Toxicomania e Gozo

download Toxicomania e Gozo

of 23

description

artigo

Transcript of Toxicomania e Gozo

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo*Drug Addiction and Enjoyment

    Luci Alves de Oliveira**

    Resumo

    O presente artigo baseado numa pesquisa terica, de referencial psicanaltico, que trata do fenmeno da toxicomania em estruturas neurticas e da dinmica psquica do toxicmano, com especial destaque para a caracterizao de seu modo de gozo, tendo em vista o fato de a drogadio remeter aos impasses do sujeito com seu objeto de gozo. Dentre os pressupostos que nortearam essa pesquisa, ressaltamos a concepo da psicanlise enquanto um tratamento possvel para os casos de toxicomania. Ao abordar o uso de txicos, impor-tante destacar que nos restringiremos apenas quelas formas de consumo em que impera a dimenso compulsiva, na qual a substncia assume um valor soberano sobre a existncia do sujeito, passando a regular sua vida. Desta-camos ainda, que inclumos aqui o alcoolismo nos quadros toxicomanacos, por compreendermos tratar-se tambm de um fenmeno de toxicomania.

    Palavras-chave: toxicomania, droga, gozo, sociedade contempornea, tratamento.

    Abstract

    This article is based on theoretical research, with psychoanalytic reference, which deals with the phenomenon of drug addiction in neurotic structures and the psychic dynamics of the drug addict, with particular emphasis on the characterization of its mode of enjoyment, considering that the drug addic-tion refer to the dilemmas of the subject with his object of enjoyment. Among assumptions that guided this research, we emphasize the concept of psychoa-nalysis as a possible treatment for cases of drug abuse. Broaching the use of

    * Artigo elaborado a partir de monografia apresentada no curso de Ps-Graduao Lato Sensu Psicanlise e Linguagem: uma outra psicopatologia, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.** Psicloga do Setor de Atendimento Psicolgico do Tribunal Regional do Trabalho da 2 Regio/SP. E-mail: [email protected]

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira240

    drugs, it is important to emphasize that we will restrict ourselves only those forms of consumption that predominate the compulsive in which the substance takes a sovereign value in the subjects existence going so far as to regulate his life. We also point out that we include here alcoholism as a drug addiction, because we understand that it is also a phenomenon of drug addiction.

    Keywords: drug addiction, drug, enjoyment, society contemporary, treatment.

    O USO DE SUBSTNCIAS TXICAS NA HISTRIA DA CIVILIZAO

    De acordo com os dados encontrados em Ribeiro (2008), obser-

    vamos que o uso de substncias txicas, em diversas sociedades e culturas,

    tem datao to antiga quanto a organizao dos aglomerados humanos.

    Desde os primrdios da civilizao, o recurso a certas substncias capazes

    de promover alteraes no estado de conscincia, com propriedades esti-

    mulantes, sedativas ou extasiantes, assumiu, em contextos especficos, um

    carter ora religioso, ora medicinal, ora ldico, ora poltico e econmico.

    As sociedades primitivas j conheciam as propriedades singulares de

    diversas plantas alucingenas, que se articulavam a certos rituais de carter

    mtico. Nas sociedades antigas, o uso de substncias hoje consideradas

    txicas destinava-se a fins diversos: podendo conduzir cura, diverso e

    at mesmo morte; da serem denominadas pelos gregos pelo termo phr-

    makon, significando simultaneamente droga curativa, remdio e veneno.

    Na Idade Mdia, com a propagao da tica Crist, as substncias txicas

    passaram a ser vistas como imorais e pecaminosas, por se constiturem em

    fontes de prazer sem esforo; o que fez com que se tornassem proibidas.

    Com a implantao do Modo de Produo Capitalista, observou-

    se o crescimento da demanda e do consumo de muitos produtos com

    propriedades aditivas (lcool, tabaco, caf, chocolate, mate, guaran, pio,

    cnhamo, entre outras especiarias oriundas das ndias). Assim surgiu a

    palavra droga, oriunda do termo holands droog, que designa os produtos

    secos do ultramar.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 241

    Desde o surgimento da Cincia Moderna, o uso de substncias txicas

    deixou de ser considerado condenvel e o seu valor medicinal passou a ser

    legitimado, de modo que o recurso aos psicoativos com finalidades mdicas

    foi retomado, especialmente pelo vis da psiquiatria e da farmacologia. A

    partir do sculo XVIII, a medicina dedicou-se a estudar as reaes provo-

    cadas pelas drogas no organismo, pois, o aumento do consumo de tais

    substncias pela populao em geral acabou por revelar a capacidade das

    mesmas em causar dependncia fsica e psicolgica.

    a partir do sculo XIX, juntamente com a Revoluo Industrial,

    que o uso abusivo de drogas ganhou uma nova forma de expresso, com

    propores e danos alarmantes. Em nossa sociedade contempornea, as

    drogas, tanto lcitas quanto ilcitas, assumem definitivamente a condio

    de objetos de consumo, sendo aladas, portanto, categoria de consumveis

    tanto quanto qualquer outro produto de mercado.

    Em virtude da atualidade, importncia e extenso do problema do

    consumo de drogas, surgiu o interesse na elaborao de uma pesquisa de

    orientao psicanaltica, com o objetivo de uma melhor compreenso do

    fenmeno toxicomanaco em estruturas neurticas e de sua relao com a

    concepo lacaniana de gozo.

    Em conformidade com esse propsito, o artigo aborda algumas das

    principais contribuies de Freud e Lacan sobre as drogas, com destaque

    para a articulao feita por Lacan entre o consumo de substncias e seu

    conceito de gozo1; em seguida, trata de aspectos referentes constituio

    subjetiva e instituio do desejo, bem como do recurso intoxicao como

    um meio encontrado por alguns sujeitos para preencher a angstia gerada

    pela falta constitutiva, provocando, no entanto, a desapario do sujeito do

    desejo; discorre tambm sobre o gozo autstico e/ou cnico, caracterstico do

    1 Gozo: conceito central na teoria lacaniana, considerado estruturante de toda a economia psquica do sujeito, embora, este esteja sempre alienado em relao ao seu gozo, que pode apresentar-se em modalidades mais positivas e construtivas e outras mais negativas e destru-tivas. Em termos psicanalticos, possvel referi-lo ao prazer, ou, dor e sofrimento. O gozo o que transgride o princpio do prazer, estando em seu mais alm. Portanto, relaciona-se com a repetio e com a satisfao da pulso de morte. Tanto pode remeter a uma experincia sub-jetiva (como sensaes do prprio corpo), quanto a uma dimenso intersubjetiva (implicando relaes objetais que incluem o Outro/outro).

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira242

    toxicmano; remete, ainda, dimenso social da toxicomania na sociedade

    contempornea, uma vez que o uso de substncias txicas est tambm

    calcado no ideal da sociedade de consumo; e, finalmente, discute sobre

    alguns aspectos referentes ao tratamento analtico nas toxicomanias.

    AS DROGAS EM FREUD E EM LACAN

    Especialmente a partir do sculo XIX, vrios saberes se dedicaram

    a estudar o consumo de substncias psicoativas, sendo que a psicanlise

    tambm se deteve nesse tema. Apesar de nem Freud e nem Lacan consagrem

    um texto exclusivo s toxicomanias, ambos deixaram importantes articu-

    ladores tericos que possibilitaram um direcionamento sobre o assunto.

    A opinio e o julgamento de Freud a respeito do consumo de drogas

    sofreram importantes transformaes ao longo de sua obra. Se a princpio

    adotou uma postura favorvel sobre a cocana, ao avanar em seus estudos

    ele recuou em relao a essa opinio, em virtude das drsticas consequncias

    ocasionadas pelas suas prescries dessa substncia aos pacientes e ao seu

    amigo ntimo Ernst Von Fleischl-Marxow. No entanto, de forma inovadora

    para sua poca, sugeriu que os efeitos dos txicos eram diferentes para

    cada pessoa.

    Dentre as contribuies mais relevantes de Freud sobre a proble-

    mtica das drogas, destacamos a ideia defendida no texto de 1930, O

    mal-estar na civilizao, na qual os seres humanos, diante das exigncias

    da civilizao, vivenciam um estado de mal-estar, que pode assumir uma

    proporo insuportvel para determinados sujeitos, levando-os a buscar

    medidas paliativas para atenu-lo, diferenciadas da soluo de compromisso

    encontrada pelo sintoma.

    Segundo Freud (1930/1980): A vida, tal como a encontramos,

    rdua demais para ns; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepes, e

    tarefas impossveis. A fim de suport-la, no podemos dispensar as medidas

    paliativas (p. 93). Dentre as medidas paliativas que visam auxiliar-nos a

    suportar a vida, Freud citou a atividade cientfica, a arte e as substncias

    txicas (as quais ele destaca como o mtodo mais grosseiro e eficaz).

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 243

    A intoxicao surgiria, ento, como um tipo de defesa, ainda que

    precria e instvel, a qual o sujeito recorre para enfrentar o mal-estar, que

    est basicamente relacionado ao trauma apresentado pelo sexual e pelas

    exigncias culturais; sendo a intoxicao crnica uma forma extrema disso.

    De acordo com a teoria freudiana, a droga passa a funcionar para alguns

    sujeitos como um amortecedor de preocupaes, afastando a presso da

    realidade e proporcionando um refgio em um mundo prprio, e dessa

    forma, evitando o sofrimento.

    Lacan, por sua vez, adotou como ponto de partida em relao

    questo da drogadio essa ideia freudiana, constante no texto O mal-estar

    na civilizao, acerca da funo de atenuao dos males de existir atribuda

    ao elemento txico. A partir desse pressuposto e de acordo com a descoberta

    analtica sobre a diviso do sujeito, Lacan articulou o recurso s substncias

    txicas com o seu conceito de gozo, sendo o consumo concebido como um

    modo de afastar a angstia advinda da incidncia do gozo do Outro2.

    Ao traarmos um panorama do percurso de Lacan a respeito das

    drogas, vemos que sua primeira referncia ao tema ocorreu em 1938 em

    Os complexos familiares na formao do indivduo, onde relacionou as

    toxicomanias ao traumatismo psquico do desmame. Conforme Lacan

    (1938/1990), o desmame, por qualquer das contingncias operatrias que

    comporta, frequentemente um traumatismo psquico cujos efeitos indivi-

    duais, anorexias ditas mentais, toxicomanias pela boca, neuroses gstricas,

    revelam suas causas psicanlise (p. 23).

    Nessa ocasio, a toxicomania foi considerada por ele como um

    retorno, mesmo que parcial, ao perodo em que o sujeito, ainda indife-

    renciado, estava totalmente fundido imago materna, tal como se supe

    acontecer durante a amamentao.

    Em Formulaes sobre a causalidade psquica, Lacan defendeu que

    o recurso droga pode ser entendido como uma busca de unidade atravs

    de um complemento imaginrio. Segundo afirmou Lacan (1946/1998), essa

    2 Gozo do Outro: designa o gozo do corpo, o gozo do ser, fora do simblico e assexuado; no atingido pela proibio da castrao.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira244

    miragem das aparncias em que as condies orgnicas da intoxicao, por

    exemplo, podem desempenhar seu papel exige o inapreensvel consenti-

    mento da liberdade (p. 188).

    Logo nas primeiras pginas do texto Subverso do sujeito e dialtica

    do desejo no inconsciente freudiano, Lacan (1960/1998) fez meno s

    substncias txicas: Quer se trate dos estados de entusiasmo em Plato,

    dos graus do samadhi no budismo, ou do Erlebnis, experincia vivida do

    alucingeno, convm saber o que uma teoria qualquer autentica disso

    (p. 809); afirmando que o que est em jogo nesses casos um estado de

    conhecimento, que difere radicalmente do saber visado pela psicanlise,

    que seria o de interrogar o inconsciente at que ele d uma resposta que

    no seja da ordem do xtase nem do abatimento, mas, antes, que diga por

    qu (idem, p. 810), fazendo emergir assim a diviso subjetiva.

    Na conferncia intitulada La place de la psychanalyse dans la mede-

    cine, Lacan (1966) citou o exemplo dos txicos, ou seja, dos diversos

    produtos que vo desde os tranquilizantes at os alucingenos (p. 767,

    traduo livre), compreendo-os enquanto produtos do discurso da cincia,

    ou seja, um caso de materializao do efeito real da cincia sobre o corpo.

    No Seminrio XVII, O avesso da psicanlise, Lacan (1969-1970/1992)

    explanou sobre as formas de gozo no mundo atravessado pelo discurso da

    cincia. E, embora no tenha feito nenhuma aluso explcita questo do

    uso de drogas, apresentou uma importante ideia para a compreenso do

    tema, ao afirmar que a caracterstica de nossa cincia no ter introdu-

    zido um melhor e mais amplo conhecimento do mundo, mas sim ter feito

    surgir no mundo coisas que de forma alguma existiam no plano de nossa

    percepo (Lacan, 1969-1970/1992, p. 150). Nessa perspectiva, o recurso

    do toxicmano s drogas apenas um efeito, entre muitos, que a cincia

    produz no mundo.

    Por detrs da concepo dessas coisas que a cincia fez surgir, est

    um conceito que Lacan adotou e que diz respeito tambm s drogas, os

    gadgets - termo ingls que caracteriza invenes forjadas pela cincia, sem

    grande utilidade, mas que tm um efeito de divertir os sujeitos, oferecendo-

    lhes meios de uma fictcia recuperao da satisfao pulsional. Ento, a

    substncia txica adquiriu o estatuto de gadget.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 245

    Ao estreitar a ligao entre o papel das criaes da cincia (gadgets) e

    o gozo, Lacan possibilitou que o txico pudesse ser visto tambm enquanto

    um objeto da cincia na sociedade contempornea, visando recuperao

    da satisfao pulsional e exercendo efeitos, inclusive, sobre o corpo dos

    toxicmanos, por tornar possvel certa relao com o gozo do corpo prprio

    (gozo Uno), ou seja, o gozo sem o Outro. Conforme defendeu Santiago

    (2001), Diante do corpo inseparvel do gozo, a toxicomania poderia, talvez,

    ser vista como um mais-de-gozar particular, correlativo a uma mudana

    operada, pela cincia, no Outro (p. 153).

    em meados da dcada de 70 que se encontra a ltima e mais

    acabada considerao de Lacan sobre a questo da droga, implicando

    numa reviravolta significativa ao que, at ento, ele tinha proposto. No

    pronunciamento que fez nas Journes des cartels de lcole Freudienne

    de Paris, Lacan (1976) falou sobre o casamento do homem com o seu falo:

    [...] porque falei de casamento que falo disso; tudo o que permite escapar

    desse casamento evidentemente muito bem vindo, donde o sucesso da

    droga, por exemplo; no h nenhuma outra definio da droga que esta:

    o que permite romper o casamento com o pequeno-pipi. (p. 268, traduo

    livre)3

    Sendo assim, o ato toxicomanaco constitui-se num fenmeno de

    busca de uma ruptura fundamental com o gozo decorrente da parceria

    estrutural para todo neurtico - a parceria flica. O essencial dessa ltima

    definio lacaniana a respeito da toxicomania, portanto, a tese de que o

    casamento com a droga viria substituir o casamento com o atributo flico,

    criando uma nova forma de gozo que rompe com o gozo tradicional, sexual

    ou flico4, subordinando-o a um gozo Outro, fora do simblico, pois, da

    ordem do real e no gira em torno do falo.

    3 Em francs: (...) cest parce que jai parl de mariage que je parle de a ; tout ce qui permet dchapper ce mariage est videmment le bienvenu, do le succs de la drogue, par exem-ple ; il ny a aucune autre dfinition de la drogue que celle-ci : cest ce qui permet de rompre le mariage avec le petit-pipi.4 Gozo flico: tem no falo o centro de sua organizao e uma referncia permanente. um gozo sexual, que resulta da traduo do gozo corporal pelo significante, sendo, portanto, gozo da fala, fora do corpo. limitado e submetido ameaa da castrao.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira246

    Conforme esse pressuposto lacaniano, a questo que se coloca para o

    sujeito, diante do insuportvel de sua diviso, se ele manter o casamento

    com seu falo, mesmo sob a pena da subtrao de seu gozo, ou, se transpor a

    marca da diviso atravs de um movimento de ruptura com o inconsciente,

    provocando a desvinculao da articulao do sujeito com o Outro.

    O SUJEITO DO DESEJO E A TOXICOMANIA

    Para compreendermos melhor o fenmeno da toxicomania, inevita-

    velmente acabamos por tangenciar a questo do sujeito, particularmente

    no que se refere s noes de desejo e gozo.

    O momento do dipo permite o acesso do sujeito dimenso simb-

    lica, uma vez que interpe relao dual me-filho uma relao ternria,

    instaurando o inconsciente e, portanto, a diviso subjetiva. Por conseguinte,

    ao aceder ao simblico o sujeito se divide, abrindo espao para a emergncia

    de algo da ordem do desejo, da fantasia, e do inconsciente.

    Entretanto, a passagem pelo dipo, e a consequente assuno da

    castrao, ocasionam a perda do gozo ilimitado, fazendo com que o sujeito

    se confronte com o objeto faltoso. A partir dessa perda originria de gozo,

    o sujeito passa a viver numa relao contnua com uma falta de satisfao,

    isto possibilita a instituio do desejo, que , justamente, a expresso dessa

    falta de satisfao absoluta. aquilo que lhe falta que constitui o seu desejo,

    e este remete sempre a uma falta.

    O sujeito s ter acesso ao lugar de desejante se puder suportar a

    perda imposta pela ausncia do objeto. E somente a partir do desejo que

    o sujeito surge. Para a psicanlise, o termo sujeito refere-se ao sujeito do

    inconsciente, portador do significante do desejo. Portanto, podemos afirmar

    que a Lei da linguagem que marca a existncia do sujeito, pois o obriga

    a abdicar do gozo e a desejar.

    Ao remeter ao objeto ausente, desde sempre perdido, o desejo

    permanece para sempre insatisfeito, o que leva a uma busca incessante de

    novos objetos, na tentativa de obter esta plena satisfao to almejada e

    jamais alcanada.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 247

    No entanto, o contato com esse vazio constitutivo e, consequente-

    mente, com a diviso estrutural, constitui-se num fator gerador de extrema

    angstia; por isso, o ser humano est sempre em busca de um significante

    que possa criar a iluso de preenchimento e completude. Esta busca por

    coisas que possam tapar esse buraco impreenchvel pode se tornar intensa,

    levando alguns sujeitos a recorrerem ao recurso insistente da intoxicao,

    enquanto uma soluo para completar imaginariamente a falta. precisa-

    mente contra a falta que o ato toxicomanaco erige rebelio. Ento, a nica

    falta reivindicada pelo toxicmano passa a ser a da droga.

    A busca pela completude e pela soluo imediata dispensa o drogado

    de confrontar-se com seu desejo. Dessa forma, a intoxicao consiste num

    meio encontrado pelo sujeito para tentar no se deparar com o inconve-

    niente da castrao e com o irrepresentvel do sexo. A soma da substncia

    e do usurio igual a Um, excluindo a diviso e, portanto, as formaes

    do inconsciente.

    A falta-a-ser na toxicomania no parece provocada por um objeto

    no-nomevel e irrecupervel, mas por um artifcio, que sob o invlucro do

    objeto da demanda, mascara o sujeito do desejo (Santiago, 2001, p. 192). O

    drogado se suprime enquanto sujeito do desejo, e o que se pe a falar nele

    o Outro sem freio. Ento, temos na toxicomania um exemplo clssico de

    resposta s demandas do Outro. O toxicmano, ao romper com a parceria

    flica, suspende voluntariamente a diviso subjetiva, prevenindo, assim, a

    ao do Outro.

    As relaes que cada sujeito estabelecer com as drogas so sempre

    meios singulares de lidar com o desprazer, com o mal-estar, com a castrao,

    e, em ltima instncia, com a diviso subjetiva (a spaltung freudiana). O

    recurso s drogas surge como uma sada que auxilia o toxicmano a suportar

    a dor de existir, o sofrimento de sua diviso subjetiva, o insuportvel do

    impossvel da relao sexual e o mal-estar existente na cultura e nos laos

    sociais. Ante a dor de existir, o sujeito recorre droga como uma resposta

    no simbolizada.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira248

    Campanrio (2000) relacionou a adio s drogas a uma operao

    que configura a desapario do sujeito diante de um sofrimento intolervel,

    apresentando-se como ser de puro gozo, em detrimento do sentido e do

    pensamento:

    O sujeito vem a se eclipsar no dispositivo da toxicomania num determi-

    nado momento de sua histria. A adio s drogas parece ser um modo de

    resposta a ocasies que demandam simbolizao, por exemplo, luto, sepa-

    rao, encontro do sujeito com o outro sexo. [...] No entanto, o sujeito no

    responde aqui atravs de significantes, sintomas, sonhos, mas sim por uma

    ao. uma prtica que age diretamente sobre o corpo e curto-circuita o

    campo do dizer. (p. 68)

    A parceria estabelecida entre o sujeito e o objeto droga caracteri-

    zada pelo fato do primeiro passar a ser assujeitado pelo segundo. Vemos

    configurar-se, essencialmente, uma situao de desapario do sujeito do

    desejo quando este se v diante da dor de existir, colocando-o na condio

    de objeto da droga.

    A droga, quando se torna objeto da necessidade, mascara ou subs-

    titui o desejo inconsciente, que fica mais desconhecido do que nunca, ao se

    disfarar como uma exigncia do organismo. A substncia assume, assim, o

    carter de um objeto insubstituvel, de valor absoluto, tornando-se objeto

    causa do gozo e no do desejo.

    Podemos concluir, portanto, que a prtica do uso excessivo de drogas

    pode ocasionar grande prejuzo ao psiquismo do toxicmano, porque

    provoca a ruptura com o inconsciente, a desarticulao da cadeia signifi-

    cante e a suspenso dos efeitos do sujeito. Nessas condies, mantm-se

    adiada a impossibilidade da relao sexual e, devido ao fato da conscincia

    permanecer alterada, no h mais responsabilidade de ser sujeito.

    Consequentemente, o que fica fora de questo para o drogado o

    inconsciente, provocando a alienao do seu desejo enquanto falta, o seu

    desaparecimento enquanto sujeito e a suspenso, inclusive, de sua estru-

    tura. A droga supre o espao de interrogao do sujeito sobre seu desejo

    e visa evitar seus sintomas, agindo como uma mscara para os mesmos.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 249

    Trata-se de um modo de recusa radical do falo, da castrao e das formaes

    do inconsciente e, por conseguinte, caracteriza-se como um fenmeno de

    ruptura com o desejo e de eclipsamento do sujeito.

    A TOXICOMANIA E O GOZO AUTSTICO E/OU CNICO

    A toxicomania remete, inexoravelmente, questo do gozo, pois,

    a prtica do uso de drogas constitui-se numa tcnica de manipulao do

    prprio corpo com o objetivo de extrair-lhe gozo, do qual o sujeito no

    consegue mais prescindir. Eis um corpo submetido ao do significante

    e inseparvel do gozo.

    Temos, ento, o estabelecimento de uma satisfao bastante espec-

    fica, que se distingue da dependncia biolgica e tenta enfrentar as pertur-

    baes do gozo do corpo. Por revelar uma relao sem embarao com seu

    objeto, o toxicmano apresenta-se como ser de puro gozo.

    Na drogadio, o sujeito faz uma eleio de gozo que suprime a

    palavra, obtura a falta, e s aceita e cr no gozo possvel de ser obtido no

    prprio corpo, assegurado pelo txico (Sillitti, 1998, p. 34). Trata-se de

    um gozo muito particular, patolgico, que sustentado por um conjunto

    sem bordas, no sendo construdo sobre um limite. Esse o modo de gozo

    regulado pelo Outro, ou, como denominou Melman (1992), o Gozoutro,

    que oposto ao gozo flico, sendo, portanto, no flico.

    O uso de drogas visa, justamente, recuperar parte do gozo primiti-

    vamente perdida a partir da inscrio na funo flica. O toxicmano o

    sujeito que materializa a vontade de ser infiel ao casamento que um dia

    todo neurtico contrai com o falo, ou seja, o casamento do gozo flico com

    seu corpo. Ento, ainda que no saiba disto, ele se recusa a entrar no gozo

    flico, optando por um gozo mortfero.

    Devido ruptura fundamental com o gozo flico, a dimenso flica se

    torna radicalmente ausente no toxicmano e sua instncia terceira norma-

    lizadora encontra-se defasada. Da seu repdio a todo dever flico, ou seja,

    a tudo o que concerne representao de si: como a distino do sexo, o

    lugar da famlia, o papel da procriao, a competio social, o investimento

    numa carreira, etc. Trata-se de recusar todos esses valores e liberar-se

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira250

    das limitaes impostas pelo gozo flico. A drogadio se constitui, ento,

    numa tentativa artificial de suspenso da funo flica, sem que haja uma

    forcluso do Nome-do-Pai.

    Segundo ric Laurent (1997), conceber a toxicomania enquanto

    uma formao de ruptura com o gozo flico implica em trs conseqn-

    cias lgicas: o sujeito poder gozar sem a fantasia, poder apresentar uma

    ruptura com o Nome-do-Pai que no psicose e poder fazer surgir o gozo

    uno como no sexual.

    Por permitir um acesso privilegiado ao gozo, o objeto droga constitui-

    se num modo de impugnar a exigncia do Outro e da cultura, exercendo

    uma funo de corte, de recuperao de gozo. A droga uma espcie de

    faz-gozar moderno, que possibilita um suplemento de gozo, denominado de

    mais-gozar, que busca preencher aquilo que falta e recuperar o gozo perdido.

    O que o toxicmano busca a abolio da existncia, ainda que

    transitria e momentnea. Considerando essa vontade de desaparecer,

    de ausentar-se, Melman (1992) chegou a propor que o objeto de gozo do

    toxicmano a morte. Defendeu ainda, que a ocasio em que o toxicmano

    absorve seu produto lhe assegura um estado de prazer, de reduo das

    tenses psquicas e de apaziguamento, mas, o que pode ser considerado

    como seu momento propriamente de gozo , justamente, aquele em que

    est em estado de falta da droga. Ou seja, paradoxalmente, em sua tentativa

    de rechaar a castrao, o que o drogado faz com seu ato , na abstinncia

    pelo fim da substncia, restituir a falta do objeto. O estado de falta vem,

    exatamente, presentificar o insuportvel sua prpria diviso psquica.

    Portanto, a abstinncia faz parte da economia do gozo do toxicmano - o

    toxicmano ama o estado de falta porque dele goza (Melman, 1992, p. 110).

    Em relao a um possvel paralelo entre o modo de gozo no flico da

    mulher e o gozo Outro, caracterstico da toxicomania, Melman (1992) consi-

    derou que o gozo Outro feminino pode, eventualmente, ser completamente

    homogneo ao gozo encontrado na clnica do alcoolismo e das toxicomanias

    (p. 129). J Bentes e Gomes (1998), por outro lado, defenderam que o gozo

    na toxicomania por no passar pelo simblico, fica tudo a dever ao gozo

    feminino que no desconsidera o falo (p. 25). Teixeira (2006) tambm

    argumentou que no se trata de aproximar o gozo txico ao gozo Outro

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 251

    feminino; segundo esse autor, o que est em jogo na toxicomania mais

    prximo ao que Lacan nomeou como a tica do celibatrio, que designa

    as diversas posies libidinais em que a mulher no objeto (pp. 85/86).

    O gozo particular da toxicomania pode ser classificado como sendo

    autstico e/ou cnico, em decorrncia de suas caractersticas de autonomia

    e independncia do outro, com capacidade de neutralizar o efeito de diviso

    subjetiva que o Outro faz incidir no sujeito. Portanto, observa-se nesses

    casos uma ruptura com o Outro da linguagem e da Lei.

    Na drogadio o sujeito passa a cultivar seu pequeno gozo pessoal,

    que nada tem de subversivo, por estar destitudo de ideais consistentes.

    Trata-se de uma satisfao autstica e solitria, na medida em que o drogado

    consegue reduzir os efeitos do Outro significante, ambicionando remediar

    e mesmo aniquilar o seu campo de ao, de forma que sua satisfao fique

    situada em sua prpria maneira de gozar e em seu prprio corpo, no

    passando pelo corpo do outro.

    O toxicmano encontrou um modo de substituio da sexualidade,

    conjugando amor e gozo num s produto, facilmente alcanvel. A droga

    e a bebida substituem o parceiro sexual, tornando o drogado e o alcoolista

    totalmente satisfeitos com o seu objeto. Na relao entre o toxicmano e a

    droga estabelece-se o encontro com um parceiro que no demanda, no fala,

    no frustra. Neste sentido, o casamento com a droga extremamente feliz,

    pois o casamento com o Um, onde a alteridade no existe. A substncia

    sempre do sujeito gozo do mesmo.

    O que vem a se tornar muito evidente nas toxicomanias a questo

    do ataque e esgaramento dos vnculos sociais do sujeito, uma vez que seu

    gozo se d fora do lao social, pois, h a recusa de que o gozo do prprio

    corpo seja metaforizado pelo gozo do corpo do outro. Da considerarmos

    a parceria com a droga como cnica, consistindo numa vontade de curto-

    circuitar os efeitos do Outro, j que, atravs do uso da substncia o sujeito

    passa a rejeitar o Outro e a crer unicamente em seu prprio gozo, rompendo,

    geralmente, com as relaes sociais para ficar com o txico.

    Por conseguinte, o discurso do toxicmano apresenta-se empobre-

    cido, suas relaes se constituem de forma extremamente precria e frgil

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira252

    e, aos poucos, seu crculo social reduz-se a seus familiares, ao fornecedor de

    droga, aos companheiros de uso, ao uso mais solitrio e, enfim, ao prprio

    corpo degradado.

    O drogado geralmente rompe com a cultura, com a palavra, com o

    lao social, e com as trocas simblicas com o Outro, que seriam decorrentes

    da ordem flica, para ficar com a droga, que pode vir a se tornar um objeto

    privilegiado por possibilitar ao sujeito o alcance de um estado de pleno

    gozo, prescindindo da relao com o outro/Outro. A droga vem obturar a

    angstia que surgiria do seu encontro com o desejo do Outro.

    Essa forma de gozo do corpo caracterstico da toxicomania, que desa-

    loja o sujeito colocando-o fora do discurso como expresso do vnculo social,

    fez Braunstein (2007) nome-lo de sem-dico, ou ainda, de A-dico, pois,

    o gozo do aqum, o primitivo gozo do ser, anterior palavra (p. 284).

    AS DROGAS NA SOCIEDADE CONTEMPORNEA

    Ao colocar as drogas na mesma dimenso dos gadgets, a psicanlise

    possibilitou uma diferenciao entre o consumo de substncias txicas

    realizado em perodos histricos passados e seu uso contemporneo, no

    qual elas so situadas como um efeito da cincia.

    A cincia moderna, ao mesmo tempo em que incentiva o gozo por

    meio da produo de gadgets, tambm acaba por exclu-lo, ao reduzir

    o corpo sua dimenso puramente biolgica. Essa contradio deixa ao

    sujeito contemporneo a questo sobre que destino dar ao seu gozo. O

    fenmeno da toxicomania surge a, ento, como uma resposta possvel, que

    parece ser perfeitamente compatvel com nossa sociedade atual, fundamen-

    talmente narcsica, que prima pela obteno do prazer a qualquer custo,

    priorizando o sucesso individual e a auto-suficincia em detrimento da

    dimenso social e poltica.

    Na sociedade contempornea a prpria insatisfao tornou-se

    mercadoria, impulsionando a lgica do consumo que rege a economia de

    mercado. Em funo disso, na concepo de alguns autores, a toxicomania

    hoje possui tambm uma causa que social, uma vez que o uso de subs-

    tncias txicas est calcado no ideal da sociedade de consumo, que procura

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 253

    satisfazer nosso desejo de neurtico atravs da busca de um gozo que se

    pretende pleno e sem furos, rechaando a falta e a incompletude inerentes

    falta-a-ser do humano. Os toxicmanos, e aqui podemos incluir tambm

    todos os neurticos, pautam-se na existncia de um bem soberano, a ser

    reencontrado num objeto que viria preench-los e satisfaz-los plenamente.

    O discurso capitalista no visa regulao do gozo pela linguagem,

    mas visa prpria promoo do gozo, tornando abundante a oferta de

    gozo fcil, rpido e disponvel ao consumo e transformando o gozo num

    imperativo categrico e superegico: Voc tem que gozar, a todo tempo

    e a qualquer custo!. Nessa perspectiva, promove-se uma nova economia

    libidinal na qual se coloca os gadgets no lugar do objeto causa do desejo,

    na tentativa ilusria de tamponar a falta do sujeito. Portanto, o consumo

    elevado de substncias txicas pode ser associado ao fato delas proporcio-

    narem a obteno rpida e fcil de prazer, alm do afastamento das dores

    fsicas e psicolgicas.

    Se antes a regra transmitida de pais para filhos era a renncia ao

    gozo, em proveito do esforo e do trabalho, em nossos dias atuais observa-

    se que as pessoas privilegiam o gozo; sendo tentadas a adotar caminhos

    mais curtos e fceis diante das dificuldades. Tal fato parece testemunhar

    uma transformao na economia de gozo da sociedade contempornea, na

    qual os filhos so considerados como uma fonte de satisfao reparadora

    do gozo e dos ideais frustrados de seus pais, que passam a agir de maneira

    a no deixar que nada venha a lhes faltar.

    Diante desse contexto, Melman (1992) chegou a formular a tese de

    que os toxicmanos eram os filhos de nossos ideais (p. 115); da compre-

    endermos a toxicomania tambm enquanto um fenmeno de massa.

    Em relao materializao do efeito real da cincia sobre o corpo

    na atualidade, consideramos que os casos de uso de substncias txicas

    incluem, alm das drogas e do lcool, tambm os medicamentos psico-

    trpicos (tranquilizantes, neurolpticos, antidepressivos, etc.). Pois, estes

    ltimos tambm so produtos inventados em laboratrio, que agem de

    modo a possibilitar que seus usurios sintam-se aliviados da dura realidade

    de sua existncia, fornecendo um bem-estar ilusrio e uma sada pela via

    do gozo em detrimento ao desejo.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira254

    Os medicamentos de ao psquica vm ganhando cada vez mais

    espao em nossa sociedade e testemunhamos inmeros casos nos quais

    se instalou um quadro de crescente consumo, dependncia e submisso

    ao psicotrpico. A grande oferta de medicamentos e a fcil aquisio dos

    mesmos fomentam o recurso desenfreado a tais substncias que prometem

    felicidade, calam o desejo e desresponsabilizam o sujeito pelo seu mal-estar.

    Tanto em relao ao fenmeno toxicomanaco quanto em relao aos

    distrbios psquicos, constatamos na psiquiatria contempornea o predo-

    mnio da abordagem neurobiolgica, que no leva em considerao o lugar

    da linguagem, do gozo, do desejo, e, consequentemente, no possibilita

    espao para a emergncia do sujeito.

    Embora de modo algum se deva descartar ou afastar os saberes da

    clnica mdica, psiquitrica ou farmacolgica do conjunto de intervenes

    nesses casos, psicanlise cabe fazer frente a esses discursos, priorizando

    a dimenso do sentido do ato toxicomanaco e/ou da doena mental, e

    oferecendo a possibilidade de compreenso desses fenmenos na singula-

    ridade de cada sujeito.

    SOBRE O TRATAMENTO ANALTICO NAS TOXICOMANIAS

    Para a grande maioria dos psicanalistas, a toxicomania no conce-

    bida como um sintoma no estrito sentido freudiano, justamente por no

    se constituir do mesmo modo que as clssicas formaes do inconsciente.

    O sintoma analtico implica o retorno do recalcado e, portanto, envolve a

    vertente simblica na produo de uma mensagem, que pode ser analisada

    atravs da lgica dos mecanismos de condensao e deslocamento. J a

    toxicomania, diferentemente do sintoma analtico, configura-se num dizer

    sem palavras, sem mensagem, restrito ao ato puramente impulsivo que

    adquire envergadura de repetio; constitui-se, assim, numa fixao de

    gozo, que rechaa o saber e o inconsciente.

    De acordo com essa concepo, os txicos no so uma soluo de

    compromisso como o sintoma freudiano, mas sim uma ruptura, uma sada

    para o mal-estar, uma maneira de, pela via do gozo imediato, afastar-se da

    realidade e evitar o confronto com a castrao. Nesse sentido, a toxicomania

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 255

    denominada por alguns autores, juntamente com a bulimia, a anorexia e

    o ataque de pnico, como um sintoma atual. Tais sintomas da atualidade

    apontam para uma falha da funo simblico-imaginria, e especializam-se

    em evitar a dor e fugir da subjetividade.

    A adio s drogas solapa o sujeito do inconsciente, afastando-o

    do desejo e tornando-o amplamente resistente ao dispositivo analtico.

    Em consequncia, o toxicmano geralmente s chega para a anlise se for

    trazido por algum (um amigo, familiar ou parceiro); muito raramente ele,

    por si s, toma a iniciativa de procurar o psicanalista, pois, no tem nada

    a demandar, uma vez que a droga funciona como um remdio que tem

    como efeito aliviar a dor da existncia. fato comum, inclusive, que tal

    paciente comparea apenas primeira consulta com o psicanalista e no

    mais retorne.

    Portanto, enquanto estiver em equilbrio prazeroso com a droga, o

    toxicmano no procura a anlise. Essa procura s tem chances de ocorrer

    quando ele se depara com certa impotncia frente droga, sentindo que

    perdeu o seu controle, ou ainda, quando, apesar de toda drogadio, a

    angstia reaparece.

    No caso de busca por uma anlise, o tratamento que se inicia

    extremamente frgil e enfrenta muitas dificuldades, como baixa adeso,

    inmeras intercorrncias e atuaes, bem como frequentes recadas, pois,

    assim que a angstia diminui, o retorno ao recurso da drogadio normal-

    mente privilegiado.

    O tratamento analtico s se sustentar se o paciente desejar ser

    cuidado e interrogar-se a respeito da situao existencial em que se

    encontra. No entanto, fato notvel que os toxicmanos que se mantm

    em anlise apresentam intensa e vida transferncia, possibilitando que

    aquilo que no pode ser simbolizado torne-se acessvel na relao trans-

    ferencial. Isso indica que a instncia terceira no est totalmente morta

    nesses pacientes.

    Na toxicomania, a anlise deve ser orientada pela tica do desejo,

    conduzindo o sujeito a um trabalho de construo e elaborao de suas

    questes e pondo o inconsciente a trabalhar. Sabemos que o que norteia

    o uso de drogas est relacionado com a estrutura clnica (neurose, psicose

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira256

    ou perverso) que dada na singularidade de cada um. Portanto, a toxico-

    mania no se constitui numa estrutura, mas sim, numa operao sobre a

    mesma. Desse modo, o que proposto numa anlise que o sujeito dirija-se

    do fenmeno (drogadio) para a estrutura clnica, de onde se fez escapar.

    Tendo em vista a estreita relao entre o fenmeno toxicomanaco e

    a carncia da metfora paterna, Bittencourt (2003) defendeu que:

    [...] o objeto do trabalho analtico seria de algum modo trabalhar primeira-mente o pai como imagem, para que possa ento advir o desligamento deste e finalmente sua ultrapassagem, no nos termos de sua funo, posto que isso impossvel, mas ultrapass-lo como homem. (p. 100)

    A interveno clnica nas drogadies exige do analista alguns

    manejos bem especficos, que se iniciam j nas entrevistas preliminares,

    visando criar condies para que o paciente formule uma queixa, uma

    demanda de tratamento, com base numa fonte subjetiva de sofrimento, e

    no apenas em sua dependncia toxicolgica.

    Ainda nas primeiras entrevistas, imprescindvel que o analista

    procure determinar o lugar que a droga ocupa na economia psquica do

    sujeito, bem como sua posio subjetiva e a causa de sua dependncia.

    Conforme formulou Romeo (1997):

    A funo do analista, de conduzir ao lugar de trabalho analtico, principal-mente ao longo das entrevistas preliminares, fica representada, na clnica das toxicomanias, como uma escuta voltada para investigar o carter de eficcia que a substncia teve em dado momento na evitao de confronto do sujeito com a castrao, e quando essa eficcia foi anulada, e o qu gerou essa falncia, relacionada ao significado do momento de busca de tratamento. (p. 140)

    Entretanto, o analista precisa ser cauteloso, pois, o toxicmano

    muito rapidamente identificado ao sintoma de apresentao. Ancor-lo

    precocemente em um diagnstico reducionista seria contribuir para a

    fixao de sua posio, que j comparece impregnada de um empobreci-

    mento da capacidade simblica. A apresentao sou toxicmano, ou sou

    drogado, confere um semblante de identidade que no deixa de ser uma

    mscara que deve ser retirada para que as verdadeiras perguntas do sujeito

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 257

    sejam ouvidas e para que haja possibilidade de o registro inconsciente fazer

    sintoma. Por isso, imprescindvel que o profissional atribua a seu paciente

    o estatuto de sujeito e no o de toxicmano.

    Somente tal postura poder promover um giro de discurso e permitir

    ao sujeito agenciar um discurso em que o uso da droga revela a verdade

    singular e recalcada (Alberti, Inem & Rangel, 2003, p. 23). Ainda segundo

    as referidas autoras, preciso colocar esse sujeito a trabalhar com todo

    o sofrimento que ele fizera equivaler droga, o que exige a presena do

    analista e de seu ato a apostar no desejo, irrestritamente, intransigente-

    mente at mesmo para o analista (idem, p. 26).

    Ao permitir um curto-circuito sem mediao do simblico, a into-

    xicao mostra-se resistente ao discurso, constituindo-se numa forma de

    esvaziamento da significao. Pautado nisso, o analista, na conduo de

    casos de drogadio, deve situar no centro de seu trabalho o ato que cria a

    palavra, fazendo com que o paciente ponha-se a falar, para que no continue

    a seguir pela via da atuao.

    A partir do que o paciente fala, busca-se aproximar o sujeito dos signi-

    ficantes que ele profere e possibilitar a abertura a certos questionamentos

    vinculados castrao, pois, ao fazer enigma para o sujeito, permite-se a

    instaurao da suposio de saber, fazendo surgir da demanda a dimenso

    do desejo, desejo de saber. O mais importante poder escutar o analisando

    e ater-se ao seu discurso, enfocando o sujeito do inconsciente ao invs da

    substncia.

    No decorrer da anlise com o toxicmano observamos o progressivo

    esvaziamento do gozo e a consequente abertura para as questes do desejo,

    porm, esse percurso no ocorre sem que se produza angstia, e, inclusive,

    recadas no txico. Nesses momentos, o analista deve intervir para dirigir

    o sujeito dimenso simblica, auxiliando-o a questionar-se acerca de seu

    consumo e a dar sentido sua experincia, concedendo ao sexual o seu

    lugar de elaborao fantasmtica.

    Em relao exigncia ou no da abstinncia da droga como condio

    para o tratamento, encontramos diversos posicionamentos tericos que se

    complementam e/ou se contrape.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira258

    De acordo com Melman (1992), o estado de falta do produto participa

    do gozo, portanto, o analista no deve se colocar na posio de produzir

    a abstinncia em seu paciente, uma vez que a proibio ir erotizar ainda

    mais o fenmeno.

    Ao querer remitir o sintoma do toxicmano, o analista pode desviar-

    se de uma postura tica e conduzir-se a uma impostura moral. Conforme

    Romeo (1997), Se o analista pretender a abstinncia do paciente ao uso

    de drogas, pode-se prever a manifestao de uma inibio do ato analtico,

    como resistncia a intervir transferencialmente (p. 136).

    De acordo com tais pressupostos, no se trata de tirar o sujeito da

    droga, nem de punir as recadas ou gratificar as abstinncias, e sim, de

    tentar mant-lo na via do desejo e de trazer luz o gozo obscuro que est

    apoiado num ganho ilimitado.

    Entretanto, Baptista (2003) considerou que a condio prvia para o

    tratamento analtico o desmame das substncias txicas, no podendo

    haver cura pela palavra sem uma clara mudana objetal do objeto

    suposto-saber-fazer-gozar (a droga) para o objeto causa de desejo (p. 221).

    Existem autores que defendem que, uma vez tendo o tratamento

    comeado e o vnculo transferencial sido estabelecido, seja acordado com

    o paciente que o fato dele chegar drogado interdita a sesso. Conforme

    Albuquerque (2003):

    Apesar de o uso da droga no constituir obstculo para transferncia, neutra-

    liza a interpretao tanto quanto neurolpticos ou benzodiazepnicos, na

    medida em que sempre vm de alhures, emanaes do discurso da cincia

    que, desprezando o inconsciente, exonera a responsabilidade do sujeito,

    dispensando-o de um se perguntar, dissipando a produo de significados.

    (p. 71)

    A atitude teraputica proposta pelo psicanalista Melman (1992) a

    de que a droga deixe de ser interditada, j que a interdio contribui para

    a manuteno da toxicomania, uma vez que faz parte da economia de gozo,

    alm de reforar o preo do txico. O autor considerou conveniente no

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 259

    liberalizar o uso da droga, mas medicaliz-la, ou seja, que ela seja prescrita

    por mdicos. Ele defendeu que a medicalizao provocaria a deserotizao

    do produto.

    Para concluir, no podemos deixar de ressaltar que o tratamento do

    toxicmano constitui-se num dos grandes desafios lanados prxis psica-

    naltica na contemporaneidade, o que torna absolutamente crucial que o

    psicanalista no recue diante da complexidade de tais quadros. Apesar de

    no ser funo da anlise curar a dependncia, sabemos que a remisso

    sintomtica poder vir como consequncia da modificao da economia

    psquica do sujeito.

    A responsabilidade do analista possibilitar que o toxicmano,

    homogeneizado por esse gozo mortfero, possa orientar-se pelo singular do

    seu sintoma; numa tentativa de compromet-lo com o possvel acesso ao

    prprio de seu desejo. Fazer passar pelo inconsciente o sujeito toxicmano

    a promessa do discurso analtico, para que um novo sujeito possa advir;

    sujeito do desejo e no assujeitado s drogas.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Alberti, S.; Inem, C. L.; & Rangel, F. C. (2003). Fenmeno, estrutura, sintoma

    e clnica: a droga. Revista Latinoamericana de Psicopatologia

    Fundamental, VI, 3, 11-29.

    Albuquerque, J. D. C. C. (2003). A prtica psicanaltica e as toxicofilias. In M.

    Baptista, M. S. Cruz & R. Matias (Orgs.). Drogas e ps-modernidade

    prazer, sofrimento e tabu (pp. 67-76). Rio de Janeiro: EdUERJ.

    Baptista, M. (2003). A poltica de substituio e a psicanlise: seria essa

    poltica um trfico do Nome-do-Pai? In M. Baptista, M. S. Cruz &

    R. Matias (Orgs.). Drogas e ps-modernidade faces de um tema

    proscrito (pp. 213-222). Rio de Janeiro: EdUERJ.

    Bentes, L. & Gomes, R. F. (1998). A mordaa infernal. In L. Bentes & R. F.

    Gomes (Orgs.). O brilho da infelicidade (pp. 21-30). Rio de Janeiro:

    Contra Capa Livraria.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Luci Alves de Oliveira260

    Bittencourt, L. (2003). O rei est nu: um dos avatares da funo paterna

    na sociedade contempornea. In M. Baptista, M. S. Cruz & R. Matias

    (Orgs.). Drogas e ps-modernidade prazer, sofrimento e tabu

    (pp. 97-109). Rio de Janeiro: EdUERJ.

    Braunstein, N. (2007). Gozo. So Paulo: Escuta.

    Campanrio, I. S. (2000). Algumas consideraes acerca do gozo nas

    toxicomanias. Revista Reverso, 47, 67-71. Belo Horizonte: Crculo

    Psicanaltico de Minas Gerais.

    Freud, S. (1980). O Mal-estar na Civilizao. In Edio Standard Brasileira

    das Obras Psicolgicas Completas (Vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago.

    (Obra original publicada em 1930)

    Lacan, J. (1990). Os complexos familiares na formao do indivduo. Rio

    de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1938)

    (1998). Formulaes sobre a causalidade psquica. In Escritos. Rio

    de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1946)

    (1998). Subverso do sujeito e dialtica do desejo no inconsciente

    freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original

    publicada em 1960)

    (1966). La place de la psychanalyse dans la medecine. In Confrence

    et dbat du Collge de Mdecine La Salpetrire: Cahiers du Collge

    de Mdecine (pp. 761-774).

    (1992). O Seminrio: Livro 17 - O avesso da psicanlise. Rio de

    Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1969-1970)

    (1976). Journes des cartels de lcole Freudienne de Paris. Lettres

    de lcole freudienne, 18, 263-270.

    Laurent, . (1997). Tres observaciones sobre la toxicomania. In E. S.

    Sinatra, D.Sillitti & M. Tarrab (Orgs.). Sujeito, goce y modernidade

    II Fundamentos de la clnica. Buenos Aires: Atuel TyA.

    Melman, C. (1992). Alcoolismo, delinquncia, toxicomania: uma outra

    forma de gozar. So Paulo: Escuta.

    Ribeiro, C. T. (2008). Que lugar para as drogas no sujeito? Que lugar

    para o sujeito nas drogas? Uma leitura psicanaltica do fenmeno

    do uso de drogas na contemporaneidade. Dissertao de Mestrado,

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo.

  • Psic. Rev. So Paulo, volume 19, n.2, 239-261, 2010

    Toxicomania e gozo 261

    Romeo, M. D. (1997). A abstinncia do analista. In C. Inem & M. Baptista

    (Orgs.). Toxicomanias: uma abordagem clnica (pp. 135-142). Rio

    de Janeiro: NEPAD/UERJ: Sette Letras.

    Santiago, J. (2001). A Droga do Toxicmano: uma parceria cnica na era

    da cincia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

    Sillitti, D. (1998). Clnica do supereu e as toxicomanias. In L. Bentes & R. F.

    Gomes (Orgs.). O brilho da infelicidade (pp. 31-35). Rio de Janeiro:

    Contra Capa Livraria.

    Teixeira, A. M. (2006). Um ensaio psicanaltico sobre as toxicomanias e

    sua relao com o sujeito do inconsciente. Dissertao de Mestrado,

    Instituto de Psicologia, Universidade de Braslia - DF.