se me não referem, meuvelho. Por outro lado, se trabalho consigo devo saber tudo. Continue.Acha que me deve pôr ao corrente da visita que acabade receber? Não tem importância, mas diga porquê? Tenho necessidade de saber, para compreender. Quem lhe falou? Tenho no meu carro uma telefonia que me permitereceber as chamadas da polícia. Não é permitido, mas, naminha profissão, é sempre bom saber onde se vão pôr os pés. Sim. E depois? Há uns cinco ou seis minutos atrásprosseguiu Drakeenviaram uma chamada urgente para o carro 19. Tratava-se de alcançar o mais rapidamente possível este edifícioe obrigar duas testemunhas que deviam sair do seu gabinetea irem imediatamente ao Comissariado Central....Julguei compreender que tinha deitado a mão a duastestemunhas susceptíveis de rebentar com o assunto, quetinha telefonado a Holcomb e que... Está enganado, meu caro interrompeu Mason. Os

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polícias conseguiram apanhar as testemunhas?Julgo que sim. Regressava ao escritório quando interceptei a chamada. Um pouco depois, fui ultrapassado porum carro da polícia. Havia duas pessoas na retaguarda.Não as pude ver, mas parece-me que se tratava de um homeme de uma mulher. Pelos deuses, patrão! exclamou Della Street. Vocênão está a pensar que Golding...? Cale-se, Della! ordenou secamente Mason.Della olhou interrogativamente Drake e calou-se. Golding era uma das testemunhas?perguntou odetective. Já percebo: Golding e Eva Tannis! Mas porquêtodo este mistério, Perry?395Sem responder, o advogado, a passos lentos, pôs-se aexaminar as paredes, analisando cuidadosamente o pavimento.Depois, baixando-se, pousou o indicador no soalho. Partículas de areia aderiam ao dedo. A um sinal de cabeça, Drakeaproximou-se para se pôr ao lado dele. com o dedo, o advogado apontou um quadro pendurado na parede. Cuidadosamente, os dois homens levantaram o quadro, para o retirar.Tinham feito um pequeno furo redondo na parede.O círculo negro e feio de um microfone fazia uma ligeiraprotuberância.Della, os olhos arregalados pela surpresa, queria falar ecalar-se, ao mesmo tempo. Drake emitiu um ligeiro assobio.Dirigindo-se à sua mesa, Mason pegou numa folha depapel branco, meteu-o na máquina de escrever e começoua bater as teclas, com dois dedos. Paul Drake e Della StreetLiam por cima do seu ombro.Este método é repugnante. Mas para que serviria apresentar umaqueixa ? E era tudo quanto poderíamos fazer. Praticamente, estamosdesarmados. Hokomb está-se nas tintas para que estejamos ou nãoa par do seu procedimento. Triunfou. A nossa única possibilidadeé despistá-lo. Ajudem-me.Afastando a cadeira, Mason começou a percorrer oaposento.Bill Golding e Eva Tannis vieram visitar-me, Pauldisse em voz alta. Holcomb deve tê-los apanhado. Tinha-oscitado para comparecer. Deve ter havido uma fuga emqualquer parte. Que teriam eles a dizer na barra?perguntou Drake.Julgava que estavam metidos nest crime, Paul. Estãoa procurar atirar todas as suspeitas para Mrs. Breel.Drake olhava Mason, à espera de um sinal qualquer,e não compreendia a pantomima do advogado. Della Street interrompeu-o : Que vai o patrão fazer?396Mason teve um Sorriso de satisfação. Ela tinha interpretado

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correctamente as suas atitudes.Não tenho por onde escolher respondeu. Se quiserevitar a condenação de Sarah Breel, tenho de recorrer àsargúci as processuais... senão...Mason desfez-se em sinais. Drake arriscou-se:E que poderemos esperar de melhor?Não sei. Será talvez preferível que ela se confesse culpada e alegue a legítima defesa. Ah! É uma grande responsabilidade defender um cliente que nem sequer nos podeexpor os factos, que não sabemos se matou ou não. Paramim, ela é culpada. vou visitá-la para fazer uma sondagem.Se ela se reconhecer culpada, posso talvez conseguir umapena ligeira, alegar circunstâncias atenuantes. Suponho que não está disposto a que a polícia conheçaos seus projectos perguntou vivamente Della Street. Pelos deuses, não, de maneira nenhuma! Quero queo procurador continue convencido de que vou procurarlutar para que a ponham em liberdade. vou marralhar atéao último minuto. Ele tomará uma atitude menos firmepor fraqueza e recusar-me-á tudo... Quanto mais penso nocaso, mais me parece indispensável visitar Mrs. Breel. Vocêguardará a fortaleza enquanto eu estiver fora, Della.E Mason, pondo o chapéu na cabeça, saiu, batendoduramente a porta.Bem, parece-me que é tudo, Mr. Drake disse DellaStreet ao detective.E isto significa que não temos nada a fazer?Nada mais, além do que o patrão nos pediu. Está bem. Até à vista disse Drake, que saiu, nãosem deitar um olhar de apreensão ao dictafone.397CAPÍTULO XIII

Perry Mason encontrou Sarah Breel sentada na sua camado hospital.Então?perguntou alegremente o advogado. Comoestamos nós? Tudo vai tão bem como se poderia esperar respondeuela no mesmo tom. Uma desgraça nunca vem sócontinuou Mason maissuavemente. O velho provérbio continua a ser verdadeiro,pelo que vejo. Um carro atropela-a, quase a mata, parte-lheuma perna. Acusam-na de assassínio e, para cúmulo, sabeda morte do seu irmão. Para que servirá gemer ou ranger os dentes?respondeu a ferida. É preciso encarar filosoficamente as coisas.No que se refere ao processo, cabe-lhe defender-me o melhorpossível. Quanto a George, já ninguém pode fazer nadapor ele. Espero, bem entendido, que seremos capazes deencontrar o criminoso para o castigar. O choque foi violento,

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concordo. Fiquei muito abalada e George vai fazer-me muitafalta. Mas, na minha idade, já nos habituámos à ideia damorte, Mr. Mason.Esforço-me por encarar a morte e a vida de um ponto devista elevado. Desde que nascemos, é preciso também morrer.A vida não é mais que uma passagem, uma aventura, e amorte é necessariamente o seu fim. Se não houvesse no Mundonem bebés, nem moribundos, a vida seria uma bem tristecoisa, sem alegria, sem romance, sem luas-de-mel e semrisos de crianças.George está morto. Era o seu destino. Repito-lhe que -asua partida criou um grande vazio no meu coração, mas soueu que lamento mais, mais do que ele. Não sei se me está acompreender bem, Mr. Mason. Talvez lhe pareça muitofria e dura, o que não sou, garanto-lhe.398 Falemos então de sidisse Mason puxando umacadeira. De mim? Do seu processo. Tem alguma coisa nova? Nada de bom, a julgar pelas primeiras impressões. Lamento-o, Mr. Mason, mas é-me impossível dar-lheo meu auxílio neste assunto. Não tenho a menor lembrançado que se passou, na tarde do dia em que Cullens foi assassinado... Um cigarro, Mr. Mason? Sei que é fumador eo fumo não me incomoda... Não, obrigada. Fume sozinho.E fale. É inútil tomar precauções comigo. Esta perda de memória é-lhe muito prejudicial começou Mason. Torna a sua defesa muito difícil. Que quer dizer?Até aqui, as acusações que lhe faziam assentavam empresunções. Mas suponha que aparece uma testemunha notribunal e pretende tê-la visto, na casa de Cullens, atirandocontra ele? Nem sequer poderia protestar e negar.Ela não baixou os olhos. Existe essa testemunha? , :Ainda não. .< Explique-se mais claramente. Um tal Golding e uma mulher que vive com ele tinhamparado o carro em frente da casa de Cullens na noite docrime. Ouviram dois tiros e viram sair alguém que, enquantocorria, metia qualquer coisa na sua bolsa. Um revólver,talvez. Que fizeram eles? Partiram logo que reconheceram a pessoa que se aproximava do seu carro. Quem era a pessoa?A senhora respondeu brevemente Mason, fixando osolhos de Mrs. Breel.

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Nasceu o silêncio. Quando ela falou, foi num tom leve-399mente alheado da questão, discutindo um problema puramente académico.Houve segundo eles um certo lapso de tempo entreos tiros e a aparição, na soleira da casa, da pessoa em causa?Alguns segundos, no máximo.E garantem que me reconheceram?Pretendem que sim.Julga poder confundi-los no tribunal?Não sei. Quais são, no fim de contas, as suas intenções?É possível que me queiram atrapalhar. Do que tenho acerteza é de que eles sabem que a senhora perdeu a memóriaem relação a tudo quanto se passou no sábado à tarde.Logo, tratam de aproveitar a situação arrancando-lheo máximo que possa dar. É tentador, reconheça-o. Sabendo-aimpossibilitada de negar seja o que for...Ela reflectia.Uma situação muito delicada concordou ela por fim.Receio muito que só possa contar com o seu talento, nainstrução contraditória... E que estavam eles a fazer, sentadosnum carro de onde podiam vigiar a porta da casa de Cullens? Iam visitar Cullens.E porque o não tentaram? Quando chegaram, a casa estava dizem eles mergulhada na escuridão. Iam regressar, julgando inútil tocar,quando viram nos vidros das janelas a luz de uma lanternaeléctrica portátil. Coisa que lhe pareceu muito curiosa.Ouviram depois dois tiros e viram-na sair a correr. Nessaaltura apressaram-se a partir.É o que eles dizem fez notar Mrs. Breel,Evidentemente. Isto também os situa a eles.É justo.Pode servir-se deste último argumento diante do júri ?Não me parece.-Porquê?400Primeiro, são dois contra uma. Em segundo lugar,podem negar ter entrado na casa, o que a si lhe é impossível.Seguidamente, porque o procurador lhe dará um apoiointegral, o que significa que dá mais peso ao seu testemunho.Finalmente, porque há, contra si, numerosas presunções.Encontraram um revólver na sua bolsa, bem como os diamantes. Quando me acudiram estava, ao que parece, estendidaa todo o comprimento ao lado do carro que me tinha atropelado. A minha bolsa estava perto de mim, aberta?Sim, parece-me que sim.Já perguntou ao condutor do carro, se está absolutamente certo de ter estado esse revólver dentro do meu saco

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ou se estava simplesmente ao lado?Ainda não tive oportunidade de o interrogar. Poderá fazê-lo no tribunal?Evidentemente.E vai fazer-lhe esta pergunta?-Vou. Suponha que ele declara que a arma não estava dentrodo saco, mas ao lado, e tão perto que ele julgou que tivessecaído? Seria excelente para si.Lembrar-se-á de lhe fazer esta pergunta?-Sim. Se a acusação não puder provar que o revólver estavadentro da bolsa, nesse caso...Ela deteve-se subitamente.Nesse caso continuou Masonconseguiremos, provavelmente, convencer alguns jurados de que o revólver foi atirado do carro azul para diante da casa. Concluindo, eu teria perfeitamente podido ver o revólver no chão e correr para o apanhar, quando o carro meatropelou.Será capaz de se lembrar disso?26-VAMP. G. 2 401Não. A memória continua sem dar sinal de si.É muito aborrecido.A quem o diz! Dá-me licença que lhe faça algumasperguntas, Mr. Mason ? Faça favor.Julgo que se pode matar em legítima defesa sem cometer um crime?É exacto. E que se entende por legítima defesa? O medo da morte ou a consciência de um grandeperigo físico.Nada mais? A pessoa deve ter sido ameaçada por um adversárioparecendo ter a intenção de matar ou de infligir um danofísico considerável e, aparentemente, provido dos meios pararealizar as suas intenções. E então? A pessoa ameaçada pode atirar. Suponhamos que estava alguém em casa de Cullens.Essa pessoa poderia alegar ter sido obrigada a matar para sedefender ? Seria difícil. Porquê ? Porque uma pessoa que penetra ilegalmente numa casapratica um delito. O ocupante legal tem o direito de se

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defender contra o intruso. E este não tem o direito de sedefender. Como estabeleceria que essa pessoa tinha entradoilegalmente na casa?A moeda metida no suporte da lâmpada prova assuas más intenções. Se, então, uma pessoa entrou ilegalmente em casa deAustin Cullens, não pode arguir legítima defesa? Talvez em certas condições, mas seria impossível, nocaso que estamos a tratar, convencer o júri. No espírito dos402seus membros, não se esqueça, a "casa" é inviolável, pordefinição. Em sua casa, o homem tem o direito de agir comolhe der na real gana, o direito de defender os seus bens ea sua vida. O intruso é presumido agressor. Tudo isso é muito interessante. Que pena não podereu recordar-me do que aconteceu. Seria sem dúvida muito útil. com efeito concordou Mason sem entusiasmo.Essas pessoas falaram do meu comportamento depoisde sair da casa? Sim. A senhora esteve, parece, muito tempo no pórticopara meter qualquer coisa na bolsa, correndo depois parao passeio. Eles reconheceram-na e foi isso que os decidiu apartir mais depressa. Eu corria? Sim.Ela suspirou e deixou-se cair sobre os travesseiros! Pois bem! Mr. Mason, tudo isto é muito complicadoe a sua missão será rude. Não lha invejo. Não será para mim, no final de contas, mais do que umacausa perdida respondeu brutalmente Mason. Para sié diferente. Quer sugerir desde já que serei condenada por assassínio ? Sim. E que serei executada?A menos que o júri peça para si a clemência do juiz. E julga que o júri o fará? É difícil dizê-lo. Dependerá das provas, do júri e damaneira como o Ministério Público apresentar a questão.É muito possível que consiga convencer os jurados a reconhecerem-na culpada sem circunstâncias atenuantes. Poroutro lado, o procurador pode, por si mesmo, não pedir apena últimamas também depende das circunstâncias.Nada se pode prever.Mason observava-a atentamente enquanto ela digeria aresposta.403E o assassínio com recurso à graça? Prisão perpétua.Está bem. Faça o melhor que puder. Não peço mais

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nada.Mas se eu perder?perguntou o advogado. Querdizer, se nós perdermos, o que nos espera?Ela teve um sorriso muito doce, quase maternal.Abençoado seja, Mr. Mason, por ter pensado em mim.Mas não vale a pena. Já vivi muito tempo. Uma vida muitoactiva e muito cheia. Para quê inquietarmo-nos? Fazia-o,quando era nova. Há uns vinte anos atrás, decidi, um belodia, deixar-me disso no futuro. Tenho confiança em si. Seique fará tudo o que for humanamente possível. Se o júrime reconhecer culpada e me enforcarem, que importa?Tudo terá acabado... e não me parece que vá tropeçar nasescadas do cadafalso. Mas queira desculpar-me, Mr. Mason.Falei muito e sinto-me fatigada. Se não tem mais nada adizer-me, vou dormir uma soneca... São muito aborrecidasestas duas testemunhas... Isso complica muito as coisas,para si. Bem vejo... Aqui estou numa posição desgraçada...Mas que posso fazer, Mr. Mason? As preocupações sãoconsigo, agora.Ela arranjou o travesseiro, fechou os olhos e deu umlongo suspiro. Uma expressão de profunda tranquilidadeadoçou-lhe as linhas do rosto. Dormia.CAPÍTULO XIV

Mason abriu a porta que conduzia ao seu gabinete particular. Caminhando à frente de Drake, acendeu a luz e,na ponta dos pés, aproximou-se do quadro atrás do qualtinham descoberto o microfone. A um sinal de cabeça, osdois homens levantaram o quadro.404Já não havia nada. Uma leve diferença de cor permitia,apenas, reconhecer que tinham tapado o buraco com umgesso rápido. É sempre isto, Paulcomentou Mason. E se o puseram noutro lado?perguntou Drake, estudando de muito perto a hábil reparação dos estragos.Não. Partiram com armas e bagagens. Porquê? Porque já sabiam o bastante? Não. Porque souberam que nós o sabíamos. Como ? Por minha culpa, Paul. Só me dei conta quando jáera tarde.Não estou a compreender.Não se lembra de que depois da nossa descoberta domicrofone bati uma mensagem à máquina? Sim. E depois ? O barulho da máquina bastou para os avisar. Sabiamque estávamos aqui os três. Só podia servir-me da máquina(além da escrita que também exigia silêncio), para os prevenir, sem falar.

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E vieram imediatamente levantar o aparelho.Exactamente. Receiam que apresente uma queixa ouque faça um escândalo tal que provoque um movimento ameu favor.De maneira que negarão, em caso de falência, terrecorrido a semelhante estratagema.Não iriam tão longe, mas pretenderiam nada saber,muito simplesmente. Quando penso disse amargamente Drake que falamdas armadilhas feitas pelos advogados aos júris, quando,evidentemente, se nos atrevêssemos a metade do que faza polícia, dormiríamos esta noite nas grades...Mason encolheu os ombros.Recriminações inúteis, meu velho. Tinha na mão aocasião de fazer um magnífico escândalo, bastando seguir405os fios até à sua origem, e perdia-a. Receio muito que nuncavoltemos a ter uma oportunidade igual. Há quanto tempo poderia estar este aparelho colocado ?Ignoro.E o procurador sabe agora os nossos projectos, o nossoplano de defesa? Sabe. Então, que vai fazer?Vou simplesmente ignorar o facto. Quando se nãopode provar nada, é estúpido passar a vida a pensar no caso...Você, Drake, vai concentrar os seus esforços sobre Diggers.Precisa de saber claramente como se passou essa história dabolsa. A arma foi encontrada no chão, como se tivesse saídodo saco ou como se tivesse caído das mãos de Mrs. Breel.Julgo que Diggers, declarando que o revólver estava nabolsa, quis dizer: não que tinha encontrado a arma na bolsa,mas que deduzia que tinha caído... Oxalá você não esteja a seguir um mau caminho, Perry. Como assim?Já devem ter arrancado a Diggers tudo quanto serefere ao assunto. Já o limitaram. Já leu os jornais da tarde? Quer falar do artigo em que se declara que Goldinge Eva Tannis identificaram Sarah Breel como tendo estadono local no momento do crime? Isso mesmo. É disso mesmo que lhe quero falar, Paul. Preciso queme estude essas duas criaturas, que lhes investigue o passado.E de forma a eles o saber. Vá direito ao fim, francamente,cruamente. Estou a compreender. Você quer-lhes criar medo,de forma a fazè-los calarem-se. Hem? É o que eu penso,Perry ? Se eles pudessem retratar-se na audiência... aindaque não seja capaz de o esperar. Ficariam em muito má

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situação se desaparecessem depois da publicidade dada às406suas declarações, com o assentimento do magistrado instrutor. Você vai fazer deles os bodes expiatórios? Irei até à insinuação de que são eles os assassinos deCullens. E que foram eles mesmo que colocaram a arma do crimena bolsa de Mrs. Breel? Naturalmente. Receio que esteja a subestimar a franqueza e a capacidade desse tal Diggers. Pessoalmente, tudo me leva a crerque o procurador quase o hipnotizou e o levou a dizer aquiloque, mais ou menos, pretendia. Você sabe como estas coisasse passam no decurso de um acidente? Um peão atira-separa debaixo das rodas de um carro que trava quase imediatamente. O condutor está naturalmente muito enervado.Já vi alguns tremerem de tal forma que nem sequer eramcapazes de assinar a acta. E depois as pessoas lembram-sedas minúcias do acidente com certa confusão de pormenores.Fica apenas uma série de imagens gravadas no espírito docondutor. Mais tarde as imagens precisam-se à sua maneira...Oh! Não se trata de um falso testemunho... Não... Apenasuma questão de influência sobre um cérebro que ainda seressente da violência do choque... Resumindo: não me pareceque arranque grande coisa de Diggers no banco das testemunhas, Perry. Ele é absolutamente sincero. O procurador precipita a formação da acusação.Quer que o processo decorra dentro de uma grande emoçãogeral. Porquê? Para cuidar da sua própria publicidade e obter umacondenação severa. E que faço eu no meio de tudo isto?Transmita-me todas as informações que puder conseguir. Eu estou encostado à parede. Não posso cometer mais407nenhum erro. Quero, quando entrar na sala de audiências,saber mais do assunto que o procurador. Quando é o julgamento?Dentro de uns oito dias, talvez. Logo que se possalevar Mrs. Breel diante do Tribunal ou possa ser deslocadanum carrinho. Em oito dias faz-se muito trabalho, Perry.Mason sorriu levemente. Mas lia-se-lhe a fadiga nos olhos.Tudo o que me possa encontrar, Paul. Tudo me faráarranjo.CAPÍTULO XV

Larry Sampson, substituto do procurador, encarregadoda instrução do processo Sarah Breel, inclinou-se, sobre a sua

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secretária, para Harry Diggers, que parecia intimidado. Tudo o que lhe peço, Mr. Diggers, é que diga a verdade,só a verdade, toda a verdade. E isto a despeito de todos osobstáculos. Está a compreender-me bem?Diggers aquiesceu com um rápido sinal de cabeça. Perry Mason é um advogado retorcido. Ninguém sabemelhor do que ele perturbar uma testemunha. Terá de estarcom muita atenção.Um novo sinal de cabeça. Lembre-se bem, sobretudo prosseguiu Larry Sampson que o nosso procurador só se decide a pedir uma condenaçãocapital num único caso: quando tem a certeza da culpabilidade do acusado. Quando tem a mais ligeira dúvida, abstém-se.Infelizmente, a lei permite que o assassino se possa garantirno serviço de advogados do crime, pessoas astuciosas e semescrúpulos. A percentagem de absolvições neste país é umavergonha nacional. Lembre-se de que, aparecendo no bancodas testemunhas, assume um papel de utilidade pública.Você é testemunha num processo criminal. É uma grande408honra, senhor, é um grande papel! Vai testemunhar, expor osfactos. É seu dever fazê-los compreender aos jurados e convencê-los.As provas acumuladas contra Mrs. Breel são esmagadoras.Ela cometeu deliberadamente o crime, assassinou a sangue-frio. Podemos prová-lo e entregar assim a culpada à justiça,se você souber expor a verdade como convém, conservandoo sangue-frio na audiência.Recapitulemos os factos, tal como eu os vejo. Você rodavaa trinta e cinco ou quarenta à hora, não é verdade?Por Deus, não reparei no conta-quilómetros. Mas você não estava num sector onde a velocidademáxima é de quarenta à hora? É um cidadão respeitador dasleis, não é verdade, Mr. Diggers? Certamente.Não é um maníaco da velocidade?Não. Então devemos presumir que não ultrapassou <> limiteautorizado. Suponho que sim.Ah! Um conselho: Mr. Diggers. Será supérfluo indicarao júri o raciocínio que lhe permite chegar a esta conclusão.Diga muito simplesmente que não ia a mais de quarenta à horae nada mais. Nesse momento a acusada apareceu-lhe inesperadamente diante dos faróis? Sim. É perfeitamente exacto respondeu Diggers semhesitações. E, antes de poder conseguir deter o carro, apanhou-a.É assim? Sim, sr. substituto. Ela caiu?

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Torci a direcção e tentei evitá-ladeclarou Diggers. Infelizmente, o meu guarda-lamas apanhou-a e ela roloupor terra.409 Compreendo. Ocupemo-nos mais detalhadamente doque aconteceu a seguir. Você travou quase instantaneamente ?Já tinha carregado no travão de pé quando a apanhei. E, saltando do carro correu para ela? Sim. Ela caíra de bruços? Quer dizer... um pouco de lado, parece-me. Ela trazia esta bolsa quando a atropelou? Pois bem... parece-me que... Larry Sampson interrompeu-o bruscamente. Aqui está o perigo contra o qual quero avisá-lo, Mr. Diggers. O senhor é um homem honesto, bem sei. Dizer a verdadeé a sua única preocupação. Quando hesita na resposta a umapergunta, é porque se está a esforçar por reconstituir na suamemória a sucessão dos acontecimentos, como também sei.Mas um júri não o compreenderá assim. Logo o senhorhesita, os jurados pensarão: "Cá está um homem que não selembra muito bem daquilo que aconteceu." Vejamos,Mr. Diggers, toda a testemunha que comparece no tribunalsabe que vai ser objecto de exame contraditório por parteda defesa. E prepara-se, cuidadosamente, para esta provapara que o advogado da parte adversa lhe não encontrepontos fracos. Os jurados estão habituados a que as testemunhas respondam com nitidez e sem hesitações. Você sabemuito bem que a acusada trazia esta bolsa. Você não estáa desejar que Perry Mason o ridicularize em público? Não, evidentemente. Mas... Também não está disposto a passar por um azelha? Não cometi nenhuma falta protestou Diggers. Ninguém no Mundo faria melhor do que eu. Ela atirou-se paradebaixo das rodas e...Já sabemos, mas não está disposto a que o público vájulgar que você não a viu ? Mas sim, vi-a. Vi-a no momento preciso em que desciado passeio, mas era demasiado tarde para fazer o que fosse.410Quantos passos deu ela na rua ? Não sei. Quatro ou cinco, provavelmente.Você não a perdeu de vista nem por um instante? Não.Você viu-lhe a cara, as mãos, os pés? Sim. Se assim o quer. Ela devia trazer a bolsa na mão. Deve ser assim mesmo. Suponho... Não suponha, Mr. Diggers interrompeu Sampson. Não é, já sei, mais do que uma forma de falar, mas bem pode

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adivinhar o que sucederá se fizer um depoimento com essaspalavras. Perry Mason levantará um dedo para comentar:"Ah! Então você supõe?". Você meter-se-á imediatamentena defensiva e dar-se-á conta de que todas as pessoas se riemà sua volta.Diggers agitava-se, pouco à vontade. Não vejo porque não poderei dizer muito simplesmenteaquilo que vi e mais nada. Claro que pode, Mr. Diggers, e é exactamente aquiloque lhe estou a pedir para fazer. O que é preciso, com todaa justiça, para si, para mim, para todo o país, é que vocêexponha claramente, positivamente, sem reticências, aquiloque viu; que não caia na armadilha que infalivelmente lhearmará a defesa; que fuja ao ridículo. As minhas intençõessão puras e está a compreendê-las, não é verdade?Diggers mostrava-se convencido. Continuemos entãoprosseguiu o ajudante. Se vocêlhe viu as mãos, viu a bolsa que ela trazia. Talvez esta ideialhe não tenha ocorrido até agora. Talvez ainda não tenha reconstituído a cena em todos os seus pormenores. Quando vocêsair daqui, lembre-se então das suas recordações e precise-as,a fim de ver exactamente tudo quanto se passou. Voltemosagora ao conteúdo da bolsa. Você fê-lo inventariar pelo pessoalda ambulância, se me não engano? Foi assim mesmo respondeu Diggers e fiz bem.411com aquele embrulho de diamantes... ela poderia ter sidocapaz de me acusar de ter bifado um ou dois... Muito justo e é, na minha opinião, o ponto capital.Será preciso pôr em relevo a sua atitude, toda de rigorosaprobidade, diante dos jurados. Você foi prudente, cauteloso,respeitador da moral e das leis. Esta acção é de um homemjudicioso, calmo na hora do perigo e do acidente. Vocêcompreendeu a importância do papel que estava a cumprir.Você pretendeu que se tivesse inteira confiança no seu testemunho... Resumindo, a arma estava na bolsa, não é verdade? Será melhor dizer ao lado. No chão.Não, Mr. Diggers. Este revólver não podia estar totalmente fora da bolsa. Só o deve ter visto parcialmente. Veja bem:aqui está um dos detalhes em que os advogados tratarão deo fazer cair na armadilha. Vão esforçar-se por fazê-lo jurarque estes objectos não estavam dentro do saco quando osviu pela primeira vez. A diferença é grande, não se esqueça.Seja muito prudente. Por outras palavras, Mr. Diggers,você não terá nada a temer se no tribunal disser a verdade,só a verdade e nada mais que a verdade, mas é preciso terdesde já a certeza é seu deverque é bem a verdade quevai dizer. Não se trata nem de "crer", nem de hesitar. Não façanenhuma dedução, não discuta; agarre-se aos factos e apresente-os nitidamente, claramente. Enfim, e antes de mais, não

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quero que Perry Mason o ridicularize em plena audiência.Desconfie do seu ar amável, adulador. Dirá que procura a verdade e nada mais que a verdade. Na realidade, procuraráconfundi-lo, encurralá-lo, enrolá-lo numa segurança enganadora, perturbar a precisão do seu testemunho. Diga "creio"ou "suponho", ou "parece-me", uma só vez que seja e estaráperdido. Você é um homem inteligente, Mr. Diggers, de umainteligência acima da média. Posso contar consigo parafazer boa figura no tribunal, para não se deixar empurrarpara a mentira?412 Não mentirei afirmou Diggers com muita convicção.Direi a verdade. É assim que o quero ver, meu caro senhor! Cumpra oseu dever de cidadão. Volte para casa e repasse no seu espíritotodos os factos, um a um, até os reconstituir claramente.Volte a lembrar-se do acidente, faça uma espécie de filme.Sarah Breel atravessa o passeio a correr, desce para a calçada.Dá alguns passos, quatro ou cinco no máximo. Você vê-a.Vê-lhe nitidamente as mãos. Traz uma bolsa e corre diantedo seu carro. Você torce a direcção e trava. Alcança-a e elacai; você desce, corre para ela; está estendida no chão, parcialmente de lado, a cara no solo, a bolsa está a seu lado e aprimeira coisa que você vê é um revólver meio saído da bolsa.Você faz parar um outro automobilista, chama uma ambulância e inventaria o conteúdo do saco com o motorista e osmaqueiros; nessa altura encontra os diamantes.Exponha estes factos diante do júri sem se deixar perturbar.E lembre-se, Mr. Diggers, de que todo este processo roda sobresi, depende de si, meu caro senhor, deixe-me que lho repita.E agora queira desculpar-me. Tenho um encontro importante. Volte a passar por aqui. O processo começa amanhã.Vamos andar depressa. O grande júri inculpou directamenteMrs. Breel pelo que não temos necessidade de audiênciapreliminar. Não, nós não perdemos tempo. Lembre-se,Mr. Diggers, da importância do seu papel. Dependemostodos de si.O substituto, a mão no braço de Diggers, escoltou-o atéà porta, apertou-lhe efusivamente a mão e, fechando a portasobre o visitante, esfregou as mãos, visivelmente muito satisfeito.413CAPÍTULO XVI

O juiz Barnes, tomando lugar na sua cadeira, deitou paraa sala cheia um olhar marcado pela gravidade profissional ebaixou os olhos para os advogados já sentados nas suas mesas. Antes de iniciar os debates, a Corte deseja dirigir algumaspalavras aos senhores profissionais da Imprensa, aqui presentes.A Corte sabe que alguns juizes aplicam com toda a severidadea disposição que proíbe que se façam fotografias neste recinto.

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Resulta daí que os mais engenhosos representantes dos grandesjornais dissimulam aparelhos de objectiva rápida e tiram,clandestinamente, fotografias.Esta Corte foi sempre de opinião de que o grande públicotem o direito de ser mantido a par do desenvolvimento dosgrandes processos. A proibição de fotografar tem apenas comofim evitar a desordem inerente às explosões de magnésio.Consequentemente, senhores, nada de magnésio! Nada defotografias feitas no decurso das audiências, no sentido deperturbar os debates, distrair as testemunhas ou os defensores.Por outras palavras, senhores, a Corte entrega-se à vossadiscreção, ao vosso firme desejo de cooperar com ela. Em casode abuso, essa liberdade ser-lhes-á retirada, bem 'entendido.Senhores, estão prontos a começar o processo do Ministério Público contra Sarah Breel?A resposta veio dos dois lados.O juiz teve ainda um olhar para a mulher de cabelosbrancos sentada num carrinho, ao lado de Perry Mason,a perna direita ainda engessada. Parecia estar tão perfeitamente calma como o juiz. Está aberta a audiência.Já Mason estava de pé, muito grande, atraindo todos osolhares, como um imã. A defesa não pede outra coisa que não seja justiça,Vossa Honradeclarou com aquela voz sonora que, sem serpotente, alcançava todos os recantos da imensa sala. Ela414sabe que os factos falarão por si mesmo. E propomos à acusaçãoque admitamos sem discussão os primeiros doze juradoschamados. Você quer dispensar as perguntas habituais ? perguntou o substituto.Mason aquiesceu com um breve movimento de cabeça. E se, entretanto, eles têm'conhecimento do processo?Se têm já uma opinião formada? Pouco me importa volveu Mason. Tudo o que pretendo, são doze jurados, homens e mulheres inteligentes ehonestos. Todos os que vejo agrupados aqui satisfazem estasduas condições. Chame, pois, doze nomes. Aceitá-los-emos.Pouco importa que tenham, ou não, ideias preconcebidas.Larry Sampson pressentia uma armadilha. com Masonera preciso estar em guarda. Se se afastasse, pouco que fosse,da sua rota, encontrar-se-ia em águas perigosas, à mercê dosrecifes. Não respondeu. Não aceito a proposta da defesa ereservo os meus direitos.E, compreendendo subitamente que, agindo assim, parecianão partilhar a confiança de Mason na integridade e imparcialidade dos jurados, levantou a voz para acrescentar:-Não que eu duvide da honestidade ou inteligência de

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qualquer um destes homens ou mulheres, mas quero estarcerto... sim!... Quero dizer que entendo não renunciar aodireito de os interrogar.Mason virou-se para o grupo dos inscritos na lista dosjurados: Vamos então a isso, sr. substituto. Tem esse direito.Quanto a mim, renuncio a ele.O advogado sentou-se, pela primeira vez desde que o juiztinha ocupado o seu lugar, e inclinou-se para falar a Mrs. Breel. Não julga que os testemunhos que vão surgir nestetribunal poderão contribuir para lhe devolver a memória?415Não me lembro de nada retorquiu ela desde o nossoalmoço até ao momento em que acordei no hospital. Isto vai ser duro murmurou Mason. Vai ser necessário sofrer, sem titubear, os ataques do Ministério Público,os seus sarcasmos, as suas referências irónicas à sua falta dememória.Aguentarei replicou ela, sorridente.O escrivão chamou doze nomes. Sampson pôs os juradosao corrente da natureza do processo. Depois de ter feitoalgumas perguntas, o juiz virou-se para os advogados: Façam as suas perguntas, senhores. Analisem a qualidade dos futuros membros do júri.De pé, Mason estudou os rostos e sorriu. O defensor não tem nenhuma pergunta a fazer, VossaHonra disse ele.Suspirando, Sampson começou o seu exame, compreendendo que assumia um papel ingrato: parecia mostrar-sedesconfiado destes jurados. Impossível, entretanto, fazermarcha atrás. O silêncio da defesa privava-o de qualquerindicação, precisava de se cansar, perguntar a cada um dosjurados se tinha conhecimento do processo, se tinha tidooportunidade de formar uma opinião pessoal e exprimi-lapublicamente.Para sua grande atrapalhação, soube assim que um dosjurados, tendo lido os jornais, tinha declarado acreditar naculpabilidade de Mrs. Breel. Mas o homem, diante do sorrisodesarmante de Mason, apressou-se a garantir que estavapronto a abandonar qualquer opinião preconcebida e a darprova da maior imparcialidade.Sampson sabia, sem qualquer motivo para dúvida, que"Perry Mason devia, em boa lógica, recusar este jurado.Danava-se apenas por ser obrigado a fazer o trabalho que,no fim de contas, cabia ao advogado de defesa.O exame terminou e Mason levantou-se.Aceito o júri tal como está declarou. Parece-me416inteiramente satisfatório e renuncio a qualquer recusa. Os jurados podem prestar juramento.

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De novo, Sampson sentiu-se pouco à vontade. Tinhaesperado que uma meia sessão, pelo menos, fosse consagradaà formação do júri, e os debates iam começar menos de umahora depois de ter sido aberta a primeira audiência. Bemcontra sua vontade, via-se constrangido a estar na defensiva.Todavia, as primeiras palavras que pronunciou diante dojúri devolveram-lhe toda a confiança. Só a enumeração dosfactos devia bastar para dar confiança ao procurador maistimorato.A acusada tinha tido relações contínuas com a vítima.Encontrava-se muito perto de facto diante da porta dacasa onde tinha sido cometido o crime aproximadamenteà hora do assassínio. O roubo tinha sido o móbil do crime.A acusada fora encontrada na posse do revólver de quese tinha servido. Por outro lado, e compreendendo que aacusação teria algumas dificuldades em provar que a bolsa demão era realmente propriedade da acusada, Sampson insistiasobre este ponto o sapato da acusada estava manchado desangue humano, do sangue da vítima. A pessoa que tinhamorto Austin Cullens devia ter-se debruçado sobre o cadáverpara esvaziar as algibeiras da cinta e tirar os diamantes.Fazendo isto, o assassino tinha assinado a sua presençadeixando pegadas sangrentas no pavimento. Seriam submetidas à apreciação do júri fotografias dessas pegadas e tambémdo sapato esquerdo que a acusada calçava no momento emque tinha sido conduzida ao hospital. Só esse sapato bastariapara convencer os mais renitentes dos jurados, seria suficientepara provocar a condenação.Agradecendo ao júri a atenção que lhe tinha dedicado,Sampson sentou-se e Mason, reservando-se, chamou, comoprimeira testemunha, uma pessoa das relações de AustinCullens, que declarou brevemente que conhecia há muitotempo Austin Cullens e que este estava morto, que lhe tinha

27-VAMP. G. 2 417visto o corpo no momento da autópsia, que o corpo era bemo de Austin Cullens, residente no n.º 58 da rua 91, BoulevardSaint-Rupert.Sampson chamou o médico-legista, dr. Carl Frankel, queforneceu os resultados da autópsia, indicando o trajecto feitopela bala fatal no corpo e a causa da morte. Pode proceder ao interrogatório de contradiçãodisseo substituto.A que horas foi feita a autópsia, doutor? perguntouMason. Pelas três horas da manhã. Encontrou a bala causadora da morte de Austin Cullens ? Sim. Que lhe fez?

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Entreguei-a ao sargento Holcomb, da Secção Criminal,que estava a meu lado.Vejamos continuou negligentemente Mason trêshoras da manhã. Tinha duas autópsias a fazer nessa noite? Sim. A outra era a de George Trent, igualmente morto comuma bala. Sim, senhor. Fez essas duas autópsias ao mesmo tempo?Não, senhor. Fiz primeiro a de Austin Cullens, depoisa de George Trent. Logo a seguir à primeira?Assim mesmo. O sargento Holcomb assistiu aos dois exames? Sim, senhor. Não abandonou a mesa da operação nem sequer porum momento? Que tem isso a ver com a causa? perguntou Sampson. Procuro simplesmente informar-me replicou Mason,afável. Desejo saber o que aconteceu às balas.418 Sabê-lo-á quando chamarmos o sargento Holcomb paraDepor disse o ajudante. Que o médico-legista responda a esta pergunta, queserá a última. Nãodisse o dr. Frankel. O sargento não deixou oaposento. Esteve junto de mim durante as duas autópsias. Agradeço-lhe muito, doutor. Chamem Harry Diggers disse Sampson.Diggers veio tomar lugar. Claramente, com uma precisãofotográfica, descreveu o acidente do Boulevard Saint-Rupert.Acabava de passar a rua 91 e estava quase a meio do bloco.Um Sedan azul, parado junto do passeio, com o guarda-lamas da esquerda amolgado, arrancou subitamente, atirando-se brutalmente sobre a esquerda. A testemunhatinha-se visto obrigada, para evitar um choque, a virarviolentamente o volante para a direita. Nesse momento aacusada tinha descido do passeio para a rua, diante dasrodas do carro. Tinha levantado as mãos como para se proteger. A testemunha tinha torcido violentamente o volantepara a esquerda e o guarda-lamas atingira a mulherna perna, derrubando-a. Ela tinha caído por terra, desmaiada. A testemunha quis conduzi-la ao hospital maispróximo, mas outros automobilistas, que tinham parado,aconselharam-no a deixar essa responsabilidade à ambulância. Diggers tinha encontrado perto da ferida a suabolsa, de que saía quase metade do revólver. Tinha apanhadoo saco e insistido para que se procedesse a um inventário doconteúdo da bolsa, primeiro pelos assistentes, depois com osmaqueiros. Leu o inventário, indicou o número do revólver,

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que tinha apontado no seu caderno de apontamentos.Sampson observava atentamente o júri. Quando Diggerstinha lido o número da arma, os olhares, abandonando atestemunha, tinham-se dirigido ao defensor. bom sinal.Mason podia desenfardar as suas astúcias. Quando os juradosse inclinam para a frente para ouvir melhor uma testemunha419de acusação, e depois, com rostos duros, se voltam para olharcom fria indiferença o advogado de defesa, o veredicto estáconstruído, o processo está no saco.No fim do depoimento de Diggers, a Corte interrompeu-se,para almoçar, e Sampson teve de se conter para sair semmanifestar o seu júbilo.Uma enfermeira veio auxiliar Mrs. Breel a mudar deposição, para lhe evitar uma cãibra sempre possível. A feridasorriu a Mason. Olá! As coisas não se passaram muito maldisse ela.Espere pelo que se vai seguir.Então? É antes da alvorada que a noite se faz mais profunda.Virgínia Trent aproximou-se, alta, esbelta, austera.A expressão tensa do seu rosto contrastava com a calma quese lia no de Mrs. Breel.É um crime disse ela imediatamente arrastar aminha tia diante dos juizes quando ainda sofre com a sua pernapartida.O procurador aferrava-se a fazê-la julgar antes de elarecuperar a memóriadisse Mason.Não poderá apresentar um atestado médico e conseguirum adiamento?exclamou a rapariga.Sim, evidentemente que sim, mas tenho uma ideia queme parece melhor.Gostaria muito de saber qual.A de defender a sua tia antes de ela recuperar a memória.Mrs. Breel deitou ao advogado uma olhadela furtiva.Que significa?atirou Virgínia, indignada.Ou, se assim o preferir, correr o risco do julgamento naaltura mais favorável.Está bem certo disso?Explico-mecontinuou Mason.É actualmente quetenho mais possibilidades de obter uma absolvição. Qualqueratraso pode dar mais força à acusação.420Você já me disse e repetiu isso interveio Mrs. Breel. Pode precisar-me a sua ideia? Preferiria que depositasse em mim inteira e plenaConfiança respondeu o advogado, metendo os papéis napasta.Não insisto concluiu Mrs. Breel. Estamos em idade de saber tudo teimou Virgínia

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Trent, assim como em idade de partilhar todas as responsabilidades.Sarah Breel lançou um suspiro resignado.Deixemos então o meu defensor com as suas preocupações, Ginny.Os olhos de Virgínia brilhavam com uma luz perigosa.Dir-se-ia que você se ri de nós ambasdisse ela. Saiba,Mr. Mason, que na assistência a opinião geral é que sedesinteressou do processo.Não se preocupe com isso replicou o advogado, comum ligeiro sorriso no canto dos lábios. Devo confessar, aquientre nós, que sou de espírito preguiçoso. Guardo todas asminhas energias para o combate decisivo. Estes senhoresque defendem o terreno palmo a palmo cansam-se depressa,desperdiçam as suas forças. Queimam geralmente as asas. Oh! não se arrisque a queimar as suas comentou arapariga por cima do ombro. Parece-me até que está bastante morno. Sarah Breel não podia virar-se o suficiente para ver orosto de Mason e contentou-se em fazer, com a mão, um gestode confiança.Não dê atenção ao que a minha sobrinha diz, sr. doutor disse ela.É uma pessoa que leva a vida muito a sério.No fim de contas, a acusada sou eu. Vamos, Ginny.Paul Drake veio murmurar algumas palavras ao ouvidode Mason. Os homens do sargento Holcomb encontraram Mrs.Peabody.421 lone Bedford? Sim. Que fazem eles"? Nada. Vigiam-na, nada mais. Os meus homens estavamno seu lugar. Reconheceram os colegas da Secção Criminal. Não há sinal de vida de Pete Chennery? Nenhum. A mulher espera... Holcomb também nãose mexerá. Obrigado, Paul. Isso deixa-me numa situação muitoesquisita.Quando a audiência foi reaberta, às duas horas, Masoninterrogou por sua vez Diggers. Diz você que rodava a quarenta quilómetros à hora,Mr. Diggers? Sim, senhor. E a minha cliente desceu do passeio, atirando-se paradiante do seu carro? Sim, senhor. Decorreu muito tempo entre o momento em que eladesceu do passeio e aquele em que o seu carro a apanhou? Um ou dois segundos, no máximo.A minha cliente trazia, as mãos levantadas?

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-Sim. Mostre ao júri a maneira como as trazia.A testemunha levantou as mãos e manteve-as abertas aonível da cabeça. Como se quisesse empurrar o carro, detê-lo? Exactamente. Você viu-lhe as duas mãos?-Vi. Ela trazia luvas? Sim, luvas pretas. Está certo de ter visto nitidamente as duas mãos?Absolutamente certo. E ela trazia luvas?422 Sim, senhor. Das duas mãos, qual era aquela que via melhor?Pressentindo uma armadilha, a testemunha enervava-se.Via as duas, tão bem uma como outra. Ela estava defrente para mim. Trazia as mãos à frente, como para se proteger.Mason pareceu aceitar a derrota e abandonou o interrogatório com o mau humor de quem é obrigado a baterem retirada para evitar a derrota. Depois de ter derrubado esta mulher, travou? Sim, senhor... quer dizer que travei antes do acidente... Compreendo disse Mason. Onde estava ela quandoo carro se imobilizou? Parei no momento preciso do choque. Ela estava nochão, junto da roda traseira, à direita. Você saiu pela direita? Não, senhor, pela esquerda, do lado do volante. Então teve de dar uma volta ao carro? Sim. Pela frente ou pela retaguarda? Pela retaguarda. Que fez então? Baixei-me, tomei o pulso da mulher e tentei transportá-la para o passeio. Alguns transeuntes vieram ajudar-me. Conhecia essas pessoas? Não, mas tomei nota daquelas que assistiram ao inventário do conteúdo da bolsa. Ah sim! comentou Mason negligentemente. Vejamos, você estava naturalmente muito enervado? Um pouco abalado, mas não perdi a cabeça. E recorda-se de tudo com tanta nitidez? Tudo isto está gravado na minha memória. Foi depois de ter deitado a ferida no passeio que sedeu conta da bolsa, no chão, na calçada? Não, senhor. Já a tinha visto quando a acusada desciado passeio.423

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Já o advogado saltava da sua cadeira.Julgava eu gritou em voz tonitruante que a acusadalevantava as mãos enluvadas como para se proteger dochoque; que você tinha visto distintamente as duas mãos.Quer explicar ao júri como é possível que ela mantivesse abolsa nas mãos abertas?Diggers esperou, pacientemente, que o advogado terminasse. Depois, virou-se para o júri, como Sampson lhe tinharecomendado.É muito simples, senhor. Ela deixou cair a bolsa quandolevantou as mãos. A bolsa ficou no passeio, no sítio onde caiu. E no lugar onde tinha estado o carro azul? Sim, senhor. Então como pode saber que essa bolsa não foi atiradapor qualquer ocupante desse carro? Porque vi a acusada com ela na mão. Foi a primeiracoisa em que reparei. Se a bolsa tivesse sido abandonadapelos ocupantes do carro azul, senhor, teria sido necessárioque a acusada mergulhasse debaixo daquele carro, paravoltar ao passeio antes de voltar a descer para se atirar paradebaixo das minhas rodas. Onde estava o revólver, esse "38" de que falou ao júri ? Saía da bolsa. Não estava ao lado da bolsa? Não.Mason sentou-se.Agradeço-lhe muito disse. É tudo.A testemunha pode retirar-se anunciou Sampson numtom onde se percebia a satisfação.O substituto chamou seguidamente um dos maqueiros,que conheceu a bolsa e o conteúdo. Mason não lhe fezqualquer pergunta e Sampson deu um suspiro de alívio.O obstáculo mais difícil estava ultrapassado. A defesa tinhasido forçada a inclinar-se diante dos factos. Carl Ernest Hogan!424A nova testemunha veio declinar a sua profissão: peritode balística junto dos serviços da polícia. com a elegantebrevidade do homem que se sente perfeitamente à vontadeno tribunal, Hogan identificou a bala atirada, a título deexperiência, com o revólver encontrado na bolsa de SarahBreel, a que lhe tinha sido entregue pelo sargento Holcombcomo sendo o projéctil fatal, e exibiu a ampliação de umamicrofotografia mostrando as marcas deixadas no metalpelas estrias do cano. A prova era formal. Um relancebastava para se verificar que as suas balas provinham damesma arma. Tinha-se tentado encontrar o proprietáriodesta última com o auxílio dos números. A tentativa tinhasido infrutífera: o armeiro tinha destruído os seus arquivose a compra devia datar de há muitos anos. Em todo o caso,

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não tinham tentado fazer desaparecer o número.É a sua vez de interrogar a testemunha disse Sampson,triunfante.Tinha-se encostado na cadeira, seguindo vagamente oruído monótono das perguntas e das respostas. Não, a testemunha não podia, em sua consciência, garantir que esterevólver tivesse sido encontrado na bolsa. A arma tinha-lhesido entregue pelo sargento Holcomb da Secção Criminal.Todavia a testemunha tinha verificado o número: conferiacom o que Diggers tinha anotado na altura do acidente.Não, a testemunha também não podia garantir que abala fosse realmente a que tinha provocado a morte. Pareciaque o projéctil tinha sido extraído do corpo da vítima pelomédico-legista, para ser entregue ao sargento Holcomb, quepor sua vez o tinha dado à testemunha.Larry Sampson, receando que alguns dos jurados se deixassem perturbar, aproveitou o momento para intervir:Nós não apresentamos esta bala como peça de convicção, Vossa Honra. Identificámo-la diante da Corte, nadamais. Caberá ao sargento Holcomb o desfazer o último anel425da cadeia. E então, e só então, nós apresentaremos a balaagente da morte."O juiz aprovou com um sinal de cabeça.A propósito, Mr. Hogan perguntou Mason entregaram-lhe, creio eu, as duas armas para analisar ao mesmotempo ? Sim, senhor. Dois revólveres do mesmo calibre "38"? Sim, senhor. Mas de marcas diferentes. Eu sei volveu Mason. Quero simplesmente precisardiante do júri as condições em que se realizou o seu exame.Uma das armas era a que serviu para matar George Trent,se não estou em erro? Não lhe posso dizer replicou Hogan, sorrindo. Seiapenas o que o sargento Holcomb me disse quando meentregou as duas armas. O meu papel limitou-se a compararas balas de ensaio às que provocaram a morte das vítimas.O juiz sorriu. Larry Sampson exultava. Se Mason pensavapoder apanhar em falso um perito tão cauteloso como Hogan,estava redondamente enganado. Hogan era um adversáriotemivel, que devolvia golpe por golpe com uma rapidezdesconcertante. Diga-me continuou Mason se se recorda de ter primeiro comparado uma bala vinda do revólver que, segundoo sargento, matou Trent proveniente, sempre segundo o sargento, da bolsa da minha cliente?Hogan reflectiu, sobrolhos franzidos. Tanto quanto me posso recordar, descarreguei primeiroeste revólver que vê aqui. Depois disparei uma bala da arma

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que, de acordo com o sargento, serviu para matar George Trent. E, comparando as balas, qual foi a ordem que seguiu? O sargento entregou-me primeiro uma bala que comparei a uma bala do revólver da sua cliente respondeuHogan. Creio que declarei ao sargento que os dois projécteis não vinham da mesma arma...426 Muito justo interrompeu Mason. Permita-me, peço-lhe, que termine o meu depoimento retorquiu Hogan em tom azedo.--Desculpe-me disse o advogado. Julguei que já tinhaacabado. Não. Fiz apenas notar ao sargento que esta bala nãotinha sido atirada por este revólver." É evidente respondeu-me o sargento; entreguei-lhea bala retirada do cadáver de Trent. Depois do que comparei esta mesma bala com a balade ensaio disparada com o revólver do caso Trent e encontrei-as idênticas. Comparei- depois a bala que ele me tinhaindicado como oriunda do corpo de Austin Cullens e encontrei-a idêntica à bala de ensaio disparada com o revólverque está a ver nesta mesa. Está bem volveu Mason, com ar sombrio. Chamem William Golding disse Sampson.O homem avançou e prestou juramento. O seu rosto erao de jogador profissional, frio, inexpressivo, não traindonenhum dos seus pensamentos.Golding declinou o seu nome e endereço. Profissão ? perguntou Sampson. Sou gerente de um restaurante: O Prato de Ouro. Conhece a acusada, Sarah Breel? Sim. Conhecia o morto, Austin Cullens? Sim. Quando foi que o viu pela última vez? Na tarde do dia em que foi assassinado. Onde foi isso ? No Prato de Ouro, no meu estabelecimento, cerca dassete da noite. Foi, um pouco mais tarde, a casa de Austin Cullens? Sim. Cerca das oito horas.Acompanhado por quem?427Miss Eva Tannis.Que fez você? Fomos de carro até ao nonagésimo primeiro bloco doBoulevard Saint-Rupert. Miss Tannis conduzia. Paroudiante da casa de Mr. Cullens.Podiam ver a casa? Sim. Evidentemente.

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Havia luz ali?Não. Que se passou então? Ia descer do carro quando vi as janelas iluminarem-sepàlidamente. Minha mulher... oh!... Miss Tannis pensouque se tratava da luz de uma lanterna de algibeira... Pouco importa o que um terceiro pudesse acreditarou pensar interrompeu precipitadamente Sampson. Quefoi o que você viu, pessoalmente? Uma luz fugitiva numa janela, por várias vezes. Depoisouvi dois tiros e vi uma mulher sair da porta da casa e correrpara o meu carro.Reconheceu essa mulher?Reconheci. Quem era ela?Num silêncio que se teria ouvido o zumbido de umamosca, Golding levantou dramaticamente o indicador edesignou Sarah Breel:Aquela mulher disse ele.A que está sentada no carrinho? Sim, senhor substituto. Que fez ela? Corria para nós. Miss Tannis disse-me... Pouco importa, Mr. Golding. Que fez o senhor? Fiquei sentado no carro. Miss Tannis arrancou. Onde estava a acusada quando a viu pela última vez? A seis passos da borda do passeio, correndo em direcção à calçada.428 Corria depressa?Sim. Pode interrogar a testemunha disse Sampson a PerryMason. Porque se afastaram assim tão depressa, você e MissTannis?perguntou o advogado. Porque não queríamos ver Mrs. Breel. E não queriam que ela os visse?Não. Porquê?Porque queria falar sem testemunhas a Mr. Cullens.Você abriu, por cima do seu restaurante, uma salade jogo?continuou Mason.Sampson levantou-se bruscamente. Esta pergunta, Vossa Honra, é inconcebível. O advogado de defesa procura desacreditar as testemunhas aosolhos dos jurados insinuando-lhes, tendenciosamente...Defiro o seu requerimento, sr. procuradordecidiuo juiz.Mason sorriu.Vou então pôr a pergunta sob uma outra forma, Vossa

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Honra. Mr. Golding é exacto que, nessa tarde, Mr. Cullenso tinha ido visitar para falar de uns certos diamantes empenhados por George Trent para cobrir uma grossa perdaao jogo na sua sala de jogo clandestina, O Prato de Ouro?Vossa Honraclamou Sampsonoponho-me a quehaja resposta para esta pergunta. A atitude do advogado dedefesa é intolerável. O advogado de defesa merece umaadmoestação da Corte, que já decidiu...Não é exacto interrompeu o juiz. Podia considerar-sea primeira pergunta como tendenciosa e própria para impressionar desfavoravelmente o júri evocando factos alheios àcausa. A segunda, tal como está feita, evoca uma conversahavida entre Mr. Cullens e a testemunha na noite do crime.A testemunha admitiu já ter falado com Cullens, e o defensor429tem o direito de lhe perguntar o tema dessa conversa, tantomais que ela tem certa relação com o processo. A testemunharesponderá à pergunta assim formulada.Lentamente, Sampson serenou. É exacto, senhor disse Golding, impassível. E George Trent tinha efectivamente perdido ao jogo,no Prato de Ouro? Sim. Ele deu-lhe os diamantes como garantia das quantiasdevidas à sala de jogo? Não, senhor. Em nenhum momento? Não, senhor. Devo compreender que não recebeu os diamantes deMr. Trent como garantia de uma dívida de jogo ? É assim mesmo, senhor. Não recebi nada. Nem por nenhuma outra dívida ? Por nenhuma dívida, senhor.Afirma não ter penetrado na casa de Austin Cullens,no Boulevard Saint-Rupert? Sim, senhor. Parou apenas diante da porta? Não desceu do carro? Não, senhor. Está absolutamente certo de que a bolsa encontradano pavimento, ao lado da minha cliente, não vinha do seucarro ? Absolutamente certo. E o revólver a respeito do qual o autor do acidente,Diggers, testemunhou, não esteve em nenhuma altura danoite em seu poder? Não, senhor.Não caiu, ou não o atirou você do carro? Não, senhor. E Miss Tannis também não? Também não.

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430 Mas continuou Mason fixando a testemunha nosOlhos você estava, como já o admitiu, a alguns passos dacasa de Cullens, na noite do crime. Você estava lá, pois queouviu o ruído dos dois tiros, que vinham verosimilmente dedentro de casa. Sim, senhor. E você não é capaz de dar uma explicação qualquerda sua presença em tal lugar a não ser aquela que já deu ? Não. O seu carro era na verdade um Sedan azul, com opára-lamas esquerdo da retaguarda amolgado? Sim. E sabe que a testemunha Diggers declarou ter vistoesse carro parado junto do passeio, na noite do crime? Sim. E tratou de se afastar imediatamente? Sim. Porquê? Não queria, comparecer no tribunal. Por que razão? Desejava estar à margem de todo este negócio. Tenho,uma casa de jogo. Esta publicidade vai-me arruinar. A políciavai-me fechar o estabelecimento. Esse desejo de não aparecer não viria de você estarembrulhado, de perto ou de longe, neste assassínio?Não. Está bem. Agradeço-lhedisse Mason. Chamem o sargento Holcombdisse Sampson.O sargento aproximou-se a grandes passos. A sua atitudemarcava claramente o seu total desprezo pela acusada epelo defensor. Era visível que sabia exactamente o que iadizer e estava disposto a não se deixar intimidar ou manobrarpor um advogado. Sentou-se e cruzou as pernas. Lia-se-lheno rosto a segurança fácil do homem que se sente perfeita-431mente em sua casa, num círculo que lhe é familiar. Tevepara Larry Sampson um olhar eloquente que significava:"Comece lá, meu rapaz. Estou à sua espera."O substituto afadigava-se já, dando o último retoque aoseu processo.O sargento declarou ter encontrado o cadáver de AustinCullens, estando presentes Perry Mason e Paul Drake, detective particular; assim como uma moeda de cobre metida nosuporte de uma lâmpada. Exibiu, uma após outra, as fotografias mostrando o salão de Austin Cullens, o corpo, o rastode sangue levando do cadáver à porta de entrada. Maistarde, Larry Sampson utilizaria as fotografias, para o efeitofinal, para o toque dramático que eliminaria as últimasindecisões do júri. Compararia as impressões sangrentas

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encontradas no pavimento do salão às que tinham sidoencontradas na sola do sapato esquerdo de Mrs. Breel. Demomento, só podia desejar um depoimento sem relevo dosargento, que lhe permitisse usar junto do júri efeitos dramáticos. Para terminar, apresentou a bala fatal.O sargento identificou-a. Tinha estado ao lado do médicodurante todo o tempo que durara a autópsia, tinha-ovisto, com os seus olhos, extrair a bala do corpo de AustinCullens. Tinha recebido a bala das mãos do médico, paraa entregar a Hogan, encarregado da peritagem. Tinhatambém assistido aos testes do perito. A bala fatal tinha sidoatirada pelo revólver encontrado na bolsa da acusada.Agora é consigo disse Sampson a Perry Mason.Desde há quanto tempo está adstrito à secção criminal,sargento?perguntou o advogado.Há dez anos.Em dez anos, deve ter-se podido familiarizar com atécnica das investigações criminais?Evidentemente. Sabe aquilo que se deve fazer quando entra numquarto onde se cometeu um crime?432Julgo que sim. Revistou as algibeiras do morto, sargento?Esperei que chegasse o magistrado. Não tocámos nocadáver antes de ele ter chegado. E depois inventariou o conteúdo das algibeiras do morto? Sim. Encontrou uma cinta de pele de camelo debaixo dacamisa? Sim.Havia jóias nessa cinta? Sim, ainda restavam algumasrespondeu o sargento. Mrs. Breel tirou os diamantes que estavam nas algibeirasda frente e meteu-as na bolsa.Tem a certeza, sargento? Como o sabe você? Por Deus, suponho-o... Estou há mais de dez anos nasecção criminal e não é preciso ser um grande técnico...A Corte reprova as considerações da testemunhainterrompeu o juiz. Lembra-se ainda do que havia nas algibeiras do morto? perguntou o advogado.Posso responder consultando as minhas notas.Então faça favor.O sargento tirou um caderno de apontamentos da algibeira. Que havia no bolso superior esquerdo do colete?Uma caneta de tinta permanente e um pente pequeno. Na algibeira esquerda das calças? Um lenço e um canivete. E no bolso direito das calças?

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Nada.-Nada? Como já disse. Mesmo nada? Quando digo nada, é nada, Mr. Mason. Não perceboa diferença que faz entre nada e mesmo nada.28-VAMP. G. 2 433 Deixemos isso. Você assistiu à autópsia praticada pelodr. Frankel no corpo de Austin Cullens e, imediatamentea seguir, à do cadáver de George Trent. É realmente assim? Perfeitamente.Você não deixou a sala de operações desde o início daprimeira autópsia até ter terminado a segunda? Não. Recebeu das mãos do dr. Frankel uma bala encontradano corpo de Austin Cullens? Sim, senhor.Agora, a fim de simplificar as coisas, sargento, demos, senão vê inconveniente, a esta bala o nome de Cullens e aorevólver de calibre 38, que a testemunha Diggers declarater encontrado na bolsa de Sarah Breel, acusada, o revólverBreel. Está a perceber-me? Sim, senhor. Pois bem, que fez você da bala Cullens?-Metia-a no bolso esquerdo do meu colete. Alguns minutos depois, você recebia, sempre das mãosdo dr. Frankel, uma bala encontrada no corpo de GeorgeTrent, não é verdade? Sim, senhor. Chamemos a este segundo projéctil a bala Trent.E, visto que se assevera que esta bala foi disparada por umrevólver encontrado numa gaveta da secretária de Trent,chamemos a essa arma o revólver Trent. Está ainda a perceber-me? Muito bem. Perfeito. Que fez você da bala Trent? Pu-la na algibeira direita do meu colete. E depois ? Que fez você ? Dirigi-me imediatamente ao serviço de balística e pedia Mr. Hogan que disparasse balas de ensaio com o revólver. Como é possível perguntou afàvelmente Mason quevocê tenha confundido os dois projécteis?434 Que eu tenha... o quê?exclamou o sargento, saltandoda cadeira como impelido por uma mola. Não confundiabsolutamente nada. Era o que eu pensava continuou Mason. Não entregou você a bala Trent para a fazer comparar às balas deensaio do revólver Breel? Nunca, mas nunca!

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Parecia-me que Mr. Hogan tinha dito qualquer coisade muito semelhante quando fez o seu depoimento. É absolutamente falso! É ridículo!gritou o sargento,o rosto vermelho-tijolo e meio levantado na cadeira comopara dar mais força às suas afirmações. Qualquer insinuação desse género é uma mentira deliberada. A sua... Basta, sargento interrompeu Sampson levantando-sebruscamente da sua cadeira. Compreendo os seus sentimentos e a sua indignação, mas não deve perder de vista quefala aqui na qualidade de testemunha. Modere-se, pois, equeira responder respeitosamente às perguntas de Mr. Mason. A testemunha é um oficial de políciadisse com forçao juiz. Conhece sem qualquer dúvida muito bem o procedimento das Cortes de justiça. Fará, portanto, o favor deresponder às perguntas que lhe são feitas, abstendo-se dequalquer comentário, de qualquer recriminação.O sargento fechava os punhos. Brilhavam-lhe os olhose a sua face era a de um homem que tivesse retido o fôlegodurante muitos segundos. Continue, doutordisse o juiz. Você entregou a Mr. Hogan a bala Trent, pedindo-lheque a comparasse à bala de ensaio disparada pelo revólverBreel, não é verdade, sargento? Em nada! Então que fez você, sargento? Tirei a bala Trent do bolso e entreguei-a a Hoganpedindo-lhe para a comparar. Não disse com qual revólver.Hogan comparou-a primeiro com a bala de ensaio do revólver435Breel. Como era natural, as duas balas não tinham nada decomum. Chamou-me a atenção para o facto e respondi-lhe:"Naturalmente." Depois comparou-a à bala de ensaio dorevólver Trent e verificou-se que as marcas das balas eramidênticas. Para terminar, entreguei-lhe a bala Cullens que elecomparou à bala de ensaio do revólver Breel, e encontroumarcas idênticas nas duas balas. Aqui estão os factos, e nãoconseguirá embrulhá-los, Mr. Perry Mason! Basta, sargento interveio severamente o juiz. E não é também um facto, sargento continuou oadvogado, que você confundiu as duas balas? Não entregouem primeiro lugar a Mr. Hogan a bala Trent, com a impressãode que se tratava da bala Cullens?Não, senhor. Já lhe disse, e volto a repeti-lo, e repeti-lo-ei cem vezes, que meti a bala Trent no bolso direito. E, quando entregou esses projécteis ao perito de balística,tirou primeiro a bala do bolso direito?-Sim. Porquê ? É um gesto muito natural num indivíduo direito, comoEu respondeu o sargento.

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Mason sorriu. Nesse caso, sargento, e aplicando o mesmo raciocínio,não seria também natural, para um direito, colocar o objectoque se lhe entrega no bolso direito, só utilizando o bolsoesquerdo em segundo lugar?O sargento corou sem responder imediatamente, depois,dominando-se: Não falo do que é natural quando lhe digo onde metias balas. Repito-lhe que meti a bala Cullens no meu bolsoesquerdo e a bala Trent no bolso direito. Se bem que tenha recebido a bala Cullens em primeirolugarinsistiu Mason e que a sua tendência natural olevasse a metê-la no seu bolso direito, você meteu-a no bolsoesquerdo ?436Apesar de tudo quanto possa dizer para ludibriaro júri e perturbar o meu entendimento...Sargento Holcomb!exclamou o juiz. Mais umapalavra e, ver-me-ei obrigado a processá-lo por insultos àmagistratura. Queira responder, apenas, às perguntas eabster-se, de uma vez para sempre, de qualquer comentário.Responda à pergunta de Mr. Mason!Meti a bala Cullens no meu bolso esquerdo e a balaTrent no direito repetiu Holcomb, obstinado e rabugento.Não há nenhuma possibilidade de se ter enganado?Nenhuma.Uma num milhão?Nem uma num bilião.Mason teve um gesto resignado que dispensava a testemunha.Está bem, agradeço-lhe.Sampson teve um largo sorriso na direcção do júri. Chamem Eva Tannis.A mulher respondeu numa voz baixa, muito calculada.Dir-se-ia um tigre-fêmea procurando adoçar a pata. Elalimitou-se apenas a confirmar os mais simples pormenores dodepoimento de Bill Golding.Agora é consigo disse Sampson, preparando-se paraprotestar indignadamente contra todas as perguntas que oadvogado fizesse. Não tenho nada a perguntar à testemunha respondeueste. Renuncio ao meu direito de interrogar.A Corte interrompeu-se e Mason, cercado de jornalistas,defendia-se de ter pretendido 'perturbar os movimentos dosargento Holcomb. Desejava apenas estabelecer os factos disse ele. Nada ,mais.Evitando a sua cliente, saiu discretamente para almoçar.Voltou às duas horas para ouvir Sampson declarar que adefesa ia pronunciar o seu requisitório.437

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Desejo, em primeiro lugar interveio o advogadofazer uma breve declaração ao júri.Levantando-se, foi-se colocar diante da barreira queseparava o lugar dos jurados. E, em tom calmo, cortês e muitosimplesmente, começou: Senhoras e senhores, permito-me recordar-lhes que aacusada não tem de provar a sua inocência. Ela não teve,todavia, nem o tempo, nem os meios de proceder à investigação que lhe teria permitido provar que não assassinouAustin Cullens. É ao Ministério Público, ao procurador,que cabe provar de maneira peremptória que ela cometeueste crime. No caso de a acusação se encontrar impossibilitada de o fazer, a acusada tem o direito de ser posta emliberdade. Ora toda a argumentação do procurador sebaseia no facto de o revólver que Diggers encontrou, ao queele diz, na bolsa de Sarah Breel, e que nós chamamos o revólverBreel, ser aquele que disparou a bala que matou AustinCullens. Esperamos vir a provar que há neste facto umaimpossibilidade material. Esperamos estabelecer, matematicamente, que foi este revólver que matou George Trent.E, da mesma forma, queremos demonstrar que o revólverTrent matou Austin Cullens.Sem parecer reparar na estupefacção pintada nos rostosdos jurados, Mason virou-se para o substituto. Poderá, Mr. Sampson, confirmar-nos aqui que GeorgeTrent foi morto na tarde de sábado, entre as duas e as sete emeia da tarde? Que, de acordo com os cálculos do médicoque fez a autópsia, a morte deve ter sobrevindo por volta dascinco horas?Sampson hesitou. Todos os olhares convergiam para ele.Era preciso não hesitar, contudo. Era necessário responderdepressa, afectar não procurar mais que a verdade, a justiça...Mas estendiam-lhe uma armadilha, pela certa. Qual? Experimentava uma bizarra sensação de vazio no estômago.Apesar de tudo, o sargento poderia ter...438Porque continuou docemente Masonno caso de nosnão poder dar esta garantia, ver-nos-íamos obrigados achamar à barra as suas próprias testemunhas, assim comoas nossas, uma após outra, no sentido de estabelecer, semcontestação possível, que George Trent foi ferido com umabala de calibre "38" pelas cinco horas da tarde.Sampson ainda hesitava. Zumbiam-lhe os ouvidos,assaltavam-no mil pensamentos numa confusa mistura.Se Mason tivesse razão... Mas não! Era impossível... Existiriaalgum erro... parecia haver qualquer coisa a esconder...Era preciso decidir-se e depressa!Aguardo a sua resposta, sr. substituto.Larry Sampson inspirou profundamente. Confirmo-o disse. Mas sem tomar qualquer opinião

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a propósito das balas ou dos revólveres. A acusação aceitaintegralmente o depoimento do sargento Holcomb.Assim o compreendi desde início respondeu polidamente Mason. A minha primeira testemunha será otenente Ogilby.O tenente avançou com passo marcial. Declarou sertenente do activo do Exército dos Estados Unidos e, como tal,interessar-se particularmente pelo tiro de revólver. ConheciaVirgínia Trent, sobrinha de George Trent. De tempos atempos, os dois jovens iam passear para o campo; tinha ensinadoa sua companheira a atirar com o revólver. A arma de regulamento era muito pesada para a rapariga, pelo que ela levavaconsigo o revólver de seu tio, arma ligeira, disparando umabala comumente designada como "38 curto", de que ela seservia com facilidade. Ela tinha aproveitado as lições, transformando-se numa atiradora emérita. No dia do assassíniode George Trent, o tenente tinha vindo buscar a raparigade automóvel. Ela tinha tirado o revólver da gaveta de cimada secretária do tio, que saíra para almoçar. A testemunha tinha-o visto a almoçar num restaurante vizinho.A testemunha e Virgínia tinham-se dirigido para as colinas439que cercam a cidade e disparado uns cinquenta tiros sobrealvos diversos. A testemunha regressara com a sua companheira por volta das seis da tarde. O sr. substituto quererá mostrar a arma encontradana gaveta da secretária do escritório de George Trent?perguntou delicadamente Mason. Assim como aquela quese declara ter servido para matar Austin Cullens? Queriapedir à testemunha para identificar esse revólver. Isso vai levar alguns minutos respondeu Sampson. Muito bem. A Corte aproveitará para suspender aaudiência.A Corte julgou-o conveniente. Os jornalistas aproveitaram para inundar Mason de perguntas. Os espectadores,sentindo a importância do debate, recusaram-se a abandonaros seus lugares. Os jurados desfilaram diante de Mrs. Breel,mas os seus olhares já não eram hostis. Lia-se neles a curiosidade, o interesse, mesmo a simpatia, em alguns deles.Perry Mason ficou sentado à sua mesa, sem se afastar daatitude modesta de técnico que apenas tem por fim esclarecera opinião dos jurados, para os ajudar a cumprir a sua missão.com o dedo, Mrs. Breel chamou o seu defensor que,levando consigo a cadeira, foi sentar-se junto dela. Sabe bem o que está a fazer, Mr. Mason?perguntouela em voz tensa.Julgo que sim respondeu o advogado. Esperavapoder impedi-los de provar que a bolsa apresentada é realmente a sua. Tive de me lançar na segunda linha de defesa. Tenho bem a impressão prosseguiu Mrs. Breel sempre

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muito calma que você vai saltar da panela para o lume. Isso alterará um pouco as coisas, apesar de tudoretorquiu Mason, sorridente.Ela reflectia. Sabe, Mr. Mason, que, esforçando-me nesse sentido,talvez consiga recuperar parcialmente a memória e lembrar-medo que se passou desde sábado?440Não se esforce, cara senhora.Porquê? Não quer que eu me recorde? Não é necessário. Certas pessoas poderiam achar bem. Não sei nada disso disse Mason. Procedo logicamente e é tudo. Quem sabe o que daria uma referência àsidas e vindas de cada um de nós na tarde de sábado! Você conhece a sua profissão melhor do que eu, estámuito certo, Mr. Mason, mas não julgo que um único juradoacredite na sua teoria de uma confusão de balas. Este sargentoé excessivamente afirmativo e tem uma grande experiência. Sim respondeu simplesmente Mason. Que quer você dizer? Na minha opinião explicou o advogado com um ligeirosorriso de ironia ele é muito afirmativo e conhece muito bema sua profissão.Sarah Breel riu-se. Promete-me ao menos que vai ser prudente murmurouela. Não receie nada disse o advogado batendo-lhe na mão e deixe-me as preocupações do processo. Já tínhamos combinado isso. Virgínia recusou-se a aceitar. Está bem! Então entretenha-se a" remoer as suasinquietações à sua vontade! replicou Mason.Sarah Breel lançou-lhe um olhar perplexo. Mas o advogado, que apenas tinha querido, sem dúvida, brincar", voltouà sua mesa e pôs-se a classificar os papéis,Cinco minutos depois, a Corte recomeçou a audiênciae Ernest Hogan, o perito de balística, avançou: Peço disse ele que se inscreva na acta que aceitei,apenas para servir a justiça, que se entregasse à testemunha,para exame, o revólver n.º 7-9362. O escrivão pode anotartambém que não renuncio à posse desta peça de convicçãosob nenhum pretexto, dado que me foi confiada.441É muito justo disse Mason. Deve conservar esta peçaque deve aparecer no processo do assassínio de George Trent. Efectivamente volveu Hogan. Tenente Ogilby, posso perguntar-lhe se já viu, estaarma?Já a vi, é exacto.

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É este o revólver que Virgínia Trent levava com ela natarde de sábado em questão? O mesmo. É exactamente o mesmo de que ela se serviu para atirarao alvo em sua companhia?Já Sampson saltava, as garras completamente saídas. Como pode o tenente reconhecer esta arma, sem qualquer dúvida, só com uma vista de olhos ? É impossível. Comopode identificá-la sem recorrer ao número de fabrico?O tenente sorriu. Perdoe-me, Mr. Sampson, mas acontece que conheçomuito bem as armas de fogo. É a minha especialidade, o meuviolino de Ingres, se assim o quiser. Estes revólveres são,permita-me que lhe lembre, tão idênticos à saída da fábrica,como os carros de uma mesma série se parecem quandosaem a porta da fábrica. Mas com o uso, e muito depressa,surgem certas diferenças. Assim, o revólver que tenho na mãoatirava muito baixo, e tive de dar uma limadela na mira.Ainda se vêem os sinais. Por outro lado, e para mais segurançae por me ter sido pedido por Mr. Mason, voltei ao lugar ondeatirámos ao alvo, e juntei as cápsulas vazias picadas pelorevólver, durante o treino. E para que servem essas cápsulas? perguntou sarcàsticamente Sampson. Vai já sabê-lo, sr. substituto. Antes da ciência da balística nos ter ensinado a identificar as balas comparando asmarcas deixadas pelas estrias do cano, o único método quepermitia determinar com certeza se a bala tinha sido disparadapor determinada arma era centrar a marca do percutor442sobre o fulminante. Teoricamente, o percutor toca no centro.Na prática, não acontece assim. E mais ainda, no uso, qualquerpercutor apresenta caracteres que lhe são próprios. E nãoquero falar aqui unicamente da localização da marca, mastambém das ligeiras irregularidades que apresenta e que opersonificam, de qualquer maneira. Pude certificar-me de quequalquer destas cápsulas foi realmente picada pelo revólverque tenho na mão. Ele não estava à sua disposição observou Sampson. Não, mas tinha uma fotografia do tambor, que me foifornecida por um jornal e que tenho todas as razões parajulgar autêntica. Um minuto, sr. substituto, vamos proceder auma verificação suplementar.Tirando do bolso uma cápsula, e fazendo girar o tambordo revólver, apresentou o conjunto a Hogan.Você é perito. Faça favor de comparar.Hogan inclinou-se. Oponho-me a este exame. A testemunha só deve responder às perguntas feitas disse Sampson. É o seu perito disse Mason com um doce sorriso.

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Pode fazer-lhe abandonar a barra, se assim o quiser.Hogan recuou alguns passos, consultou Sampson com osolhos e dirigiu-lhe um sinal de cabeça quase imperceptível.Aproxime-se do júridisse Mason ao tenente Ogilbye mostre-lhe as marcas deixadas pelo percutor na cápsulaque ainda está no tambor da arma e as marcas existentes nascápsulas apanhadas no local onde se treinaram no tiro.O oficial avançou. Os jurados inclinaram-se, atentos,verificando a similitude das impressões do percutor.Sampson conversava em voz baixa com Hogan. E, levantando a cabeça: É tudo disse ele. Não tenho perguntas a fazer àtestemunha.Já não compreendia nada. Os factos empurravam-se,chocavam-se, atordoavam-no. Desejaria deter o curso dos443seus pensamentos, fazer o ponto, mas a confusão em que tinhao espírito não lhe permitia. Tinha a impressão de estar numapequena estação do "metro", de ver passar diante dos olhoscomboios directos com um barulho de trovoada, tentandoem vão detê-los. Estavam a olhá-lo, adivinhava-o, estarrecido.O juiz parecia perplexo. Mason sorria. Os jurados fixavam-no.A cabeça girava-lhe. Invadia-o uma náusea. Tinha a boca seca,amarga.Mason falava. Ouvia-o confusamente.E agora, com a autorização da Corte, tendo demonstrado que George Trent não pode ter sido morto com orevólver designado sob o nome de Trent, é fatal que o tenhasido com o revólver Breel, pois sabemos já que existem apenasdois revólveres, e apenas duas balas mortais, a bala Trent e abala Cullens. A bala encontrada no corpo de Trent corresponde à bala de ensaio disparada por um dos dois revólveresque estão em poder do gabinete de balística. E, não tendo sidocom a bala de ensaio disparada pelo revólver Trent, é precisoque o tenha sido com a outra, com a disparada com o revólverBreel.Para terminar, Vossa Honra, e tendo em linha de conta ascircunstâncias, vou pedir que o júri seja autorizado a deslocar-seà casa de Austin Cullens para visitar o local do crime.O primeiro impulso de Sampson levou-o a combater.E com que fim, Vossa Honra? Que benefícios se poderãotirar de semelhante visita? Que está então a procurar esconder?perguntouMason. Nada volveu lastimàvelmente Sampson.Então, sr. substituto, que receia?Um momento, Mr. Mason interveio o juiz. Queiradirigir-se à Corte e abster-se de qualquer discussão com aacusação. Qual a razão que o leva a requerer esta deslocaçãodo júri?

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É muito simples, Vossa Honra. Esta arma que a teste-444munha Diggers declara ter encontrado na bolsa de Mrs. Breelprovém na realidade do bolso de Austin Cullens. Já teráreparado que, segundo o depoimento do sargento Holcomb,não se encontrou nada no bolso direito das calças de Cullens?Este trazia habitualmente uma arma e foi com ela que matouGeorge Trent. É o revólver que a testemunha Diggers pretende ter encontrado na bolsa da minha cliente. Lembre-se,Vossa Honra, dos depoimentos de Golding e de Tannis. Ambosouviram dois tiros. O médico encontrou apenas uma bala nocorpo de Austin Cullens. Ninguém falou da segunda bala.Nestas condições, o defensor julga ser necessário conceder aojúri a faculdade de estudar pessoalmente o local do crime,de proceder à sua própria investigação no sentido de descobrira segunda bala...O juiz abanou a cabeça. Não é essa, na minha opinião, uma justa interpretaçãoda faculdade que têm os jurados de se deslocarem ao local docrime, querendo transformá-los em testemunhas de umadescoberta susceptível de ter uma influência primordial nocurso do processo. A Corte vai designar um inquiridor imparcial e desinteressado para efectuar essas buscas, se tal é. o desejoda defesa. Esse inquiridor poderá ser acompanhado pelosadvogados das duas partes e fazer depois um relatório'à Corte.A solução satisfaz-me inteiramente concordou Mason e para melhor provar a minha intenção de não querermais do que estabelecer factos pertinentes, proponho à Corteque indique o perito de balística da polícia, Mr. Hogan, queinquirirá na presença do sr. substituto do procurador e demim próprio, como representante de Sarah Breel.O juiz aquiesceu. E assim seja ordenado disse. O tribunal reune-seamanhã, às dez horas.Um imenso rumor afogou estas últimas palavras.445CAPÍTULO XVII

Durante todo o caminho, o substituto conservou-se emsilêncio. Tentava encontrar o fio das ideias, esforçava-se- poras pôr em ordem, fazer delas um todo coerente, lógico.Hogan também ia calado, no receio de falar demais.Muito pelo contrário, Mason mostrava-se inexaurível.Contava histórias, falava de política e a vaga de palavrasnão deixava de incomodar os outros que queriam concentraro espírito sobre o problema que acabava de tomar umaimportância completamente nova.Atrás do carro oficial que conduzia os advogados e o peritoencarregado da investigação, vinha um carro da políciaseguido de três táxis carregados de jornalistas e de fotógrafos.

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Sampson virou-se para deitar um olhar inquieto ao vidrotraseiro, violentamente iluminado pelos faróis dos carros quevinham a seguir. Não temos necessidade de toda esta gente disse ele. E em que os incomodam eles?perguntou Mason.Vão incomodar-nos, tornar as nossas buscas maisdifíceis. Por outro lado, o juiz falou apenas de nós os três. Não sou absolutamente da sua opinião ripostouamavelmente Mason. A Corte designou Mr. Hogan. Nóstemos autorização de o acompanhar. E não foram mencionadosos membros da Imprensa.Pessoalmente, importunam-me. Não se aborreça, sr. ajudante disse Mason rindo.Tome a responsabilidade de os afastar, mas acautele-se comas suas reacções. E porque não lho diria você? propôs Sampson.A minha situação política não me permite agir. Não possoarriscar-me a que a Imprensa me caia em cima. Então, deixemo-la tranquila concluiu Mason.Admitiu portanto que, atrás de Mason que franqueavaa porta do salão onde tinha sido encontrado o cadáver de446Cullens, os fotógrafos se amontoassem no vestíbulo. O magnésioexplodiu e as fotografias tomadas mostraram nos jornais damanhã um Mason sorridente, afável, e um ajudante desconfiado, de rosto franzido.Hogan afadigava-se já, calmo, eficiente. O corpo disse ele estava estendido aqui. Vocêpretende, Mason, que esta bala foi disparada por Cullens.Este devia fazer face ao seu agressor. Devemos, portanto,encontrar o projéctil nesta parte da parede, desde o pavimento até, digamos, um metro e oitenta de altura... Nãovejo nada.Agora é a minha vez disse Mason. Estou de acordoconsigo no que se refere à direcção aproximada do tiro.Mas a bala talvez não tivesse atingido a parede. É possívelque tenha sido interceptada... Que pensa você desta poltrona?Veja...Hogan, ajoelhado, estudava de perto o intervalo existenteentre a madeira do assento e a almofada de couro que oguarnecia. Entrevia-se uma fenda nas costas da poltrona. Talvez haja aqui qualquer coisa admitiu o perito. Levantemos o assento.Distinguia-se no caixilho um buraco redondo, de bordosenegrecidos. O projéctil ficou na madeira disse Mason, alegre.Vamos recuperá-lo. Depois de ter tirado uma fotografia decidiu Hogan.A Imprensa não pedia mais que obsequiar aquelessenhores. Estalaram doze objectivas.

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Hogan abriu uma navalha bem afiada e exibiu umastesouras.Vamos a isto.Rasgou a almofada. Afastando a crina, sondou. Uma balatinha sido detida no coração de carvalho.Devo extraí-la?perguntou o perito ao ajudante.447Mais algumas fotospropôs Mason.A bala faz-nosfalta, bem entendido.Hogan pôs-se calmamente ao trabalho, tomando muitocuidado para não riscar o chumbo com a ponta do canivete.A madeira era dura. com uma última insistência, o peritolibertou finalmente o projéctil.Tomemos, desta vez, todas as cautelas para evitarum novo erro. vou meter esta bala num sobrescrito que lhevou pedir que rubrique.Mason puxou a caneta, inscrevendo o seu nome nas costasdo sobrescrito e Sampson imitou-o. Hogan meteu o sobrescritono bolso. Se não vê nisso inconveniente disse o advogado vouseguir esta bala até ao seu último destino, pelo menos atéque tenha podido tirar microfotografias.Venha então disse Hogan. Aqui sou um simplesperito.Na soleira do seu laboratório, Hogan deteve-se e virou-separa o advogado. Dispararei duas ou três balas de ensaio com o revólverBreel, Mason. Vê algum inconveniente em que me sirva deuma delas?Nenhum.Mason via a mão do técnico accionar lentamente a rosca.O exame foi minucioso. Por fim o perito endireitou-se.Não há erro, Sampson disse ele. Estas balas provêmdo mesmo revólver.Seguiu-se uma fuzilaria de câmaras.Você exigirá sem dúvida microfotografias continuouo perito mas isso é apenas uma formalidade. Veja vocêmesmo.Basta-me a sua palavra disse Mason, sorridente. Sei também que posso contar consigo para que não hajaqualquer erro ou substituição. Até amanhã, então. Tenhotrabalho no meu escritório.448 Tudo isto é muito bonito disse Sampson irritadomas não impede que o sapato da sua cliente esteja cheio desangue. Isso é que você não conseguirá eliminar, Mason. Nem sequer o tentareivolveu Mason na soleira.Paul Drake e Della Street esperavam-no no escritório. Então ? perguntou a rapariga. Ninguém tinha reparado na bala que tinha passado

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entre a almofada e a base da poltrona para se alojar nocaixilho disse alegremente Mason. Diga, então, patrão continuou Della Street. Está adar-se bem conta do caminho que tomou? ' Como? perguntou Mason franzindo o sobrolho. Está a afastar do processo Sarah Breel para meterVirgínia na cadeia. Isso é verdade! exclamou alegremente o advogado. Que quer você ? Cullens está morto, e precisamos de alguémque o tenha morto. Mas a pequena Trent não é também sua cliente? Muito justo, mas não estão a julgá-la, que eu saiba. Mas não tardará muito, se continuar assim. Tanto pior volveu Mason. Ver-se-á depois. Vamosjantar. Tenho uma fome canina.CAPÍTULO XVIII

Às dez horas não havia um lugar vazio na sala de audiências. As pessoas encostavam-se à parede, de pé. A atmosferaestava tensa. Só os jurados que, muito conscienciosos, nãotinham deitado uma olhadela às manchetes e às fotografiasdos jornais podiam ignorar o que se tinha passado na vésperadepois da audiência. O juiz, tendo ocupado a sua cadeirae ouvindo o escrivão que procurava obter silêncio, olhavaPerry Mason com uns olhos onde se lia uma surpresa admirativa.29-VAMP. G. 2 449Larry Sampson, de lábios cerrados, inclinava a cabeça.Todo o seu processo se desmoronava. Todavia, dispunhaainda de algumas cartas a opor aos trunfos da defesa. Peço a Mr. Hogan para vir à barra das testemunhas disse Mason.O perito veio expor o que tinha encontrado em casa deAustin Cullens. Apresentou a bala extraída da poltrona e asfotografias. Na sua opinião perguntou o advogado esta bala foirealmente disparada pela arma exibida pela acusação e a quechamaremos, para simplificar, o revólver Breel? Não há a menor dúvida a esse respeito. Mas, quando a arma foi encontrada na bolsa da minhacliente, só havia um cartucho percutido? Não posso responder a esta pergunta volveu Hogan. Sei apenas que, quando a arma me foi entregue, o tamborcontinha cinco cartuchos cheios e um vazio.Agradeço-lhedisse Mason. É tudo. Não tenho perguntas a fazerdeclarou Sampson. Chamem Paul Drake disse o advogado.Drake avançou e prestou juramento. Parecia ligeiramentepouco à vontade.Você é um detective particular começou Mason

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e como tal servi-me dos seus serviços. Sim. Teve ocasião de vigiar uma mulher conhecida com onome de lone Bedford e que pretendia ser a proprietária decertas jóias confiadas a George Trent por Austin Cullens? Esta pergunta não deve ser admitida! berrou Sampson. Não tem qualquer relação com o processo. Penso poder provar que o tem volveu Mason.Não estou a percebê-lo muito bem fez notar o juiz. Não se trata de enfadar a Corte continuou Masonmas o processo que está a ser julgado não é ordinário. A acusação encarrega-se, geralmente, de demonstrar a culpabilidade450do acusado. A este cabe apenas provar a sua inocência.Mas já que, nesta causa, a acusação soube estabelecer claramente como o crime não podia ter sido cometido, a defesavai mostrar como poderia ter sido perpetrado. E espera poder justificar a sua pergunta? perguntouo juiz com ar dubitativo. Espero que sim, Vossa Honra. Admito então a pergunta, de momento. Mas a acusaçãoterá o direito de a riscar da acta no caso de se não referirao processo de maneira clara e precisa. Isso me basta volveu Mason. Responda, Mr. Drake. Sim respondeu Drake. Seguiu essa mulher? Sim. Onde começou a segui-la?À saída do Comissariado Central. Onde ela acabava de se recusar a reconhecer como sendosua propriedade os diamantes encontrados na bolsa deMrs. Breel?Vossa Honra, oponho-me a esta pergunta! exclamouo ajudante. É tendenciosa e sem qualquer ligação com acausa. Pouco importa que...A testemunha deverá limitar-se a falar da sua vigilância decidiu o juiz. Onde o conduziu ela? perguntou Mason.Aos Apartamentos Milpas, em Canyon Drive, apartamento 314. Procurou saber qual o nome em que ela morava ali? Sim. Qual era esse nome?A pergunta é inadmissíveldisse Sampson. Trata-sede um rumor, de um diz-se. Pouco importa esse nome. Concedido disse o juiz.Mason franziu os sobrolhos e pareceu contrariado.451--Vou apresentá-la de outra forma, Mr. Drake. Havia,vivendo nesse edifício, uma pessoa que se chamava Pete

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Chennery ? Sim, senhor. Qual era o apartamento que ele ocupava. O "314"respondeu Drake antes de o ajudante lhe terpodido impor silêncio.Vossa Honra declarou Sampson oponho-me a isto,que está inteiramente fora do processo.A objecção parece-me aceitável disse o juiz a menosque a defesa possa apoiá-la em qualquer teoria. Se o senhor ajudante quiser deixar de me impedir, comas suas argúcias disse Mason perdendo a paciência talvezconsiga provar que Pete Chennery é o assassino de AustinCullens. Isto conto demonstrá-lo por... Isso basta, Mr. Mason interrompeu o juiz. Não oconvidei a fazer a acusação do ministério público. O senhorprocurador pôs objecções que a Corte aceitou até agoraA Corte pergunta-lhe apenas qual a ligação existentea sua pergunta e a causa. Fá-lo-ei volveu o advogado. Fá-lo-ei provandoa minha cliente não pode ter assassinado Austin Cullensporque o assassino é Pete Chennery.Aqui temos um procedimento bem excepcionalcomentou o juiz. O processo não o é menos replicou Mason.Admito portanto a pergunta, temporariamente decidiu o juiz, fazendo retirar da acta a parte da resposta quetratou do apartamento habitado por Pete Chennery. Nadaliga, para nós, lone Bedford e Pete Chennery. Porque a acusação não me permitiu explicar.A acusação não tem nada a ver com a pergunta disseo juiz. É a Corte que julga a ordem das provas. Continue,Mr. Mason, e dirija as suas observações à Corte. Muito bem assentiu Mason. Mr. Drake tirou ou452fez tirar sob o seu controle fotografias das impressões digitaisque pôde encontrar em casa de Austin Gullens? Sim. E procurou encontrar provas fotográficas das impressões digitais de Pete Chennery? Penetrei no seu apartamento respondeu Drake.Fotografei as impressões digitais que presumi serem as dePete Chennery, pela razão de serem muito mais numerosas. Quem estava consigo quando fotografou essas impressões, Mr. Drake? O sargento Holcomb. Conseguiu estabelecer que Pete Chennery tinha umpassado criminal? Oponho-me a esta pergunta interveio o ajudante. Ultrapassa incontestavelmente o quadro deste processoe não se baseia senão no diz-se. Mesmo a testemunha reconheceu

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ignorar se as impressões fotografadas eram as dePete Chennery.Mason consultou o juiz com um olhar. Esta objecção é válida disse este. Trata-se, no casoque nos ocupa, de saber se a acusada matou Austin Cullens.Razoavelmente qualquer testemunho tendente a provar queCullens foi morto por uma terceira pessoa deve ser admitido,mas em certos limites e observando ainda determinadasformas. Suponho que sim, Vossa Honra respondeu Masoncom muita urbanidade mas não passo de um pobre diabode um advogado. A testemunha é detective particular. Damesma forma que eu, não dispõe dos poderosos meios deinvestigação do procurador e dos seus gabinetes. É certo, Mr. Mason, mas isso não tem nada a ver coma Corte que tem apenas que conhecer testemunhos e provaspertinentes. A opinião da testemunha não pode encadeara acusação.Talvez eu consiga chegar ao fim por outro caminho.453Agradeço à testemunha e peço a comparência do sargentoHolcomb como testemunha de defesa.O sargento avançou, belicoso. Era evidente que nãotinha a menor intensão de ajudar no que quer que fosse o defensora triunfar na sua causa. Permitir-me-ei perguntar-lhe, sargento, se conseguiuencontrar o proprietário das jóias que se encontravam nabolsa que se pretende ser a da minha cliente. Esta pergunta não deverá ser aceite interveio uma vezmais o substituto. Pouco importa o proprietário destesdiamantes. Mas objectou Mason parecia-me que, segundo aacusação, tinham despojado a vítima...Nada disso declarou Sampson. Exibimos fotografiasmostrando a cinta usada pelo defunto e o estado em quefoi encontrada. É tudo. A acusação nunca pretendeu...A relação existente entre a pergunta e a causa parece-mesuficientedecidiu o juiz Autorizo esta pergunta. Identificou o proprietário das jóias, sargento ? Sim, Vossa Honra.Tinham sido roubadas?perguntou Mason. Sim.A alguém que reside em New-Orleans? É exacto. Não ofereceu uma companhia de seguros uma recompensa a quem lhe permitisse recuperar os objectos roubados? Sim.Não reclamou uma parte dessa recompensa? Sim. Qual é o seu montante?

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Protesto interveio Sampson. Esta pergunta é inadmissível. Tende a provar que a testemunha tem um interessepessoal nesta causa." Efectivamente concedeu o juiz.Uma vez mais, Mason pareceu desapontado.454 Quando do exame do local onde foi descoberto o corpode Cullens, não notou que um fusível do circuito eléctricotinha saltado, sargento ? continuou. Reparei. Conseguiu verificar a causa desta avaria? Sim. Tinham desatarraxado uma lâmpada para introduzir no suporte uma moeda de cobre. Virando o interruptor,provocava-se inevitavelmente um curto circuito e a extinçãodas lâmpadas. Verificou as impressões digitais existentes na moeda? Esta pergunta não deverá ser admitida, na minhaOpinião disse Sampson. É uma pergunta que sai doâmbito da questão.O juiz franziu o sobrolho.Julgará o ministério público que a acusada se não podeservir, para a sua defesa, de factos que a própria políciaestabeleceu ? Não é isso volveu Sampson. Aquilo que não queremosé que se não entrave sistematicamente a acção da justiçaenredando sistematicamente os factos. Nenhum dos depoimentos recolhidos neste recinto permite supor que outrapessoa, além da acusada, tenha penetrado na casa da vítima. Mas foi o senhor mesmo, senhor substituto, que declarou ter sido o roubo o móbil do crime... Torna-se por vezes necessário ao acusador público peço à Corte para me perdoar esta interrupção modificara sua táctica no decurso de um processo... É justoaquiesceu o juiz. Mas também me parecemuito convincente deixar responder à pergunta feita. Admiti-la-ia no exame contraditório. Ora a testemunha foi citadapara a defesa. Encontrou impressões digitais nessa moeda,sargento ? Sim, Vossa Honra. Tirou as impressões digitais à minha cliente? perguntou Mason.455-Sim. Comparou-as às encontradas na moeda? Ela trazia luvasvolveu o sargento, azedo. Nãopodia deixar impressões. A pergunta não é essa. Pergunto-lhe se procedeu àcomparação das impressões. Sim. E correspondiam?

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, Não.Peço à Corte continuou Mason para intimar osargento Holcomb a apresentar as fotografias das impressõesdigitais encontradas na moeda e dar à testemunha Drakeoportunidade de demonstrar que são as impressões de PeteChennery, indivíduo de largo cadastro conhecido pela polícia. Oponho-me. Oponho-me a esta declaração e à maneirade apresentar a pergunta ao júridisse Sampson. É tentarembrulhar os factos. A Corte decidiu já que a testemunhaDrake não dispunha dos meios necessários para estabelecerque as impressões digitais encontradas eram realmente asde Pete Chennery. Devo compreender que a acusação quer impedir adefesa de estabelecer a identidade da pessoa que meteu amoeda no suporte da lâmpada? perguntou o juiz. Não vejo em que esta questão possa referir-se aos debates presentes insistiu Sampson. Mesmo admitindo queessa terceira pessoa tenha entrado na casa de Cullens, poucotempo antes do crime, isso não tem nada a ver com o processo. Não? disse o juiz em tom ameaçador. Mas suponhamos que essa entrada se deu no momento mesmo do crime? Mesmo nesse caso, pouco importa a identidade do indivíduo. Estabelecemos já diante da Corte que as impressõesencontradas na moeda não são as da acusada. É tudo quantoa defesa está autorizada a provar.456...Não julgue, porém, Vossa Honra que quero pôr obstáculos ao estabelecimento de provas legítimas, mas, doponto de vista técnico, a acusada tem todo o direito de provarque não participou do roubo provocando uma avaria nainstalação eléctrica. Não tem mais nada que conhecer, nemque estabelecer. A identidade do terceiro responsável nãopode interessar senão provando-se que se trata de um cúmplice da acusada. Ora a acusação não pretende tal. Está bem! exclamou Mason, levantando os braços. Se o Ministério Público não quer que o júri saiba quemmatou Austin Cullens, não vou perder tempo a fazer o seutrabalho. Retiro a minha pergunta. Não desejo mais nadada testemunha.É desleal disse Sampson. Você procura perturbaro espírito dos jurados. Mas é você quem... Senhores interrompeu o juiz, batendo na secretária queremos que a ordem seja respeitada neste recinto. Nãotolerarei semelhantes observações. Mr. Mason a sua atitude "é repreensível. Quanto a si, Mr. Sampson, é deslocado acusaro defensor de más intensões. A Corte admoestá-lo-ia maisseveramente, se a observação de Mr. Mason não tivesse sidotão despropositada. E fica desde já estabelecido que não setratará aqui de casos pessoais. É o último aviso da Corte.

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Está bem disse Mason sentando-se, resignado. Acabei.Você quer dizer que desiste?perguntou Sampson.Mason levantou os olhos para o juiz. Já que devo dirigir as minhas observações a VossaHonra, posso sugerir à Corte que faça observar ao magistrado encarregado da acusação que, quando o defensor diz:"Acabei", é incorrecto da parte do substituto do procuradordirigir observações ao defensor. Estou, todavia, convencidode que o júri compreenderá que a defesa fez todos os esforçospara resolver este processo e que a única razão por que o nãoconseguiu fazer...457 Seja prudente nas suas palavras, doutor cortou ojuiz, severamente. ...é muito clara terminou Mason com um sorriso. Pleiteiam o processo, senhores? perguntou o juiz.Sampson assim o queria e toda a sua argumentação limitou-se a afirmar que a defesa não tinha conseguido anularas acusações que pesavam sobre a ré. Exibiu o sapato, mostrou a sola manchada de sangue e desafiou a defesa a queexplicasse a origem daquelas manchas. A acusada era culpada, declamava ele.De passagem, citou a tentativa do defensor tentandointroduzir no processo uma terceira pessoa, um mito queteria penetrado na casa e que, implicitamente, teria assassinado Austin Cullens; esmagou Mason por ter tentado perturbar o depoimento, tão claro, do sargento Holcomb e de oter acusado de ter confundido as balas dos dois revólveres.Sentou-se, finalmente e Mason, sorridente, veio colocar-sediante dos jurados. Minhas senhoras e meus senhores começou ele aCorte vai dizer-nos que, para justificar uma condenaçãobaseada em conjecturas, as referidas conjecturas devem nãosó tender a provar a culpabilidade da acusada, mas aindanão contradizer nenhuma outra hipótese razoável. No casoque nos ocupa, esta segunda hipótese lógica existe, explicaos factos, prova a inocência da acusada. É, portanto, devervosso absolver a minha cliente.Porque a acusação apenas se baseia em conjecturas.No que se refere ao revólver, esta conjectura ressaltou, voltoucomo o "boemerang" à mão de quem a lançou. Os depoimentos recolhidos provam de maneira concludente que a<arma encontrada na bolsa da acusada porque é realmente a sua bolsa, reconheço-a diante de todos, não porque aminha cliente me tenha dito (pois ela perdeu toda a recordação dos acontecimentos), mas porque tende a prová-lo que esta arma, portanto, não matou Austin Cullens. Pelo458contrário, ela matou George Trent. Neste processo há apenasreferência a duas balas. Se, portanto, a bala do revólver Breel

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não matou Cullens, foi porque matou George Trent. Masna noite da morte de Cullens foi apenas disparada uma balacom este revólver, e foi disparada pelo próprio Austin Cullenscontra qualquer um que estava com ele no aposento. A balaalojou-se nas costas da poltrona. Cullens trazia este revólverno bolso direito das calças e foi por esta razão que o investigador a encontrou vazia.Não é, minhas senhoras e meus senhores, mais razoávelsupor que Mrs. Breel adivinhou que o seu irmão estavamorto e que desconfiou que Austin Cullens o tinha morto?Austin Cullens tinha todas as razões para se desembaraçarde George Trent. Tudo indica que George Trent teveinformação de certos factos que, levados ao conhecimentoda polícia, teriam permitido acusar Cullens de uma sériede vigarices e de roubos de jóias. Cullens mata então Trent.Para afastar as suspeitas, trata de inventar que Trent empenhou os diamantes numa casa de jogo. E, para dar maispeso ao estratagema, vai fazer escândalo à casa de jogo,reclama os diamantes, procura atirar as suspeitas para cimado gerente do estabelecimento.É de uma total evidência, meus senhores e minhas senhoras, que, como no caso Cullens, Trent não pôde ter sidomorto com o revólver que, no dizer da acusação, foi utilizado.É portanto evidente que deve ter sido morto com o outro revólver",pois há apenas dois revólveres e duas balas que deram amorte, uma para cada arma. É evidente que o sargento Holcomb julgou, muito naturalmente, que o revólver encontradona bolsa de Mrs. Breel matou Austin Cullens, e que o revólver encontrado no escritório de Trent matou Trent. Tirouda algibeira direita do colete a bala que o médico lhe tinhaentregue como tendo morto Cullens e entregou-a ao peritoHogan. Este comparou-a às balas de ensaio atiradas pelosdois revólveres e informou o sargento de que esta bala tinha459sido disparada com o revólver encontrado no escritório deTrent. Que acontece então?O silêncio era profundo, tenso, e Mason fez um compassode espera.Já devem ter compreendido o carácter do sargentoHolcomb continuou. Esse carácter foi revelado muitoclaramente na barra das testemunhas. Ele pensou que se tinhaenganado na bala, julgou ter, por descuido, confundido asduas balas, quando na realidade não cometeu nenhum erro.Para reparar esse suposto erro, entregou imediatamente aoutra bala ao perito, declarando-lhe ser a bala que tinhamatado Cullens.Para uma pequena causa, meus senhores e minhas senhoras,um grande efeito. Este gesto define-nos bem o carácter dosargento Holcomb. Sem qualquer dúvida, ele não teria

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pensado um único momento em acusar a minha cliente, setivesse pensado, um instante que fosse, que ela estava inocente.Mas, convencido de ter cometido um erro, procurou encobri-lo e foi até testemunhar diante da Corte uma coisa queé de uma manifesta impossibilidade. A despeito do que osenhor substituto lhes possa dizer, a despeito do testemunhodo sargento Holcomb, é materialmente impossível que abala que matou Austin Cullens tenha saído do cano dorevólver Breel. É igualmente impossível que George Trenttenha sido morto pelo revólver Trent.Agora, minhas senhoras e meus senhores, se estivesseautorizado a continuar o meu raciocínio, poder-lhes-ia indicaro assassino de Cullens. Não o podendo fazer, vou-me servirdos factos tal como os conhecemos actualmente e _xpor uma hipóteserazoável e que aclara todo o processo. E não apenas estahipótese tende a provar a inocência da minha client", comoé também a única que permite explicar os factos.Um incidente que nós ignoramos surgiu na tarde do diada morte de Cullens, incidente que convenceu Sarah Breel460de que Cullens era o Responsável do desaparecimento do Seuirmão e até da sua morte. Foi a casa dele para ter a certeza.Já alguém a tinha precedido.Quem?Alguém que atirava muito bem com revólveres, alguémque tinha acesso à arma com a qual sabemos agora que ocrime foi cometido.Austin Cullens viu essa pessoa. Sabia o que ela queria.E, sabendo-se culpado, tirou subitamente o revólver do seubolso direito e atirou. Mas errou o alvo. Mas o seu visitanteestava, por sua vez, preparado para todas as eventualidades.Estava armado e não errou o alvo, por sua vez!Um pouco mais tarde, chegou Mrs. Breel. A porta estavaaberta. Reinava a escuridão. Não havia luz e, lembrem-se,minhas senhoras e meus senhores, não se encontrou lanternaeléctrica na sua bolsa. Teve de andar aos apalpões na sombra. Ela não sabia que Cullens estava estendido no pavimento, morto. Subitamente o seu pé tocou em qualquercoisa.Como dar-se conta, senão pelo tacto? O aposento estavaescuro. Ela não tinha lanterna, nem fósforos. Ela baixa-see apalpa com a ponta dos dedos enluvados. É duro e frio.Pega na coisa com a mão. É um revólver. E depois ela tocanum corpo. Tomada de pânico, ela quer prevenir a polícia.Maquinalmente, sem dar atenção ao gesto, mete a armana bolsa e foge, gritando por socorro. Mas ninguém está lápara ouvir os seus gritos. Atira-se para o passeio, atravessa-oa correr. Dois faróis de carro a cegam. No seu terror, elanem sequer se dá conta de que desceu para a calçada.Aqui está, meus senhores e minhas senhoras, a explicação

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que os próprios factos nos obrigam a aceitar.Juraram, todos, responder imparcialmente, honestamente,às perguntas que lhes serão formuladas.Não fiz, pela minha parte, nenhum esforço para introduzir entre os jurados pessoas dispostas a favorecer a minha461cliente. E para que serviria tal procedimento? Tudo o quepretendia, eram pessoas honestas. Não declarou um de vósque tinha feito, antes dos debates, uma opinião desfavorávelem relação à minha cliente? Acrescentou ele que não semostraria menos imparcial. Teria podido recusá-lo, impedi-lode se sentar ao vosso lado. E porquê ? Senti que seria justo,pois era inteligente. E de que mais poderá ter necessidadea minha cliente, senão de correcção e de inteligência? É esta,digam-me, a atitude de um advogado defendendo um culpado ?É a atitude de um defensor que quer aturdir e enganar umjúri?Minhas senhoras e meus senhores, juraram observar alei. Compreenderão, ao escutar as recomendações do juiz,que são assim conduzidos solenemente a pronunciar a absolvição no caso de os factos imputados à minha cliente sepoderem explicar, racionalmente, sem implicar a sua culpabilidade. Façam o vosso dever.Mason tinha tido apenas o tempo de regressar ao seulugar quando Sampson se endireitou, lívido, e com vozpouco firme: Uma palavra ainda, meus senhores e minhas senhoras!Permitam-me que convide o advogado de defesa a prosseguiro seu raciocínio até ao fim... Quem era então essa pessoa queatirava tão bem com o revólver? Essa pessoa que, segundoas suas próprias afirmações, tinha acesso ao revólver com oqual declarou que Austin Cullens foi assassinado? Essapessoa será Virgínia Trent, a sobrinha da mulher sentadano banco dos réus? Deve ser ela! Desafio-o a quenegue! Lamento ver-me forçado a interromper o senhor substituto replicou Mason, irónico mas... devo compreenderque ele acusa Virgínia Trent de ter morto Austin Cullens? Seguindo o seu raciocínio é claro como água! exclamou Sampson.Está bem! Mas diga-me o que lhe parece reprovável462no meu raciocínio ? Encontra-lhe algum defeito, por pequenoque seja ? Se assim é, queira indicá-lo ao júri.Sampson, que tinha corado, voltou a empalidecer. A resposta deixava-o sem fala.Mason virou-se para o juiz. Preparava-me, Vossa Honra, para sugerir à Corte que propusesse ao júri a absolvição da minha cliente, se o ministério público é agora de opinião de que os factos tendem a

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acusar Virgínia Trent da morte de Cullens. Mas se o senhorsubstituto quer realmente saber quem é o assassino de Cullens,aconselhá-lo-ei a falar com Paul Drake... Basta, doutor interrompeu o juiz. Esta declaraçãoé deslocada. Sente-se. A Corte não tem a menor intençãode aconselhar o júri, que saberá agir por si mesmo. A menosque, bem entendido, o substituto não seja de opinião desuspeitar que Virgínia Trent é a autora do crime.Sampson hesitou, engoliu a saliva e disse bruscamente: Não. Queria simplesmente demonstrar o absurdo doraciocínio de Mr. Mason. Onde está o absurdo?perguntou um dos jurados,fixando o substituto com um olhar de profunda crítica.É apenas uma cortina de fumo! exclamou Sampson. Um truque para tratar de salvar a sua cliente! Qual é então o erro da teoria? insistiu o jurado. Total! Todavia eu... eu terminei a minha acusação.I Vocês têm a prova... de que Cullens foi morto com o revólver encontrado na bolsa da acusada. O resto serve apenas para perturbar os espíritos. Quero acreditar, minhas senhoras e meus senhores, que se não deixarão ludibriar. Agradeço-lhes.\ E voltou para o seu lugar. Ansiosa, Mrs. Breel procurava atrair a atenção do seuadvogado, que virou a cabeça.O juiz leu em voz alta o texto da lei, fez jurar ao escrivãoque acompanharia os jurados até uma sala onde, em completa segurança, poderiam deliberar. Depois, quando estes463abandonavam a sala, anunciou que a Corte suspendia aaudiência até ao momento em que fosse conhecido o veredicto.Sarah Breel fez sinal a Perry Mason para que se aproximasse dela.Você não devia ter feito isto disse ela. Feito o quê? Pôr Virgínia nesta situação. De que situação está a falar, Mrs. Breel? perguntouMason, fingindo-se surpreendido. Ela não arrisca nada,bem pelo contrário. A senhora ouviu o que disse Sampson:seria absurdo pensar que ela matou Cullens! Onde está ela? Quero vê-la.No campo, para onde a minha secretária a levou,para dar uma volta. Pensei que um pouco de ar puro lhefaria bem. Convencia-a a não assistir ao decorrer dos debates.Sarah Breel suspirou. Pois bem! Já que temos de esperar a resolução dossenhores jurados, já que, por outro lado, reconheceu que abolsa era realmente minha, faça com que me entreguem otricot que lá está. Assim darei um avanço na camisola deGinnie. Experimente antes um problema de palavras cruzadas

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aconselhou Mason batendo-lhe na mão. Será menosperigoso.Teremos de esperar muito tempo? Dez minutos, na minha opinião.Enganava-se em bons vinte minutos. Os jurados só apareceram depois de uma meia hora de discussão. Chegaram a acordo, minhas senhoras e meus senhores ?perguntou o juiz. Sim respondeu um deles.O escrivão pegou no documento dobrado e entregou-oao juiz, que o estudou e lho devolveu. Leia disse ele.O presidente tossiu e, com voz forte:464Nós declaramos Sarah Breel não culpada do crime deque é acusada. O júri sugere unanimemente ao procuradorque proceda imediatamente à prisão de Virgínia Trent e deinstaurar o processo mais inteligentemente do que o fez emrelação à acusada.Mason retinha um sorriso.Penso disse ele que bastará registar a primeiraparte do veredicto: a concernente à inocência da minhacliente. Aceito respondeu Sampson, sombrio.O juiz esperou que o veredicto fosse transcrito para sevirar para o júri. Minhas senhoras e meus senhores disse ele desligando-vos das vossas funções, a Corte começa por vos agradecer a maneira como cumpriram o vosso dever. Este processo é um dos mais surpreendentes dos que a Corte teveconhecimento. Até ao presente, a Corte declara não saberse os factos, como o julga o júri, acusam Virgínia Trent deter disparado o tiro de revólver que matou Austin Cullensou se foi testemunha de uma das mais espantosas escamoteações judiciárias que se perpetraram diante de um tribunal.O futuro no-lo dirá. A acusada, está livre! A Corte interrompe-se.

CAPÍTULO XIX

Mason fez entrar o carro no pórtico onde se lia a insígniade Gables Hotel. O velho albergue perfilava-se contra o Céu,silhueta negra picada de um ou outro ponto de luz.O advogado arrumou o carro, confiou a bolsa e a malaa um groom que apareceu de uma porta, correndo, e aproximou-se do gabinete de recepção.Têm, julgo eu, um quarto reservado em meu nome?Mr. P. Mason.30-VAMP. G. 2 465Perfeitamente, senhor. Deseja subir já?

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Sim.O groom precedeu-o no corredor, abriu a porta, esquivouo corpo e recebeu a gorjeta. Mason tirou o casaco, lavou orosto e as mãos, voltou a vestir o casaco e, passando pelasala de banho, veio escutar na porta de comunicação queligava ao quarto vizinho. Ouviam-se soluços abafados.Bateu e respondeu-lhe a voz de Della Street. Quem está aí? Mason.Ela abriu.Virgínia Trent, os olhos vermelhos e inchados, o cabeloáspero e desalinhado, levantou a cabeça e pegou num quimono para se tapar. De onde vem você? perguntou ela.Do tribunal respondeu Mason aproximando-se.E andei depressa.A rapariga deitou os cabelos para trás, enrolou o travesseiro húmido de lágrimas e encostou-se.Vou voltar disse ela.Mason abanou a cabeça. Sim, volto para a cidade, quer você queira quer não.A sua secretária não mo deixou fazer em todo o dia.Ela fez bem.Ah? Você acha? vou dizer... O quê? perguntou Mason,-Tudo. Comece então por me falar a mim.A tia Sarah quis proteger-me gemeu a rapariga. Elaperdeu tanto a memória como eu. Pouco me importa o queela dirá e o que vocês dirão, Mr. Mason. Ela está em perigo.Ela arrisca-se a ser condenada. Os jornais estão todos deacordo para considerar o veredicto como certo...O júri acaba de a absolver, Virgíniadisse docementeMason.466A tia Sarah absolvida?-Sim! Como é isso possível?Parece que o júri compreendeu muito bem todo oprocesso.Não estou a compreendê-lo, Mr. Mason. Conte-me tudo o que se passou, Virgi. Sim. vou dizer-lhe tudo. Toda a verdade disse arapariga numa voz entrecortada de grandes suspiros. AustinCullens tinha-nos marcado, a mim e a minha tia, um encontro no canto da rua. Veio ter connosco para nos levar decarro a casa dele. Devíamos, dizia ele, coordenar os nossosesforços e encontrar o meu tio.Propôs que nos separássemos depois de ter dividido otrabalho de busca. Devíamos visitar todos os clubes e salas

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de jogo. Tinha, dizia ele, uma lista dos estabelecimentosfrequentados por meu tio.Tinha levado o meu revólver, pensando ter de entrarem casas pouco recomendáveis. Levava também uma lanternaeléctrica.Então? No momento em que íamos entrar em casa dele, viluz numa janela e Cullens exclamou dizendo que haviaalguém em casa dele. Tirou o revólver e atirou-se para aporta. Eu não queria segui-lo, mas a minha tia arrastou-mepara a frente. Naturalmente, levava também a arma namão. Eu atiro muito bem e... Bem sei, bem seiinterrompeu Mason, impaciente.E depois?Havia um homem na casa. Distingui-o vagamente.Mr. Cullens girou um interruptor. Fundiu-se um fusível.As luzes apagaram-se. O homem correu e saiu pela portada retaguarda. Então?Tirei a minha lanterna e entreguei-a a Mr. Cullens.467Você continuava com o revólver na mão? Continuava. Mr. Cullens exclamou que lhe tinhamroubado jóias e como a minha tia se espantasse de que eleas deixasse tão à mão, do primeiro ladrão que aparecesse,ele comentou:"Não teria sido você que pôs um detective na minhapeugada ?"" E porque faria eu semelhante coisa, Aussie retorquiua minha tia. Será que essas jóias são produto de um roubo ?Adivinhei bem, não é o caso? Pois bem! Se você nos disseronde está George não diremos nada. Senão, avisaremosimediatamente a polícia...Ela não pôde continuar. Aussie gritou qualquer coisaque não pude compreender e disparou contra a minha tia. Que fez então você?Agi maquinalmente. Na verdade, nem sequer melembrei de ter apertado o gatilho. Subitamente vi Mr. Cullensestendido no pavimento. A minha tia não tinha perdidoum átomo do seu sangue-frio."Calma, minha querida disse-me ela. Receio muitoque tenha acontecido alguma desgraça ao George e vai serpreciso fazer falar Aussie. Vamos também precisar de telefonar para pedir uma ambulância, mas, antes, vou ver se.não tem com ele alguma coisa.Ela abriu-lhe o colete, pondo a descoberto uma cintade pele de camelo que tinha os diamantes. Ela pegou neles,meteu o revólver na sua bolsa e disse-me:"Chama a polícia, Virgi."Andei aos apalpões à procura do telefone, quando ela

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acrescentou:" Pára, Virgi. Ele está morto." E depois?Virgínia, trémula, parecia incapaz de continuar e escondeu o rosto no travesseiro.468Calma continuou Mason, pousando a mão no ombroda rapariga.A tia Sarah disse-me que se tratava indubitavelmentede pedras roubadas acrescentou, soluçante. Nesse caso,garantiu ela, tudo irá bem para nós. Senão, ficaremos emmuito má posição. O melhor era sair e calarmo-nos. Elaobrigou-me a sair pela porta das traseiras. Ela sairia pelafrente... E já sabe o resto. E você foi ao escritório do seu tio pôr o revólver noseu lugar? , , Sim. Desconhecia a sorte do seu tio? Por Deus, sim! Quando vi o corpo dele, a caixa...julguei que ia enlouquecer. E que se passou depois? É muito simples. A minha tia declarou que se nãorecordava de nada do que tinha acontecido. Não valia apena preocupar-me, repetia-me ela.Talvez ela seja realmente vitima de uma perda dememória ? disse Mason. Não acredite. Ela procura defender-me, é tudo. Mas você não tem a certeza?Não.Mason deitou a Della Street um olhar eloquente.Virgi: dê muita atenção ao que lhe vou dizer. Que asua tia tenha ou não perdido a memória, é coisa que nãoaltera a sua situação. Você agiu em legítima defesa. É evidente que Cullens tinha a intenção de matar as duas. Tinhajá morto o seu tio, que, pela certa, se tinha dado conta queas pedras provinham de um roubo. Foi provavelmente seutio que o levou ao escritório; Cullens, vendo-se entalado,puxou do revólver e abateu o seu tio. Voltando a casa, limpou o revólver, carregou-o de novo e, conhecendo os hábitosde seu tio, meteu as chaves do seu carro no correio.Tudo isto me parecia seguro, mas duvidava. lone Bedford469tinha, evidentemente, confiado tudo ao marido e Pete Chennery, especialista de roubos de jóias, deu-se imediatamenteconta de que havia um bom golpe a dar. Bastava que amulher continuasse a inspirar confiança a Cullens. E estavaa roubar-lhe a casa quando Cullens voltou em vossa companhia.Sei agora que foi realmente Cullens quem matou o seutio. Faltavam-me até agora as provas decisivas.A sua tia, tenha ou não perdido a memória, procurava,

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evidentemente, esconder alguém. E só podia ser a si. Quantoa Pete Chennery servi-me dele apenas como bode expiatório.O que desejava era conseguir a absolvição de sua tia e tinhamuitas esperanças, pois que, era evidente, tinham confundidoas duas balas.Depois, quando o sargento se mostrou tão afirmativo nabarra do tribunal, com o único fito de ocultar o erro que tinhacometido, compreendi que se apresentava uma magníficaocasião de forçar a verdade e servir a justiça.Francamente, Virgi, não sei muito bem o que se teriapassado se a acusação tivesse pressentido a verdade e procedido a uma investigação minuciosa e imparcial. Tê-la-iamprendido, acusado de assassínio e teria sido necessário alegara legítima defesa. O processo teria sido menos fácil. Quandoum homem é assassinado em sua casa, é sempre difícil provara legítima defesa. Bem sei disse ela entre dois soluços. Muito felizmente, o sargento Holcomb julgava ter-seenganado e ter confiado ao perito a bala errada; é difícilcensurá-lo. Não se pode exigir de um oficial de polícia queseja tão consciencioso a ponto de deixar escapar um criminosoà justiça simplesmente porque confundiu, por inadvertência,dois projécteis que lhe foram entregues, quase ao mesmotempo, pelo médico-legista. Mas mostrou-se tão preciso e tãoagressivo na barra que aproveitei para a colocar ao abrigode todas as perseguições.470 Como é isso? O procurador encontra-se desde agora na impossibilidade de a acusar do assassínio de Austin Cullens, a menos quepossa provar que Cullens foi morto com o revólver que vocêcolocou na gaveta do seu tio. Para aí chegar, seria necessáriocomeçar por identificar a bala retirada do corpo de Cullens.E como fazê-lo sem pôr o sargento Holcomb no banco dosréus? Sem o processar por falso testemunho e sem mergulhara sua reputação no ridículo? Não, não ousará tanto. Não me farão nada? Nada, se você tiver tento na língua. Não fale a ninguémdo que acabou de me dizer. Eu queria salvar a tia Sarah, confessar tudo... Bem sei, e era capaz de o fazer disse Mason, com a mãono ombro da rapariga. Mas sabia também que a sua tia eracapaz de se aguentar sozinha.Vamos, coragem, minha querida. Mostre-se tão bomsoldado como a sua tia Sarah. Acabou. Pode voltar a casa,telefonar ou... Como... encarou ela a coisa? Magnificamente. Rolou a cadeira para diante do júrie agradeceu-lhe. Ali mesmo ela começou a fazer a camisolaque lhe vai oferecer.

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Esperava isso mesmovolveu Virgínia. E repare bemque se tivesse sido condenada a sua atitude teria sido a mesma. É muito prováveldisse Mason, pensativo. Masrepare, Della, que estou a morrer de fome. Saí do Palácioa correr, evitando apertos de mão, cumprimentos, desiludindoos fotógrafos. Quando comemos nós, onde e o quê?Vamos a um restaurantezinho que há no outro lado daRua disse Della Street. O restaurante do hotel está fechado.Encontraremos sempre sanduíches de salsichas. Se Virgíniaquiser molhar os olhos e pentear-se... Isso levaria muito tempo disse a rapariga. E paramais não tenho fome... Vão à frente... eu tenho de telefonar.471Lutei toda a tarde com esta pestezinha, que queria atoda a força correr para o Palácio observou Della. Conceda-me um quarto de hora para me pôr em estado de sair,patrão. Combinado! Espero-a lá em baixo.CAPÍTULO XX

Mason passou o braço pelos ombros de Della Street.Estavam na rua principal, atravessada de carros. Um anúncio luminoso gritava: "Salsichas quentes". Um dia violento?perguntou Mason.Bastante. Levou o dia todo a chorar. Esperava-o. O patrão contava com uma absolvição? Tinha quase a certeza. Mas pouco faltou para que osargento Holcomb engolisse a pílula e confessasse a verdade.Você teve medo? Não. E, no fundo, não o podem censurar. Qualquerpessoa teria feito o mesmo no seu lugar. Sobretudo aqueles que,como ele, vêem no advogado de defesa um inimigo natural.Julga que tentarão prender Virgínia Trent? Não o creio. Meti Pete Chennery tão bem no assuntoque a polícia poderá facilmente imaginar um alibi. Dirãoque Chennery se introduziu no escritório de Trent, tirando aarma, matando Cullens e roubando um punhado de diamantes, antes de voltar a pôr a arma no lugar. E se eles lhe deitam a mão? Não há perigo! exclamou Mason, rindo-se. Chennery leu os jornais e conhece bem a música. Veja, Della,é um dos processos onde o advogado não deve esquecer queo seu alvo final, o de qualquer defensor, é que a justiça deveser feita. Um destes casos em que os fins justificam os meios.472Resumindo, você aceita lutar com o Diabo utilizando ofogo do Inferno?Não é bem isso. O sargento Holcomb deformou a verdade, concordo, mas com a falsa impressão de que reparava

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um erro. Tinha de ter isso em linha de conta.Caminhava em silêncio. E Virgi? perguntou Mason. Julga que ela se refarárapidamente de tantas emoções?Não tenha dúvidas, patrão. Quando a deixei, acabavade telefonar ao seu amiguinho. Mais uma daquelas conversas académicas, desinteressadas, acerca da balística, do tiro de revólver...Della riu-se.Virgínia ainda nos conseguirá espantardisse ela.-Porquê? Se tivesse ouvido a conversa... terna até mais não.E antes de desligar, ela...-Ela...?Não lho posso dizer. Seria trair um segredo. Mostre-me, ao menos...com uma olhadela, ela certificou-se de que estavam realmente sós.Isso já posso disse ela com um risinho gutural.Baixe-se um pouco...FIM

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