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Trabalho escravo na Amazônia: homens cortam árvores sob risco e ameaça Entre acidentes fatais e ameaças dos donos de serrarias, homens cortam árvores de modo ilegal no Pará. Crime afeta os trabalhadores, os indígenas e a floresta Por Ana Aranha e Tania Caliari, de Uruará (Pará) Fotos: Lunaé Parracho | 13/03/17 Vídeo-reportagem e fotos aqui: http://reporterbrasil.org.br/2017/03/trabalho- escravo-na-amazonia-homens-cortam-arvores-sob-risco-e-ameaca/ Novato no ofício de derrubar árvores em regiões que deveriam ser preservadas, João se perguntava porque aceitara aquele ganha-pão “errado demais”. Estavam em meio à floresta amazônica nativa, a 90 quilômetros da rodovia Transamazônica, oeste do Pará. Ele e seus colegas haviam acabado de derrubar a primeira das dez maçarandubas que cortariam no dia, quando ouviram o ronco de carros. Espiando entre as árvores, viram a chegada de homens armados, vestidos com coletes da “federal”. “Meu deus, me tira dessa, não me deixa morrer”, ele pedia, em voz baixa, enquanto corria mata adentro. Há apenas 11 dias no ramo, João já ouvira alertas dos colegas mais experientes sobre como equipes do estado tratam trabalhadores como eles: repressão, prisão e, segundo corre pela rádio peão, até violência física. João fugia porque não passou pela sua cabeça a possibilidade dos funcionários do estado estarem ali para lhe proteger. Mas era esse o objetivo da equipe liderada pelo auditor fiscal do Ministério do Trabalho José Marcelino, e integrada por representantes do Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública de União e com Proteção da Polícia Rodoviária Federal. A operação ocorreu em outubro de 2016 no município de Uruará. A ação testava uma nova estratégia para aplicar a lei na fronteira da destruição da floresta. Ao invés de tratar o trabalhador na ponta como inimigo, a ideia era reconhecê-lo como vítima e até um possível aliado no combate aos crimes da indústria da madeira. Quando finalmente foram encontrados, João e seus colegas deram longos depoimentos que revelaram crimes muito além dos ambientais. O primeiro deles foi a exploração de trabalho escravo, crime atribuído à pequena serraria M. A. de Sousa Madeireira, na sede da cidade de Uruará. João trabalhava das 6 da manhã às 6 da noite, sem carteira assinada e sem equipamento de proteção. Embora cortar árvores seja uma atividade de grande risco, com um dos mais altos índices de morte e amputação do país, não havia medidas mínimas de segurança. Acidentes fatais eram descritos como ocorrências banais. “Teve um cara lá que fazia a mesma coisa que eu, morreu. Estava distraído, passou bolando um cigarro. A tora caiu por cima dele, de cima do caminhão. Acabou, foi pro cemitério”, conta João. No barraco, nada de primeiros-socorros ou qualquer remédio. Apenas uma espingarda para proteção e caça. Além de uma moto velha para emergências, como ataque de bicho ou acidente. Mas os trabalhadores nem contavam com a possibilidade de socorro. “Lá não tem acidente, lá tem morte. Se tu fizer errado,

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Trabalho escravo na Amazônia: homens cortam árvores sob risco e ameaça Entre acidentes fatais e ameaças dos donos de serrarias, homens cortam árvores de modo ilegal no Pará. Crime afeta os trabalhadores, os indígenas e a floresta Por Ana Aranha e Tania Caliari, de Uruará (Pará) Fotos: Lunaé Parracho | 13/03/17

Vídeo-reportagem e fotos aqui: http://reporterbrasil.org.br/2017/03/trabalho-escravo-na-amazonia-homens-cortam-arvores-sob-risco-e-ameaca/

Novato no ofício de derrubar árvores em regiões que deveriam ser

preservadas, João se perguntava porque aceitara aquele ganha-pão “errado demais”. Estavam em meio à floresta amazônica nativa, a 90 quilômetros da rodovia Transamazônica, oeste do Pará. Ele e seus colegas haviam acabado de derrubar a primeira das dez maçarandubas que cortariam no dia, quando ouviram o ronco de carros. Espiando entre as árvores, viram a chegada de homens armados, vestidos com coletes da “federal”.

“Meu deus, me tira dessa, não me deixa morrer”, ele pedia, em voz baixa, enquanto corria mata adentro. Há apenas 11 dias no ramo, João já ouvira alertas dos colegas mais experientes sobre como equipes do estado tratam trabalhadores como eles: repressão, prisão e, segundo corre pela rádio peão, até violência física.

João fugia porque não passou pela sua cabeça a possibilidade dos funcionários do estado estarem ali para lhe proteger. Mas era esse o objetivo da equipe liderada pelo auditor fiscal do Ministério do Trabalho José Marcelino, e integrada por representantes do Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública de União e com Proteção da Polícia Rodoviária Federal. A operação ocorreu em outubro de 2016 no município de Uruará.

A ação testava uma nova estratégia para aplicar a lei na fronteira da destruição da floresta. Ao invés de tratar o trabalhador na ponta como inimigo, a ideia era reconhecê-lo como vítima e até um possível aliado no combate aos crimes da indústria da madeira.

Quando finalmente foram encontrados, João e seus colegas deram longos depoimentos que revelaram crimes muito além dos ambientais. O primeiro deles foi a exploração de trabalho escravo, crime atribuído à pequena serraria M. A. de Sousa Madeireira, na sede da cidade de Uruará.

João trabalhava das 6 da manhã às 6 da noite, sem carteira assinada e sem equipamento de proteção. Embora cortar árvores seja uma atividade de grande risco, com um dos mais altos índices de morte e amputação do país, não havia medidas mínimas de segurança. Acidentes fatais eram descritos como ocorrências banais. “Teve um cara lá que fazia a mesma coisa que eu, morreu. Estava distraído, passou bolando um cigarro. A tora caiu por cima dele, de cima do caminhão. Acabou, foi pro cemitério”, conta João.

No barraco, nada de primeiros-socorros ou qualquer remédio. Apenas uma espingarda para proteção e caça. Além de uma moto velha para emergências, como ataque de bicho ou acidente. Mas os trabalhadores nem contavam com a possibilidade de socorro. “Lá não tem acidente, lá tem morte. Se tu fizer errado,

tu já se foi”, diz outro trabalhador. A equipe era composta por quatro homens, responsáveis por derrubar e empilhar as árvores no caminhão, e uma cozinheira.

Mesmo para João, que tem estrada nas armadilhas que se apresentam para migrantes em busca de emprego pelo Brasil, o ofício de derrubar árvores estava além de qualquer outra experiência. Pior do que as empreitadas pela construção civil no sudeste. Pior até do que a passagem por carvoarias no Maranhão, quando seu pulmão doía de tanto tossir.

No barraco onde dormiam, sem paredes e com piso de terra batida, nada barrava o vento frio da madrugada, nem a visita de insetos peçonhentos e outros animais. “Teve uma noite que o cara acendeu a lanterna, tava lá a cobrazona. Mais de dois metros, grossa. Ele pegou uma madeira e deu em cima. Matou na paulada”, lembra João. Não é raro o relato de visitas de onças na região, a reportagem testemunhou as marcas de suas patas pelo chão.

As refeições, feitas em dois fogareiros de argila improvisados em latas de 18 litros, eram de arroz, feijão e macarrão. Com eventuais pedaços de carne de sol, que ficavam pendurados em um varal bastante visitado por moscas. A água vinha em tonéis, com um “farelinho” no fundo. O banho de balde era amparado por um biombo de folhas de palmeira e lona. Para as demais necessidades, a floresta era o banheiro.

O trabalho escravo foi caracterizado devido ao risco que corriam ao exercer as atividades e às condições degradantes em que viviam na mata. A serraria M. A. de Sousa Madeireira foi obrigada a contratar e demitir os cinco funcionários e a pagar verbas rescisórias no total de 31 mil reais. Na hora do pagamento, o auditor explicou que é protocolar conferir o dinheiro na frente do trabalhador. Que surpresa quando, no acerto para a cozinheira do grupo, faltavam mil, dos 3.900 reais que ela teria a receber. A advogada da serraria se desculpou, “foi um engano”, e o ritual de contar cédula por cédula continuou até o último trabalhador receber.

Crime contra trabalhadores, indígenas e a floresta Em seu escritório empoeirado, Manoel Araújo de Sousa, dono da serraria,

argumentou que não era responsável pelos trabalhadores. A frente de extração seria uma iniciativa autônoma de um de seus ex-empregados. Depois, admitiu que ficaria com parte da madeira e que era “dono” da terra onde eles trabalhavam, assumindo a responsabilidade.

Para provar que a atividade seria legal, apresentou um mero contrato de compra e venda. Sem registro da escritura ou autorização ambiental. O caso ilustra bem o cipoal de crimes do setor, que combina ilegalidades ambientais, trabalhistas, fundiárias, contra o meio ambiente e contra comunidades locais.

Não seria possível ter qualquer autorização ali, já que a floresta de onde Manuel tirava madeira é terra da união embargada pela justiça. Ainda em 2007, quando já havia evidências do avanço madeireiro na região, o Ministério Público Federal contestou um projeto de assentamento proposto no local. Os procuradores suspeitavam que seria apenas uma justificativa para a abertura de estradas e retirada de madeira.

“Tais projetos não atendem a uma autêntica demanda de potenciais clientes da reforma agrária. São, antes, resultado da pressão do setor madeireiro junto às esferas governamentais, que vislumbram nos assentamentos um

estoque de matéria-prima”, lê-se na Ação Civil Pública movida contra a Superintendência do Incra em Santarém, Pará.

A ação segue seu trâmite na Justiça Federal, e o saque da madeira avança. Mas a serraria de Manoel é peixe pequeno no mar de ilegalidades operado

pela indústria madeireira na região. A cidade de Uruará integra um dos maiores polos em expansão da indústria madeireira na Amazônia brasileira. A ilegalidade, porém, é crescente e explícita. Qualquer um pode ver os caminhões sem placa, carregados de toras de árvores nativas, andando em comboio pela Transamazônica. Muitos saem de dentro de terras indígenas, fartas no entorno da rodovia federal, que corta a bacia do Xingu.

Estima-se que 62% da madeira retirada do Pará seja ilegal. Os cálculos são de estudo do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente), que cruzou a quantidade de madeira produzida em 2009 com o volume autorizado pelos órgãos ambientais.

Além do prejuízo à floresta, a ilegalidade do setor também pressiona povos indígenas, assentados e comunidades ribeirinhas, que têm seus territórios invadidos para o roubo da madeira.

Dias antes do flagrante, a equipe do Ministério de Trabalho fizera incursões na Terra Indígena Cachoeira Seca. Lá, vivem os Arara, índios de recente contato. Pressionados pela invasão dos madeireiros, estão ficando ilhados dentro de sua terra. Evitam caçar em certas áreas e escutam o barulho das motosserras de diversos pontos. O caso é acompanhado de perto pelo Instituto Socioambiental (ISA), que há anos divulga estudos e alertas sobre a gravidade do caso.

A equipe de Marcelino passou dias pelas pequenas estradas dentro da terra indígena, viram barracos iguais ao de João, pilhas de toras, além de queimadas. Porém, ao cruzar com um homem de moto, foram informados que poderiam desistir, a notícia sobre a presença “da federal” já circulava pelo sistema clandestino de rádios.

Escondidos sob a floresta Embora centenas de toras já tivessem saído dali, o local onde João foi

resgatado não aparece nos mapas de desmatamento. Isso porque sua tarefa era buscar apenas as árvores mais valiosas, fazendo o que se convencionou chamar de “extração seletiva de madeira”: a árvore é escolhida com cuidado e cortada individualmente, sem abrir as clareiras detectadas por satélite.

A prática está crescendo justamente porque dribla a fiscalização. Depois que as árvores valiosas são retiradas e levadas para a serraria, a origem ilegal é “lavada” com notas de planos de manejo (locais autorizados a fazer a extração seletiva de alguns tipos de árvores nativas). Embora o funcionamento do esquema seja bem conhecido por especialistas e autoridades brasileiras, ainda não há uma estratégia para furar o cerco.

Entre todos os crimes que a ilegalidade do setor esconde do radar do estado, o trabalho escravo é um dos mais graves. Apenas no Pará, 931 trabalhadores foram resgatados enquanto desmatavam ou extraiam árvores de 2003 a 2016, segundo cruzamento de dados oficiais feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A relação “indissociável” entre o trabalho escravo e a retirada ilegal de árvores foi uma das conclusões de pesquisa inédita feita pela Rede de Ação

Integrada para Combater a Escravidão. O estudo aponta que os riscos e condições degradantes enfrentados por João são comuns aos milhares de trabalhadores do setor (Veja animação sobre o estudo: “Quem são os homens que derrubam a floresta”). Realidade que permanece invisível aos órgãos públicos.

São tantos os casos que, enquanto aguardavam a regularização de João e seus colegas, os fiscais seguiram outras pistas e resgataram mais sete trabalhadores cortando madeira em situação de trabalho escravo. Dessa vez o empregador era Eudemberto Sampaio de Souza, dono da serraria Betel, também responsabilizado pelo crime.

Quando se alastrou pela cidade a notícia sobre os fiscais, trabalhadores começaram a bater na porta do hotel onde a equipe estava hospedada. Dessa vez, os relatos eram ainda mais pesados. Falavam de ameaças físicas, da contratação de pistoleiros e homicídios que seriam encomendados pelos donos das serrarias.

Funcionários ou reféns? “Nós viemos aí, mas estamos com medo. Muito medo mesmo”, disse um dos

homens que buscou a ajuda dos fiscais. Ele contrai o rosto ao contar que seu patrão contratara um matador profissional para vigiar seus passos, e de outros colegas, desde que eles se atreveram a cobrar um pagamento atrasado.

O nome dos empregadores denunciados por ameaças de morte estão sendo investigados, mas não serão identificados para não colocar ainda mais em risco a vida dos trabalhadores.

São muitos os relatos sobre calotes seguidos de violência para fugir da dívida. “Ele [dono da serraria] fala: ‘melhor pagar 3 mil para um pistoleiro, do que pagar 5 ou 6 mil pra um funcionário’”. Realidade corroborada por outros entrevistados: “chega no final do mês, se tiver muito pra receber, eles mandam matar. Eu já vi isso acontecer. Foi dentro da cidade mesmo, executaram ele”.

Homens de baixa renda, muitos analfabetos e migrantes, os trabalhadores não têm a quem recorrer, pois não confiam nas autoridades locais. “A polícia militar aqui é um perigo. Vai na serraria dele pegar dinheiro, pegar madeira, tanto a militar como a civil. Se algum de nós denunciar um cara desse para a polícia daqui, isso é suicídio”, disse outro trabalhador.

Se a violência já parece desproporcional para quem cobra seus direitos na cidade, é ainda pior na mata. O total isolamento, na maior parte das vezes, faz com que os trabalhadores tenham medo de fazer qualquer tipo de reclamação.

Isso quando não são abandonados, sem meio de locomoção. “No dia da votação [eleições municipais 2016], a gente passou cinco dias no mato sem chegar rancho [comida]. Nem vir pra votar ninguém veio”, lembra um tratorista.

“Não tem como ir e vir, o patrão não deixa. Se não ficar no mato, perde o emprego. Só o patrão vai na casa da gente dar algum recado. A gente só recebe notícia”, diz outro trabalhador, que tem filhos pequenos na cidade.

Diante do alto número de denúncias sobre violências que vão além do direito trabalhista, o procurador do Ministério Público do Trabalho Allan Bruno, que também integrava a operação, recolheu as denúncias e repassou ao Ministério Público Federal, que deve investigar os casos dentro de possíveis ações penais sobre retenção de salários e ameaças à vida, além de crimes de natureza ambiental, fundiária e fiscal.

Um longo caminho para a mudança No segundo flagrante de trabalho escravo feito pela equipe, a resposta do

empresário responsabilizado pelo crime revela o modo como os madeireiros enxergam os trabalhadores.

“A gente pede os documentos para o suposto funcionário, eles falam que perderam. Você pede o nome, eles dão apelido. Muitos são drogados, pé inchado [alcoólatras]. São pessoas que surgem do Mato Grosso, do Maranhão, da Bahia, do Pernambuco. Ninguém sabe sua história, ninguém sabe o seu passado. Então isso não se vê, que muitas vezes a gente leva um cara desses para trabalhar e estamos salvando a vida dele”, diz Eudemberto Sampaio, dono da serraria Betel.

O depoimento é um termômetro da baixa disposição do setor para se legalizar. Ao mirar na erradicação do trabalho escravo, o Ministério do Trabalho mexe em um dos pilares da ilegalidade, mas há muitos outros.

O tamanho do problema foi exposto pela Operação Madeira Limpa, deflagrada pelo Ministério Público Federal e Polícia Federal. A operação prendeu 21 pessoas na região oeste do Pará em 2015, entre eles três funcionários públicos de diferentes esferas do governo. A quadrilha fazia desmatamento e extração seletiva ilegal de madeira, grilagem e coagia os assentados a autorizar a retirada de árvores de suas terras.

Alguns dos casos denunciados na operação já estavam na “Lista Suja do Trabalho Escravo”, que reúne os flagrantes do Ministério do Trabalho. Entre eles estava a madeireira Iller, responsabilizada por trabalho escravo e crime ambiental. A madeireira faz parte da segunda parte da investigação da Repórter Brasil. Aos rastrear degraus acima da cadeia de fornecedores dessa e de outras serrarias, a reportagem descobriu relações comerciais com fornecedores de grandes marcas nacionais e internacionais (Leia matéria: “Tramontina comprou madeira de serraria flagrada com trabalho escravo”).

O auditor do trabalho José Marcelino lembra que essa operação foi apenas o começo de uma investigação de fôlego que busca descobrir o funcionamento da indústria ilegal de extração seletiva de madeira em em parceria com o MPF e MPT e em uma tentativa de diálogo com órgãos ambientais e fundiários.

“Temos que aprender como entrar nesse setor, estudar as estratégias”, afirma. Marcelino já aprendeu que, na ponta, trata-se de um setor desorganizado e que convive com altos riscos econômicos. “A derrubada das árvores não quer dizer que está garantida a venda da madeira. E, como o empresário não tem um capital de giro adequado, ele não arca com os custos para tratar os trabalhadores de forma adequada”, avalia.

Apesar do aparente improviso, Marcelino sabe que a escolha em fazer a extração ilegal é uma decisão bastante racional, baseada em um ambiente de baixo investimento empresarial legalizado, grande potencial de exploração de trabalhadores vulneráveis e baixo risco de serem pegos pela fiscalização.

Após receber o dinheiro da rescisão, João saiu dizendo que voltaria para o mato, mesmo que fosse nas mesmas condições, se não conseguisse outro emprego nos próximos meses.

“Eu não queria serviço de destruir a natureza. Mas tô longe da minha terra, precisando trabalhar. Eu não vou roubar, nem virar mendigo. Se é isso que tem, eu vou encarar”.

Tramontina comprou madeira de serraria flagrada com trabalho escravo Investigação revela ainda trabalho escravo no corte de madeira para exportação, ligando o crime a empresas que fizeram obras no Central Park e Brooklyn Bridge Por André Campos | 13/03/17

http://reporterbrasil.org.br/2017/03/tramontina-comprou-madeira-de-serraria-flagrada-com-trabalho-escravo/

A rede que abastece madeira para os utensílios domésticos da Tramontina

incluiu, em anos recentes, uma serraria flagrada com trabalho escravo contemporâneo. A fabricante abastece as lojas do Walmart no Brasil, Carrefour e do Grupo Pão de Açúcar, entre elas o Ponto Frio, as Casas Bahia e o Extra.com. Procurada pela reportagem, a empresa afirmou que interrompeu as compras ao tomar conhecimento dos problemas da serraria flagrada pelo crime (leia a resposta completa da Tramontina).

A mesma realidade foi detectada em exportadores que compraram de serrarias amazônicas responsabilizadas por submeter trabalhadores a condições análogas às de escravo. Elas vendem madeira para empresas como a USFLoors, que abastece a rede de materiais para construção norte-americana Lowe´s. Outro comprador é a Timber Holdings, que já forneceu madeira para obras no Central Park e na Brooklyn Bridge.

Tanto a US Floors quanto a Timber Holdings, procuradas pela reportagem, disseram que a madeira comprada por eles não é a mesma envolvida no flagrante de trabalho escravo.

A rede de relações comerciais que liga as marcas brasileiras e internacionais às serrarias foi descoberta em investigação da Repórter Brasil e confirmada pelas empresas. Embora a reportagem não possa traçar o destino exato de cada pedaço de madeira, pois os produtos se misturam nos vendedores intermediários, a investigação revela que a rede de fornecedores de grandes grupos varejistas e da construção civil está contaminada pela prática criminosa. Ou seja, essas marcas estão financiando redes que exploram o trabalho escravo.

Os casos investigados começam em duas serrarias que operam no oeste do Pará, um dos principais polos de expansão da indústria madeireira na Amazônia brasileira. Uma delas é a Madeireira Iller. Em dezembro de 2012, fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 31 pessoas que atuavam no beneficiamento, corte e transporte de madeira nativa para a empresa, em Santarém. A empresa madeireira também foi denunciada por delitos ambientais e seus donos chegaram a ser presos em 2015 por esse motivo.

Entre 2012 e junho de 2015, a Madeireira Iller foi um dos fornecedores da planta industrial da Tramontina em Belém, no Pará, local onde a empresa fabrica móveis e utensílios de madeira vendidos em todo o Brasil.

Outro caso envolve a Bonardi da Amazônia, madeireira que empregava nove pessoas resgatadas da exploração do trabalho escravo em outubro de 2012. A empresa foi fornecedora da Tradelink Madeiras, indústria de Ananindeua, também no Pará, entre agosto do mesmo ano e julho de 2015.

A Tradelink Madeiras pertence ao Tradelink Group, sediado em Londres. Em resposta à reportagem, o grupo afirma que faz inspeções de campo em seus fornecedores e que não encontrou irregularidades trabalhistas na Bonardi da

Amazônia em junho de 2012. Ou seja, quatro meses antes do flagrante de trabalho escravo feito pelo Ministério do Trabalho, a serraria foi visitada por funcionários da Tradelink.

Após o flagrante, a multinacional afirma que decidiu manter negócios com o fornecedor pois a madeireira se comprometeu a regularizar a situação de seus funcionários (leia a resposta da Tradelink)

Os produtos da Tradelink Madeiras têm alcance internacional. A rede Lowe’s, segunda maior cadeia varejista de materiais de construção nos Estados Unidos, já comercializou matéria-prima oriunda da empresa.

Trabalhadores escondidos na mata Em dezembro de 2012, quando foram resgatados por fiscais do Ministério

do Trabalho, os funcionários da Madeireira Iller viviam em condições rudimentares, incompatíveis com a sofisticada rede de compradores com quem seus empregadores faziam negócios. Nas áreas onde as árvores eram cortadas, em plena floresta amazônica, dormiam em barracos de lona ou palha sem paredes para protege-los dos perigos da mata. Sobre o chão de terra batida e ao ar livre, as refeições eram preparadas em fogareiros improvisados, com alimentos armazenados sem condições mínimas de higiene.

Não havia banheiro nesses locais. A água era obtida em um igarapé, também frequentado por animais silvestres, e armazenada num tambor de óleo de motor.

Trabalhando em uma atividade com alto risco de acidentes, os trabalhadores não tinham equipamentos de proteção, carteira assinada e ganhavam apenas pelo que produziam. Nem o salário mínimo estava garantido no final do mês, tudo dependia do número de árvores derrubadas.

As condições encontradas “aviltam a dignidade humana e caracterizam situação degradante”, registraram os auditores do trabalho no relatório da fiscalização, que enquadra o caso dentro do conceito de trabalho escravo contemporâneo, expresso no Código Penal brasileiro. Por conta disso, os trabalhadores foram resgatados do local e a empresa foi responsabilizada pelo crime.

Ainda segundo os auditores, o dono da serraria teria mandado 23 funcionários fugirem e ficarem escondidos da ação fiscal. O objetivo seria evitar o flagrante das violações. Os trabalhadores foram obrigados a se esconder dentro da mata durante cinco dias, período em que ficaram expostos a todos os riscos da floresta, até que finalmente foram encontrados pelos fiscais.

Três anos depois, em 2015, os proprietários da Madeireira Iller foram acusados de diversos crimes ambientais e chegaram a ser presos durante a Operação Madeira Limpa, ação do Ministério Público Federal para o combate à exploração ilegal de madeira e grilagem de terras. A madeireira foi multada em R$ 1,8 milhão por ter em depósito madeira sem comprovação de origem legal, além de apresentar informações falsas nos sistemas oficiais de controle florestal.

A Repórter Brasil entrou em contato com Írio Luiz Orth, da família proprietária da Madeireira Iller e, segundo a fiscalização trabalhista, o principal responsável pela administração da empresa. Ele declinou o pedido de entrevista.

Entre 2012 e junho de 2015, a Madeireira Iller foi um dos fornecedores da planta industrial da Tramontina em Belém, no Pará, local onde a empresa fabrica

móveis e utensílios de madeira. Os produtos do grupo Tramontina, líder nacional no mercado de utensílios para cozinha, são vendidos pelos principais varejistas do Brasil. Procurada pela reportagem, a empresa afirmou que interrompeu as compras assim que tomou conhecimento dos problemas da Iller, em 2015 – ou seja, três anos após o flagrante.

Controle da Tramontina não identificou trabalho escravo A Tramontina afirmou, por meio da assessoria de comunicação, que

contrata consultores para avaliar presencialmente as condições de trabalho dos seus fornecedores. Questionada se havia identificado irregularidades trabalhistas na Madeireira Iller em 2012, a empresa relata que a avaliação interna retratou uma realidade bastante diferente da encontrada pela fiscalização. “Nas visitas feitas pela Tramontina, foi possível verificar a existência de refeitório, alojamentos, uso de uniformes e equipamentos de proteção individual. Na hipótese de haver trabalhadores em outros locais, isso não chegou ao conhecimento da empresa”, diz a nota da empresa.

A Madeireira Illler continuou abastecendo a Tramontina até junho de 2015. O corte ocorreu depois que foi constatado que esse fornecedor “provavelmente processava madeira de projetos de origem legal e outros projetos de origem duvidosa”.

Três meses antes disso, no entanto, a Madeireira Iller já integrava a “lista da transparência” do trabalho escravo, documento que divulga o nome das empresas flagradas pelo governo federal praticando esse tipo de crime. A inclusão dos empregadores na lista ocorre após a conclusão do processo administrativo do Ministério do Trabalho relativo às fiscalizações, que garante direito de defesa aos autuados.

A lista é elaborada pelo Ministério do Trabalho por solicitação, por meio da Lei de Acesso à Informação, da Repórter Brasil e do Instituto do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Inpacto). A “lista de transparência” surgiu para preencher o vazio de informação deixado pela ausência da “lista suja” do trabalho escravo – cadastro de empregados flagrados por esse crime, publicado semestralmente pelo Ministério do Trabalho de 2003 a 2014. Em dezembro de 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu uma liminar que suspendia a publicação a pedido de uma associação de incorporadoras imobiliárias. Desde junho de 2016, porém, o STF liberou a divulgação da “lista suja”, mas ela segue suspensa por decisão do governo federal.

Tal como era com a “lista suja”, a “lista de transparência” tem sido utilizada por empresas formalmente comprometidas em combater a escravidão em suas redes de fornecedores (consulte os nomes na última lista aqui). Elas incluem, por exemplo, os associados do Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que assumem o compromisso de definir restrições comerciais aos empregadores flagrados com o crime.

A Repórter Brasil perguntou à Tramontina se a empresa usa a “lista da transparência” no controle de seus fornecedores. “Sempre utilizamos e continuaremos utilizando”, disse a empresa. Por meio de nota, afirmou que, a partir de 2016, reduziu de seis para três meses o prazo para a atualização de cadastros que preveem o descredenciamento de fornecedores envolvidos com trabalho escravo e crimes ambientais.

Os três principais grupos varejistas do Brasil – Walmart, Carrefour e Pão de Açúcar – também se comprometem a restringir negócios com empresas da “lista da transparência”. Tendo em vista que todos são clientes da Tramontina, a Repórter Brasil solicitou o posicionamento deles sobre o caso.

O Carrefour informou que repudia qualquer forma de trabalho análogo ao de escravo ou práticas contrárias à legislação ambiental. Já o Walmart e o grupo Pão de Açúcar (dono do Ponto Frio, Casas Bahia e Extra.com) ressaltaram que a Tramontina já havia tomado medidas para remover a Madeireira iller de sua cadeia de fornecimento. Clique nos nomes das empresas para ver, na íntegra, o posicionamento do Carrefour, do grupo Pão de Açúcar e do Walmart.

Tradelink e Lowe’s Outra madeireira paraense flagrada empregando mão de obra escrava é a

Bonardi da Amazônia. Em outubro de 2012, o Ministério do Trabalho resgatou nove trabalhadores que extraíam madeira nativa para a empresa em Altamira, Pará.

Eles estavam alojados em barracos no meio da floresta, com estrutura de pau retirado da mata. Eram cobertos com lona plástica e tinham piso de chão batido. O local servia como dormitório e a área de refeição. Os trabalhadores tomavam banho e lavavam as roupas em um córrego próximo aos barracos. Não havia banheiro no local, que ficava a 110 quilômetros da cidade mais próxima.

Assim como no caso da Madeireira Iller, os trabalhadores não tinham contratos de trabalho formalizados, e eram pagos por produção. As condições degradantes de alojamento e higiene identificadas pela fiscalização levaram a Bonardi da Amazônia a ser responsabilizada pelo emprego de mão de obra escrava no local, em consonância com um dos critérios que tipificam esse crime no Código Penal brasileiro.

Procurada pela Repórter Brasil, a Bonardi da Amazônia afirmou que assinou um acordo com o Ministério Público do Trabalho para regularizar a situação dos funcionários, e que cumpriu todas as exigências do governo brasileiro (Leia a resposta da Bonardi).

Em 2012, a Tradelink Madeiras era um dos clientes da Bonardi da Amazônia. A empresa afirma que visitou o projeto de manejo desse fornecedor quatro meses antes da fiscalização do Ministério do Trabalho. Segundo a Tradelink, não houve, na ocasião, nenhuma constatação de irregularidade trabalhista no local.

Após o resgate, a madeireira continuou como fornecedora da Tradelink até julho de 2015, mesmo após ter seu nome incluído na “lista da transparência” do trabalho escravo, em março daquele ano. Segundo a Tradelink, o acordo firmado entre a Bonardi da Amazônia e o Ministério Público do Trabalho – que foi devidamente cumprido, segundo o próprio Ministério – foi o motivo pelo qual a empresa decidiu manter a madeireira entre os seus fornecedores após o flagrante (Leia as respostas da Tradelink).

Em 2015, um dos clientes da Tradelink nos Estados Unidos foi a USFloors, que produz pisos de madeira vendidos, por exemplo, pela rede varejista Lowe’s, a segunda maior cadeia de materiais de construção norte-americana. A Lowe’s possui mais de 1,7 mil lojas no país, além de também estar presente no México e no Canadá. A USFloors confirmou que madeira adquirida pela empresa da

Tradelink foi posteriormente vendida à Lowe’s. No entanto, a empresa afirma que essa matéria-prima não era a mesma que a Tradelink havia adquirido da Bonardi da Amazônia. A mesma informação foi dada pela Tradelink, quando procurada pela reportagem.

“Eu fui pessoalmente à fábrica da Tradelink no Brasil e sentimos que, entre todas as fábricas visitadas, a Tradelink era a única com procedimentos adequados para garantir o cumprimento das regulamentações locais e internacionais”, avalia Philippe Erramuzpe, diretor de Operações da USFloors. Em nota enviada à Repórter Brasil, Erramuzpe afirma que a empresa parou de comercializar este produto importado do Brasil via Tradelink devido à “baixa performance de vendas”. O diretor afirma que os fornecedores da USFloors são obrigados a “certificar que o material não é produzido em violação com as leis e regulações locais” e encerra a nota afirmando que “apoia integralmente” o trabalho de investigação da reportagem. (Leia a íntegra doposicionamento da USFloors).

A Repórter Brasil tentou, por diversas vezes, contato com a Lowe´s, por telefone e por email. O varejista, no entanto, não respondeu aos pedidos de esclarecimento encaminhados.

Brooklyn e Central Park Outro cliente regular da Bonardi da Amazônia, desde 2012 até os dias

atuais, é a Ronardi Comercial Exportadora de Madeiras, uma trading brasileira sediada emColombo, no Paraná. Seus clientes incluem empresas norte-americanas, como a Timber Holdings USA. Trata-se de uma fabricante de pisos de madeira que já forneceu matéria-prima para importantes projetos urbanísticos naquele país, como no Atlantic City Boardwalk, na Brooklyn Bridge e em obras no Central Park.

Muitos desses projetos utilizam ipê em sua composição. É o mesmo tipo de madeira que a Timber Holdings adquiriu da Ronardi em 2016, e que a Ronardi, por sua vez, também adquire da Bonardi da Amazônia.

Em resposta à Repórter Brasil, A Ronardi afirmou que “repudia veementemente qualquer transgressão à lei trabalhista”. A empresa diz ter pedido esclarecimentos à Bonardi da Amazônia após o contato da reportagem e reproduziu o comunicado do fornecedor, no qual a Bonardi afirma ter regularizado a situação dos trabalhadores e não ter mais débitos trabalhistas pendentes. (Leia o posicionamento completo da Ronardi).

Também contatada pela reportagem, a Timber Holdings afirmou, na primeira leva de respostas enviadas por email, que a empresa comprou dois contêineres com pisos de Ipê e com documentação de cadeia de fornecimento indicando conexão com a Bonardi de Amazônia Ltda. Posteriormente, porém, a empresa retificou essa informação. Em um segundo email à reportagem, a empresa afirmou que a madeira adquirida da Ronardi tinha origem em outras serrarias, que não a Bonardi.

“Nossa empresa é completamente contra qualquer tipo de trabalho escravo e comércio de madeira ilegal, e deve-se ressaltar que a Timber Holdings foi uma das primeiras empresas do mundo a investir em uma auditoria terceirizada para cada carregamento de madeira importado do Brasil”, diz a empresa. Segundo a importadora norte-americana, nenhum embarque de madeira é aprovado caso

existam empregadores arrolados na “lista da transparência” em qualquer etapa da rede de fornecedores do produto, desde a origem até o vendedor direto (Leia as repostas da Timber Holdings USA).

A realidade dos trabalhadores explorados por serrarias no Pará pouco mudou desde os casos flagrados em 2012. Em outubro do ano passado, a Repórter Brasil encontrou trabalhadores em condições degradantes muito parecidas com as registradas nas serrarias Iller e Bonardi durante fiscalização do Ministério do Trabalho no mesmo estado. Além de condições degradantes, muitos estavam sem receber pagamento e sofriam ameaças quando cobravam seus direitos. Saiba como vivem e morrem os homens que derrubam a Amazônia: “Trabalho escravo na Amazônia: homens cortam árvores sob risco e ameaça”.

Quem são os homens que arriscam a vida para cortar árvores Sem alternativa, migrantes atraídos para a Amazônia na década de 70 hoje ganham a vida derrubando árvores. Muitas vezes em redes que exploram o trabalho escravo

Por Thais Lazzeri | 13/03/17 Animação aqui: http://reporterbrasil.org.br/2017/03/quem-sao-os-homens-que-arriscam-a-vida-para-cortar-arvores/

A definição da palavra colono no dicionário, “aquele que emigra para

povoar e/ou explorar uma terra estranha”, não define apenas o período colonial brasileiro. Em pleno século 21, o termo é aplicado para as famílias que deixaram o Sul e, principalmente, o Nordeste para se instalar no Oeste do Pará. Ludibriadas com promessas de vida próspera na agricultura, feitas pelo governo em plena ditadura militar, lançaram-se ao desafio de colonizar a floresta. Cinquenta anos depois, abandonados pelo Estado, os descendentes desses colonos tornaram-se reféns do trabalho escravo contemporâneo.

Essa é uma das conclusões do relatório “Por Debaixo da Floresta: Amazônia paraense saqueada com trabalho escravo”, do projeto Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão (Raice). A pesquisa mostra como o governo federal teve um papel ativo ao empurrar gerações de trabalhadores para o ofício de derrubar árvores em florestas que deveriam ser preservadas. “A promessa foi tão grande quanto o tamanho do abandono”, diz o pesquisador Maurício Torres, um dos responsáveis pela pesquisa.

Atraídos e depois abandonados em uma região cercada pela floresta, sem equipamento publico ou amparo social, esses trabalhadores foram jogados em um universo sem perspectiva. Só lhes restou aceitar a primeira oferta. Em um ambiente onde a lei não é escrita, tornaram-se presas fáceis das redes de exploração do trabalho escravo. “O agricultor conhece essa situação [de trabalho escravo], mas tem medo de denunciar e sofrer consequências”, diz Egidio Alves Sampaio, da Comissão Pastoral da Terra. São fartos os relatos de donos de serrarias que ameaçam funcionários que ousam cobrar seus direitos. “Aqui impera a lei do silêncio”, diz Sampaio.

A vida na floresta em destruição Como tantas outras estatísticas brasileiras, os dados sobre o colono que

ganha a vida derrubando árvores na Amazônia são limitados. O pouco que se sabe vem da experiência de fiscais do trabalho e outras instituições não-governamentais. Desde 2003, 931 trabalhadores, pagos para derrubar árvores, foram resgatados no Pará – pouco mais de um quinto dos resgates no setor no Brasil. A maioria tem entre 15 e 30 anos, segundo os registros dos fiscais, mas também há idosos e crianças exercendo a atividade.

No Pará, a missão não é desmatar árvores em grandes quantidades. O foco são as toras mais raras com apelo no mercado internacional, como o ipê. Uma vez que não conseguem tirar sustento da terra, os colonos passam a aceitar a oferta para ganhar a vida derrubando árvores dentro de terras protegidas. A oferta de trabalho costuma vir de vizinhos, em geral, ex-empregados de madeireiras – os chamados “toreiros”.

Sem nenhum direito trabalhista, permanecem incomunicáveis mata-adentro por semanas ou meses, como numa prisão sem grades. Quem dita a jornada é o sol. Enquanto tiver luz, o que acontece entre às 4h30 da manhã e às 18h30 da tarde, a motosserra fica ligada.

Os riscos no interior da floresta aumentam progressivamente pelas péssimas condições de trabalho, feito sem nenhum tipo de equipamento de proteção, como óculos, uniforme, capacete, botas e repelente. O equipamento é essencial para protegê-los não só de acidentes, mas de animais peçonhentos.

“Acontece muito de qualquer mexidinha que der na tora, no trator, decepa dedo, decepa mão do ajudante. A tora rola e esmaga o cara”, diz um dos trabalhadores resgatados no relatório que constatou a exploração do trabalho escravo.

O cenário mais chocante para os fiscais do trabalho, diz o pesquisador Torres, é o barraco que faz a vez de alojamento. Sem paredes e erguida com toras menores, protege os trabalhadores apenas com uma lona. O fogão costuma ser uma fogueira com um barril de tinta ou uma panela velha.

As carnes, caçadas ou trazidas pelos próprios funcionários, repousam desprotegidas em varais de barbante. Nos troncos ficam as redes, em menor número que o de trabalhadores – para alguns, só há o chão. A água, muitas vezes captada da chuva, fica depositada em caixas improvisadas sem tampa ou tratamento. Depois de ganhar uma camada de lodo logo nos primeiros dias, ela servirá para matar a sede e cozinhar pelos longos meses de trabalho.

A falta de pagamento também foi uma constante identificada pelo estudo. Em uma das operações do Ministério do Trabalho, os auditores perguntaram aos resgatados qual era seu pior medo ao trabalhar na mata. Esperando ouvir respostas como “sofrer acidentes” ou até “morrer”, eles se surpreenderam ao descobrir que o maior medo dos trabalhadores era não receber pelo trabalho.

O começo da colonização Na década de 1970, famílias de trabalhadores foram instaladas em terras

de até 100 hectares, próximas às rodovias federais recém-construídas, as únicas da região e por onde o sonhado progresso chegaria. Com o tempo, novos

migrantes surgiram, fazendo a chamada colonização espontânea mata adentro, ficando ilhados dentro da floresta.

O segundo agravante era o total desconhecimento das especificidades da Amazônia. Tanto dos colonos, quanto do governo que dividiu a terra. A experiência que levaram consigo do nordeste não gerou frutos em terras paraenses. Para piorar, os lotes foram traçados no mapa, em tamanhos iguais e retangulares, sem levar em conta uma análise do solo.

Sem a construção de uma estrutura mínima de estradas, escolas, postos de saúde, sistema de crédito e assistência técnica, os colonos ficaram vulneráveis. Para se manter no lugar onde vivem, diz Larisa Bombardi, do Laboratório de Geografia Agrária Universidade de São Paulo, a maioria despiu-se de dignidade sem sequer notar. E foi nesse cenário que os madeireiros apareceram.

Em troca de árvores ou graças a acordos pouco claros com políticos, diz Sampaio, os madeireiros levaram estradas até os colonos e ofereceram outros pequenos favores – como dinheiro para o ônibus, diz Torres. Nessa relação, maquiada de benevolência, o agricultor passou a enxergar o madeireiro como um benfeitor. Desde então, o ciclo se repete.

Ainda hoje, os colonos não têm uma vida digna. Moram em pequenas comunidades sem nenhuma infraestrutura, como escola, acesso à saúde, saneamento básico e eletricidade. Torres questiona: “que chances ele tem de não passar fome se não contar com o favor do madeireiro, que o escraviza?”

Leis não barram produtos fabricados com trabalho escravo Produtos que ferem os direitos humanos e destroem a natureza na sua fabricação são vendidos internacionalmente sem controle ou transparência, afirma Kevin Bales, especialista em trabalho escravo contemporâneo Por Ana Aranha e João Cesar Diaz | 14/03/17 http://reporterbrasil.org.br/2017/03/leis-nao-barram-produtos-fabricados-com-trabalho-escravo/

Mineradores em Gana, pescadores de Bangladesh e trabalhadores que

derrubam árvores na Amazônia brasileira têm duas coisas em comum: são submetidos a condições semelhantes ao trabalho escravo enquanto destroem florestas e rios. Outro elemento em comum é trabalharem para produzir materiais que, provavelmente, serão vendidos nas grandes cidades de seus países, da Europa ou dos Estados Unidos.

A conexão entre violações trabalhistas e destruição ambiental em diversos países foi o foco da pesquisa do livro “Blood and Earth”, de Kevin Bales, cofundador da organização Free the Slaves e professor de Escravidão contemporânea da Universidade de Nottingham. Para a pesquisa, Bales viajou para mais de cinco países, entre eles o Brasil.

“A questão central é como alguns grupos estão operando ilegalmente. As pessoas são submetidas a um controle violento em florestas que supostamente estão protegidas”, ele afirma, usando o caso da exploração de madeira na

Amazônia brasileira como exemplo do mesmo sistema que ele viu em funcionamento na África e na Ásia. Escondidos na ilegalidade, os fabricantes estão cometendo crimes para extrair recursos com os menores custos possíveis. Os produtos são vendidos a uma empresa intermediária, onde são enviados para longe sem deixar qualquer rastro de sua origem ilegal. Segundo Bales, os operadores locais assumem os riscos, mas suas práticas ilegais também beneficiam empresas grandes.

Nesta entrevista, ele fala sobre a fragilidade das leis que ainda não conseguem barrar o fluxo de dinheiro entre o consumidor e a rede de exploração do trabalho escravo e destruição ambiental. E tenta responder à pergunta mais difícil: como cortar esse ciclo.

Repórter Brasil — Como a escravidão e a destruição ambiental estão

conectadas? Kevin — A destruição ambiental cria uma vulnerabilidade enorme,

principalmente quando pensamos em pessoas que vivem em harmonia com o meio ambiente, aquelas que trabalham na agricultura, moram no litoral e vivem em lugares onde as mudanças climáticas e a destruição ambiental literalmente arrancam a terra debaixo dos seus pés. A terra desaparece literalmente, sob o aumento do nível do mar, ou por causa de erosão e desmatamento. Há os projetos de construção de hidrelétricas, e os pobres que moram na região são forçados a sair. Isso tudo gera muita vulnerabilidade. Eles são pobres, não têm onde morar, alguns são refugiados. Cria-se um contexto em que as pessoas podem ser escravizadas.

Por outro lado, as pessoas submetidas à escravidão estão sendo usadas, sendo forçadas a cortar árvores de florestas protegidas em todo o mundo. A escravidão está na raiz de uma parte significativa da destruição ambiental, principalmente em termos de emissões de CO2. Com base nos índices de desmatamento e calculando de forma muito conservadora, chegamos à conclusão de que, se a escravidão fosse um país, seria o terceiro maior emissor de CO2, atrás da China e dos Estados Unidos.

Repórter Brasil — O que conecta a escravidão no setor madeireiro no

Brasil com realidades como a mineração de coltan no Congo ou as fazendas de camarão na Índia?

Kevin — Uma das coisas que aconteceram em todos esses lugares é que as proteções ambientais contidas em leis e tratados são boas, mas nenhuma delas tem realmente força de proteção. Elas afirmam: “Esta é uma floresta protegida”, mas ninguém é contratado para protegê-la. Quando contratam, são casos como na África, em que dois homens com uma bicicleta têm de dar conta de milhares de quilômetros de floresta. Enquanto os criminosos têm helicópteros, caminhões, aviões e tudo de que precisam.

Quando se observa a extração ilegal de madeira no Brasil, vê-se que ela está acontecendo em lugares onde a floresta supostamente está protegida. Eu sei que essa questão é polêmica, alguns dirão que “precisamos abrir esses lugares ao desenvolvimento”. Mas a questão central é que pessoas estão trabalhando sob um controle violento em florestas que supostamente estão protegidas.

Repórter Brasil — Você diz que podemos mudar esse sistema adotando

pequenos inconvenientes, como prestar atenção ao que compramos. Mas nós temos informação suficiente para fazer essa escolha?

Kevin — Em muitos casos, não. Todos os dias alguém me pergunta: “Como eu posso saber? Onde está a lista?”. Há algumas listas disponíveis e pesquisas em andamento, mas não o necessário para que possamos de fato fazer essas escolhas.

É uma área muito difícil para policiar e para pesquisar. Muitas vezes, os criminosos se escondem atrás de “laranjas”. Mesmo as pessoas que estão inspecionando cadeias de abastecimento que vão ter dificuldades de penetrar até o nível inferior. E quando os criminosos são expostos, eles passam para uma cadeia de abastecimento diferente. Então é uma questão de vigilância constante.

Mas eu me sinto otimista por ver que tantas pessoas querem saber mais, querem descobrir. E porque mais e mais organizações estão trabalhando para tornar isso possível.

Repórter Brasil — Esta entrevista está sendo publicada como parte de uma

investigação mais ampla, na qual descobrimos que as serrarias responsabilizadas por trabalho escravo no Brasil estavam ligadas à cadeia de fornecedores de grandes marcas nos Estados Unidos. As empresas alegam que o produto específico não é o mesmo extraído pelo trabalho escravo, mas não abrem as informações de rastreamento. Essa informação não deveria ser pública?

Kevin — É claro que deveria ser informação pública. Quanto a isso, não há dúvidas. Se elas alegam que é assim, deveriam provar.

Repórter Brasil — Também há os grupos de certificação que monitoram as

cadeias de fornecedores. Mas, nesses casos, eles falharam. Quem audita as empresas de auditoria?

Kevin — Não existe muita auditoria das auditorias. Há poucos grupos que estão tentando promover investimentos éticos e que irão investigar isso. Estamos no início de um trabalho que pode levar de 20 a 30 anos, enquanto formulamos precisamente como manter essas coisas transparentes e sob controle.

Repórter Brasil — Qual é a legislação mais eficaz para proibir os produtos

ligados ao trabalho escravo? Kevin — A “Lista Suja” do trabalho escravo no Brasil, se fosse feita

corretamente [lista de empresas responsabilizadas pelo trabalho escravo, cuja publicação está atualmente suspensa pelo governo brasileiro]. Eu gostaria de ver mais países usando esse sistema, ele é muito poderoso.

Além disso, o sistema que foi implementado no estado da Califórnia, e agora no Reino Unido, onde se exige uma certa transparência de grandes empresas. A lei se aplica a empresas que estejam acima de um determinado tamanho. Elas têm que informar, todos os anos, o que estão fazendo para investigar e para eliminar o trabalho escravo e o tráfico de sua cadeia de fornecedores.

É um bom ponto de partida. Mas elas só precisam fazer isso: informar. Se encontrarem escravidão em sua cadeia de fornecedores, eles não são punidos.

Talvez isso soe fraco, mas só conseguimos aprovar essa lei na Califórnia porque os grupos empresariais estavam dispostos a apoiar uma lei que não incluía sanções.

Se conseguissem falar livremente sobre seus problemas em vez de mantê-los em segredo, elas teriam a oportunidade de abrir o jogo, com todos no mesmo nível. Isso criaria um contexto onde se poderia começar a abrir a coisa toda para o debate e fazer com que as pessoas começassem a agir sem se sentir ameaçadas.

A ideia era criar uma situação em que elas não se sentissem como se estivessem apenas apontando uma arma contra suas próprias cabeças. Na verdade, elas tiveram a oportunidade de serem transparentes e começarem a avançar na direção do próximo passo.