Todos os Céus do Céu. Poesia (2015). Ramón Fernández-Larrea.

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RAMÓN FERNÁNDEZ-LARREA TODOS OS CÉUS DO CÉU POESIA VI Prémio Internacional de Poesia Gastón Baquero H E B E L

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VI Prémio Internacional de Poesia “Gastón Baquero” 2014: "Todos los cielos del cielo" (Todos os céus do céu), escrito pelo poeta cubano Ramón Fernández-Larrea.

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RAMÓN FERNÁNDEZ-LARREA

TODOS OS CÉUS

DO CÉU POESIA

VI Prémio Internacional

de Poesia Gastón Baquero

H E B E L

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Ramón Fernández-Larrea

TODOS OS CÉUS DO CÉU

POESIA

HEBEL

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HEBEL ediciones Bajo Cuerda | Poesía

RAMÓN FERNÁNDEZ-LARREA

TODOS OS

CÉUS DO CÉU POESIA

VI Prémio Internacional

de Poesia Gastón Baquero

Tradução de Maria do Sameiro Barroso

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Decisão do VI Prémio Internacional de Poesia “Gastón Baquero” 2014:

Um júri, composto por Jaime Siles (Espanha), Alfredo Pérez de Alencart

(Perú), Pedro Shimose (Bolívia) e Pío Serrano (Cuba), entre os 184 livros

recebidos da América Latina e Espanha, decidiu, por unanimidade,

atribuir o Prémio à obra apresentada com o título Todos los cielos del

cielo (Todos os céus do céu), cujo autor se revelou ser o escritor cubano

Ramón Fernández Larrea.

Ao atribuir o Prémio, o Júri valorizou o uso conseguido de uma

linguagem simultaneamente inovadora e herdeira da rica tradição

hispânica; o tratamento original da sua temática variada que vai desde

a exploração íntima das angústias e do desamparo do homem

contemporâneo até um olhar onde a ironia e o humor se harmomizam

com o calor da ternura.

Salamanca, 15 de Outubro de 2014.

TODOS OS CÉUS DO CÉU | POESIA

© Ramón Fernández-Larrea, 2015.

Tradução de Maria do Sameiro Barroso.

© HEBEL Ediciones

Coleção Bajo Cuerda | Poesía

Santiago de Chile, 2015.

Concepção y Colllage: Luis Cruz-Villalobos.

www.benditapoesia.webs.com

Qué es HEBEL. Es un sello editorial sin fines de lucro. Término hebreo que denota lo

efímero, lo vano, lo pasajero, soplo leve que parte veloz. Así, este sello quiere ser

un gesto de frágil permanencia de las palabras, en ediciones siempre

preliminares, que se lanzan por el espacio y tiempo para hacer bien o

simplemente para inquietar la vida, que siempre está en permanente devenir, en

especial la de este "humus que mira el cielo".

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Para Madalena,

sempre na minha respiração.

A Eliseo Alberto Diego, Lichi,

Nidia Fajardo, Santiaguito Feliú...

os meus vivos que já cá não estão

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Trazei, trazei

Coisas concretas

Como um cavalo ardendo.

Charles Bukowski

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Blues da vida diária

estou tão cansado de falar

devia administrar o meu oxigénio

porque mo vão roubar amanhã

estou cansado de sonhar

é um desgaste em cada noite

pôr os mesmos animais

a despenhar-se e a rugir

há sempre amanhecer em meu sonho

e tenho que limpar o sangue

antes que cheguem e me acusem

estou cansado de escrever

não resolvo nada com letras

vejam o que se passa com a palavra amor

todos lhe fazem buracos

e com outras palavras belas

violam-nas prendem-nas

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batem-lhes duramente num olho

partem os dentes à palavra amor

vi-a ontem e parecia que escapava

a uma serpente gorda

o mesmo se passou com a palavra irmão

cheirava como se a estivessem a afogar

fiz-lhe jantares olhei-a de soslaio

e a palavra fritava-se

navegava nas tripas da noite

fundia-se num olho com o inimigo

e a palavra palpitava

era uma menina com pestanas

que os avós lhe queimavam

e a palavra

destripada

andava com sexo no ar

de bar em bar de porta em porta

estendendo a mão suja

onde cabiam dez dedos ou um

estou cansado de cuspir

de ter rosto o mesmo rosto

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seria bom que a noite durasse

muito mais que uma noite

o melhor seria perder-me caminhando sobre ela

amaldiçoando a distância

pedindo ajuda às estrelas

já não para foder

para chamar a atenção

só para me fazer de morto.

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A vida secreta dos golfinhos

assim devem ser os cemitérios

marinhos com uma paz profunda

e o coração de água olhos de água olhares

líquidos e aflitos que atravessam

a luz da água em todas as direcções

estou morto assim há muitos anos

a minha candura na água a minha anca

fundida com as minhas mãos trémulas

entre pedras e lodo entre as algas

que acariciam os peixes que não chegam

nunca a lugar nenhum

apenas os golfinhos me salvam

jogam

com as minhas palavras líquidas no fundo

de tanta escuridão trazem-me o brilho

do sol longínquo até ao abismo de água

só visitam a minha penumbra

os golfinhos

brilhantes que nunca estão quietos nem

sequer na morte isso me ensinam

a continuar a caminhar com os olhos fechados

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líquidos

sem memória

só me lembro dos gofinhos

focinho no fundo e logo focinho ao sol

para aquele que não tem sequer nome

e depois um salto

uma pirueta

sem recordações sem dia para regressar

sem um dia marcado nas suas frontes

uma penumbra uma centelha

um impulso na víscera

o tremor

num lugar longínquo dos seus corpos

um desejo um mandato um arco-íris

no fundo de tudo o que é profundo

assim devem ser os cemitérios

marinhos com uma paz profunda

e nada então

nada

apenas um peixe de silêncio que se atravessa.

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O jogo humano

é a vida

meu amigo

quem me afoga e mutila

é a vida

com todas

as suas árvores negras

os seus cheiros a morango

derretido

as suas gaivotas

caindo

em voo picado

sobre a prata dos peixes

a lagarta que se arrasta

pela vida acima

gritando

um grande silêncio

é só

tristemente

a vida

meu amigo.

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O Outono a teus pés

não sou o mesmo

desde

que morreu

romy schneider

vivi

os últimos anos

como se saltasse

de cadafalso

em cadafalso

e para o topo

vivia

num regime

que me queria

feliz

a toda a hora

e que exigia

que partilhasse

com todos

a minha tristeza

o meu amor desenfreado

os fortalecidos

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músculos

do meu coração

a minha excelente

ocultação da mágoa

a minha profunda necessidade

de romy schneider

por sorte

tu apareceste

e a vida tornou-se

um pouco mais suave

mais ligeira,

mais simples

uma vida

na ponta dos dedos

para esquecer os lábios

de romy schneider

e os seus olhos oblíquos

que jamais

serão meus

por sorte

oferecias-me

uma vida contigo

que eras tu

toda tu

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mais tumultuosa

mais serena

uma vida

na ponta do coração

como o amanhecer

de um fantasma.

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Se existissem anjos

aquele gato

baghera

com as suas patas de vidro

que cruzava a noite em silêncio

trazia-me a sombra de rudyard kipling

ao menino mowgli que os macacos baloo

criaram tão divertidos como um urso

aquela janela da minha casa

com uma luz tremenda à hora dos anjos

onde william blake assomava

quando lia machado em voz alta

aqueles olhos que tiveste

nua e transparente

ameaçando-me com todos os esquecimentos

com torrões de ódio ao pequeno-almoço

lembravam-me a fúria do mar

sobre cada corsário de salgari

foste todos os anjos

e a luz da janela tremenda

e o meu gato baghera trepando

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aos barrotes do céu.

levando kipling no olhar vazio

e o jardim triste onde acreditei enterrar

a minha boca que já não falava

as minhas mãos

que já não tremiam

o meu rosto

que os caranguejos comiam pouco a pouco

os pequenos caranguejos dessa ilha longínqua

que foi um dia o meu coração.

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Entardecer na espádua de um urso

não há tempo para o amor

não há tempo para a fúria

já não há tempo no tempo

tudo se limita a dizer olá

a ficar dentro de ti e passar

continuar a correr entre o incêndio do bosque

já não há tempo para a verdade

não há tempo para as pequenas coisas

que eram respirar tocarmo-nos ver o céu

quase não há tempo para a morte

mas isso

pouca gente sabe.

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Cavalinho de pau

gira

aproxima-se

gira e fecha os olhos

gira louco

como gira a própria vida

logo se afasta

logo se apeia de si mesmo

tal como os bêbedos e as parturientes

e os que matam e se matam por dentro

os soldados e as putas

os carrascos e as suas sombras

o cavalinho de madeira girando

que uma criança engoliu

que já não relincha

que sonha

no estertor de um louco debaixo da água.

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Rengo o macaco

a poesia

em seu ninho

fica onde estás

quietinha

não vás

cair

a poesia

em seu cultivo

bactéria que

se divide ela mesma

em dois

em três

em mais de cinco

em nenhum pedaço

em todos

a poesia

em seu colchão

querendo

dizer algo

mas falta-lhe o oxigénio

emagrecida

nas últimas

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não passa de amanhã

diz o médico

a poesia

em seu sémen

fervendo

espessa

avança

para o teu grito

a poesia

colmeia

mal queimada

edifício que cai

páramo na neblina

onde me afogo

sempre

que se fecha

esta porta

por onde

fogem

os meus

maldizendo.

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Domingo de Dezembro meio-dia

passaram três carrascos sob a lua negra

vamos compadre

beber outro copo

um está preso nesta altura

até os caçadores

nos fazem emboscadas

em cada lado

deste desfiladeiro

é fácil não ter língua nem lábios

é fácil esburacar

a casca de um vizinho

e depois incendiar-lhe os filhos

e o abdómen

da sua mulher

diante dos outros

é fácil manchar os dentes

com uma palavra

com uma mentira

deixar que alguém os destrua

com o punho

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é fácil aguentar

as pálpebras gretadas

por uma recordação que se repete

e se repete

como na tela

de um cinema em ruínas

onde o projectador louco

com uma fita interminável

estreia em cada noite

a mesma

fita para sofrer

a punhalada inocente do amor

a invasão de todos os rancores

a exposição ao ressentimento

não morras

perto do mar ou da noite

não morras nunca

sob a chuva do Inverno

não morras nunca

antes de morrer

se o coração há-de cegar um dia

coração que não vê

olho que já não sente.

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A saudade que resta

ele está só até

que de uma estrela

se desprende

um cabelo um aroma

um corpo de mulher

um esquecimento na água

um sofrimento

ele está só sempre

até que sonha

que chegaram os náufragos

à luz da lua

ele está só

sempre

até que sonha.

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A cor do pássaro que morre

que atravessa a noite

que vai morrer

na escuridão

mas antes

canta

deixa-te

uma canção

que jamais

vais

esquecer

porque ele sabe

que vai morrer

se não o escutares

e também

se não o ouvires

mas

a tua memória será

a única cor

que terá

para continuar

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a voar

sempre

em todas as tuas vidas.

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Pré-história

deus fez o mundo

em sete dias

ao oitavo

a minha mãe pariu-me

sussurrou-me

avança filho

cuidado com a evolução

comecei a andar

sobre a terra

sobre o gelo

vi alguns macacos

converterem-se

em homenzinhos

outros

continuaram a ser macacos

darwin olhava sorridente

e além

na ponta

sigmund freud

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mais sorridente ainda

atravessei

as paredes

do tempo

e cheguei ao teu país

sempre

com estes olhos

bem abertos

e sentei-me à espera

porque existias para mim

somente

para que eu fosse

um homem completo

sentei-me para à espera

que nascesses.

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A esperança do náufrago

no início

do mundo

tu não existias

e eu tenho estado

todo este tempo

à tua espera.

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O grito

levantou o seu dedo o seu dedo grande

sobre a sujeira e a insolência

o seu dedo inchado

aquelo dedo que nunca

se metera à força

na alma de nada

nem sequer no seu próprio

coração

levantou o dedo

com um olho na ponta

e apontou gritando

com a sua unha podre

as causas da dor

e do fogo e de toda

a argila do esquecimento

pôs um dedo

o seu grande dedo

na têmpora

a esquerda ou a direita

segundo se olha

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porque ele tinha

à frente

a mesma angústia que as espáduas

uma raiva profunda

contra o sol contra a beira-mar

contra os formosos jardins

contra os pelotões

de fusilamento e de outros

contra o mel e os seus venenos

contra o silêncio e as medalhas

contra o pólen e as cartas de amor

contra as ordens de demissão

contra o riso contra o vento

contra as mães que põem

à janela um púcaro com flores

contra a sede contra o amanhecer

contra o grito desumano da cotovia

contra si mesmo e contra

aquele dedo tão sujo

tão imenso o seu dedo

que não sabia outra coisa

senão apontar e apontar

por cima da unha imunda

por cima

da sua cartilagem e da sua fome

por cima do horizonte e das abelhas

por cima do homem

dos homens

que têm dedos semelhantes

e que os fundem na alma de outros

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e do mesmo que ficou sem dentes

sem palavras

sem uma almofada de areia na praia

levantou o dedo o seu grande dedo profundo

serenamente

contra a pele do crânio

e a tampa dos sonhos voou.

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Os olhos em alvo

cada vez que você se afasta

nos momentos em que não sinto a sua respiração

nem o seu riso nem sequer os seus pesadelos

desato a chorar começo a sofrer

como fazem os loucos

como fazem os lobos

caídos na fenda da noite

cada vez que o seu fantasma desaparece

nos momentos em que não existe

a sua sombra sobre os meus ossos

desato a enraivecer

desato a rasgar coisas

como se o mundo me tivesse tirado

de novo cartas viciadas

como se a scotland yard o fbi

e a polícia montada do canadá

me perseguissem numa auto-estrada

como se a minha garganta tivesse engolido

ácido

e um dos homens que vivem dentro de mim

tivesse decidido nesse dia não mais abrir os olhos.

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Coisas que os outros podem fazer e eu não

viver

por exemplo

todos

de uma forma ou outra

vivem

guardam os seus sonhos

a roupa do Inverno

vai-se aproximando

da janela

a pessoa

que se espera

há muito tempo

ou sempre

por exemplo

alegram-se

quando a chuva cai

dizem

que bençãos

abrem as suas bocas

como se fossem

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os lábios da terra

por exemplo

fecham

os olhos e surgem

quando eram crianças e não cheiravam

como eu agora

catástrofes

lágrimas queimadas

e empurrões

desnudam-se

por exemplo

deixam-se desnudar

e não sangram

por essa fresta

obstinada e obscura

que se chama memória

suam brindam florescem

dormem conversam voam

sem ruído de fantasmas

sem essa bruma espessa

que levo a todo o lado

como se ter nascido

tivesse sido um pacto

não sei com que consórcios

com o laboratório dos diabos

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penteiam-se

por exemplo

e continuam tranquilos

apesar da brisa

das suas recordações

logo se mentem

se telefonam

comem até morrer

crescem gritam

ou falam em voz baixa

e até parecem vivos

nada os tira da festa

nada lhes diz que não chorem

nada os mata esquecendo-os.

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All that remains (Tudo o que resta)

nada é mais rude do que a morte

deixa sempre uma palavra a meio

um olhar interrompido um ódio cravado bem

fundo

um verbo rasgado na sargeta uma mão no ar

um cabelo que não vai esvoaçar em parte

alguma

um assombro caído na água

uma saliva contra as rochas

uma penumbra que nos apunhala

a morte como alívio

a morte como uma mulher de olhos verdes

a morte como já não posso mais

a morte que me beija e alarga os meus caminhos

a morte afasta-te a morte sobre todos os meus

céus

a morte que vais estranhar

a morte como vingança turva

a morte como cão que corrói

os olhos que tive até hoje

com todas as suas secreções.

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Mundo redondo

toda a gente sabe viver

toda a gente sabe matar

toda a gente sabe

como fazer as coisas

como acelerar ou tornar

ou tornar o dia mais lento

como beijar

de cima a baixo a pele

de uma mulher

a pele de um urso

a pele do precipício

ou da tarde

tudo está em saber escolher

entre a multidão e tu

entre o governo e eu

entre a polícia e um gelado de chocolate

entre os exércitos e a tua boca

entre um verdugo e a luz dos teus seios

entre a corda ou o peixe que pede ajuda

toda agente sabe casar-se

e prosperar

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toda a gente sabe amansar

um búfalo

todas a gente sabe sair

da água sem feridas

tudo está em não se equivocar

entre a poesia e eu

entre a morte e tu

entre os teus dentes e o porvir

não tens porque viver no meu mundo

nem eu que habitar o teu

são dois mundos diferentes

e isso é bom

desfilam muito perto gostam um do outro

trocam as suas luzes tornam-se respiráveis

vão até ao mesmo lugar o meu mundo e o teu

tudo está em saber que céu se quer

e que o teu mundo perdure junto ao meu mundo

e haja noites tranquilas em ambos

e que nunca se extingam nem os invada o medo

porque se um dia o teu mundo acabasse

viveria o resto do tempo

olhando o céu como um idiota

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e sei que moverias céu e terra

se um dia

o meu mundo

não aparecesse

no horizonte.

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La joie de vivre

cada vez que acordo deus toca uma campainha

os olhinhos de deus brilham

vendo como me levanto

da cama e vou

arrastando a minha alma

vim para sofrer era o seu objectivo disse

mas o sofrimento provocou-me tanto riso

que decidi tomar a vida por minha conta

sem dúvida algo anda mal algo anda muito mal

o céu escurece quando tusso

quando maldigo os pés de deus sobre este

mundo

os pés de deus sobre o meu pescoço

os imensos pés de deus metidos no útero

deste mundo que cada dia se afasta mais de

mim

algo anda mal algo anda muito mal

algo anda mal demais

na cimeira vaporosa da alegria

apenas recordo os meus mortos

nenhuma cor nenhuma nuvem

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apenas os meus mortos

esperando

que regressemos ao ponto de partida

a qualquer ponto

que voltemos a ser algo.

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Epitáfio

A Santiago Feliú, noutras dimensões

na idade da abelha tinha

três torres de melancolia

nuvens aquele domingo derramando

assobios trinados filhos pulsos

como um buraquinho na terra

cantou gritou soltou vida e vida

a vida com todas as suas úveas dobradas

e cada vez que abria os olhos era vida

o que escorria pelos seus interiores

pelas suas crinas verdes pelas suas luas distintas

por buenos aires ou havana

por entre o vinho e as guitarras suaves

era vida na ponta fendida da morte

e vida que não rodava silenciosa

eram brilhos de vida os seus dentes no fim de um

abraço

e na sua palavra encravada

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mas depois havia como que um duplicação de

cães

um cheiro a casa em plena rua

o andar tropeçando ao seu lado

hoje a assassina chegou antes de todos

fechou-lhe as suas gavetas as suas músicas os

seus céus

a palavra partida os seus furacões na

sobrancelha

mas na mesma morte contudo ele cantava e

gritava

e pedaços de vida brilhavam apesar de tudo

não há buraco no planeta onde o possa ocultar.

Page 47: Todos os Céus do Céu. Poesia (2015). Ramón Fernández-Larrea.

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Assombro

escolhe um sonho

escolhe uma obsessão

escolhe não morrer enquanto caem as folhas

daquele rosal do fundo

desamparadas e húmidas

diz-lhes que viverás apesar dos ventos

escolhe um amor antigo

um contrabando

de pequenos esquecimentos que surgem

escolhe uma missão na manhã

uma missão ao crepúsculo

uma batalha na noite serena

escolhe tu um caminho

uma sombra que ascenda com a sua estrela

e suba pelos ramos do esquecimento

como se não fosses morrer

como se o céu e o teu interior

tivessem ambos um deus

merda de riso.

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Buraco chamado nevermore

Para Leopoldo María Panero

vejamos quantos fantasmas sempre transportei no

sangue

artéria acima artéria abaixo à noite

de manhã em cada momento espumoso

em que a bruma se interpôs às cores

agora vejamos o que lhes tiram de todos os

corpos

se o bisturi consegue fazer brotar as suas raízes

já frio nessa planície que se parece com a

palavra nunca

com a palavra sempre com todas as palavras

vejamos como se extraem os sonhos do seu

esófago

e as bolinhas que faz a coca cola rodando

momento a momento na escuridão do seu

planeta

libertado por fim do seu país cheio de grades

ferrolhos horários e pastilhas redondas

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que espantavam os cães assustados que o iam

ferir minuto a minuto

vejamos quantos delírios se escapam tristes

nessa fenda onde se matou para sempre a

sombra.

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Celebração da alegria

sempre quis usar esta palavra

soa bem

é musical

redonda

celebração

sai redonda dos lábios

é só isso

uma palavra que estremece

não há motivos para glorificar

a alegria

velhos asnos azuis

devoram-me

a alegria do homem

é

um estiramento animal

passe pela cabeça

ou não

é a glória do lobo satisfeito

que atravessa

a escuridão com o seu focinho

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a alegria do homem

tem sempre

outro perdedor

para lá na ponta

um insecto

que chora

a sua orfandade

um

que rolou

pelo abismo

mas sempre

quis

utilizar a palavra

celebração

vem

elegantemente embalada

viaja

com incenso

com o seu antigo perfume

de lobo

que não esmaga a lua.

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La donna à mobile

tens os lábios de grace kelly

e a inteligência

de um secretário municipal do partido

ao amanhecer lembras-me a bambi

que procura desesperadamente a sua mãe

a cabeça

que contém o corpo

nunca é tão rápida como a luz

o estalido da memória pode

deslocar para outro ponto da alma

outras desolações.

o teu amor está muito bem

o horror que está em mim

no centro da cabeça que viajou

por outra latitude destas vidas

por todos os céus do céu

é uma perda

uma espécie de lágrima viva

que começa a crescer por debaixo das unhas.

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Esopo era um tolo

vive num país onde misturam o amor com o

sangue

outros misturam-no sempre com o sangue

amanhece num país onde outros

decidiram que cor há-de ter a luz

que bordas o mar

que dimensões a ilusão

que rosto o sexo e quanto o cheiro para o lençol

vive num país onde o ontem se transforma

o transformam

em contos incríveis que confundem as crianças

onde não haverá mais princesas e dragões

ou onde o dragão é por sua vez outro país

caminha num país onde o horizonte te esmaga

te cai em cima em cada tarde

o horizonte se ri dos teus dentes e uiva

para que te sintas mais rodeado

por sombras estranhas

dorme num país que nada sabe amanhã

do que terá para ti

Page 54: Todos os Céus do Céu. Poesia (2015). Ramón Fernández-Larrea.

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nem sequer que tipo de manhã há-de ter

que animal atravessará as tuas portas movendo

as presas

vive num país onde misturam o sonho com o

sangue

outros amassam-no com sangue e medo e

contos de caminho

e fotografias dos que não chegaram porque

foram atraiçoados

abre a porta e o ar não entra

a não ser um vento o vento da história

que já não tem lábios nem olhos

vive num país onde a porta tem sangue.

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Galgo apura donzel e fica ferido

os que têm sede

que bebam deste verso

que o apurem

até às suas últimas consequências

até às mais venenosas

consequências

se tiverem fome

que o cozinhem e o comam

mastiguem bem os seus bocadinhos

as mulheres nuas

que se cubram com ele

embora seja pequeno

triste

e que não alcance

para a sede

a fome

a nudez mundial

este verso flameja

segrega

levanta-se por si mesmo

da cama

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pôe-se nas pontas dos pés para ver

o horizonte e outros acontecimentos

este verso cozinha

esculpe

insulta

olha a vizinha por um buraco

espera-a em todas as varandas

para não lhe dizer nada

para tentar respirá-la

este verso arrasta-se

rola pelo caminho abaixo

pára numa esquina

a ensinar os seus muslitos

este verso funde-se

tira a máscara de oxigénio

a máscara submarina

todas as máscaras

nele se montam góngora e vallejo

gelman roque toño cisneros

angelito escobar caindo no vazio

eliacer lazo ardendo no seu cigarro

borges tocando nas paredes

miguel tosiendo na voz de serrat

raúl hernandez novás cheio de sangue

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este verso não serve

não dá a hora

não ressuscita quem quer

não ilumina

para que uma criança

veja no seu buraco

este verso afoga-se

consome-se

tontamente

pulsinanimemente falando

da serragem que fica do amor

este verso poderia

alcançar algo

ser útil a alguém

que o ponha debaixo da pata de uma mesa

e consegui assim o equilíbrio do mundo

a luz do mundo

a alegria do mundo

o silêncio do mundo pode arder

por um minuto

enquanto desapareço

sem nome já

sem rosto

sem este verso para navegar

pelo rápido rio da morte.

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INDICE

Blues da vida diária 9

A vida secreta dos golfinhos 12

O jogo humano 14

O Outono a teus pés 15

Se existissem anjos 18

Entardecer na espádua de um urso 20

Cavalinho de pau 21

Rengo o macaco 22

Domingo de Dezembro meio-dia 24

A saudade que resta 25

A cor do pássaro que morre 26

Pré-história 28

A esperança do náufrago 31

O grito 32

Os olhos em alvo 35

Coisas que os outros podem fazer e eu não 36

Al that remains (Tudo o que fica) 39

Mundo redondo 40

A alegria de viver 43

Epitáfio 45

Assombro 47

Buraco chamado nevermore 48

Apologia da alegria 50

La donna è mobile 52

Esopo era um tolo 53

Galgo apura donzel e fica ferido 55

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Ramón Fernández-Larrea (Bayamo, 1958).

Ha publicado, entre otros, los poemarios: El

pasado del cielo, Poemas para ponerse en

la cabeza, El libro de los salmos feroces,

Terneros que nunca mueran de rodillas,

Cantar del tigre ciego y Yo no bailo con

Juana. Su último libro es Todos los cielos del

cielo (Verbum, 2015), por el que obtuvo el

VI Premio Internacional de Poesía Gastón

Baquero, fallado en Salamanca durante el

XVII Encuentro de Poetas Iberoamericanos.

También tiene publicadas las antologías

personales Nunca canté en Broadway y Si

yo me llamase Raimundo. Ha residido en

Tenerife, Islas Canarias, Barcelona y Miami

Beach (USA).