Transito Cidadania e Responsabilidade Social
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Trânsito e cidadania
Existem palavras que acabam sendo muito usadas, em diferentes contextos e
com diferentes abordagens, ao ponto de perderem sua capacidade explicativa e se
transformarem em palavras vazias, perfeitas para slogans e manchetes de jornal, mas
que não tem mais um significado preciso. Cidadania é uma palavra que está prestes a
correr este risco de transformar-se em um significante sem significado. Muito se fala em
cidadania, mas antes seria preciso perguntar o que se entende por cidadania. Neste texto
parto de uma concepção de cidadania baseada em valores, direitos e deveres e procuro
pensar como isso se aplica ao âmbito do trânsito, especialmente no que diz respeito à
educação para o trânsito e à formação de condutores.
Na sociedade democrática contemporânea o termo cidadania diz respeito,
basicamente, a direitos jurídicos e políticos e só existe na presença de uma Constituição,
entendida esta como o conjunto de normas e regras que estabelecem os direitos e
deveres que precisamos respeitar para estarmos bem integrados à vida social. Cidadania,
portanto, só existe sob o manto de uma constituição que garanta a justiça, ito é a idéia de
um mundo em ordem, sujeito à lei, no qual todos tenham os mesmos direitos e deveres.
Nesse sentido, os direitos básicos, que sustentam a existência da cidadania são
alimentação, saúde, moradia, trabalho/emprego, segurança, educação, diversão,
igualdade, liberdade, dignidade. Este conjunto de direitos promove a articulação entre a
democracia política e a democracia social. A democracia política garante as liberdades
formais (liberdade de opinião, de expressão, de organização), enquanto a democracia
social garante as liberdades materiais (saúde, educação, moradia, segurança, etc.).
A cidadania só existe quando estas duas democracias estão articuladas, pois, sem
o social, a democracia política é algo que beneficia a poucos e a poucos interessa. E,
sem o político, a democracia social corre o risco de ser reduzida à filantropia ou à
assistência social, mantendo as estruturas mais autoritárias de poder através do
clientelismo e das práticas populistas, que se expressam na política do favor, na compra
de votos e na intimidação, reduzindo as possibilidades de organização e de expressão da
população, especialmente de seus setores mais pobres e mais necessitados.
Ou seja, cidadania implica em igualdade (igualdade de direitos, igualdade de
deveres, igualdade perante a lei), diversidade (respeito e aceitação da diferença) e
solidariedade (responsabilidade social, sentimento de pertencer a um coletivo). Portanto,
a cidadania exige uma ética da responsabilidade social. Esta ética exige o sentimento de
solidariedade. Este sentimento só é possível se houver a percepção de que pertencemos
a um coletivo, a um grupo, a uma sociedade. Esta percepção depende da existência de
um espaço público e de uma opinião pública. E falar em opinião pública torna
necessário fazer uma referência ao grave problema da irresponsabilidade social de
grande parte das empresas de comunicação e de seus funcionários conhecidos como
"formadores de opinião". Infelizmente não tenho espaço para tratar disso agora, ainda
que o assunto seja crucial até mesmo para podermos ter um processo efetivo de
conscientização da sociedade para a necessidade de um comportamento de
responsabilidade cidadã no trânsito, o que depende de campanhas permanentes de
comunicação de massa .
Resumindo, cidadania exige a participação consciente, responsável e solidária de
cada um, todos os dias, todos os momentos, em todos os assuntos que nos digam
respeito: da exigência de nota fiscal à economia de energia, da separação do lixo à
fiscalização das ações dos governantes, do respeito ao próximo à denúncia das ações
criminosas, do uso de cinto de segurança à proteção das crianças.
Trazendo estas reflexões para o caso concreto do Brasil de hoje, vejo algumas
dificuldades, na verdade, sérias dificuldades para a consolidação da cidadania no país:
desigualdades sociais, políticas e econômicas, o apartheid social, o preconceito e a
arrogância das elites econômicas e políticas, o analfabetismo, a miséria, a fome, o
desemprego, a corrupção, a impunidade, o narcisismo, a concentração de renda, a
concentração de poder, a concentração de informação.
Um dos melhores indicadores da existência da cidadania em qualquer país é
o trânsito. No Brasil, a observação do trânsito mostra intensa luta, na qual quase não
existe noção de direito ou de dever, apenas abuso de força e de poder. Pedestres e
motoristas invadem tudo que é espaço alheio, as leis aparecem apenas como empecilhos
e obstáculos a serem ignorados ou superados. No trânsito brasileiro quem respeita a lei,
quem não tenta burlar, dar um jeitinho, levar vantagem, é chamado de otário. E quem
ignora a lei, quem a desobedece, quem chama os honestos de otários, este é considerado
esperto.
Infelizmente, podemos transpor este modelo do trânsito para quase todas as
dimensões da vida social no Brasil. Ora, é muito difícil uma sociedade funcionar assim,
sem uma ética da solidariedade e do respeito à lei, sem um pacto de convivência ao qual
cada um obedece porque sabe que a mesma lei que agora tolhe, em outro momento
favorece, garante a segurança e mesmo, em alguns casos, a vida.
Para poder concluir, quero fazer algumas considerações sobre pequenos atos
cotidianos de desrespeito à lei e à cidadania no cotidiano do trânsito das nossas ruas e
estradas. Coisas como furar sinal, estacionar em local proibido, fazer conversões
proibidas, não sinalizar as conversões, excesso de velocidade, desrespeito ao pedestre,
desrespeito do pedestre às leis de trânsito, etc. Isso tudo é quase universal em nosso
país, sendo um comportamento encontrado entre velhos e jovens, homens e mulheres,
ricos e pobres, nas grandes cidades e no meio rural. E este comportamento não se deve,
na imensa maioria dos casos, nem ao desconhecimento das regras nem à falta de
habilidade técnica. Ao contrário, trata-se de um misto de prepotência, arrogância e
ignorância dos princípios básicos de civilidade.
Eu penso que este é o padrão de comportamento dos brasileiros não apenas no
trânsito. A imprudência e a irresponsabilidade no trânsito são equivalentes, em termos
de cidadania, ao vandalismo, à depredação, ao descaso no uso de equipamentos
coletivos como banheiros públicos, ônibus e trens, ao abuso da força e da autoridade, à
prevaricação, ao desperdício de água e de energia, às rixas entre vizinhos por vagas de
garagem ou excesso de som. Ou seja, à falta de civilidade e de urbanidade nas relações
interpessoais no espaço público. Existe apenas um diferença. Uma única e fatal
diferença: no trânsito, esta falta de educação para a vida social geralmente mata, mutila,
incapacita.
Concluindo: enquanto não tivermos cidadania em todas as dimensões da
sociedade não teremos cidadania no trânsito e continuaremos tendo a nossa guerra diária
e sangrenta, com cada um se achando superior aos demais e à lei.
Não adiantará nada melhorar as vias, aumentar a tecnologia dos veículos,
aumentar o policiamento e aperfeiçoar a vigilância. Embora isso seja fundamental,
necessário e indispensável, como demonstram várias experiências bem sucedidas no
Brasil e no mundo, insisto que se não tivermos educação, respeito, compromisso social,
sentimento de responsabilidade coletiva e uma ética da igualdade – se não tivermos o
sentimento de cidadania – continuaremos matando e morrendo no trânsito.
Enquanto não tivermos o sentimento de solidariedade e fraternidade (somos
todos brasileiros, somos todos irmãos, somos todos responsáveis por todos os outros),
enquanto não tivermos uma verdadeira consciência de que viver em sociedade é viver
dentro da lei, com direitos e deveres, não teremos cidadania e continuaremos a ver
nosso concidadãos morrerem no trânsito aos milhares a cada ano. Até o dia em que nós
ou nossos entes queridos formos as vítimas. Aí talvez acordemos, mas já será tarde
demais.
Muito bem, mas e agora que já temos um diagnóstico, o que é possível fazer?
Penso que é preciso trabalhar muito, na escola e fora dela (mas principalmente na
escola), para termos uma educação para o trânsito que seja uma educação para a
convivência pacífica e a cidadania. Nossos motoristas não são maus motoristas, são é
maus cidadãos. São irresponsáveis, egoístas, mal-educados e, algumas vezes, mau-
caráter. Seria muito mais simples se fossem apenas maus motoristas.
Marcos Moura Baptista dos Santos (Caco Baptista)Sociólogo, professor da UniscRG [email protected]