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TORNANDO-SE “DOUTOR”: O LUGAR E O PAPEL DAS INSIGNIAS NAS
TRADIÇÕES ACADÊMICAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA.
Marcia Terezinha Jerônimo Oliveira Cruz
Universidade Federal de Sergipei
Palavras-Chave: Tradições Acadêmicas. Rituais. Universidade de Coimbra.
Introdução
A Universidade de Coimbra, seja do ponto de vista institucional, seja do ponto de vista
acadêmico é tema amplamente estudado por historiadores, educadores, sociólogos,
antropólogos e etnólogos, a partir das mais diferentes abordagensii. No que diz respeito aos
rituais universitários, destacam-se as investigações realizadas por Maria Eduarda Cruzeiro
(1990) que analisou o transcurso da vida estudantil coimbrã, com foco na Faculdade de
Direito e, por Torgal (1993), que investigou detalhadamente os rituais de Doutoramento.
Estes estudos discutiram tradições e rituais seculares em suas expressões no final dos
séculos XIX e XX, respectivamente. Desse modo, a questão central do presente trabalho
indaga acerca da utilização de insígnias acadêmicas e doutorais na Universidade de Coimbra
na atualidade, tendo por objetivo refletir acerca do lugar e do papel que estas ocupam nas
tradições coimbrãs.
O “tornar-se Doutor” indica dois diferentes momentos e duas distintas circunstâncias
no interior de uma instituição universitária portuguesa. A primeira delas refere-se ao processo
de inclusão no grupo, por intermédio de rituais de separação e de agregação do recém-
ingresso na academia. O segundo indica o ápice da formação acadêmica que pode assumir
tanto a feição de um ritual de “investidura” como a de “consagração”.
Dada a multiplicidade de rituais e de símbolos que estão abarcados pela cultura
acadêmica/universitária em Coimbra, nos quais a utilização de insígnias se faz obrigatória, foi
recortada, para fins de análise no que se refere à vida acadêmica, a Semana da Queima das
Fitas e, dentro desta, o ato da Queima das Fitas. No que concerne aos rituais institucionais, foi
selecionada a “Imposição de Insignias”.
Para tanto, além da consulta a obras especializadas sobre a História e os rituais
acadêmicos na Universidade de Coimbra, também foi observado como na prática esses rituais
são realizados, com o intuito de perceber suas peculiaridades e a ação performativa dos
agentes envolvidos. O registro etnográfico, que se insere nas novas possibilidades
metodológicas decorrentes do alargamento do campo de pesquisa da História da Educação,
foi definido como o recurso mais apropriado e a observação realizada entre os meses de maio
a julho de 2012.
O diário de campo desta pesquisa foi constituído a partir da coleta de imagens dos atos
rituais no que foi possível ser acompanhado, assim como, pela própria sequência de
atos/fatos/condições transversais à realização dos rituais, a exemplo do funcionamento do
comércio, da decoração das vitrines de lojas, das condições climáticas, dentre outros.
Alguns estudantes e profissionais responsáveis pelos rituais foram entrevistados com o
objetivo não só de caracterizar o modelo organizativo e a características assumidas pelos
rituais como também, colher como necessário contraponto as suas representações acerca das
práticas na atualidade.
A observação priorizou o acompanhamento da sequência dos atos do ritual; da
participação de professores, cursos, funcionários, autoridades e familiares; da utilização de
traje acadêmicoiii
e outros adereços inerentes à solenidade; dos espaços utilizados e dos
símbolos presentes e, finalmente, das sociabilidades vivenciadas.
Por fim, foram utilizadas imagens relativas a um Doutoramento Honoris Causa cedidas
pelo Cerimonial da Universidade de Coimbra, como modo de expressar com maio clareza
momentos essenciais da sequencia ritual.
2.1 O estudo dos rituais universitários
Como afirma Torgal (1993) “o rito constitui-se em uma regra ou conjunto de regras que
se praticam em qualquer cerimônia e a cerimônia é, pois, a “solenidade ritual” que exterioriza
um determinado ato.” (1993, p. 178).
Ainda que não se saiba ao certo quando começaram a ser adotados pelas Corporações
de Ofício e depois nas Universidades Medievais é certo que os rituais no âmbito académico /
universitário encontravam-se plenamente estruturados, tipificados e desenvolvidos na Idade
Moderna. Em Salamanca, por exemplo, havia ritos e símbolos correspondentes aos diversos
tipos de grau que um estudante salmantino pudesse ser investido: bacharel, licenciado, doutor
ou mestre, e que se relacionava também com o curso frequentado.
Na Universidade de Coimbra, fundada em 1290, as prescrições de um traje específico
para doutorandos e bedéis, para a realização da cerimônia de doutoramento já aparecem desde
1431, nos Estatutos da Universidade de Coimbra (Livro Verde) cuja sequência ritual também
se encontrava estabelecida.
O rito é uma “ação simbólica” que, segundo Torgal (1993), possui de forma geral e,
em especial, em sua adjetivação acadêmica, algumas características intrínsecas das quais se
podem destacar:
1. Possuir significado representativo.
2. Supor certo dogmatismo, fé, crença, por parte dos participantes.
3. Implicar na repetição de fórmulas em situações idênticas.
4. Expressar-se por meio de códigos e sinais.
5. Não relacionar a eficácia das cerimônias ao conhecimento da respectiva
simbologia.
6. Conceder somente aos iniciados o poder do completo entendimento do
significado dos rituais.
7. Justificar-se não de forma racional, mas, como herança de tradições
indefiníveis e não caracterizadas no espaço e no tempo.
8. Consagrar pessoas, grupos sociais e instituições.
9. Pressupor a ideia de poder, em sua dimensão simbólica.
Constituem-se assim, segundo Tambiah, S. (apud Peirano, M.G.S, 2000), em um
sistema cultural de comunicação simbólica formado por sequências ordenadas e padronizadas
de palavras e atos, em geral expresso por múltiplos meios. Estas sequências são caracterizadas
por graus de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e
redundância (repetição), e o conjunto pode-se denominar de Ação ritual – Ação performativa.
Convém ressaltar, todavia, como acentua Bourdieu, P. (1982), que o ritual não realiza
apenas uma passagem, mas, institui, sanciona, santifica a nova ordem estabelecida, possui um
efeito de consignação estatutária, encoraja o promovido a viver de acordo com as expectativas
sociais ligadas à sua posição. Estabelece uma diferença. Para Van Gennep, A. (1981) a
produção da diferença e da distinção socialmente relevante ocorre por intermédio das
sequências rituais compostas por ritos preliminares (separação), ritos liminares (agregação) e
ritos pós-liminares (desagregação).
A diferença socialmente relevante apontada por Bourdieu (1982) pode ser verificada
nas declarações da estudante de Engenharia Alimentar da Universidade de Coimbra, Laura
Melo, ao mencionar a importância do uso do traje acadêmico e de como este distingue
socialmente os estudantes coninbricences, ou ainda, como o uso da capa em favor de um
terceiro pode indicar esse mesmo sinal de distinção para o agraciado ou ser um meio de
expressar o poder simbólico exercido por essa pessoa, geralmente uma personalidade pública.
“Aqui em Coimbra, maioritariamente, os estudantes tem o traje e usam esse
traje. É uma questão muitas das vezes de honra e de orgulho, a primeira vez
que as pessoas..., que nós estudantes pomos o traje é quase como quando se
vão casar. Os pais a verem-nos usar o traje pela primeira vez ficam orgulhos
porque é uma sensação, é uma batalha, é uma batalha que vai iniciar-se, mas,
pelo menos conseguimos chegar lá, até a Universidade, é isso... Esse é o
símbolo: Os “Capas Negras”, o ver que estamos também...., que
pertencemos todos àquele grupo, muitos de nós crescemos e, principalmente
eu, por exemplo, sou natural de Coimbra, crescemos todos a ver os
estudantes, então, quando chegamos também a essa etapa pensamos:
“Conseguimos e chegamos aqui”. (Melo, 2012)
[...] há duas formas de honrarmos alguém com a Capa. Uma delas é
colocarmos a nossa capa nos ombros de alguém e, uma honra assim, mais
forte, é colocarmos a capa no chão para alguém passar por cima dela, por
exemplo, quando recebemos os presidentes, em festas oficiais, o Presidente
da República, o Papa, etc, [...]
Na imagem a seguir, capas são colocadas ao chão para a passagem do último
Presidente da República brasileiro a ter sido agraciado com o Título de Doutor Honoris Causa
pela Universidade de Coimbra.
Imagem I – Capas ao chão
O Presidente Luís Inácio da Silva é honrado em frente à Porta Férrea, símbolo da entrada na
Universidade de Coimbra.
Fonte: Cerimonial da Reitoria da Universidade de Coimbra, 2011.
A (s) tradição (ões) consolida (m) socialmente determinados aspectos da cultura. As
tradições de que estamos a tratar estão circunscritas ao entendimento de Burke, P. (2007), que
opera com uma visão ampla a partir da qual estas «…abrangem a cultura oral, as práticas (o
saber prático, as habilidades técnicas) e a cultura material (...) Estudando-se as tradições, é
também preciso dar respostas abrangentes a perguntas como: Quem transmite? Ou como? A
chamada ‘organização social da tradição… » (p. 15-17).
Ainda assim, as tradições não são imutáveis. Essa relatividade e adaptabilidade foi
proposta por Hobsbawn, E. (1997), ao expressar o conceito de tradição inventada, entendida
como,
«…um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceites; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o
que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado…». (p. 9)
Ao estabelecer coesão social, legitimar instituições, status ou relação de autoridades e
inculcar padrões de comportamento social, a tradição inventada e a sua reinvenção parecem
conceder longevidade aos ritos e símbolos sociais, o que possibilita uma chave de
compreensão quanto à capacidade de resistência das tradições da Universidade de Coimbra às
mudanças.
2.2 Algumas Insígnias Acadêmicas da Universidade de Coimbra
Para os estudantes da Universidade de Coimbra, o final do século XIX e início do
século XX foi marcado por comemorações e ações de protesto, dentre elas, o Centenário da
Sebentaiv ocorrido nos dias 28, 29 e 30 de maio de 1898, o Enterro do Grau
v ocorrido em
1905 e a Greve Acadêmicavi de 1907. Esse movimento estará presente também no Luto
Académicovii
decretado no final da década de 1960, assim como no retorno, na década de
1980, à vivência das tradições acadêmicas.
Foi nos anos 20 do século XX que a Queima das Fitas – ritual que indica a passagem
simbólica de um estudante do terceiro para o quarto ano e que a partir de então poderia
utilizar a pasta com as fitas nas cores do curso – deixou de ser um ritual apenas no âmbito da
Altaviii
a região geográfica mais elevada de Coimbra onde se situa o Paço das Escolas e lugar
por excelência onde moravam os estudantes coimbrãos e circunscrito à comunidade
académica para se transformar em um festejo que passou a reunir toda a comunidade coimbrã.
No mapa a seguir, formulado por Carrausse (s.d), é possível visualizar a distribuição
espacial dos Polos onde estão situados os diversos cursos da Universidade de Coimbra, com
destaque (na cor lilás) para a região onde ocorrem os rituais acadêmicos públicos no século
XXI, podendo-se observar que estes rituais são praticados na região central da cidade em uma
fusão com a própria origem do lugar, de seus prédios históricos, dos centros de poder
(Universidade de Coimbra Polo 1).
Imagem II - Circunscrição das práticas rituais públicas em Coimbra
Fonte: Carrausse (s.d.)
Segundo Cruzeiro, M. E. (1990, p.125-126) a Queima das Fitas trata-se de um ritual
hibrido que se encontra na fase de agregação se considerada a trajetória do curso em sua
integralidade, porém, atua como um rito preliminar para o ingresso no quarto ano.
Vinculado à Praxe,ix
a Queima das Fitas é realizada e conduzida pela Associação
Académica da Universidade de Coimbrax e se constitui no ato de incendiar (ou chamuscar) na
brasa incandescente colocada em um recipiente em forma de pinico (um dos símbolos da
praxe), a ponta de um cordão de algodão trançado medindo 2 e ½ centímetros de largura por
aproximadamente 1 metro de cumprimento, denominado de grelo, na cor do curso do
estudante, em ato realizado atualmente no Largo da Sé Nova, na manhã do Cortejo dos
Fitados.
É importante ressaltar que a Queima das Fitas, ao estar vinculada à Praxe, expressa a
hierarquização imposta aos participantes da Praxe que, a partir da lógica de funcionamento do
grupo, galga novas posições a partir de rituais de separação e de consagração pública e diante
do grupo, ao longo do estirão formativo. Somente podem queimar a fita (grelo) os estudantes
que no ano anterior, durante a Festa da Latada, receberam este mesmo grelo como insígnia, e
que a partir de então passaram a ser chamados pelo Código de Praxe (2007) DE “Candeeiro
Fitado”.
Na Semana da Queima das Fitas em 2012, o ato de queimar o grelo realizado na manhã
de domingo, não foi precedido de qualquer discurso ou apresentação. A fila de estudantes à
espera do início do ritual começou a formar-se antes das 09 horas. Contrariando a lógica
hierárquica académica coimbrã, os estudantes não se organizaram por cursos, nem foram
organizados seguindo a hierarquia dos cursos (do mais novo para o mais antigo).
Grande parte dos estudantes fazia-se acompanhar por algum tipo de familiar (mãe, pai,
avós, irmãos, namorado (a), dentre outros) que se encontrava especialmente vestido para a
ocasião e que realizava, na maioria das vezes, registro fotográfico não só do estudante, mas de
todo núcleo familiar, tendo como figura central o estudante da Universidade de Coimbra.
Nos trajes académicos e no rosto dos estudantes, as marcas do vivido.
A semana da Queima das Fitas havia começado com a Serenata Monumental na quinta-
feira da semana anterior. Desde então, os estudantes estavam e haviam sido submetidos a um
ininterrupto conjunto de atividades rituais, assim como, à boemia característica da vida
estudantil coimbrã.
Alguns trajes, principalmente, a barra das calças e da capa, assim como os sapatos, já
mostravam a lama resultado das Noites de Parque. Muitos rapazes já não tinham o colarinho
da camisa tão apertado e mostravam a barba por fazer. Nas moças, as olheiras eram ocultadas
por grandes óculos de sol. Outros estudantes, entretanto, tinham o traje impecavelmente
arrumado para o momento do registro de sua passagem pela queima das fitas.
A importância simbólica do ritual e suas decorrências econômicas na atualidade
puderam ser verificadas por meio do comércio informal que, instalado em vários pontos do
Largo da Sé, da Praça D. Dinís, arredores da Associação Acadêmica e Praça da República,
vendeu todo tipo de souvenir para perenizar o momento. Sem contar com a estrutura montada
especificamente pela Associação Académica para dar suporte ao evento e pelo comércio
legalizado que em vitrines, decoração de rua e cartazes, sempre apresentava símbolos ligados
aos rituais daquela semana, a exemplo de guitarras, pastas, grelo, fitas coloridas, miniaturas
de estudantes ou da própria Universidade de Coimbra, dentre outros.
Às 10 horas, dois prestadores de serviço credenciados pela Associação Académica
acenderam o fogo e alguns minutos após, foi dado início ao ritual. Em grupos por curso ou de
cursos diversos, os estudantes subiam os quatro lances e chegavam ao palanque forrado de
vermelho. Ao fundo a Sé Nova e à frente o recipiente para queimar o grelo. Abaixo:
familiares, amigos e uma gama de fotógrafos, a maioria credenciada pela Associação
Académica.
A maioria dos estudantes, independentemente do curso, não sabia o que de fato deveria
ser feito naquele momento. Repetidamente, um dos fotógrafos os orientava em como
proceder: capas sobre o ombro!!!, desenrolem as fitas da pasta!!!, podem colocar o grelo aí
dentro…, não tenham medo…, não se vão queimar!!!. Durante e após a realização da queima,
todavia, a alegria de haver participado desse momento estava estampada em seus rostos.
Depois de queimar o grelo, o momento de consagração. Todos (orientados pelo mesmo
fotógrafo) levantam a pasta para o alto. Alguns grupos entoavam o Grito de Guerra
Académico. Ao descerem do palanque, reuniram-se em baixo para novas fotografias do grupo
e dessa vez, já considerados pelo Código de Praxe como Candeeiros Fitados. Posam ao lado
dos familiares a registrar sua nova posição dentro da academia. Seguem agora a procura de
seu lugar no Cortejo dos Fitados. O festejo do dia somente terminará na madrugada com a
Noite de Parque.
Na imagem a seguir é possível conhecer os elementos simbólicos (insignias) utilizados
no ritual. Da esquerda para a direita temos o recipiente em forma de penico utilizado para a
queima do grelo. Ao lado, na mão direita dos estudantes do curso de Direito os grelos e na
mão esquerda, a pasta com as fitas.
Imagem III - Queima das Fitas da Universidade de Coimbra – 2012
Utensílio em formato de pinico, grelo, pasta e fitas: símbolos rituais
Fonte: Acervo pessoal de Cruz, M. T. J. O., 2012.
2.3 A Universidade de Coimbra e algumas Insignias Doutorais
Os rituais de Doutoramento Solenes são atos de investidura que, ao longo do tempo,
transformaram-se também, em atos de consagração. Assim, na atualidade, há mais dois tipos
de rituais a ele relativos e que assumem essa feição consagratória: a Imposição de Insignias
Doutorais, que tem a finalidade de formalizar a apresentação solene de Doutores ao Colégio
Doutoral de toda a Universidade de Coimbra, Doutores esses já detentores do Título
acadêmico de Doutor e, os Doutoramentos Honoris Causa, destinados a honrar
personalidades públicas e que não frewquentaram os bancos da academia ou possuem título
académico de Doutor.
Os Doutoramentos Solenes, a Imposição de Insignias Doutorais e os Doutoramentos
Solenes seguem os mesmo rituais, como a seguir especificado.
No dia 17 de junho de 2012 a Faculdade de realizou a Imposição de Insígnias a cinco
doutores, dois dos quais brasileiros, a primeira solenidade realizada com essa composição.
Rituais dessa natureza têm início com a indicação do nome do doutor que receberá as
insígnias, o que deve ser previamente aprovado pela Congregação da respectiva Faculdade.
Os padrinhos, professores catedráticos da casa, são testemunhas que atestam os feitos
académicos que justificam e legitimam o ingresso simbólico naquela academia. O ritual é
idêntico ao dos Doutoramentos Honoris Causa, com a diferença que na Imposição das
Insígnias os requerentes já possuem o título académico de Doutor. O Doutoramento Honoris
Causa foi ampla e profundamente estudado por Torgal, L. R. (1983), em trabalho em que o
historiador elenca minuciosamente cada uma das etapas do ritual, buscando suas origens.
Os grandes passos compreendem a preparação do espaço com a aposição de ramos de
folha de louro (símbolo de consagração e de poder visível, por exemplo, nas coroas dos
césares). Na Sala dos Capelos, é colocado um cortinado com a cor do curso que estará
impondo as insígnias, cadeiras para requerentes, padrinhos, oradores, Reitor.
O ritual tem início na Biblioteca Joanina e, ao som de uma Charamelaxi
segue em
direção à Sala dos Capelos, conforme demonstra a imagem a seguir.
Imagem IV – Ritual de Agregação – Cortejo
Imposição de Insígnias Doutorais da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 17/06/2012
Acervo pessoal de Cruz, M.T.J.O. 2012
Na imagem é possível visualizar sobre as cabeças o uso de Borla na cor de cada curso.
Sobre a capa que compõe o traje doutoral há o Capelo (ou pequena capa). Ressalte-se que,
compostos por seda e linha de seda, a Borla e o Capelo, feitos exclusivamente por
encomenda, levam cerca de um ano para ser confeccionados e custam nos dias atuais cerca de
2.500 Euros. Os bordados relacionam-se a símbolos de fartura e poder a exemplo da uva e
outras frutas.
Dentre outros aspectos que uma análise da imagem suscita é o de que nem todos os
Doutores que pertencem à Universidade de Coimbra, mesmo que Catedráticos, usam as
Insígnias Doutorais vez que a utilização delas apenas é possível se aquele que possui o
doutoramento científico recebeu esta honraria em um Doutoramento Solene ou Impsição de
Insignias na Universidade de Coimbra. O segundo aspecto informa que cada Doutor deve
utilizar, durante estes rituais, as Insígnias Doutorais da Universidade nas quais as obteve.
Uma vez que o cortejo já tenha se acomodado na Sala dos Capelos, após uma oração
(saudação) inicial por parte do doutorado requerente mais antigo, dirigida ao Reitor, há a
sequência dos discursos em que são destacadas as qualidades acadêmicas do (s) candidato (s)
requerente (s).
Ao fim, o Reitor indaga aos requerentes: «Quid petis?» a que é respondido em Latim
«Gradum doctoratus in…» Na sequência, o Reitor impõe a Borla sobre a cabeça do (s)
requerente (s), a conferir-lhe a investidura, recebendo o requerente, que já usava o Capelo
desde o início da solenidade, a Borla e o anel.
Em seguida, os agora doutores instituídos, seguem para a cerimônia do abraço,
oportunidade em que são abraçados por todos os membros do colégio doutoral, simbolizando
que foram acolhidos pela comunidade acadêmica. Por fim, os novos doutores sentam-se por
breves momentos, junto aos demais doutores, a ocupar simbolicamente o seu lugar no
conjunto doutoral, assim como, entre o Reitor a o Decano do Curso ao qual petence.
Encerrada a sessão, o cortejo é novamente montado e, retiram-se da Sala dos Capelos,
seguindo para o Senado da Universidade, onde recebem das mãos do Reitor, o Diploma do
Doutoramento, conforme evidenciado nas imagens a seguir em Doutoramento Honoris
Causa, que possui o mesmo conjunto de ritos da Imposição de Insignias.
Imagens V e VI - Ritos em Doutoramento Honoris Causa
Cerimônia (ritual) do Abraço e Entrega de Diploma ao Doutorado em Solenidade de Doutoramento do
então Presidente brasileiro, Luíz Inácio da Silva.
Fonte: Cerimonial da Reitoria da Universidade de Coimbra
Do mesmo modo que na Queima das Fitas, o ritual é acompanhado por familiares,
amigos, Imprensa da Universidade e imprensa em geral, que registram o momento,
perenizando as práticas rituais e sancionando a distinção produzida.
3. Considerações Finais
Por intermédio deste estudo pode-se verificar que acerca da História institucional da
Universidade de Coimbra, assim como, de suas tradições estudantis há uma diversidade de
estudos que têm sido produzidos por pesquisadores portugueses, a partir de diversas
abordagens.
A Etnografia mostrou-se essencial não só para a consecução do estudo dos rituais,
como já amplamente utilizado por antropólogos, como também, apresentou-se compatível
com as novas perspectivas metodológicas advindas do alargamento das fontes utilizadas nos
estudos em História da Educação.
Verificou-se a natureza conceitual e a dimensão social que os ritos assumem dentro do
conjunto das tradições acadêmicas / universitárias, como modo de operar distinção
acadêmico-institucional-social, assim como, de expressão de poder simbólico que esses rituais
assumem.
As tradições coimbrãs têm resistido às transformações sociais, em face do sentimento
de pertença obtido a partir de praticas rituais, assim como, pela possibilidade de reinvenção
das tradições em um processo de adaptabilidade ao transcurso do tempo. Desse modo, as
insígnias sejam acadêmicas ou doutorais funcionam como instrumento de ancoragem ritual,
funcionando como marcadores de distinção, sendo essenciais na execução dessas práticas.
4. Referências Bibliográficas
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316.
VAN GENNEP, A. (1981) Les rites de passage. Paris: Picard.
Notas: i Doutoranda vinculada ao Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe.
Realizou Estágio Doutoral na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
(FPCEUP), sob a orientação da Profª Drª Margarida Louro Felgueiras, tendo como campo de pesquisa a
Universidade de Coimbra. ii A produção a esse respeito é de grande volume e, apenas a título exemplificativo, sugerimos a leitura das obras
produzidas por Lamy (1990); Prata (2002) e Frias (2003). iii
A história do traje acadêmico é extensa. O uso de um traje estudantil em se tratando das Universidades ou do
ensino superior não é uma característica exclusiva de Coimbra e confunde-se com a própria História da
Universidade Europeia e sua origem eclesiástica. Quanto à Coimbra, o traje atualmente utilizado remonta ao
século XIX e tem uma matriz burguês-liberal. Os trajes femininos foram resultado da necessária adaptação
requerida pelo ingresso das mulheres na Universidade. iv Festa burlesca concebida e realizada por um grupo de estudantes das faculdades de Direito e Teologia da
Universidade de Coimbra no mês de abril de 1899. O programa foi pensado como uma crítica parodial aos
centenários cívicos que vinham a ser realizados em Lisboa e no Porto desde 1880. O tema das festividades foi a
sebenta, folha litografada com os textos das lições teóricas dadas pelos lentes da Faculdade de Direito,
instrumento de ensino então considerado aberração pedagógica, sinônimo de obscurantismo e dogmatismo. Há
alguns exemplares de sebentas disponíveis na Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
que fizeram parte do acervo do antigo aluno e professor Dr. Paulo Merêa. v Festividade satírica relacionada ao fim da realização das solenidades de concessão do grau de bacharel,
ocorrido nos anos iniciais do século XX na Universidade de Coimbra. A esse respeito ler Lamy, A. S. (1990). vi Conjunto de protestos estudantis decorrentes da não aprovação no doutoramento por José Eugênio Dias
Ferreira, na Universidade de Coimbra. vii
Protesto estudantil ocorrido no final da década de 1960 e que se estendeu até à década de 1980, quando os
estudantes de Coimbra, movidos pelo cenário político português e o contexto estudantil internacional, deixaram
de realizar todas as atividades acadêmicas festivas coimbrãs, inclusive, o uso do traje acadêmico. viii
Em contraposição à Alta encontra-se a Baixa, às margens do Mondego, com seus tipos populares, comércio,
etc. ix
Segundo estabelecido no artigo 1º do Código de Praxe de 2007, a Praxe Acadêmica é «o conjunto de usos e
costumes tradicionalmente existentes entre os estudantes da cidade de Coimbra e os que forem decretados pelo
Conselho de Veteranos». x A Associação Académica da Universidade de Coimbra foi fundada no final do século XIX para congregar os
estudantes da Universidade de Coimbra, desenvolvendo atividades de coesão e representando politicamente seus
associados atuando também no fomento à cultura (grupos de música, canto, e folclore), à pratica desportiva e
manutenção das tradições acadêmicas coimbrãs, dentre outros. Atualmente também possui associados estudantes
dos cursos superiores politécnicos. xi
Grupo de instrumentos de sopro, sob a direção de um maestro, que toca músicas específicas para a condução
dos professores até a Sala dos Capelos e para atuar entre as diversas fases do ritual, a substituir as palmas depois
dos discursos da solenidade.