TRAVESSIA DO PAMPA: FONTES E PROJETOS DA CULTURA … · A mulher - pecado ou flor ... mostra-se...

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1 TRAVESSIA DO PAMPA: FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA SIMÕES LOPES NETO Anais do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul

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TRAVESSIA DO PAMPA:

FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA

SIMÕES LOPES NETO

Anais do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul

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Agemir BAVARESCO

Luís BORGES

(orgs.)

TRAVESSIA DO PAMPA:

FONTES E PROJETOS DA CULTURA GAÚCHA

SIMÕES LOPES NETO

Anais do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul

EDUCAT

Pelotas 2003

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© 2003 BAVARESCO, A. BORGES, L. (orgs.)

Direitos desta edição reservados à

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REVISÃO

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FOTO CAPA

Wilson Lima

PROJETO ESTATUETA TEINIAGUÁ

Arq. Serafim Pinho Dias

Simpósio Simoniano – Lendas do Sul (1º: 2002:Pelotas)

Anais do I Simpósio Simoniano – Lendas do Sul, Pelotas 06 a 08

de dezembro de 2002. - Pelotas: Educat, 2003.

292 p.

I. Título

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim

CRB 10/1233

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COMISSÕES

Comissão organizadora: Grupo de Pesquisa Simoniano do

Instituto Superior de Filosofia/UCPEL,

Comissão coordenadora: Instituto Histórico e Geográfico de

Pelotas, Núcleo de Estudos Simonianos, Academia

Pelotense de Letras, Instituto João Simões Lopes Neto,

Academia Sul-Brasileira de Letras e SECULT/Pelotas.

APOIO: FAPERGS e UCPEL

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JARAU DE NÓS OUTROS 1

Mário Mattos

Dezembro, 2002

(Primeira Parte – Os Contos Gauchescos)

Na poderosa aeronave -

Da Leitura, onipresente, -

Sobrevoei, majestosos,

O Pampa, o Pago... e a Gente.

Pela voz florida e forte

De Blau Nunes, tapejara,

Vi o Rio Grande, amanhecendo,

Vi a colméia - e a seara.

Entre o viver e o morrer ...

O amor... a dor... e o conflito -

Na fala do narrador,

A força, que vem do mito.

Cada conto é uma vertente,

No chão da História, nascida,

E nela, o falar campeiro,

É poesia, é estilo, é vida!...

Descortinar os limites

Das paixões do ser humano,

É o que faz universal,

O legado simoniano,

1 . Este poema foi composto especialmente para o Simpósio Simoniano -

Lendas do Sul, sendo declamado pelo autor no dia 05/12/2002.

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Obrigado, Simões Lopes!...

Escutando passarinhos,

Procuro te conhecer

És árvore, flor e ninhos,

Raio de sol, a nos ver!...

(Segunda Parte - O Cerro da Tentação)

Mas, bah!...que eu também me encontro

Cismado, como o tio Blau

A campear meu Boi Barroso, ,

Pelas bandas do Jarau...

De repente, o meu destino:

Na porta da Salamanca:

Me aparece, frente à frente

O vulto da face branca!...

Ai!... vida, que a cada dia

Nunca pára de mudar!...

Ai!...mente do ser humano,

Que não doma o seu sonhar!...

Já te entendo, meu Santão:

Vou seguir o velho Blau,

Minha sorte, aventurar:

Quem sabe, a Princesa Moura -

A Teiniaguá tentadora -

Tem o tudo, pra nos dar?...

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(Terceira Parte – A Furna e a Velha

Carquincha)

Medo e ambição se peleiam,

Na furna dos Anhangás:

Feras, serpentes, miasmas

Peso de culpas fantasmas,

A nos puxar para trás.

Mas, onde passa um Blau Nunes,

Gaúcho velho de lei -

Por Cristo!... que eu passarei!

Resistir com alma forte,

Da Carquincha à tentação

Da língua, ao erro fatal -

Saber lutar, coração,

Vida ou morte, contra o Mal,

Que trago em mim, sem razão...

É justo vender-se a alma

Ao vil metal, sem consciência –

Pra subir, causar estrago,

Pisotear a convivência

Com nossos irmãos do pago?...

(Quarta Parte – A Explosão do Cerro)

Como explodirei meu Cerro

Castelo azul dos meus erros -

O Jarau da velha crença,

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Onde mora a indiferença,

O dogma, o preconceito,

E a empáfia de ser perfeito?..

Sem renunciar à aparência

E à falsa felicidade,

Como ver em transparência,

No caos da globalidade?..

(Quinta Parte - Conclusão)

Abro a Caixa de Pandora:

E a Esfinge não me devora;

Mau fado não me intimida,

Tenho o pássaro da vida,

Desse gênio, que me escora!...

A dor de Anhangá Pitã,

Boa nova nos deixou:

Teiniaguá se transformou,

Da lagartixa do Mal,

Na rosa do Manantial:

A mulher - pecado ou flor,

Purificada no Amor!...

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SUMÁRIO

À GUISA DE INTRODUÇÃO: JOÃO SIMÕES LOPES NETO -

AFIRMAÇÃO & TRANSBORDAMENTOS ................................. 13

Luís Borges ................................................................................. 13

1 - LENDAS DO SUL - UM ROTEIRO DE LEITURA .................. 45

Luís Augusto Fischer ................................................................. 45

2 - A UNIVERSALIDADE DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO ..... 71

Eduardo Arriada ........................................................................ 71

3 - A SALAMANCA DO JARAU: A TRAVESSIA ÉTICA DO

GAÚCHO CONSIDERANDO ASPECTOS METAFÍSICOS ..... 88

Eduardo de Oliveira .................................................................. 88

Mauro Henrique Franzkowiak Martins ................................... 131

5 - SITUAÇÃO ECONÔMICA NA LENDA SALAMANCA DO

JARAU ....................................................................................... 147

Péterson Figueiredo ................................................................ 147

6 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM

SIMBÓLICA ............................................................................. 157

Agemir Bavaresco .................................................................... 157

7 - O MILAGRE DE NATAL EM LÍGIA FAGUNDES ................ 198

TELLES E JOÃO SIMÕES LOPES NETO ................................... 198

Luís Borges .............................................................................. 198

8 - O RECONHECIMENTO EM VIDA DE J. S. SIMÕES LOPES

NETO ......................................................................................... 224

Cláudia Antunes ....................................................................... 224

9 - ANÁLISE DISCURSIVA DE A SALAMANCA DO JARAU DE J.

S. LOPES NETO ........................................................................ 246

Oscar Brisolara ....................................................................... 246

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10 - O CIVISMO NA VIDA E NA OBRA DE JOÃO SIMÕES LOPES

NETO ......................................................................................... 268

Zênia de Leon .......................................................................... 268

SÍNTESE CONCLUSIVA DO SIMPÓSIO .................................. 292

Mário Mattos ............................................................................ 292

ANEXO - PROGRAMA DO SIMPÓSIO SIMONIANO - LENDAS

DO SUL ..................................................................................... 298

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À GUISA DE INTRODUÇÃO: JOÃO SIMÕES LOPES

NETO - AFIRMAÇÃO & TRANSBORDAMENTOS

Luís Borges

O manancial, realmente, é quase inesgotável.

(Mozart Victor Russomano

in Como se fosse um prefácio)

A apresentação dos textos segue a ordem da

programação do Simpósio Simoniano-Lendas do Sul.

Mantivemos os textos na sua integralidade,

procuramos, contudo, dar uma uniformidade na formatação,

e submeter às correções necessárias, guardando em algumas

palestras e comunicações o tom da oralidade, sempre que

não houvesse prejuízo na clareza da expressão.

Infelizmente, a comunicação a ser apresentada pelo

prof. Carlos Francisco Sica Diniz não se realizou em virtude

de problemas de saúde do mesmo, portanto, não pôde

constar aqui. Entretanto, o que nos seria sumariamente

apresentado, sê-lo-á de maneira completa na obra do prof.

Diniz, pela qual todos ansiamos, cujo título é João Simões

Lopes Neto, uma biografia. Este trabalho, fruto de rigorosa e

minuciosa pesquisa, afirmo sem medo de errar, será o livro

definitivo sobre a vida do Velho Capitão.

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Nossos objetivos no evento foram os seguintes:

- Estudar as Lendas do Sul de João Simões Lopes

Neto, para afirmar a identidade cultural regional em diálogo

com o contexto universal;

- Introduzir a obra simoniana no quadro geral da

literatura brasileira;

- Tornar mais conhecidas as Lendas do Sul;

- Abrir novas linhas hermenêuticas da obra

simoniana;

- Estabelecer diálogo com outros escritores

regionalistas.

Entendeu-se que, de forma geral, os objetivos

propostos – supracitados – foram atingidos.

Os resultados relativamente aos objetivos foram os

seguintes:

a) Através das diversas abordagens apresentadas nas

palestras, comunicações e apresentações artísticas, além da

participação do público presente, foi-nos possível constatar

não somente a preocupação em conhecer a obra simoniana,

mas também em resignificá-la, tomando como exemplo a

questão relativa ao problema entre tradição/tradicionalismo;

identidade regional/globalização; regionalismo gaúcho/

contexto literário nacional.

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b) Quanto a relacionar a obra de João Simões Lopes

Neto com o contexto literário nacional, notou-se,

especialmente, em duas oportunidades, um ganho

significativo. A palestra de Luís Augusto Fischer tratou de

trazer à tona alguns enunciados problemáticos fundamentais

para compreender essa relação. De um lado, a partir da

abordagem de Antônio Cândido em Parceiros do Rio

Bonito, Fischer estabeleceu que a tradição cultural/literária

que subjaz ao regionalismo, pode ser analisada, de maneira

geral, pela ―consciência do atraso‖ ou pela ―consciência do

progresso‖. Nessa dialética, pode-se localizar o escritor

gaúcho sob vários prismas, entre os quais, a relação com a

escritura marcantemente urbana de Machado de Assis e

Lima Barreto; a superação dicotômica entre narrador culto e

personagens, coisa que, no período, outros escritores, tais

como Coelho Neto e Afonso Arinos, entre outros, não

souberam dar respostas. Além disso, podemos citar a

comunicação de Luís Borges, onde se traçou uma linha

comparativa entre a escritura simoniana e a literatura

contemporânea de Lígia Fagundes Telles, objetivando

mostrar, apesar de todas as diferenças de linguagem e

recursos expressivos, que Simões, pela vitalidade de sua

imagística e narratividade, mostra-se muito atual,

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recolocando-o além da simples classificação tradicional de

escritor pré-modernista.

c) Sabe-se que Contos gauchescos é a obra mais

conhecida e mais estudada de Simões Lopes Neto. Neste

sentido, o Simpósio realizado procurou – e cremos ter

atingido resultados positivos – estender o olhar para Lendas

do Sul, ainda que não restringindo a discussão a este ponto,

conforme pode ser observado pela programação. Para tanto

buscou-se abarcar três pontos:

1- Uma visão geral das Lendas, o que foi feito pelo

professor Fischer, suscitando muitas perguntas.

2 - Uma visão da universalidade da literatura simoniana

o que compreende as fontes históricas e literárias da

Salamanca do Jarau, no que a palestra de Eduardo Arriada se

concentrou, tendo ainda acrescentado novas informações,

resultado de suas últimas pesquisas.

3 - Uma nova abordagem hermenêutica dos textos

simonianos, sobretudo da lenda a Salamanca do Jarau.

d) Até então, os encontros realizados sobre vida e

obra de Simões Lopes Neto quase que se restringiam a

aspectos literários. Neste evento - Simpósio Simoniano:

Lendas do Sul - houve a incorporação de várias outras

hermenêuticas, algumas bastante recentes, tais como a

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ético-filosófica e que já está a dar frutos, uma vez que

acadêmicos apresentaram trabalhos dentro desta linha de

pesquisa, como foi o caso do acadêmico Mauro H. Martins

com sua comparação entre a caverna platônica e a caverna

simoniana. Tal cruzamento de informações resultou num

saldo coletivo importante, pois não só reorientou a pesquisa

simoniana, como também atualizou os diversos

pesquisadores quanto ao estágio dos estudos sobre Simões

Lopes sob diversos ângulos.

e) Era nossa intenção tomar a literatura simoniana

como um referencial, e não um fechamento, para estabelecer

um diálogo trans e interdisciplinar. Nesse ponto, incluía-se a

pergunta sobre se o regionalismo era um subproduto

cultural-literário e nesse sentido estaria esgotado ou se, por

exemplo, escritores como Aldyr Garcia Schlee

apresentavam novos elementos, capazes de sustentar uma

escritura de tema rural-regional dentro da atualidade literária

do Brasil. Constatamos que esse objetivo não foi alcançado,

uma vez que esse debate não apareceu durante o Simpósio.

A fim de verificarmos se os objetivos propostos

tinham sido atingidos, as diversas entidades que

compuseram as comissões de organização e coordenação do

evento se reuniram para fazer uma avaliação no dia 17 de

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dezembro de 2002. De vários pontos contou essa avaliação.

Podem ser resumidos em alguns itens:

1 - O público: número de inscritos; locais de

inscrição etc. Chegou-se à conclusão de que o número de

inscritos correspondeu às expectativas, considerando a

época do ano, a divulgação, a ocorrência de eventos

paralelos. O público-alvo foi o de professores universitários

e do ensino médio, estudantes univesitários e do ensino

médio, escritores e pesquisadores. Constatou-se a ausência

de pessoas e entidades ligadas ao Tradicionalismo,

excetuando o Escritor Mário Mattos e o Sr. Mogar Pagano

Xavier, responsável pela FUNDAPEL, extinta e substituída

pela atual Secretaria Municipal de Cultura.

2 - A participação das entidades envolvidas na

realização do evento: Exceto o Instituto de Letras e Artes da

UFPEL concluiu-se que todas as entidades, incluindo o

poder público através da Secretaria Municipal de Cultura

participaram, efetivamente, para o sucesso do

acontecimento.

3 - Quanto ao desenvolvimento geral do evento:

Constatou-se que a programação artística (teatro, música e

declamação poética) foi adequada ao tema e agradou ao

público. Cumpriram-se os horários e a atuação dos

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coordenadores das comunicações e dos palestrantes foi

satisfatória.

4 - Quanto à repercussão do evento: Entendeu-se que

a repercussão foi bastante boa, o que pode ser constatado

através da cobertura da imprensa escrita, além da

radiofônica, que foi realizada pelas rádios Comunidade FM;

Pelotense e Federal FM, e da TV-UCPEL. Os cartazes e

folders foram distribuídos pelas entidades, obedecendo a um

planejamento estratégico, visando um público determinado,

o que correspondeu ao intento.

Compreendeu-se que a figura humana e literária de

João Simões Lopes Neto vem cada vez mais se impondo, no

que é fato significativo, o apoio da FAPERGS, o que não só

possibilitou a viabilização do evento, mas assinala o

reconhecimento oficial da pesquisa acadêmica e seu diálogo

com os diversos setores da sociedade, no debate em torno do

criador de Blau Nunes. A esse reconhecimento, já

estabelecido pelo público e pela crítica, que talvez possa ser

sintetizado pela inclusão do conto Contrabandista, na

antologia Os cem melhores contos brasileiros do século,

organizada por Ítalo Moriconi, editada pela Editora

Objetiva, em 2000, se somou o pedido de inclusão de seu

nome no Livro dos Saberes. O pedido foi entregue à então

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coordenadora geral do Livro e Literatura do Ministério da

Cultura, Mequita Coimbra de Andrade, em agosto de 2001.

O Livro dos Saberes, instituído pelo decreto nº 3551, de 4 de

agosto de 1999, é uma publicação do Governo Federal, que

destaca a obra dos principais escritores brasileiros, como

uma espécie de memorial da literatura nacional.

Fora essas manifestações críticas, como a de

Moriconi, ou institucionais, onde se inscreveria a inclusão do

Velho Capitão no Livro dos saberes, Simões é antes de tudo

um tema que apaixona. Melhor exemplo não há do que a

resposta de Mário Mattos, cerca de 20 anos depois, ao artigo

Escritor representativo2, no trabalho inédito intitulado O

reconhecimento de Simões Lopes Neto: uma revisão à

crítica de Wilson Martins (agosto de 2002). O mesmo

sentimento me fizera redigir também uma contestação

indignada das teses do autor da monumental História da

inteligência brasileira, sob o título de Modernismo e

2 MARTINS, Wilson. In Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28-5-1983. O

pesquisador Mário Mattos vem preocupando-se com esse ponto há vários

anos. Vide MATTOS, Mário. Simões Lopes Neto nas asas da

modernidade. In Diário Popular, Pelotas, 9- 3 – 1994 e do mesmo autor

Os embaraços ao desenvolvimento do MTG e Os mitos na simbologia da

cultura e Simões Lopes no Terceiro Milênio (textos inéditos, 1999).Para

maiores detalhes sobre este assunto vide também Anais do II Seminário

de Estudos Simonianos. Pelotas: Ed. Universitária UFPEL, 2001, pp.

154-157.

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Regionalismo (ensaio inédito, 1999)3. Esse trabalho já se

encontra superado pelo artigo de Mattos, o qual esperamos

venha logo a público.

Outro sinal visível de paixão, elemento notado e

elogiado pela pesquisadora Cláudia Antunes, foi a

repercussão da palestra ―Contos gauchescos: uma

obra-prima do mau gosto‖ realizada, no foyer do Teatro 7 de

Abril, pelo prof. João Arendt, em 13-11-2002, durante o

exitoso projeto da Secretaria Municipal de Cultura de

Pelotas, ―É conversando que a gente se entende‖ , conforme

se pode observar pelo comentário de M. L. Vollosky feito no

artigo Uma lição de coragem publicado no jornal Diário

Popular, de Pelotas, em 19-11-2002.

Vale dizer que foi possível perceber, dentre as

diversas abordagens realizadas no Simpósio, a presença de

um ―Simões contaminador‖, isto é, um autor que teve sua

obra como fonte de outras produções estéticas não literárias

e, em contrapartida, recebeu novas leituras de sua literatura

permeadas pela interpolação de diversificadas linguagens

dos multimeios e de outras formas de arte, tais como a

pintura, a música e o teatro. Apenas para que possamos

3 Para maiores detalhes sobre as divergências com as teses de Wilson

Martins, vide Anais do II Seminário de Estudos Simonianos. Pelotas: Ed.

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exemplificar, busquemos na memória a exposição Mítica

Simoniana, do artista plástico goiano4 Fábio Borges, no

Centro de Integração do Mercosul, cuja vernissage , em 20-

11-2000, marcou a abertura do II Seminário de Estudos

Simonianos. O próprio artista em declaração à imprensa

revelou esse poder ―contaminador‖ do autor de Contos

Gauchescos (1912): Não é um trabalho de ilustrar os contos,

mas de unir o que há de comum entre a minha linguagem e a

de Simões Lopes Neto.5

As edições populares, tais como as da Martin Claret e

da L&PM, se multiplicam 6. Se de um lado, isso confirma a

penetração da literatura simoniana entre diversos tipos de

leitores, oriundos de variegados lugares sociais e níveis de

ensino, de outro, se pode incorrer no risco da falta de

critérios editoriais confiáveis, inclusive com erros a respeito

de informações básicas, do que é exemplo a edição do

Cancioneiro guasca, surgida em 1999, pela casa publicadora

Universitária UFPEL, 2001, pp. 154-157. 4 Em notícia do jornal Diário Popular, Pelotas, de 25-11-2000 aparece a

informação de que o artista plástico Fábio Borges é carioca. 5 Cf. RIBEIRO, Roberto. Exposição sobre a obra e Simões Lopes

amanhã. In Diário Popular, Pelotas, 19-11-2000. 6 Para maiores detalhes vide CRUZ, Cláudio. Simões Lopes a mancheias.

In Cadernos Porto e Virgula. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999,

pp.11-14.

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porto-alegrense Sulina, onde se afirma que a referida obra

apareceu apenas postumamente.

Depois veio a edição, em formato pocket, do

Negrinho do Pastoreio e outras histórias, comemorativa dos

109 anos do Diário Popular, de Pelotas, com seleção e notas

de Mário Osório Magalhães. A capa foi ilustrada com uma

fotografia de Carlos Queiroz, a partir de uma escultura de

Antônio Caringi. Esse tipo de trabalho, meritório por colocar

ao alcance do grande público obras importantes a preços

acessíveis, notadamente do público escolar, possui o

inconveniente de poder desorientar o leitor não

especializado quanto à bibliografia exata do autor, posto que

sabemos nunca ter Simões publicado qualquer livro com este

título, tratando-se, pois, de uma coletânea. De qualquer

forma, isso mais demonstra o interesse na divulgação de sua

obra.

A universalidade simoniana, sempre tão contestada

em função de sua linguagem dialetal gauchesca, não se tem

mostrado elemento impeditivo de sua acolhida, inclusive

através de uma das mais fecundas atividades interculturais,

tanto que Simões Lopes Neto tem sido traduzido para o

espanhol, o inglês, o francês, o italiano, o alemão, o russo e

agora para o japonês, conforme atesta o catálogo da editora

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Shinseken 7 (2002-2003), no qual constam Trezentas onças

(ilustrado por Clóvis Garcia) e O Negrinho do pastoreio

(ilustrado por Clarice Jaeger), ambos traduzidos por Mayumi

Watanabe e Sachito Tsuda.

Ainda na linha de popularização da obra simoniana,

uma salutar iniciativa coube ao jornal Zero Hora, de Porto

Alegre, que publicou a série Lendas gaúchas, no ano 2000,

onde constavam trabalhos do Rapsodo bárbaro.8 Temos

ainda livros infantis calcados nas lendas simonianas, tais

como Negrinho do pastoreio e Boitatá, editados pela Sabida,

s/d., integrantes da ―Coleção Folclore em atividades‖.

Essas manifestações de popularização da literatura de

Simões Lopes Neto através de edições voltadas ao grande

público e da divulgação mediada pelos encartes jornalísticos,

em formato atraente e com ilustrações bonitas,

possibilitaram a afirmação senão de um ―Simões canônico‖9,

pelo menos, o encaminhamento de um Simões em vias de

reconhecimento, a partir de sua próximidade com o público

leitor.

7 Catálogo cedido gentilmente pelo pesquisador Adão Monquelat.

8 Cf. Lendas gaúchas. Porto Alegre: Zero Hora/ Pioneiro, 2000. De

Simões Lopes Neto encontra-se: V. 1: Negrinho do pastoreio, pp. 6-15;

V.2: Casa de M´bororé, p. 27, e Lunar de Sepé, pp. 30-33; V. 3: A M´

boitatá; V.4: Mãe mulita, pp.4-8; V. 5: Salamanca do Jarau, pp. 4 -36.

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25

Considerando esses impulsos de divulgação da obra

lopesnetina, deve-se assinalar a interessante iniciativa de

gravá-la em fita ou CD, juntamente com a obra de outros

autores gaúchos, tais como Lya Luft e Luís Fernando

Veríssimo, para utilização de portadores de deficiência

visual.10

Além disso, a gravadora carioca Luz da Cidade

lançou quatro CDs referentes a Simões Lopes Neto, narrados

por Paulo César Pereio, sendo o primeiro uma antologia11

, e

os demais, os Casos do Romualdo, na íntegra. Em disco, fora

do circuito comercial, temos ainda o Negro Bonifácio,

narrado pelo escritor Aldyr Garcia Schlee, como anexo à

dissertação de mestrado de Cláudia Antunes, apresentada na

PUC-RS, e o CD Simões Lopes Neto: sonhos e sons (2002),

produzido por mim especialmente para o programa ―Palavra

Liberdade‖, na Rádio Comunidade FM, emissora

comunitária mantida, fundamentalmente, pelo movimento

sindical de Pelotas, programa este reproduzido via Internet,

pela rádio da Casa de Cultura Lázaro Zamenhof.

9 Vide BORGES, Luís. Simões Lopes Neto: um canônico na fímbria do

cânone. (Ensaio inédito). 10

Cf. Autores gaúchos em audiolivros. In Zero Hora, Porto Alegre,

10-5-2000. 11

O conteúdo do disco é o seguinte: Negrinho do pastoreio, O mate do

João Cardoso; Trezentas onças e Algumas miudezas.

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26

A intuição de que o Velho Capitão, se não o foi para

si era um bom negócio para os outros, seguida pela editora

Echenique e, mais tarde, pela Globo, é inegável pela sua

vitalidade editorial. Nesse sentido, o boom simoniano, se

assim nos podemos expressar, expandiu-se, quando sua obra

caiu em domínio público, podendo, deste modo, ser editada

sem o pagamento de direitos autorais. Outro fator importante

foi a publicação, no início da década de 80 do século

passado, do livro pioneiro de Carlos Reverbel, Um Capitão

da Guarda Nacional, pela Martins Livreiro.

Em verdade, a trajetória da pesquisa e do resgate da

vida e obra de Simões Lopes Neto12

, obrigatoriamente, em

sua fase heróica, tem de ser contada desde os anos 40 até

1981 – a Era Reverbel. Daí pra frente, temos alguns marcos

indispensáveis na reflexão sobre os rumos da pesquisa

lopesnetina. Vejamos alguns: a descoberta de Olhos de

remorso pelo historiador Mário Osório Magalhães13

, em

12

Para maiores informações vide BAVARESCO, Agemir e BORGES,

Luís, opb. cit, pp. 86-119. 13

Para maiores informações vide o livro Novos textos simonianos.

Pelotas: Confraria Cultural e Científica Prometheu/Livraria Lobo da

Costa, 1991. Ver também BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís.

História, resistência e projeto em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS

Editor, 2001, p. 95 e 113-114, notas 83-85 e 88. Esse debate também

apareceu no II Seminário de Estudos Simonianos. Vide os respectivos

Anais. Pelotas: Ed. Universitária UFPEL, 2001, pp. 181-182.

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27

1985, quando teve grande repercussão na imprensa. Esse

conto seria incluído na edição crítica de Lígia Chiappini, de

1988. Nesse mesmo ano, os pesquisadores Adão Monquelat

e Geraldo Fonseca publicaram a Antologia poética (E

alguma prosa de e sobre) Lobo da Costa, obra para a qual

me cedem para um ensaio sobre o regionalismo do autor de

Lucubrações (1874) dois sonetos14

de Simões Lopes Neto,

cuja face poética, com exceção dos triolés das ―Balas de

estalo‖15

, era ainda desconhecida.

O pesquisador Adão Monquelat inaugurou uma nova

e significativa fase nos estudos simonianos, pois é ele o

14

Esses poemas, Réve e Duvida, foram divulgados em artigo de

Monquelat ao jornal Diário da Manhã, Pelotas, em 30-6-1991.

Posteriormente apareceram em Novos textos simonianos (1991, pp. 17 e

19) e no nº 17 dos Cadernos Porto & Vírgula. Porto Alegre: Unidade

editorial/ Prefeitura Municipal, 1999, pp. 53-54. Cabe observar que esses

poemas já haviam sido desentranhados do esquecimento dos jornais

antigos desde, pelo menos, a segunda metade da década de 80 do século

passado, quando Monquelat e Fonseca, completaram outra obra

importante: Coletânea e notas biográficas de poetas pelotenses (1985),

que infelizmente permanece inédita. Além disso, apareceram também

na Revista ZH, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, na matéria Baús

revelam poemas de Simões Lopes Neto, de autoria do jornalista Klécio

dos Santos, em 26-5-1996. 15

Sobre as ―Balas de estalo‖ vide o livro de Ângelo Pires Moreira, A

outra face de Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983.

Mais tarde, em seu artigo João Simões Lopes Neto: a face romântica,

incluído em Novos textos simonianos (pp. 13-22), o pesquisador

Monquelat revela a data em que efetivamente estrearam as ―Balas de

estalo‖, isto é, em 12-6-1888, e não em 2-7-1888 como supunham

Reverbel e Pires Moreira.

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28

único a ter descoberto um conto urbano de João Simões

Lopes Neto16

, Na lagoa... do Fragata17

, encontrando tal

revelação grande ressonância na mídia18

. Alia-se a essa nova

fase de impulso à pesquisa lopesnetina os trabalhos no

campo da estilística e da biografia de Carlos Francisco Sica

Diniz.19

Outro ponto marcante no resgate da obra simoniana

foi a publicação de O teatro de Simões Lopes Neto (v. 1), sob

16

Cf. ARRIADA, Eduardo e BORGES, Luís. Laçando o boi barroso: o

caso de atribuição de autoria do conto „Olhos de remorso‟ a João

Simões Lopes Neto (Ensaio inédito). 17

Publicado originalmente no Radical (Pelotas), ano 1, nº 12, em

22-3-1890, sob o pseudônimo de João Felpudo. Posteriormente apareceu

na edição de 30-6-1991 do Diário da Manhã, Pelotas, inserido ao final

do artigo de Monquelat, Capitão João Simões ... e sua cia. de Joões.

Depois foi republicado ainda em Novos textos simonianos, pp. 53-60; e

CRUZ, Cláudio. Cadernos Porto &Vírgula, n. 17. Porto Alegre:

Unidade Editorial, 1999, pp. 57-62. 18

Cf. Uma herança de inestimável valor. In Zero Hora, Porto

Alegre,26-5-1996. 19

Cf. DINIZ, Carlos F. Sica. Simões Lopes Neto – o espaço da

linguagem. In Diário Popular, Pelotas, 4 -3-2001. Vide também Um

conto bem contado. In Novos textos simonianos, pp. 41-46. Quanto às

pesquisas biográficas de Sica Diniz tivemos duas amostras nas palestras

proferidas em 11-6-1996, quando da realização do I Seminário de

Estudos Simonianos, e em 14 –11-1999, quando ocorreu o III Encontro

Sul-Brasileiro de Escritores, promovido pela Academia Sul-Brasileira de

Letras, Casa Brasileira de Cultura e UCPEL. Cabe observar que foi no

referido Encontro de Escritores, a partir da palestra do prof. Sica Diniz,

que o prof. Bavaresco ―descobriu‖ Simões Lopes, passando a

incorporá-lo como objeto de sua investigação filosófica, notadamente

sob os aspectos ético-metafísicos e de filosofia intercultural. (Cf.

COGOY, Carlos. Filosofando com Simões Lopes. In Diário da Manhã,

Pelotas, 24-12-2002.)

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29

os auspícios do Instituto Estadual do Livro, em 1990,

organizado por Cláudio Heemann.

Em 1987, Dilmar Messias, responsável pela política

teatral do Rio Grande do Sul, considerou relevante a

pesquisa das artes cênicas e da dança no estado.20

Heemann,

ligado ao teatro desde a adolescência, aceitou a tarefa,

proposta pela Coordenadoria de Artes Cênicas do CODEC,

de investigar a história do palco rio-grandense, chegando a

publicar uma História do teatro no RS. Na trilha desse

trabalho beneditino, percorrendo acervos diversos e

bibliotecas durante dois anos, auxiliado por Cheila Moro,

trouxe à baila teatrólogos soterrados pelo tempo, tais como

Joaquim Alves Torres, cuja obra, em 1989, foi editada pelo

IEL.21

Municiado dessa experiência era sabedor de que, a

começar por Augusto Meyer, passando por Reverbel,

Guilhermino César, Flávio Loureiro Chaves, Antônio

Hohlfeldt e outros, as referências ao teatro de Simões Lopes

Neto eram invariavelmente as mesmas, quase sempre

distantes das fontes primárias. Estava aí a necessidade de se

20

APPEL, Carlos Jorge. Afinal o teatro de Simões Lopes Neto. In

HEEMANN, Cláudio (org.). In O teatro de Simões Lopes Neto. V. 1.

Porto Alegre: IEL, 1990. 21

Idem.

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30

buscar – caso existissem - os originais ou as raríssimas

publicações.

Segundo Sérgio da Costa Franco22

, a ―descoberta‖

de Heemann, que já havia desenterrado outros dramaturgos,

mesmo muito importante, afirmava ainda mais o contista

Simões contra as demais facetas de seu inquieto espírito

criador, pois conforme afirmou Mozart Victor Russomano23

,

nem as crônicas, nem o teatro, nem as conferências, nem os

poemas de João Simões Lopes Neto acrescentam algo à sua

glória literária [...] porque a glória verdadeira de Simões

Lopes está conquistada e consolidada, definitivamente,

pelas Lendas do Sul e pelos Contos Gauchescos. Os Casos

do Romualdo foram uma exceção, dessas que não se

repetem.

Cláudio Heemann observa, entretanto, que a obra de

Simões Lopes Neto, especificamente sob o ponto de vista

dramatúrgico, não deve ser encarada como apêndice ou

curiosidade no conjunto da produção de um novelista

clássico, mas é antes a expressão de um estro cênico que não

encontrou no ambiente provinciano de Pelotas, em que se

22

Cf. A descoberta. Recorte do jornal Zero Hora, Porto Alegre, existente

na Biblioteca Pública Pelotense, do mês de julho, sem identificação de

dia e ano. Suponho, contudo, que o ano seja o da publicação do livro.

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31

manifestou, a atenção e o cuidado que o encaminhassem à

maturação plena. Conclui ele ainda:

Em conjunto, as comédias de Simões Lopes Neto, as cenas

avulsas, o drama que nos chegou com falta de um ato e os

roteiros para revistas musicais, mesmo limitados ou

inconclusos, não revisados ou em fase de elaboração cuja

terminalidade só podemos presumir, posicionam seu autor na

dramarturgia gaúcha. Como no caso de Qorpo Santo, o valor

deste teatro se afirma dentro do fragmentário. Mas nem por isso

destituído de valor , importância ou encanto cênico. Pois mesmo

nos momentos em que a sua consistência literária apresenta-se

com menor inteireza, a vocação cênica é inegável.24

Na ocasião em que Heemann divulgou seu livro,

contendo as 13 peças de Simões Lopes Neto, a imprensa

mobilizou-se em louvar – com justeza - os achados do

pesquisador, ―decorrentes de complicadas investigações‖.25

Na ocasião, Sérgio da Costa Franco tratou de lembrar que

Carlos Reverbel, em sua modéstia, não quis imiscuir-se na

pesquisa de Heemann, o que lhe teria facilitado o caminho,

uma vez que em seu Um Capitão da Guarda Nacional

escreveu:

23

RUSSOMANO, Mozart Victor. Como se fosse um prefácio. In Novos

textos simonianos, p. 11. 24

CF. HEEMANN, Cláudio. O teatro de Simões Lopes Neto. Porto

Alegre: IEL, 1990. 25

Sérgio da Costa Franco, no recorte citado.

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32

Mais adiante, por volta de 1955, os salvados desse arquivo [de

Simões Lopes Neto] foram doados a Mozart Victor Russomano,

que os recebeu com estas palavras:

―o arquivo de J. Simões Lopes Neto foi espoliado através de

anos. Hoje está entregue às minhas mãos pela viúva do saudoso

escritor. Reduz-se a um amontoado de documentos

desorganizados – muitos dos quais de vital importância para a

história do Rio Grande do Sul -, que reclamam classificação e

detalhada pesquisa.‖ 26

É ainda Mozart Victor Russomano quem esclarece o

impasse entre as opiniões de Sérgio da Costa Franco e Carlos

Jorge Appel, que debatiam ―a conhecida e provinciana

história do pai da criança‖:

A pesquisa sobre o teatro no Rio Grande do Sul, desenvolvida

por Cláudio Heemann, sob patrocínio do CODEC e com o

estímulo entusiasmado de Carlos Jorge Appel, trouxe à luz do

conhecimento público, não a existência das peças do velho

Simões (das quais se tinha ampla notícia, mas os textos , em

número de doze, alguns incompletos e secundários, dos quais

alguns aparecem neste livro [de Heemann], acrescido de Os

Bacharéis, que Regina Clara Simões Lopes obteve no Rio de

Janeiro, completando, assim, o que havia, a propósito, no

arquivo do escritor.27

Paralelamente às atividades individuais de pesquisa,

observamos surgir várias entidades, como o Núcleo de

26

REVERBEL, Carlos. Um Capitão da Guarda Nacional. Porto Alegre:

Martins Livreiro, 1981, p 252. 27

RUSSOMANO, Mozart Victor. O arquivo de Simões Lopes Neto. In

HEEMANN, Cláudio (org). O teatro de Simões Lopes Neto. Porto

Alegre: IEL, 1990.

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33

Estudos Simonianos, do Instituto Histórico e Geográfico de

Pelotas, o Instituto João Simões Lopes Neto e, mais

recentemente, o Grupo de Pesquisa Simoniano, ligado ao

Instituto Superior de Filosofia da UCPEL. Nessa orientação,

vão também os eventos do I e II Seminário de Estudos

Simonianos (1996 e 2000, respectivamente) e, em dezembro

de 2002, o Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, cujo

registro são os presentes Anais.

Todos estes encontros foram momentos decisivos

para os pesquisadores e interessados na vida e obra de

Simões Lopes Neto, posto que eles nos deram uma idéia do

ponto em que estão as pesquisas e as linhas em que mais se

desenvolvem, permitindo um significante saldo coletivo.

Lembra-me justamente no concernente aos objetivos

propostos na realização do Simpósio Simoniano - Lendas do

Sul, de que estava a superação de competitividades funestas,

intrigas pessoais e polêmicas intransigentes. Soubemos,

pois, com satisfação que esse propósito foi atingido, não só

pela representatividade institucional do evento, que contou

com a participação do NES/IHGPEL, ASBL, APEL e

SECULT/Pelotas, capitaneadas pelo ISF/UCPEL, mas

também pelas perspectivas abertas pelos debates ali

travados, sendo um dos mais importantes o que foi sugerido

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34

por Mário Mattos, durante a palestra do prof. Luís Augusto

Fischer, que deverá se concretizar através de painéis, em

2003, sob o título geral de As raízes populares da gauchesca

rio-grandense 28

.

O Simpósio Simoniano - Lendas do Sul logrou

continuar a tradição de, ao lado de grandes nomes sediados

em Pelotas, trazer renomados pesquisadores da Capital,

entre os quais se destacam o prof. Fischer e a jornalista

Cláudia Antunes. Aliás, esta última pesquisadora, aplicando

a crítica genética a Simões, mais especificamente ao conto

Negro Bonifácio 29

, fez uma importante descoberta: a

publicação no jornal Diário Popular de contos, inclusive já

em 1911, que irão integrar sua obra mais famosa, Contos

gauchescos. 30

28

Cf. e-mail de Mário Mattos, em 9-1-2003. Esse tema, o que mostra a

pertinência da sugestão, surgiu no debate sobre

tradicionalismo/modernidade na identidade do gaúcho, principalmente

na literatura, o que foi objeto da mesa-redonda ―Literatura gaúcha com

cara universal‖, mediada por Luís Borges, de que participaram Agemir

Bavaresco, Manoel Soares Magalhães e Charles Kiefer. A atividade

aconteceu durante a 30a. Feira do Livro de Pelotas, no dia 12-11-2002,

no auditório do Colégio São José. Obs: Eurico de Souza Gomes não

compareceu por motivo de doença em família. 29

ANTUNES, Cláudia Rejane Dornelles. Simões Lopes Neto: a lógica

da criação literária. O exemplo do conto Negro Bonifácio. 2 v. Porto

Alegre: PUCRS. Dissertação de mestrado, 2001. 30

Cf. RIBEIRO, Roberto. Contos gauchescos em primeira mão. In

Diário Popular, Pelotas, 4 –3- 2001.

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35

Em maio de 2000, encontrei também no Diário

Popular, de 2-11-1912, a primeira manifestação crítica sobre

os Contos gauchescos, de Januário Coelho da Costa

(1886-1949), sendo que até então tal prioridade era

concedida a Antônio de Mariz (1855-1929) (pseudônimo de

José Paulo Ribeiro), cujo trabalho crítico sobre Simões

Lopes Neto apareceu no Correio do Povo, de Porto Alegre,

em 7-11-1913, e mais tarde, em 17-11-1913, no periódico

pelotense Opinião Pública. 31

Nos ecos das novas hermenêuticas e descobertas se

desenvolviam os ―transbordamentos‖ da literatura

simoniana para outras linguagens, sendo uma das mais

peculiares e atraentes as Histórias em Quadrinhos (HQ). Em

1976, na revista Parelelo32

, quadrinizado por Santiago,

aparece o conto O jogo do osso e agora, durante a realização

do Simpósio Simoniano - Lendas do Sul, tivemos a

exposição da Salamanca do Jarau em HQ, trabalho de autoria

do desenhista Saulo Morales.

31

Para maiores detalhes vide BORGES, Luís. Primeiras manifestações

críticas sobre Contos gauchescos: Coelho da Costa e Antônio de Mariz.

(Ensaio inédito, 2001) Vide também breve comentário em

BAVARESCO, Agemir e BORGES, Luís. História, resistência e projeto

em Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2001, pp. 87-89. 32

Cf. Revista Paralelo, nº 2, out. 1976, pp. 14 -18.

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36

Talvez seja na música que possamos constatar os

primeiros ―transbordamentos‖. Luís Cosme (1908-1965)

compôs, em 1936, uma trilha baseada na Salamanca do

Jarau.33

Em 1945 ela foi usada pela primeira vez num balé,

montado pela coreógrafa Tony Petzhold (1914-2000). Em

1985, o espetáculo do Balé Phoenix, dirigido pela mesma

coreógrafa, foi remontado. Será somente 17 anos depois, nos

dias 20 e 21 de dezembro de 2002, que o espetáculo de dança

retornará34

, dessa vez com o acompanhamento da OSPA e

direção artística e coreografia de Eva Shul, com regência e

direção musical de Ion Bressan. Outros grandes intérpretes e

compositores da música gaúcha e brasileira também usaram

a literatura simoniana como fonte de inspiração 35

.

33

COSME, Luís. A Salamanca do Jarau: bailado sobre a lenda

missioneira. Porto Alegre: Movimento, 1976. Vide também GUEDES,

Paulo. Salamanca do Jarau [comentário sobre a música de Luís Cosme].

In Província de S. Pedro. Porto alegre: Globo, n. 3, dez. 1945, pp. 92-93. 34

A montagem foi o resultado de um concurso promovido pela SEDAC,

em 2001. 35

Sem fazer um levantamento exaustivo foi-nos possível listar as

seguintes composições musicais que buscaram em Simões Lopes Neto

sua fonte: Meu rosilho Piolho (Ramiro Amoril/Joca Martins, CD: Vida

Buena, 2000); No manantial (Vítor Ramil, CD: Ramilonga, 2000);

Correndo eguada (Alex Silveira, CD: De quem anda por aí, 2000);

Negrinho do pastoreio (Barbosa Lessa, CD: 50 anos de música, 2001);

Negro Bonifácio (Antônio Augusto Ferreira/Mauro Ferreira/Luís Bastos,

CD: Tertúlia Nativista, do festival realizado em Santa Maria, RS, 1985);

Cruzilhada (Tiago Cesarino, CD: 18º Reponte, festival realizado em São

Lourenço do Sul, RS, 2002); Olhando o cerro do Jarau (Rodrigo

Bauer/Mauro Moraes, CD: Autores gaúchos, 2002); Quisera ter sido

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37

É no teatro, porém, que Simões Lopes Neto tem

recebido grandes abordagens, pois, ao lado dos aspectos

cênicos e plásticos (cenários, figurinos, etc), muitas vezes,

temos uma incursão concomitante pelo musical.

Em 1989, a diretora Inês Marocco, do grupo de

teatro da UFSM, produziu o espetáculo Manantiais, para

divulgação no exterior, mais especificamente no Marrocos.36

Esse espetáculo tinha enquanto proposta, eis que visava

atingir um público estrangeiro alheio ao universo cultural

pampino37

, tentar universalizar o mais possível a linguagem

simoniana.38

Diferentemente dessa circunstância, mas

tomando Manantiais como uma referência, o diretor e

dramaturgo Valter Sobreiro Júnior pretendia montar uma

peça também a partir dos textos simonianos.

Lucidamente sabia que era já território bastante

visitado, principalmente em se tratando das Lendas do Sul.

(Jaime Caetano Braum/Leonel Gomes, CD: No compasso de meu mundo

[de Jari Terres], 2001); Sagração a M‟boitatá (Ribeiro Rudson/Airton

Pimentel, CD: 30ª Califórnia da Canção Nativa, festival realizado em

Uruguaiana, RS, 2001) e O jogo do osso, composição inédita de Antonio

Guadalupe Júnior, de quem colhemos todas essas informações. 36

SOBREIRO JR., Valter. Contos gauchescos: uma experiência cênica.

In CRUZ, Cláudio. Simões Lopes Neto. Cadernos Porto & Vírgula, n.

17. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1999, p. 84. 37

Expressão de Januário Coelho da Costa, utilizada na primeira

manifestação crítica sobre Contos gauchescos, publicada no Diário

Popular, Pelotas, 2-11-1912.

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38

Nessa direção, buscou um novo desafio: a experiência cênica

dos Contos gauchescos. Seu público-alvo eram,

principalmente, os estudantes das escolas públicas e

particulares de Pelotas e região. 39

Numa enquete informal o seu grupo chegou a

preocupante constatação: ―Ao contrário do que se

imaginava, a leitura das obras de João Simões Lopes Neto

cingia-se a um grupo restrito e, principalmente, ao

obrigatório das aulas de literatura e dos programas de

vestibular.‖40

Pronto. Estava instituído o norte do trabalho: o

estímulo à leitura de Simões Lopes Neto.41

As reuniões preparatórias tiveram a parceria do

Teatro Permanente da UCPEL e o Teatro Escola de Pelotas,

nas quais foram estudados os Contos, tanto em seus aspectos

socioculturais quanto lingüísticos. Ao final de quatro meses

de estudos e ensaios, com música de Leonardo Oxley

Rodrigues, estava pronto para nascer o espetáculo Teias de

amor e morte.

38

SOBREIRO JR., Valter, ob. cit., p. 85. 39

Idem, ibidem. 40

Idem. 41

Idem.

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39

A peça estreou em Ijuí, em setembro de 1998, como

uma das atividades artísticas que compunham a

programação da Feira do Livro do município. No ano

seguinte, até outubro, sucederam-se encenações em Pelotas e

Canguçu.42

Segundo Michele Ferreira43

, o ator paulista José de

Abreu, hoje conhecido artista da Rede Globo, vindo da

Grécia em companhia de sua esposa, Nara Keisermann,

pelotense de nascimento, passa a residir em Pelotas desde

1973. No ano seguinte, ele participa de um movimento que

visava contrapor-se à venda do Teatro 7 de Abril e sua

possível demolição. A mobilizacão, da qual participou

ativamente José de Abreu, culminou com a desapropriação

do prédio por parte da Prefeitura Municipal e seu

tombamento pelo IPHAM.

Em 1975, estréia no Teatro 7 de Abril, a peça A

Salamanca do Jarau, com adaptação e direção de Luiz Artur

Nunes e trilha sonora de Carlinhos Hartleb, tendo como ator

principal e produtor José de Abreu. A peça percorreu 90

cidades em todo o RS, fazendo ainda uma temporada de

42

Informações prestadas pelo diretor e teatrólogo Valter Sobreiro Júnior

em conversa telefônica informal.

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40

duas semanas em São Paulo, primeiro no Teatro Municipal,

por intermédio de Sábato Magaldi, e depois no MASP. O

espetáculo foi aclamado pela crítica e pelo público.

O sucesso, conforme Roberto Ribeiro44

,

proporcionado pela Salamanca do Jarau, em ―montagem

moderníssima e experimental‖, fez com que José de Abreu

recebesse um convite, em 1980, quando abandonou Pelotas,

para participar do filme A intrusa, baseado na obra de Jorge

Luís Borges, recebendo o kikito de melhor ator no Festival

de Cinema de Gramado.

Recentemente dois esquetes, ancorados em textos

lopesnetinos, foram montados. Um deles em 28-11-2002,

numa apresentação única no Auditório do CEFET-RS,

exibido pela Cia. Cem Caras, grupo amador dirigido por

Flávio Dornelles, que apresentou O jogo do osso. O outro

aconteceu na abertura do Simpósio Simoniano - Lendas do

Sul, quando o grupo Tribo da Lua, cujo diretor é Aceves

Moreno, encantou o público com magistral encenação.

Apenas de 1999 em diante é que surgiram produções

baseadas na obra do maior regionalista brasileiro, no campo

43

FERREIRA, Michele. José de Abreu, cidadão pelotense. In Diário

Popular, Pelotas, 6-11-2002. Obs: José de Abreu é sócio honorário do

Instituto João Simões Lopes Neto.

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41

da ―sétima arte‖.45

O filme Cobra de fogo, baseado na lenda

do Boitatá, tem o roteiro e direção de Antônio Carlos Textor,

fotografia de Antônio Oliveira e trilha sonora de Heitor

Barbosa. No elenco estão o cantor nativista Telmo de Lima

Freitas, o tradicionalista e escritor Antônio Fagundes e a

atriz Maria Fakembach 46

.

Produções para TV e vídeo são também atividades

recentes. Em 29-2-2000, na sala multiuso do SESC-Pelotas,

houve mostra pública do vídeo O mate do João Cardoso 47

.

O vídeo, em verdade, é a gravação da peça teatral adaptada

do conto simoniano por Chico Meirelles, com música de

Sueli Costa e Lisiara Silva. A produção do vídeo foi do

Grupo de Teatro Regionalista, contando com o apoio do

SESC e da Casa de Brinquedos/Cooperativa de teatro. O

Grupo de Teatro Regionalista é formado por vários

integrantes de CTGs de Pelotas e surgiu em 1999, a partir de

um curso de teatro regionalista, que trabalhou somente com

44

RIBEIRO, Roberto. José de Abreu recebe título hoje. In Diário

Popular, Pelotas, 5-11-2002. 45

Cf. Obra de Simões Lopes é tema de filme. In Diário Popular,

Pelotas,9-7-1999. 46

Cf. Filme retrata conto de Simões Lopes Neto. In Diário da Manhã,

Pelotas, 25-11-2000. 47

Cf. PARANHOS, Maristela. Obra de Simões Lopes Neto é difundida

cada vez mais. In Diário Popular, Pelotas, 29-2-2000.

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42

textos de Simões Lopes Neto.48

Outro vídeo existente é

Melancia-côco verde, levado ao ar pelo Canal 7, TVE, em

13-12-2002 .49

Produzido especialmente para a televisão foi o

clássico Negrinho do pastoreio, que teve como protagonistas

os atores João Diemer (estancieiro), William da Silva

(Negrinho) e Simone Castiel (Virgem Maria), sendo a

narração de Neto Fagundes. O episódio foi ao ar na RBS-TV

em 17-11-2001, na série ―Histórias extraordinárias‖, sendo

reprisado na TVCOM, às 21 h , e no dia seguinte mais duas

vezes, às 14h10min e às 18h10min. 50

Diante do exposto, uma digressão um tanto longa

para uma simples introdução, concluímos que o Simpósio

Simoniano - Lendas do Sul se enraíza num rico e complexo

contexto interpretativo da literatura simoniana - de sua

afirmação e de seus ―transbordamentos‖ - mostrando seus

percalços, suas lacunas, mas principalmente suas conquistas

de resignificação do olhar simoniano e, num sentido mais

amplo, da identidade cultural gaúcha e das identidades

locais, em geral, em face de um mundo globalizado.

48

Cf. PARANHOS, Maristela. Idem, Diário Popular, Pelotas,

29-2-2000. 49

Informação via e-mail do poeta e compositor nativista Antônio

Guadalupe Júnior.

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43

50

Cf. Lendas recontadas. In Zero Hora, Porto Alegre, 17-11-2001.

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44

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45

1 - LENDAS DO SUL - UM ROTEIRO DE LEITURA

Luís Augusto Fischer 51

Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista;

mas lembrar como eram seus códigos, expectativas e necessidades

alternativas

pode renovar nossa percepção da gama de possibilidades implícita no

ser humano.

Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional E. P. Thompson

Nada como um bom historiador para ajudar a pensar;

nada como uma frase de Thompson para servir de guia a uma

aproximação em direção às magníficas Lendas do sul,

obra-chave de Simões Lopes Neto e da cultura do sul do

Brasil. Pensar sobre elas, freqüentá-las, não significa uma

apologia do passado, ou uma defesa da excelência do

período nelas retratado, e uma conseqüente reprovação em

bloco do presente; é certo que as dificuldades de nossos dias

sempre - das mais amplas às mais restritas, das guerras e da

fome à injustiça miúda e diária - parecem um convite a

dourar o passado. Mas não é o caso aqui, nem foi o caso do

autor. O que anima esta edição está apontado nas linhas da

epígrafe: conhecer um mundo que não existe mais sempre

51

Professor da UFRGS.

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pode ser uma forma de pensar sobe as potencialidades da

vida humana, que não se esgota na regra do mercado, nem na

regra do presente, nem na da razão.

Lendas do sul, livro de Simões Lopes Neto, foi

publicado em 1913, sendo o terceiro e último de seus livros

que o autor viu impressos, sucedendo ao Cancioneiro

guasca, de 1910, e aos Contos gauchescos, de 191252

. A

partir de 1926, as Lendas e os Contos passaram a ser

publicados conjuntamente. E, ainda hoje, o leitor brasileiro

encontra dificuldades de leitura, porque a genial criação de

Simões Lopes Neto foi escrita em dialeto regional fenecido.

Nessas poucas frases já se insinua uma equação imensa. Para

não ir muito longe, o que significa exatamente ―escrever em

dialeto regional‖? O que significa o adjetivo, no quadro

brasileiro da época do autor e na nossa própria época?

Estamos entrando em terreno pantanoso; tentemos não

perder o senso de direção.

* * *

52

Publicamos, pela editora Artes e Ofícios, uma edição anotada dos

Contos gauchescos (em 1998) e uma das Lendas do sul (2002), além de

uma edição também anotada de Antônio Chimango, clássico de Amaro

Juvenal publicado pela primeira vez em 1915.

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País imenso e ainda hoje não incorporado totalmente

- nem à lógica do mercado, nem ao âmbito de ação do Estado

nacional -, é esperável que o Brasil se depare com o tema do

regionalismo. Nem que seja pelo mero fato de que há regiões

remotas no espaço, regiões, que ao longo do tempo,

desenvolveram um jeito mais ou menos próprio de lidar com

todas as coisas, da economia à cultura, da moeda à língua. O

caso do Rio Grande do Sul, se visto dessa panorâmica e

inocente altura, pode ser explicado por aí: sendo a província

mais meridional do país, distante do Centro de turno (a

Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, pela ordem

de entrada em cena) e - importantíssimo - quase não

acessível por mar durante os quatro primeiros séculos da

vida brasileira (a maldita barra do porto de Rio Grande,

único porto marítimo do estado, só deixou de ser um enigma

e um risco totais no começo do século 20), desde sempre

precisou o estado gaúcho inventar suas práticas.

Devemos acrescentar a tais elementos um outro,

quem sabe mais decisivo ainda: trata-se da situação

fronteiriça do Rio Grande do Sul. Pode parecer uma

trivialidade nos dias de hoje, mas ser da fronteira, ou melhor,

ser a fronteira, implicava ser a face real e viva que o Império

português oferecia ao Império espanhol, até o começo do

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século 19, e depois da face do Brasil diante dos estados

platinos, Uruguai e Argentina. Quer dizer: desde que esta

parte do planeta foi alcançada pela civilização européia, o

território do Rio Grande do Sul foi o palco mais vivo (quase

foi o único de fato vivo, em todo o país) do atrito entre

interesses conflitantes, às vezes chegando à expressão das

armas.

Traduzido em miúdos, viver no Rio Grande do Sul

significou ser brasileiro e (ou ―mas‖?) precisar saber disso ao

montar a metafórica ou real guarda dos limites do país:

significou ser brasileiro sem a inocência de sê-lo. E isso

acrescido ainda da circunstância, não desprezível, de que as

condições naturais da região - padrão da terra, capacidade de

produção agropastoril, acesso ao mar - assim como as

condições históricas - a presença forte de índios de certo

padrão de vida, os jesuítas e as Missões, os padrões de vida

humana - enfim, de tudo isso ser compartilhado pelos

habitantes tanto do lado de cá como do lado de lá da

fronteira. Os habitantes do Rio Grande do Sul eram por

assim dizer iguais aos habitantes do Uruguai e da Argentina,

mas o tempo todo precisavam afirmar a pouca diferença -

pouca mas decisiva, porque era justamente essa diferença o

que regulava as relações por aqui. Ser partidário de Portugal

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ou da Espanha, ser brasileiro ou ser uruguaio e argentino,

isso acabava pesando mais que toda a realidade cotidiana de

trabalho e fruição da natureza, pastoreio e pampa.

Aqui deve entrar de novo na conversa a idéia do

regionalismo. Vistas as coisas desde o centro do Brasil -

tomemos o século 19 como referência, o Rio de Janeiro

capital do Império e depois da República - a região sul era

parte do Brasil, sem dúvida, mas uma parte apenas. Não

poderia ser tomada como regra do centro, naturalmente: o

centro só é centro, porque ele comanda regiões periféricas.

Além disso, naquela época como agora, o Sul do Brasil não

parece alcançar nem reproduzir a idéia de representação que

o Brasil faz de si mesmo, a cada geração renovadamente,

país periférico mas com fumos de autonomia que é. O Rio

Grande do Sul não parece caber nunca nos elementos

identitários, sejam eles as palmeiras e os sabiás ou os índios

que casam com brancas, nos termos do Romantismo, sejam

eles a malemolência do samba ou a excelência da mulata e

do malandro, nos termos da Era do Samba, sejam eles, ainda,

a negritude explícita e batuqueira na beira de uma praia

tropical paradisíaca, nos termos atuais desta espécie de

Grande Bahia que ocupa o cenário mental de nossos dias.

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Nada disso. Aqui temos a linha reta do pampa no

lugar das palmeiras e da praias; temos o gaúcho,

originalmente um pária social e depois uma simbolização da

identidade, tão arbitrária quanto qualquer outra, em lugar do

malandro, a mulata, o trabalhador paulista, o caipira mineiro

etc.; em lugar da malemolência sincopada do samba, a

rigidez monotônica da milonga, porta de entrada de outra

rigidez que foi também uma predileção sulina, o tango; em

lugar da malandragem, a grossura e o estabanamento; em

lugar do calor tropical, o frio. Quer dizer: não apenas o Rio

Grande do Sul era e continua sendo uma periferia do centro

do país; é também uma periferia esquisita, fora do âmbito

identitário dominante no Brasil. O que se dirá, então, da

literatura produzida em torno dessas diferenças, ou melhor, a

partir da afirmação positiva das coisas identitárias sulinas,

em boa parte opostas àquelas brasileiras?

Está traçado o caminho do enquadramento da cultura

sul-rio-grandense no escaninho fácil do ―regionalismo‖, isto

é, do quadro de minoridade estética. Dez Simões Lopes

Neto, com toda a sua qualidade especificamente artística,

não fazem sequer sombra a um ou dois Carlinhos Brown,

para fazer uma aproximação tão vigorosa quanto, talvez,

perigosa, no cenário mental dominante no país de nossos

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dias. (Isso para nem falar de outra variável, aquela que

filiaria Simões Lopes Neto, de pleno direito, segundo meu

ponto de vista, à tradição da gauchesca platina, filiação que

ainda hoje parece arrepiar os nacionalistas rasteiros que

gostam de pensar em nosso autor como alguém que se

definiu, supostamente, contra os platinos. Não é lugar para

esse debate, que no entanto me parece mais e mais pronto

para acontecer, se não pelas evidências literárias, pelas

contingências históricas, que têm desvelado a fragilidade das

fronteiras nacionais na consideração de mérito do fenômeno

cultural, como Ángel Rama há duas décadas apontou.

Restaria, no entanto, a necessidade de apontar, ainda aqui,

que o esforço construtivo da identidade gauchesca foi, em e

para Simões Lopes Neto, apenas um tópico regional no

contexto da condição brasileira, ao passo que, em e para os

Ascasubi e os Hernández, o maior e mais prestigioso tópico

identitário nacional.)

* * *

Quando Simões Lopes Neto está publicando sua

obra, década de 1910, a Literatura Brasileira é, em primeiro

lugar, o que o Rio de Janeiro define que ela seja. Na prática,

fazer literatura, para quem mora na então capital ou para

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quem quer ser lido lá, ou quer no mínimo ser parecido ao que

considera correto, fazer literatura é ser Olavo Bilac - fazer

sonetos elegantes, de vocabulário cuidado, tendendo ao raro,

sobre assunto de preferência bem afastado das durezas da

vida real, sobre assunto localizado no alto da Torre de

Marfim que servia de símbolo e programa de ação para os

letrados nacionais, todos eles de uma francofilia quase

assutadora de tão alegre. Ou então fazer literatura era fazer

como Coelho Neto - um narrador que, mesmo em tema

regional de seu Maranhão natal, era um preciosista, um

exemplo perfeito da afetação pseudo-erudita, praticada

largamente naquela altura parnasiana.

(Que Simões Lopes Neto tenha dedicado parte da

obra reunida em Lendas do sul ao próprio Coelho Neto é um

enigma pequeno e resolvível: todos admiravam o escritor

maranhense naquela época, e ele de fato era uma referência

para os provincianos que queriam seguir seu exemplo,

erguendo a matéria de sua região à dignidade nacional. Mas

o futuro decidiu a questão, eternizando o alcance literário de

Simões Lopes e restringindo tremendamente o alcance da

obra de Coelho Neto.)

É uma época em que várias regiões estão alcançando

um padrão civilizatório inédito, com cidades de porte já

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considerável procurando viver de acordo com as novas

exigências, que envolviam uma intensa atividade

jornalística, mais educação formal, maior proximidade aos

padrões europeus, e correspondentemente um maior

afastamento da vida rural, que havia dado substância à

mesma região; e por isso mesmo, da parte dos letrados

aderentes à cidade e ao que ela parecia implicar - elevação,

elegância, sofisticação, até o nefelibatismo - isso parecia

acarretar uma renegação, total ou parcial, das origens e de

tudo o que elas implicavam.

Por outro lado, e dialeticamente, é um período em

que vários escritores e pensadores se proporão a tarefa

simetricamente oposta a essa adesão. Estamos falando de um

grupo de letrados que se vai interessar, sem método ou

consciência claros, pela fixação de tipos, cenas, situações,

fantasias e mesmo registros lingüísticos em vias de fenecer.

Justamente a cidade moderna, esta fantástica criação humana

ainda hoje enigmática, tratará de impor um nova lógica sobre

toda a experiência humana; e é na cidade que se criarão tanto

aqueles aderentes, que optam pela saída mais fácil, com

vento a favor e sucesso fácil junto ao público ávido de

parecer elegante (imagine Bilac palestrando para gente

semi-ilustrada, interioranos em férias na capital, candidatos

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a chiques etc.), quanto aos críticos, que enfrentarão a maré

braba de falar daquilo que a cidade quer esquecer ou

esmagar. O leitor não precisa muita imaginação para lembrar

os casos brasileiros de tais escritores críticos, que colocarão

sua pena a serviço do futuro: um Sílvio Romero colhendo

lendas do folclore, e incentivando outros a imitá-lo; um

Euclides da Cunha relatando a guerra genocida contra

Canudos; um Simões Lopes Neto salvando do esquecimento

figuras e cenas do sul profundo, em vias de desaparecer.

No volume das Lendas do sul, temos três lendas

relatadas com detalhe, em formato digamos definitivo, e

quinze argumentos de lendas. Assim o autor deixou o

trabalho. Essa incompletude, este aspecto de work in

progress, de trabalho apresentado ao mundo ainda com os

andaimes, dá a medida simoniana das coisas: parece que lhe

interessava a divulgação, mesmo ao custo de certo aspecto

apressado. Simões Lopes Neto quer comunicar, quer falar,

quer ser ouvido.

Por isso mesmo se pode compreender a concepção do

livro, que talvez tenha germinado em seu espírito por muito

tempo. Para ficar com um elemento concreto, veja-se que ele

mesmo anota que a história registrada aqui com o nome de

―Lunar de Sepé‖ ele a ouviu no ano de 1902. Simões Lopes

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55

colheu as histórias na tradição oral, propriamente dita,

conviveu com o material por longo tempo e depois publicou

o resultado, na forma de três relatos e quinze esboços, isso

sem falar de sua primeira publicação em livro, o

Cancioneiro guasca, recolha bastante aleatória, ainda que

significativa, deste material.

Não foi o primeiro a fazer isso, naturalmente. Antes

dele, aqui mesmo no Rio Grande do Sul já alguns

intelectuais haviam se preocupado com a fixação da

memória popular. Como lembra Reverbel53

, a partir de 1880

Karl von Koseritz se pôs à tarefa, instado pelo

folclorista-mor do período, Sílvio Romero; depois dele, o

grande animador da Sociedade Partenon Literário,

Apolinário Porto Alegre, que recolheu (imperfeitamente, na

avaliação de Augusto Meyer) o que chamou de ―cancioneiro

de 35‖, motivos poéticos e poemas que teriam circulado no

estado

53

Um capitão da guarda nacional, p. 222.

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56

durante a guerra dos Farrapos; e assim também Graciano

Azambuja, Cezimbra Jacques, Luís de Araújo Filho e, mais

recentemente, Barbosa Lessa e Aparício Silva Rillo. No

centro do Brasil, como anota Lígia Chiappini54

, estão

engajados em tarefa semelhante escritores de nomeada,

como os já mencionados Bilac e Coelho Neto, que publicam

conjuntamente Contos pátrios, em 1904.

O sentido edificante de todos estes empenhos é

bastante claro, chegando mesmo ao compromisso patriótico

no conhecido caso de Bilac, ou ao quase delírio de Por que

me ufano de meu país, do conde Afonso Celso, obra

publicada em 1900, que marcou época e ficou na memória da

língua com a alusão ―ufanismo‖. Mas é de lembrar que não

era exatamente este o ânimo inicial daqueles que, na Europa

e depois na América, recolheram pelas primeiras vezes o

material que depois viria a ser chamado de ―folclore‖; estes,

ainda que animados de algum nacionalismo, atuaram muito

mais na perspectiva de salvar do esquecimento elementos

com que se identificavam eles próprios, ou com as

pessoas de determinada

54

No entretanto dos tempos, p. 104.

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região, em geral, elementos que poderiam parecer inúteis ou

meramente instrumentais para a cultura das capas superiores,

cultura tendencialmente leiga, científica, erudita, formal,

distante, desde o século 18, da vida cultural popular,

plebéia55

.

O caso de Simões Lopes parece habitar um ponto

intermediário entre os dois pólos. De um lado, sua biografia

e parte de sua obra (excluindo justamente o melhor, que são

os Contos gauchescos, as Lendas do sul e os Casos do

Romualdo) demonstram cabalmente seu interesse por assim

dizer patriótico gauchesco e brasileiro, já na militância em

prol da formação de insitutições culturais, já no caráter

edificante de algumas iniciativas (incluindo a quase

malograda obra Terra gaúcha, de intenções didáticas, só

publicada bem após sua morte), já mesmo em traços mais

sutis, como as notas didáticas que apôs às Lendas. Do outro

lado, porém, está precisamente o melhor Simões Lopes, o

escritor que superou o mero registro folclórico, em Lendas

do sul, e o mero decalque fotográfico ou histórico, em

Contos gauchescos. Está aí mesmo o acerto do autor, que

logrou ultrapassar as contingências tanto localistas quanto

55

Para o debate deste assunto, veja-se o citado E. P. Thompson em

Costumes em comum - estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad.

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historicistas, na direção de uma literatura madura; nas

palavras de Augusto Meyer, Simões Lopes acertou foi com

―o cuidado em reconstituir o timbre familiar das vozes‖.

* * *

As Lendas do sul, muito especialmente as três lendas

desenvolvidas - ―A M‘boitatá‖, ―A salamanca do Jarau‖ e ―O

negrinho do pastoreio‖ -, se apresentam com todos os

apetrechos convenientes a seu estilo. Talvez não importe

muito, para o leitor de hoje, o debate sobre o estatuto literário

específico dos textos, se de fato estamos diante de uma lenda

ou, como observa com boas razões Flávio Loureiro Chaves,

se trata melhor de um conto56

. Importará mais, sem dúvida,

ter em mente certas variáveis históricas que enquadram as

histórias aqui relatadas e lhes dão substância.

Para iniciar, veja-se que os enredos se situam no

tempo anterior ao mundo urbano, anterior à lógica

republicana; com boa dose de certeza, pode-se mesmo dizer

que a referência histórica mais recente está na altura de 1850,

Rosaura Eichemberg. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. 56

Simões Lopes Neto: regionalismo & literatura, p. 79: ―A salamanca do

Jarau, assim como foi redigida por Simões Lopes Neto, não é uma lenda

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na história da Salamanca, de que participa Blau Nunes, como

personagem. Quem percorreu as páginas dos Contos

gauchescos lembrará que Blau é dado como um homem de

seus noventa anos na apresentação do livro, editado em

1912, e que esta referência permite localizá-lo como nascido

na altura de 1820, pouco mais ou menos. E lembrará que as

histórias se passam entre esta data e o fim da Guerra do

Paraguai, aproximadamente.

Nas Lendas, temos uma narrativa que se passa em

tempo rigorosamente mítico, pré-histórico no rigor do termo,

―A Mboitatá‖, referente a uma vaga era em que houve um

dilúvio; outra, ―A salamanca do Jarau‖, que transcorre não

entre, mas em dois momentos bastante distintos, o primeiro

na altura de 1650, quando o sacristão é encantado pela

princesa moura, e 1850, quando Blau encontra o fantasma

dele e aceita o desafio de entrar na furna encantada; e ―O

negrinho do pastoreio‖, por fim, enredo que forçosamente se

situa nos limites da escravidão e da estância mais ou menos

primitiva, não conectada, claramente, ao mundo do mercado,

o que nos permite pensá-la, acompanhando a tradição crítica

a este respeito, na altura da passagem do século 18 para o 19,

e nem tampouco apenas uma nova versão da lenda. É um conto: a

aventura de Blau‖.

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aproximativamente. (Dos esboços de lendas referentes ao

mundo missioneiro, já por isso sabemos que se passam até a

metade do século 18, quando se operou aquela chacina

contra os índios e os jesuítas, a mando das coroas ibéricas,

para cumprimento do Tratado de Madri. Uma delas, ―São

Sepé‖, se alimenta de fatores diretamente históricos, como o

próprio Sepé Tiaraju, mas se conduz ao modo das lendas

fundadoras, neste caso em relação ao Cruzeiro do Sul.)

Pelo modo como Simões Lopes Neto aborda os

temas humanos e sociais nas lendas, percebe-se sua nítida

simpatia pela civilização missioneira, que se explicita mais

claramente ainda em seu livro Terra gaúcha, editado

postumamente (1955), mas escrito pelo menos desde 1904.57

Neste, lemos comentários do autor como, por exemplo, a

propósito dos horrores da escravidão dos negros no Brasil:

―Foram os jesuítas os únicos que se opuseram e protestaram

sempre contra semelhantes iniqüidades‖. Entusiasma-se com

o fato de não ter havido propriedade privada dos meios de

produção e com a simplicidade do modo de vida dos índios.

Mais significativo para a perspectiva de nossos dias, Simões

57

Lígia Chiappini, no livro já citado, aventa a interessante tese de que

entre Terra gaúcha e Lendas do sul haveria uma espécie de

complementaridade e correspondência, sendo este o equivalente literário

daquele.

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Lopes Neto trata o patrimônio histórico das Missões como

pertencente ao universo formador da história do Rio Grande

do Sul, pertencimento que durante muito tempo, e até hoje

mesmo, é esquecido ou renegado, recaindo a preferência de

boa parte dos historiadores na data de 1737 (fundação do

forte do Rio Grande por portugueses, em missão oficial).

Em conferência proferida na Biblioteca Pública

Pelotense, em 1905, Simões Lopes Neto especifica tal

compreensão, ao dizer o futuro que imagina para seu

almejado livro que viria a ser o Terra gaúcha, nesta altura

apenas ideado: ―Um livro que vivesse no rancho das

margens do Uruguai e no palácio das plagas do Oceano; e

que das suas páginas simples e sinceras fulgisse nítida e

vivaz, amorosa, exemplificadora e saudosa, a plaga dos

pampas, o berço dos farrapos, a Terra Gaúcha‖.58

Não havia

rupturas nem de classe, entre o rancho e o palácio, nem na

geografia, desde o oeste missioneiro até o leste pelotense:

tudo era Rio Grande, tudo era terra gaúcha.

58

Os dados estão no livro de Reverbel, citado.

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O tratado de Madri, assinado em 1750, é uma espécie

de chave da história do Rio Grande e do sul da América.

Com ele, Portugal desistiu formalmente de manter uma

posição na margem do rio da Prata, posição que tentara

construir em 1680, com a Colônia de Sacramento, e portanto

absteve-se de disputar com a Espanha a hegemonia daquela

área. Mais ainda, Portugal assumia, em total acordo com a

Espanha, o encargo de dizimar as Missões jesuíticas, que

cresciam, tinham consistência econômica e representavam,

para as coroas, uma ameaça geopolítica - suspeitava-se que a

Companhia de Jesus teria intenções de fundar por ali um

Estado autônomo. Para o cumprimento do Tratado,

organiza-se um exército luso-espanhol que vai destruir os

Sete Povos, entre 1754 e 56. Era o fim de uma alternativa de

civilização para os índios do sul da América, que, sem ela,

foram tragados pela civilização envolvente, para nunca mais.

Como sempre acontece, os mortos da vida estavam

disponíveis, então, para a história e a literatura. Do massacre

das Missões, brotaram muitas interpretações

historiográficas, e também nasceram duas vertentes de

literatura: uma erudita, de pouca vigência, e outra popular,

de tardia mas longa frutificação. Da primeira é exemplo

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maior O Uraguai, poema narrativo de Basílio da Gama,

editado em 1769, praticamente no calor da hora. Basílio,

segundo declara em notas a seu próprio texto, resolveu

escrever para que os europeus soubessem o que havia se

passado aqui - sua intenção era antijesuítica, como se sabe,

em função de haver sido beneficiado pelo Marquês do

Pombal, o verdugo dos jesuítas em Portugal. O Uraguai não

foi muito lido, apesar dos elogios que recebeu de

comentadores como Machado de Assis, que teria preferido

que o indianismo literário brasileiro tivesse tomado em

Basílio a referência para o assunto.

A outra vertente é a que vai desaguar em Simões

Lopes Neto, e daí em toda a atual experiência do que, no Rio

Grande do Sul, se chama de Tradicionalismo. Pode-se

retraçar a história pelo menos a partir do depoimento do

autor das Lendas: diz ele que colheu aqueles versos

recolhidos neste volume sob o nome de ―São Sepé‖ de uma

velha, em 1902, mulher esta que, suponhamos, terá ouvido

de algum contemporâneo do massacre. Do mesmo

manancial nasceu, por via indireta, todo um conjunto de

lendas, incluindo a da Salamanca da Jarau. Dela em diante,

pode-se falar com mais certeza: é certo que Érico Verissimo

tomou-a como mote para a construção de uma grande

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personagem de seu O tempo e o vento, aquela Luzia de gênio

tão parecido com o da princesa moura.

Mais difusamente, deve-se reconhecer que a obra de

Simões Lopes Neto, quando de fato entra em circulação -

refiro-me à edição feita pela Globo, apenas a terceira,

reunindo os Contos gauchescos e as Lendas do sul, em 1949

-, catalisa toda uma retomada do tema regional no Rio

Grande do Sul. A conta seguinte parece que não foi feita

suficientemente: foi quase ao mesmo tempo que Simões

Lopes Neto ganhou de fato leitores, que o cosmopolita

escritor Érico Verissimo, até então ocupado quase

exclusivamente no tema urbano, começa a publicar sua obra

prima, O tempo e o vento, cujo primeiro volume sai à luz no

mesmo 1949; dois anos antes, alguns jovens interioranos,

sentindo-se oprimidos numa Porto Alegre que lhes parecia

descaracterizada, entregue à cultura imperialista

norte-americana, resolvem unir-se para fundar o que vai

chamar-se Centro de Tradições Gaúchas, impressionante

movimento cultural de aspecto popular (e popularesco), de

larga vigência nos dias de hoje; pouco depois, vai ser lançada

a primeira edição bem feita do Antônio Chimango, ―poemeto

campestre‖ que satirizava os desmandos de Borges de

Medeiros e que, até então, era tido apenas como panfleto, e

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que passa a ser visto como texto decivisivo na gauchesca

sul-rio-grandense; e toda uma nova geração de escritores

vai-se apresentar ao mundo a partir de então, muitos deles

versando diretamente o tema local numa perspectiva ingênua

ou mesmo mistificante, vistas as coisas do ângulo da cultura

letrada; isso para não falar dos escritores que já vinham

escrevendo sobre tema gaúcho, como Cyro Martins, Darcy

Azambuja e outros.

A relação foi longa e significativa; Simões Lopes

Neto, com sua obra, está no miolo desta retomada. E assim

acontece, é bom lembrar, por causa do nível elevado de

tratamento dispensado por ele ao material com que lidou -

dizendo de modo mais direto, porque ele fez literatura, não

ideologia. Coincidindo com intuições dos melhores

escritores e críticos que se debruçaram sobre o tema da

relação entre vida e mentalidade popular, de um lado, e alta

literatura, de outro, Simões Lopes percebeu que era preciso

reinventar os modos de escrever; daí ter plasmado, na figura

de Blau Nunes, aquilo que três décadas depois uma

inteligência sutil como a de Walter Benjamin diagnosticará

de modo singular em seu conhecido ensaio ―O narrador‖ -

uma espécie de consagração, pela via literária, de uma

prática ancestral e comunitária, o relato de histórias por um

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indivíduo experiente, cuja voz merece ser ouvida porque

conhece a história horizontal e verticalmente, na

permanência do tempo e no deslocamento no espaço. Blau

Nunes, a voz que fala desde o tempo da história local e a

geografia do sul da América.

Das três lendas aqui apresentadas em forma

desenvolvida já se retraçou a origem, com bastante

precisão59

. Nesse âmbito, de vez em quando ressurge o tema

da originalidade de Simões Lopes Neto, questão

perfeitamente secundária, e o tema da condição autóctone ou

não dos enredos, questão igualmente secundária, mas que

merece um comentário. Durante muito tempo, pareceu a

bons intelectuais do Rio Grande do Sul que teria maior valor

aquilo que fosse puramente local, com nascimento e

desenvolvimento não ―conspurcados‖ por influência

estrangeira. Nessa visão, a única das três lendas

verdadeiramente gaúcha seria a do Negrinho, uma vez que

das outras se encontraram, em outras partes, versões mais ou

menos parecidas.

Trata-se de uma perspectiva que considera as coisas

estaticamente, sem a necessária dialética - especialmente

59

Não é tema de nosso interesse o tópico das origens; na fortuna crítica

do autor encontra-se farto material a respeito.

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aquela que a crítica à condição colonial nos devia ter

ensinado, aquela que lida com o tema da importação e da

aclimatação das formas, espécie de fatalidade para países

periféricos. Não vamos descer ao detalhe do argumento, que

se encontra desenvolvido na obra de Antonio Candido e,

mais ainda, na de Roberto Schwarz; mas vamos consignar a

idéia-chave: o principal interesse do analista deveria estar na

argüição sobre o modo como o autor consegue mediar entre

a forma (que sempre é externa, em região colonizada) e a

matéria local. A via mais adequada para alcançar bons

resultados, no caso da narrativa, é pela boca do narrador60

.

Por tal critério, Simões Lopes foi de fato um pequeno gênio,

porque conseguiu mediar entre tais limites de modo

excelente, e isso para além do debate em geral mesquinho

sobre a ―nacionalidade‖ da literatura e da arte.

Da mesma forma, deve-se afastar do horizonte um

debate igualmente nacionalista, mas neste caso

anti-castelhano. Por muito tempo, e por razões óbvias

ditadas pela condição de fronteira com os ―outros‖ mais

evidentes, o Rio Grande do Sul assistiu a uma insana procura

60

Para quem se interessar na teoria do assunto, sugiro o artigo

―Conjecturas sobre a literatura mundial‖, de Franco Moretti (publicado

no Brasil em Contracorrente - o melhor da New Left Review em 2000;

organização de Emir Sader, Rio de Janeiro: Record, 2001.

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por distinção entre o gauchismo brasileiro e o platino, o que

significava negar as mais duras evidências, que nos

aproximam muito mais do que nos afastam. O próprio

Simões Lopes entrou no debate, ao dizer, no último

parágrafo do texto, que deixa de desenvolver determinadas

lendas, porque elas ―são mais do acervo

rio-platense--andino‖. Mas mesmo tal delimitação não o

impediu, ainda bem, de freqüentar material que seria menos

brasileiro que argentino ou uruguaio. O que importa, em

todos os casos, é a boa literatura.

Isso sem falar na própria lenda da Salamanca,

francamente ibérica, como se sabe. Ocorre que na mesma o

autor conseguiu arranjar elementos claramente locais, como

as Missões, cuja história ele tanto prezava, com fantasia

fundadora, como é o caso do desfecho da vida do

sacristão-fantasma, que tem sua maldição quebrada por Blau

Nunes e, por isso, encontra a princesa moura devidamente

transformada em uma formosa tapuia - desfecho que bem

pode simbolizar uma espécie de matriz do homem gaúcho.

Na história do Negrinho, também não chegamos a

pensar suficientemente, tal o eco que ela encontra ainda hoje.

Para não ir muito longe, evoco aqui apenas uma

possibilidade interpretativa, aventada pela primeira vez, que

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eu saiba, por Susana Gastal: em pleno estado do Rio Grande

do Sul, de tradições guerreiras que consagraram os brancos

proprietários de estância como modelares, mas exploração

absurdamente cruel dos negros escravos, nas charqueadas. O

símbolo maior da bênção dos céus e único santo local (e a

julgar pelo debate sobre as origens, a única das lendas que

seria puramente gaúcha de nascimento...) vem a ser um

negro escravo, aquele que faz nascer a luz por graça da mãe

de Jesus. (Aliás, as três lendas lidam diretamente com a luz:

no interior da Mboitatá, na cabeça da lagartixa e da princesa,

nos pingos de luz que saem da vela do Negrinho.)61

Quanto aos argumentos de outras lendas, apenas um

registro: ao contrário das histórias missioneiras, que lidam

com figuras do Bem (Mbororé, a mãe mulita, Sepé), em

todas as histórias alegadamente do centro e do norte do

Brasil as figuras são do Mal (Caapora, Curupira, Saci, Uiara,

Jurupari, Lobisomem, Mula-sem-cabeça). Alguma

coincidência? Alguma fantasia de nosso grande autor acerca

de seu estado natal? Quanta coisa ainda por discutir, quantos

temas férteis Simões Lopes nos oferece - em sinal de sua

inequívoca superioridade literária.

61

Ver ―A luz no imaginário gaúcho‖, in Nós, os gaúchos, org. de Sergius

Gonzaga e Luís Augusto Fischer, Porto Alegre: Editora da UFRGS,

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1992.

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2 - A UNIVERSALIDADE DE JOÃO SIMÕES LOPES

NETO

Eduardo Arriada 62

Não tive a sorte, ao contrário de Augusto Meyer, de

ler os Contos Gauchescos na edição de 1912 e muito menos

numa velha casa de campo. Como rapaz de cidade, ainda que

fronteiriça e interiorana, li e reli na pequena e simples edição

de 1965, Coleção Catavento da Editora Globo, que a mim do

mesmo modo que Meyer, me acompanha.

Estamos vivendo nos dias atuais uma enorme

efervescência cultural em torno da obra de João Simões

Lopes Neto. Durante muito tempo sua obra esteve

―esquecida‖ no panorama da literatura brasileira. Pode-se

afirmar que somente com a publicação da edição crítica

Contos Gauchescos e Lendas do Sul (1949) da extinta

Editora Globo, contendo o belo prefácio de Augusto Meyer,

uma introdução de Aurélio Buarque de Holanda e o posfácio

de Carlos Reverbel, João Simões se transporta para além

Província.

A edição da Globo teve o papel fundamental de

divulgar e tornar acessível à população brasileira a produção

62

. Professor da FAE/UFPEL.

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literária simoniana para todo o Brasil. Embora somente com

os estudos críticos de Lígia Chiappini, Modernismo no Rio

Grande do Sul: materiais para o seu estudo (1972),

Regionalismo e Modernismo: o caso gaúcho (1978) e No

entretanto dos tempos: literatura e história em João Simões

Lopes Neto (1988), é que o autor ganharia, definitivamente,

a consagração nacional.

Isso não implica dizer que antes João Simões Lopes

Neto não fosse conhecido da intelectualidade brasileira;

tanto Sílvio Júlio em Pampas (1919) como em Estudos

Gauchescos de literatura e folclore (1953) e Literatura,

folclore e linguísta da área gauchesca no Brasil (1962); L.

Freire, ―Letras Rio-Grandenses‖ in: A Máscara (1922);

Victor Russomano, ―Impressões Literárias‖ in: Ilustração

Pelotense (1920); Gomes de Freitas, ―Alocução proferida

por ocasião da romaria ao túmulo de João Simões Lopes

Neto‖, in: O Tiro Brasileiro (1916); Amadeu Amaral, ―O

Dialeto Caipira‖ (1920); Mário de Andrade, ―Folclores‖

(1949); Cecília Meireles, ―Folclore Guasca e Açoriano‖;

Olavo Bilac, Últimas Conferências e Discursos (1927),

podendo ainda ser acrescentado entre outros, Lúcia Miguel

Pereira, Athos Damasceno, José Salgado Martins,

Guilhermino Cesar, Manoel Bandeira, Augusto Meyer,

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Carlos Reverbel, Propício da Silveira Martins já tinham

analisado e tecido diversos comentários sobre a sua obra.

Assim um reconhecimento da intelectualidade

brasileira já se fazia presente, tanto o é que o conhecido

crítico carioca Agrippino Grieco em sua obra Evolução da

Prosa Brasileira (1933) tece o seguinte comentário:

―Simões Lopes Neto fixou, em páginas indestrutíveis, o que

havia de mobil e flutuante nas tradições do seu rincão. Toda

a alma guasca está nesses contos, que valem por uma

epopéia cíclica, antes contada que escrita, com um dom

narrativo da mais tocante familiaridade‖.

Devemos salientar o que hoje já é sobejamente

conhecido, que tanto a matéria-prima de seus contos ou

lendas nada tinham de original. É o caso da ―Salamanca do

Jarau‖, apesar de o autor fazer referência ao texto de Carlos

Teschauer, a verdadeira fonte é Reseña historico-descriptiva

de antigas y modernas supersticiones del Rio de la Plata

(1896) de Daniel Granada.

Em relação aos contos, além dos estudos de Aurélio

Buarque de Holanda, Augusto Meyer, Carlos Reverbel,

Flávio Loureiro Chaves, Lígia Chiappini, Sica Diniz, Mário

Mattos, Luís Borges, os quais trazem novas abordagens, seja

estudando as origens e as fontes de seus contos, bem como

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levantando dados e fontes sobre o autor, tenho para mim que

uma grande influência na obra de João Simões deve-se aos

textos produzidos por seu contemporâneo Alberto Coelho da

Cunha(1853-1939). Nos anos de 1872/75 publica o autor,

nas páginas da Revista Partenon Literário, uma obra

intitulada ―Contos Rio-Grandenses‖ com os seguintes

contos: ―A mãe de ouro‖, ―Fantasias e Caprichos‖, ―Mimi e

meu anjo‖, ―Vozes à toa, vozes de amor e a morte de

Serafina‖, ―Vozes a Esmo‖, ―Pai Felipe: um episódio de

charqueada‖, ―Um farrapo não se rende‖, ―A filha do

capataz‖.

Quase todos têm como temática o universo regional

do Rio Grande do Sul. A valorizar os contos, temos o

conhecimento e o gosto do autor pelas coisas do campo;

viveu ele vários anos de sua vida na zona rural.

Na introdução aos ―Contos Rio-Grandenses‖,

Alberto Coelho da Cunha arrola notícia sobre a lenda do

Negrinho do Pastoreio: ― Entranhai-vos pelas campinas do

Rio Grande; ide aos nossos pampas, e tomai pouso entre os

generosos gaúchos. Convivei com eles algum tempo, o

preciso para estudar-lhes a feição do caráter, costumes e

índole: aprendei as suas frases pitorescas, as suas tradições,

crenças e religiões.

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Vel-los-ei, por exemplo, ao mesmo tempo, que fazem

uma promessa ao milagroso Santo Antônio, irem mais

confiadamente acender uma vela de sebo no fundo da

canhada ao negrinho do pastoreio, para que lhes traga a égua

madrinha que se extraviou da manada‖.

Os 16 contos que compõem a obra Contos

Gauchescos edição de 1912 constituem uma narrativa sobre

a decadência do tipo social - gaúcho -. São ―casos‖ narrados

por um gaúcho, Blau Nunes.

O assunto tratado nesses contos é o mundo rural,

percebe-se uma grande riqueza na descrição dos cenários.

Em vários momentos de sua obra, a descrição da natureza é

sabiamente aproveitada para contextualizar o ambiente,

assim como para traçar uma relação íntima entre natureza

humana e mundo natural.

Vejamos o primeiro aspecto: ― A estrada estendia-se

dezerta; a esquerda os campos desdobravam-se a perder de

vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol

morrente, manchados de pontas de gado que iam se

arrolhando nos paradouros da noite; á direita, o sol, muito

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baixo, vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de

beiradas luminozas‖ (Trezentas onças, 1912, p.17) 63

.

Pode-se ver esse tom narrativo em outras passagens:

― Lá adeante, o mesmo barulho; noutro ponto, igual; dum

rincão, numa trepada de coxilha, numa decida de canhada,

rufando duma restinga, os lotes de eguariços íam se

encontrando, entreverando-se; os campeiros vinham

chegando e a gritos, a cachorro, a tiro, ía-se tocando a

bagualada de cada querencia; de todos os lados cruzava-se a

contradansa, que se encaminhava sobre uma linha já

combinada: e aos poucos ía crecendo o rodeio movediço,

que engrossava, redomoinhava, espirrava, tornava a

embolar-se e de repente fazia cabeça, fazia ponta, e todo

disparava, fazendo tremer a terra, roncando no ar, como uma

trovoada‖.(Correr eguada, 1912, p. 88/89).

Do mesmo modo, no dizer de Lúcia Miguel Pereira,

as suas imagens nada têm de retórica, nunca se destacam do

texto como recursos literários; antes surgem naturalmente

exigidas pela necessidade de suscitar uma impressão direta,

sem auxílio de longas explicações ou de raciocínio. Já na

apresentação de Blau Nunes, esse tipo de narração se

63

. Os organizadores respeitaram a grafia com que o autor apresentou o

trabalho, conforme a publicação dos textos de Simões Lopes Neto da

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encontra-se presente: ― Fazia-me elle a impressão de um

perene tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio,

e abrigando dentro do tronco cernozo enxames de abelhas,

nos galhos ninhos de pombas...‖.

―Homem derrotado‖, na expressão de Wilson

Martins, ele encontrou na ―estrada das recordações‖ o

caminho compensatório e sublimizante da grande evasão

estética. Vitorioso postumamente, enquanto homem de

letras, ele construiu o universo esquizofrênico no qual se

refugiou em vida contra a mesquinhez obstinada da

realidade.

A linguagem utilizada na narrativa simoniana flui

com uma espontaneidade e originalidade somente possível a

um profundo conhecedor do universo criado – no caso, o

gaúcho -.

Para isso, não basta conhecer como viviam os

gaúchos, ou até mesmo ser gaúcho. É necessário ser isso e

algo mais, é necessário e imprescindível ser como Cervantes,

Machado de Assis, Jorge Luís Borges, Javier de Viana,

homens cultos e leitores vorazes, conhecedores profundos

das debilidades humanas. Assim pôde João Simões Lopes

Neto, urbano, culto, educado, conviver com homens do

edição de 1912..

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campo (gaúchos), identificar-se com eles, conhecer seu

mundo, seu linguajar, criando desse modo, sem falsear, sem

descaracterizar a realidade rural sulina. Põe como narrador

de sua obra, o genuíno rio-grandense Blau Nunes, alter-ego

dele mesmo.

Nas lendas(...) ―como nos contos, quem fala é um

gaúcho pobre, que só tem de seu um cavalo e as estradas‖

(Meyer, Augusto. Prosa dos Pagos, 1943).

Hoje já está João Simões Lopes Neto a merecer

traduções/versões para outras línguas, temos a pioneira

versão de 1956 em italiano ―Storie di gauchos‖ vertida por

Giuseppe Tavani.

Vejamos alguns trechos: ― Gli occhi di Tudinha

somigliavano perfettamente agli occhi di un cervo,

spaventato: neri, grandi, lucenti, timidi e allo stesso tempo

astuti... parevano occhi che stessero sempre ad ascoltare... ad

ascoltare più che a vedere...

Le guance del colore della pesca matura; i denti

bianchi e lustri come dente di cane giovane; e le labbra della

brunetta dovevano essere morbide come un campo di

trifoglio, dolci come il miele, fresche come la polpa di

guabiju...‖(Il Negro Bonifacio, p.19).

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Em espanhol, temos a versão ―limpia, elegante y

graciosa‖ feita por Aldyr Garcia Schlee em 1991 da

―Salamanca do Jarau‖. Parte do texto: ― Y al tranquito

andaba, mirando; mirando hacia el fondo de las sanjas, por

arriba de las cuchillas, a lo largo de las cañadas. Tal vez

estuviese echado em medio de las carquejas – la carqueja es

señal de campo bueno -, así que el campero a veces alzábase

en los estribos, mano delante las vistas, y más firmaba la

mirada alrededor; pero el buey barroso, nativo de aquel

pago, no le aparecía; y Blau iba campeando, campeando...‖.

(La Salamanca del Jarau, p. 11).

No ano 2000, Margarita Barretto verteu para o

espanhol partes do conto ―O Mate do João Cardoso‖ .

Transcrevo um fragmento: ― João Cardoso era un sujeto que

vivía por aquellas bandas del Paso de María Gomes, viejo

bueno, muy estimado, pero charleta como treinta y que daba

un diente por dos dedos de conversación y muy amigo de

novedades. No pasaba viajante por la puerta, o más lejos, que

el viejo João Cardoso no llamara, risueño e insistente como

mosca; y ahí nomás ya espantaba los perros y sacando la

chala de atrás de la oreja, carraspeaba y decía:

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- Hola amigo! Abájese, descanse un poco! Venga a tomar un

amargo. Es un momentito... Chiruzo?‖ (El Mate: su historia

y cultura. p.106).

Com certeza qualquer leitor do mundo ficaria

apaixonado por sua prosa, vejamos como não perde a

sonoridade e a beleza na língua de Racine: ― Mon

compatriote, je te présente Blau, le ―vaqueano‖. – J‘ai

traversé notre contrée en bizarre zigzag. J‘ai déjà senti

l‘ardeur des sables désolés du littoral; je me suis déjà amusé

dans les charmantes îles de la lagune Mirim, je me suis

fatigné dans l‘extension de la colline de Santana; j‘ai mouillé

mês mains dans le superbe Uruguay; j‘ai en l‘ébranlement de

la peur dans les durs rochers du Caverá; j‘ai cueilli des

reines-margnérites dans les plaines du Saicã, j‘ai oscillé sur

les grandes eaux de l‘Ibicuí.(...)

J‘ai vu la ruche et l‘étable, j‘ai vu le verger et le

troupeau, j‘ai vu la moisson et les manufactures, j‘ai vu la

montagne, les fleuves, la plaine et les villes; et des visages et

des aurores d‘oiseaux et d‘enfants, des sillons de la charrue,

des eaux et de tout, ces yeux, pauvres yeux condamnés à la

mort, à la disparition, vont garder dans la rétine jusqu‘au

dernier millième de lumière, l‘impression de la vision

sublimée et consolatrice.

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Un type pur – ―crioulo rio-grandense‖ (si modifié

aujourd‘hui) c‘était Blau, le ―guasca‖ sain, en même temps

loyal et naïf, impulsif dans la joie et la témérité,

précautionneux, perspicace, sobre et infatigable; et doué

d‘une mémoire de rare netteté Qui brille à travers une

loquacité charmante et pleine d‘imagination, ornée par le vif

et pittoresque dialeto ―gauchesco‖.

Et du trot sur tant de chemins des logements dans les

―estâncias‖; des cheminées où il s‘est chauffé; des

―ranchos‖, où il a chanté, des villages qu‘il a traversé, des

érosions de la mort et des éclosions de la vie, entre Blau –

jeune, militaire – et Blau – vieux, ―paisano‖ – s‘étendait une

longne route semée de souvenirs – ―casos‖, il disait – que le

―vaqueano‖ racontait plusieurs fois, de temps en temps,

comme quelqu‘un qui étend au soleil, pour áerer des

vêtements gardés au fond d‘une arche.

Mon cher digne vieillard!

Je sens ton absence, Blau!

Mon compatriote, écoute-le.

Por uma grande paixão pela obra simoniana,

particularmente pelos seus contos, dei início juntamente com

a profa. Marina Miatina, russa apaixonada por literatura, a

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uma versão nessa estranha língua de alguns fragmentos da

obra de João Simões Lopes Neto, eis alguns deles:

... ―И, шагая по разным дорогам; различным

помещичьим имениям; обогреваясь у очагов; напевая в

шалашах; проходя мимо небольших селений; он

понимал вещи, которые были сокрыты от

поверхностного взгляда, встречаясь лицом к лицу с

людьми, разрушением смерти и созиданием жизни;

между Блау – молодым военнослужащим и Блау –

старым штатским чиновником, - пролегла длинная

дорога, усеянная воспоминаниями, - я бы сказал, -

событиями, которые пастух иногда пересказывал, как

достают из сундука и развешивают на солнце, чтобы

проветрить, старую одежду. (E, do trotar sobre tantíssimos

rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se

aqueceu: dos ranchos em que cantou, dos povoados que

atravessou; das cousas que ele compreendia e das que

eram-lhe vedadas ao singelo entendimento; do pêlo-pêlo

com os homens, das erosões da morte e das eclosões da vida,

entre o Blau – moço, militar – e o Blau – velho, paisano -

ficou estendida uma longa estrada semeada de recordações –

casos, dizia - que de vez em quando, o vaqueano recontava,

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como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao

fundo de uma arca.).

Пролегающая дорога была пустынна; слева

расстилались необозримые поля, безмятежные, зеленые,

освещенные мягким светом заходящего солнца, с

пятнами стад, замолкающих на ночных стойбищах;

справа – очень низкое, червоного золота, солнце,

входящее в массу облаков со светящимися краями.

На высохших топях ни одной ‗керу-керу‘64

: одна

только куропатка, ловкая, осторожная, пробирающаяся

между кочками сухой травы; и вдалеке, между остатком

уходящего света, с одной стороны, и сгущающимися

сумерками приходящей ночи, с другой, просвечивала

белизна ‗жоао гранде‘65

, безмятежно летящего, почти не

шевеля крыльями, как некая грусть прощания, в котором

люди еще не успели разжать рук.

Опускался прохладный туман; и всеобъемлющая

тишина. ( A estrada estendia-se deserta; à esquerda os

campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes,

clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de

pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da

64

керу-керу (quero-quero - port) – голенастая птица Бразилии 65

жоао гранде (joão grande – port) – птица Бразилии

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noite à direita, o sol muito baixo, vermelho-dourado,

entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.

Nos atoleiros; secos, nem um quero-quero: uma que

outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos

maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e

a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de

um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas,

como numa despedida triste, em que a gente também não

sacode os braços...

Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande,

em tudo.).

Que mistérios e enigmas profundos levam a um autor

a escrever uma obra-prima que transcende o tempo e o

espaço.

Para mim, o autor dos Contos Gauchescos, continua

sendo uma surpresa, uma grata surpresa, quanto mais o leio,

tanto mais me apaixono. Mais e mais sua narrativa

infindável, labiríntica, envolvente, com sinuosidades,

pausas, silêncios, reticências, sons ecoam no fundo do meu

eu.

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86

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3 - A SALAMANCA DO JARAU: A TRAVESSIA ÉTICA

DO GAÚCHO CONSIDERANDO ASPECTOS

METAFÍSICOS

Eduardo de Oliveira 66

No início do século passado (em 1913), Simões

Lopes escreveu a lenda A Salamanca do Jarau. Quando

escreve esta lenda Simões Lopes completa, segundo Aurélio

Buarque de Holanda, a trilogia das Lendas do Sul: Negrinho

do Pastoreio foi escrita em 1906, enquanto M‟boitatá foi

escrita em 1909.

A Salamanca do Jarau é composta de duas partes: o

conto escrito por Simões Lopes (composto basicamente

pelos capítulos I e VII-X) e a lenda da qual o autor se

apropriou, para compor a história como um todo (a lenda

consta basicamente dos capítulos III-VI, já o capítulo II é

uma espécie de transição entre as duas partes distintas). Há

que se observar que a lenda utilizada por Simões Lopes não é

simplesmente copiada por ele, mas é estilizada e adaptada

para mais bem atingir os objetivos pretendidos pelo autor.

66

Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa

Simoniano. ISF/UCPEL.

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Mas, por que Simões Lopes resgata a lenda da

salamanca e a insere neste conto? Talvez Flávio Loureiro

Chaves ajude a esclarecer essa questão: ―a recuperação do

passado mítico pode elucidar o presente problemático‖

(CHAVES, 1992, p.77). Esse presente problemático se

manifesta na crise econômica em que Blau se encontra: ele é

um gaúcho pobre com poucos bens materiais (p.140, l.2s)67

.

O contexto em que ele está inserido, evidentemente, é o do

capitalismo e a crise econômica influenciará no seu modo de

agir.

Aliás, Chaves diz que ―o verdadeiro objetivo de

Simões Lopes Neto, na Salamanca do Jarau, é a invenção de

uma personagem e a observação da situação-limite em que

se encontra‖ (CHAVES, 1992, p.82). Neste artigo, de modo

contrário a Chaves, observar-se-á, basicamente, o

comportamento do arquétipo gaúcho, representado por Blau,

dentro da situação-limite em que está.

67

Neste trabalho, sempre que houver citações sem referência a autor,

elas estarão se referindo à seguinte bibliografia: LOPES NETO, João

Simões. Contos Gauchescos. Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição

crítica por Lígia Chappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.

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90

Portanto, o objetivo deste artigo é mostrar qual o

modo de agir que Blau adotará ao longo desse percurso que

tem como ponto de partida a procura pelo boi barroso. É

levado em conta que as origens são importantes no ponto de

vista simoniano (porque ele insere em seu conto a lenda das

salamancas), e as origens têm estreita relação com o

metafísico, uma vez que são abordados temas folclóricos e

míticos ao longo do conto, além, é claro, do divino. Como

exemplos de entes metafísicos, podem ser citados o Caipora,

os poderes mágicos que a princesa moura possuía entre

outros que serão comentados ao longo deste trabalho. Ou

seja, como a própria palavra aponta, o metafísico é aquilo

que está além do físico, aquilo que não é observável dentre

os fatos empíricos.

Colocados os objetivos deste texto, é necessário

mostrar o modo que se procederá para alcançá-los: no

primeiro subitem se analisará os dois primeiros capítulos do

conto, mostrando qual a problemática levantada por Simões

dentro do viés ético. No segundo, a análise se voltará para a

lenda da salamanca que o autor utilizou, para mostrar as

origens do gaúcho. No terceiro, será retomada a análise do

gaúcho, focalizando a sua eticidade a partir da experiência

feita no interior do cerro. Como se pode perceber, esta

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hermenêutica será feita capítulo por capítulo do conto de

Simões Lopes e, partindo daí será elaborada a síntese

conclusiva, que tentará abarcar os principais elementos aqui

discutidos.

3.1 - O gaúcho

3.1.1 - Blau: alguém que está à procura da

identidade

Simões Lopes apresenta logo no início o protagonista

da história: Blau, um gaúcho pobre ―que só tinha de seu um

cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais‖, (p.140, l.3)

que está à procura de um boi barroso. Dessa busca de um

gaúcho pobre saltam aos olhos dois aspectos: o primeiro, do

próprio fato de o gaúcho ser pobre, deduz-se a ética vigente

no início do século XX: a ética do desprendimento que é

contra o acúmulo, aí se percebe forte influência da Igreja

Católica. Esse fato pode também ser lido como pobreza

absoluta: a época do gaúcho a pé (não sendo

necessariamente causada pela ética vigente). Conforme se

verá adiante, a riqueza pode trazer intranqüilidades que antes

(no estado de pobreza) não havia; e o segundo, de que a

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busca não almeja algo que pode ser percebido dentre os

próprios fatos empíricos: ela é de caráter metafísico, pois o

boi barroso nunca pode ser encontrado (cf. nota nº4 do

próprio autor). Porém, é esta busca que dá sentido à vida de

Blau.

Outra figura metafísica (ou pelo menos mitológica),

além do boi barroso, citada no primeiro capítulo do texto, é o

Caipora: quando alguém encontra o Caipora, encontra

também a desgraça. Simões Lopes mostra uma outra

possível causa para a pobreza de Blau a qual é mitológica, ou

seja, não é explicada de forma racional. É esta a causa da

pobreza de Blau? Há fatores econômicos que podem explicar

esta pobreza.

A propósito, parece que a identidade do gaúcho passa

por uma crise e, neste contexto surgem outras perguntas:

Qual a origem da perda de identidade pela qual o gaúcho

passa? Tem algo a ver com a miscigenação pela qual passou,

isto é, pelo fato de ter várias etnias em suas raízes o gaúcho

não sabe mais quem é? Quanto à sua identidade, basta

afirmar que é um tapejara e ponto final? Sem dúvida, a

procura pela identidade é um processo muito mais

complexo, pois envolve toda o contexto social em que Blau

vive.

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Nesta busca, Blau, incansável, encontra-se com ―um

vulto de face branca e tristonha‖: é o santão. Blau o saúda

pela primeira vez com uma saudação cristã. É o início de

uma relação que mudará o rumo das histórias destes dois

homens. Aqui se mostra a postura do gaúcho diante de um

ser desconhecido e como se dá a relação do gaúcho com ele.

A conversa desemboca na narração de Blau acerca da

salamanca do cerro do Jarau, a qual será apresentada no

capítulo seguinte.

3.1.2 – O que Blau sabe de suas origens

A seguir é apresentada a origem da lenda de que

Simões Lopes se utiliza, para compor seu conto. É Blau

quem conta a origem da lenda: foi sua avó quem lhe

transmitiue talvez seja ele uma das últimas pessoas capaz de

manter viva essa tradição oral que narra a chegada dos

mouros no Rio Grande do Sul. Na história contada por Blau

há uma certa mitificação, pois ele fala de alguns aspectos que

não podem ser racionalmente explicados, há várias alusões a

mitos. A própria história se torna um mito por ter sido

passada oralmente pelos antepassados do gaúcho.

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Um aspecto que é mostrado neste capítulo (o

segundo), diz respeito à identidade (pelo menos genética) do

gaúcho: ele tem o índio como um de seus antepassados, ou

seja, o índio é uma das etnias que compõe sua árvore

genealógica, que passou por uma serie de miscigenações. A

chegada dos mouros vem trazer, no mínimo, uma crise de

identidade àqueles que habitavam o estado gaúcho. Talvez

consista num preconceito afirmar que o europeu traz o mal,

pois os índios já conheciam o mal, tanto que chamavam o

diabo de Anhangá-pitã. Mas a vinda dos europeus representa

um certo desvirtuamento da identidade, pois é uma outra

cultura que está chegando. E essa outra cultura se impõe de

tal modo, que a anterior é ―abafada‖ até o ponto em que a

nova cultura predomina sobre a que antes existia,

provocando sobre esta uma crise de valores.

Este capítulo também mostra como a princesa moura

encantada dotada de poderes e que oferece riquezas às

pessoas, foi transportada para o RS sem que ninguém

percebesse, escondida num navio. Ninguém percebeu sua

presença devido à força do condão mágico. Essa nova

cultura, porém, que que chega ano eEstado (os espanhóis)

fica como que impotente diante dos nativos que habitavam o

RS, pois entre os índios não havia cobiça por bens materiais.

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Blau diz que Anhangá-pitã ―folgou, porque a gente nativa

daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça

de riquezas‖ (p.143, l.18-20). Assim, fica expresso que os

nativos que habitavam o pampa tinham uma outra noção de

mal, pois se trata de uma outra cultura.

Blau Nunes ainda conta como foi que o diabo

transformou a princesa moura, com poderes do outro mundo,

numa lagartixa e o seu condão encantado em pedra luzente a

qual é colocada no lugar da cabeça: a princesa moura é,

agora, uma lagartixa sem cabeça: a Teiniaguá. Aqui se

mostra que o diabo ―não havia tomado tenência que a

teiniaguá era mulher‖ (p.144, l.12). O que isso quer

significar será discutido mais adiantea frente.

3.2 - A lenda

A seguir, santão conta a história de sua vida. Além de

representar o desconhecido, o interior do cerro é um lugar

metafísico. É na chamada terceira parte do conto simoniano,

que aparece a lenda propriamente dita, apesar de alguns

aspectos da lenda mesma já terem sido apontados no

segundo capítulo. É fundamental que se faça uma análise

profunda dos aspectos ético-metafísicos desta parte do

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conto, pois daqui serão tiradas as possíveis conclusões a

respeito das diferentes crises que o gaúcho passou e passa no

decorrer da história.

3.2.1 - O sacristão: modelo de cristão face à crise

A partir do capítulo III, o ―vulto de face branca e

tristonha‖ toma sua parte no discurso. A fala desta

personagem, o sacristão, é a forma pela qual Simões Lopes

se utiliza para mostrar a lenda68

propriamente dita do Cerro.

O período em que se formou a lenda original é em torno de

1650 – segundo a nota nº 11 de Simões Lopes. Neste capítulo

santão (o sacristão) se apresenta a Blau e conta-lhe sua

história até o momento em que a Teiniaguá se

68

De acordo com as notas 6 e 9 da lenda A Salamanca do Jarau, escritas

pelo próprio Simões, o contato que Simões Lopes tem com a lenda, que

foi escrita pela primeira vez por Daniel Granada em 1896, se dá através

do reverendo C. Teschauer na obra Poranduba Rio Grandense. Nesta

obra, Teschauer narra a lenda que Simões lerá antes de escrever a

Salamanca e contará ao redigir a mesma.

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transforma em mulher e fica diante dele. Dentre os aspectos

ético-metafísicos da lenda, cabe destacar.

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Já na sua origem, a vida do sacristão é tomada por

uma serie de fatores opostos:

―A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela

entraram soberbos pensamentos maus... O meu peito foi ungido

com os santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga,

do pecado... A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou

a frescura que requeima, dos beijos da tentadora...‖ (p.144,

l.27-31).

Fica, portanto, evidente a contradição entre duas

morais: a moral cristã, que seria como que uma

―conseqüência” dos sacramentos, e a moral ―humana,

carnal‖ (poder-se-ia dizer que seria algo semelhante ao id

freudiano) à qual todos os homens sofrem uma certa

inclinação. Esse dualismo da de moralis que está aqui

presente poderia ser um reflexo do momento histórico que

está se vai passando na época que a lenda original retrata: o

período barroco. O período barroco é assinalado pela

transição entre o teocentrismo que marcou toda a Idade

Média e o antropocentrismo que marcaria caracterizaria a

Idade Moderna. Como é um período de transição, o homem

encontra-se perdido diante de tantas mudanças.

.

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99

No conto simoniano há uma separação entre Teiniaguá e

Anhangá-pitã, embora ambos representem o mal. A

Teiniaguá é o mal colocado de modo externo ao próprio

homem. Isto é afirmado porque a Teiniaguá é vista como

―algo‖ que não existia no Rio Grande do Sul antes da

chegada dos mouros. Porém Todavia há um mal que é

inerente ao homem, que o convida a que este se deixe

seduzir, que sinta o sabor que há em fazer as coisas

aparentemente proibidas. Este mal que habita em cada

homem é Anhangá-pitã. Simões Lopes diz que esse era o

nome pelo qual era conhecido o mal entre os nativos:

Anhangá-pitã (p.143, l.17). Em outras palavras: há o mal que

já existia (Anhangá-pitã) e o mal que vem de fora

(Teiniaguá), que certo modo representam duas culturas

diferentes e dois modos diversosferentes de se ver o mal que

sempre existe numa comunidade humana.

Ao mesmo tempo em que há uma dicotomia entre o

mal interior e o mal exterior, há um dualismo ético

representado pelo sacristão diante do pecado, uma vez que o

sacristãoeste representa todo um modelo de religiosidade.

Esse modelo mostrando a evidente crise que há dentro da

própria religião, uma vez que ele é o arquétipo religioso.

HPorém, há quede se observar-se, porém, que o sacristão é

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movido por um desejo de riqueza tendo como modelo aquilo

que era feito pela Igreja no século XVII, durante o estado de

cristandade:

―Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse

a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais

rico que o Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei da

Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula...‖ (l.28-31).

Para que alguém se torne rico, a Teiniaguá pode ser o

caminho mais fácil. Simões Lopes mostra como o sacristão

conhece a Teiniaguá: sua primeira manifestação é um tanto

misteriosa, chegando a assemelhar-se com o episódio da

―sarça ardente‖ apresentado no Êxodo. ―Eis que a sarça ardia

no fogo, e a sarça não se consumia‖ (Ex 3, 2b), diz o livro

bíblico. Simões Lopes, por sua vez descreve o fenômeno

assim:

―A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando

tal e qual uma marmita no borralho. Por certo que lá embaixo,

dentro da terra é que estaria o braseiro que levantava aquela

fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas

dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos

daquelas águas... Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa...,

ferver sem fogo que se visse!‖ (p.145, l.17-23).

Assim, esta citação pode ser lida na perspectiva da

Teiniaguá como um ente metafísico, de caráter sobrenatural.

E semelhante à manifestação de Javé a Moisés a Teiniaguá

se manifestará ao sacristão dizendo ―Eu sou a princesa...‖, ou

seja, as duas primeiras palavras constituem o nome de Deus

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revelado a Moisés (EU SOU). Aqui não se está afirmando

que a Teiniaguá seja uma divindade, mas apenas seu caráter

metafísico.

Após ter conseguido apanhar a Teiniaguá, o desejo

que o sacristão tem de enriquecer é muito forte. Por isso, ele

observa um cuidado pela Teiniaguá, pois ela lhe pode ser

uma fonte de riquezas para ele. É esse desejo de ser rico que

chegará ano Rio Grande do Sul trazido pelos mouros e que

Blau narra como a possibilidade de ser a gênese do mal. O

mal que chega no estado sulino pode ser visto como uma

espécie de ―teste‖ para as virtudes do gaúcho,

considerando-se a tese de que não há virtude sem o mal.

Três vezes Simões Lopes diz, no capitulo III, que

―Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu‖ (p.145, l.16;

p.146, l.26; p.147, l.25). Esta frase tem um significado

especial em todo o contexto desta análise ética da lenda, pois

todo o povo significa que todas os princípios normativos

(morais, jurídicos, religiosos e de trato social) estavam

―sesteando‖, ou seja, seus olhos estavam fechados àquilo que

o sacristão fazia e a conseqüência disto é a sua condenação.

A antiga norma de identidade está de olhos fechados para as

atitudes do sacristão, ou seja, o povo não vê a nova época

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que está chegando e, assim, uma possível transição estaria

prejudicada, ou sendo atrasada.

Para concluir a análise deste capítulo, é preciso

retornar ao seu início, o qual mostra o santão afirmando que

Anhangá-pitã não havia tomado tenência de que a Teiniaguá

era mulher. Fica subentendo que há a separação de culturas

da qual já se falou aqui: o mal é visto por um outro prisma e

não há nenhum mal na mulher para os nativos gaúchos

Anhangá-pitã vê a Teiniaguá – que é uma mulher – como se

fosse uma lagartixa (com a cabeça de pedra luzente). Nos

próximos capítulos fica a possibilidade de a mulher ser a

―salvação‖ do homem, porém aqui ela é vista como a causa

do pecado e o maAnhangá-pitãl não faz um ―uso‖

devidoadequado da presença da mulher para conseguir

―mais mal‖. Considerando-se o todo formado por esta

leitura, pode-se dizer que a Teiniaguá é uma espécie de

hibris entre o bem e o mal, uma vez que o próprio ser

humano é constituído por essas duas facetas inseparáveis.

3.2.2 - O sacristão face ao pecado

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Neste capítulo, transparece através do texto, que

devido ao fato de o sacristão não ter desejado nem a

Teiniaguá, nem as riquezas, ela se manifesta a ele (apesar de,

conforme ficou claro na análise do capítulo anterior, o

sacristão ter desejo de enriquecer). O cuidado que o sacristão

dispensa à Teiniaguá é decisivo: ―Tu não me procuraste

ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo

água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento‖

(p.148, l.7-9). O cuidado dispensado à Teiniaguá, feito com

espírito puro, sem segundas intenções, e isso faz com que ela

ofereça as riquezas que o sacristão quiser.

Fica expresso no texto a estreita relação entre a

sedução que a Teiniaguá ―impõe‖exerce sobre o sacristão e o

pecado. Quando a Teiniaguá aparece ao sacristão, deixa

evidente que se o sacristão for seduzido estará em situação

de pecado: ―Si a cruz do teu rosário não me esconjurar”

(p.148, l.22).

Transparece, no texto, o dualismo pregado pela

tradição cristã desde Santo Agostinho: ―e minha alma de

cristão foi saindo de mim...‖ (p.148 l.35). Aqui, além de

haver a separação corpo/alma, o corpo é o responsável pelos

pecados que a alma comete.

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A ética é cristã. O pecado é praticado às escondidas.

O fato de um sacristão pecar às escondidas, e esse pecado

está diretamente relacionado com o corpo, revela uma

possível crise de identidade que há na religião da época.

Após a prática do pecado, o sacristão encontra-se (quando

acorda) cercado de padres: está condenado! Aqui aparece o

caráter de inquisição (período em que se passa a lenda) que a

moral do século XVII possui. O sacristão é condenado. E

para esse fato não há volta, não há espaço para a

reconciliação com Deus. Ele está condenado ao inferno.

Um aspecto que não pode passar em branco é o fato

de que é a representação que o sacristão faz (deve-se lembrar

que se está no período barroco). O sacristão por si só é o

símbolo do cristianismo (uma vez que é o único personagem

que tem alguma ligação com a religião) e cria-se um conflito

grande, quando o sacristão deixa-se seduzir: há uma

passagem que pode ser vista não do puritanismo para o

pecado de um modo radical, mas de uma possível mudança

interna do cristianismo, um cristianismo menos rígido

(contudo, não um cristianismo liberal, em que tudo é

permitido). Há, portanto, um conflito entre ―dois

cristianismos‖, ou seja, trata-se de um período de transição

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(pelo menos histórico) em que os valores estão em crise e

uma ruptura com antigo sistema já pode ser observada.

Ao fim deste capítulo, reaparece o dualismo acima

assinalado: ―...o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a

morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma‖

(p.149 l.28-9). Provavelmente, através desta citação, fique

evidente a morte (pelo menos do ―corpo‖, para manter o

dualismo) do sacristão.

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3.2.3 – A condenação do sacristão

O capítulo V é assinalado, já no seu início, por uma

palavra que será repetida por cinco vezes durante o capítulo:

saudade. A palavra saudade, que não apenas existe na

Europalíngua portuguesa, por exemplo, é uma

palavratambém tipicamente brasileira, ou ainda mais ee

muito specificamenteusada pelos gaúchaos. Com essa

palavra Simões Lopes quer mostrar o processo de

regionalização pelo qual passa a lenda que ele está contando,

e o seu intento de mostrar apresentar a situação em que se

encontra o gaúcho.

No fim do capítulo anterior era visto que o sacristão

estava sentenciado a morrer e no princípio do capítulo V,

pode-se ver o sacristão como se fosse uma ―alma penada‖. O

sacristão diz: ―os santos padres, pasmados mas sisudos,

rezavam encomendando a minha alma‖ (p.150, l.13s). Dá a

entender que o sacristão morreu e que quem conta a história

é contada por a ―sua alma‖.

Se até o presente momento a Teiniaguá e,

conseqüentemente, a figura da mulher foi tratada sob um

olhar machista, neste capítulo surge, pelo menos, uma

dialética acerca da figura feminina que tenta superar esse

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problema. Ao se analisar o capítulo anterior da lenda, ficou

dito que a mulher é a causa do pecado, pois, quando o

sacristão se deixa seduzir, recebe, como conseqüência, sua

devida condenação. Contudo, aqui a perspectiva é mudada.

Será, aqui analisado, primeiramente o texto bíblico do livro

do Gênesis que mostra Eva caindo na tentação, ao ser

seduzida pela serpente e depois se retomará o texto

simoniano.

Deus criou o homem e o colocou no paraíso. Adão e

Eva estavam no paraíso. O homem tem tudo ao seu dispor. O

mundo ideal, perfeito é seu com uma condição: não comer

do fruto da árvore da sabedoria. A Bíblia conta que a história

acontece no tempo que os animais falavam. Ora,

cientificamente, isso até hoje não foi comprovado.

Poder-se-ia afirmar que se trata de mais uma simbologia

bíblica. As Escrituras afirmam que a serpente falava, mas

partiremos do pré-suposto que esse ―falar‖ se trata da

influência que a situação externa ao homem exerce sobre ele.

Eva se deixa seduzir pela serpente: ela dá ouvidos a

alguém, que não é ela, e que lhe convida ao pecado – esse

convite é percebido, quando o meio, a situação ou a

circunstância em que se está inserido, passa a ser visto com

outros olhos, e o homem vê a possibilidade de quebrar as

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normas éticas. Então Eva come o fruto da árvore proibida.

Porém, ela não o faz sozinha, mas compartilha do pecado

com seu companheiro. Os dois são expulsos do paraíso. O

pecado cometido pelo homem não consiste no simples fato

de ter desobedecido a uma ordem ou de ter comido uma

fruta, mas no fato de querer ser como Deus. Deus havia

deixado claro que, se o homem comesse daquele fruto, ele

seria como Deus, conhecedor do bem e do mal. Há um

modelo (Deus) que dificilmente será atingido pelo homem, a

menos que este transgrida uma lei (que de certa forma lhe foi

imposta, apesar de ter sido a única condição).

Agora, retorne-se ao conto simoniano A Salamanca

do Jarau, tendo como bases principais a própria lenda e a

pequena hermenêutica exposta acima: pode-se afirmar que o

sacristão era alguém feliz, tinha tudo o que precisava para ter

uma vida digna. Surge, porém a Teiniaguá encantada: uma

pequena lagartixa com a cabeça de pedra luzente. Por querer

cuidar da lagartixa, ou seja, por se deixar influenciar por algo

exterior, dá-se de frente com uma mulher que o seduz, ou

seja, ele vê aquilo que antes era uma simples lagartixa, de um

outro modo. Talvez antes de ouvir sua consciência o

sacristão não percebesse o que viria a ser uma mulher (no

sentido de pecado, na visão judaico-cristã). Há que se frisar

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que a Teiniaguá não era uma mulher qualquer, mas ela

poderia dar ao sacristão todas as riquezas que este quisesse,

mas seu objetivo principal era derrotar o cristianismo,

unindo-se a ele.

As riquezas, por sua vez, são o modelo da época

desta lenda: a Igreja detém uma grande riqueza, o modelo é

teocêntrico (embora esteja em decadência) e a Igreja

representa Deus na Terra, assim, neste período histórico,

querer ser como Deus é querer ser igual à Igreja. Mas não é

isto que o sacristão quer, ele quer acima de tudo ter em seus

braços a Teiniaguá, porém há uma certa censura a este tipo

de atitude, pois o sexo é um pecado a que o corpo está

sujeito, e o homem virtuoso deve evitá-lo. Não conseguindo

ter tal atitude, sua condenação está promulgada. O sacristão

é condenado a morrer. Assim como Adão é expulso do

paraíso, o sacristão é expulso deste mundo.

TodaviaPorém, ainda na perspectiva cristã, se o

pecado tem sua gênese com a mulher, a salvação também é

trazida por uma outra mulher: Maria, a nova Eva. Aqui, no

conto simoniano, a própria Teiniaguá traz a salvação ao

homem (pois ela é hibris), tirando-o do domínio da morte:

―Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros

no corpo, sem peso de remorsos na alma passei o rio para o lado

do Nascente. A teiniaguá fechou os tesouros da outra banda e

juntos fizemos então caminho para o Cerro do Jarau, que ficou

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sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros

lugares‖ (p.152, l.8-12).

O Cerro é um lugar metafísico, onde o sacristão nada

pode gozar entre os homens. Tem-se aqui uma idéia de um

total abandono e isolamento. Mas, antes que se passe a este

ponto (a análise do cerro como um lugar metafísico, análise

esta que está presente de modo mais detalhado no próximo

capítulo), convém destacar que a Teiniaguá é uma

hibridação entre as personagens bíblicas Eva e Maria: ela é a

síntese na dialética acima esplanada. A Teiniaguá é causa de

condenação e, ao mesmo tempo, salva aquele que por sua

culpa foi condenado.

3.2.4 - O cerro como lugar metafísico

―Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi

sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros

homens que bem sabem que a alma é peso entre o mandar e o

ser mandado...‖ (p.152, l.15-7). É assim que inicia o sexto

capítulo da lenda de Simões. É mostrado por Simões Lopes

que faz muito tempo que o sacristão está na salamanca,

tempo que um ser humano não poderia viver. Já as

sabedorias árabes que o sacristão diz ter aprendido, mostram

tradição moura herdada pelos espanhóis. Também há que se

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lavar em conta o projeto de destruição da cristandade

judaico-ocidental, representado pela Teiniaguá.

Ainda vivo, sob o estado de uma ―alma penada‖, o

sacristão, passa por uma fase de ascetismo para se

purificar-se do pecado antes praticado. Ele agora é um vulto,

pois perdeu sua identidade de cristão. ―Nunca mais dormi;

num mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso...‖ (p.152,

l18s). O sacristão não goza mais nada entre os homens e

espera por ―sinal‖ divino: ouvir três vezes uma saudação

cristã, para, assim, sua salvação chegar à plenitude. E, em

outras palavras, o sacristão resgatará sua identidade de filho

de Deus, quando ouvir três vezes uma saudação cristã.

Enquanto isso, ele vive como uma espécie de ermitão,

isolado dentro de uma caverna. Ele possui riquezas aos seus

pés (literalmente):

―...ando sem parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso

torrões de ouro em pó, que se desfazem como terra fofa (...) tudo

ouro maciço do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo

cunhado com os troféus dos senhores reis de Portugal e de

Castela e Aragão...‖ (p.152, l.20ss).

Aquele padrão de riquezas que antes era almejado

pelos homens e que era representado pela Igreja, não traz

felicidade, assim como querer ser como deuses, no paraíso,

não trouxe felicidade para Adão e Eva, mas apenas

infelicidade (o santão não é feliz, pois já no início é

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apresentado como sendo alguém de ―face branca e

tristonha‖). O sacristão não almejava riquezas, mas chega ao

padrão querido pela maioria dos homens, enquanto Adão e

Eva não chegam a esse padrão. Contudo, expulsão e

purificação são comuns ao sacristão e a Adão e Eva.

Durante esse período em que o sacristão está numa

atitude de quem é asceta, chega à conclusão de que o novo

princípio ético-metafísico é: ―alma forte e coração sereno‖

(p.152, l.36). Um princípio que quer re-unir as duas

entidades metafísicas antes separadas (corpo e alma) através

de atitudes éticas, ou seja, a alma deve ter força para poder

vencer aàs inclinações que o corpo sofre, enquanto que o

coração sereno, que representa o corpo, mostra que a pessoa

deve pensar, analisar antes de tomar qualquer atitude de

forma precipitada. Assim se chega a uma harmonia,

harmonia não de dois opostos (corpo e alma), mas da pessoa

como um todo (alma e coração).

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3.3 - O gaúcho

3.3.1 - Blau e as sete provas

É neste capítulo que Blau é submetido a sete provas.

Ao entrar no cerro, a convite do santão, surgem as sete

provas. Foi falado anteriormente que o cerro (ou a caverna) é

um lugar metafísico. Neste ponto, pode-se explicar o porquê

do cerro se enquadrar em tal aspecto: primeiramente o

sacristão se retira do meio dos homens e vai para o cerro para

uma espécie de purificação (cf. capítulo anterior), e agora o

mesmo acontece com Blau. UBlau é um gaúcho pobre que se

encontra em crise de identidade (àa procura dopelo boi

barroso, fato principal que vai dardá sentido à sua

existência). É aqui, dentro do cerro do Jarau, que o gaúcho

será testado, enquanto um homem de virtudes e Blau só

passará neste teste, se tiver ―alma forte, coração sereno‖.

No interior do cerro Blau, enfrenta sete provas as

quais vence com sucesso. Aquilo que lhe fora dito pelo

sacristão (―alma forte, coração sereno‖) é o que lhe dá forças

para vencer cada prova, e este mote fica claro como o novo

princípio metafísico:

―Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer

o sinal da cruz;... porém – alma forte, coração sereno! – meteu o

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peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas

soltavam das suas juntas bolorentas‖ (p.155, l.19ss).

O fato de Blau não ter feito o sinal da cruz mostra sua

aderência a um novo projeto que não é o da cristandade:

―alma forte e coração sereno‖ é a nova máxima. Já na lenda

original, de Daniel Granada69

, transparece de forma direta

quais devem ser as condições morais para que se entre em

uma salamanca:

―Para merecer y poder entrar en ellas, es necesario revestirse de

mucho coraje y de mucha indiferencia á todo cuanto rodee y sea

capaz de hacer imprecisión leve ó vehemente en los sentidos y

en el ánimo del aspirante, que debe tener al intento la

impasibilidad de un estoico. Pruebas terribles, aparatos y

ceremonias magníficas, que traen á la mente las que usaron los

pueblos del Oriente y las que diz que usan masones en la

recepción de sus neófitos, esperan al sujeto que quiere iniciase

en los misterios de una salamanca. Mas aun así, con todas estas

purificaciones, todavía él neófito no sabe si, al salir de la

salamanca, será feliz ó desgraciado en su vida terrenal‖

(GRANADA, 1896, p.98).

Adaptando esse princípio, Simões Lopes cita-o desta

forma: ―alma forte, coração sereno‖. Com ―alma forte e

coração sereno‖ Blau supera, com vitória, as sete provas, e,

então, surge uma velha que lhe oferece sete recompensas e

das quais pode escolher uma como forma de prêmio por sua

69

Aqui é tomado o texto de Daniel Granada, por ser este o texto que mais

se assemelha ao de Simões Lopes e também porque é sabido que

Teschauer se serviu de Daniel Granada ao escrever Poranduba

Rio-grandense. Há teses que afirmam que Simões Lopes leu o texto de

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vitória no cerro. Porém, Blau, porém, nega todas as formas

de recompensa que lhe são oferecidas. A recusa das sete

recompensas obtidas, ao vencer as sete provas, mostra um

conflito interior que há no gaúcho: sentimento x riqueza.

Contudo, Blau queria uma recompensa, mas ele não

fala à velha qual a recompensa que gostaria de ganhar. Seu

real desejo era a Teiniaguá:

―Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque és tudo!... És

tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de

mim, em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti,

teiniaguá encantada!...‖ (p.158, l13ss).

A que se deve o fato de Blau querer ter a Teiniaguá

acima de tudo? Teria algo a ver com a história que fora

contada pelo sacristão? Ou tem algo a ver com a história

contada por sua avó e que fora recontada por ele ao

sacristão? O texto não aprofunda o porquê do desejo que

Blau tem em possuir a Teiniaguá, mas há a possibilidade de

ele querer aderir ao novo, que é representado por ela, para

sair de sua situação de pobreza. É certo que este momento foi

um grande deslize de Blau e é o próprio sacristão quem o

observa:

―Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste,

mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a

língua!...

Granada, utilizando-o de forma direta ao compor A Salamanca do Jarau

(cf. Eduardo Arriada, por exemplo).

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Não te direi si bem fizeste ou mal‖ (p.153, l.37ss).

Apesar de ter recusado aàs sete recompensas o

sacristão oferece uma onça encantada a Blau na saída do

cerro. Esta onça que Blau está recebendo, possui poderes

mágicos: de dentro dela saem quantas onças Blau quiser,

porém todavia uma de cada vez. Esta onça encantada tem um

ar de sagrado: ―Guarda-a em lembrança de mim!‖ diz o

sacristão ao entregá-la a Blau. De modo semelhante Jesus

Cristo havia falado na última ceia: ―Fazei isto em minha

memória‖. O sacristão para ter o efeito do encantamento da

Teiniaguá desfeito anulado, precisa ouvir três vezes uma

saudação cristã. E será esta onça que manterá o sacristão na

memória de Blau e, posteriormente, desfará o encantamento.

Blau guarda a onça e vai-se embora do cerro. Devido ao fato

de Blau ser um homem de virtudes e também com valores

cristãos inseridos em sua cultura, o sacristão concede-lhe a

onça encantada. Essa atitude talvez seja uma ―aposta‖ que o

sacristão faz para se ver livre da maldição da Teiniaguá,

pois, se ele for mesmo honesto, voltará à caverna.

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3.3.2 - O enriquecimento de Blau com a onça

encantada

Neste capítulo (o sétimo do conto) são encontrados

alguns elementos que facilitarão a compreensão dos últimos

capítulos deste conto. Por isso, nesta análise, ao desenvolver

o oitavo capítulo, será feita apenas uma descrição dos

eventos sucedidos a Blau após sua saída do cerro.

Com a onça encantada, Blau causa admiração às

demais pessoas, porque Blau é pobre e agora ele paga todas

as suas despesas no mesmo instante em que efetua uma

compra. Fato curioso é que, conforme dissera o sacristão, da

onça encantada, só apenas se tira uma onça de cada vez.

Apesar disto, Blau aproveita que tem em mãos a onça

encantada para efetuar grandes compras:

―Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil

cabeças, aquerenciado. O negócio era muito acima de três mil

onças, a pagar no recebimento. Aí o coitado perdeu quase o dia

inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça por onça, uma

atrás da outra, sempre uma a uma!...‖ (p.160, l.41ss).

Parece que Blau ele quer adquirir bens em demasia

para superar a pobreza em que se encontra (note-se que ele

adquire bens que um estancieiro compraria). Contudo, as

pessoas observam que há um mistério nissto tudo: Blau de

uma hora para a outra enriquece e o seu modo de pagar os

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seus gastos é um tanto quanto estranho. O próprio Blau se

espanta de sua riqueza. E maior fica o mistério, quando se

percebe que todas as pessoas que faziam negócio com

Blauele perdiam exatamente a quantia em dinheiro a quantia

que fora negociada com ele. Simões Lopes diz que o

dinheiro simplesmente ―evaporava‖.

3.3.3 - O agir ético de Blau e a quebra do

encantamento do sacristão

A riqueza de Blau torna-se um mistério para os

homens que o observam: Como um homem poderia

enriquecer tanto de forma tão repentina? Por que as pessoas

tinham prejuízos ao fazer negócios com Blau? As pessoas

acham que Blau fez uma espécie de pacto com o diabo ou

algo parecido, pois acham que o dinheiro que Blau tinha era

maldito: a quantia que ele dava nos negócios era prejuízos na

certa.

As pessoas começam a relacionar a riqueza obtida

por Blau com a salamanca do Jarau. Muitos fazem tentativas

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frustradas paraem entrar na salamanca. Não conseguem,

entrar porque é preciso ―alma forte, coração sereno‖ e o

desejo de riquezas impede com que qualquer um entre na

salamanca.

Contudo , Blau começa a ser colocado de lado pelas

demais pessoas e ninguém tem a coragem ou quer se

aproximar dele. Blau eEstá sozinho e tem no máximo a

companhia dos cachorros. Ninguém mais quer fazer

negócios com ele. Então: ―Blau deu em cismar, e cisma foi

que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento, que o

ralava e esmorecia‖ (p.162, l.19s). Blau tem uma atitude

decidida: vai retornar à salamanca, porque quer recuperar a

tranqüilidade, os amigos e companhias que outrora possuía.

Retornar à salamanca é de fundamental importância,

porque é lá que está a raiz do problema. Não basta apenas

guardar e não utilizar mais a onça encantada, mas é

necessário devolvê-la ao sacristão como uma forma de

atitude honesta. Talvez aquilo que aqui se chamou de

―tática‖ do sacristão, tenha dado certo: Blau (homem de alma

forte e coração sereno) retornará ao cerro. DBlau devolve a

onça encantada ao sacristão e, assim, mostra qual é a sua

ética. É a ética do desprendimento, ética em que o maior

valor válido para ele não é material, mensurável, mas está

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nas relações que ele mantém com os seus amigos e também

com o dever ético. De que vale ser rico e não ter amigos? É

preferível ser pobre, mas ter com quem partilhar o pouco que

se possuitem. Blau, ao voltar ao cerro, não perde nada, ou

seja, ele não perde as riquezas que havia adquirido com a

onça encantada, ele não ficou pobre. Ele era pobre e se

reconhece como tal, ao devolver a onça encantada. Isso se

verifica, quando Blau chega àna salamanca e diz: ―Devolvo!

Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que não

se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque

nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de

onças!...‖ (p.162 l.34ss). Deve-se lembrar que a ética cristã

afirma que a recompensa é ganha por aquele que sabe

renunciar às coisas do mundo.

Quando Blau chegou à salamanca, pronunciou pela

segunda vez uma saudação cristã e, quando vai-se embora,

pronuncia uma terceira saudação: o encantamento ao qual o

sacristão estava submetido está quebrado. Todos os tesouros

da salamanca são queimados.

3.3.4 - Blau recupera a paz e a tranqüilidade

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Quando o encantamento da salamanca é desfeito,

todos aqueles entes que lá habitavam são queimados

juntamente com a salamanca. Todos os encantamentos são

desfeitos: ―a velha carquincha transformou-se na teiniaguá...

e a teiniaguá na princesa moura... a moura numa tapuia

formosa; ... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à

figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num

guasca desempenado...‖ (p.163). Assim, pode-se verificar

que as principais figuras que estavam na salamanca, a saber

o sacristão e a Teiniaguá, voltam ao seu estado primitivo

(estado primitivo no começo da história, o que não quer dizer

que eles depois de terem passado por toda esta experiência

tenham permanecido os mesmos. O ser humano se faz e toda

experiência por que ele passa o faz diferente). Simões Lopes

chama a Teiniaguá de tapuia, nome que os tupis utilizavam

para designar os gentios inimigos, segundo o dicionário

Aurélio, mostrando, assim, que há o mal dentro da figura da

Teiniaguá. E o sacristão, por sua vez, torna-se um guasca, ou

seja, adquiriu, agora, sua verdadeira identidade.

Blau, por sua vez, traça sobre si e sobre seu cavalo o

sinal da cruz como forma de proteção. O gaúcho é, portanto,

um cristão convicto de seus deveres enquanto tal. Ele é

alguém que valoriza não apenas gestos que lembram sua

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religiosidade, mas que valoriza também os atos concretos

que o fazem ser um cristão. Alguém que, na linguagem

bíblica, é bem-aventurado porque pobre (Mt 5,3). Ele Blau

representa o gaúcho que é alguém que mantém, acima de

tudo, a honestidade como o valor primordial de sua vida.

ABlau ao devolver a onça encantada tem de volta a paz e os

amigos antes perdidos.

Simões Lopes encerra o conto assim: ―Anhangá-pitã,

também não foi mais visto. Dizem que, desgostoso, anda

escondido, por não haver tomado bem tenência que a

teiniaguá era mulher...‖ (p.164). Uma vez que o gaúcho toma

uma atitude honesta, e recupera, desse modo, sua identidade

que estava em crise, o mal que habita dentro dele

(Anhangá-pitã) não o incita a ter más atitudes. A mulher,

para ele, pode ser uma companheira, alguém que se faz

presente em sua vida, ou qualquer outra coisa, menos a causa

ou motivo para o pecado, pois o gaúcho está em paz com sua

consciência.

Síntese conclusiva

Uma vez feita a análise do agir ético dos personagens

do conto A Salamanca do Jarau, é justo relacionar esses

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aspectos entre si, pois até aqui eles foram apenas mostrados e

parece não haver conexão entre eles na leitura que foi feita.

O objetivo central deste item é mostrar quais as relações que

se pode fazer entre os três personagens da lenda simoniana:

Blau, o sacristão e a Teiniaguá.

O primeiro aspecto a ser observado é a crise por que

passam o sacristão e Blau. O sacristão, representando a

religião no século XVII, percebe que a religião esta não

responde mais às perguntas de seu tempo. Conforme a

análise acima, pode-se perceber que há necessidade de um

cristianismo menos rígido, numa época de transição para o

que seria depois, caracterizado como antropocentrismo.

Quando o sacristão é seduzido, mostra que quando se age

contraao agir-se contra as normas de uma época, tem quede

arcar-se com as conseqüências dos atos. Num período de

exclusão em relação aos demais homens procura por sua

identidade (pois tem a face desfigurada – ―branca e

tristonha‖). Já Blau passa por crise semelhante: perdeu

também sua identidade, mas isso pouco tem a ver com a

religião. Seu problema é basicamente econômico, por isso

procura por algo que é material: o boi barroso (o boi barroso

é visto como uma possível solução aos seus problemas

econômicos). Após ter passado pelas sete provas com

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sucesso, Blau nega as sete recompensas, mas leva a onça

encantada e vê nela a possibilidade de ter resolvidos seus

problemas econômicos, uma vez que pois a emprega em seus

negócios. Contudo, se dá conta de que perdeu seus amigos

por causa da onça encantada e que causou prejuízos aos

outros, se vê isolado, como o sacristão, e decide acabar com

essa situação. Percebe-se que no isolamento (talvez em

atitude de ascetismo), os personagens se encontram consigo

mesmos. ContudoPorém, o sacristão não depende somente

de si para sair desta situação. A crise de identidade pela

qualque ambos personagens passam, tem a ver com o

modelo que é colocado em evidência na época (Blau é o

econômico; o sacristão, o religioso). Ambos os modelos

devem se repensar, para que o homem tenha maior

autonomia (o sacristão vive numa crise de valores religiosos

e Blau, no momento de expansão do capitalismo, e, ao

mesmo tempo, de crise econômica – época do gaúcho a pé),

isto é, o sacristão pensa em como ser mais livre continuando

a ser cristão, e Blau quer saber como ser livre

economicamente no capitalismo e na pobreza.

Cabe, depois, analisar a relação que o sacristão

mantém com a Teiniaguá. Conforme já foi dito, o sacristão

dispensa um cuidado pela Teiniaguá, quando esta ainda

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estava sob a forma de lagartixa. Mas depois de um certo

tempo ele a vê na forma decomo mulher. Mas a ética de seu

tempo condena as relações que o homem mantém com a

mulher, por ser uma ética com fundamentos religiosos que

desvalorizam o corpo e dão ênfase à alma, ao espiritual.

Contudo, o sacristão quebra essa ética e se deixa seduzir pela

Teiniaguá. O momento da sedução é o momento que o

sacristão olha nos olhos da Teiniaguá e não mais lhe resiste

ao encanto. Como já era de se esperar, o sacristão é

condenado à morte pelos padres, pois está vivendo no

período inquisitorial. Mas o fato do sacristãode ele ter

rompido com a ética cristã mostra que o homem passa por

uma transição cultural, a qual repercute em cada pessoa, e

isso lhe traz inquietações. O sacristão apesar de ter morrido é

salvo pela Teiniaguá. Mas há dúvidas quanto essa

―salvação‖, pois ela quer formar uma nova estirpe com o

sacristão, e, por isso, salva-o. Até que ponto isso é salvação?

A salvação teria que ser por amor, portanto, gratuita. Mas,

não é o que ocorre. Outra questão a ser levantada é: Por que a

Teiniaguá salva o sacristão, se ele passa duzentos anos

isolado dos demais homens? O ―novo‖ que a Teiniaguá

representa tem quais projetos com o sacristão? Poder-se-ia

dizer que esse novo seria uma proposta que não é nem o

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cristianismo que está sendo vivido, nem um paganismo

completo. Isto está assim fundamentado: se fosse uma

proposta de paganismo, a Teiniaguá teria escolhido alguém

que não estivesse ligado à religião, e, se fosse para

permanecer do modo que estava a Teiniaguá não surgiria

como ―antítese‖ ao sacristão. Esse novo mostra que é

possível romper com as estruturas atuais em que se está

vivendo, sem que seja necessário voltar para trás ou

abandonar toda a tradição, para se chegar a algo novo.

Isolado, o sacristão pode refletir melhor naquelasua situação

e na proposta apresentada. O cerro, conforme já foi

apresentado, é um lugar metafísico, onde cada um faz a

experiência de encontro consigo mesmo.

Resta ainda uma dúvida quanto ao modelo de ética

seguido por Blau: ao devolver a moeda ao santão, ele foi

ético, e, quanto a isso não há dúvida. EleBlau se deu conta de

que a atitude correta a ser feita neste caso seria devolver a

moeda, mas por qual princípio ele se norteou: o teleológico

ou o deontológico? Podem ser feitas duas análises: se ele

seguiu o primeiro princípio, o fator decisivo de sua atitude

foi o fato de ele ter perdido os amigos, pois sua ação é

movida por um ―querer recuperar‖ os mesmosamigos

perdidos. O fim almejado é alcançar a felicidade e aesta

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felicidade depende dos amigos, que fazem o gaúcho ser feliz.

De nada adianta ser rico, mas não ter amigos com quem

partilhar a vida, o chimarrão,… Contudo, se Blau agiu

coagido pelo imperativo categórico kantiano (independente

de conhecê-lo teoricamente), ele apenas agiu, porque devia

agir assim: todo o homem que age eticamente, deve devolver

a moeda e ―eu não ia querer que me dessem uma moeda que

após algum tempo sumisse‖. Ou seja, Blau ia querer que sua

atitude particular se tornasse lei universal baseada no dever.

Contudo, através do texto, nada fica subentendido quanto ao

princípio ético seguido por eleBlau. É a partir dessa crise, de

possuir a onça encantada, pela qualor que

Blau passou, que se encontra o projeto para sua identidade

procurada desde o início da história. Blau é, acima de tudo,

alguém ético, seu projeto consiste na honestidade, e, talvez,

seja essa a sua crise: como ser honesto no contexto

capitalista? Nesse ambiente de competição que é o

capitalismo, há o evidente desejo de superar a situação de

pobreza, qual o mais importante: ser rico a qualquer custo,

ou ser pobre, mas contar com amigos? Parece que Blau opta

pela segunda alternativa. Não importa se ele foi honesto para

com seus amigos ou apenas para consigo mesmo. Importa

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sua honestidade que é colocada em prática independente das

adversidades encontrada.

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Referências bibliográficas:

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1996.

CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:

Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: L&PM, 1982.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário

Aurélio. 2ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

GRANADA, D. Daniel. Supersticiones del Río de la Plata.

Montevideo: A. Barreiro y Ramos, 1896.

LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos. Lendas

do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia

Chappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.

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4 - DA CAVERNA PLATÔNICA À CAVERNA

SIMONIANA: UMA LEITURA DA CRISE DE

IDENTIDADE ÉTICA DO GAÚCHO

Mauro Henrique Franzkowiak Martins 70

1. Um Platão unitivo

Na reconstrução das interpretações de Platão, é

necessário descobrir quais foram os paradigmas71

que

constituíram a base de sustentação das pesquisas. De acordo

com Giovanni Reale, os paradigmas essenciais para uma

melhor interpretação de Platão, do século IV a.C. até hoje,

podem ser resumidos em quatro grandes blocos:

a) O paradigma originário, nascido com Platão e

consagrado pelos seus discípulos diretos e desenvolvido na

70

Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa

Simoniano. ISF/UCPEL. 71

Os paradigmas demonstram as convicções e concepções que

constituem os pontos firmes da ciência num determinado momento e que

fornecem os modelos para a formulação dos problemas e das soluções

para aqueles que trabalham nas pesquisas. G. Reale utiliza em sentido

analógico e considera o paradigma como uma unidade de medida

fundamental nas pesquisas científicas. Ele o utiliza, a exemplo de Kuhn,

como uma unidade modeladora. Quando um paradigma entra em crise,

se encerra-se com o surgimento de um novo paradigma e, assim, a

conseqüente batalha pela sua aceitação.

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primeira Academia. Sua natureza é teorética e centra-se nas

doutrinas não-escritas.

b) O paradigma neoplatônico, também de natureza

teorética, centra-se prioritariamente nos escritos,

interpretados numa ótica alegórica. Absorve elementos

basilares das doutrinas não-escritas e desenvolve-se

teoreticamente de modo muito notável.

c) O paradigma, lançado sobretudo por

Schleiermacher, centrado na preeminência quase absoluta

atribuída aos escritos, excluindo ou limitando fortemente o

significado e a importância das doutrinas não-escritas.

d) O paradigma proposto pela escola platônica de

Tübingen, que coloca, em primeiro plano, as doutrinas

não-escritas junto com os escritos platônicos, e as apresenta

como necessárias para a adequada compreensão dos próprios

escritos, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de

vista doutrinal. Os escritos de Platão não oferecem ―todo

Platão‖.

A doutrina esotérica mostra de forma mais completa

as sínteses de Platão. Aqui aparece uma síntese final, que

não seria entendida por principiantes e por aqueles que

estavam de fora. Esta doutrina é oferecida para os iniciados,

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na forma de diálogo vivo (cara a cara). Aqui aparece a

dialética com teses, antíteses e sínteses.

Esta doutrina se chama-se de doutrina não-escrita. A

escola de Tübingen irá colocá-la em primeiro plano de sua

pesquisa, para assim, elaborar uma releitura de Platão. Aí é

que o estudo desta leitura de Platão se torna de suma

importância, pois só desse modo se conseguiu chegar à

grande síntese. Os pólos se conciliam e a alegoria da caverna

pode ser lida de forma completa.

2. A caverna platônica

Ao ler a alegoria da caverna platônica, percebe-se

que há um limite à visão desses prisioneiros. E este limite

não se reduz apenas aos objetos. Eles estão limitados a

verem somente suas próprias sombras, pois suas cabeças

estão imóveis.

―Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham

visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras

projectadas pelo fogo na parede da caverna?‖ (Rep., 515a)72

.

Cabe destacar, também, que as vozes ouvidas pelos

prisioneiros são atribuídas às sombras que eles viam

projetadas no fundo da caverna:

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―E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo?

Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles

não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que

passava?‖ (Rep., 515b).

Ao sair da caverna, o ex-prisioneiro se encontraria

numa ascensão gradual, ou seja, subir o caminho rude e

íngreme (Rep., 515e). De início, iria contemplar o fogo, as

imagens dos homens e objetos – inclusive de si mesmos –

que seriam projetadas na água. Após, passaria a contemplar

os próprios objetos, a luz das estrelas, a Lua e por fim, o Sol.

Percebe-se, neste processo, que se contemplariam os

objetos, os outros homens e a si mesmos. Estas são as três

dimensões para perfazer o caminho de ascensão da alma ao

mundo inteligível. Porém, só no limite do cognoscível é que

se poderá ter a Idéia do Bem.

O processo de ascensão os leva a darem-se conta de

sua própria condição de prisioneiros. Desta forma, as trevas

já não representam a simples ignorância, mas a ingenuidade.

Agora se percebe que a sombra não é mais a realidade, que

distingue entre aparência e realidade.

Prosseguindo sua ascensão, este prisioneiro deve

voltar à caverna. O ter compaixão (Rep., 518b) faz com

72

A partir deste momento, usaremos a abreviação ―Rep‖ para a obra:

PLATÃO, A República (trad. de Maria Helena da Rocha Pereira). 3ª ed.

Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1949.

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queque ele sinta a necessidade da voltar, ao ver os outros na

própria condição anterior, mesmo agora, ficando cego pela

falta de luminosidade no interior do local. etorne a caverna

ao ver os outros na sua própria condição anterior. Esta

compaixão faz com que sinta a necessidade de retorno,

mesmo, agora, ficando cego pela falta de luminosidade

dentro da caverna. O processo deixa de ser solitário: Desse

modo, a intersubjetividade surge como condição do

desenvolvimento da subjetividade (Sardi, 1995, p.84). Os

prisioneiros soltos, são curados de sua ignorância, mas p.

Para isto, o educador deve receber o consentimento do

educando.

3. A caverna simoniana

Diante da obra de J. Simões Lopes Netodeste

escritor, percebe-se que oO verdadeiro objetivo de Simões

Lopes Neto, na Salamanca do Jarau, é uma invenção de um

personagem e a observação da situação-limite em que se

encontra (Chaves, 1982, p. 82). O personagem Blau Nunes

vai em busca de um boi barroso por um percurso geográfico,

que não tem início nem chegada pré-determinados. O

percurso geográfico, num primeiro momento, representa a

travessia psicológica do próprio Blau em busca de si mesmo,

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travessia esta que está sujeita a avanços e recuos. Esta

travessia, necessariamente, culmina num processo de

autoconhecimento e afirmação da identidade. O ingresso na

salamanca onde reside a Teiniaguá, agora, representa a

travessia em busca de si mesmo.

O ingresso na salamanca torna-se um momento

decisivo para Blau, pois representa a tentativa de ultrapassar

a condição problemática em que se encontra, buscando os

valores éticos. A situação do gaúcho pobre, na crise de seus

valores éticos, se contrapõe à busca do poder e das riquezas,

que a salamanca e a Teiniaguá representam. O ingresso na

furna encantada tem como função subtrair Blau ao mundo

humano, para coloca-lo na solidão, num combate do qual

deverá alcançar o conhecimento duma zona interdita (o reino

encantado da Teiniaguá) e a revelação de sua própria

identidade, que conduz à posse de si mesmo. A função da

Teiniaguá é uma representação da ruptura entre a humana

existência humana e o conjunto de valores éticos a que aspira

o gaúcho pobre – Blau Nunes.

4. Da caverna platônica a caverna simoniana: análise

da crise de identidade ética do gaúcho

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Fazendo uma relação com estas duas alegorias, foram

destacados alguns elementos desses textos que expressem as

semelhanças e as diferenças principais dos personagens e

esclarece pontos que revelem, também, o conhecimento

teórico-prático (alegoria da caverna), ligando-o com a nossa

identidade gaúcha (A Salamanca do Jarau).

Qual é a identidade ética que Blau irá assumir? Não é

o objetivo deste trabalho apresentar as características ou

desenvolver a identidade ética de Blau, mas apenas mostrar

o aspecto metodológico que rege a interpretação da lenda

simoniana, isto é, a teoria do Bem elaborada pelo escola de

Tübingen.

Os dois textos possuem características semelhantes: a

narrativa de ambos envolve uma caverna que está em nível

diferente ao dos personagens. Portanto, percebe-se que os

dois textos nos mostram um processo, um caminho a ser

percorrido pelos personagens inseridos no contexto da

alegoria e da lenda. E este caminho culmina numa

elaboração de uma consciência intersubjetiva. Assim como

na caverna platônica há um duplo movimento (subir e

descer) ético-cognitivo, também na lenda A Salamanca do

Jarau há um duplo movimento de busca de identidade ética,

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quando o personagem percebe a sua crise interior com a crise

externa, crise do pampa gaúcho.

O personagem simoniano se depara com projetos

éticos, na lenda A Salamanca do Jarau, que são projetosos

quais são ambíguos. O primeiro é representado pelo

sacristão. O sacristão, na lenda, apresenta-se em três fases

diferentes: Numa primeira fase, ele é o sacristão da igreja de

São Tomé. Ali, ele representa a cristandade colonial, dentro

de uma instituição (São Tomé). Era eu que cuidava dos

altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de S.

Tomé (...) Eu era o sacristão (Lopes Neto, 1988, p.145).

Nesta fase, o sacristão entra em oposição com a instituição

em que está inserido. Ele vai contra os princípios éticos da

instituição: ...e a minha alma de cristão foi saindo de mim,

como o sumo se aparta do bagaço, como o aroma sai da flor

que vai apodrecendo... (Neto, 1988, p.148). É uma fase de

mudança na vida do sacristão, onde ele deixa de viver um

projeto ético colonial, para viver um outro projeto,

representado pela Teiniaguá.

Na segunda fase, o sacristão está fora da sociedade.

Já não está mais na instituição. Ele assume um projeto

ascético, vive no cerro do Jarau como um eremita, na sua

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solidão, com face tristonha. Agora está fora do institucional,

ele é um vulto de face branca e tristonha.

Enfim, na terceira fase, o sacristão assume o projeto

de Teiniaguá e se une a ela. Aí há uma metamorfose: o vulto

de face branca e tristonha volta a se tornar a figura do

sacristão dantes, que, agora, se transforma-se num guasca

desempenado, inicia sua viagem com a princesa moura.

(...)... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou à

figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num

guasca desempenado ... (Lopes Neto, 1988, p. 163).

O sacristão representa uma identidade ética da

cristandade, que se baseia numa moral dualista, de desprezo

ao corpo e ao prazer, tendo valor as asceses espirituais.

Aquilo que não faz parte desta moral, é um mal condenável.

Si a cruz do teu rosário não me esconjurar... (Lopes Neto,

1988, p.148)

O segundo projeto é representado pela Teiniaguá,

que revela o novo, expressando um projeto

latino-americano. A Teiniaguá é um personagem híbrido,

ora simboliza a condenação, ora simboliza a libertação.

A Teiniaguá simboliza uma identidade ética unitiva,

em queva. Nesta identidade, não há uma dualidade entre

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corpo x alma. Esta identidade conduz a uma unidade sem

exclusões, ou seja, tudo converge para uma única direção.

...do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e

sábia, que nunca mais será vencida... (Lopes Neto, 1988,

p.148)

Relacionando com a filosofia platônica, encontra-se,

no primeiro projeto, uma identidade ética dualista, como se

depara lendo Platão de forma dualista, ou seja, há separação

de Bem x mal, de corpo x alma. No segundo projeto,

Teiniaguá representa uma identidade ética unitiva, que

conduz todos os pólos a uma unidade, como na teoria sobre o

Bem de Platão.

A ética da cristandade colonial é dualista,. Ela

separa, por exemplo, corpo e alma, ou bem e mal. No

entanto, este modelo é superado na união do projeto do

sacristão com o da Teiniaguá. Ora, encontra-se na filosofia

platônica, à luz das doutrinas não-escritas, uma ética que

conduz aà unidade. Da mesma forma, é possível fazer uma

leitura da Salamanca do Jarau, em que se

realiza uma identidade ética unitiva. Deixa-se em aberto,

porém, se Blau Nunes assume esta nova identidade

ética resultante da união dos dois personagens. Cabe

destacar, contudo, que há uma inquietante busca por uma

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identidade, representada na figura de "campear o boi

barroso".

A uUnidade de Platão pode ser aplicada na união dos

dois projetos que estão diante de Blau Nunes. A partir da

união dos pólos, se chega-se a uma uUnidade, sem excluir. A

síntese vai surgir na formação da ―nova gente‖.

Diante disso, destacam-se alguns elementos para

aplicar à filosofia platônica. Eis cinco pontos principais.

1) Blau está inserido na oposição destes projetos

éticos, porém, a ética de cristandade está em crise. Daí, a

crise de identidade ética do gaúcho Blau. Por isso, ele sai em

busca de seu boi barroso, mesmo sem saber se era possível

encontráa-lo. Blau Nunes vai ao cerro do Jarau e recusa

qualquer recompensa, tanto da Teiniaguá como do sacristão.

Esta rejeição leva à destruição da furna, ou seja, o

encantamento desaparece.

Com a união de Teiniaguá e do sacristão, ocorre a

síntese dos dois projetos. Blau Nunes presencia essa união e

a formação de uma grande síntese: Teiniaguá e o sacristão

formam um único projeto. Surge uma nova gente. O

sacristão, agora, assume a personalidade do guasca

desempenado, o que faz com que a crise de identidade do

Blau seja resolvida.

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Nota-se então que, assim como a filosofia platônica

converge para uma unidade, uma síntese de opostos, sem

exclusões, a lenda A Salamanca do Jarau ilustra esta

filosofia desta forma, através destes dois personagens. Há

uma unidade entre os dois projetos.

2) A segunda aplicação é o processo da

intersubjetividade: Elemento de grande importância nos dois

textos. Os dois personagens estão comprometidos com a

mudança. O personagem platônico, ao passar pelo processo

do conhecimento, sente a necessidade de libertar os outros

que estão na caverna, resgatando da ignorância os que ainda

estão presos aà ela. O personagem simoniano, ao buscar sua

própria identidade, representa não só a sua identidade

pessoal denominada Blau Nunes, mas sim, o gaúcho Blau

Nunes, representando todo o conjunto ético-cultural do

gaúcho que está em crise. É aí que se encontra o resgate da

cultura, através de uma consciência intersubjetiva, sem

excluir nada, mas conduzindo tudo para a unidade.

É esta consciência intersubjetiva, provocada pelo

autoconhecimento dos personagens, que é a responsável pela

mudança e reconstrução da sociedade. O personagem de

Platão expressa a busca pela verdade, mas uma verdade para

todos, representada no retorno à caverna . O personagem

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Blau Nunes manifesta a busca de sua identidade, fundada

numa ética do presente que se encontra em crise. Ambos se

julgam co-responsáveis pela sociedade em que vivem.

3) A terceira aplicação é elaborada, a partir da

conduta que os personagens assumem para chegar ao

conhecimento. Os dois personagens precisam encontrar um

caminho que os leve ao conhecimento. O personagem

platônico percorre um caminho, passo a passo, iniciando

pelas sombras, depois pelos reflexos nas águas, pelos astros

e enfim, pelo Sol. O personagem simoniano sobe o cerro do

Jarau e realiza as sete provas, dialoga com a Teiniaguá.

Ganha a moeda, retorna, para devolvêe-la. Ao fazer isso,

acontece a destruição da furna e o encantamento acaba.

Então acontece a união entre o sacristão e a Teiniaguá e

surge a síntese: o sacristão é um gaúcho guasca. Nasce aqui

uma ―nova gente‖, que também é uma nova identidade

cultural. Fica em aberto qual é esta identidade.

4) O contexto histórico dos dois textos é um

momento de crise. Platão, em sua juventude, testemunhou

as guerras de Peloponeso, a derrocada de Atenas e, no início

do século IV a.C, o enfraquecimento de Esparta e a

decadência do conjunto das cidades gregas. A totalidade de

suas obras vem espelhar esta situação. Na República, Platão

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descreve o projeto de uma cidade modelo, ou seja, como se

deve administrar uma cidade que leve em conta todos os

cidadãos.

J. S. Lopes Neto escreve sobre a mudança que

acontece no pampa no princípio do séc. XX. Com a chegada

da industrialização e da mecanização, é abandonado o

trabalho nas charqueadas. Com a crise do charque e das

fazendas, o gaúcho perde a sua identidade.

Assim como Platão procura conduzir as cidades gregas ao

conhecimento, J.S. Lopes Neto procura ilustrar o resgate da

identidade gaúcha também numa época de crise econômica.

5) O acesso ao verdadeiro conhecimento e da

identidade do gaúcho não se realiza de forma fácil, pois é

necessário superar a crise. Os dois processos são longos, e

são representados pelos caminhos a subir. Platão diz,

claramente, que é preciso subir o caminho íngreme que

conduz ao conhecimento. J.S. Lopes Neto ilustra o caminho

da subida para o cerro ou a subida para a furna encantada.

Assim, com caminhos a subir e provas a realizar,

sucede simultaneamente o conhecimento e a identidade.

Platão, pela dialética, chega ao Bem. J. S. Lopes Neto pelo

auto-conhecimento, chega à nova gente. Em ambos os

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casos, realiza-se uma síntese. Estas provocam as

transformações tanto no indivíduo como na sociedade.

Para concluir, pode-se dizer que esta busca pelo

conhecimento não é algo solitário, mas tem um caráter

intersubjetivo. Esses elementos que foram destacados,

servem para ilustrar que o verdadeiro conhecimento é aquele

que conduz o homem à transformação da sociedade onde

está. A busca pelo conhecimento é a formação de uma

consciência intersubjetiva ético-cognitiva que se expressa

na afirmação da identidade ético-cultural regional, aberta ao

universal.

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Referências Bibliográficas:

CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:

Regionalismo & Literatura. Porto Alegre : Mercado Aberto,

1982.

LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos e Lendas

do Sul.Edição crítica com introduções, variantes, notas,

glossário por Aurélio Buarque de Hollanda e nota de

Augusto Meyer. Posfácio de Carlos Reverbel. Col.

Província, v. 1, 5ª ed., Porto Alegre : Ed. Globo, 1957.

________________________. Contos gauchescos. Lendas

do Sul.Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia

Chiappini. Rio de Janeiro : Presença, 1988.

PLATÃO, A República (trad. de Maria Helena da Rocha

Pereira). 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian,

1949.

REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão.

São Paulo : Loyola, 1997.

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da

Filosofia.(Vol. 1) São Paulo : Paulinas, 1990.

SARDI, Sérgio Augusto. Diálogo e Dialética em Platão.

Porto Alegre : EDIPUCRS, 1995.

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5 - SITUAÇÃO ECONÔMICA NA LENDA SALAMANCA

DO JARAU

Péterson Figueiredo 73

INTRODUÇÃO

O presente trabalho de hermenêutica da situação

econômica na lenda ―Salamanca do Jarau‖ do autor João

Simões Lopes Neto tem, como objetivo primeiro,

diagnosticar e tomar um panorama do contexto geográfico e

econômico da época vivida pelo autor, quando escreve a

lenda. Também foram observadas as as conseqüências

econômicas que levaram, o autor, escrever o induziram a

escrevê-laesta lenda. AE será feita a análise do papel do

personagem Blau Nunes, personagem este criado por Simões

Lopes Neto. No livro Simões Lopes Neto: Regionalismo e

literatura de Flávio Loureiro Chaves, cita que objetivo

verdadeiro de Simões na lenda [...] é a invenção de uma

personagem e a observação da situação-limite em que se

encontra.

Num segundo momento, o trabalho tem o objetivo de

verificar dentro da lenda a visão econômica e toda a

73

Acadêmico do Curso de Filosofia. Membro do Grupo de Pesquisa

Simoniano. ISF/UCPEL.

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trajetória do personagem Blau. Por fim destacar as principais

idéias e a contribuição que causou para a literatura e a

própria filosofia atual.

1 - Situação econômica na época de João Simões

Lopes Neto

Na lenda Salamanca do Jarau, Simões resalta em

várias passagens à situação econômica. Neste contexto

econômico é constatado com o personagem Blau o

descontentamento com a pobreza e as conseqüências

enfrentadas por ele. A confirmação desta pobreza está em

destaque:

―No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso

das suas cousas. No atraso das suas cousas, desde o dia em que

topou-cara a cara! Com o caipora num campestre da serra

grande, pra lá, muito longe, no Botucarai...‖(Lopes Neto, 1988,

141, 15-20).

A análise agora é da situação econômica da época de

Simões Lopes Neto, meados de 1913, ano em que o autor

escreve a lenda.

O período analisado é chamado de República Velha

(1890-1930). Neste período, o Rio Grande do Sul tem uma

economia voltada de forma específica para a agropecuária.

Neste período aA economia é de transformação e mudança,

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passando de uma economia escravocrata para uma economia

assalariada, . Assim surgindo, assim,e na sua base da

economia o sistema capitalista. A entrada deste sistema em

nosso estado o exemplo do estado de São Paulo, com o café

trouxe e o acúumulo de capital, fenômeno até o momento

desconhecido. Isso faz com que reproduza efeitos, atingindo

vários âmbitos, permitindo um crescimento necessário na

estrutura do RS,estado. Estrutura esta tais como estradas de

ferros, equipamentos nos portos, desenvolvimento bancário,

etc. Na instalação do período da República Velha, a base da

economia era voltada para o interior dentro do estado. Com a

fabricação do charque e a criação de gado, atividades

primordiais para a região o Estado, começou a fluir e

consolidar uma economia exportadora regional.

Em 1913, a estrutura utilizada no estado era

deficiente e encontrava-se em desigualdade com o modo que

era aplicado no Prata. Isso faz com que aA má aplicação de

tecnologia, e usando métodos já ultrapassados faz , que o

charque perca qualidade e o preço alto, não chegando a ser

lançado no mercado interno brasileiro. Outro fator negativo

era a matéria-prima e altas taxas que o governo cobrava

sobre a importação do sal, principal item para a fabricação

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do charque. Começava então uma crise na economia do

estado,o e se alastrando-se por vários anos.

No panorama geral da situação econômica da época,

decadente e de crises atingindo o pampa, fez quetudo levou

Simões a reproduzir,iu-se através do escrito da lenda, um

pouco desta situação vigente.

Em debate no grupo de pesquisa, ficou salientado que

Simões não atingiu nunca sucesso como escritor e

empresário. SAssim Simões sempre foi um fracassado e, nos

últimos anos de suas vida,s passou na pobreza, recebendo

favores e ajuda financeira de amigos. Suas obras somente

ganharam destaquecadas e valor literário, após sua morte.

2 - A situação econômica na parte interna da lenda

Salamanca do Jarau

Já nas primeiras linhas da lenda observamos que o

narrador cita que o personagem que percorrera toda a lenda

era em primeiro lugar pobre:

[...] ―um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte,

mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o fação afiado... e

nesse dia andava campeando um boi barroso‖ (Lopes Neto, 140,

2-5).

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O narrador coloca toda a situação do personagem

Blau e a identificação do espaço geográfico. EBlau era um

gaúcho que tinha em sua personalidade uma valentiavalente,

um espírito dominanteador e trabalhador. Sob este olhar da

personalidade de Blau nada corria bem em sua vida

econômica e sua situação de pobreza era alargada com o

tempo. Na característica do personagem remonta toda uma

situação do gaúcho da época de Simões Lopes Neto.

NestCom a narrativa, Blau sai ao encontro de uma

solução para o problema vivido em sua vidaem que vive:, a

pobreza. Durante Ao caminho, faz uma reflexão a respeito

dada pobreza e encontra-se com um vulto que era o santão da

salamanca do Jarau. Neste encontro, Blau é indagado sobre o

conhecimento da furna. O diálogo entre ele o santão dáa a

intenção de uma saída para os seus problemas enfrentados

por Blau.

No segundo capítulo da lenda, é citado o discurso de

Blau, que relembrando-se de que sua avó contava a história

da furna que se localizava no Cerro do Jarau. Neste capítulo,

ocupa-se em total tempo com a narração da história do Cerro

do Jarau, que avó contava para seu neto Blau. . A sua avó

contava que lá na furna se encontrava-se uma velha fada que

possuidora deía um condão mágico que foraera trazido para

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ada América. Blau, ao lembrar-se da história, temsente a

iluminação e a confiança deinfluência também de ali na

furna conseguir resolver o problema de sua pobreza. EPois

entrando na furna, conseguiria o ―condão mágico‖ e, assim,

resolveria sua situação de pobrezadificuldade.

No terceiro capítulo, encontra lê-se a narração do

vulto de face branca e tristonha, . Vulto este que se intitula

como sacristão da Igreja de São Tomé, nas antigas reduções

jesuíticas do rio Uruguai. A história inicia com o

aparecimento da Teiniaguá que sai de uma lagoa e é

aprisionada pelo sacristão. O relacionamento do sacristão e

padres faz que se condenea o sacristão, ao descobrir que ele

tinha prendido a Teiniaguá, que era mulher. E, condenado à

morte, acontece um milagre aos olhos de todos: Teiniaguá

liberta o sacristão num toque mágico e os padres e o povo

que assistia, nada puderam fazer. Ao ser libertado, ele

refugia-se na caverna do cerro do Jarau. ENeste local passa a

ser um lugar de riquezas de todas as outras salamancas. O

vulto neste contexto todo sente-se arrependido de suas ações

e, tendo toda a riqueza, é condenado a não viver livre e

desfrutá-lasar no meio dos homens. Pelo fato de oo

personagem Blau ter cumprimentado o vulto de face branca

e tristonha (sacristão) de uma forma cristã e como filho de

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Deus e não como um condenado e maldito, este o. O vulto

convida, em recompensa aem ingressar na salamanca do

Jarau. Os capítulos IV, V e VI continuam a relatar a história

do sacristão com o Blau.

Agora centro o trabalho nos capítulos seguintes.

Quem nestes capítulos retoma a narração ée o narrador

Simões. Ele contanarra a entrada do personagem Blau, e a

passagem pelas setes provas e o encontro com a Teiniaguá

que, em recompensa, oferece sete poderes em pagamento

pelas provas. Num poder que ela oferece e a riqueza. NMas

no fundo, Blau queria a Teiniaguá e, não conseguindo,

rejeita as suas ofertas dela e retorna ao exterior da furna.

Neste contexto, o sacristão (santão) entrega uma onça de

ouro.

―Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente,

que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão

mágico; ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre

de uma em uma e nunca mais que uma por vez; guarda-a em

lembrança de mim‖ (Lopes Neto, 1988, 158).

Aqui nesta citação fica claro que Blau era pobre e que

a oportunidade foi oferecida para ele. Primeiro pela

Teiniaguá pela passagem das provas. Esta primeira ele

rejeita; segundo, pelo sacristão, a onça de ouro. Neste

segundo caso, aceitou a oferta.

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Inicia o momento de usar a onça e começa a gastar e

comprar desenfreado, e não pagando de onça em onça, uma

de cada vez, como tinha recebido a recomendação. Sua

riqueza aumentou e ele tomou de poder e sentiu que estava

ficando rico e não mais sentindo aquele Blau pobre e

humilde. Mas logo chegou o problema: que ao pagar as suas

coisas com a onça, os que recebiam guardavam e num

instante sumia.

Isso constata a ambição de Blau para a riqueza, e ao

cair em si e ver que aquilo era apenas ilusão e algo mágico,

busca retornar ao cerro do Jarau e devolver a onça de ouro ao

sacristão. Ao chegar na entrada do cerro, saúda o sacristão e

joga a onça aos seus pés. N que no mesmo instante ée

quebrado todo o encantamento da Teiniaguá e Blau aceita

sua condição de pobre.

―Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito

uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de

rédea e d´espacito foi baixando a encosta do cerro, com o

coração aliviado e retinindo como si dentro dele cantasse o

passarinho verde... E agora, estava certo de que era pobre como

dantes, porem que comeria em paz o seu churrasco... e em paz o

seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...‖(Lopes

Neto, 1988, 163, 32-38).

Assim fica confirmado e que o personagem Blau

Nunes toma toda a consciência de sua pobreza. N e no início

da lenda ele a declara; sua pobreza no final da mesma dáa a

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clarezaexplicação necessária para confirmar que Blau

continua pobre e abdica de toda a fortuna oferecida. Riqueza

esta fruto da mágica e da ilusão de ser herói um dia.

―Assim acabou a salamanca do Cerro do Jarau, que aí durou

duzentos anos, que tanto se contam desde o tempo das Sete

Missões, em que estas cousas principiaram‖ (Lopes Neto, 1988,

164, 1-4).

CONCLUSÃO

Ao término do trabalho chego a conclusão de que a

situação econômica da época, em 1913, sua vida e a criação

do personagem Blau Nunes levaram Simões Lopes Neto a

transmitir e colocar na lenda Salamanca do Jarau sua

história pessoal e a sua circunstância político-social.

A análise da economia no início do séc XIX,

contribuiu para localizar o sentido do autor em criar o

personagem Blau, citando como um gaúcho pobre à procura

de algo melhor para a vida e, por fim, a tomada de

consciência de ser um gaúcho pobre, mas feliz com sua

liberdade. Assim retorna no final da lenda a aceitação de sua

situação de pobreza. O autor não prossegue descrevendo a

continuidade de Blau, e somente cita a situação dele como

pobre gaúcho.

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Referências Bibliográficas:

CHAVES, Flavio Loureiro. Simões Lopes Neto:

Regionalismo e Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto,

1982.

DACANAL, Jose Hildebrando. RS: Economia e Política. 2ª.

ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do

Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chiappini.

Rio de Janeiro: Presença, 1988.

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6 - O ITINERÁRIO DA LENDA: A APRENDIZAGEM

SIMBÓLICA

Agemir Bavaresco 74

A lenda A Salamanca do Jarau (Lopes Neto, 1988,

140; daqui em diante nós citaremos este texto com a sigla

―S‖, a página e a linha correspondente da edição crítica

estabelecida por Ligia Chiappini) é composta de 10 cenas.

No entender de Flávio L. Chaves, tratam-se de 10 capítulos

que podem ser organizados em 4 partes. O critério para

estruturá-las é o discurso: 1ª parte - O discurso do narrador

(cap. I); 2ª parte - O discurso de Blau (cap. II); 3ª parte - O

discurso do guardião (caps. III, IV, V e VI); 4ª parte - A

retomada do discurso do narrador (caps. VII, VIII, IX e X).

Vê-se que a 1ª e a 4ª partes pertencem a Simões Lopes Neto,

enquanto que a 2ª e 3ª conta-se a lenda da Teiniaguá e a

origem do cerro. A personagem central é Blau e sua aventura

pelo pampa gaúcho. Simões Lopes Neto apropria-se da

lenda, apresentando-a em conto na forma de uma narração

(Chaves, 1982, 77-79).

74

Professor da UCPel. Membro do Grupo de Pesquisa Simoniano

ISF/UCPEL.

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Há três narradores: um é nomeado na terceira pessoa,

o qual apresenta e organiza a narrativa; o segundo é Blau

Nunes que vive uma crise de identidade e está em busca do

seu destino, daí estar campeando o boi barroso; e o último é o

sacristão. Na verdade os três narradores apresentam três

versões narrativas que se complementam como numa

conversa. Blau conta a história que ouviu de sua ―avó

charrua‖, enquanto que o sacristão e a Teiniaguá são

personagens da lenda primitiva. É importante notar que

Teiniaguá, a mulher-lagartixa, não tem voz diretamente, ela

só fala através do sacristão. O texto tem dois tempos: um

primordial, o do começo, o da instalação da primeira

narrativa; e outro histórico corresponde ao de Blau Nunes

conversando com o santão (cf. Lopes Neto, 1999, 32).

Tomar-se-á a lenda, capítulo por capítulo, com a

finalidade de fazer uma reconstrução do itinerário da

aprendizagem feita pelos personagens através dos símbolos

no próprio desenrolar da narração. O objetivo é elaborar um

roteiro didático de leitura que aponte, ao mesmo tempo, os

principais temas, problemas e vertentes interpretativas, as

quais serão retomadas e desenvolvidas ao longo da pesquisa.

Segue-se a divisão em quatro partes adotada por F. Chaves,

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porém, segundo o critério de quatro símbolos principais que

estruturam a lenda.

Constata-se um jogo de oposição simbólico em

vários níveis do texto simoniano: entre os símbolos cristãos

(a Cruz e o rosário) e o islamismo (a meia-lua dos mouros);

entre os símbolos telúricos (terra, fogo, água e ar) que se

rebelam e se aliam com a Teiniaguá, para salvar o sacristão

da condenação da morte, e o milagre do Santíssimo e a Cruz

que acalmam e dominam as forças da natureza. E; entre o

povo beato que acompanha o cortejo, sustenta o coro e a

cerimônia de condenação e as vozes dos índios, do povo

autóctone esbravejando para que libertassem o sacristão; a

oposição na interpretação da Teiniaguá: do ponto de vista da

cristandade colonial, ela ―é bicho imundo, mulher moura,

falsa, sedutora e feiticeira‖, enquanto que a versão popular

vê nela uma simpática lagartixa, luminosa e hesitante, uma

linda mulher, terna e apaixonada, nem agressiva e nem

diabólica. Enfim, a oposição em nível da estrutura narrativa

entre Deus e o Diabo. Uma leitura apressada pode cair na

tentação de ir no desfecho e afirmar a vitória de Deus sobre o

Diabo. Porém, Isso, porém, ignoraria o jogo das oposições

simbólicas, com a repetição das palavras, frases, expressões,

da fala poética que supera uma leitura retilínea. Ao contrário,

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a leitura simbólica é dialética, pois considera a relação entre

magia e religião, mito e história, Diabo e Deus, poesia e

prosa, segundo a ambigüidade dos símbolos (cf. Chiappini,

1988, 224-227).

6.1 - O símbolo do boi barroso: festa, trabalho e utopia

Cap. I - ―Campeando um boi barroso‖ ou aprender a

ir ―no rastro‖

―E no tranquito andava, olhando para o

fundo das sangas,

para o alto das coxilhas, ao comprido

das canhadas‖(S, 140,6).

O verbo campear (6 vezes: S, 140, 1-11; 141,34)

marca o início do capítulo. Campear é, num primeiro

sentido, procurar o gado. Trata-se da busca de um ―boi

encantado, que aparecia, porém nunca era encontrado por

muito procurado que fosse‖ (Lopes Neto, 1988, nota 4, 165).

Num segundo sentido, é algo metafísico ou uma entidade

ideal que inspira o caminhar de Blau: ele ia ―campeando e

cantando‖. O símbolo do boi barroso compreende-se pelo

ato de campear que significa procurar algo de imediato e

concreto, e também buscar algo que não pode ser apanhado

ou apreendido definitivamente, permanecendo, portanto,

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uma utopia. Considerando este duplo sentido, neste capítulo

campear o boi barroso significa o seguinte:

a) Aprendendo o trabalho enquanto festa: No início

da lenda cita-se a poesia do boi barroso. Segundo Simões

Lopes, trata-se ―duma antiga dança camponesa, cuja música

era ornada de versos que eram cantados durante o folguedo‖

(id. nota 4). Esta poesia ese encontra-se originalmente no

Cancioneiro Guasca, porém, na lenda sofreu leves

modificações, por exemplo, no primeiro verso acrescenta-se

a palavra: bonito. Embora o boi barroso sendo ―logo

reconhecido‖, ele sempre acaba escapando e nunca é preso,

ou seja, ele não se deixa apresarropriar. O gaúcho, ao

campear o boi barroso, une trabalho, lazer, poesia e música

numa atmosfera festiva.

b) Aprendendo a buscar as causas do

empobrecimento: Blau constata que a época do trabalho

como festa terminou, pois se dá-se conta de ―sua pobreza, no

atraso das suas cousas‖. A organização produtiva da fazenda

e a industrialização do charque, na virada do século XIX e no

início do século XX, entra em declínio. AsComo

conseqüências distoresulta são o empobrecimento

econômico e a perda das habilidades tradicionais do peão.

Blau reconhece no ―agora‖ de sua situação presente, o que

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ele era antes e o que ele não é mais: ele perdeu todas as

habilidades (valente, domador e plantador) e busca uma

causa de seu empobrecimento: teria sido o encontro com o

Caipora (S, 141,18)? O azar (S,141,21)? Por que todas ―as

cousas corriam-lhe mal‖? O certo é que ―um gaúcho pobre,

Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando sem topar coo

boi barroso‖ (S, 141, 33-35), pois não há mais trabalho e

nem festa.

c) Aprender a mudar de rastro: Blau enquanto estava

campeando o boi barroso, encontroua-se com o santão - ―um

vulto de face tristonha‖ - que lhe diz que ―o boi barroso anda

cumprindo o seu fadário‖ (S, 142,15). Então, Blau ouve a

orientação do santão e dirige-se para a entrada da salamanca

do cerro do Jarau. Aqui, ocorre uma mudança do rastro

físico, para o rastro da própria memória, ou seja, o que sua

avó charrua, lhe contara a respeito da lenda da salamanca.

Blau aprende uma tríplice mudança: do rastro do boi barroso

utópico, para o lugar geográfico da salamanca, e enfim, para

a memória histórica pessoal-familiar.

O ato de campear segue o movimento de passagem

do exterior (o boi barroso, o cerro) para o interior (a memória

oral da lenda). Blau aprende a conhecer que ―um homem é

para outro homem‖ (S, 142, 10), isto é, a antropologia

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simoniana começa com o reconhecimento do outro: Blau, o

gaúcho descendente de índia charrua, encontra o santão.

Neste primeiro capítulo, aprender é ―ir no rastro‖ da

utopia (o boi encantado), da cultura popular (a dança, a

música, a poesia, a festa), das causas dos problemas (o

empobrecimento) e do reconhecimento do outro.

6.2 - O símbolo da Teiniaguá: religiões, culturas e etnias

Cap. II - O outro (espanhóis e mouros), ―a gente

pampeana‖ e a Teiniaguá

―...porque o sonho não tem lindeiros

nem tapumes‖ (S, 144,20)

O discurso de Blau introduz a origem da lenda na

cidade de Salamanca na Espanha e nomeia duas etnias: ―os

tais mouros e mais outros espanhóis‖.

a) A guerra de religiões ou de duas culturas - oriente

X ocidente: Há uma luta, na Espanha, entre o catolicismo e o

islamismo. Estes últimos são vencidos pelos católicos, daí

serem obrigados a ―ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita‖.

Os mouros, ―fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram

dar nessas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro,

prata, pedras finas‖ (S, 143,2).

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b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como

era essa ―gente nativa‖? ―Era gente sem cobiça de riquezas,

que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã

despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre

abertas e fazedoras‖ (S, 143,19-22). A gente pampeana da

campanha e da serra é sem cobiça, ao inverso dos europeus

que cobiçam riquezas.

Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã,

―do tupi-guarani: diabo Vermelho‖ (S, nota 5, 165) e Tupã:

para os tupis é o trovão, que os missionários jesuítas

designaram de Deus. O primeiro é identificado com o diabo,

enquanto o segundo é o doador generoso de bens.

c) A metamorfose da fada moura: Teiniaguá surge do

sopro de Anhangá-pitã que, através do condão mágico lhe

tira a cabeça e implanta em seu lugar uma pedra

transparente, ―vermelha como brasa‖. Então, Anhangá-pitã

carrega teinianguá ―sobre a correnteza do Uruguai, até as

suas nascentes‖. Porém, ele ―só não tomou tenência que a

Teiniaguá era mulher‖, porque se trata de um personagem

híbrido que assume muitas figurações no desenrolar da

lenda. Daí, a dificuldade de reconhecer uma única

identidade, pois ela carrega em si o ser híbrido

mulher-lagartixa; a pluralidade étnica: moura e índia; a

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diferença etária velha e jovem. Ela compreende o máximo de

contradições e a capacidade de metamorfosear-se,

permanentemente, por isso Anhangá-pitã não foi capaz de

reconhecer sua identidade.

Neste capítulo, apresentam-se algumas etnias

fundadoras da identidade do gaúcho: os europeus e os índios.

Além desstes, somam-se, sabemos pela história, os

portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resultado da

miscigenação étnica. Aprende-se que a identidade do gaúcho

não se forma pela exclusão. A ―gente pampeana‖ forma-se

pela inclusão de um conjunto étnico.

6.3 - O símbolo da cruz: cristandade colonial 75

,

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166

rebeldia e soberania do amor

O projeto da cristandade colonial é

construído segundo J. Zanotelli da seguinte maneira:

Primeiramente, o estado de cristandade é o resultado da

fusão do Império Romano indo-europeu com o cristianismo

semita (a partir de 313, Constantino e o Edito de Milão), que

se torna a matriz etiológica; depois, esta matriz causal de

nossa cultura é exportada e imposta para a América Latina,

África e Ásia sob a forma colonialista, ou seja, destruindo as

outras culturas. ―A Igreja cristã adota a estrutura, as

instituições, a burocracia e, em parte, a ideologia do Império

Romano como suas. Disto resultou o Estado de Cristandade‖

(Zanotelli, 1998, 85). Daí, que ―é imprescindível estudar as

culturas ameríndias, pré-semitas, para não perdermos a

memória e a identidade americana, por outro lado não se

entendem as culturas, e a identidade americana, sem

localizar a América Latina no quadro geral de

desdobramento do Estado de Cristandade muitas vezes

confundido com Cristianismo e com a Civilização

Ocidental‖ (id. p. 9).

Cap. III - ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém

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viu‖

―Tudo o que volteia no ar tem seu dia

de aquietar-se no chão‖ (S, 144,36)

O discurso do guardião do cerro (o santão) começa

repetindo a frase que afirma a dificuldade de Anhangá-pitã

em reconhecer quem é Teiniaguá: ―Não tomou tenência que

a Teiniaguá era mulher‖. A mesma frase se repete-se três

vezes: nos capítulos II, III e X. Essa ambigüidade da

Teiniaguá vai marcar toda a narração, do começo ao fim, até

a última frase da lenda. Se Anhangá-pitã é incapaz de

reconhecê-la, o sacristão vive o desafio de construir uma

nova identidade na companhia dela. a) O drama do sacristão:

Este desempenha a sua função na Igreja de São Tomé. Ele é

atravessado pelo conflito entre a carne e o espírito, pois é

uma pessoa ―banhada na água benta‖ e vive povoado de

―pensamentos maus‖.

b) ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu‖: O

sacristão saiu às escondidas da igreja e viu o milagre da

lagoa borbulhando. Dela emergiu a Teiniaguá que foi

apanhada pelo sacristão e levada para o seu quarto dentro de

uma guampa. A conversa que se ouvia era: que ―quem

prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do

mundo‖ (S, 146,28). O sacristão sonha com castelos e

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palácios, campos sem fim, ouro e prata: ―Tudo isto eu podia

ter, porque era o dono da teiniaguá‖. Enfim, ele volta a em si,

após o toque do sino da igreja e vai buscar comida para a

Teiniaguá. E e eis que, ao voltar para o quarto, a fim de

alimentar a lagartixa, uma surpresa: ela se transformara

numa mulher: ―Bonita, linda, bela, na minha frente estava

uma moça‖ (S, 147,35).

A frase: ―Todo o povo sesteava, por isso ninguém

viu‖, repete-se três vezes neste capítulo, referindo-se ao

sacristão em três situações diferentes: ao sair da igreja, na

volta ao quarto, quando estava com Teiniaguá e ao toque do

sino para a oração da tarde. Podem-se enunciar três hipóteses

sobre o sentido deste aforisma: 1) O sacristão pretende fugir

do sistema de cristandade colonial: ―Eu saí da igreja [...],

sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando,

como levado‖ (S, 145,12s); 2) O sacristão infringe a

disciplina da igreja, por isso não quer ser notado: ―corri para

o meu quarto, na casa-grande dos santos padres, por detrás

da igreja‖ (S, 146,23); 3) Enfim, ele descumpre com a sua

função e não quer ser percebido: ―Pela primeira vez não fui

eu que toquei [o sino]; seria um dos padres, na minha falta‖

(S, 147,23).

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Há neste aforisma duas partes: a primeira, ―todo o

povo sesteava‖, isto é, ninguém percebe o que está

acontecendo, todos estão dormindo. Enquanto, issto, o

sacristão sai, volta à igreja e introduz uma nova identidade

no interior do círculo eclesiástico: um personagem híbrido, a

mulher-lagartixa. A segunda, ―por isso ninguém viu‖, ou

seja, ninguém enxerga que há uma nova realidade no interior

da comunidade. Esta não vê a perda da identidade, ou

melhor, que está se operando uma mudança. O sacristão está

refazendo a sua identidade, no contato com Teiniaguá,

personagem coletivo, que representa a ―nova gente‖.

Cap. IV: A Teiniaguá dos tesouros e a princesa

moura: prazer e condenação

―Serás o meu par, para do sangue de nós ambos

nascer uma nova gente,

guapa e sábia, que nunca mais

será vencida‖(S,148,19)

Este é um capítulo central da lenda, pois descreve a

contradição entre o sistema de cristandade colonial, a

resistência face ao mesmo e o esboço do projeto de constituir

uma ―nova gente‖.

Teiniaguá revela ao sacristão sua dupla face: ―A

Teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também

princesa moura‖. Ela detém o conhecimento das riquezas e,

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ao mesmo tempo, é uma ―mulher jovem, formosa‖ pronta

para formar um par com o sacristão.

A princesa lhe oferece riquezas de todo o tipo. Não as

riquezas que ela tem, mas que ela sabe; ele terá tudo,

inclusive seu corpo ―rijo e não tocado‖. A troca do ter por

saber desmaterializa os tesouros e lhes dá aquela dimensão

de símbolo da essência divina, e do conhecimento que se

costuma associar aos tesouros ocultos, os quais só a busca

perigosa permite atingir (Chiappini, 1988, 203).

a) A cruz e a meia-lua, promessa e condição: ―Serás o

meu par, si a cruz do teu rosário me não esconjurar‖ (S,

148,17), afirma, duas vezes, Teiniaguá. O problema é que a

doutrina católica, proibia, na época, o casamento com

muçulmanos e quem o fizesse, sofreria penas da Igreja. Os

muçulmanos eram considerados pagãos: ―Sobre a cabeça da

moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis‖ (S,

148,23). Essa condição ―si a cruz do teu rosário‖ será o

grande obstáculo para que a promessa se realize.

b) O sonho de uma nova cultura expressa-se no

desejo de constituir um par do qual nascerá ―uma nova gente,

guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá

todas as riquezas‖ (S, 148,19). Teiniaguá reconhece no

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sacristão alguém que não a buscou com ―olhos cobiçosos‖ e

nem a procurou com ganância. Por isso, ela foi ao seu

encontro. Se o sacristão abandona o duplo interesse colonial:

riqueza e sedução, Teiniaguá, de seu lado, declara-se como

sendo ―a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do

mundo‖ (S,148,1). A rosa é

o símbolo da perfeição, mas também do amor, das

riquezas imateriais, das forças ocultas da alma, da verdade

que é preciso descobrir depois de muito esforço, porque

soterrada nas grutas profundas do eu. Essa conjugação da

rosa aos tesouros reforça a imaterialidade dos mesmos. A

rosa está ligada às águas primordiais; os tesouros à terra mãe

(Chiappini, 1988, 211).

c) Transgressão, profanação e o amor da moura: O

sacristão tem consciência de que se vai se distanciando das

exigências postas pela cristandade: ―E a minha alma de

cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço,

como o aroma sai da flor que vai apodrecendo‖ (S, 148,35).

De um lado, o rito matrimonial católico impede que o

sacristão case com a moura; de outro, a moral católica, no

sexto mandamento diz: ―Não pecar contra a castidade‖, o

que o proíbe de ter relações com ela. Diante desta dupla

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transgressão religiosa, o sacristão sentia remorso: ―E

crivado de pecados mortais, doía quando o padre lançava a

bênção sobre a gente ajoelhada‖ (S, 148,40). Mesmo assim,

ele afirma que ―cada noite era meu ninho o regaço da

moura‖.

Além destas transgressões, o sacristão comete uma

profanação do cálice sagrado. ―Uma noite ela quis misturar o

mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifício‖. Então

o sacristão busca ―no altar o copo de ouro [o cálice]

consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores‖.

Assim, os dois usaram o cálice ―de boca para boca, por

lábios incendiados o passamos... e embebedados caímos,

abraçados‖ (S, 149,1-5).

A propósito o Cân. 1171 afirma: ―As coisas sagradas,

que foram destinadas pela dedicação ou bênção ao culto

divino, sejam tratadas com reverência, e não se empreguem

para uso profano ou não próprio a elas‖. Por isso a

profanação implica punição, conforme recomenda o Cân.

1376: ―Quem profana coisa sagrada, móvel ou imóvel, seja

punido com justa pena‖ (Código Direito Canônico, 2001).

e) Condenação, tortura e resistência: O sacristão é

flagrado ―pelos santos padres‖ e condenado por razões de

direito (profanação), de doutrina moral (6º mandamento) e

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disciplina (não cumpre com suas funções), vigente no

sistema de cristandade colonial, que tinha na religião

inquisitorial um meio privilegiado de manutenção do

controle sobre ―a nova gente‖. ―Afrontei o arrocho da

tortura‖, ―fui sentenciado a morrer‖, ―o povo clamando a

morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma‖.

Mesmo , assim, o sacristão resiste e não confessa ―quem era

ela e que era linda‖ e ―por senha da vontade a boca não

falou‖.

f) Teiniaguá é a causa da condenação: A

discriminação do projeto de cristandade colonial enquadra-a

dentro de diversos estereótipos: o fato de ser mulher moura

(―onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas

uma estrela‖- S, 149, 10), feiticeira ou ―bruxa‖ (S, 148,31).

Estas qualificações eram típicas da Inquisição para

argumentar em favor de um processo de condenação, isto é,

a aproximação com alguém que praticasse feitiçaria.

Embora, existam as várias transgressões cometidas pelo

sacristão, a causa fundamental, porém, ainda é devida aà

aproximação com Teiniaguá: ―Condenado fui por ter dado

passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher

moura, falsa, sedutora e feiticeira‖ (S, 149, 25s). A mesma

frase é repetida no capítulo seguinte, porém, nomeando a

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causa moral da condenação: ―por ter tido amores com

mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira..‖ (S, 151,3). Esta

versão, permite que se identifique Teiniaguá, como sendo a

origem do mal (a figura de Eva). Porém, como se verá existe

uma segunda interpretação que afirma o papel ―salvador‖ da

mesma (a figura de Maria).

Este capítulo se conclui-se com a contradição entre

dois desejos presentes no sacristão, que são na verdade os

dois interesses principais do projeto colonial: a riqueza e a

sedução. O sacristão vive ―dois amargos desesperos: si das

riquezas, que eu queria só pra mim, si do seu amor, que eu

não queria que fosse sinão meu, inteiro e todo‖ (S, 149, 21s).

Face a esse dilema a qual projeto ele irá aderir?

Cap. V: Saudade, agonia e adeus: uma outra

antropologia

―...chorei uma lágrima de adeus à teiniaguá

encantada, dentro do meu sofrer

floreteou uma réstia de saudade do seu

cativo e soberano amor‖(S,149,35)

Tudo está pronto para o desfecho final: o

garroteamento do sacristão. O cenário é descrito de uma

forma dramática. Ele está amarrado diante do carrasco e está

só com teiniaguá no pensamento, presente na ―saudade do

amor‖.

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a) Saudade: Esta palavra é repetida, neste capítulo,

quatro vezes com sentido diferente. Um termo, ou quase um

conceito, que implica memória do passado e esperança para

o futuro. A saudade não é fixação patológica, ou melancolia,

mas paixão de utopia. Estas são as passagens:

- ―Saudade do seu cativo e soberano amor‖ (S, 149,37):

O sacristão resiste preso ―como uma raiz que não quer

morrer‖, porque é a experiência do amor de Teiniaguá lhe dá

poder (―soberano amor‖) para resistir ao momento da agonia

mortal.

- ―Saudade parece que saiu para fora‖ (S, 150,1): Não se

trata apenas do passado, mas a saudade é futuro, pois

―ponteou para algum rumo‖.

- ―Ao encontro doutra saudade‖ (S, 150,3), ou seja, ao

encontro de Teiniaguá que também é constituída pela

saudade. Eles estão juntos na reciprocidade da saudade.

- ―A lágrima do adeus que a saudade destilara‖ (S, 151, 4):

O gotejar lento da lágrima supera, profundamente, a dor no

amor. Como a destilação processa uma substância

elevando-a para um outro nível de realidade, assim, a

saudade destila este momento de agonia mortal, superando-a

através da saudade amorosa.

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b) ―A lágrima do adeus‖: Forma-se ao redor do

sacristão todo o cortejo para a execução da pena, na presença

de autoridades religiosas (os santos padres), civis (alcaide),

militares (soldados) e o povo (chinas, piás, índios velhos). A

cerimônia religiosa segue o rito da bênção, o sino dobra a

finados, enquanto se encomenda a alma. Em meio à

cerimônia, o sacristão, derrama a lágrima do adeus por

Teiniaguá (S,149,36), que a ―saudade destilara‖.

c) A solidão do sacristão e o amor de Teiniaguá ou o

sagrado e o profano: ―Fiquei sozinho, abandonado ouvindo

[...] com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso de

teiniaguá‖ (S, 151, 30). Durante toda a cerimônia de

―encomendação da alma‖, o sacristão está fisicamente só,

porém, está sempre acompanhado de Teiniaguá (S, 151,32s).

Há um vínculo invisível entre ambos: ―por essa força que

nos ligava sem ser vista‖. Essa força amorosa é descrita

plasticamente na união do sensível com o pensamento,

culminando numa síntese antropológica prazerosa entre o

humano e o divino:

- O ouvido: ―ouvir as ladainhas, mas com os ouvidos do

pensamento ouvir o chamado carinhoso de teiniaguá‖.

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- A visão: ―os olhos viam a consolação da graça de Maria

puríssima; mas, os olhos do pensamento viam o riso mimoso

da teiniaguá‖.

- O olfato: ―o nariz tomava o faro do incenso perfumando

as santidades; mas o faro do pensamento sorvia a essência

das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava‖.

Dá-se a passagem unitiva entre o sacristão e

Teiniaguá, sem mais fazer referência ao religioso, denotando

que há uma afirmação da identidade humana.

- O paladar: ―a língua está seca de agonia, mas a língua do

pensamento saboreava os beijos de teiniaguá‖.

- O tato: ―o tato das minhas mãos tocava manilhas de

ferro, mas o tato do pensamento roçava pelo corpo da

encantada" (S,151, 30-44).

Aqui, ocorre a superação da religião inquisitorial

espanhola legitimadora do projeto colonial. A religião

católica ainda sob a influência da lógica da inquisiiçãotorial

é dualista (separa corpo e alma), discriminadora (a mulher é

―bicho imundo‖ e causa de pecado), e prega uma moral que

despreza o corpo, o prazer e a afetividade. No entanto, esse

capítulo aponta para outra antropologia, em que a categoria

da saudade amorosa valoriza o corpo de forma unitiva (os

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cinco sentidos e o pensamento), representado na figura do

sacristão e de Teiniaguá:

Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres,

esses, esses viam o corpo bonito, lindo, belo, da princesa

moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada

da teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor,

tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros

se não viram(S, 150,25-29).

d) O caos, a sanga e o caminho para o Cerro do Jarau:

Enquanto, ocorria a cerimônia de ―encomendação da alma‖

do sacristão, de repente a lagoa provocou um estrondo,

abriu-se a terra, começou a correr uma sanga que

desembocou no rio Uruguai. E do meio da água lamacenta da

sanga ―todos viram a Teiniaguá de cabeça de pedra

transparente‖. O próprio Simões Lopes Neto assim se refere

numa nota explicativa: ―Existe no arrabalde de S. Tomé a

famosa sanga, que o populacho de origem índia ainda hoje

aponta como prova do acontecimento e poder da teiniaguá

encantada‖ (S, 165, nota 9, 41-41). Houve um alvoroço, pois

um terremoto quase destruiu a Missão de São Tomé. Passado

este fenômeno, pairou um grande silêncio, um ―milagre se

fez: ―o Santíssimo perpassou a altura das cousas‖ e ―ventos,

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fogo, urubus e estrondo se humilharam, fenecendo,

dominados‖ (S, 151,26). O vento neste momento, é ―o sopro

do Verbo, o sopro do Deus cristão, que tem o poder de

ordenar o caos primitivo, com a energia luminosa‖

(Chiappini, 1988, 212).

Então, o sacristão afirma que Teiniaguá o ―enfeitiçou

de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de

mulher, que vale mais que destino de homem‖. Este amor o

liberta-o de um duplo peso: o físico (―dores nos ossos e nas

carnes, sem peso de ferros no corpo) e o moral (―sem peso de

remorsos na alma‖). Assim, ―salvo pelaor teiniaguá‖ parte

―para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas

de todas as salamancas dos outros lugares‖ (S, 152,11).

Cap. VI - Palavra mágica ou imperativo ético: ―Alma

forte, coração sereno‖

―Mas, governa o pensamento e segura a língua:

o pensamento dos homens é que

os leva acima do mundo, e a sua língua

é que os amesquinha‖ (S, 153,40).

Com este capítulo se conclui-se a terceira parte da

lenda. O sacristão está no cerro do Jarau há duzentos anos.

Ele é como um ser imortal, pois não dorme, não tem fome e

sede, nem dor e nem riso. Conhece todas as riquezas que

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estão dentro do mesmo, porém, está ―enfarado de ter tanto e

de não poder gozar nada entre os homens‖. Superou todas as

inclinações para o mal. Sua função é acompanhar os homens

que ―quiserem contratar a sorte‖ na salamanca do Jarau. (S,

152, 15-37). Eis que Blau se apresenta, e o sacristão lhe

expõe o imperativo para entrar no cerro e o que ele promete é

garantido pela Teiniaguá: ―Esses que toparam, tiveram o que

pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada não

desmente o que eu prometo, nem retoma o que dá!‖ (S, 153,

5).

a) O imperativo ético do sujeito moderno ocidental:

O aforisma ―alma forte, coração sereno‖ aparece cinco vezes

neste capítulo e mais quatro vezes no sétimo. Alguns

entendem esta frase como uma fórmula mágica que

―funcionaria quase como um ―abra-cadabra‖ (Chiappini,

1988,212). Propõe-se aqui, porém, uma outra interpretação.

Trata-se, neste capítulo, de um imperativo ético,

porque o santão se refere-se ao modo de ser e agir de todo

aquele que deseja entrar na caverna: ―quem isso tem, entra

na Salamanca‖ (S,153,25); ―Si entrares assim, si te portares

lá dentro assim, podes então querer e serás servido!‖

(S,153,37). O sentido deste aforisma é dado pelo próprio

sacristão: ―alma forte‖ é saber governar o pensamento, pois é

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este que eleva a pessoa acima do mundo; ―coração sereno‖ é

segurar a língua, pois esta é que amesquinha o ser humano

(cf. S, 153,40). Então, a ―alma forte‖ é ter a capacidade do

domínio do pensamento para superar toda fraqueza; e o

―coração sereno‖ é a capacidade de dominar a vontade que

se expressa na linguagem. Enfim, trata-se da síntese

ocidental do agir ético: governo da razão e serenidade da

vontade. Mais ainda, expressa o sujeito transcendental

moderno kantiano, pois é através do pensamento, ou da

consciência que ele se põe acima do objeto.

b) Blau, o guasca diferente: O sacristão compara

Blau com todos os que foram até então ao cerro. Os últimos

―vieram arrastados pela ânsia da cobiça ou dos vícios, ou dos

ódios‖; enquanto, ―tu foste o único que veio sem pensar e o

único que me saudou como filho de Deus‖ (S, 153,10). O

sacristão revela que Blau foi o primeiro a saudá-lo como

cristão e que na terceira saudação o encantamento cessará,

isto é, ―a salamanca desaparecerá‖.

Na terceira parte da lenda, o sacristão aprende a sair

do sistema de cristandade colonial. Unindo-se a Teiniaguá

aos poucos vai transgredindo normas e experimenta um

outro valor: o da soberania do amor.

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6.4 - O símbolo da caverna: provas e metamorfoses da

gauchidade

Cap. VII - Provas, escolhas e negação: o nada e o

tudo

―Pois que em sete poderes te não fartas,

nada de te darei. Vai-te‖.

―Eu te queria a ti, porque

tu és tudo‖(S,158,10).

A quarta e última parte começa com o discurso do

narrador. Este capítulo é o mais longo de todos. Pode ser

divido em duas partes: as sete provas e as sete escolhas e

negações.

Quase todo o capítulo é dedicado, agora, a instruir

Blau para essa travessia dentro da gruta, à procura da

Teiniaguá, mas também dentro de si mesmo, à procura da

sua identidade, dos seus avessos, das forças que movem a

sua vida, e que estão nele e fora dele, possíveis e impossíveis

de serem vislumbradas por olhos humanos (Chiappini, 1988,

210).

1ª Parte: As sete provas- Lígia Chiappini compreende

o número sete como sendo o símbolo da perfeição e a

―expressão da ordem completa, de um ciclo‖ (1988, 215).

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Blau Nunes resolve entrar na caverna e enfrenta as sete

provas, através de perigosos corredores. Elas tem o mesmo

roteiro: começam com a frase ―Blau Nunes foi andando‖; e

no momento de passar pelo obstáculo, no final da prova,

repete-se a frase: ―E ele meteu o peito e passou‖; uma vez

ultrapassado o obstáculo, da 1ª a 5ª provas, existem mãos

carinhosas e invisíveis que o acompanham e estimulam a

passar adiante; essas mãos são como ―espíritos benéficos a

auxiliá-lo no caminho‖ (Chiappini, 1988,217); também

repete-se na 1ª, 3ª e 5ª provas a frase já conhecida no capítulo

anterior: ―alma forte, coração sereno‖.

Blau defronta-se em cada prova com personagens

diferentes: 1ª prova- passa no meio de espadas empunhadas

por homens lutando: ―As armas simbolizam as forças do

espírito em luta contra forças inferiores‖ (Chiappini,

1988,215); 2ª prova- passa entre animais ferozes tais como

jaguares e pumas: ―São tradicionalmente guardiães‖ (id.

215); 3ª prova- passa entre as caveiras e esqueletos:

―Imagem da morte, mas também, vaso da vida e do

pensamento‖ (id. 216); 4ª prova- passa no meio do fogo,

água, vapor e o vento: ―Os quatro elementos amalgamados,

como forças terrestres e celestes que se fundem‖ (id. 216) ;

5ª prova- passa pela serpente (Boicininga, Mboitatá): ―É

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ambivalente. É protetora das fontes de vida e símbolo da

imortalidade, dos bens superiores simbolizados pelos

tesouros ocultos. Mas também é o princípio do mal, do

inerente ao terreno‖ (id. 216); 6ª prova- passa no meio de

moças com ar malicioso e sedutor. Elas são as ninfas que

criam ―uma atmosfera erótica‖, porém, estão numa espécie

de ―paraíso natural‖ (id. 216); 7ª prova- passa no meio de

anões que provocam risos: Estes ―simbolizam também as

forças inconscientes, como todos os gnomos e duendes. Para

Jung são guardiães do inconsciente‖ (id., 217).

Após passar as sete provas, o sacristão conduz Blau

diante de Teiniaguá, disfarçada em uma velha que com o

condão mágico lhe diz: ―Por sete provas que passaste, sete

escolhas dar-te-ei‖ (S,157,17). Ela está detrás de um

cortinado de escamas de peixe-dourado. ―O peixe é um

animal freqüentemente ligado ao sagrado e as escamas

simbolizam proteção; a água e o mundo subterrâneo‖

(Chiappini, 1988, 217). A atmosfera é de fato revestida de

uma aura sagrada.

2ª Parte: Blau diante das sete escolhas- 1ª: ser jogador

de cartas para ganhar qualquer jogo (cartas, cavalos, osso,

rifa etc.); 2ª: ser cantor e tocador de viola para conquistar as

mulheres; 3ª: ser curandeiro, isto é, conhecer a arte de curar

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com plantas ou provocar males usando simpatias e agir sobre

os outros através de magias; 4ª: ser lutador para não errar

golpe de tiro, lança ou faca contra o inimigo; 5ª: ser político

ou o poder de todos lhe obedecerem; 6ª: ser estancieiro para

ser rico de campo e gado; 7ª: ser artista em geral para praticar

a pintura, a poesia, a escritura, a música, a escultura etc.

a) O nada e o tudo- a primazia do amor: Diante das

sete ofertas, Blau responde categoricamente: Não! Na

verdade, trata-se da negação de sete poderes. Ele os recusa,

porque o fundamental para ele era Teiniaguá encantada: ―Eu

te queria a ti, porque tu és tudo [...] que atino que existe fora

de mim, em volta de mim, superior a mim. Eu te queria a ti,

teiniaguá encantada‖ (S, 158,15). Por isso, Blau pensa no

que lhe fora oferecido e está ―desanimado e penaroso‖. Ele

―não lograra nada por querer tudo‖, isto é, tinha dito não a

todas as ofertas, na esperança que lhe fosse oferecido o

―tudo‖: Teiniaguá encantada. Para Chiappini, o tudo é ―o ser,

o centro da vida, e eis por que ele nada obtém da Teiniaguá,

pois isso só conseguiria regressando ao útero materno,

reintegrando-se à grande mãe, refundindo-se na unidade

primordial de que a história, entretanto, o distanciou numa

viagem sem volta‖ (Chiappini, 1988,220). Blau sai da gruta

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e recebe um prêmio de consolação: a onça que se reproduz

ao infinito.

b) A contradição- a onça mágica: Pronto para partir

com seu cavalo, Blau depara-se com o sacristão que lhe diz:

―Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno,

tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem

segurar a língua‖ (S, 158,37). De fato, Blau durante as sete

provas teve a alma forte e o coração sereno, mas no

momento das escolhas, não aplicou este princípio, porque o

seu pensamento e coração estavam em Teiniaguá. Porém, o

sacristão não condena este modo de agir: ―Não te direi si

bem fizeste ou mal‖. Blau tem como primazia o amor de

Teiniaguá, acima de toda sorte de poder. No entanto, a

contradição nasce, de uma parte, entre o nada querer das sete

escolhas, e, de outra, aceitar do sacristão a moeda de ouro

que lhe dá todo o poder.

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Cap. VIII - ―Acreditou na onça encantada‖

―Mistério para o próprio Blau... muito rico...

muito rico... mas todo o dinheiro

que ele recebia [...] todo desaparecia como

desfeito em ar (S, 161,20).

Este capítulo se organiza-se em três dias de prova

para verificar se de fato a ―onça encantada‖ funcionava no

mercado:

1º dia: A prova do prometido - ―... foi pensando nas

cousas que carecia e que ira comprar‖. Blau começa a usar a

onça, para suprir as necessidades pessoais mais imediatas,

tais como, roupas, uma adaga, esporas e rebenque. De fato, a

onça mágica funcionava conforme o prometido: ―Ela te dará

tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma e

nunca mais que uma por vez‖ (S, 159,1). Ele gastou três

onças.

2º dia: Neste dia, ele compra, ―só peças inteiras‖ e

gasta quinze onças.

3º dia: No último dia, ele compra trinta cavalos e

gasta quarenta e cinco onças.

a) A fama da fortuna: Começando a comprar o mais

necessário, Blau foi aumentando o gasto proporcionalmente

e enfim, a nova moeda foi testada: ―Depois desses três dias

de prova, Blau acreditou na onça encantada‖ (S, 160,41).

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Agora, Blau aventura-se em grandes negócios, ―arrendou um

campo e comprou o gado, pra mais de mil cabeças,

aquerenciado‖ (S,160,42). No entanto, todos começaram a

ficar intrigados com o fenômeno desta onça mágica, até o

próprio Blau. ―Começou a correr a fama da sua fortuna‖ e

ninguém conseguia explicar como um ―gaúcho despilchado

de, ontem, pobre‖, agora tinha tanto dinheiro para negociar.

b) Mistério da riqueza: Nem o próprio Blau

conseguia entender o seu enriquecimento. ―Mistério para o

próprio Blau... muito rico... muito rico‖. Há um duplo fato:

Nunca faltaram moedas, sempre teve o que precisasse,

porém, ―todo o dinheiro que ele recebia, que lhe pagavam,

todo desaparecia‖, todas as moedas ―evaporavam-se, como

água em tijolo quente‖ (S,161,25).

Aqui, se lembramos da biografia de Simões, e do dinheiro

que sempre lhe fugiu das mãos, temos a tentação de associar

essa onça furada ao Capital, que se reproduz, separando os

homens dos outros homens, como que amaldiçoados por

algum demônio que os faz escravos do dinheiro (Chiappini,

1988, 221).

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Cap. IX - Riqueza e solidão ou pobreza e companhia

―Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza

desta onça, [...] porque

separa o dono dos outros donos

de onças‖(S,162,35).

Blau enriquece, porém, entra em crise, porque sofre

um ―cerco de isolamento‖.

a) Dinheiro maldito: Blau ―comprava e pagava à

vista, é certo‖, porém, o problema é que ―todos com quem

tratava e recebiam de suas onças‖, depois faziam maus

negócios e perdiam ―exatamente a quantia igual à de suas

mãos recebida‖ (S,161,30). O fato começou a se espalhar e

isto foi associado a alguma ―mandinga arrumada na

salamanca do Jarau‖.

b) Distanciamento e solidão: Blau passa a ―ser

tratado de longe, como um chimarrão rabioso‖. Trata-se de

um tríplice ―cerco de isolamento‖: Da peonada que se afasta

de sua companhia; dos negociantes que não mais comerciam

com ele; e dos andantes que cortam campo para não se

abrigar nos seus galpões. Blau está completamente só: ―Já

não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito

mateava, rodeado dos cachorros‖ (S, 162,15).

c) A opção pela companhia: Blau pensa sobre sua

solidão e decide ―acabar com aquele cerco de isolamento‖ e

volta ao cerro, para devolver a onça de ouro ao santão

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dizendo: ―Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza

desta onça. Adeus!‖ (S,162,35).

d) A implosão do cerro: Blau cumprimenta, por três

vezes, o santão com a tradicional saudação cristã-

―Laus‘sus‘Cris‖ (Louvado seja Jesus Cristo): a primeira vez,

foi na ida ao cerro do Jarau (S,142,15); depois, ao retornar ao

cerro para devolver a onça de ouro (162,30); e, enfim, no ato

de despedida, a expressão é modificada (―Fica-te com Deus,

sacristão‖, 162,35), porém, o que interessa é falar o ―Nome

Santo‖. Assim, ficou quebrado o encantamento, ―e neste

mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava

no Nome Santo, ouviu-se um imenso estouro‖ (S,162,45). O

cerro do Jarau ficou destruído com todos os tesouros e, ao

mesmo tempo, deste caos surge uma nova realidade.

O número [a saudação por três vezes] é simbólico dessa

união do céu e da terra, do material e do espiritual que se

processa na gestação do gaúcho que assimila a civilização

branca e cristã mas também integra o índio das origens e,

através da Península Ibérica, o mouro (Chiappini, 1988,

211).

Entre a agonia da solidão e a felicidade da

companhia, Blau opta por esta última. A insatisfação da

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riqueza não responde àa sua identidade, pois esta o condena

a viver separado dos outros, estado este, que o leva quase à

melancolia. Ele vive o dilema de estar preso à identidade do

passado e àa crise no presente, pois a tradição não responde

mais à situação presente. A identidade originária é

mítico-folclórica, em que a contribuição indígena colabora

com a utopia do projeto de uma comunidade solidária. A

idealização do gaúcho revolucionário, tem seu acento na

tradição do gaúcho ser originário do índio e do camponês. A

roda do chimarrão é a representação desta pobreza

mitificada, no sentido de elele ser desprendido de interesses

e riquezas. Blau face àa encruzilhada que se colocava, opta

pela pobreza, isto é, segundo a tradição indígena.

A implosão do cerro, pode ser compreendida como o

fim do sistema de cristandade colonial e também da

identidade da estância tradicional, daí a impressão de um

estado caótico em que tudo se derrete: ―o cerro do Jarau

apagou-se num desgoverno, como uma tropa de gado alçado,

que espirra e se desmancha como água passada em regador‖

(S, 163, 5). Com isso, abre-se a possibilidade de recriação de

novos projetos de identidade: nova ética , nova religião,

novas etnias.

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Cap. X - Memória e travessia para o futuro

―Aquele par novo, de mãos dadas como namorados

foi descendo a pendente do

coxilhão, para uma cruzada de ventura,

em viagem de alegria‖(S,163,30).

―Blau Nunes também [...] foi baixando a encosta

do cerro, com o coração aliviado e

retinindo como si dentro dele cantasse

o passarinho verde‖ (S,163,35).

No último capítulo, Simões Lopes Neto, lança um

olhar histórico retrospectivo e mostra os possíveis projetos

identitários para o futuro.

a) A visão do passado: Blau vê o interior do cerro

como se fosse um ―vidro transparente‖ e enxerga ―o que lá

dentro se passava‖ (S,163,13), ao enfrentar as sete provas

com os seus respectivos personagens. Trata-se de uma

memória do passado.

b) As metamorfoses do novo: Na descrição da lenda

há dois personagens que passam por sucessivas mudanças- o

santão e a Teiniaguá. Primeiro, Simões Lopes lembra as três

mudanças de Teiniaguá: 1ª) De ―fada velha‖ ou ―fada moura,

em teiniaguá‖ (S,143,30).; 2ª) De ―teiniaguá na princesa

moura‖ (S,147,1). ; 3ª) De ―moura numa tapuia formosa‖

(S,163,20). Nas passagens de um estado para outro, não se

constata um personagem puro, mas híbrido como

mostraremos abaixo. O resultado de todas as transformações

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é uma ―tapuia formosa‖, uma mestiça de índio, isto é, uma

nova etnia.

Depois, descreve as mudanças do sacristão: 1ª) De

―vulto de face branca e tristonha‖ junto a salamanca do cerro

- o santão - (S, cap. I, 142) ―para à figura de sacristão de S.

Tomé‖ (S, cap. III, 145).; 2ª) De sacristão para santão, ―o

vulto de face branca e tristonha‖ (S, cap. VII, 158) para virar

um ―guasca desempenado‖ (S, cap. X, 163). Aqui, também o

resultado de todas as metamorfoses, através das quais

passou, o santão é um gaúcho forte, desenvolto e valente.

Tanto Teiniaguá como o santão/sacristão têm suas origens

européias. No entanto, ambos após passaram por várias

metamorfoses, inculturam-se e assumem uma nova

identidade formando o tipo gaúcho, que é um conjunto

cultural de etnias, religiões e éticas.

c) Uma nova identidade: O sacristão e a Teiniaguá,

são duas personagens ―vindas do tempo antigo e de lugar

distante‖, conforme a nota do próprio Simões Lopes Neto, o

tempo é por volta de ―1650, em que se formou-se a lenda‖ e

o lugar é a região das Missões sobre o rio Uruguai (cf. S,

165, nota 11). Os dois unem-se e formam um ―par novo, de

mãos dadas como namorados‖, abandonam o exílio do cerro

do Jarau e partem para ―uma cruzada de ventura, em viagem

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de alegria, a caminho do repouso‖ (S, 163,30). O novo par

começa uma nova travessia, pois a identidade construída é

dinâmica, daí uma dupla afirmação de movimento: cruzada e

viagem.

d) E agora, em paz: Blau deixa, também, o cerro e

―estava certo de que era pobre como dantes‖, isto é, após

passar pelas diversas provas e travessias renunciara a todas

as formas de enriquecimento. Não assumiu nenhum tipo de

projeto que lhe foi apresentado: nem o da cristandade

colonial e nem o da estância tradicional, mas continua fiel

aos costumes, pois ―comeria em paz o seu churrasco; e em

paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua

vida!‖(S, 163,36). Por quatro vezes repete-se ―em paz‖, para

afirmar a reconciliação que Blau alcançara após realizar a

travessia no tempo e no espaço pampeanos. ―Em paz‖, com a

nova identidade, já realizada no ―par novo‖: o sacristão e a

Teiniaguá. ―Em paz‖, com o novo projeto de identidade

híbrida. ―Em paz‖, com a aprendizagem de ser gaúcho.

Na última parte da lenda, a aprendizagem de Blau

enfrentapassa pelas provas e no confronto de projetos. Em

meio a todas essas metamorfoses ele aprende que a

identidade do gaúcho é um projeto inclusivo de muitas

etnias, religiões, culturas e éticas.

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Há em Simões Lopes Neto uma valorização dos

símbolos. Ora, a linguagem mítica é a mais apropriada para

expressar o símbolo. De fato, Daniel Granada ao escrever

sobre as tradições latino-americanas oscila entre a ficção e o

ensaio erudito. Decididamente, a opção de Simões será

aderir empaticamente ao mito desdenhando as explicações

realistas ou eruditas (algumas remetidas a notas). Tal adesão

ao mito, para ser verossímil, precisava ser expressa por uma

prosa poética. Por isso, ele se demora a explorar alguns

motivos, apenas mencionados por Granada (Chiappini,

1988,198).

De fato, só é possível compreender a Salamanca do

Jarau, a partir deste princípio hermenêutico simbólico. O

autor trabalha com os símbolos dentro de um horizonte

mitológico. Compreendendo-se os símbolos, pode-se

compreender a linguagem simoniana, daí a proposta de

leitura ndeste estudo, organizar as partes da lenda, segundo

os símbolos que a compõem.

Uma leitura que se ativesse a excluir um ou outro

símbolo ou personagem, correria o risco de ser uma

interpretação maniqueísta. Deus ou o Diabo, ou

Anahangá-pitã e Tupã no combate cotidiano dos

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personagens. São mitos, superstições, símbolos que

unificam os opostos. Mais ainda, há uma luta entre ―as forças

de um mundo demoníaco (feminino, tenebroso, mas também

luminoso, reprimido, inconsciente) e as forças diurnas

(luminosas, mas também tenebrosas) de um mundo

masculino, divino, dominante e consciente‖ (id. p. 224).

Referências Bibliográficas:

CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto:

Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto,

1982.

CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Leitura e

história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins

Fontes, 1988.

CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO. São Paulo: Loyola,

2001.

LOPES NETO, João Simões Lopes. Contos Gauchescos.

Lendas do Sul. Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia

Chiappini. Rio de Janeiro: Presença, 1988.

ZANOTELLI, Jandir João. América Latina. Raízes

sócio-político-culturais. Pelotas: EDUCAT, 1998.

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7 - O MILAGRE DE NATAL EM LÍGIA FAGUNDES

TELLES E JOÃO SIMÕES LOPES NETO

Luís Borges 76

―He tentado al Señor pidienlole um prodigio,

um milagro patente, cerrados los

ojos al milagro vivo del universo

y al milagro de mi mudanza‖

(Miguel de Unamuno, in Diário Íntimo)

Ao cotejarmos o elemento ―milagre‖ nos contos

Natal na barca (1958), de Lígia Fagundes Telles (1923), e O

menininho do presépio (1913), de Simões Lopes Neto

(1865-1916), é possível constatar que ambos, tanto pela

estrutura do tecido diegético quanto pelo olhar do narrador, e

principalmente pelo desfecho, provocam no leitor a

inquietação e a dúvida a respeito da natureza e da existência

dos milagres.

Milagre é uma palavra derivada do latim

(miraculum), que, em sentido lato, significa ―acontecimento

maravilhoso‖ 77

. Na Bíblia, todavia, utiliza-se num sentido

mais restrito, significando um ato de Deus, que de um modo

visível, subverte o curso das causas conhecidas para

76

Professor de Literatura Brasileira e membro do Grupo de Pesquisa

Simoniano do ISF/UCPEL. 77

Cf. BUCKLAND, A. R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed.

Vida, 1997, p. 289.

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manifestar Seu Poder ou Sua Vontade, de modo a que tudo

se cumpra segundo o Seu Plano.

Diversas palavras em hebraico (Mopheth, Péle, Oth)

se traduzem no Antigo Testamento por milagre, maravilha

ou sinal. ONo Novo Testamento utiliza -se a palavra

Dunamis para designar78

milagre e Simeion (poder) também

com a mesma significação79

. Os milagres de Jesus são

descritos pela palavra erga, que quer dizer, literalmente,

―obras‖80

. Aparece também o vocábulo terata81

, num sentido

mais adequado e próximo a milagre, significando

―prodígios‖82

.

O Milagre poderia ser entendido então como a

intervenção divina em face da impotência humana perante o

sofrimento e a morte? Ele seria fruto da imaginação e do

mito ou consistiria na conjugação desses dois aspectos?

Mais que o simples estabelecimento da dúvida, que

deixa espaço para a decisão do leitor, nos contos de Lígia

Fagundes Telles e João Simões Lopes, parece haver a

sugestão de um entrelaçamento entre a vida natural e

sobrenatural, fornecendo à existência um ―entre‖, um

78

Idem, ibidem. 79

Idem. 80

Idem. 81

Idem.

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encantatório poder poético imanente à celebração da vida,

tão expressivamente representada pelo Natal.

O conto de Lígia Fagundes Telles trata da viagem de

uma mulher numa barca, no dia de Natal, onde ela encontra

uma mãe e seu filho doente. Em verdade, a barca é um

símbolo utilizado quase universalmente para representar a

viagem, não uma viagem qualquer, mas a travessia realizada

seja pelos vivos, seja pelos mortos. Essa imagem aparece na

arte e na literatura do Antigo Egito83

e nos textos

mitológicos e em alguns épicos da velha Irlanda84

.

Em Lígia Fagundes Telles, a estrutura do texto se

afigura linear e singela. Encerra, todavia, uma profunda

ternura, uma mensagem de fé e esperança. A idéia da barca

faz-nos lembrar inclusive da peça de Gil Vicente (aprox.

1470-1536), Auto da barca do Inferno:

Fidalgo - Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?

Diabo - Vai ou vem, embarcai prestes!

Segundo lá escolhestes,

Assim cá vos contentai.

Pois já que a morte passastes,

Haveis de passar o rio.

Fidalgo - Não há aqui outro navio?

Diabo - Não, Senhor, que este freteastes,

82

Idem. 83

Cf. CHEVALIER, Jean e GHEEERBRANT, Alain. Dicionário de

símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 121.

84 Idem, ibidem.

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E primeiro que expirastes 85

Me deste logo sinal.

Fidalgo - Que sinal foi esse tal?

Diabo - Do que vós vos contentates.

Fidalgo - A estoutra barca me vou.

Hou da barca! Para onde is?

Ah, barqueiros! Não me ouvis?

Respondei-me! Houla! Hou!

Pardeus, aviado estou!

Quanto a isto é já pior...

Que gericocins 86

, salvanor 87

!

Cuidam cá que eu sou grou 88

?

Na linguagem arrogante e caricata do Fidalgo,

percebe-se a surpresa perante a barca que lhe espera. A isso o

diabo lhe responde com a assertiva de que a embarcação que

lhe foi destinada, foi obra de sua própria escolha. Conclui-se,

pois, que o dramaturgo português quer demonstrar através

desse diálogo, que a barca da vida e da ação moral estão

ligadas à barca da morte e do destino eterno, que pode ser a

danação ou a felicidade.

Comparemos com o timbre da expressão, guardadas

as distâncias de época e gênero, em Lígia Fagundes Telles:

―Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um

cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num

85

. A frase pode ser entendida como ―tudo tem o seu tempo‖. 86

. Significa: homenzarrão. 87

. Significa: fiquei a pular. 88

.Significa: forma de pedir socorro, que era corrente na península

ibérica.

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antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo,

estávamos vivos. E era Natal.‖89

Examinemos brevemente essa passagem.

A narradora sente-se descontente, ao ver-se naquela

―barca carcomida‖. Fuma um cigarro como um sinal de

desprezo ou protesto, talvez como um sinal a quem ninguém

atenta. No entanto, estão todos numa mesma viagem, vivos e

mortos, que escolhem o seu destino de acordo com sua

responsabilidade ético-moral. É dessa liberdade, que nasce a

esperança mesmo em situações que parecem perdidas e

desanimadoras: Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

Na diegese do conto Natal na barca, aparece uma

mulher pobre que traz consigo uma criança com cerca de um

ano. Ela havia perdido outro bebê e tinha sido abandonada

pelo marido: ―A senhora é conformada‖, declara a

personagem-narradora. A explicação para sua resignação foi

saber da felicidade de seu filhinho no Paraíso, brincando no

jardim com o Menino Jesus, logo ele que gostava tanto de

mágica. E concluindo, falou:

―Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu

encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que

acordei rindo também, com o sol batendo em mim.‖ 90

89

TELLES, Lygia Fagundes. Para gostar de ler. Vol. 9. Contos. 3a. ed.

São Paulo Ática, 1988, p.68. 90

TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit., p. 71.

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Nessa passagem, a autora remete-nos a outro

arquétipo universal: a idéia de Paraíso. As obras de arte e as

experiências oníricas, sejam elas os êxtases dos santos, os

estados de inconsciência do sono ou processos induzidos por

drogas, estão repletas de representações inspiradas naquilo

que se costuma chamar a nostalgia do Paraíso91

. Mírcea

Eliade explica que

―o desejo de nos encontrarmos sempre e sem esforços no

coração do mundo da realidade e da sacralidade, e em suma, o

desejo de superar de uma maneira natural a condição humana e

de recuperar a condição divina; um cristão diria: a condição

anterior à queda.‖92

O narrador reflete que havia encontrado ali o segredo

da fé que removia montanhas. Novamente podemos

perguntar: foi realmente Deus que concedeu à mulher um

―indulto de Natal‖, ou foi apenas uma defesa de seu

inconsciente contra a dor da perda? Tanto faz, porque o

verdadeiro milagre é, apesar das adversidades, não desistir

da felicidade e da crença na vida.

A narrativa mostra com simplicidade a grandeza de

uma mãe que confia fielmente num Deus fiel. É essa

fidelidade que inspira a superação da dor e da morte. A

91

Cf. CHEVALIER, J. e CHEERBRANT, ob. cit., p. 684. Para mais

alguns detalhes vide: BORGES, Luís . O retorno do paraíso. In Diário

Popular, 13 e 27-03-1994. 92

Mírcea Eliade apud CHEVALIER e CHEERBRANT, p. 684.

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204

narradora não aparece como personagem religiosa, ao

contrário, mostra-se céptica e provavelmente atravessa um

momento difícil, conforme permite deduzir o começo do

conto: Não quero nem devo lembrar por que me encontrava

naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva.

93

A narradora ao constatar a criança (supostamente)

morta no colo da mãe, pressente a derrota e a decepção de

uma fé que ―removia montanhas‖. Ela toca a água, sente o

rio gelado e escuro. O rio, o curso da vida, a barca, o mundo

em que habitamos. A barca leva os vivos e os mortos. Afinal,

qual realidade separa uns dos outros? A realidade metafísica,

a saudade, as lembranças? Quem o saberá?

Ao relatar suas desgraças, a mulher, mãe da criança

doente, recorda a morte de seu primeiro filho, que gostava de

mágicas. O menino caiu do muro dizendo ―vou voar - e

voou. A mulher mostra uma fé, ao mesmo tempo, resignada

e ativa. A narradora explicita sua covardia diante dos laços

humanos, do triste espetáculo da dor alheia, que tão

humanamente fraternalmente nos uneirmana a toda

93

TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit., p. 67.

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humanidade. Ela quer fugir desse drama, prefere suportar a

água gelada do rio em trevas.

O final do conto Natal na barca é

emblemático:

―Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para olhar

o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e

quente. Verde e quente .‖94

Do mesmo modo que a simbologia da barca, a

imagem do rio também encontra representação em muitas

culturas. Relaciona-se, em geral, com a fertilidade, a morte

ou a renovação. A simbologia do rio se acha mais enraizada

na mitologia tradicional da China, da Índia, dos gregos e da

Palestina.

Na China, o rio com sua viagem em direção ao

oceano, significa a busca do ser humano ao seu retorno ao

indiferenciado, ao Nirvana. Para os chineses o simbolismo

do rio possuía ainda certa importância nos ritos de

casamento. Os casais jovens costumavam realizá-lo no

equinócio da primavera: era uma verdadeira travessia do

ano, a passagem das estações, e a do yin ao yang; era

igualmente a purificação preparatória à fecundidade e à

renovação .95

94

TELLES, Lygia Fagundes, ob. cit. , 72. 95

Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., pp. 780-81.

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206

Entre os gregos antigos, os rios eram objeto de culto.

Tinham-nos como filhos de Netuno e pais das ninfas.

Ofereciam-lhes sacrifícios, afogando em suas águas, touros e

cavalos. Não se podia atravessá-los senão depois de ritos de

purificação e preces. Os rios inspiravam veneração e

temor96

. A teogonia de Hesíodo afirma:

―Não deveis atravessar jamais as águas dos rios de eterno curso,

antes de ter rpronunciado uma prece, com os olhos fixos nas

correntes magníficas, e antes de ter mergulhado vossas mãos nas

águas agradáveis e límpidas. Aquele que atravessar um rio sem

purificar as mãos do mal que as maçula, atrairá para si a cólera

dos deuses, que lhe enviarão depois castigos terríveis‖ 97

.

Na edição de Diels98

da obra de Heráclito, no

fragmento 12, lê-se:

―Aqueles que entram nos mesmos rios recebem as correntes de

muitas e muitas águas, e as almas exalam-se das substâncias

úmidas‖.

Platão, no Crátilo, utiliza-se de uma fórmula mais

breve, às vezes, também atribuída a Heráclito, dizendo que

não conseguiríamos entrar duas vezes no mesmo rio.

Na Índia, o rio Ganga ou Ganges é o elemento

purificador que flui da cabeleira de Shiva. Já na Palestina,

pela tradição judaica, o rio representa a fonte das graças e

das influências celestes. Esse rio que vem do alto desce na

96

Idem, ibidem. 97

Hesíodo apud CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 781. 98

Idem.

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vertical, conforme o eixo do mundo, depois, expande-se

horizontalmente, a partir do centro, no sentido das quatro

direções cardeais, chegando até as extremidades do mundo,

que são os quatro rios do paraíso terrestre99

.

O próprio Filho de Deus, Jesus, é batizado no rio

Jordão, onde Deus fala com Ele e o Espírito Santo se

manifesta:

―Naquele tempo, veio Jesus da Galiléia ao Jordão até João, a fim

de ser batizado por ele. Mas João tentava dissuadi-lo, dizendo:

―Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a

mim?‖

―Jesus então respondeu-lhe: ―Deixa estar por enquanto, pois

assim nos convém cumprir toda a justiça‖. E João consentiu.

―Batizado, Jesus subiu imediatamente da água e logo os céus se

abriram e ele viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba

e vindo sobre ele. Ao mesmo tempo, uma voz vinda dos céus

dizia: ―Este é o meu Filho Amado, em quem me comprazo‖. (Mt

3,13-17) 100

É nítida, pois, a associação que Lígia Fagundes

Telles faz entre a barca, o rio e o mistério da vida, cheia de

milagres ou, pelo menos, surpresas capazes de devolver o

encantamento e o calor da existência, através da perene

renovação da esperança: o rio verde e quente.

Em João Simões Lopes Neto, a tragédia e o

pessimismo são a marca registrada de sua literatura. O conto

99

Idem.

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208

O menininho do presépio como fazendo parte de uma

segunda série dos Contos gauchescos (1912), foi publicado

em 25-12-1913, no jornal ―A Opinião Pública‖, entretanto,

apresenta uma característica bem diversa: o happy-end, tão

escasso na escritura lopesnetina.

O Rapsodo Bárbaro recorre a um procedimento que

lhe é comum, colhe no folclore, nas lendas ou nos arquétipos

universais da humanidade, simbologias para construir suas

histórias. É o caso de O menininho do presépio. De um lado,

está a especificidade do Natal, como um tempo de realização

de desejos e apaziguamento dos homens. De outro, porém, a

despeito de oo menininho ser Jesus, ele também espelha uma

imagem universal de inocência: a criança. Nesse sentido, a

infância é o estado anterior ao pecado, portanto, o estado

edêmico, capaz de absolver a tragédia e o adultério.

A idéia de infância como representação de pureza é

uma cosnstante nos ensinamentos evangélicos e emde toda

uma parte da mística cristã como, por exemplo, O caminho

de Infância, de Santa Teresa do Menino Jesus.

Na tradição cristã, os anjos são muitas vezes

representados como crianças, em sinal de pureza e inocência.

100

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e

Paulus, 1995.

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209

Vale lembrar também a seguinte passagem bíblica:

―Traziam-lhe até mesmo as criancinhas para que as tocasse;

vendo isso, os discípulos as repreendiam. Jesus, porém,

chamou-as, dizendo: ―Deixai virem a mim as criancinhas e não

as impeçais, pois delas é o Reino de Deus. Em verdade, vos

digo, aquele que não receber o Reino de Deus como uma

criancinha, não entrará nele.‖(Lc 18, 15-17) 101

Simões Lopes Neto aproveita-se dessa simbologia,

para dar-lhe um tom ambíguo. No conflito entre Mal e Bem,

finalizando com a vitória do Bem, que através da inarredável

determinação do amor, é purificado. Em esse Se esse amor

resultae de uma transgressão à lei moral, acaba sendo

desculpabilizado - como acontece com as crianças - de sua

origem pecaminosa102

. De outro lado, há um acento tanto

estranho, ao retratar a figura deitada no presépio.

―Fazia a modo de uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo

grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns

ALIMAIS entre boizinhos e ovelhas, de brinquedo e outros

enfeites, e mais uns figurões mui calamistrados, de coroa, que

pareciam reis e pro caso dum, que era negro retinto, era o mais

empacholado. E perto destes, sobre a ponta do presépio estava

então a Senhora Virgem e o Senhor São José, e entre eles,

acamado numas palhinanhas de milhã e uns musgos e umas

penugnes estava o Minininho Jesus, ruivito103

e rosado, nuzinho

101

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e

Paulus, 1995. 102

Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 302. 103

Idem.

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em pelo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por

mostrar as vergoinhas do seu corpinho de inocente .‖104

É interessante observar o detalhe que Simões Lopes

Neto traz ao descrever o Minininho Jesus: ruivo. O ruivo é

uma cor que se situa entre o vermelho e o ocre. Ele lembra o

fogo, a chama, daí a expressão roux ardent. Em vez de

representar o fogo purificador do amor celeste, ele

cracteriza-se por simbolizar o fogo impuro, que queima

incendeia sob a terra, o fogo do inferno105

.

Entre os egípcios, Set-Tifão, o deus da

concupiscência devastadora, era representado como sendo

ruivo, e Plutarco conta que, em algumas de suas festas, a

exaltação era tanta, que se chegava a jogar os homens ruivos

na lama. A tradição cristã rezava que Judas, o traidor, tinha

os cabelos ruivos106

.

Em resumo, o ruivo evoca o fogo dos instintos

luxuriosos, a paixão que consome o ser físico e espiritual .107

Quererá o autor do conto O menininho do presépio

sub-repticiamente levar-nos a uma ambivalência sobre a

104

LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul.

Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro:

Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 283. 105

Cf. CHEVALIER e GHEERBRANT, ob. cit., p. 792. 106

Idem, ibidem. 107

Idem.

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natureza dos milagres? Tal observação pode ser confirmada

pela frase final do conto:

- Não lhe parece que houve um milagre? Claro! Foi por

causa do Menininho que... Si o diabinho é tão

milagroso!...108

Nessa direção, pelo menos, duas interpretações são

possíveis. De um lado, pode significar que Deus afirma.

sSeu poder, mesmo em circunstâncias aparentemente

pecaminosas, isto é, até mesmo utilizando-se das mãos do

demônio. De outro lado, porém, pode confirmar a visão

pessimista da natureza humana, capaz de corromper as

coisas mais puras e santas. Dessa maneira, o amor humano,

guiado pelo instinto natural, se transveste de dedicação

espiritual. Deus então, com pena desses seres incapazes de

elevarem-se para além dessa lei natural que governa todos os

seres, permite-lhes a transgressão para evitar um mal maior -

a infelicidade geral. No fundo, para o Simões de O

menininho do presépio, o único pecado é a infelicidade.

A força telúrica do amor do cadete Vieira e Nhã

Velinda fica plasmada com clareza na cena do beijo, que

―derrubou todas as negaças, como uma represa de açude

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aluída é derrubada por uma muita descida de águas...‖109

. Aí,

a enumeração das forças naturais, mais os absolve que os

condena. Isto é corroborado, se atentarmos para a ―descida

das águas‖, que simbolizam não só a fúria do instinto, a

atração, a força do desejo, mas, principalmente, a indicação

do elemento purificador.

De um certo modo, numa acepção naturalista de

teologia, talvez ele esteja certo, pois somente o homem feliz,

conforme exige a simplicidade do campeiro, cuja lida, em

certo sentido, é uma imitação da luta dos animais pela

sobrevivência, pode conhecer a Deus. Este aspecto pode

tomar, às vezes, um caráter de ―teologia da prosperidade‖ ou

de um viés agostiniano. Isto é, a natureza corrompida do

homem só pode ser purificada pela misericórdia de Deus, e

os sinais dessa misericórdia são percebidos através das

graças que ele alcança.

A própria linguagem empregada por Simões Lopes

Neto auxilia a manter o clima de mistério inerente aos

milagres. A beleza estilística desse conto, a princípio

ofuscada por um certo truncamento da narrativa (admitido

108

LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul.

Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro:

Presença Edições; Brasília: INL, 1988, p. 284. 109

Idem, p. 283.

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no texto pelo narrador), deriva da tensão entre uma oralidade

mais acentuada do que aquela presente, em geral, nos Contos

gauchescos e o pleno controle no desenrolar do texto que,

por sua vez, proporciona o perfeito equilíbrio da linguagem

literária: Parece que eu estou lhe enredando o rastro, mas

não „stou, não; vancê escuite110

.

No conto simoniano, a filha de Miguelão, boa como

uma santa e bonita como uma princesa, é nhã Velinda,

obrigada a casar com um mouro, velhaco, sem eira nem

beira, mal encarado, meio corcunda, que tinha um lanho

grande entre a orelha e a nuca. O casal destoava, como um

jerivá velho e um cacho em flor.

Nhã Velinda chora, é muito infeliz. O cadete Vieira,

moço mulherengo, dado a noitadas e brigas, ama-a de

verdade:

―Era uma adoração, quase um medo de ofender a querida do seu

coração; perdia a voz pra falar com ela, enredava-se nas esporas,

perdia o entono de todo o seu jeito, ele todo ele vivia só nos

olhos quando atentava na formosura do seu rosto .‖111

Na festa natalina, em queonde todo o povo se reunia

para cantar o terço, há o resvalo, o pecado, o instinto da

carne, quase a idolatria. É interessante observar que em João

110

LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos. Lendas do Sul.

Casos do Romualdo. Edição crítica de Lígia Chiappini. Rio de Janeiro:

Presença; Brasília: INL, 1988, p. 282.

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Simões Lopes Neto tanto a percepção do Mal quanto da

Divindade acontecese dá através de um revelador diálogo

telúrico-cósmico.

Em O menininho do presépio, diferentemente do que

acontece, por exemplo, em Trezentas onças, o diálogo

homem/Deus, mediado pela natureza, o Mal, o pecado

(nesse caso, o adultério) está intrinsecamente ligado, de uma

maneira ambígua, à pureza do amor, mostrando a dupla

essência e o perpétuo dilema do homem.

Simões deixa claro que nhã Velinda é jovem,

inexperiente e infeliz - condições de absolvição - e que o

cadete Vieira, ―gostava da moça numa paixão de verdade,

diferente de quantas calaveiradas estava avezado a fazer‖,

isto é, o amor atua como elemento regenerador. O Mal está

deslocado para a figura do marido e do Miguelão. O marido

a maltratava, para ele, ela só significava o que se podia

―amanusear da tábua do pescoço até as ancas‖.

Quando os protagonistas trocam o beijo - uma bicota

é perigo de respeito!112

- cumpre-se o milagre de duas vidas

vazias que encontram a felicidade. A cena é descrita

maravilhosamente:

111

Idem. 112

Idem, p. 283.

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―As mãos se encontraram... e num de-repente, num silêncio,

num tirão das suas almas, na pressa e no lusco-fusco, perto da

gentama, numa relancina de corisco, as duas bocas famintas se

encontraram (...) e um beijo, um beijo, que jurou pelos dois, para

toda a vida, um beijo só derrubou todas as negaças, como uma

repesa de açude aluída é derrubada por uma muita descida de

águas...‖113

Note-se que mesmo em toda a força carnal que a

descrição encerra, não há qualquer sinal de condenação ou

censura, pois o amor, o verdadeiro amor, o amor humano no

sentido mais puro de sua condição redentora se une ao amor

divino, fonte de toda alegria e esperança.

O casal é flagrado pelo Miguelão que vai ―xeretear ao

genro a atossicá-lo, mussitando-lhe maldades‖114

.

No entrevero do ataque do marido traído, a imagem

do menininho, que jazia no presépio - personificação do

lugar onde as forças telúricas do pampa (a terra, os animais,

as estrelas, a lida do campeiro), se fundem com a força

cósmica de Deus -, rola para o seio da moça (do mesmo

modo como estava acomodada a criança doente no conto

Natal na barca), tão à vontade ―como um dono na sua casa‖,

e aí, no regaço delicado ficou. Simões está quase a nos dizer,

noutras palavras, que a morada de Deus é o peito dos

113

Idem 114

LOPES NETO, João Simões. op. cit. p. 283.

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homens, é aí que está o Natal. Nesse momento o facão

matador serenou e o agressor partiu.

A escolha do facão, do objeto cortante, refere-se à

simbologia geral, que também se aplica ao conto simoniano:

o princípio ativo que modifica a matéria passiva115

. Se, de

uma parte, o marido traído age para punir o casal, este

último, embora pareça também agir, optando pela

transgressão, está apenas cumprindo seu Destino, a

fatalidade do amor. A faca é também, freqüentemente,

associada à idéia de execução, de morte, vingança ou

sacrifício.

Segundo a tradição judaico-cristã, o Amor-redenção

exige sacrifício. O sacrifício é um símbolo de renúncia aos

vínculos terrestres por amor ao espírito da divindade. Em

quase todas as culturas encontramos histórias de filhos ou

filhas imolados. Na Bíblia, um dos exemplos mais

conhecidos é o caso de Abraão e Isaac:

―Abraão tomou a lenha do holocausto e a colocou sobre seu

filho Isaac, tendo ele mesmo tomado nas mãos o fogo e o cutelo,

e foram-se os dois juntos. Isaac dirigiu-se a seu pai Abraão e

disse: ―Meu pai!‖ Ele respondeu: ―Sim, meu filho!‖

- ―Eis o fogo e a lenha‖, retornou ele, ―mas onde está o cordeiro

para o holocausto?‖ Abraão respondeu: ―É Deus quem proverá o

115

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANTE, Alain. Dicionário de

símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: 1994, p. 414.

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cordeiro para o holocausto, meu filho‘, e foram-se os dois

juntos.

Quando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara, Abraão

construiu o algar, dispôs a lenha, depois amarrou seu filho e o

colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estendeu a mão

e apanhou o cutelo para imolr seu filho.

Mas o anjo de Iaweh o chamou do céu e disse: ―Eis-me aqui!‖ O

anjo disse: ―Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças

nenhum mal!‖ Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste

teu filho, teu único. Abraão ergueu os olhos e viu um cordeiro,

preso pelos chifres num arbusto; Abraão foi pegar o cordeiro e o

ofereceu em holocausto em lugar de seu filho‖ (Gn 22,6-13) 116

.

O sentido do sacrifício, entretanto, pode ser

pervertido, como é o caso de Agamenon sacrificando

Ifigênia117

, em que a obediência aos oráculos dissimula

outros motivos e, em particular, a vaidade de obter

vingança118

.

Lembremos a simbologia do sumiço do rebanho de

novilhos (o sacrifício dos animais encaminha o protagonista

para a redenção), fato aparentemente negativo, mas que

trouxe o cadete Vieira para aquelas bandas.

O narrador relata que o mal encarado, mouro,

portanto, não-cristão e feio como o diabo, foi morto numa

116

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e

Paulus, 1995. 117

Para maiores detalhes vide: BRANDÃO, Junito. Dicionário

mítico-etimológico. V. 1, Petrópolis: Vozes, 1991, pp. 36-39 e 599-601. 118

Vide CHEVALIER e GHEERBRANT, op. cit. p. 794-796 e

BUCKLAND, A R. Dicionário bíblico universal. São Paulo: Ed. Vida,

1997, p. 388-390.

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bolinchada de carreiras119

. Aqui também pode-se depreender

a idéia de sacrifício como expiação do pecador, conforme a

severa advertência bíblica: Porque o salário do pecado é a

morte, e a graça de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus,

nosso Senhor (Rm 6,23) 120

.

Estava dado o sacrifício em honra ao

Amor-redenção, não mais na estrita linha da tradição

judaico-cristã, onde o sacrifício do amor é dado por um

cordeiro imaculado. Simões inova, concebendo o holocausto

como realização da Justiça, do sagrado direito humano à

felicidade.

O mistério do milagre está referido na expressão:

Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os

telhados dos ricos!...121

Aponta com isso que Deus deixa

nascer o sol sobre bons e maus, que todos podem mudar seu

destino, curar seu coração. Há também o Mal, que fere e

espreita, não apenas como natureza própria da condição

humana, mas também como expressão de liberdade. É a

partir da liberdade que se fundamenta a relação com um

Deus, que nada exige para Salvação, senão o sincero e

119

LOPES NETO, João Simões, op. cit. p. 284. 120

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Sociedade Bíblica Internacional e

Paulus, 1995. 121

Idem. p. 282.

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teimoso desejo de ser feliz. Basta sua opção e luta, para que

os braços de um Deus que também se fez homem, e, nessa

medida, coloca-se como conhecedor do sofrimento, estejam

perpetuamente abertos para receber os homens em Seu seio,

quiçá, realizando um milagre, que é a violação das leis

naturais, criadas pelo próprio Deus. Sob esse prisma, Deus

trai a Si mesmo - peca, portanto? Não. Acima do império das

leis da natureza está a necessidade do Amor. O amor é

subversivo, mesmo para Deus.

O Mal que habita no homem - sempre tão

essencialmente arraigado, conforme se nos aparece em Boi

Velho - assume em O menininho do presépio, apesar de suas

ambigüidades, um caráter hermenêutico eminentemente

cristão, revelando a face oculta da Mão Divina, que insere o

pecado humano no contexto da redenção. Somente onde há

renovação (Encarnação/Natal) há possibilidade de

Ressurreição (vitória sobre a morte e o sofrimento).

Nos contos: Natal na barca, de Lígia Fagundes

Telles, e O menininho do presépio, de João Simões Lopes

Neto, estabelece-se uma tensão, um conflito entre a

dilacerada natureza humana, na luta eterna entre Bem e Mal,

e os descaminhos desse mesmo homem na busca da

felicidade. O encontro da felicidade é o verdadeiro milagre.

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Resultado de contradições internas ou externas o

conflito simboliza a possibilidade da passagem de um

contrário a outro, significando, de um lado, o relativismo

ético-moral, e, de outro, o perdão que Deus, em Sua

misericórdia, reserva para o pecador.

Na Bíblia, o perdão dos pecados é representado de

diversas maneiras. O pecado é coberto (Sl 32,1; 85,2); não é

atribuído (Sl 32,2); é apagado (Is 43,25), um ponto de justiça

em conformidade com os desígnios divinos, confessandod

que somos pecadores (1 Jo 1,9); um ato perfeito da

misericórdia de Deus (Sl 103,2-3; 1 Jo 1,7). O ato de perdoar

é decisivo e nunca será revogado por Deus (Mq 7,19).

O milagre em ambos os contos é questionado em sua

natureza sobrenatural, pois facilmente o texto permite dar

aos acontecimentos explicações naturais. De outro lado, o

encanto e o mistério do Natal envolvem as narrativas numa

atmosfera onde a dúvida é a própria anuência para com um

certo sentido mais amplo de fato extraordinário e

inexplicável: a renovação e a purificação das atitudes e dos

sentimentos humanos como manifestação de verdadeiro e

perene milagre.

A felicidade é sinônimo de libertação do passado, da

amargura, da covardia, do sofrimento e da morte. O milagre

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de Natal significa um amanhecer consolatório e esperançoso.

O milagre em Natal na barca, de Lígia Fagundes Telles, não

é que a criança tenha voltado à vida (talvez nem tivesse

morrido);, dao mesmao forma,modo em O menininho do

presépio, de João Simões Lopes Neto, o milagre não se

constitui em que a imagem deitada nas palhinhas de milhãã

tenha saltado dali e defendido a moça, antes, o milagre está

plasmado nasem que pessoas que jaziam na infelicidade,

estavam mortas em vida, mas, pela força renovadora do

Amor, puderam olhar a existência de outra maneira.

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222

Referências Bibliográficas:

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224

8 - O RECONHECIMENTO EM VIDA DE J. S. SIMÕES

LOPES NETO

Cláudia Antunes 122

João Simões Lopes Neto iniciou a carreira que o

projetaria como importante escritor no jornalismo. Eram os

anos de 1888 e o jovem Simões contava então com 23 anos.

Começou o ofício como colaborador do periódico pelotense

A Pátria, conduzido pelo tio Ismael Simões Lopes,

proprietário do jornal. Ali, desenvolveu atividades

jornalísticas já marcadas por um toque literário.

Durante dois anos, de 1888123

a 1890, com

interrupções, o escritor expressou com humor e ironia suas

impressões dos acontecimentos da cidade na coluna Balas de

Estalo, assinada com diversos pseudônimos, em formato de

triolet. Com essa coluna, o jovem Simões despertou a

atenção da cidade. Manteve ainda as sessões Tesoura

Hilariante (1891), no mesmo jornal e, a partir de 1892,

passou a colaborar no jornal Diário Popular.

122

Doutoranda em Letras/PUCRS. 123

Adão Monquelat fornece a data correta do início da coluna Balas de

Estalo no livro Novos textos simonianos. Pelotas: Confraria Cultural e

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Em 1895, ano do falecimento do tio Ismael Simões

Lopes e do pai Catão Bonifácio, a coluna foi retomada nas

páginas do jornal Diário Popular, ainda em forma de triolet.

Depois, o formato da coluna mudou para a prosa, com o

mesmo espírito, mas aproximando-se mais da crônica

jornalística. As Balas de Estalo, no Diário Popular,ar

prosseguiram até o mês de setembro, assinadas com o

pseudônimo de Serafim Bemol.

Simões tinha trinta anos, quando criou no Diário

duas seções: A Semana Passada (Revistinha), publicada aos

sábados, em 1895, lembrando textos teatrais, e Semaninha,

em cujo espaço retratava acontecimentos locais, no mesmo

ano.

No final da vida, Simões publicou ainda a editoria

Diárias, no Correio Mercantil, entre 1914 e 1915. O jornal A

Opinião Pública apresenta ainda dois trabalhos seus:

―Inquéritos em Contraste‖, entre 1913 e 1914, e ―Temas

Gastos‖, de 13 de janeiro de 1916 a 5 de maio do mesmo ano.

Suas atividades no jornal continuaram até um dia antes de

sua morte, em 14 de junho de 1916. Tinha 51 anos.

Científica Prometheu/Livraria Lobo da Costa, 1991. (Série Letras

Pelotenses). p. 16.

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O jovem ousado dos primeiros tempos do jornal A

Pátria estenderia suas experiências para o teatro. Carlos

Reverbel situa o início no teatro em 1893, baseado nos

anúncios dos jornais da época. Simões, então com 27 anos,

casado há um ano com Francisca Meireles Simões Lopes —

vulgo Dona Velha — lançava-se, ao mesmo tempo, a

empreendimentos industriais e teatrais. A estréia seria com a

revista O Boato, apresentada em 1893 e publicada em 1894,

seguida de Os Bacharéis, ―comédia-opereta em três atos‖,

encenada em 1893 e reencenada e editada em 1914, e A

mixórdia, ―revista cômico-burlesca‖, encenada em 1896. A

partir daí, Simões passou a produzir suas peças sozinho,

tendo recebido, desde as primeiras apresentações, o

reconhecimento da imprensa e do público. No teatro, Simões

consolidou a fama, iniciada com os ―triolets‖, de

personalidade artística destacada na cidade.

Também em 1893, as páginas do Correio Mercantil

estamparam, em formato de folhetim, o texto de ficção

urbana A Mandinga. Dividido em quinze capítulos, o texto

foi publicado entre os dias 15 de outubro e 14 de dezembro,

nas edições de quinta-feira e domingo. O sucesso do

empreendimento aparece registrado na apresentação do

último capítulo.

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Em 1912, com 47 anos e dois livros publicados —

Cancioneiro guasca (1910) e Contos gauchescos (1912) —

Simões estava com problemas financeiros. Nessa época,

passou a fazer parte do quadro de funcionários de dois

jornais: Correio Mercantil — em que chegou a ser diretor,

em 1914, e A Opinião Pública — como secretário de

redação, onde permaneceu até a morte, em 1916.

Como jornalista exerceu as funções de cronista,

redator, editorialista, folhetinista, secretário de redação e

diretor. As atividades jornalísticas conviveram lado a lado

com os projetos teatrais e os planos literários.

Paralelamente ao trabalho com as letras, João Simões

realizou vários empreendimentos comerciais e comunitários.

Trabalhou em cartório, como despachante geral, como

publicitário, criando anúncios criativos para seus próprios

negócios e para terceiros através da Mensageria Davi.

Montou uma fábrica de extração de mel, uma destilaria e

uma vidraçaria. Tentou extrair prata em Santa Catarina,

comercializou o Café Cruzeiro, explorou a comercialização

de peixe salgado, criou os famosos cigarros Marca Diabo e o

carrapaticida Tabacina (premiado em 1910).

Ao mesmo tempo, foi Capitão da Guarda Nacional e

professor particular. Criou o Clube de Ciclismo, a entidade

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tradicionalista União Gaúcha, a Sociedade Protetora dos

Animais e o Clube Caixeiral. Idealizou a Festa das Árvores,

exerceu cargos na Maçonaria, no Conselho Municipal, na

Biblioteca Pública Pelotense e na Academia de Letras do Rio

Grande do Sul, ocupando a cadeira n.º 20, em 1910. Foi o

incentivador das comemorações do Centenário de Pelotas

(quando editou uma revista), mobilizou os estudantes,

promoveu atividades assistenciais e propôs uma reforma

ortográfica, rejeitada pelo então Conselho de Instrução

Pública.

Sofreu muitas derrotas: teve negados os pedidos para

canalizar com recursos próprios o Arroio Santa Bárbara e

para fabricar fósforos. Foi prejudicado por uma campanha

contra os cigarros Marca Diabo, não pôode competir com o

preço da concorrência no empreendimento do Café Cruzeiro,

que era de melhor qualidade; foi roubado pelo sócio na

exploração da mina de prata. A cada empreendimento

frustrado, perdia uma propriedade, utilizada para o

pagamento das dívidas.

Embora exaustiva, sabemos que essa lista não dá

conta da totalidade das atividades do capitão — ―homem dos

sete instrumentos‖ -— como bem disse Faber Júnior,

contemporâneo de Simões, ao traçar o perfil do escritor nas

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páginas do Correio Mercantil, no mês de seu aniversário, em

1901. Infelizmente, seus esforços se perderam, acumulados

em uma sucessão de fracassos que lhe rendeu a fama de

caipora e azarado, ao mesmo tempo em que dilapidou seu

patrimônio, fazendo com que ele sobrevivesse apenas do

escasso salário do jornal e da publicação dos três livros,

editados em vida, pela Livraria Universal.

Se teve fracasso nos negócios, o mesmo não ocorreu

em relação às letras -— primeiro como jornalista e

dramaturgo e, depois, como escritor regionalista. Além do

talento natural que, aos poucos, iria se desenvolver-se,

Pelotas exerceu fator condicionante na sua obra. Na época do

escritor, a cidade contava com intensa atividade cultural

distribuída entre saraus literários e musicais, teatros,

biblioteca, livrarias, tipografias, revistas segmentadas de

vários assuntos, almanaques e jornais.

As livrarias encarregavam-se da distribuição das

publicações nacionais e estrangeiras. Se existia tanta oferta

de literatura, é porque é porque era grande o público leitor,

transformando o texto literário em objeto de consumo. Ainda

mais, se levarmos em consideração fenômeno comum à

literatura de massa: o gênero folhetim.

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O interior do Rio Grande do Sul seguiu o mesmo

caminho dos primeiros jornais franceses que, a partir de

1836, começaram a colocar histórias de ficção nos rodapés

dos jornais como forma de atrair o público leitor. Com o

sucesso dos folhetins nas publicações nacionais e

estrangeiras, as folhas locais logo procuraram aderir a esse

modelo.

O espaço do rodapé do jornal acabou reservado para

a publicação de folhetins, em textos completos, ou em

capítulos. Era bastante comum escritores publicarem suas

obras primeiro em revistas e jornais, testando a aprovação do

público, para só depois saírem no formato de livro. Com

Simões Lopes Neto não foi diferente. Ele já havia publicado

A mandinga em 1893, ―O negrinho do pastoreio‖, em 1906,

A ―Mboitatá‖, em 1909; em 1912 foi a vez dos Contos

gauchescos. O conto ―O negro Bonifácio‖, integrante dos

Contos gauchescos, foi publicado na Revista da Academia

de Letras do Rio Grande do Sul, na edição de dezembro de

1911 a abril de 1912. Os Casos do Romualdo, descobertos

por Carlos Reverbel, foram publicados inicialmente em 1914

no Correio Mercantil, em formato de folhetim.

Os Contos gauchescos vieram a público nas edições

de quinta-feira e domingo do Diário Popular, com texto

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completo, que, às vezes, ocupava também o verso da folha,

no rodapé da página dois. Ao todo foram doze contos

publicados anteriores à edição em livro, pela Livraria

Universal, em setembro de 1912. Se levarmos em

consideração os outros autores que foram veiculados no

Diário e em outros jornais do mesmo período, como o

francês Michel Zevaco (escritor característico da terceira

fase do folhetim, entre 1875 e 1900), além de vários

escritores menores traduzidos do francês e de brasileiros,

como Lima Barreto e João do Rio, podemos concluir que

esse espaço era bastante concorrido. Logo, a julgar pelo

número de vezes que os Contos saíram, o autor deve ter

alcançado algum sucesso.

Mais tarde, o Diário Popular publica o anúncio do

lançamento do livro, em 11 de setembro de 1912. O mesmo

ocorre com outros jornais de Pelotas, Rio Grande e Porto

Alegre, no período de setembro/outubro desse ano, todos

eles acusando o recebimento do livro editado por Guilherme

Echenique & C. e elogiando a obra e o autor. Pode-se supor

que Guilherme Echenique, um dos donos da Livraria

Universal, enviou o volume aos principais jornais do Rio

Grande do Sul, como estratégia de lançamento, manobra que

deu certo. Entre os jornais que pudemos apurar, foram

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publicadas notas de divulgação em Pelotas no Diário

Popular, Correio Mercantil, A Opinião Pública e A Reação;

O Tempo e Ecos do Sul, em Rio Grande, e A Federação e

Correio do Povo, em Porto Alegre.

Na crítica publicada no Diário Popular, em 2 de

novembro de 1912, assinada por Coelho da Costa124

portanto, anterior à crítica de Antônio de Mariz, publicada

no Correio do Povo, em 1913, em Porto Alegre — o poeta

pelotense saúda o livro ―ansiosamente esperado da pena

magistral de João Simões‖. E afirma: ―Já de há muito é

conhecido e festejado, em nosso meio literário125

, o nome

desse patrício ilustre, que tão nobres serviços tem prestado à

literatura rio-grandense, de que é, incontestavelmente, um

dos luminares‖. O crítico prossegue tecendo longas

considerações a respeito do livro e do tema regionalista

abordado pelo autor.

Para avaliar o reconhecimento que o autor atingiu

com as suas obras, podemos examinar os comentários ao

lançamento do livro Contos gauchescos e as notícias

referentes ao seu falecimento nos jornais Diário Popular

(Pelotas), Correio Mercantil (Pelotas), A Federação (Porto

124

Januário Coelho da Costa (D. Pedrito, RS, 24/10/1887 – Pelotas, RS,

8/11/1949). Advogado, poeta, cronista e jornalista.

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Alegre), Ecos do Sul (Rio Grande), O tempo (Rio Grande), A

reação (Porto Alegre) e Correio do Povo (Porto Alegre).

O jornal Ecos do Sul, de Rio Grande, um dia após a

morte do escritor, publica o conto ―Trezentas onças‖, em

formato de folhetim, com a seguinte inscrição: ―Damos a

seguir uma produção literária do saudoso jornalista

pelotense sr. João Simões Lopes Neto, falecido quarta-4ª

feira última. Pertence ela ao seu livro CONTOS

GAUCHESCOS‖.126

Segue abaixo uma foto em formato

oval do escritor e o conto.

Essa, provavelmente, seria a primeira vez em que um

dos Contos gauchescos sairia em jornal após o lançamento

do livro. A partir daíDepois, os Contos e as Lendas de

Simões sairiam estampadosapareceriam em diversas

publicações, de dentro e fora do Estado, a ponto de a Globo,

detentora dos direitos

125

Grifo nosso. Diário Popular. Pelotas, 2 nov. 1912. p. 1. 126

Ecos do Sul. Rio Grande, 17 de jun. 1916, p. 1.

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autorais do escritor desde 1926, começar a cobrar pelas

publicações, para repassar os rendimentos à viúva, dona

Francisca, que viveu até os 95 anos, ao lado da filha adotiva

Firmina, em constantes dificuldades financeiras.

Apenas o jornal A Opinião Pública, de quem o

escritor era funcionário, não o homenageou com a devida

importância. Carlos Reverbel destaca a falta de prestígio que

Simões recebeu neste necrológio e, a partir daíapós, conclui

que o regionalista foi ignorado em seu tempo como escritor:

―Foi este o melhor necrológio de João Simões Lopes Neto,

publicado na imprensa de sua cidade, em que pesem diversas

impropriedades e outras tantas incorreções, entre elas histórias

como a de que fundara a Biblioteca Ppública Pelotense (aberta

quando ele tinha 10 anos) e a de que fora acadêmico de Direito e

Engenharia. Observa-se, entretanto, o principal: a julgar-se

pelos termos deste necrológio, escrito quando ele recém fechara

os olhos, o seu nome não teria ficado na história literária do Rio

Grande do Sul. O modo pelo qual os contemporâneos

apreciavam o que ele dizia, fazia e escrevia não confere com o

julgamento da posteridade a respeito de seus verdadeiros

merecimentos.‖127

Muitos críticos fizeram o mesmo julgamento.

Acreditamos, contudo, que Simões Lopes foi reconhecido

em seu tempo, dentro e fora do Estado. Só não foi mais,

porque na época a comunicação era difícil e as novidades

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espalhavam-se lentamente. O mercado editorial, antes da

Livraria do Globo, era incipiente e precário. A própria

decisão da Globo de adquirir os direitos do escritor, em

1926, já demonstra que Simões possuía alguma importância.

Em Pelotas ele foi reconhecido, como atestam os

jornais, como teatrólogo e jornalista; em Porto Alegre, era

membro da Academia de Letras do Rio Grande do Sul e

viajava algumas vezes pelo Estado, para proferirapresentar

suas conferências. Fora do Rio Grande do Sul, foi amigo de

Coelho Neto e contava ainda com o apoio de Alcides Maya,

que residia no Rio de Janeiro e era membro da Academia

Brasileira de Letras. Após sua morte, em 1916, não tardou a

ser acolhido pelos grandes nomes da crítica brasileira, como

João Pinto da Silva, considerado em sua época o crítico mais

importante do Rio Grande do Sul, Moysés Vellinho,

Augusto Meyer, Aurélio Buarque de Holanda, Sílvio Júlio,

Manoelito de Ornellas e Darcy Azambuja, além do estudo

minucioso de Carlos Reverbel.

Nos primeiros anos que se seguiram àdepois de sua

morte, do autor houve manifestações representativas da

crítica. Em 1918, Olavo Bilac comenta em uma conferência

127

REVERBEL, Carlos. Um capitão da guarda Nacional. Porto Alegre:

UCS/Martins Livreiro, 1981. p. 280.

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a lenda ―O negrinho do pastoreio‖, o que atesta o prestígio

que Simões havia alcançado. O discurso de Bilac foi editado

em 1924 e publicado no Rio de Janeiro, sob o título Últimas

conferências e discursos.128

Também em 1918 o nome de

Simões aparece citado na Bibliografia do conto brasileiro,

editada pela Biblioteca Nacional.129

Os estudos de Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer

e Aurélio Buarque de Holanda constituíram um divisor de

águas na história da recepção do autor de Contos gauchescos

e de Lendas do Sul. A partir daíDaí em diante, o escritor

gaúcho foi várias vezes revisitado. Nos anos 70, os estudos

sobre Simões Lopes ocupam a Academia, com novos nomes

como Regina Zilberman, Ana Mariza Filipouski, Luis

Arthur Nunes, Maria da Glória Bordini, Flávio Loureiro

Chaves, Lígia Chiappini e Antônio Hohlfeldt, entre outros.

A crítica sai dos jornais e migra para a universidade,

e o escritor passa a ser encarado a partir do viés dos

pesquisadores. Em todos os momentos Simões Lopes Neto

sempre responde às novas visões — sejam as de cunho

determinista e impressionista dos primeiros tempos,

128

BILAC, Olavo. O negrinho do pastoreio. In: Últimas conferências e

discursos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1924.

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passando à abordagem regionalista e estilística e chegando

aos estudos estruturalistas e narrativos.

O que ocorreu, no entanto, foi uma confusão entre a

fama de derrotado nos negócios, que passou a ser transferida

a todas as atividades de Simões, inclusive à literatura.

Contudo, acreditamos que a recepção é da obra e não, da

biografia. Outro fator importante para indicar o sucesso

editorial de Simões é o grande número de edições que

existem de seus livros, atravessando o século em diversos

formatos — periódico, livro, internet — em editoras de todo

país.

Da mesma forma, Cancioneiro guasca foi editado

pela Livraria Universal em três momentos — 1910, 1917 e

1928, indicativo de que o livro vendia. A segunda edição

afirma textualmente em seu prefácio que o autor era

conhecido em todo país. Considerando o número reduzido

das primeiras edições dos livros de Simões Lopes Neto —

cerca de 200 exemplares e a referência dada à popularidade

que o autor atingiu, citadas em jornais e nos livros de João

Pinto da Silva, em Fisionomia dos novos (1922) e em

História literária do Rio Grande do Sul (1924) , acreditamos

129

GOMES, Celuta Moreira; AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia

do conto brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1918, p.

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que Simões Lopes Neto ele é um exemplo de permanência

na literatura brasileira.

Nos jornais pelotenses podem ser encontradas ainda

hoje as páginas da vida do escritor. Lá estão divulgados os

lançamentos e a publicidade de seus negócios e anunciados

alguns fracassos, como a falência e a venda de

estabelecimentos e a oferta da venda do seu espólio, por

parte da viúva, após a morte de Simões, sem que

aparecessem interessados. Os jornais divulgaram ainda a

palavra do escritor gaúcho, às vezes com humor, outras com

irritação, muitas com preocupação cívica e histórica.

Registraram os sucessos das peças teatrais e as primeiras

experiências com a literatura, com textos como Contos

gauchescos, algumas das Lendas e Casos do Romualdo,

entre outros.

De maneira abrangente, analisando a vida, a obra e a

recepção de Simões Lopes Neto, é possível concluir que ele

nunca parou de escrever. De fato, até atingir a maturidade

artística, por volta dos quarenta anos, sua produção

intelectual foi intensa e realizou-se de formas variadas:

―triolets‖, conferências, ensaios, artigos, peças de teatro.

Quando seu talento literário se manifestou-se, realizou

242-243.

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vários trabalhos ao mesmo tempo — literatura, história,

jornalismo, negócios, atividades de cidadão. Soube manejar

com a mesma habilidade a comédia e o drama, o pitoresco e

o trágico, sempre pontuados por toques de lirismo, motivos

que garantiram que sua literatura alcançasse a popularidade,

sendo reproduzida, desde o início, em diversas publicações.

Do mesmo modo, a crítica nunca deixou de falar sobre ele, e

a cada nova abordagem, sua obra provou que tinha fôlego.

Considerações finais

Ao nos aproximarmos da ficção de Simões Lopes

Neto, deparamo-nos com um movimento de idas e vindas na

história desse escritor gaúcho. No decorrer do estudo,

mergulhamos no universo simoniano, através da obra

publicada nas primeiras edições em livros e, depois,

reeditada, continuamente.

Da mesma maneira, acompanhamos os anúncios

publicitários, os textos jornalísticos e literários e as críticas

publicadas em antigos jornais do início do século; estudamos

a valorização atual do autor, através de extensa fortuna

crítica, em livros e periódicos. Pudemos, ainda,

aprofundarmo-nos um pouco mais na obra e na vida do

escritor, por meio de pesquisas em documentos raros,

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localizados em arquivos públicos e particulares, e de

depoimentos valiosos de seus apreciadores.

Aos poucos, Simões foi se revelando-se, e outros

dados referentes à recepção de sua obra permitiram a

formação de novas hipóteses acerca do reconhecimento da

obra do escritordo seu trabalho literário. Tendo em vista o

material encontrado nos jornais rio-grandenses do início do

século — a crítica pioneira do poeta Coelho da Costa, os

registros do lançamento do livro Contos gauchescos e as

referências ao sucesso de Simões nos obituários de vários

jornais, quando de sua morte, em 1916 — acreditamos que

Simões Lopes Netoele foi reconhecido em vida pela crítica e

pelo público leitor.

Em outro ponto da obra Um capitão da Guarda

Nacional, Reverbel fala sobre a recepção de Simões, citando

o comentário de João Pinto da Silva, de 1922, — ―J. Simões

Lopes Neto, indiscutivelmente o mais fiel e, por isso, o mais

popular dos nossos regionalistas, o ‗conteur‘ amado da nossa

gente dolorosa e rude da campanha.‖130

. O biógrafo refere

acerca da popularidade do escritor:

―A observação de João Pinto da Silva, apontando Simões Lopes,

naquelas alturas, como ―o mais popular dos nossos

130

SILVA, João Pinto. Fisionomia de “novos”. São Paulo: Monteiro

Lobato & Co., 1922. p. 146.

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regionalistas‖, tem inteira procedência. Contrariamente ao que

acontecia com Alcides Maya, cujos livros eram lidos por uma

elite, por causa da barreira verbal, os ―Contos gauchescos‖ eram

deletreados até mesmo pela gente simples da campanha, pouco

chegada aos livros.‖131

E mais adiante, comentando a tiragem reduzida dos

Contos gauchescos, reflete sobre o sucesso do escritor junto

ao público leitor:

Seja como for, o livro teve penetração popular e

conseguiu certo número de leitores. E quando já se haviaNo

momento em que esgotado, após a morte do autor, suas

páginas começaram a ser reproduzidas, com surpreendente

regularidade, em diversas publicações. De modo geral, tais

transcrições não eram feitas em revistas ou periódicos

literários, mas em publicações de caráter popular, como

almanaques e órgãos dedicados a assuntos rurais. Desta

forma, mesmo depois de esgotada, a obra se mantinha viva

junto ao público.132

Depois do falecimento de Simões, os contos

passaram a ser publicados isoladamente em periódicos

diversos. No ano da morte do escritor, a revista Seleta, do

Rio de Janeiro, publica ―Contrabandista‖.133

No ano

131

REVERBEL, Carlos. Um capitão da guarda nacional. Porto Alegre:

UCS/Martins Livreiro, 1981. p. 284. 132

Idem, p. 285. 133

Revista Seleta, Rio de Janeiro, 22 jun. 1916, Ano II, n. 25.

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242

seguinte, a revista A Estância, órgão da União dos Criadores

do Rio Grande do Sul, editada em Porto Alegre, transcreveu

―Artigos de fé do gaúcho‖.134

Em 1918, foi a vez do

Almanaque do Globo publicar ―Contrabandista‖135

e, em

1922, o mesmo conto apareceria no Almanaque do

Agricultor Rio-Grandense. Também o Almanaque do

Correio do Povo traria, em diversas ocasiões, contos e

lendas do escritor gaúcho.

Além dos comentários de Olavo Bilac, em 1918, e da

referência da Biblioteca Nacional, merecem destaque as

críticas de João Pinto da Silva, valorizando a popularidade

de Simões na História Literária do Rio Grande do Sul.

Nessa ocasião, o crítico salientou a importância de Simões

Lopes no Regionalismo gaúcho, impondo-se

―decisivamente, à curiosidade e à admiração da crítica‖, com

―os seus lindos Contos gauchescos‖.136

134

A Estância. Porto Alegre, jan. 1917, ano V, n. 1, p. 21-22. 135

Almanaque do Globo. Porto Alegre, 1918, p. 169-173. 136

SILVA, João Pinto. História literária do Rio Grande do Sul. Porto

Alegre: Globo, 1924. p. 155-162.

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243

Ainda no ano de 1922, Moysés Vellinho

comenta no jornal Correio do Povo, sob o psedônimo de

Afonso Arinos, o trabalho de Simões Lopes, relacionando-o

a Alcides Maya, com o título ―Sobre um acerto‖.137

No ano

seguinte, apresenta novo artigo traçando um paralelo entre

os dois autores, intitulado ―Alma Bárbara‖.138

Em 1925, Roque Calage cita Simões Lopes na

conferência ―A poesia popular nordestina e a gaúcha‖, no

jornal Diário de Notícias, em Porto Alegre.139

Essas

referências saíram antes da primeira edição da Globo de

Contos gauchescos e Lendas do Sul, indicando que o escritor

já despertava o interesse da crítica, ultrapassando as

fronteiras municipais.

Quando a Globo lançou o livro, em agosto de 1926,

as manifestações de reconhecimento ao trabalho do autor só

aumentaram. Nesse ano, o Correio do Povo publicou duas

críticas significativas para a história da recepção simoniana:

as de Augusto Meyer140

e Darcy Azambuja.141

Em 1933, o

137

VELLINHO, Moysés. ―Sobre um acerto‖. Correio do Povo, Porto

Alegre, 7 set. 1922. 138

VELLINHO, Moysés. ―Alma bárbara‖. Correio do Povo, Porto

Alegre, 23 set. 1923. 139

CALAGE, Roque. ―A poesia popular nordestina e a gaúcha‖. Diário

de Notícias. Porto Alegre, 2 ago. 1925, p. 3. 140

MEYER, Augusto. ―O grande Simões Lopes‖. Correio do Povo,

Porto Alegre, 26 ago. 1926.

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crítico Agripino Grieco expressa o reconhecimento à obra de

Simões, incluindo-a na sua Evolução da prosa brasileira,

enfatizando principalmente a importância das lendas ―A

Salamanca do Jarau‖ e ―O negrinho do pastoreio‖.142

Do

mesmo modo, a presença do escritor gaúcho na coletânea,

organizada por Edgar Cavalheiro e Almiro Rolmes Barbosa,

As obras-primas do conto brasileiro, editada pela Martins,

em São Paulo, coloca Simões no nível dos grandes contistas

brasileiros.143

Para finalizar, é importante salientar ainda o valor da

Revista do Brasil na valorização do autor gaúcho. Dirigida

em sua segunda fase, por Otávio Tarquínio de Souza e

Rodrigo Melo Franco Andrade, de 1938 a 1943, a Revista do

Brasil publicou diversos contos de Simões, aproximando o

escritor pelotense de Aurélio Buarque de Holanda e Lúcia

Miguel Pereira — dois nomes

141

AZAMBUJA, Darcy. ―Contos gauchescos‖. Correio do Povo, Porto

Alegre, 29 ago. 1926. 142

GRIECO, Agripino. Evolução da prosa brasileira. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1933. p. 131-132. 143

BARBOSA, Almiro Rolmes; CAVALHEIRO, Edgar (Orgs.) As

obras primas do conto brasileiro. São Paulo: Martins, 1943.

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fundamentais para o ressurgimento da ficção simoniana, a

partir da edição crítica da Globo, em 1949, que fez com que a

recepção da obra adquirisse novo fôlego.

A pesquisa nos arquivos e coleções que fomentam os

estudos nas fontes primárias, foi fundamental para esse

trabalho, bem como o estudo da extensa fortuna crítica do

autor. Mais uma vez, a obra de Simões Lopes Neto continua

respondendo às novas visões dos leitores e pesquisadores, a

partir docomeçar pelo material obtido empelo contato com

as fontes primárias. Nos jornais é possível perceber o vaivém

de textos que circundam a atividade literária. A obra

constitui o produto final, mas ela dispõe de uma história,

dada pela sua trajetória das fontes à recepção.

A história editorial dos Contos gauchescos indica a

capacidade de permanência da obra, que atravessou o século

XX, atingindo o ano de 2001 com nova edição pela Globo. O

interesse dos editores pela obra de Simões e,

conseqüentemente, do público leitor, demonstra que o

escritor gaúcho continua atendendo às expectativas dos

leitores, mantendo-se atual.

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246

9 - ANÁLISE DISCURSIVA DE A SALAMANCA DO

JARAU DE J. S. LOPES NETO

Oscar Brisolara 144

Este estudo parte das concepções da Teoria da

Enunciação de orientação francesa, que concebe ser todo o

discurso habitado por discursos outros do passado. Esses

discursos não estão apenas no nível da memória, mas

constituem o próprio discurso presente.

A lingüista francesa Jacqueline Authier-Revuz trata

da heterogeneidade que é, justamente, a presença do outro no

discurso. A autora apresenta duas formas de dessa

heterogeneidade: a heterogeneidade mostrada e a

heterogeneidade constitutiva.

A heterogeneidade mostrada é aquela que tem

marcas no discurso. É o caso das citações e suas marcas

como as aspas, o itálico, ou as glosas, ou sejam, os

comentários que se fazem ao discurso do outro, ou ainda as

formas do discurso direto, discurso indireto e discurso

indireto livre. Essas são formas que as línguas têm para

marcar a presença do discurso do outro no texto.

144

Professor da UCPel.

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247

Authier afirma:

―No fio do discurso que, de fato, um locutor único produz

materialmente, um certo número de formas de lingüisticamente

apreensíveis no nível da frase ou do discurso, inscrevem, na

linearidade, o outro.

―É o outro do discurso relatado: as formas sintáticas do discurso

indireto e do discurso direto, de maneira unívoca, no quadro da

frase, um outro ato de enunciação. No discurso indireto, o

locutor se faz tradutor: usando suas próprias palavras, ele remete

a um outro como fonte do ―sentido‖ dos propósitos que ele

relata. No discurso direto são as próprias palavras do outro que

ocupam o tempo – ou o espaço – claramente recortado na frase,

da citação, o locutor assumindo-se como simples porta-voz.

Nessas duas modalidades diferentes, o locutor dá lugar

explicitamente em seu discurso ao discurso do outro‖

(Authier-Revuz, 1982, p. 92).

Ainda falando sobre a heterogeneidade mostrada, ela

se refere a outra forma de o autor marcar a presença do

discurso de outro locutor no seu discurso. A essa forma ela

denomina de conotação autonímica. Explicita esse tipo de

marcação como segue:

―Uma forma mais complexa de heterogeneidade aparece nas

diversas formas marcadas da conotação autonímica: o locutor

faz uso de palavras inscritas no fio do seu discurso e, ao mesmo

tempo, mostra-as. Dessa maneira, sua figura normal de usuário

das palavras acompanha-se, momentaneamente, de outra figura,

a de observador das palavras utilizadas; e o fragmento assim

designado – marcado por aspas, palavras em itálico, uma

entonação e/ou qualquer forma de comentário – recebe, em

relação ao resto do discurso, um outro estatuto" (Authier-Revuz,

1982, p. 94).

Ela apresenta como manifestação da heterogeneidade

as formas de comentário, glosa que o locutor inclui no seu

discurso. A glosa pode ser uma nota explicativa de palavra

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ou termo, comentário, interpretação, nota ou crítica, censura;

também pode ser anotação marginal ou interlinear, uma nota

de rodapé. São sempre freqüentemente manifestações da

presença do outro no discurso marcadas pelo locutor.

Formas dessa a presença do outro no discurso podem

ser ainda a ironia, a antífrase, a imitação, a alusão, a

reminiscência e toda e qualquer maneira de referir-se com

formas marcadas a esse discurso.

Porém a autora francesa refere-se a outra forma mais

radical da presença do outro no discurso: a heterogeneidade

constitutiva do discurso. Afirma: O outro está sempre

presente em tudo (Authier-Revuz, 1982, p. 98). Ela

acrescenta que a heterogeneidade constitutiva é uma

ancoragem para a heterogeneidade mostrada do discurso.

Desenvolve sua argumentação em relação à sempre

necessária presença do outro no discurso baseada em duas

fontes: o dialogismo do Círculo de Bakhtin e a psicanálise a

partir da releitura de Freud por Lacan.

De Bakhtin, toma o dialogismo, de modo especial

como o autor apresenta em Marxismo e Filosofia da

Linguagem. Busca o lugar dado ao outro dentro da

perspectiva dialógica, mas um outro que não é nem o duplo

de um face a face, nem mesmo o diferente, mas sim, um

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outro que atravessa constitutivamente o um. Atravessar

constitutivamente o um consiste em fazer parte

necessariamente dele.

Para haver dialogismo, há, inevitavelmente, de haver

o outro. Esse é princípio fundador da subjetividade e da

linguagem. Só existe o um, porque há o outro. Só há

linguagem em função desse outro que está sempre presente

no um. A presença do outro é necessária a todo o discurso. A

própria palavra que o sujeito julga sua, já vem habitada por

outras vozes, outras visões e definições.

É necessário incluir aqui também a imagem do

interlocutor. Todo discurso tem uma orientação. Diz

Authier:

―Deve-se dizer que todo discurso é compreendido nos termos do

diálogo interno em que se instaura entre este discurso e aquele

próprio do receptor, o interlocutor compreende o discurso

através do seu próprio. Visando à compreensão de seu

interlocutor, o locutor integra, então, a produção de seu discurso

uma imagem de outro discurso, aquele que ele empresta a seu

interlocutor.‖ (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 114).

Tomando de Saussure a concepção de eixo

paradigmático, pode-se dizer que o discurso dialoga com o

interlocutor, orienta-se para um interlocutor, somente que

esse o apreende também a partir de seu patamar. O mesmo

discurso pode evocar no interlocutor, pelas relações

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paradigmáticas, leituras que o locutor não pode comandar. O

enunciado de um locutor pode produzir leituras diversas

daquelas pretendidas pelo locutor- –enunciador.

Para a psicanálise, a heterogeneidade tem outra

perspectiva. Essa não tem a linguagem como objeto, mas sim

o inconsciente. Em relação a essa temática, diz a lingüista

francesa:

―É através de um olhar exterior à lingüística, pousado sobre a

linguagem, a palavra, o sujeito falante que, para a psicanálise

constitui um material e não um objeto próprio, que esta pode lhe

dizer respeito ao contrário da imagem de um sujeito ―pleno‖ que

seria a causa primeira e autônoma de uma fala homogênea que

diz respeito a um sujeito dividido (o que não significa nem

desdobrado, nem compartimentado). Sua posição é aquela de

uma fala heterogênea‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 117).

Sendo assim, a psicanálise, olhando a linguagem, vai

buscar o recalque, ou seja, os conflitos esquecidos que atuam

sobre o sujeito, sem que ele tenha consciência disso, mas que

têm efeitos sobre sua vida presente.

Falando do inconsciente, diz Lacan:

O inconsciente é esta parte do discurso concreto enquanto

transindividual, que falta à disposição do sujeito para

estabelecer a continuidade do seu discurso consciente (...) O

inconsciente é aquele capítulo da minha história que é

marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o

capítulo censurado (Lacan, 1953, p. 136).

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A psicanálise faz um trabalho de regressão através da

linguagem, para recuperar esses perdidos, esses conflitos do

passado que atuam no presente. Não é um retorno de fato. O

processo de análise é uma espécie de espelho onde o sujeito

se enxerga. É no significante que o analista busca um

significado oculto.

A psicanálise, como Bakhtin, também chega à

conclusão de que o discurso é sempre polifônico. Esse

significado oculto não é monolítico, como afirma Lacan:

O inconsciente não a mensagem, mesmo estranha, mesmo

cifrada, que alguém se esforça para ler num velho

pergaminho, é um outro texto, escrito embaixo, que se deve

ler por transparência ou com ajuda de algum revelador

(Lacan, 1953, p. 129).

É como um palimpsesto em que alguém apagou um

texto e escreveu outro no mesmo pergaminho. O trabalho de

busca, em ambos os casos, é o mesmo. O pergaminho é o

significante em que devo, por trás do significado da

superfície, procurar o significado apagado.

De forma semelhante, é na materialidade da língua

que é possível reconhecer a escritura polifônica do discurso.

Assim, como é somente através da fala que se pode acessar

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os conhecimentos formais que o indivíduo tem da língua,

assim também o inconsciente é acessível através das

manifestações dos significantes que o sujeito produtor do

discurso usa.

Passa-se, a partir daí, à noção de sujeito que

[...] ―não é uma entidade homogênea, exterior à linguagem, que

lhe serviria para ―traduzir‖ em palavras um sentido do qual seria

a fonte consciente‖ (Authier-Revuz, 1982, p. 127).

Esse sujeito não é nem a fonte, nem a origem do que

diz. Ele é habitado por outros discursos do passado, que não

estão no nível do seu consciente, mas que estão presentes no

seu inconsciente e agem no seu discurso presente.

Esse sujeito é, portanto, efeito de linguagem. E ainda

mais, é um sujeito dividido, como afirma Clément, citado

por Authier:

―O efeito de linguagem é a causa introduzida no sujeito. Por este

efeito ele não é a causa dele mesmo, ele carrega nele a verve da

causa que o divide. Pois sua causa é o significante sem o qual

não haveria nenhum sujeito na realidade‖ (Authier-Revuz, 1982,

p. 128).

Esse sujeito clivado, dividido, é descrito por Lacan

da seguinte maneira:

―O homem não é em sua psique o resultado conclusivo de uma

divisão em duas vertentes. A consciência não é a face visível

dum subconsciente oculto, nem o inconsciente a estrutura

profunda, não revelada, de um consciente brilhante. A relação

não se estabelece nesses termos, mas toma ares geográficos de

um percurso sem locais, nem inverso, donde o sujeito se enuncia

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sem saber o que diz em uma palavra que diz muito sobre este

saber‖ (Lacan, apud Authier-Revuz, 1982, p. 128).

Não se trata também de um sujeito compartimentado

em que haja um espaço, um compartimento para o

consciente e outro para o inconsciente. Não um sujeito

dividido à maneira de um objeto concreto que pode ser

fracionado em diferentes partes e que unidas formam um

todo. Essa divisão não é também um acidente traumatizante,

cuja unidade desejada pudesse ser recuperada ao modo de

um aparelho restaurado.

Essa abordagem nos permite-nos concluir que o

outro está na essência da linguagem. Ela somente existe em

função dele e. Ela está voltada para ele. Isso também nos

permite encaminhar nosso raciocínio para a análise da lenda

A Salamanca do Jarau de João Simões Lopes Neto.

Ora, se todo o discurso é habitado por discursos

outros do passado, esse também o é, ainda mais por se tratar

de um texto que aborda uma lenda que está na base da

formação cultural do Rio Grande do Sul.

O discurso cuja presença se pretende-se mostrar

neste estudo é o discurso clássico grego, mais precisamente

aquele presente na obra clássica de Homero, em sua grande

obra, a Ilíada. Além desse, abordar-se-á também a presença

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de outros discursos como o das culturas européia, árabe e

indígena que são importantes formadores da cultura local.

É necessário salientar que a própria obra do aedo

grego também é habitada por outros discursos pelo mesmo

processo aqui apresentado. O grande herói da Ilíada é

Aquiles. Esse jovem rei que participou da Guerra de Tróia

era filho de Peleu, rei da Tessália, e da deusa Tétis, como

quer a mitologia clássica grega.

Uma narrativa tradicional na mitologia grega é a do

casamento de Peleu, um homem, e Tétis, uma deusa,

ocorrido no Olimpo, morada dos deuses. A esse consórcio

todos os deuses foram convidados, exceto Éris, deusa da

discórdia, não convidada por razões óbvias.

A deusa Éris chega no final da festa com uma maçã

de ouro que põe sobre a mesa com a seguinte inscrição:

, ou seja, para a mais bela. Esse ato provocou uma

grande confusão, cada deusa desejando para si a maçã.

Zeus, o deus supremo do Olimpo, organiza uma

escolha prévia, da qual resulta a seleção de três deusas: Hera,

esposa do próprio Zeus; Palas Atenéia, deusa da sabedoria; e

Afrodite, deusa do amor.

Coube a Páris, filho de Príamo e Hécuba, reis de

Tróia, a decisão sobre a primazsia em beleza entre as deusas

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olímpicas. As deusas fizeram, cada uma por sua vez, um

trabalho de subversão para convencer o jovem de apenas

vinte anos a escolhê-la como a mais bela.

Hera promete torná-lo o mais poderoso rei de toda

terra. Palas, afirma que, se for ela a escolhida, torná-lo-á o

homem mais sábio do mundo. E Afrodite promete-lhe a

mulher mais bela do mundo.

Aos vinte anos, Páris escolhe Afrodite. A deusa

cumpre a promessa, entregando-lhe Helena, esposa de

Menelau, rei de Corinto, que foge com ele para pátria do

jovem. Esse fato vai originar a guerra de Tróia, conforme

afirma também a mitologia grega,.

que Essa mitologia sempre remete à realidade humana.

Esse mito, em particular, parece referir-se às tentações

humanas. Hera seria, dessa forma, a metáfora do poder;

Palas, a do saber; e Afrodite, a do prazer. Essas, segundo a

proposta da presente narrativa, parecem ser as três grandes

tentações do homem: o poder, o saber e o prazer.

É lógico que seria impossível rastrear na lenda de

Simões Lopes Neto, aliás parte da tradição da literatura oral

do Rio Grande do Sul, a presença de todos o discursos

subjacentes ao texto do autor pelotense. Porém, alguns traços

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do discurso mitológico grego parece estarem evidentes no

mito gaúcho.

A lenda A Salamanca do Jarau narra a história

ocorrida com Blau Nunes, narrador da obra, quando parte em

busca de um boi barroso, que fugira. Numa economia

baseada fundamentalmente na pecuária, a posse do boi é o

ideal do homem, ainda mais numa situação em que o boi

fazia parte, muitas vezes, da grande manada sem dono,

formada após a expulsão dos jesuítas e derrocada das

missões.

Assim, o boi barroso é tema de muitas cançonetas

populares da época. Como Simões Lopes foi compilador

dessas canções numa obra intitulada Cancioneiro Guasca, é

claro que tinha conhecimento desse tema.

Prova disso é a citação feita pelo autor, logo no início

da lenda, de uma canção do boi barroso que faz parte do

Cancioneiro Guasca cuja primeira estrofe transcrevo abaixo

―Meu bonito boi barroso.

Que eu já contava perdido,

Deixando o rastro na areia

Foi logo reconhecido‖.

(Lopes Neto, 1965, p. 133).

Na busca desse boi, Blau mete-se pelas estradas e

encontra o santão da salamanca do cerro. (Idem, ibidem

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p.135), personagem lendário que fora amante de Teiniaguá,

princesa encantada de origem árabe. Por indicação do

santão, seguiu morro acima, sempre na busca do boi barroso.

Entrou na caverna do cerro do Jarau. Diz o texto da lenda:

―Blau Nunes foi andando.

Entrou na boca da toca apenas aí clareada e isso pouco, por

causa da enrediça da ramaria que se cruzava nela; pra o fundo

que era escuro...

Andou mais, num corredor dumas braças; mais ainda; sete

corredores nasciam deste.

Blau Nunes foi andando‖ (Idem, ibidem, p. 153).

E foi andando e diante dele se puseram sete provas:

Primeira prova: Mãos de gente, sem gente que ele

visse, batiam-lhe no ombro (Idem, ibidem, p 154).

Segunda prova: ... sentiu ruído de ferros que se

chocavam, tinir de muitas espadas (idem, ibidem, p. 154).

Terceira prova: ... homens peleavam de morte (idem,

ibidem, p. 154), ... Blau meteu o peito entre o espinheiro das

espadas, o fino das pontas, ... sem olhar para os lados, ...

escutando porém os choros gemidos dos peleadores (Idem,

ibidem, p. 154),

Quarta prova: mãos mais leves batiam-lhe no ombro,

como carinhosas e satisfeitas (Idem, ibidem, p. 154)

Quinta prova: ... saltaram-lhe aos quatro lados

jaguares e pumas, de goela aberta e bafo quente... E ele

meteu o peito e passou (Idem, ibidem, p. 154),

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Sexta prova:...caveiras soltas, dentes branqueando,

buracos de olhos...(Idem, ibidem, p. 155); .

Sétima prova: ... aí dentro de um jogo de um jogo de

línguas de fogo, vermelho e forte, como atiçado com lenhas

de nhanduvai... outra vez meteu o peito e passou, sentindo o

mormaço das labaredas (Idem, ibidem, p. 156).

São todas situações que perturbariam um homem

comum, especialmente levando em consideração que se

passaram nas profundezas de uma caverna, no início da

noite. Porém, Blau passou, sem se perturbar, por todas elas.

Passadas as provas, Blau sem se abalar segue o seu

caminho e encontra uma velha assim descrita:

―Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe dourado,

havia um socavão reluzente. E sentada numa banqueta

transparente, fogueando cores como as do arco-íris, estava uma

velha, muito velha, carquincha e curvada, e como tremendo de

caduca.

―E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava a

tangia, e atava em nós que se desfaziam, laçadas que se

deslaçavam e torcidas que se destorciam, ficando sempre

linheira. (...) E disse:

- Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei...‖(Idem,

ibidem, p. 157-58).

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E vêm então as sete ofertas que são:

1) a sorte no jogo;

2) a arte de cantar e com ela conseguir o amor das

mulheres;

3) o dom de curar e de impor males através das

ervas;

4) a habilidade nas armas;

5) o poder sobre os outros;

6) a riqueza;

7) a arte da pintura e da poesia.

A todas essas tentações Blau resiste. Pensou e não

disse:

- Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és

tudo (Idem, ibidem, p. 159).

As tentações de Blau são as mesmas de Páris.

Constituem a presença do discurso grego clássico no

discurso da lenda, transformado na linguagem desse texto. A

sorte no jogo, a habilidade nas armas, o poder sobre os outros

e a riqueza reduzem-se à primeira tentação do herói troiano,

ou seja, o poder. A arte de cantar, o dom de curar e a arte da

pintura e da poesia correspondem à tentação de Palas, ou

seja, o saber que inclui também a arte. Porém, o prazer não

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lhe é oferecido, no entanto, é o que ele deseja e que se

manifesta, quando ele afirma que desejaquer a Teiniaguá.

A grande diferença entre a lenda rio-grandense e o

mito grego consiste no fato de a Páris ter sido ofertado o

prazer na metáfora de Afrodite, que lhe oferece e concede

Helena, a própria concretização do prazer carnal, enquanto

que a Blau sequer lhe é oferecida essa possibilidade. É ele

que manifesta esse desejo, que lhe é negado.

Em troca, recebe a onça de ouro que se multiplica

indefinidamente, proporcionando-lhe uma imensidão de

bens materiais. Em lugar de seu desejo de satisfação carnal, a

terceira tentação de Páris, lhe é concedida a primeira oferta

do mito grego, pois o dinheiro está intimamente relacionado

ao poder. Porém, enquanto Páris desfruta de Helena e por um

tempo é feliz, Blau não consegue a princesa Teiniaguá. O

poder do dinheiro torna-o infeliz e solitário e ele acaba

declinando desse bem e voltando à miséria primitiva.

A presença do ideal grego de realização e em nossa

cultura fica patente: primeiramente, na procura do boi

barroso, manifesta-se como metáfora do sonho de ter.

Depois nas ofertas de Teiniaguá, manifestando o sonho do

poder e do saber, e a própria oferta do santão que concede ao

peão gaúcho a onça de ouro que se multiplica, concretizando

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o sonho do poder. E, por fim, o desejo do prazer,

manifestado no pedido de Blau pela princesa árabe

encantada, a Teiniaguá.

O número sete presente tanto nas provas pelas quais

passa Blau dentro da caverna, (a caverna também se divide

em sete) quanto nas ofertas da velha maga manifesta outra

constante na numerologia de origem oriental. São sete os

sacramentos cristãos, sete são também as virtudes teologais e

os pecados capitais. Ora, sete, na mesma numerologia, é o

resultado da soma de três e quatro. Nessa numerologia, três

constitui a perfeição divina. É o indivisível, o imortal,

enquanto que quatro é o divisível, o mortal, portanto, a

perfeição humana.

O resultado da soma de ambos constitui a soma da

perfeição divina com a perfeição humana já marcadamente

presentes na mitologia grega. Assim, Aquiles, o herói da

Ilíada de Homero, constitui um exemplo disso. Na voz do

próprio aedo grego, o guerreiro é apresentado como peleio

Aquiles (Homero, 1976, p 75), isto é, filho de Peleu, rei

lendário da Tessália. Por outro lado, o poeta grego apresenta

a mãe de Aquiles como a bracinívea Tétis (Idem, ibidem, p.

83).

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Assim, Aquiles é filho de Peleu, homem, rei nobre;

mas também de Tétis, deusa, amante e protegida de Zeus.

Aquiles é humano-divino. Também o herói romano da

Eneida, Enéias, é filho de Anquises, pastor troiano, homem,

portanto; e Vênus, a deusa grega do amor. Jesus Cristo é o

exemplo cristão dessa dualidade. É filho do Espírito Santo,

Deus, com a Virgem Maria, mulher, humana. Portanto, sete

é apenas a manifestação numerológica dessa dualidade.

Outra manifestação da cultura européia nao lenda é a

presença, primeiramente do conflito entre as culturas árabe e

a cristã. Depois, a manifestação forte da presença árabe em

nossa cultura regional, ocasionada pelos séculos de

dominação árabe sobre a península ibérica, ingrediente

marcante na literatura de seus povos.

Porém, tTrata-se, porém, da visão cristã em que o

árabe é apresentado como mau. A própria Teiniaguá aqui se

alia a Anhangá-pitã, divindade do mal na mitologia tupi,

correspondente ao satanás do cristianismo.

Ao mesmo tempo em que ela é apresentada como má,

aliada à divindade do mal, por ele transformada, no final da

lenda torna-se a mulher primitiva do Rio Grande, formando,

com santão, um casal de peões. Diz a lenda:

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―Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na

teiniaguá... e a teiniaguá na princesa moura... e a moura numa

tapuia formosa; ...e logo o vulto da face branca e tristonha

tornou a figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez,

num guasca desempenado...

E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida

das outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e de lugar

distante, aquele par, juntado e tangido pelo Destino, que é o

senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos dadas como

namorados, deu costas ao seu desterro, e foi descendo a

pendente do coxilhão, até a várzea limpa, plana e verde, serena e

amornada de sol claro, toda bordada de boninas amarelas, de

bibis roxas, de malmequeres brancos, como uma concha

convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria,

a caminho do repouso‖ (Lopes Neto, 1965, p. 166).

Nesse final de narrativa, o autor deixa clara a

concepção de que a cultura rio-grandense é uma soma da

cultura cristã, da cultura árabe e da cultura indígena. O casal

formado pelo sacristão e pela princesa árabe vem a constituir

o gaúcho primitivo que originou o nosso povo. Na última

lenda da trilogia, O Negrinho do Pastoreio, vai aparecer

também o componente africano da formação do gaúcho.

Pode-se constatar, ainda, a presença de uma

concepção de mulher muito forte na cultura européia.

Teiniaguá é a personificação feminina, em que a mulher,

aliada ao demônio (Anhangá-pitã), representa um apelo

irresistível ao pobre sacristão, índio europeizado.

Ele abandona a civilização, tal como é representada

na missão, desfruta das riquezas da salamanca e do amor

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carnal de Teiniaguá, a um tempo lagartixa e mulher: animal e

ser humano.

A história de Blau é paralela à do sacristão: ele

também, na busca do boi barroso, embrenha-se no Jarau,

encontra-se com o sacristão, supera as sete provas da furna e

conquista a onça de ouro encantada. Com ela chega à

riqueza, porém a solidão não lhe permite a conquista da

felicidade.

Ambos precisam de uma libertação. O sacristão,

estando diante de duas propostas: uma que apontava para

Deus, os padres, a civilização cristã; outra para o diabo, para

a mulher, para a carne, para o paganismo; optou pela

segunda.

Blau, pobre peão, conquista a riqueza; porém, todos

os que com ele negociam tudo perdem. Isso Leva-o ao

isolamento e à conseqüente infelicidade.

Como se dará a redenção de ambos? Blau devolve a

moeda e com ela a fortuna e recebe como prêmio a

felicidade. O sacristão é libertado pela tríplice saudação

cristã de Blau. O homem é o instrumento da libertação do

outro homem, sempre através da religião, da saudação cristã.

O sacristão transforma-se com Teiniaguá, num casal de

agricultores.

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As metamorfoses da princesa árabe, em lagartixa, em

moça bonita, em velha carquincha, em tapuia formosa; do

índio em sacristão, em vulto de face branca e tristonha, em

guasca desempenado, e, por fim ambos em casal de

agricultores são metáforas que trazem para o presente esses

discursos outros do passado para o presente, e são vozes das

culturas subjacentes à nossa cultura.

Na lenda, os conflitos são resolvidos. O mundo

cristão e transcendente faz concessões às tendências naturais

do ser humano, no momento em que punha em risco a

própria sobrevivência.

A mulher, princesa árabe, metáfora do mal e do

erotismo, que perturba e corrompe o macho,

metamorfoseia-se em agricultora, metáfora da mulher

comportada, que pauta seu comportamento pela obediência

aos preceitos da moral cristã.

No seu conjunto, a lenda é metáfora do processo de

civilização do Rio Grande do Sul, marcando um

desenvolvimento que levará à industrialização,

domesticando a natureza e , com ela, os homens: o lago que

ferve transforma-se em sangão pacífico, sob a invocação dos

padres; e o casal rebelde torna-se casal comportado.

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Assim, a lenda, traz, nos discursos do presente, os

discursos do passado, desde a cultura grega clássica,

passando pela européia, pela cristã, pela árabe, pela

indígena, formando o discurso polissêmico da cultura

contemporânea.

Referências Bibliográficas:

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e

heterogeneidade constitutiva: elementos para a abordagem

do outro no discurso. Paris: D.R.L. A. V., 1982.

HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1976.

LOPES NETO, João. Simões.. Lendas do Sul. Porto Alegre:

Globo, 1965.

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10 - O CIVISMO NA VIDA E NA OBRA DE JOÃO

SIMÕES LOPES NETO

Zênia de Leon 145

Pelotas há muito deixara o primitivismo dos campos, para se

tornar uma cidade evoluída, e acreditamos que ante os olhos

atentos de Simões Lopes, ela deveria dar mais um passo à

frente: o do civismo. Na verdade, vinha já recebendo os

insuflares republicanos e abolicionistas desde os

memoráveis tempos farroupilhas, idéias passadas no ardor

dos nossos heróis, ou pelos sopros europeus, de Coimbra e

Paris, através dos estudantes da elite econômica pelotense

em em especializações no exterior. O civismo estava

reservado no íntimo dos cidadãos, recessivo em todos os

pelotenses, e, bastou o clamor de Simões para que ele

aflorasse como resposta.

Com os cumprimentos a todos, gostaria de agradecer

a gentileza dos organizadores por terem se lembrarem-sedo

da minha pessoa para falar sobre O civismo na vida e na obra

de João Simões Lopes Neto, quando tenho

145

Escritora e pesquisadora.

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apenas trabalhos feitos sobre a História de Pelotas, de modo

geral, notadamente sobre o patrimônio arquitetônico

pelotense, sem a especificidade de Simões Lopes Neto.,

Assime havendo tantos compondo uma legião de elite, de

especialistas no assunto, crendo dever-se tal convite à

generosidade dos organizadores deste simpósio, o que

humildemente agradeço.

Também gostaria de parabenizar a Universidade

Católica de Pelotas pela criação, dentro de seu contexto

educacional, de mais um Núcleo de Estudos Simonianos na

cidade, o que vem somente somar, criando oportunidade de

expansão do conhecimento da obra do escritor. Diz a

sabedoria: que ―deva-se criar sempre mais entidades

culturais: mais escolas, mais universidades, mais jornais,

mais clubes literários, mais academias de letras‖, e eu diria

ainda: mais centros de estudo como este, pois assim mais

―estaremos caminhando para a libertação cultural sem

freios‖, palavras de Teófilo Galvão em seu livro: A educação

como Processo de Libertação. E Simões Lopes Neto merece

que lhe dediquemos sempre o extremo das nossas atenções

Usando da honrosa oportunidade de participar deste

Simpósio, iniciaria dizendo que João Simões Lopes Neto

emprega em suas obras o senso telúrico, o amor acendrado às

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coisas gaúchas, o que não deixa a menor dúvida, pois é esse

senso telúrico e esse acendrado amor às coisas gaúchas que o

caracterizam como escritor regionalista gaúcho, aliás, aquele

que eternizou de maneira mais autêntica os aspectos

regionais do Rio Grande do Sul através da literatura.

Entretanto, há, na vida e na obra de João Simões Lopes Neto,

dois pontos antagônicos que se sobressaem, ou sejam: o

sentido rural e telúrico e o nacionalismo.

Então, para falar em civismo na vida e na obra de

João Simões Lopes Neto, fica um questionamento: O que lhe

despertou a idéia do civismo? Que forças o fizeram atalhar

mais uma vez, dos tantos atalhos que teve na vida, desde os

empreendimentos com pequenas indústrias e empreitadas

mal sucedidas, para entrar na ala da compreensão do ser

humano que leva a conhecer e olhar a Pátria com o respeito

que ela merece?

Levado pelo sentimento ufanista nacional de seus

contemporâneos Afonso Celso, Coelho Neto e Olavo Bilac,

foi aliando ao espírito local o sentimento nacionalista. Esta é

apenas uma conjectura minha. O civismo em João Simões

Lopes Neto, então, se manifesta-se nas Conferências; em

projetos de comemoração pública do 1 º Centenário da

cidade; no apoio à criação da Revista do 1º Centenário da

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cidade de Pelotas, na qual foi seu redator, pesquisador,

editor, enfim, aquele que assumiu incondicionalmente sua

publicação; no apoio e participação efetiva no Tiro de

Guerra, fundado em Pelotas 9 de agosto de 1913; na

publicação da Coleção Brasiliana, como fator de

contribuição ao fortalecimento do amor pátrio, também na

fundação da União Gaúcha, no cultuar do regional, pelo que

representava na época, no resguardo das fronteiras

brasileiras, serviço militar, educação, enfim,

desenvolvimento nacional como um todo.

É que ele, e aqui está apenas um aspecto de seu

perfil psicológico, assume a posição de defensor das coisas

pátrias, também por ver certo desprezo ao que é brasileiro e,

ao contrário, por reconhecer valor nas coisas brasileiras, fato

mais ou menos despercebido num tempo em que valia mais o

europeu, vendo entristecido, diluídas, as preferências pelo

nacional.

Outro fator detectado, acredito, por ser simpático ao

positivismo e à prática maçomn, haver ingressado na Guarda

Nacional da Comarca de Pelotas (nomeado tenente em

1894), em fase inicial de organização, e o cargo de

secretário da unidade. Teve, aí, por certo tempo, uma ―vida

de caserna‖ onde assumiu o seu papel militar e, como tal,

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enquadrou-se num civismo obrigatório e consciente. Diz

Carlos Reverbel que o seu batalhão, o 3º Batalhão- ficou

aquartelado em Pelotas, mesmo porque a sua missão

precípua era guarnecer a praça. Como essa cidade não foi

atacada, nem sequer ameaçada diretamente pelos maragatos,

a unidade de João Simões Lopes Neto não chegou ―a sentir o

cheiro da pólvora‖.

É nesse batalhão que vemos João Simões Lopes

Netonosso escritor empenhar-se numa campanha cívica,

mesmo que antes tenha ridicularizado a Guarda Nacional,

chegando a dizer o seguinte: ―Eu tive campos, vendi-os;

freqüentei uma academia, não me formei; mas sem terras e

sem diploma, continuo a ser...um capitão da guarda

Nacional‖. (capitão por decreto em 1901). Em 1906 foi

considerado- o evangelizador do civismo rio-grandense 146

.

João Simões Lopes Neto formou seus conceitos

sobre civismo nas práticas de leituras, observações gerais, no

Tiro de Guerra, ndos estudos para conferências e usou a

imprensa e a ―Coleção Brasiliana‖ para transmitir aos seus

patrícios os seus ensinamentos cívicos como meio de

146

Cf. Almanaque de Pelotas, 1918, p.166.

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reavivar o sentimento pátrio que via tão enfraquecido.

Simões Lopes Neto teve este despertar dez anos antes

que Olavo Bilac encetasse sua campanha cívica no Brasil,

principalmente motivando o serviço militar obrigatório e

fundando a Liga de Defesa Nacional. Entendia ele que o

sentimento local estava extinguindo o sentimento pátrio. E

as causas disso, num país já naquele tempo, de

multiplicidade cultural e étnica, devido àa grande extensão

territorial, àas dificuldades de comunicação, àas distâncias,

àas etnias, ao clima. A história, a geografia, os costumes, os

tipos físicos, agrupavam indivíduos em suas regiões e fazia

com que houvessem apenas cariocas, paulistas, paranaenses,

cearenses, gaúchos etc., menos ou poucos, brasileiros. A

unidade nacional estava sendo prejudicada e, o único

remédio, segundo Simões Lopes, seria a ―Educação Cívica‖.

Percebe-se uma tênue mas inicial atenção ao civismo

em Simões Lopes Neto quando na segunda fase das Balas de

Estalo, em 1889- ainda no jornal A pátria, ao incluir nos

triolés a temática do cotidiano- política. Pelotas, motivada

pela vários intelectuais que viviam em São Paulo, foi

influenciada para a causa republicana e abolicionista.

Centralizando uma reflexão sobre o início da carreira de

João Simões Lopes vamos encontrá-lo na sua primeira

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publicação, em 1888. NFoi no jornal A Pátria, que era de seu

tio Ismael Simões Lopes, publicou de um poema em

português a que deu o título Rève, em francês. Note-se que

ele estudou no Colégio Francês de Aristides Guidoni, (tendo

sido colega dos irmãos Gonçalves Chaves) . Mais tarde,

vamos encontrar outro título em francês em uma das suas

crônicas, série que fez no jornal A Pátria - O Rio Grande -

(à Vol d‘ Oiseau). Bem mais tardePosteriormente, ele iria se

rebelar-se contra a preferência ao estrangeirismo.

São sutilezas na vida do escritor que nos revelam,

pouco a pouco, a trajetória do espírito norteador de toda uma

campanha em favor do que é nosso.

A própria fundação da União Gaúcha, - 09 de

setembro de 1899- liderada por João Simões Lopes Neto, é

um realce ao civismo. Embora mesmo que revivendo as

tradições gaúchas no contexto nacional que, desde 1950 leva

o nome do escritor. Foi na, tanto que é dentro da União

Gaúcha que, em 7 de setembro de 1903, se criou-se o ―Tiro

de Guerra 31‖, uma entidade eminentemente cívica, sob a

presidência do Dr. Ildefonso Simões Lopes., em Nacuja ata

de fundação, constavam as palavras: ―‖ Ligados pelo mesmo

desejo de paz, porém deliberadamente solidários ante o culto

cívico da integridade, da ordem e do progresso da Pátria,

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resolvemos fundar e declaramos fundada a Sociedade de

Tiro Brasileiro de Pelotas, sob os moldes e para os fins da ‖

Confederação do Tiro Brasileiro‖. Festivamente instalada

em 12 de outubro daquele ano de 1908, ela iria desenvolver

importante atividade cívica e ter o privilégio de possuir a

primeira linha de tiro do Brasil. João Simões Lopes chegou a

ser presidente da entidade e discursou algumas vezes em

ocasiões especiais, na Biblioteca Pública, com muito ardor,

indo repetir sua conferência-la, ampliada nas cidades de

Bagé, São Gabriel, Santa Maria, Rio Grande e Porto

Alegre, na Academia Rio-grandense de Letras. Acredito

que foi aí neste aspecto que se concentra mais

acendradamente o espírito de civismo em João Simões

Lopes Neto.

Poderia transcrever para os leitores algumas dessas

conferêencias, mas é claro que não o farei para não cansá-los

mas posso citar alguns trechos interessantes. Neles,

lembrava os autores de livros que forneceram subsídios na

sua formação cívica, como: Melo Moraes, Sílvio Romero,

Rodrigo Otávio, Fagundes Varela, Manoel Bonfim e mais

alguns mestres . Também fazia indicação de livros dizendo

que todos os brasileiros os deviam conhecê-loser e estimar -

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Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso Júnior;

Educação Nacional, de José Veríssimo.

Barbosa Lessa, em seu livro Nativismo, comenta a

leitura das conferências de Simões Lopes, da seguinte

maneira: ―Dos ensinamentos colhidos na leitura das

conferências proferidas pelo capitão Simões Lopes, aprendi

dois mandamentos capitais: Se me é lícito comparar o livro

dos livros – a Bíblia – com os ensinamentos assimilados da

referida conferência, diria que são os seguintes: o primeiro –

amai a Pátria sobre todas as coisas e o segundo semelhante a

esta – é – sede de um espírito nacionalista inquebrantável ,

capaz de resistir a todas as procelas. Destes dois

mandamentos dependem todas as leis e educadores‖. O

nosso capitão, sobre o amor pátrio, na referida conferência,

disse o seguinte:

―Mau patriota, desleal cidadão fora aquele que, não

sei sob que falso pejo, entendesse menos amar à Pátria,

dissimulando-se os erros, cuja emenda está exigindo sejam

divulgados e conhecidos. Não! A pátria quer ser amada sem

reservas, mesmo com os senões e faltas dos seus filhos e das

suas instituições. As virtudes, os vícios de um país, não são

senão os vícios e as virtudes de seus filhos. A pátria, essa, na

sua figura ideal e amada, paira acima dos nossos erros e das

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nossas paixões; e atacar a inópia dos que a constituem ainda

é estremecê-la no final desejo de a ver não só objeto do nosso

amor, mas fonte do nosso orgulho, pira do nosso entusiasmo.

―O sol que no alto do céu profundo, às vezes , se vela

num manto de brumas, não deixa, por isso, descer o mesmo

maravilhoso foco de luz, de vida e de calor.

―Assim, esta bendita Pátria predestinada a tão

fecunda, como que em espontânea revolta, rompe contra as

causas acidentais do entravamento e lampeja para o futuro

fachos de intensa claridade, de esperança e de conforto.

―O amor àa Pátria alenta-se e vigora-se pelo

conhecimento desse passado e do presente e da fé no seu

futuro.

―O homem morre, as gerações se sucedem, mas a

Pátria fica e sobrevive e segue avante, e mais e sempre,

librada na saudade dos que tombaram e na aspiração dos que

surgem‖.

Sobre o espírito nacionalista proferiu ainda as

seguintes palavras:

―Nenhum povo hoje pode ser grande, sem esse

sentimento. Nenhuma nação pode ser forte, sem nele

apoiar-se. É ele o mais sólido elo da nacionalidade e o mais

forte estímulo dos cidadãos.‖

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Das causas, além daquelas às quais já nos referimos,

tais sejam: diferenças climáticas, culturais, étnicas, existiam

falhas nos livros de leitura que deveriam ser reformados,‖

cumpre que ele, o livro, seja brasileiro pelo assunto, pelos

pontos reproduzidos, pela história, pela tradição, pelo

sentimento nacional que o anime e faça estimar‖.

―Seria de inigualável triunfo o do escritor brasileiro,

patriota e iluminado, que pudesse vencer o dificultoso

problema de fazer um livro de leitura primário, adaptável e

ajeitado a tão diversos meios de ser e de existir, no nosso

país‖.

Simões Lopes pronunciou a sua primeira

conferencia sobre educação cívica, na Biblioteca Pública

Pelotense, em 14 de julho de 1904. A mesma trazia como

sub-título- Terra Gaúcha.

―Pois bem, no fim dos tempos, no turbilhão

desencadeado das fatalidades, a nação, o povo brasileiro,

tenha de aniquilar-se e perecer, seja nascido de ventre

brasileiro, o último, filho, cidadão soldado, para lançar mão

decidida do pavilhão auri-verde -sagrada imagem da pátria

que se afunda, e nele envolto e nele amortalhado penetre os

umbrais da eternidade, sem deixar ao vencedor mais que a

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lembrança de um povo que sucumbe, mas não sobreviveu

para o escárneo, nem a submissão.

―Mas até lá, que a terra do ― Cruzeiro‖, no cenáculo

da pátria universal, possa repetir e sustentar o hino da plaga

lusitana; que na tuba da fama, a voz do passado ressoe no

futuro: que o verso camoneano, que foi epopéia para

Portugal, seja profecia para o Brasil, sempre, quando e onde.

Cesse tudo o que a antiga musa canta, que outro valor mais

alto se levanta!‖

Um aspecto, de enfraquecimento do nosso

nacionalismo, levantado por Simões Lopes de

enfraquecimento do nosso nacionalismo foi a falta de culto

às nossas tradições. ―Práticas e usanças estão sendo

esquecidas‖, dizia ele. ―Hábitos de família, costumes

tradicionais, características desprezadas, resvalam para um

lamentável abandono. Estamos, sim, é falsificando,

deturpados, pelo convencionalismo ingrato, intencionado

por uma gravidade, doentia, de importação, mal

encaminhada e mal havida‖. ‗Não temos cânticos

patrióticos, nem sabemos cantar; ou trauteamos abrejeira

cançoneta estrangeira ou enlanguecemos na serenata ao

violão‖.

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Assim ia ele, em suas conferências, denunciando,

chamando atenção para aspectos até então ainda não

observados. Além da precariedade do jornalismo da época,

da legislação que mereceria reparos, criticando o Congresso,

; falou na deturpação das finalidades dos feriados nacionais e

até reproduzimos algumas de suas palavras em referência:

―Enquanto outros povos festejam solene e

ruidosamente as suas grandes datas nacionais,as nossas caem

no olvido e no abandono; o povo vai-se tornando

desinteressado na comemoração que elas lembram e numa

embrulhada confusão de feriados e dias santos- só

aproveitamos daí a folga de um dia ou meio dia de trabalho –

para ir à pesca ou ao bilhar. O nosso país ée o país dos

feriados (já naquele tempo! observação nossa), os dias úteis

minguam, sem ainda haver estabelecido conduta geral neste

sentido. Se um grupo de patriotas mantém e proclama a

necessidade das comemorações cívicas e as realiza, no dia

em que delas não cuida, de outra parte não lhe vem o

incentivo. Ainda não instituímos as grandes festas públicas,

como as manobras militares e as civis de ginástica, de tiro, de

remo, a coincidir com as nossas datas nacionais, a fim de

radicá-las ao ânimo e ligar a sua tradição a esses grandes

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espetáculos, que devem ser como escolas populares, por

exemplo.

―O nosso 21 de abril, o 7 de setembro, o 15 de

novembro, se diluem na memória do povo e não é a

ingratidão que isso faz: é a falta de educação cívica‖.

Recordar é viver, e o povo que fecha o coração e a memória à

relembrança das suas grandes datas históricas- é digno de

lástima‖.

Simões comenta também as falhas cometidas durante

a execução do Hino Nacional, o respeito aos monumentos,

enquadrando- as como falta de civismo.

As conferências cívicas de João Simões Lopes Neto

tinham como objetivo a denúncia de que a unidade nacional

estava ameaçada e ―começou a extinguir, com seu brado, a

onda de desânimo que pelo país afora avassalava as almas‖.

Ele apontou as causas e indicou o remédio para debelar o

mal.

Com referência à Revista do Centenário que, como

dissemos, foi criada numa reunião de diretoria na Biblioteca

Pública, no ano de 1911, onde se propunha-se a confecção

edição de um livro com o qual se comemorasse o Centenário

da cidade. e que Mas, pelo exíguo tempo, optou-se por

fazerpela publicação de uma revista. Simões Lopes assumiu,

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incondicionalmente, a sua execuçãoelaboração. Foi ele o

pesquisador e o captador de recursos, quer dizer, o

publicitário. Imprimiu Despertou tanto entusiasmo que ela

foi publicadasaiu, mesmo com os maiores sacrifícios, num

projeto ousado, onde eleem que foi seu organizador e editor.

O centenário da cidade somente aconteceria ano seguinte.

Simões Lopes escreve oito números, sendo que os números

sete sai acoplado aoe número oito saem acoplados. A

explicação vem com a desculpa verdadeira de que os dois

números haviam saído com atraso, depois da comemoração

em 1912, devido a uma doença comde demorada

convalescença de que ele havia sido acometido. Ele já

andava doente e pouco de vida lhe restaria a partir dali, fato

não percebido pelos íntimos.

A revista Centenária é, entretanto, o seu primeiro

projeto jornalístico. Um projeto ousado que, tendo surgidou

em 1912, quando a mente de Simões Lopes, impregnada de

entusiasmo, apresentou-afê-la como medida preparatória às

comemorações ao 1 º Centenário da cidade. Com acendrado

amor às nossas tradições e denodo dedicação às coisas

nacionais, também amor a cidade natal.

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É nesse clima que ele se revela-se, segundo palavras

de seu amigo Pinto da Rocha‖ a alma e o movimento, e em

torno de seu nome, girou o espírito local‖.

Pelotas chegara ao seu centenário como cidade

progressista- comércio e indústria bastante desenvolvidos,

imprensa atuante (sete jornais diários em circulação), nomes

ilustres na comunidade. João Simões Lopes Neto pretendeu

publicar um livro para a impressão da obra em homenagem à

cidade centenária. ―E, para não mostrar-se alheio à

comemoração que agitara, que prometera, sobre a criação da

freguesia de São Francisco de Paula, teve de limitar-se à

publicação de uma revista efêmera, de pouco alcance, que,

com custoapesar de muito gasto e por poucos meses, pode,

atabalhoadamente, agüentar sobre os ombros. E não fez o

que queria e era capaz de fazer‖.

Uma coisa lhe assomou promissora: a criação da

Semana Centenária, que seria comemorada anualmente.

Da Revista Centenária, foi o seu redator, e

organizador , e seu publicitário, o que. Cconseguiu contratar

a propaganda para sua edição. Assumiu a tarefa sozinho. Já

nesta data, o escritor encontra-se empobrecido, morando na

casa do cunhado e ingressa apenas como redator

remunerado do jornal A Opinião Pública.

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Os festejos do centenário da cidade são realizados

depois de uma conclamação bombástica pelo jornal Opinião

Pública, no qual chama estudantes a participar de maneira

alegre. Mas ele se encontra uma pessoa em declínio físico e

desiludido. Nas crônicas da época, percebe-se um Simões

amargurado, lutando com sacrifico para fazer publicar seus

artigos no jornal diariamente. Ainda prepara a Semana

Centenária que ele não quer deixar morrer.

No Opinião Pública, publica Os Casos do Romualdo.

No fim da vida, em 1913, volta ao Correio Mercantil,

desta vez como diretor, uma oportunidade que merecia, mas

um pouco tarde. Iria publicar editoriais magníficos( mantém

editoriaismantidos com a missão de sustentar a candidatura

de Ramiro Barcellos); mantém conserva a coluna literária e

artística, aos domingos, transformando o jornal Correio

Mercantil num grande jornal. Termina o ciclo no Correio

Mercantil em 1915.

Retorna ao jornal Opinião Pública, como um simples

redator e ainda produz a coluna – Temas Gastos, em que

retrata a sua fase decadente, pois Simões se achava -se muito

doente. Em 14 de junho de 1916 vem a falecer de úlcera.

VBem, voltando aos preparativos para asàs

comemorações da Centenária, lemos nas páginas do jornal

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Opinião Pública a conclamação feita pelo jornal mesmo é

realmente eivada de entusiasmo, incitante, que realmente

contagiou a todos:‖ Pelotas é, atualmente, o segundo centro

didático do estado. Aqui já é numerosa a corte de estudantes.

Mantém cinco escolas superiores; a de Agronomia e

Veterinária; a de Comércio; a de Odontologia, a de

Farmácia; a de Agrimensura, estando em organização a de

Direito; dos ginásios, Gonzaga e Pelotense, cursos

secundários em vários institutos e colégios; escolas

primárias públicas e particulares, em muitas dezenas; tem

todas as aulas, o elemento feminino tem comparecido a

disputar a competência técnica. Entre vós, oradores, poetas,

quem desenha...‖ Assim ia ele impondo entusiasmo às

comemorações, inflamando a juventude a festejar o

centenário da cidade.

Na Revista d‘O 1º Centenário de Pelotas, Simões

Lopes Neto pode colocar todo seu sentimento cívico fazendo

chamamento aos estudantes para os festejos, principalmente,

as bandas de música e até comprometendo as confeitarias

que já naquela época, em 1911, eram numerosas. Imaginou

ele estender uma enorme mesa de doces em frente à

Prefeitura, num comprimento de cem metros e ali colocar

doces recolhidos por estudantes nas casas comerciais do

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ramo, em tons de humor sadio, bem ao gosto da época, com

sugestões de visitas ao intendente, às redações dos jornais.

―A postos, estudantada! A Centenária está aí! Que se

nomeie comissões. Essa comissão, de gravata flamante, flor

ao peito e cartolas...fósseis, vai aos jornais: no Diário

Popular, engrossa o Cunha Ramos e o Paradeda; no Correio

Mercantil, pega no bico do Souza Lobo e do Caldas; na

Tribuna, chalereia o Manoel Veríssimo, o Demerval; na A

Redação, acha bonito o Trebi e elegante o Fróis; aqui na

Opinião Pública, diz que o Gomes da Silva tem estatura de

Adamastor, o Vilarinho a força de Sanção; e ainda no O

Arauto, compara-o ao Times...e na A Cavação,com todo o

caradurismo, jura que o faeton do Carlitos é mesmo muito

sinart... E, no meio de toda essa conversa fiada, a comissão

vai atirando barro à parede, isto é, pedindo auxilio de letra de

forma, uns pós de boa vontade, umas pitadas de bom

humor‖. Assim, segue-se a conclamação ainda sugerindo

cortejos e paradas em lugares próprios e discursos, merenda

coletiva ao longo da praça e uma grande polonese que

terminaria no átrio da Biblioteca Pública Pelotense. Uma

autêntica festa pública, sem a organização governamental,

encabeçada por um idealista e cultor do amor às suas raízes,

ao chão citadino e realizada pelo povo ordeiro, contagiado

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pelo entusiasmo de um civismo que brotava pelo fervor de

um intelectual.

A Revista d‘O 1º Centenário de Pelotas foi um marco

importante para o conhecimento de nossas origens,

participando com ela, do sentimento de amor á pátria. Na

revista constam dados sobre Pelotas- origens, vultos ilustres,

acontecimentos importantes, economia, charqueadas,

comércio, indústria, trabalhos de pesquisa sobre Canguçu,

edilidade, curiosidades históricas etc. Com ela, favoreceu ao

conhecimento, ao culto de nossa história e dos valores locais.

Um dos empreendimentos que mais evidenciam os

propósitos cívicos de João Simões Lopes Neto, é a criação

da ―Coleção Brasiliana‖ de cartões postais, feita para

transmitir aos seus patrícios os seus ensinamentos cívicos

com a finalidade de reavivar o sentimento nacionalista que

julgava enfraquecidos.

Tendo sido um autodidata na formação cívica,

valeu-se do Tiro Brasileiro 31, das conferencias na

Biblioteca Pública e da coleção de cartões para difundir o

sentimento cívico. A sua contribuição para o fortalecimento

do amor pátrio na coleção de cartões, foi notável e é, até

hoje, para quem pode guardar. Retorna ao jornal Opinião

Pública como um simples redator e ainda produz a coluna

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–Temas Gastos, que retrata a sua fase decadente, pois

Simões se achava-se muito doente e, em 1916, vem a falecer

de úlcera.

Tendo sido um autodidata na formação cívica,

valeu-se do Tiro Brasileiro 31, das conferencias na

Biblioteca Pública e da coleção de cartões para difundir o

sentimento cívico. A sua contribuição para o fortalecimento

do amor pátrio na coleção de cartões, foi notável e é até hoje,

para quem pode guardar ou colecionar, pois representa um

patrimônio do conhecimento. Seriam 12 séries de 25 cartões

postais cada série, todos eles com motivos nacionais, um

autêntico manual que vulgariza fatos brasileiros. Somente

duas séries vieram á lume, confeccionadas na litografia do

artista gráfico francês, estabelecido em Pelotas, Eduardo

Chapon, o mesmo que imprimiu a revista A Ventarola. A

qualidade gráfica impressiona pela perfeição de linhas e

cores. Um cabeçalho diz: ―Colleção Brasiliana de

vulgarização de fastos da história nacional- em 12 séries de

25 gravuras- realizada por João Simões Lopes Neto‖. Estes

dizeres se encontram-se no frontispício do cartão, dispostos

em duas faixas que se entrecruzam. Na primeira série,

bandeiras nacionais, brasão da República, selos, moedas,

notas, medalhas, comendas, topes cívicos, toques de

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clarinetas militares com pautas musicais, foto do obelisco à

república no Areal, espadas, detalhes de cabo de espadas,

com seus significados. Na segunda série, gravuras de

escravos, índios, fotos de pinturas da 1 ª Missa no Brasil;

Grito do Ipiranga; monumentos, etc.

Sobre a importância da ―Coleção Brasiliana‖, assim

constou do catálogo da Livraria Americana em Pelotas:

―O assunto da ―Coleção Brasiliana‖ é todo nacional

e, portanto, patriótico. Dá cópia fiel dos emblemas da

soberania nacional, de todos os monumentos públicos,

estátuas, etc. e reprodução de quadros célebres de combates

e de atos solenes notáveis, desde a época colonial até os

nossos dias, túmulos, grandes invenções, obras de arte,

objetos, lugares, documentos, cenas históricas, tudo

explicado de formaem notícia concisa e clara. Nenhuma

coleção neste gênero existe no país, nos próprios livros de

instrução pública não se encontram ilustrações da ― Coleção

Brasiliana‖, algumas das quais são absolutamente inéditas e

documentais.

Quem manusear esta coleção verá e aprenderá coisas

que desconhecia, e outras de que formava idéia errônea e terá

uma verdadeira lição de educação cívica‖.

Conclusão

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Pelo que dissemos, e pelo que ainda muito se dirá

num trabalho mais profundo que não este, limitado para

vinte minutos de exposição, Simões Lopes Neto foi um

grande pesquisador, pelo observado nas fontes de dados

buscadoscolhidos, além de grande cultor das tradições

gaúchas- linguajar, vestimenta, natureza, enfim, usos e

costumes regionais. N; como no uso de expressiva

linguagem literária, notabilizando-se como dos maiores

escritores brasileiros, além de tantas manifestações culturais,

era possuidor de grande sentimento cívico que pretendeu

passar aos seus contemporâneos e pósteros, nas formas

expostas aqui.

Agradeço a oportunidade de conviver com os ilustres

companheiros neste Simpósio, e agradeço a paciência do

auditório, escutando sobre um tema nada poético, que até

fugiu um pouco do assunto central do Simpósio, mas foi

escolhido pelos seus organizadores, e procurei me

desincumbir de maneira a agradá-los, não sei se consegui,

mas foi feito com esse objetivo.

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Referências Bibliográficas:

MOREIRA, Ângelo Pires. A outra face de João Simões

Lopes Neto. 1v. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1983.

_____________________. O civismo e o espírito militar na

obra de João Simões Lopes Neto. Pelotas: UFPEL, 1999.

REVERBEL, Carlos. Um capitão da Guarda Nacional.

Porto Alegre: Martins Livreiro, 1981.

HOHLFELDT, Antônio. João Simões Lopes Neto. Porto

Alegre: Ed. Tchê, 1985.

LESSA, Barbosa. Nativismo. Porto Alegre: L&PM, 1985.

LOPES NETO, João Simões. Revista do 1º Centenário de

Pelotas. Editada mensalmente de outubro de 1911 a maio de

1912. Saíram oito números, sendo os dois últimos

aglutinados.

LOPES NETO, João Simões. Educação Cívica.

Conferências. Pelotas: Anais da Biblioteca Pública, 1904.

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SÍNTESE CONCLUSIVA DO SIMPÓSIO

Mário Mattos147

I

Nestes três dias, nos defrontamos-nos com um

variado e atrativo elenco de palestrantes.

No dia 4, com apresentação de Paula Mascarenhas, o

palestrante Luís Augusto Fischer descerrou rico panorama

de quesitos polêmicos e, por isso mesmo, instigantes sobre a

carreira literária de João Simões Lopes Neto e suas

repercussões na literatura gaúcha e brasileira. Nas

comunicações, com a coordenação de Ivone Leda do

Amaral, Eduardo Arriada revelou aspetos inéditos de

pesquisa histórica das Lendas do Sul, especialmente A

Salamanca do Jarau e O Negrinho do Pastoreio. Pelo Grupo

de Pesquisa Simoniana da UCPEL e discorrendo sobre

Hermenêuticas filosóficas da lenda A Salamanca do Jarau,

atuaram: Eduardo de Oliveira, que analisou as transgressões

éticas dos personagens Blau e Santão e subseqüente

reconstrução de identidades. Mauro Henrique Martins, que

estabeleceu paralelo entre a Caverna em A

147

Escritor e Coordenador do Núcleo de Estudos Simonianos do

IHGPEL.

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República de Platão e a furna da Salamanca, caracterizando a

travessia como processo de autoconhecimento. Blau e

Santão, com projetos inicialmente ambíguos vão até a

solução das crises de identidade, em que Teiniaguá intervém

como agente de ruptura. E, finalmente, Peterson Pedro de

Figueiredo, que lançou olhar histórico sobre a lenda,

fundamentando a relação entre a crise de Blau e a situação

econômico-financeira do Rio Grande no começo do século

XX.

No dia 5, com apresentação de Jandir João Zanotelli,

o palestrante Agemir Bavaresco em sua Análise Filosófica

da Salamanca do Jarau, interpretou com ineditismo os

arquétipos significativos dos personagens e seus destinos -

na travessia da caverna e demais episódios . Observou que

Simões numa leitura plural, desconstrói imagens - a

ocidental, do herói e a colonial, da mulher - tendendo a

fundamentar uma cultura gaúcha de hibridismo

latino-americano, com a marca ética da Resistência

Autônoma. Nas comunicações, com a coordenação de Carla

Gastaud, Luís Borges comparou Natal na barca de Lígia

Fagundes Teles a O Menininho do Presépio, de J. S. Lopes

Neto. Defendeu a validade do recurso ao milagre, na

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literatura de ficção, quando subordinado à sugestão de

sentimentos humanistas, como o amor.

No dia 6, com apresentação de Hilda Simões Lopes, a

palestrante Cláudia Antunes em O Reconhecimento em Vida

de J. S. Lopes, revelou as pesquisas feitas em fontes

primárias. Inicialmente buscara apurar o modo como Simões

escrevia. Depois, em decorrência da necessidade de medir a

recepção obtida por suas obras, foi levada a relacionar

também aspetos da fortuna crítica do escritor. Pesquisa ainda

em aberto e de singular interesse. Nas comunicações, com a

coordenação de Álvaro Barcelos, Zênia de Leon, em

Civismo e a Revista do Centenário de Pelotas, leu

compilação feita sobre as preocupações cívicas de Simões

Lopes, concluindo que as mesmas denotam patriotismo,

não necessariamente espírito militar. Oscar Brisolara, em

Análise discursiva da Salamanca do Jarau de J.S. Lopes

Neto, buscou relacionar arquétipos da mitologia grega,

vendo na lenda de Simões Lopes, situações análogas, que

sugeririam um lastro comum ancestral, a condicionar

subconscientemente a inspiração do autor.

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II

Com o presente Simpósio, o Grupo de Pesquisa

Simoniano inicia um rico e vigoroso diálogo de

interatividade entre Filosofia e Literatura. Embora sejam

dois discursos diferentes, Filosofia e Literatura têm muito a

ver entre si como disciplinas. Ao aproximar-se da Literatura,

a Filosofia dá um chão firme à sua especulação. Por outro

lado, a procura da verdade simbólica e psicológica nos

personagens e nas situações, contribui para a revitalização da

criação literária.

O dia a dia trazido pelas imagens e notícias da TV,

atesta uma angustiante demanda à filosofia: por exemplo, os

crimes chocantes, abalando a estrutura familiar, cujas causas

não se esgotam na toxicomania. Tais problemas não serão

respondidos apenas com debates na TV, onde o próprio

público, ao apoiar a pena de morte, evidencia enquadrar-se

na psique de uma sociedade doente, ou no mínimo,

despreparada para debater em alto nível. É aí que Literatura

e Filosofia precisam dar-se as mãos. Recentemente, li na

Folha de São Paulo, artigo mostrando que a literatura

européia e, particularmente, a alemã do após guerra, insiste

com sucesso na tecla de exorcizar a irracionalidade como

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principal responsável pela exacerbação da violência

humana. No século 19, Dostoievski, com seu personagem, o

estudante Raskolnikov, já abordava em Crime e Castigo a

situação limite do assassínio. A verdade psicológica do

personagem nos valeu por tratados de interpretação

filosófica.

Como coordenador do Núcleo de Estudos

Simonianos do IHGPEL, saúdo a feliz iniciativa do Instituto

Superior de Filosofia em criar de forma autônoma e original,

este Grupo de Pesquisa para estudar um autor como o

pelotense João Simões Lopes Neto, cujo projeto literário, ao

lado da excepcional linguagem poética, tem o arrojo de

entrar nas furnas da alma e nas situações limite das paixões

humanas, dando-nos a chave para chegar mais perto do

entendimento, até de fatos da realidade presente. Nossa

época está necessitada de novos personagens e novas obras

literárias de profundidade. Quem sabe ainda teremos novos

escritores, de formação filosófica?

Não podemos deixar de mencionar a valorização do

evento pelas contribuições de cunho artístico: No dia 4, a

apresentação teatral do grupo Tribo da Lua, encenou trecho

inicial da Salamanca do Jarau, que nos deixou funda

impressão pela autenticidade e talento da interpretação. A

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exposição de história em quadrinhos do artista plástico Saulo

Morales, com esplêndidos desenhos da Salamanca do Jarau

no recinto do evento. No dia 5, a declamação por Mário

Mattos do poema Jarau de Nós Outros, com

acompanhamento ao violão do acad. Fernando Luís Gallo.

No dia 6, o número musical a cargo de Fernando Luis Gallo

e seus companheiros; e as originais estatuetas da Teiniaguá,

concepção do arquiteto Serafim Pinho Dias, e execução pelo

arquiteto Cláudio Pinto Nunes, através da maquetaria da

UCPEL.

Com humildade, mas justo orgulho de seu

pioneirismo de quase 8 anos – atividade regular desde o

começo de 1995, com dois Seminários realizados, em 1996 e

2000 – O Núcleo de Estudos Simonianos do IHGPEL

congratula-se com o grupo co-irmão da UCPEL, cujos frutos

podemos verificar nas pertinentes comunicações acima

resumidas e, principalmente, no todo deste histórico evento.

Fazemos votos de que, na esteira do exemplo, surjam novos

e novos círculos de leitura simoniana, nas instituições

artísticas, culturais e educacionais de nossa Pelotas.

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ANEXO - PROGRAMA DO SIMPÓSIO SIMONIANO -

LENDAS DO SUL

Data: 04,05 e 06 de dezembro de 2002

Local: Campus I da UCPEL - Sala-auditório 406C

Local de Inscrições: Livraria MONQUELAT

Rua Gen. Telles, 558 - Fone 225 15 14 (Horário comercial)

Dia 04 (quarta-feira)

- 19h. - Apresentação: Fragmento da montagem da

Salamanca do Jarau (Grupo Teatral Tribo da Lua/Pelotas)

-19h20min. - Abertura oficial

-19h30min. - Palestra: Lendas do Sul - Prof. Dr. Luis

Augusto Fischer (UFRGS)

-Apresentadora: Profa. Paula Mascarenhas (Instituto J. S.

Lopes Neto)

-20h30min.- Debate e- Intervalo

-21h - Comunicações:

-Prof. Ms. Eduardo Arriada (FAE/UFPEL): Aspectos

históricos das Lendas do Sul;

-Acad. Eduardo Santos Oliveira, Acad. Mauro Martins,

Acad. Peterson Figueiredo (Grupo de pesquisa simoniano da

UCPEL): Hermenêuticas filosóficas da lenda A Salamanca

do Jarau de J. S. Lopes Neto

-Coordenadora - Profa. Ms. Ivone Leda do Amaral

(IHGPEL/NES)

-22h15min. - Encerramento

Formatados: Marcadores enumeração

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Dia 05 (quinta-feira)

-19h - Programa artístico: Declamação poesia Escritor

Mário B. de Mattos

-19h20min - Palestra: Prof. Dr. Agemir Bavaresco (Grupo

Pesquisa Simoniano /UCPEL) - Análise filosófica da

Salamanca do Jarau

-Apresentador: Prof. Dr. Jandir J. Zanotelli (Academia

Sul-brasileira de Letras)

-20h20min. - Debate e- Intervalo

-20h45min. - Comunicações:

-Prof. Carlos F. Sica Diniz (Pesquisador): Novos aspectos

biográficos de J. S. Lopes Neto

-Prof. Ms. Luis Borges(GPS/UCPEL): O milagre do Natal

em Lygia Fagundes Telles e J. S. Lopes Neto

-Coordenadora - Profa. Dra. Renata Requião (Secretária

Municipal de Cultura/Pelotas)

-22h15min. - Encerramento

Dia 06 (sexta-feira)

19h - Programa artístico: Músico Acad. Luís Fernando Gallo

-19h20min. - Palestra: Dnda. Cláudia Antunes (PUCRS) -

Reconhecimento em vida de J.S. Lopes Neto

Formatados: Marcadores enumeração

Formatados: Marcadores enumeração

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-Apresentadora: Profa. Hilda Simões Lopes (Instituto J. S.

Lopes Neto)

-20h20min. - Debate e Intervalo

-20h45min - Comunicações:

-Pesquisadora Zênia de Leon (Academia Pelotense de

Letras): Civismo e a Revista do Centenário de Pelotas

-Prof. Drndo. Oscar Brisolara (UCPEL): Análise discursiva

da Salamanca do Jarau de J. S. Lopes Neto

-Coordenador: Prof. Álvaro Barcellos (Soc. Mário Quintana

de Poesia)

-22h. - Encerramento oficial e síntese conclusiva: Escritor

Mário Barboza de Mattos (IHGPEL/NES)

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