Translatio 4 (2012)
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ISSN 2176-8765
Translatio
Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval
e a Recepção da Filosofia Antiga
Vol. 4 (2012)
- 01 -
THOM, Paul. The Logic of the Trinity: Augustine to Ockham (G. B. Vilhena de Paiva)
- 13 -
PASNAU, R., Metaphysical Themes: 1274-1671 (M. A. Oliveira da Silva)
- 20 -
BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals (V. M. F. R. Bragança)
- 26 -
BIARD, Joël. Science et nature. La théorie buridanienne du savoir (R. Miquelanti)
- 35 -
LIZZINI, O. Fluxus (fayd). Indagine sui fondamenti della metafisica e della fisica di Avicena
(M. C. Sousa)
Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma
publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).
Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)
Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCar) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (UFABC) •
Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo
(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UNICAMP) • Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu
Mazzola Verza (UFMG)
Revisão: Gustavo Paiva
Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-‐8765 Vol. 4 (2012)
THOM, P. The Logic of the Trinity: Augustine to Ockham, New York:
Fordham University Press, 2012, 236 p.
Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________
I.
Em uma famosa passagem do segundo prefácio à sua Crítica da razão pura, Kant
defende que a lógica seguiu, desde seu surgimento com Aristóteles, a via segura
da ciência. Isso porque, em todo esse tempo, ela não deu nenhum passo atrás
(ou seja, ela não apresentou o desnorteamento típico dos conhecimentos que
ainda não seguem a via segura) e, por outro lado, também não deu nenhum
passo adiante (o que aponta para o seu acabamento e sua completude). Decerto,
pode-se dizer que houve, na lógica, “a remoção de sutilezas dispensáveis ou a
determinação mais clara do exposto”. Talvez possamos até contar isso como
“efetivos melhoramentos”, porém eles “pertencem mais à elegância do que à
segurança da ciência” (BVIII)1. Não é difícil perceber que, se seguirmos a opinião
de Kant, não sobra muito espaço para uma história da lógica. Que, de fato, era
essa a sua posição fica claro no seu próprio curso de Lógica, onde a história da
disciplina aparece mais como um adendo do que como algo necessário para a sua
compreensão2.
Com isso, vemos que a possibilidade de narrar uma história da lógica não
é exatamente um dado, mas uma conquista teórica. Essa conquista pressupõe a
afirmação de que houve mudanças relevantes e mapeáveis nos diversos
tratamentos que a lógica recebeu nos milênios de sua existência como disciplina.
Havendo admitido que haja importantes mudanças teóricas na lógica que
justifiquem a narrativa de uma história da lógica, restam, porém, vários problemas
metodológicos, alguns comuns a qualquer estudo histórico e outros mais típicos * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES. 1 KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. e notas de Fernando Costa Mattos. Bragança Paulista/Petrópolis: Editora Universitária São Francisco/Vozes, 2012, p. 25. 2 KANT, I. Logik. Ein Handbuch zu Vorlesungen. Königsberg: Friederich Ricolovius, 1800, pp. 17-9.
2 THOM, P. The Logic of the Trinity
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desse campo preciso. Dentre os primeiros, talvez o mais urgente seja a
necessidade de decidir (i) o escopo de um estudo de história da lógica, tanto no
que diz respeito à temática como no que tange ao corpo textual utilizado (dois
problemas claramente relacionados). Já um problema que parece ser mais
característico de uma história da lógica é (ii) a decisão acerca da necessidade de
se recorrer ou não à formalização do conteúdo lógico estudado e, caso
recorramos a ela, a decisão sobre o tipo de formalização a se utilizar. Essa última
questão se torna particularmente patente quando nos deparamos com estudos
atuais sobre textos que se utilizavam de uma linguagem lógica muito distinta da
nossa contemporânea simbologia lógico-matemática.
Dito isso, é precisamente pelo ponto de vista da resolução desses
problemas que avaliarei o livro The Logic of the Trinity: Augustine to Ockham,
publicado em 2012 por Paul Thom3. Assim, abordaremos primeiramente a
maneira como Thom responde àquele problema (i) de caráter mais geral – a
saber, a definição do escopo e das fontes de um estudo da história da lógica. Ao
fazê-lo, teremos a oportunidade de seguir, resumidamente, os passos da
argumentação de Thom no decorrer do seu livro. Nesse momento, estaremos
em posição de ver como o autor busca lidar com o problema (ii) – isto é, a
decisão acerca da formalização do conteúdo lógico. Com efeito, o central no
livro de Thom parece ser este último ponto. Ainda assim, as maiores dificuldades
de sua obra surgem precisamente aí, pois não é fornecida ao leitor uma
concepção de formalização bem definida, como veremos mais adiante.
II.
Como fica claro pelo próprio título de seu livro, Thom espera fazer um estudo
histórico dos recursos lógicos utilizados, durante os mil anos que separam o
século IV do XIV, nas diversas tentativas de compreensão do dogma cristão da
Trindade, principalmente tal como ele foi compreendido pelos católicos, isto é,
como uma distinção, no Deus uno, entre três pessoas: o Pai, o Filho gerado pelo
3 A partir desse ponto, citarei sempre as páginas ou capítulos de The Logic of the Trinity entre parênteses no corpo do texto, reservando as notas de rodapé para demais referências.
3 THOM, P. The Logic of the Trinity
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Pai e o Espírito Santo, procedente do Pai e do Filho4. Disso decorre que, ainda
que o autor discuta outras concepções da Trindade presentes no início do
cristianismo – dentre estas, as posições de Ário e Sabélio (caps. 1 e 2) –, ele, em
geral, deixa de lado as formulações da Trindade outras que não a católica. Em
particular, ele dispensa pouca atenção à conhecida polêmica do filioque, que
ecoava ainda no século XIII5, a qual é apenas rapidamente mencionada em seu
texto (pp. 12-3 e 164-5). Em poucas palavras, a Trindade a que Thom se refere é
aquela da Igreja Católica. Dito isso, é preciso ressaltar, entretanto, que o seu
interesse claramente não é religioso e, nem mesmo, diz respeito diretamente a
uma história da religião. Antes, ele pretende estudar as ferramentas lógicas de
que vários autores, desde Agostinho até Guilherme de Ockham, se utilizaram
para expressar coerentemente o dogma da Trindade em sua versão católica.
Nesse caso, podemos perguntar: qual é a legitimidade de se fazer um estudo de
lógica tomando por tema a Trindade?
Thom responde engenhosamente a essa questão, ao abrir se livro nos
lembrando de que “[t]he history of logic is not just a history of logic books. All sorts of
writings provide a fitting context for logical theorizing” (p. xv). Com efeito, não há
nenhum problema em se utilizar de obras voltadas para outras disciplinas –
digamos, a teologia – como uma fonte para o estudo da forma lógica utilizada
nesses textos. Mas, se for assim, é necessário mostrar que há neles “teorização
lógica”. De fato, podemos dizer que o principal objetivo de Paul Thom em seu
livro é justamente mostrar o quão densamente envoltas por temas lógicos foram
as discussões acerca da Trindade. Para tanto, ele escolhe um aspecto bem
determinado da lógica desenvolvida na Antiguidade Tardia e na Idade Média, a
saber, a temática das categorias – em particular, tal como ela foi posta nas
próprias Categorias de Aristóteles. Assim, o argumento de Thom em seu livro é,
basicamente, que toda a discussão sobre a Trindade desde Agostinho até
4 Essa é a formulação encontrada no Credo niceno-constatinopolitano, ainda hoje adotado pelo Catecismo da Igreja Católica. Edição típica Vaticana, São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 58-9. 5 Como exemplo, citemos o Tratado sobre a procissão do Espírito Santo de Mateus de Aquasparta (MATTHAEUS AB AQUASPARTA. Tractatus de processione Spiritus Sancti. In: Id. Quaestiones disputatae de fide et de cognitione. Cura Pp. Collegii S. Bonaventurae. Florentiae: Typographia Collegii S. Bonaventurae, 1957, pp. 407-32).
4 THOM, P. The Logic of the Trinity
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Guilherme de Ockham foi permeada de um conteúdo lógico, porque todos esses
autores, em suas tentativas de descrever racionalmente a doutrina da Trindade,
se reportavam às Categorias (p. 18). Para demonstrar sua tese, Thom estuda a
concepção de Trindade tal como ela surgiu em diversos autores, se guiando pela
ordem cronológica de suas obras.
Para ser mais preciso, o método pelo qual Thom espera provar sua
hipótese é apontar como os vários autores por ele abordados se utilizam, de
uma maneira ou de outra, para compreender a Trindade, das ferramentas lógicas
estabelecidas por Aristóteles nas Categorias. Sendo assim, o próprio livro se inicia
por um estudo dos diversos temas implicados na discussão medieval sobre a
Trindade, sendo nesse começo reservado um espaço especial para uma
apresentação das Categorias à luz de algumas das suas interpretações
neoplatônicas. Dentre aquelas ferramentas lógicas dessa obra de Aristóteles que
viriam a ser relevantes nos trabalhos sobre a Trindade, se destacam as noções de
substância, de acidente (com especial atenção para a qualidade e a relação), bem
como as relações – denominadas por Thom “ontológicas” (p. 15) – que
conectam, por um lado, a substância primeira e a substância segunda e, por
outro, a substância e o acidente (cap. 1). Como veremos mais adiante, todas
essas noções e relações ontológicas são definidas pelo que Thom chama de
“análise formal” (“formal analysis”) das Categorias (pp. 13-8). Por ora, notemos
que, definidos esses conteúdos fundamentais das Categorias, Thom acredita poder
mostrar que toda a discussão sobre a Trindade, como foi dito, remete a eles em
alguma medida.
Assim, começando com um estudo dos primeiros oito livros do De
Trinitate de Agostinho, Thom discute, nessa ordem, as posições de Boécio, Pedro
Abelardo, Gilberto de Poitiers, Pedro Lombardo, Boaventura de Bagnoregio,
Alberto Magno, Tomás de Aquino, João Duns Escoto e Guilherme de Ockham,
dedicando a cada autor um capítulo. Em cada capítulo, o teor é sempre o
mesmo: são apresentadas as teses do autor em estudo sobre a Trindade,
mostrando em que momentos ele se utiliza do material contido nas Categorias e
de que maneira ou em que medida esse instrumental é por ele modificado para
5 THOM, P. The Logic of the Trinity
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se conformar às suas próprias teses. Em linhas gerais, Thom parece considerar
que as discussões sobre a Trindade se utilizam diretamente do material lógico e
filosófico fornecido por Aristóteles, porém reinterpretado para se conformar à
maneira pela qual Agostinho descreveu a unidade e trindade de Deus. Podemos
dizer que o que mais chama a atenção nos autores é o esforço conceitual para
introduzir relações e qualidades que viabilizem a manutenção, simultaneamente,
da unidade e da trindade de Deus sem, entretanto, prejudicar a concepção de
Deus como algo sumamente simples e infinito. Desse ponto de vista, o livro de
Thom parece ser interessante ao apontar certas fontes históricas –
nomeadamente, as obras de Aristóteles e Agostinho, mas também, e em menor
medida, as de Boécio e Pedro Lombardo – como o foco dos debates sobre a
Trindade na Idade Média. Ainda assim, esse não é um resultado novo ou
inesperado.
Feitas essas observações, um grande problema de The Logic of the Trinity é
o fato de que ele não apresenta as bases históricas suficientes para um estudo da
envergadura almejada pelo autor. Com isso quero dizer que, ao abordar onze
autores tão complexos como aqueles supracitados, Thom deveria se utilizar de
uma grande bibliografia de apoio que lhe fornecesse as ferramentas
historiográficas necessárias não somente para relacionar os autores estudados
entre si, mas também para interpretá-los com a acuidade requerida. Infelizmente,
não é isso o que ocorre. Três exemplos bastam para apontar esse fato.
Em primeiro lugar, o estudo feito acerca de Agostinho (cap. 2) é
sintomático a esse respeito. São utilizados somente textos do próprio Agostinho,
com remissão a pouquíssimos intérpretes do bispo de Hipona. As únicas
referências secundárias são à introdução de Edmund Hill à sua tradução do De
Trinitate (p. 20)6, a um artigo de Alain de Libera sobre Boécio (p. 22-3)7 e a um
livro contemporâneo de teologia (p. 27)8. O resultado desse desconhecimento
6 AUGUSTINE. The Trinity (De Trinitate). Translated by Edmund Hill. Hyde Park: New City Press, 1991. 7 DE LIBERA, A. “L’onto-théo-logique de Boèce. Doctrine des catégories et théorie de la predication dans le De Trinitate”. In: BRUUN, O., CORTI, L. (ed.). Les Catégories et leur histoire. Paris: Vrin, 2005, pp. 175-222. 8 MILLER, B. A Most Unlikely God. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1996.
6 THOM, P. The Logic of the Trinity
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da bibliografia secundária sobre o tema é o fato de que Thom nem mesmo chega
a problematizar seriamente a maneira pela qual Agostinho teria tomado contato
com os textos filosóficos gregos. Decerto, Agostinho admite ter lido ainda novo
as Categorias em um trecho das Confissões citado pelo próprio Thom (p. 22)9. Ele
faz, inclusive, remissões diretas a elas no De Trinitate, segundo os editores
contemporâneos deste texto10. Além disso, o bispo de Hipona também afirma
ter lido “quosdam libros Platonicorum” traduzidos para o latim por Mário
Vitorino11. Isso aponta para o fato de que as Categorias a que Agostinho se refere
poderiam ser aquelas traduzidas para o latim pelo mesmo Mário Vitorino. Essas
questões deveriam ser centrais em uma análise da influência das Categorias na
obra de Agostinho, porém Thom não dedica atenção a nenhuma delas. Com
efeito, este é um problema recorrente em seu livro: ele simplesmente ignora
qualquer questão relativa à transmissão e tradução dos textos em estudo, uma
vez que descreve o conteúdo das Categorias com base na edição de L. Minio-
Paluello12 e na tradução de J. Ackrill13 para, posteriormente, comparar todos os
demais autores estudados a essa descrição inicial do texto de Aristóteles14. É
como se todos esses pensadores tivessem lido as Categorias em grego, em uma
edição crítica contemporânea.
Um segundo exemplo é o estudo de Thom acerca de Boaventura (cap. 7).
Não há nenhuma literatura secundária utilizada, com a exceção de uma tese de
doutorado defendida em 197415 (p. 113). E isso quando há estudos de qualidade
sobre a doutrina da Trindade em Boaventura16! Essa mesma desatenção à
bibliografia secundária leva a um grande problema no trecho acerca de Duns 9 AUGUSTINUS. Confessionum IV, 16, 28, 1-7 (CCSL 27, p. 54). 10 AUGUSTINUS. De Trinitate V, 4, 24-32; 7, 21-45 (CCSL 50, pp. 210; 213). 11 AUGUSTINUS. Confessionum VIII, 2, 3, 1-9 (CCSL 27, p. 114). 12 ARISTOTELES. Categoriae et Liber De Interpretatione. Ed. L. Minio-Paluello. Oxford: Clarendon Press, 1993. 13 ARISTOTLE. Categories and De Interpretatione. Trans. by J. Ackrill. Oxford: Clarendon Press, 1966. 14 Para maiores detalhes sobre esse método utilizado por Thom, ver a parte III, mais adiante. 15 GELBER, H. G. Logic and the Trinity: A Clash of Values in Scholastic Thought 1300-1335. PhD thesis, University of Wisconsin, 1974. 16 Como exemplo, cito BÉRUBÉ, C. De l’homme à Dieu selon Duns Scot, Henri de Gand et Olivi. Roma: Collegio S. Lorenzo, 1983, pp. 81-112. Além disso, há o livro SÉPINSKI, A. La psychologie du Christ chez Saint Bonaventure. Paris: Vrin, 1948, inteiramente dedicado ao estudo da segunda pessoa da Trindade.
7 THOM, P. The Logic of the Trinity
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Escoto (cap.10), nosso terceiro exemplo, onde Thom inadvertidamente cita uma
passagem, atribuída por ele a Duns Escoto, da Reportatio parisiensis I, d. 33, q. 2,
publicada em 1639 na edição de Lucas Wadding das obras do Doutor Sutil (p.
154). Entretanto, se ele estivesse a par da bibliografia contemporânea acerca de
Duns Escoto, saberia que esse texto é tido, desde o começo do século XX,
como um conjunto de anotações do secretário deste último, Guilherme de
Alnwick, não editadas pelo próprio Duns Escoto e, por isso, hoje denominadas
Additiones magnae. Nesse caso, Thom poderia ter consultado a edição
contemporânea da Reportatio parisiensis I-A, produzida por Allan Wolter e Oleg
Bychkov entre os anos de 2004 e 200817 e mais corretamente atribuída a Duns
Escoto (essa última edição, entretanto, nem mesmo consta na bibliografia de The
Logic of the Trinity). O mais interessante é que Thom poderia ter percebido
facilmente o seu equívoco pela simples consulta da introdução de Thomas
Williams ao Cambridge Companion to Duns Scotus18 (nesse caso, um livro que está
na sua bibliografia).
Com esses três casos, quero apenas chamar atenção para o fato de que
um estudo com a abrangência objetivada por Thom deveria ser acompanhado de
um aparato de literatura secundária muito mais amplo e arrojado. Com efeito,
somente com uma base teórica muito bem estabelecida se poderia fazer a
conexão ali buscada entre os diversos autores, pois isso seria possibilitado por
um tratamento bem mais acurado de cada autor individualmente, do que se
seguiria uma melhor compreensão das relações entre eles. Como vimos,
entretanto, esse não é o caso em The Logic of the Trinity, o que é, com efeito, uma
pena, dado que a tese de Paul Thom acerca do uso das Categorias de Aristóteles
nas discussões sobre a Trindade mereceria um detalhado estudo histórico.
No entanto, esse exíguo recurso à bibliografia especializada disponível
sobre cada autor abordado aponta para o caráter do livro de Thom. Ele não é
exatamente uma história da discussão latina sobre a Trindade; com efeito, a bem 17 JOHN DUNS SCOTUS. The Examined Report of the Paris Lecture. Reportatio I-A. Latin text and english trans. by A. W. Wolter and O. V. Bychkov. 2 vols. St. Bonaventure: The Franciscan Institute, 2004-8. 18 WILLIAMS, T. “Introduction”. In: Id. (ed.). The Cambridge Companion to Duns Scotus. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 1-14.
8 THOM, P. The Logic of the Trinity
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dizer, ele nem mesmo soa como uma história da lógica utilizada nos discursos
sobre a Trindade. Para ser preciso, seu livro acaba se apresentando como um
estudo que se utiliza da história de uma discussão filosófica e teológica como a
ocasião para o desenvolvimento de um exercício lógico, a saber, a formalização
de diversas doutrinas acerca da Trindade. O que nos leva ao problema (ii)
descrito acima, que diz respeito à decisão acerca da formalização de um
conteúdo lógico.
III.
Como foi dito, o capítulo inicial, no qual Paul Thom constrói as bases de sua
argumentação sob a forma de uma apresentação das Categorias, se encerra por
aquilo que é denominado de “análise formal” desse texto de Aristóteles19.
Igualmente, todos os outros capítulos do livro se encerram por uma análise
formal das posições defendidas por cada autor estudado. Em particular, Thom se
utiliza desse recurso para mostrar, em cada caso, em quais trechos da sua
argumentação um autor em questão se afasta ou se aproxima das Categorias de
Aristóteles. Essas avaliações são feitas sempre no formato de uma comparação
entre determinadas regras e definições utilizadas e/ou introduzidas por um
pensador em particular com aquelas regras e definições que podemos encontrar,
segundo Thom, nas próprias Categorias. A dificuldade nesse ponto, porém, é que
Thom não define precisamente o que ele quer dizer com “formal” e, nem
mesmo, com “lógica”, o que torna a sua tentativa de formalização das posições
dos autores tardo-antigos e medievais um tanto quanto incompleta. Para
estudarmos mais atentamente esses problemas, comecemos com um exemplo
simples que, no entanto, deixa bem clara essa dificuldade de The Logic of the
Trinity.
Ao fim do livro, em um apêndice (pp. 181-3), Thom apresenta os diversos
“sistemas ontológicos” (“ontological systems”) que ele afirma ter encontrado nos
19 Já vimos que, para esse estudo, Thom se utiliza da edição de L. Minio-Paluello e da tradução de J. Ackrill das Categorias (ver notas 12 e 13, acima), relacionando os resultados obtidos a todos os outros autores considerados em seu livro. Ele o faz, porém, sem problematizar qualquer aspecto da transmissão histórica do texto de Aristóteles.
9 THOM, P. The Logic of the Trinity
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diversos autores que estudou. O sistema ontológico de Aristóteles, por
exemplo, é composto por 4 relações, 4 definições e 10 regras. Todos os outros
(de Agostinho, Boécio e cada um dos demais autores estudados) se compõem de
algumas das regras e definições de Aristóteles somadas a regras ou definições
incluídas pelos próprios autores (por vezes, no lugar de alguns dos elementos
das Categorias). O problema aqui é simples: não está nem um pouco claro o que
Thom quer dizer com “sistema ontológico”. Em outras palavras, o que faz de
cada uma dessas posições um sistema? E o que torna esses pretensos “sistemas”
ontológicos? Essas perguntas são simplesmente ignoradas e, assim, por falta de
uma definição que torne coesas as listagens de definições e regras aceitas por
cada autor, cada sistema ontológico parece ser somente uma série de
proposições que nem mesmo podem ser tomadas, em algum sentido, como uma
consideração completa sobre o mundo, dado que, segundo Thom, as relações
que unem seus elementos são, em todos os casos, indefinidas (pp. 181-3). Essa
dificuldade aponta para um problema recorrente no livro, a saber, a falta de
definições precisas dos termos utilizados.
Isso se torna ainda mais grave quando é somado a contradições do
próprio texto de Thom. Assim, ainda no prefácio, é dito: “I will not attempt to
deploy the machinery of mathematical logic, with its formalized syntax and semantic
models” (p. xv). Diz-se aqui, claramente, que não se trabalhará com uma “sintaxe
formalizada”, um recurso que Thom parece atribuir ao “maquinário da lógica
matemática”. Ora, como foi dito acima, cada capítulo do livro é encerrado por
um item denominado justamente “formal analysis”. Isso torna muito difícil
compreender o que exatamente Thom entende por “formal”, dado que
inicialmente qualquer análise formal é descartada do âmbito da obra, para em
seguida se tornar um de seus pilares. Poder-se-ia afirmar que Thom descarta o
uso de uma análise formal matemática, mas se utiliza de alguma outra. Nesse
caso, qual seria a outra? Ele simplesmente não diz. Essa falta de clareza na
concepção de “formalização” adotada no livro leva a uma desproporção na
utilização da simbologia lógica em seu decorrer. Assim, a análise formal das
Categorias de Aristóteles (pp. 13-8) recorre constantemente a elementos de
10 THOM, P. The Logic of the Trinity
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simbologia lógica, enquanto que a análise formal das posições filosóficas de
Alberto Magno possui somente um diagrama (pp. 127-8). Por todo texto
encontramos afirmações do seguinte tipo: “Rule 1.9 (‘a correlative’s correlative is
the original relative’) is satisfied” (p. 41), sem qualquer demonstração lógica
associada a ela. Por fim, há casos em que a “análise formal” parece simplesmente
se afastar demais do texto em estudo – isso fica patente logo na primeira
tentativa de análise formal, a saber, sobre o próprio Aristóteles. Com efeito,
Thom afirma que a primeira definição que devemos isolar nas Categorias diz
respeito à noção de “universal” (“katholou”). Ora, a palavra “universal” não surge
nas Categorias como tema central e, ainda que seja utilizada no livro (12a27),
dificilmente se poderia afirmar que ela é a base de toda a lógica aí desenvolvida
por Aristóteles. Como se vê, mais do que facilitar o estudo dos autores em
questão, a análise formal proposta por Thom arrisca nos afastar deles.
A meu ver, essas imprecisões se seguem de uma falta de clareza com
respeito àquilo mesmo que se está entendendo por “lógica” em The Logic of the
Trinity. Como vimos há pouco, o autor parece se dispor a formalizar as doutrinas
da Trindade de autores tardo-antigos e medievais sem se utilizar de recursos
formais matemáticos, mas também sem explicar o que exatamente ele entende
por “formalização”. Fica a pergunta: de que lógica ele está se valendo para essa
formalização? Ele se utiliza de recursos obtidos pelas lógicas heterodoxas
contemporâneas ou se limita a um uso estrito das lógicas clássicas? Em qualquer
dos casos, como os recursos lógicos de que ele se vale remetem aos pensadores
e, em particular, a Aristóteles? Todas essas perguntas ficam sem resposta,
mesmo porque não há uma utilização precisa da silogística. Um exemplo disso é
o fato de que nenhum dos argumentos avançados por quaisquer autores é, de
fato, representado formalmente. Dessa maneira, essa “formalização” acaba
ficando restrita somente ao enunciado de regras e definições, não se estendendo
aos próprios raciocínios desenvolvidos por Agostinho, Boécio e os outros
pensadores estudados. Todas essas dificuldades nos levam ao último ponto que
destacarei: a aparente incompreensão da lógica medieval por parte de Thom.
11 THOM, P. The Logic of the Trinity
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Logo após o trecho citado acima – a saber, aquele em que o autor ora
resenhado afirma que não se utilizará de recursos matemáticos –, são apontados
os elementos que farão parte de sua análise: “I will use notions that the medieval
themselves had at their disposal – basic semantic notions such as the distinction
between language and nonliguistic world, and the idea that between these two there
are relations of naming or being-true-of, as well as metaphysically charged notions such
as the distinction between what a term is true of and what it is essentially true of, and
the distinction between the concrete and the abstract” (p. xv). Ou seja, Thom
pretende se utilizar não de recursos matemáticos em suas análises, mas dos
recursos que os medievais tinham a sua disposição, isto é, noções semânticas
básicas. Pois bem, me pergunto o que exatamente se quer dizer com “básico”
aqui. Se “básico” quiser dizer “simples” ou “simplório”, em oposição a
“complexo”, pergunto como autores que tiveram pleno acesso à silogística de
Aristóteles e a levaram aos mais altos graus de complexidade (como é o caso da
maior parte dos autores estudados no livro) podem ser descritos como
utilizadores de recursos lógicos e semânticos meramente “básicos”? Se, por
outro lado, Thom estiver dizendo que, embora os medievais possuíssem
recursos extremamente complexos de raciocínio lógico, ele próprio vai se limitar
às noções básicas utilizadas por estes últimos (sem se remeter àquelas mais
complexas), pergunto por que se limitar ao mais básico? Por que seria isso uma
boa estratégia para expressar um raciocínio complexo?
***
Enfim, The Logic of the Trinity parece apresentar interessantes hipóteses
históricas que, ainda que não sejam exatamente novas, certamente mereceriam
um estudo cuidadoso. Entretanto, Paul Thom se vê impossibilitado de
desenvolver seriamente as suas hipóteses em razão das graves falhas
metodológicas de que seu projeto é vítima – desde o parco recurso à bibliografia
secundária até a falta de clareza quanto às noções de “formalização”, de “sistema
ontológico” e, mesmo, de “lógica” utilizadas na sua obra. Dessa maneira, ainda
12 THOM, P. The Logic of the Trinity
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que o livro apresente esporadicamente interpretações instigantes dos
pensadores estudados e se volte para um tema de clara importância para a
história da filosofia e da lógica, não podemos considerar que ele seja bem
sucedido em sua empreitada. Como dizíamos acima, a possibilidade de se
escrever uma história da lógica não é um dado, mas uma conquista. Sendo assim,
ela vem acompanhada de graves problemas metodológicos – como, aliás,
qualquer narrativa histórica. Thom se arrisca a colocá-los. Não o faz, no entanto,
de maneira clara. Por isso mesmo, ele não fornece nenhuma resposta para eles;
antes estes o enredam em um labirinto sem fim.
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PASNAU, R., Metaphysical Themes: 1274-1671, Oxford/New York:
Oxford University Press, 2011, xiii + 796p.
Marco Aurélio Oliveira da Silva* ___________________________________________
Robert Pasnau elegeu seis temas para investigar o desenvolvimento ocorrido na
história da filosofia entre o final do século XIII e o século XVII. Estes temas
organizam as seis partes do livro: matéria, substância, acidentes, extensão,
qualidade e, por fim, unidade e identidade. O diferencial da obra é a tentativa de
ser exaustiva quanto aos filósofos analisados, sem distinguir autores “canônicos”
e autores de menor relevância. Há, com efeito, várias referências a Tomás de
Aquino, Guilherme de Ockham, Descartes e Locke, mas também a inúmeros
outros autores, como João Crisóstomo Magnem, Paulo de Veneza e Henry
More, para não citar todos.
A primeira parte do livro, contudo, mostra-se, senão a mais importante, pelo
menos a que teve maiores consequências para os demais temas abordados na
obra. O norte do autor é demonstrar a evolução da concepção física
aristotélico-escolástica, dependente da noção de matéria-prima, até o surgimento
da filosofia mecanicista no período moderno. O A. apresenta o modelo
corpuscular de explicação dos corpos físicos – que os toma como constituídos
de corpúsculos indivisíveis – como central para a rejeição do hilemorfismo
aristotélico.
Contudo, como salienta o A. (pp. 8-9), as discussões sobre o
corpuscularismo não são uma inovação absoluta do período moderno, já
podendo ser observadas em autores como Alberto Magno (c. 1200-1280), Egídio
de Roma (1243/7-1316), Nicolau de Oresme (c. 1320-1382) e Alberto da
Saxônia (c. 1316-1390).
* Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
14 PASNAU, R. Metaphysical Themes
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Quanto à noção de matéria-prima, o A. dedica-se a explicitar o problema,
ou seja, como poderia existir algo sem ter alguma característica (p. 36)? O
problema central, neste caso, é a distinção entre a matéria e a categoria da
quantidade, uma vez que, para muitos autores escolásticos, a extensão (ocupar
lugar no espaço) adviria da quantidade, e não da matéria-prima.
A noção de matéria-prima esteve longe de uma posição unânime na
Escolástica. Tomás de Aquino (1224/5-1274) a tomava como uma pura
potencialidade, sem, portanto, nenhuma existência em ato. Em contrapartida,
Guilherme de Ockham (c. 1287-1347) a toma como dotada de extensão, o que o
leva, dentro de seu projeto de redução ontológica, a considerar a quantidade
uma categoria desnecessária (pp. 66ss.).
Para ilustrar ainda mais a discussão sobre a qual se debruça o A., depois de
este analisar a teoria de Paulo de Veneza (c. 1369-1424) sobre a ausência de
extensão da matéria-prima, passa a analisar a posição averroísta. Na página 62,
ele relata a importância de um livro de Averróis denominado De Substantia Orbis,
tratando-se de um texto pouco estudado recentemente, mas muito influente no
séc. XIV, principalmente quando trata da matéria-prima como algo dotado de
extensão, ou seja, entendida como uma matéria já quantificada.
Além disso, na discussão sobre que tipo de entidade seria a matéria-prima,
há também a distinção entre nominalistas e realistas, não acerca dos universais,
mas acerca das categorias – principalmente a categoria da qualidade –
notadamente nos anos 1400's (p. 83ss.).
A segunda parte da obra é devotada ao tratamento das formas substanciais. O
problema central é entender como se pode ter um conhecimento adequado de
formas substanciais de espécies naturais, uma vez que sensivelmente apreende-se
apenas propriedades acidentais.
Neste sentido, o A. apresenta a importância da tese da univocidade do ser,
seja dito da substância, seja dito do acidente. Partindo da concepção de Duns
Scotus (1265/6-1308), dado que só conhecemos a partir dos acidentes recebidos
sensivelmente, poderemos ter uma compreensão intelectual da substância, uma
15 PASNAU, R. Metaphysical Themes
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vez que o ser desta se diria no mesmo sentido em que seria dito o dos acidentes
(p. 126).
Contudo, além desta crítica de Scotus à posição tomasiana, o A. (pp. 128-
9) assinala a existência de autores céticos acerca da existência da substância em
geral, como Guilherme de Crathorn (fl. c. 1330) e Nicolau de Autrecourt (c.
1298-1369), para os quais haveria apenas distinções acidentais entre as coisas
sensíveis.
Neste ponto, o A. acusa de espantalho a argumentação utilizada por
autores modernos, como Locke (1632-1704), que acusava os autores
escolásticos de realistas ingênuos, por pretensamente julgarem poder conhecer
diretamente as formas substanciais, ao passo que os medievais saberiam que as
espécies naturais eram conhecidas apenas por suas características acidentais.
Neste sentido, não seria garantido ao intelecto humano o conhecimento de
outras formas substanciais que não a própria forma humana, que seria conhecida
por um certo ato de reflexão.
Na terceira parte da obra, o A. trata dos acidentes. O pano de fundo é a
discussão sobre as posições deflacionárias acerca da existência dos acidentes. A
discussão tem em vista os autores modernos que rejeitam a existência
independente dos acidentes, incluindo o da qualidade, tomando-os como modos
da substância. Um bom exemplo é Thomas Hobbes (1588-1679) em seu De
Corpore (esp. 8.3 apud p. 181). Em contrapartida, o desenvolvimento da questão
na Escolástica giraria em torno da consequência teológica da doutrina
deflacionária dos acidentes. Pois parece haver uma inconsistência entre tomar os
acidentes como modos da substância e a explicação dada ao mistério da
Eucaristia.
A posição crítica de Scotus à visão deflacionária sobre os acidentes, por
exemplo, decorre de sua doutrina sobre a univocidade do ser, com relação à
substância e aos acidentes. Neste sentido, Scotus, contra Tomás de Aquino,
pensa que o acidente tomado em abstrato (albedo, brancura) tem mais existência
do que o acidente tomado em concreto (albo, branco) (p.196).
16 PASNAU, R. Metaphysical Themes
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Em seguida, ao tratar da inerência dos acidentes (p. 200), o A. apresenta
como a posição de Scotus tornou-se predominante ao longo do século XIV. Em
contrapartida, as posições de autores divergentes, como Pedro Auréolo (c.
1280-1322), tiveram uma recepção negativa, sendo rejeitadas dogmaticamente.
Auréolo, com efeito, toma a brancura como um modo do pão (pp. 217-220). A
pergunta que se colocava por consequência era como explicar a mudança
substancial na Eucaristia ao se tomar os acidentes nestes termos? Portanto, ao
longo dos quatro séculos analisados pelo A., a doutrina dos acidentes tem mais
repercussões teológicas do que filosóficas; observe-se que mesmo Ockham
manteve o realismo da qualidade, embora tivesse rejeitado o realismo de todos
os demais acidentes.
Por fim, o A. apresenta o entendimento de Francisco Suárez (1550/1-1618)
e de Descartes (1596-1650), os quais elaboraram teorias sobre os modos da
substância, considerando que o modo tem um menor grau de ser do que a
substância.
Na quarta parte do livro, o A. aborda a extensão dos corpos. Este capítulo é o
ponto alto da obra, particularmente ao abordar a relação entre as substâncias
imateriais (as mentes) e o lugar no espaço, explicando como os escolásticos se
contrapunham à tese segundo a qual a mente – embora real – não existiria em
lugar algum.
Ao abordar a distinção entre extensão e mente, o A. trata do papel que o
abandono do hilemorfismo no séc. XVII teve para tornar mais difícil a explicação
do que é imaterial, como Deus e alma humana. Neste sentido, o A. afirma que
quando os autores do século dezessete colocaram em dúvida a distinção forma-
matéria, em detrimento de uma visão na qual apenas as substâncias (e talvez os
modos) existem, eles deram o primeiro passo para solapar a distinção padrão
entre o material e o imaterial. Pois, agora, em vez de um mundo divido em
forma, matéria e o composto dos dois, temos apenas um mundo de substâncias.
Como saberemos quais destas substâncias devem contar como materiais e quais
não devem? (p. 324)
17 PASNAU, R. Metaphysical Themes
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Observe-se que com o auxílio do hilemorfismo é possível “localizar” a
mente na sua relação com o composto hilemórfico do qual é forma. Em seguida,
o A. apresenta o papel que Descartes teve ao delinear a distinção entre mente e
corpo, definindo-os como, respectivamente, pensamento e extensão, rompendo
com o pensamento medieval sobre o hilemorfismo e sobre a distinção entre
quantidade e extensão (p. 324).
O A., partindo de um neologismo proposto por Henry More (1614-1687),
“holenmeric” (p. 337), explica que os escolásticos tomavam extensão em um
sentido muito preciso – o de ter parte exterior a outra parte – e não apenas o
de ocupar lugar no espaço. Neste sentido, as substâncias imateriais estariam
como um todo em cada uma das partes do espaço as quais ocupam. Portanto,
mentes não teriam extensão no sentido escolástico (pars extra partem), mas é
falso afirmar que a mente não se encontra em lugar algum. O A. considera ainda
(p. 322) que a crença de que a mente não está em lugar algum, comumente
atribuída a Descartes, surge da consideração do cartesianismo abstraído de seu
contexto histórico, ou seja, sem levar em consideração os autores contra os
quais e com os quais estava dialogando.
Na quinta parte, o A. se prende a questões históricas para explicar o que ele
considera um demorado desenvolvimento histórico no sentido de promover
uma explicação reducionista do acidente da qualidade. Por exemplo, é ressaltado
o papel da condenação eclesiástica à tese de João de Merecourt (fl. 1344-7)
sobre a redutibilidade da qualidade, na Igreja de Paris em 1347. O A. chega a
considerar que o declínio da Escolástica coincide com o declínio do realismo
sobre a categoria da qualidade (p. 418), vista como fundamental para a explicação
da transubstanciação no mistério da Eucaristia, e com a redescoberta e releitura
do atomismo.
Daí, outro dado histórico fortemente ressaltado pelo A. é a descoberta do
De Rerum Natura de Lucrécio, em 1417, que foi reimpresso 36 vezes até 1620,
além das cartas de Epicuro, acessíveis na tradução latina de 1420 de A vida dos
Filósofos de Diógenes de Laércio (p. 418).
18 PASNAU, R. Metaphysical Themes
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No período moderno, o A. tematiza a distinção entre qualidades primárias
e secundárias por Locke, pontuando que este tem em mente que será conhecida
de seu leitor a discussão de Aristóteles no livro II do Geração e Corrupção,
quando este deriva das quatro qualidades básicas (quente, frio, úmido e seco) a
existência dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar) (pp.459ss.).
Na última parte do livro, por fim, o A. se dedica à explicação da unidade e
identidade da substância ao longo do tempo. Quando trata da unidade, o A.
parte de Marsílio de Inghen (c. 1340-1396), em seu comentário ao Geração e
Corrupção, para propor que sem a admissão de formas substanciais não haverá a
distinção entre alteração (mudança qualitativa) e geração (p. 553), pois esta seria
redutível àquela.
Outra discussão proposta pelo A. é o problema sobre a pluralidade de
formas substanciais (pp. 574-6), opondo a visão unitária de Tomás de Aquino à
visão pluralista de Henrique de Gand (c. 1217-1293), Duns Scotus e Guilherme
de Ockham. Por exemplo, deveríamos admitir em Sócrates apenas uma forma
substancial (humanidade) ou várias (humanidade, animalidade, corporeidade,
etc.)?
Estas considerações são uma pequena amostra do rico apanhado de problemas
filosóficos apresentados pelo A. referentes aos quatro séculos abordados.
Quanto ao livro de um modo geral, seu maior mérito é o esforço de abordar
autores pouco estudados. O A. trata como fonte primária 100 autores e o
Collegium Conimbricense; arrisco-me a dizer que para alguns filósofos abordados,
Pasnau tornou-se a única literatura secundária disponível, já que o mesmo
assinala a exiguidade ou inexistência de comentadores nestes casos (p. 12).
Chamo atenção ao fato de que muitas das obras de literatura primária por
ele citadas encontram-se digitalizadas e disponíveis na Internet, o que permitiu
que um trabalho deste porte tenha sido realizado no interior do Colorado.
Contudo, espero francamente que este trabalho de Pasnau estimule outros
pesquisadores a enveredarem por autores tantos, tão profundos e tão pouco
19 PASNAU, R. Metaphysical Themes
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estudados.
Em suma, Metaphysical Themes. 1274-1671 é um livro a ser lido o quanto
antes, não só por medievalistas, mas também por estudiosos da filosofia do
século XVII.
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BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals, Londres:
Continuum, “Continuum Studies in Philosophy”, 2010, x + 166 p.
Vitor Mauro F. R. Bragança* ___________________________________________
O livro é o resultado de uma série de modificações formais e materiais
operadas por Todd Bates sobre sua tese de doutorado, defendida em 2003 na
Universidade da Pensilvânia. Os objetivos centrais, no entanto, permaneceram os
mesmos desde a defesa e são distintos em número e natureza: demonstrar tanto
a tese exegética de que o realismo essencialista de Scotus é mereológico, quanto
a conclusão metafísica de que o realismo escotista assim caracterizado consiste
em uma postura filosoficamente palatável mesmo nos dias atuais e que não
precisa ser tratada com “mero interesse antiquário” (p. 2).
Na cartografia filosófica, o realismo de Scotus é uma dentre as várias
localidades que constituem o mapa daquele que chegou a ser considerado o mais
representativo dentre os problemas filosóficos do medievo, ou seja, o problema
dos universais. Uma compreensão precisa dos objetivos acima listados, por
conseguinte, está intimamente atrelada ao delineamento nítido dos contornos
desse problema. Levar a cabo tal tarefa é justamente um dos papéis do primeiro
e introdutório capítulo, espirituosamente intitulado “Scotus Recidivus?” – um
malabarismo com uma palavra latina mais recorrente na literatura, “redivivus”. O
capítulo é dividido em três seções, além de uma pequena inserção inicial na qual
o autor cita, visando ilustrar o ônus da tarefa a que se propõe, passagens
depreciativas de grandes nomes da filosofia analítica dirigidas a Scotus e seu
aparato conceitual. As subsequentes três seções tratam de delinear noções
básicas dos meandros do texto: primeiramente, a superfície e o núcleo do
problema dos universais; posteriormente, diferenças fundamentais entre
ontologias com raízes aristotélicas, como a de Scotus e fregeanas; finalmente, a
* Doutorando do PPGLM/UFRJ.
21 BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals
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pequena seção III indica de modo sumário aspectos básicos do realismo de
Scotus e a estrutura geral dos capítulos seguintes. No que toca o conteúdo dessa
parcela do livro, é digno de nota que há na seção II certa confusão por parte de
Bates quanto ao fundamento da diferença entre os dois tipos de ontologia
abordados. De início, tem-se a impressão – ocasionada pelo próprio título da
seção – de que o diferencial das ontologias opostas a de Scotus é que elas
tomam eventos como seus itens básicos. Na realidade, porém, os argumentos do
texto acabam por se dirigir não somente a ontologias de eventos, mas a qualquer
ontologia que tome a noção de instanciação como tendo preponderância sobre
as noções de constituição e do par parte/todo – e é evidente que podem haver
ontologias não comprometidas com uma noção irredutível de eventos, mas nas
quais essências sejam propriedades instanciadas. Além da supradescrita confusão,
é também bastante inadequada a presença nessa mesma seção II – pertencente à
introdução – de uma análise pormenorizada do argumento de Scotus contra a
tese de que naturezas são universais em ato. O que torna esse arranjo ainda mais
surpreendente é que em sua tese de doutorado Bates situava tal trecho em um
capítulo posterior e não-introdutório.
O capítulo 2 versa sobre a concepção escotista da estrutura física das
substâncias materiais, constituída basicamente por forma e matéria. Seguindo a
linha de seu antecessor, esse capítulo é composto por três seções e um trecho
inicial onde o autor adianta os temas das mesmas, obedecendo à seguinte ordem:
matéria, forma substancial e distinção real entre ambas. Dentre os pontos ali
desenvolvidos, há alguns que merecem destaque, como por exemplo o de que
boa parte das críticas à noção aristotélica de forma substancial se devem à sua
interpretação por um viés fregeano em detrimento de um viés mereológico. De
modo geral, no entanto, o capítulo é bastante problemático. Primeiramente,
parece um tanto deslocado em relação ao restante da obra, visto que falha
sistematicamente em extrair do hilemorfismo escotista elementos conceituais
que contribuam para a abordagem do tema central do livro. A seção sobre
matéria é bastante emblemática nesse sentido, pois praticamente se restringe a
uma crítica, baseada em Aristóteles, da concepção quadridimensionalista de
22 BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals
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mudança, um tema cuja articulação com o problema dos universais parece um
tanto quanto artificial, se é que possível. Além disso, na seção III há um erro
primário na formalização do argumento utilizado para responder a uma crítica de
Richard Cross a Scotus. Para demonstrar a separabilidade total da matéria em
relação à forma, ou seja, que uma porção de matéria pode subsistir sem estar
relacionada a forma alguma, deve-se concluir que1:
◊ (¬ Rab ∧ ¬ Rac)
Bates, no entanto, apenas demonstra o seguinte:
◊ ¬ (Rab ∧ Rac)
Ou seja, a trivialidade de que a matéria pode não estar (simultaneamente)
informada por todas as suas possíveis formas.
Por fim, passa despercebido pelo autor que a assunção da premissa
necessária para conceder a distinção real a Scotus – a contingência distributiva de
uma relação implica sua contingência coletiva – tem consequências graves para a
rejeição por parte do próprio Scotus de naturezas comuns separadas. Com
efeito, cada uma das individuações de naturezas comuns é (distributivamente)
contingente. Ora, dada a premissa acima, concluir-se-ia que a individuação é, em
geral, (coletivamente) contingente e que, portanto, poderiam existir naturezas
comuns não individualizadas ou, em outras palavras, separadas de seus indivíduos.
O capítulo 3 constitui o núcleo do livro, pois se foca na mais importante
ferramenta conceitual de que dispõe Scotus para a solução do problema dos
universais, ou seja, a noção de natureza comum. Também aqui se encontram três
seções e uma introdução na qual são apontadas algumas características da
natureza comum escotista a partir do contraste com seus correspondentes
conceituais em Avicena e Tomás de Aquino. A seção I é composta por duas
partes: na primeira se mostra como Scotus situa a noção de comunidade entre
dois tipos de unidade, a da universalidade e a da singularidade; já na segunda
parte são expostos e defendidos seus argumentos a favor da existência de itens
que apresentem tal unidade intermediária. A seção II tem por função demonstrar
1 Supondo que o mundo se restrinja a esses itens, eis o léxico: a = matéria; b = forma¹; c = forma²; R = relação de informar.
23 BATES, T. Duns Scotus and the Problem of Universals
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que naturezas comuns não são ideias platônicas, e para isso se baseia, a despeito
das implicações do capítulo anterior, na inseparabilidade das primeiras em
relação aos indivíduos que constituem. Finalmente, a seção III é dedicada à crítica
mais tradicional da noção de natureza comum, ou seja, aquela formulada por
Guilherme de Ockham e que se apoia na oposição entre as noções de comum e
individual. A qualidade desse capítulo é bem superior à daqueles que o
precedem, tanto na sua articulação com o todo quanto em relação à correção e
alcance da maior parte das análises. Há, no entanto, falta de aprofundamento em
pontos importantes, como no caso dos conceitos de contrariedade e graus de
distinção, centrais para a postulação de naturezas comuns. Além disso, algumas
obscuridades do texto tendem a soar como teses exegética e especulativamente
impalatáveis. Na seção II, por exemplo, defende-se que a comunidade é uma
unidade acidental à natureza comum – algo que encontra suporte na Ordinatio –
mas o modo como é então descrita sua unidade essencial, batizada de
“indiferença”, faz parecer que não se está, na realidade, diante de unidade
alguma. Isso implicaria que ao ser intrínseco da natureza comum não
corresponde uma unidade intrínseca, ou, em outras palavras, que Scotus, no
fim das contas, segue Avicena no abandono de uma convertibilidade total entre
os transcendentais.
O capítulo 4 trata do princípio de individuação, um tema que pode ser
considerado uma extensão imediata do problema dos universais. O trecho
introdutório fornece duas formulações do problema: uma delas visa o princípio
responsável pela indivisibilidade dos indivíduos, a outra aquilo que os distingue
entre si. As seções I e II são responsáveis por analisar as duas linhas
argumentativas que embasam a solução única que Scotus oferece para ambas as
formulações, ou seja, postular a hecceidade. Na seção III encontra-se a resposta
de Bates a uma crítica de Mary Louise Gill que põe em questão a própria
legitimidade do problema da individuação. Ao fim e ao cabo, as duas últimas
seções do capítulo investigam os reflexos do hecceitismo na contemporaneidade,
contrastando várias de suas versões e mostrando como a escotista é imune a
críticas tradicionais dirigidas a doutrinas sob essa denominação. Em
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retrospectiva, as análises e argumentos contidos na seção II, referente ao
problema da distinção entre indivíduos, são um exemplo de excelência filosófica.
Aprofundados e claros, eles percorrem e avaliam todas as possibilidades lógicas
disponíveis. Pelo menos dois graves problemas, no entanto, se fazem presentes
nesse capítulo. Às teorias da individuação via acidentes – célebres no período
escolástico – são dedicados apenas dois pequenos parágrafos. Dado que essa é a
maior dentre as questões da Ordinatio sobre individuação, tem-se como resultado
um indesejável descompasso exegético. Além disso, o segundo desses parágrafos
é finalizado com a explícita admissão de que a única crítica de Scotus que é
apresentada contra tal solução, uma crítica baseada na dependência dos acidentes
em relação à substância, não funciona por entrar em conflito com sua tese de
que certos acidentes, como a quantidade, são separáveis da substância. Por suas
pretensões não serem estritamente históricas, a esperança seria de Bates ou
bem abandonar o hecceitismo escotista em favor da individuação via acidentes –
uma tese ontologicamente mais econômica – ou bem desposar outra linha crítica
contra a mesma. Nada disso ocorre. Mesmo tendo à disposição uma alternativa
elegante e sem falhas assinaladas, o autor se sente confortável em, pelo restante
do capítulo, seguir cegamente Scotus na postulação de mais uma entidade. Não
obstante, é possível que essa curiosa situação se deva a um erro de editoração,
ao invés de uma decisão do próprio autor. Essa hipótese é apoiada pelo fato de a
tese de doutorado que deu origem ao livro conter um aprofundamento
aparentemente bem maior do tema.
A meta do quinto e último capítulo é responder a objeções a uma das
ideias fundamentais do livro, ou seja, a tese de que o essencialismo escotista é
mereológico. Apesar de não haver qualquer divisão em seções, o conteúdo inclui
duas críticas básicas e é a partir delas que se deve compreender a estrutura do
capítulo. Ambas supõem que Scotus está comprometido com a ideia de que uma
substância material é mais do que a soma das suas partes; primeiro, por aceitar
que tais entidades são irredutíveis às suas partes – matéria e forma; segundo por
crer que a constituição de uma pessoa (normal) envolve uma negação de
identidade com qualquer uma das pessoas da Santa Trindade, visto que uma tal
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identidade envolveria a adição de uma característica essencial a mais, a divindade,
e portanto alteraria a essência e identidade daquela pessoa. À primeira crítica
responde-se que um essencialismo mereológico não implica uma redutibilidade
da substância material às suas partes; à segunda que pode-se traçar uma distinção
(escotista) entre pessoa e substância material. O desenvolvimento dessa última
ideia, que inclui uma discussão com outras abordagens da incarnação e da
Trindade, é conduzido com honestidade e invejável esmero conceitual – trata-se
do ponto alto do capítulo. O mesmo, no entanto, não pode ser dito da primeira.
Mesmo que se conceda a Bates que sua concepção não o obriga a subscrever um
reducionismo, ainda assim um antireducionismo como o de Scotus a enfraquece
muito, pois implica que há aspectos da substância material que não podem ser
analisados a partir dos conceitos básicos da mereologia, ou seja, os de parte e
todo. Poder-se-ia até mesmo dar um passo adiante e tomar como essenciais
esses aspectos irredutíveis. Nesse cenário, o essencialismo mereológico seria
incapaz de prestar contas sobre algo que constitui a essência das substâncias
materiais, um resultado insustentável.
De um ponto de vista global, o livro pode ser avaliado de maneira positiva.
Dado o estado quantitativo e qualitativo das publicações sobre Scotus, ele é
certamente uma contribuição de grande valia. Apesar do número de teses e
dissertações ser razoável, poucas delas alcançam as livrarias e o consequente
acesso facilitado. Ademais, trata-se de um estudo que mescla história e filosofia
sistemática, algo raro no atual âmbito do escotismo. Há, como deve ter ficado
claro, problemas das mais variadas ordens: estrutural, conceitual, lógica e talvez
até mesmo editorial. Nada disso, no entanto, é suficiente para sobrepujar os
pontos positivos do livro, como seu arrojo, inventividade, o contexto propício e,
principalmente, a coragem de encarar um tema e autor tão áridos.
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BIARD, J. Science et nature. La théorie buridanienne du savoir, Paris:
Vrin, 2012, 403 p.
Roberta Miquelanti* ___________________________________________
Existe o que podemos chamar de ciência na Idade Média? Numa acepção
estritamente moderna do termo, a resposta parece ser negativa. Este é o
equívoco, dentre outros, que o novo livro de Joël Biard vem esclarecer. Como
bem demonstra o autor, diferentemente do sentido específico que o termo
“ciência” (scientia) adquiriu modernamente, o termo “ciência” é equívoco na
Idade Média. Isso decorre tanto do fato de que o termo “ciência” cobre diversos
domínios no período, que incluem não só a física, cosmologia ou matemática,
mas também a psicologia, as artes da linguagem e mesmo a teologia, como do
fato de que envolve diferentes tipos de abordagem do objeto conhecido.
Biard parte de um estudo da concepção de ciência na obra de um dos
autores mais conhecidos e influentes do século XIV, João Buridan, para
exemplificar essa amplitude do conceito de ciência na Idade Média. Apesar da
extensão de sua obra, Buridan é contemporaneamente conhecido principalmente
devido às obras lógicas, em que temos a apresentação de sua teoria semântica,
em que noções como a de significação e a de suposição (suppositio) são
apresentadas. No entanto, nosso conhecimento a respeito da obra de João
Buridan ainda é deficiente em vários aspectos. O novo livro de Joël Biard, Science
et nature, vem cobrir um desses aspectos, ao tratar da teoria da ciência na obra
do autor. Dando continuidade aos seus importantes trabalhos sobre filosofia
medieval1, Biard nos apresenta um excelente trabalho em que aborda de maneira
* Professora Assistente na Universidade Federal de Alagoas e Doutoranda no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. 1 Joël Biard é reconhecido por importantes trabalhos em filosofia medieval, dentre eles os livros Logique et théorie du signe au XIVe siècle, Paris: Vrin, 1989 e Guillaume d’Ockham. Logique et philosophie, Paris: PUF, “collection Philosophies”, 1997, bem como pela tradução, acompanhada de introdução e notas, de importantes textos medievais, como a Suma de Lógica de Guilherme de Ockham (GUILLAUME D’OCKHAM, Somme de logique, 1re partie, Mauvezin: TER, 1988;
27 BIARD, J. Science et nature
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ampla a noção de ciência na obra de Buridan, analisando-a em seus diversos
aspectos, lógicos, semânticos, epistemológicos e psicológicos. A clareza, rigor e
profundidade do texto, bem como o esclarecimento de noções características da
filosofia medieval, tornam-no acessível mesmo àqueles que não têm um
conhecimento prévio da filosofia buridaniana. Biard percorre a extensa obra do
autor, passando desde os tratados lógicos e comentário à Metafísica, até os
tratados de física e ética, para mostrar como o autor concebe a ciência2. A partir
da abordagem ampla da ciência, Biard divide o livro em três partes, cada uma
delas voltada para uma das dimensões que o termo “ciência” assume na obra de
Buridan.
Na primeira parte, Biard analisa a ciência a partir dos seus aspectos
epistemológicos e psicológicos. Apesar do aspecto lógico e linguístico sempre
focado por Buridan, Biard está interessado em mostrar que, para o autor, a
ciência não é apenas uma linguagem, um conjunto organizado de enunciados, mas
ciência designa primariamente uma disposição ou habitus que resulta do
assentimento (assensus) a uma proposição. Assim, a noção de ciência buridaniana
envolve uma dimensão intuitiva, herdada do pensamento agostiniano, que
confere um aspecto “psicológico” à teoria da ciência e, principalmente, sinaliza
uma mudança na concepção de ciência medieval, já iniciada com Duns Scotus,
que passa a basear-se menos nas características dos objetos do que nos atos
mentais. Assim, a questão dos critérios do conhecimento científico torna-se
central no debate científico medieval, envolvendo questões como os graus de
certeza e a evidência do conhecimento, o objeto da ciência e o primeiro
princípio do pensamento. Se a noção de ciência baseia-se no ato de adesão ao
que é proposto, de tomar algo por verdadeiro com base em certas justificações,
então a questão da justificação desse conhecimento torna-se fundamental para
Buridan, pois é preciso distinguir a ciência de outras formas de conhecimento
GUILLAUME D’OCKHAM, Somme de logique, 2e partie, Mauvezin: TER, 1996) e dos Sofismas de João Buridan (Jean Buridan, Sophismes, Paris: Vrin, 1993). 2 Além da linguagem clara, o livro é rico em citações em língua francesa de textos buridanianos, acompanhadas pelo texto latino em nota, o que permite que mesmo os não especialistas usufruam o texto.
28 BIARD, J. Science et nature
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que também envolvem adesão, como a opinião e a fé. Como bem coloca Biard, a
complexidade da questão envolve, em Buridan, a dificuldade de articular dois
planos: aquele do objeto de assentimento (a proposição ela mesma considerada
segundo o que ela significa) e aquele do ato de assentimento, que deve possuir
certas qualidades. Biard mostra então que a ciência, enquanto disposição vinda
do intelecto, requer também certeza (certitudo), que não é apenas uma simples
convicção, seja ela fundamentada ou não, mas deve ser produto de uma adesão
justificada. A noção buridaniana de certeza envolve assim a firmeza de
assentimento. Contudo, apenas a certeza não é suficiente, mas deve ser sempre
acompanhada pela evidência, que, para Buridan, não é só firmeza de
assentimento, nem somente a presença de motivos para assentir. Uma das
características da evidência é que ela se impõe ao intelecto, como um tipo de
constrangimento com relação ao espírito, e que faz com que a faculdade
cognitiva seja determinada a consentir a uma verdade. Assim uma das
características da ciência para Buridan é a “certeza da verdade” (certitudo
veritatis).
Biard mostra ainda que se por essa noção de “certeza da verdade” Buridan
pode diferenciar a ciência da opinião, enquanto a evidência distingue a ciência da
fé, já que esta também é certa, isso não impede a ameaça cética: podemos
recusar a evidência do conhecimento natural com base na ideia do poder de
Deus, como, por exemplo, no caso dos milagres. A resposta buridaniana a essa
questão pressupõe a distinção entre certeza e evidência absoluta, que pertencem
apenas a Deus, e certeza e evidência condicionada ou secundum quid, relativos à
ordem do mundo, ordem que supomos regular mesmo se milagres são sempre
possíveis. Com isso, Buridan introduz um elemento hipotético a sua teoria da
ciência, que deve não só determinar quais conhecimentos são evidentes, mas
também quais podem ser reconduzidos à evidência e segundo quais modalidades.
Isso permite que Buridan possa considerar como verdadeiros e suficientemente
justificados uma grande variedade de conhecimentos científicos, mesmo que
repousem em última instância em evidências condicionadas.
29 BIARD, J. Science et nature
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Se a ciência pensada como disposição mental leva Buridan a redefinir os
critérios de certeza, Biard mostra que Buridan também se preocupa em legitimar
a característica científica das proposições e demonstrações sobre o domínio
natural, o que implica em uma redefinição da universalidade e da necessidade da
ciência, duas características tradicionalmente atribuídas à ciência na tradição
peripatética e que continuam no primeiro plano da reflexão epistemológica
durante a Idade Média. Se as proposições rementem, em última análise, a um
mundo feito de coisas singulares e contingentes, como a ciência pode ser
universal e necessária? A resposta buridaniana ao primeiro ponto passa pela
explicação de como se constitui no homem a capacidade de proferir julgamentos
universais. Buridan rejeita o inatismo como explicação da formação de conceitos
na alma humana, e segue uma tradição parisiense dos comentários ao Tratado da
Alma, segundo a qual o conhecimento se elabora sobre a cooperação das
faculdades que levam do sensível ao inteligível. Mesmo se a sensação é tomada
como ponto de partida do conhecimento humano, já que o sentido é
responsável pela apreensão do singular, o que confere um caráter empirista à
epistemologia buridaniana, Buridan reserva ao intelecto a dimensão
universalizante do pensamento, pois somente o intelecto pode apreender o
universal. Com relação à necessidade, Biard mostra que Buridan segue a
revolução semiológica ockhamista, segundo a qual a ciência tem como objetos
proposições, e a questão da necessidade da ciência passa então a ser
interpretada como se tratando de proposições necessárias. O problema desvia-
se então da questão de encontrar realidades necessárias e eternas e passa a ser o
da distinção entre tipos de necessidade que podemos atribuir às proposições em
um mundo radicalmente contingente. Buridan localiza nas proposições a
necessidade requerida pela ciência em um sentido forte. Assim, a exigência de
que a necessidade da ciência seja uma necessidade lógica, que concerne à
linguagem, leva Buridan a formular de maneira mais fina as oposições e relações
entre necessidade lógica e necessidade real. Isso permite ainda que Buridan
postule um tipo de necessidade condicionada, baseado no reconhecimento de
um curso natural da natureza, pois é ele que autoriza o uso de uma evidência
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condicionada na ciência, isto é, de uma proposição resultante de um
constrangimento que se exerce necessariamente sobre o intelecto, mesmo que
de maneira condicional.
Já na segunda parte, Biard concentra-se nos aspectos linguísticos e lógicos
da teoria buridaniana da ciência, em que a ciência é pensada em um duplo
aspecto semântico. Ela é tanto linguagem que em última análise significa os
objetos do mundo ao qual se dirige, como argumentação que desenvolve certas
formas de raciocínio ou demonstrações. Com relação ao primeiro aspecto, Biard
mostra que o domínio conceitual é organizado segundo um esquema linguístico
na filosofia buridaniana. Os conceitos são também portadores de todas as
propriedades semânticas dos termos: suposição, apelação, ampliação, restrição, o
que permite Buridan transpor ao domínio do espírito a maior parte das
distinções morfológicas e sintáticas, assim como as semânticas, produzindo uma
verdadeira teoria do mental. A mediação conceitual é indispensável não só para
se entender as diferentes maneiras de significar, mas por refletir a concepção
parcimoniosa do real de Buridan, segundo a qual não existem senão substâncias:
o real é feito de objetos singulares e os termos gerais remetem a essas coisas
singulares. Assim como a significação, Biard expõe como a suposição também é
fundamental na teoria da ciência buridaniana. Buridan define as condições de
verdade de uma proposição a partir da suposição dos termos: uma proposição
afirmativa é considerada verdadeira se é nas coisas assim como ela significa. Mas
é preciso estender a suposição aos casos onde a verificação, no sentido estrito,
não é possível. Assim, uma das divisões da suposição é de fundamental
importância para a teoria da ciência buridaniana: trata-se da suposição natural. A
suposição natural não está presente nos textos de Ockham e, em geral, é
estranha à tradição inglesa. Em Buridan ela aparece com um sentido diferente,
pois não tem ligação alguma com uma natureza comum, mas com as restrições
temporais. Enquanto a suposição acidental depende das determinações temporais
significadas pelo verbo, assim como do predicado; a suposição natural é
independente do tempo: ela á atemporal, ou mais exatamente, omnitemporal,
pois o termo supõe por todos os supósitos passados, presentes e futuros. Logo,
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o critério de reconhecimento dessa suposição passa pela impossibilidade de
falsificar a proposição em razão das determinações temporais. A suposição
natural é exigida porque frequentemente a suposição se refere a supósitos
passados e futuros como presentes, mesmo o verbo principal estando no
presente. Assim, uma proposição como “Todo trovão é um barulho feito nas
nuvens”, é tomada em suposição natural, pois mesmo que atualmente não exista
uma tempestade, toda vez que tenha havido, haja ou houver uma tempestade, a
proposição será verdadeira. A suposição natural é assim o instrumento
apropriado para a expressão da ciência.
Em seguida, Biard mostra que além de sublinhar o caráter comunitário da
linguagem ao tratar da significação, Buridan também dá atenção especial ao
caráter discursivo de todo raciocínio silogístico em sua teoria da ciência. A
ciência implica linguagem e discursividade e, logo, uma prioridade lógica de uma
proposição sobre outra, o que se manifesta em um desdobramento temporal.
Isso leva Buridan a considerar questões como a da causalidade silogística e dos
princípios do conhecimento, ideia omnipresente na tradição peripatética.
Segundo Biard, o que caracteriza o uso buridaniano é a explosão da noção de
princípio e de “o primeiro dos princípios”. Buridan admite sem discussão que
devemos ter princípios primeiros e indemonstráveis para evitar duas armadilhas:
a circularidade (falta do raciocínio) e a regressão ao infinito (incompatível com a
noção de demonstração). Biard salienta que Buridan não está interessado na
questão de podermos ou não ter certeza dos primeiros princípios da
demonstração, no sentido em que podemos sempre pensar a ameaça cética de
um deus enganador, mas está mais interessado em saber como o espírito
humano, que sempre está no meio das realidades contingentes, pode formular
regularidades, isto é, como não nos enganarmos com relação ao curso comum
da natureza. Nesse sentido, Biard considera Buridan o autor medieval mais
próximo do chamado problema da indução. Segundo ele, Buridan está consciente
das dificuldades da indução, tanto que a coloca não somente como intuição de
uma natureza universal através dos singulares, mas como a passagem de
proposições singulares a uma proposição universal. O que está em jogo não é a
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relação entre fenômenos, mas as relações entre substâncias e acidentes, e a
necessidade dessa relação. Para Buridan, a relação é inválida, pois não podemos
induzir através de todos os singulares, que são infinitos. A indução é sempre ut
nunc e não simpliciter. Mas apesar de a indução não ser formalmente válida, ela
pode ser materialmente válida. Isso quer dizer que, para Buridan, a postulação de
uma ordem natural é suficiente para legitimar a indução, a passagem de
proposições singulares a universais, sem necessidade formal.
Biard mostra ainda que a teoria buridaniana da ciência abre-se à
consideração de formas variadas de raciocínio e de argumentação, que não se
opõem totalmente à ciência, mas que se dispõem em diferentes graus com
relação ao conhecimento humano. A comparação e diferenciação entre
diferentes formas de argumentação é fundamental para sua teoria geral da
inferência, que se apoia não somente na concepção de assentimento enquanto
suscetível de intensificação ou diminuição, mas também sobre a diversificação
dos modos de certeza. Assim, o raciocínio provável também tem espaço na
teoria buridaniana, principalmente nos campos especulativos e práticos. Assim,
Buridan não propõe uma teoria da ciência como ciência total (scientia magna),
mas seu princípio da fragmentação requer analisar o estatuto epistêmico de uma
disposição mental ou enunciado como contribuindo para uma ciência total.
Por fim, na terceira parte, Biard explora a cartografia buridaniana dos
saberes. Se as formas de conhecimento nos reenviam em última análise a um
mundo feito de coisas singulares, e sendo a ciência universal e necessária, a
resposta buridaniana de como podemos chegar ao conhecimento dos singulares
e dos acidentes implica uma redefinição da universalidade e da necessidade das
regras da natureza. Nesse ponto, Biard expõe como Buridan justifica sua rejeição
total de uma universalidade real e sua posição sobre o estatuto do indivíduo.
Várias questões concernentes à epistemologia do singular entram em cena, como
as questões das categorias, o problema clássico da relação entre conhecimento
dos acidentes e conhecimento da substância, de que tipo de conhecimento é
suscetível o acidente, se há uma ciência do acidente. As respostas buridanianas a
essas questões são tanto resultado da concepção semiológica do autor, como do
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contexto de parcimônia ontológica em que Buridan se inscreve: se não há
nenhuma universalidade a parte rei, a universalidade deve ser compreendida e
explicada a partir dos mecanismos da linguagem ou do pensamento.
A revolução semiológica tem reflexos ainda na definição dos critérios de
distinção de cada disciplina. Buridan considera que as disciplinas se definem mais
por seus pontos de vista sobre o mundo do que por um domínio de objetos.
Essa concepção também leva Buridan a propor uma divisão diferente das
disciplinas do saber. Na Idade Média, a questão da divisão das ciências toma uma
forma e importância que ela não tinha em Aristóteles. O problema vem,
principalmente, de se tentar aplicar o modelo dos Analíticos, em que temos uma
concepção estrita de demonstração e exigência de dedução a partir dos
princípios não demonstrados, ao domínio teológico. Buridan parte da tripartição
aristotélica das disciplinas especulativas: metafísica, matemática, física. Mas,
enquanto para Aristóteles uma ciência se define pela natureza do ser de que ela
trata, para Buridan as ciências não se distinguem pelas coisas existentes fora da
alma: são as mesmas coisas que são consideradas por diferentes ciências
especulativas. Dessa forma, as disciplinas só podem se diferenciar em razão dos
seus pontos de vistas sobre o mundo. Para Buridan, as ciências se distinguem
mais por um “ponto de vista” conceitual, uma ratio considerandi sobre os seres,
do que por um campo de objeto: a metafísica estuda os seres em sua razão de
ser (ens), a física enquanto móveis, as matemáticas em sua razão de quantum.
Assim, se ciências especulativas tratam do mesmo mundo, e uma vez descartada
a teologia, a metafísica também não será a ciência de pano de fundo, o que
implica uma reorganização das ciências menos esquemática que a divisão
proposta por Aristóteles.
Biard mostra-nos, assim, a força do pensamento buridaniano, ao pensar do
ponto de vista semântico, epistêmico e argumentativo, uma teoria da ciência
fundada em bases naturalistas, que levam Buridan a reelaborar o discurso da
filosofia natural. A análise lógica exerce um papel fundamental de clarificação
conceitual, na medida em que denuncia a confusão entre signos e coisas, sendo,
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portanto, um elemento essencial para o empreendimento científico. O resultado
desse empreendimento é tanto uma reelaboração da concepção de
conhecimento, seja com relação às modalidades epistêmicas da crença justificada
e evidente, que caracterizam o conhecimento científico, aos procedimentos da
demonstração ou às formas de dedução e de transmissão de certeza, como a
elaboração de uma concepção sofisticada de ciência, que pensada a partir da ideia
de um curso regular da natureza implica em distinções mais refinadas dos tipos
de necessidade, como a necessidade condicional, de causalidade da natureza e de
indução.
A leitura da obra é, assim, indispensável tanto para os interessados em
filosofia medieval, como por historiadores da filosofia. Mesmo sendo um livro
dedicado à noção de ciência de Buridan, tal estudo ajuda a clarificar o que os
filósofos medievais compreendiam por ciência, auxiliando a esclarecer as raízes
da ciência moderna no período medieval. Por outro lado, os interessados em
Filosofia Medieval e, principalmente, em Buridan, poderão entender como as
noções lógicas, linguísticas e epistemológicas articulam-se no interior da filosofia
buridaniana. Assim, com seu novo livro, Biard contribui mais uma vez com a
divulgação do pensamento de Buridan, e nos incita, acima de tudo, a visitar a
obra do autor.
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LIZZINI, O. Fluxus (fayd). Indagine sui fondamenti della metafisica e della
fisica di Avicena, Bari: Edizioni di Pagina, 2011, 679p.
Meline Costa Sousa* ___________________________________________
Apresentando um apêndice esclarecedor acerca dos usos do termo fayd e seus
sinônimos em Avicena, a obra de Lizzini explora a amplitude da discussão ao
percorrer os aspectos metafísico, físico e gnosiológico daquela noção. Temas
caros à filosofia de Avicena, como a distinção entre possível/necessário,
essência/existência, unidade/multiplicidade, anterioridade/posterioridade e
bem/mal, são abordados ao longo dos capítulos de modo a contextualizar as
aparições de fayd.
O ponto de partida da investigação consiste na busca pelas origens do
“patrimônio terminológico” (I.I, p. 27) aviceniano tendo em vista as plotinianas
árabes, especialmente a Teologia de Aristóteles, e as proclianas árabes,
especialmente o Livro sobre o bem puro, editadas pelo círculo de al-Kindi. A partir
desta incursão, Lizzini constata que Avicena, como já era feito pelos autores
neoplatônicos, incorpora os vocabulários e conceitos em torno de fayd à
interpretação das obras aristotélicas e a uma “leitura teológica do mundo” (I.I, p.
35). Uma ressalva a ser levantada, e que a autora sugere em diversos momentos,
vincula-se ao cuidado de não se negligenciar a abordagem original de Avicena,
reduzindo-o à simples assimilação das suas fontes.
Após reconhecer nas obras de al-Kindi uma primeira abordagem filosófica
de criação (ibda'), já apontando as dificuldades de pensá-la em conjunção com o
processo emanativo, o qual assegura a simplicidade do Uno, passando ao Livro
sobre a opinião dos habitantes da cidade ideal, de al-Farabi, no qual a emanação é
“expressão da causalidade universal do Primeiro” (I.4, p. 61), a autora apresenta
observações gerais acerca do uso do termo fayd e das dificuldades teóricas que
* Bolsista CNPq e mestranda pela Universidade Federal de Minas Gerais.
36 LIZZINI, O. Fluxus (fayd)
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dele decorrem.
O fluxo explica não apenas o conferir existência a partir do Existente
Necessário como também o fornecimento de formas ao mundo sublunar. Em
vista de explicá-lo, Avicena e outros autores se valeram da analogia com a luz
(nur), aplicada tanto ao mundo supralunar, âmbito ontológico, como também à
relação entre o intelecto agente e os intelectos sublunares, âmbito gnosiológico.
Contudo, a analogia é limitada na medida em que fayd escapa aos fenômenos
naturais, embora alguns comentadores interpretem a analogia misticamente.
Dentre as obras avicenianas, destaca-se o Livro das definições (kitab al-
hudud), no qual fayd é utilizado na predicação de outros termos. Na sua aparição
vinculada ao termo criador (al-bari'), o fluxo é “expressão do ato instaurativo de
Deus” (II.I.1, p. 91). Em confronto com a multiplicidade, a relação (idafa; nisba)
entre Deus e o mundo é mantida pelo vínculo necessário entre quem emana e o
que é emanado, sem qualquer reciprocidade, já que a existência do Criador, ao
coincidir com sua essência, não precisa de nada que lhe seja acrescentado. Em
outras palavras, os existentes criados não compõem a essência divina; a
simplicidade é salvaguardada pela emanação. Sua aparição vinculada ao termo
alma (nafs) acontece no momento em que Avicena atribui a ela o sentido de alma
do todo (nafs al-kull) entendendo, primeiramente, a alma da primeira esfera e,
posteriormente, o conjunto de todas as almas. Independentemente desta
distinção, o fluxo é apresentado como o modo pelo qual a inteligência do todo
('aql al-kull) confere existência à alma do todo e como o que possibilita a
distinção entre o anterior e o posterior.
Lizzini chama a atenção para duas passagens da Metafísica onde são
fornecidas duas definições para fayd no interior da discussão sobre o sujeito
(mawdu') desta ciência. Na primeira, fluxo é utilizado como ponte que liga a causa
primeira aos existentes causados, sendo aquela o princípio da existência destes,
os existentes possíveis. Nas palavras da autora, “ele adquire um caráter
específico de modalidade da ação causal” (II.1.1, p. 113), a qual é fortemente
marcada pela distinção entre causa e causado. Nesta demarcação, critica-se
Avicena por estabelecer uma dependência indissolúvel entre o necessário e o
37 LIZZINI, O. Fluxus (fayd)
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possível na medida em que o primeiro não pode ser causa senão de um possível
e a existência deste só pode ser causada por um agente necessário. Assim, o
conceito de fayd é fundamental na compreensão do conceito de possibilidade,
pois a emanação acontece apenas pelo fato de o existente possível ser apto a
possuir a existência em ato: “a possibilidade é a condição da recepção da ação
causal do Primeiro” (II.1.1.c, p. 134). Isto significa dizer que a noção de fluxo
sustenta-se pela distinção entre o possível (al-mumkin) e o necessário (al-wajib).
Tanto a multiplicidade supralunar, marcada pela possibilidade que lhe é
própria, pela necessidade doada a partir de sua causa e pela intelecção da
inteligência anterior, quanto a sublunar, na qual a presença da matéria estabelece
a pluralidade dos indivíduos, adquirem existência por meio da emanação. As
inteligências celestes e os corpos naturais passam de existentes possíveis a
existentes necessários por outro que lhes doa existência, o que gera uma tensão
acerca do estatuto ontológico do existente possível que, não sendo um
inexistente absoluto, não existe sem que haja uma causa de si. Assim, ele só pode
ser pensado em concomitância e, de modo algum, como anterior a tal causa.
Na segunda passagem da Metafísica, o fluxo reaparece como o nome mais
apropriado para explicar um dos sentidos de útil enquanto o que é responsável
por algo inferior adquirir uma perfeição acrescentada à sua própria essência.
Assim, fayd é entendido como uma doação realizada pelo existente mais perfeito
à inteligência que lhe é inferior: “a emanação não é simplesmente doar ou fazer
adquirir, mas doar ou fazer adquirir para aquilo que é inferior” (II.2.1, p. 204).
Este modelo pressupõe certa hierarquia a partir do mais perfeito, resultando na
identificação entre providência e fluxo divino. A providência se manifesta através
do fluxo porque é o único modo pelo qual a unidade se vincula à pluralidade dos
existentes. A dimensão ética é sugerida por Lizzini ao considerar que o bem
justifica a providência divina. Atribuir ao fluxo divino uma necessidade natural,
desconsiderando sua vontade de criar, que é em si mesma bondade, é negar esta
dimensão de ibda'.
Conforme mencionado, subjaz à relação entre fayd e ibda' a noção do
criador como a causa que doa existência e necessidade ao causado. Porém, dada
38 LIZZINI, O. Fluxus (fayd)
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sua anterioridade ontológica, é inevitável se questionar como a essência dos
existentes possíveis está no intelecto do criador sem que haja multiplicidade
nele. Para Lizzini, a relação entre as formas e o intelecto divino apenas pode ser
concebida tendo-se em vista o modo pelo qual acontece a criação. Assim, o fluxo
delas a partir de uma causa anterior na existência não compromete a unidade da
causa. Este paralelo entre o primeiro princípio e os existentes é posto em
analogia com aquele mantido pela metafísica e as outras ciências, cuja
investigação, ao se voltar para o que é mais perfeito, mostra-se anterior e
princípio para a realização daquelas.
Especificamente, fayd é delimitado pelo fluxo do criador e das inteligências
celestes. Deste modo, é definido como o provir ou emanar dos existentes que
se dão a partir do princípio segundo: “uma consequência necessária sem
impedimento e sem um custo” (II.3, p. 228). Esta não é uma finalidade divina, no
qual essência e existência coincidem, pois, se se assume um fim diferente de si
mesmo, nega-se a absoluta autonomia divina marcada pela finalidade do fluxo ser
idêntica ao próprio Deus.
Enquanto causa da criação contínua do mundo, o primeiro princípio não
age, mas apenas existe, e dele emanam todas as outras coisas. A eliminação do
agir do âmbito divino deve-se à ausência de intenção e finalidade na relação entre
criador e criado caras à tentativa de Avicena de marcar o caráter absoluto da
criação. A proposta da autora é mostrar que este modo de considerá-la,
enquanto criação absoluta (ibda'), é uma resposta à abordagem teológica. Após
uma incursão na terminologia encontrada no Corão referente à noção de
criação, Lizzini, sem fazer nenhuma distinção específica entre as escolas, aponta
que os teólogos concebem a criação post nihil. Assim, ela é assumida como um
ato pontual posterior à não existência, deduzindo-se disto sua temporalidade.
Avicena, na tentativa de inserir a criação no interior do modelo emanativo,
propõe uma alternativa à interpretação teológica; al-Kindi, no século IX, também
teve semelhante preocupação ao defender a criação ex nihilo e exclusivamente
divina. O fluxo aparece na teoria aviceniana como um substituto para a criação
no tempo de um agente que não agia, mas que decide fazê-lo em um
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determinado momento. “Ao refutar a concepção teológica, Avicena distingue o
sentido filosófico de nada ('adam) daquele que lhe atribuiu a teologia” (III, p. 259),
precisando melhor o significado de não-existência absoluta e suas implicações. É
negado que a inexistência seja um pré-requisito para a criação. Nada pode ser
dito deste ex nihilo, pois a predicação lhe atribui certo tipo de existência, o que é
contraditório tendo em vista se tratar do 'adam. Sendo assim, ibda' não envolve
tempo nem mediação seja de uma matéria, de agentes secundários ou de uma
intenção, mas apenas uma posterioridade essencial em relação ao nada. Portanto,
estabelece-se a distinção entre criação e geração/originação (hudut). Para Lizzini,
há um duplo resultado da refutação da criação teologicamente tomada pelos
teólogos: o fluxo como modo pelo qual Deus cria é fundado sobre a ideia de
anterioridade essencial de Deus e a distinção entre a primeira inteligência criada
e os outros existentes compostos de matéria e forma que são gerados no
tempo.
Para que se compreenda a dimensão ética da criação é necessário, antes,
ter em mente que Deus não age no tempo nem tendo em vista outro fim que
não si mesmo. A princípio, isto inviabilizaria o seu valor ético por não ser o bem
aquilo que norteia a criação. Contudo, Lizzini defende que a definição de vontade
(irada), de generosidade (jud) e de bem absoluto (khayr mutlaq) contradizem isto.
Na medida em que a perfeição divina implica em sua unidade e simplicidade,
vontade, generosidade e bem se identificam com a essência divina e são todos
sua finalidade, pois Deus deseja a si mesmo. Somente neste sentido o mundo é
objeto de sua vontade, enquanto consequente necessário do amor por si: “o
Primeiro possui uma satisfação consciente acerca disto que emana ou flui de si e,
neste sentido, o deseja” (III.2.1, p. 282).
O bem, entendido como aquilo que não é em vista de outro, é chamado
bem em sentido real (bi-l-haqiqa) ao se aplicar ao primeiro princípio. Nele, por
causa da sua perfeição, o bem coincide com sua essência (dat) e sua generosidade
vincula-se à indiferença com respeito à criação. O existente necessário, por meio
do fluxo, doa existência sem receber nada em troca e sem desejar qualquer fim.
Novamente, fayd se mostra importante porque é por meio dele que a bondade
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divina se realiza. É como se Avicena, ao substituir a necessidade do fluxo pela
vontade do fluxo, oferecesse uma solução à acusação de ter caído em um
determinismo com respeito à decorrência necessária de existência a partir do
criador.
Por conseguinte, enquanto fruto da intelecção divina da qual fluem os
existentes, Lizzini aponta a proeminência do momento noético em detrimento
do ontológico. Nada acontece sem que o primeiro princípio intelija a si mesmo.
Contudo, trata-se de uma anterioridade que se mantém “aporética” (III.3, p. 320)
devido à sua concomitância temporal com a dimensão ontológica. Porque a
intelecção de si é contínua, o fluxo de existência também o é: “não apenas a
intelecção é criação, mas a existência do Primeiro consiste na sua própria auto-
intelecção” (III.3, p. 320). É propriamente esta circularidade em torno do
processo que marca a sua unidade fundamental.
Um problema que se põe acerca de fayd é conciliar a universalidade do
fluxo com a individuação dos existentes no mundo. São dois os elementos que o
solucionam: o movimento dos corpos celestes e o mundo sublunar, sendo aquele
a parte ativa, que doa, e este a parte em potência, que recebe. Deste modo, a
física, âmbito da natureza particular, se submete à metafísica, âmbito da natureza
universal. O fluxo compreendido fisicamente, na perspectiva do mundo sublunar,
é responsável pela matéria receber uma forma que não existe sem sua hylé.
Embora Lizzini insista na dependência da matéria com respeito à forma, já que a
primeira é completamente indeterminada antes de se informar e as formas
“pertencem fundamentalmente ao mundo celeste” (IV.1.1.a, p. 354), vale lembrar
que a recíproca também é verdadeira, ou seja, a forma só passa a existir no
mundo sublunar caso haja uma matéria apta a receber, mesmo que esta não seja
causa da existência da forma. É novamente esta circularidade que garante a
unidade dos existentes. Tentar desvincular o que no mundo sublunar é único vai
contra a interdependência das partes que compõe seus existentes.
Retornando à questão da origem da pluralidade, nem a matéria nem a
forma são responsáveis por ela, mas uma “terceira entidade” (IV.I.2.2, p. 371)
que responde pelo fluxo, pois a matéria precisa ser preparada para receber a
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forma para a qual há um substrato próprio. Esta terceira entidade é o intelecto
agente. Em termos de causa, a forma é causada pelo intelecto agente e, ao
mesmo tempo, causa para a matéria. Sendo assim, a forma é “um intermediário
na relação causal” (IV.I.2.2.a, p. 378) entre aquele que emana, dator formarum, e
os corpos que a recebem.
O efeito da intelecção realizada por cada uma das inteligências é um
concomitante necessário (lazim), termo emprestado da lógica. Esta acontece na
medida em que todas as inteligências aspiram à própria perfeição e “disto resulta
o funcionamento do mundo inteiro no qual cada elemento é sempre a realização
de si” (IV.I.3.1, p. 408). A dimensão ética, sobre a qual Lizzini insiste, está ligada,
por um lado, à realização e ascensão da alma e, por outro, à participação dos
existentes na ordem do mundo. Neste sentido, é ética a ação que intenciona algo
cuja existência é mais digna que a não existência, mas tudo isto apenas do ponto
de vista dos causados, já que as inteligências não os possuem como um fim.
A compreensão da relação entre mundo supralunar e a origem da
multiplicidade no mundo sublunar passa pelo movimento das esferas celestes. Os
diferentes movimentos destas se dão devido a dois fatores: cada esfera possui
seu próprio bem desejado, pois cada uma deseja sua própria perfeição, e a
individualidade representada por cada uma delas devido à posição ocupada, que
muda de modo a se repetir infinitamente pelo fato de o movimento ser circular e
eterno. A matéria recebe o influxo incessante das inteligências de modo a
transformá-la a fim de que seja apta a receber a forma do intelecto agente.
“Avicena faz do influxo não apenas o resultado de uma ação celeste que pode ser
apenas recebida, mas também o resultado da interação com as potências do
mundo sublunar” (IV.I.4.1, p. 442). A terminologia empregada aqui muda. Não
mais se trata de conferir existência de modo absoluto e atemporal (ibda'), mas
temporalmente e a partir de uma matéria dada (hudut). Assim, o influxo
enquanto “mecanismo articulado” (IV.I.4.1, p. 444) é expressão de uma
causalidade exclusivamente celeste, vinculada à posição que as inteligências
ocupam, e que interage com os elementos sublunares, preparando-os para
receber (qabila) uma forma.
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A fim de resolver as dificuldades no que tange à ruptura da ordem natural
determinada pelo primeiro princípio, como, por exemplo, as monstruosidades,
Avicena recorre ao reconhecimento dos diversos significados do termo natureza
(tabi'a). Por um lado, é retomada a definição aristotélica de natureza como
primeiro princípio de movimento e repouso, por outro, reconhece-se a
existência de um “princípio vertical” (V.I.1, p. 492) que, pelo fluxo, é causa da
existência dos corpos. Assim, estabelece-se a distinção entre natureza e o que
segue o curso da natureza, sendo este último identificado com “a exigência da
natureza da coisa” (V.I.2, p. 498). Lizzini identifica uma abertura da natureza,
entendida no primeiro sentido, para aquilo que não lhe é intencional, ao
contrário do segundo, que pode ser dito “teleologicamente orientado” (V.I.2, p.
498). Portanto, a partir dos sentidos de natureza, conclui-se que nada escapa a
ela, pois mesmo as monstruosidades podem ser entendidas como naturais no
primeiro sentido. Em suma, entra em jogo, na tentativa de solucionar o problema
daquilo que, aparentemente, escaparia à natureza, a distinção entre a natureza
particular e universal. O que escapa ao curso da natureza particular, como, por
exemplo, a morte que não é intencionada pela natureza própria de Zayd, não
escapa à natureza universal: “natureza universal e particular correspondem aos
dois aspectos através dos quais é possível observar o mundo sublunar, aquele
universal do fluxo e aquele particular do indivíduo” (V.I.2, p. 507).
Seria, como Lizzini sugere, o finalismo da natureza uma alternativa ao
determinismo? O finalismo vincula-se à concretização da existência da espécie
por meio dos indivíduos, cuja matéria recebe uma forma apropriada para isto, o
que permite a Avicena distinguir o que é intencionado pela natureza daquilo que
é uma consequência secundária: “é assim que da natureza subtrai-se a
responsabilidade sobre tudo isto que não entra na ordem primeira do fluxo das
formas e que, do ponto de vista do fluxo, não possui importância nem
significado” (V.I.2.1, p. 512). Deste modo, a natureza individual carrega em si uma
porção de acidentalidade que não pode ser atribuída à providência divina ('inaya),
sendo que esta confere existência à natureza universal, à espécie, enquanto
existir em uma matéria e ser acompanhado pelos acidentes que lhe seguem deve-
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se à natureza particular.
Por fim, pode-se dizer que as investigações que Lizzini desenvolve ao longo
da sua obra percorrem duas vias: uma que explora o termo fayd no contexto do
âmbito supralunar e temas correlatos e outra na qual o mesmo termo compõe a
explicação não apenas da origem da multiplicidade, mas também do modo pelo
qual Deus exerce sua providência. Na primeira, o fluxo é utilizado na
reelaboração do conceito de criação (ibda') adaptada à perfeição do primeiro
princípio. Deste modo, ao não pressupor um pré-requisito pelo qual confere
existência aos existentes possíveis, o criador mantém-se como a única causa que,
pelo fluxo, cria eternamente a partir da sua própria necessidade. Com respeito à
segunda via, dedicada ao mundo sublunar, é o fluxo das formas do intelecto
agente, tendo em vista uma matéria que a elas será dada como substrato, que
permite compreender outro tipo de conferir existência (hudut). Trata-se de um
ato temporal marcado pela presença destes três elementos indispensáveis:
intelecto agente, forma e matéria. Sendo assim, a multiplicidade se torna efetiva
quando, da intelecção que cada inteligência realiza de si, do seu princípio e do
existente necessário, origina-se, pelo fluxo de formas, um composto hilemórfico.
O livro de Lizzini é singular no que diz respeito aos estudos sobre Avicena,
pois se trata de uma obra de fôlego que abarca vários aspectos do sistema
aviceniano sob o fio condutor da noção de fayd a partir de obras como Ta'aliqat
e Mubahathat. Lizzini abre as portas para o sistema metafísico-cosmológico de
Avicena a partir de uma perspectiva até então pouco investigada, solucionando
alguns dos problemas que foram levantados contra a explicação aviceniana da
criação.