Tio Patinhas no centro do universo - José de Souza Martins

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a explicitar algumas das idéias ali contidas. José Jeremias de Oliveira Filho não me tem faltado com a sua palavra amiga de estímulo, mesmo quando se trata de trabalhos menores, como os que reúno aqui, palavra que sobremodo valorizo porque dita em momentos de grande desânimo. O mesmo posso dizer de José César A. Gnaccarini e de Braz José de Araújo. Aos professores e alunos do curso de pós-graduação em Sociologia Rural da Universi- dade de Brasília sou agradecido pelos comentários, críticas e sugestões que fizeram ao texto aqui in- cluído como último capítulo. Heloisa Helena Tei- xeira de Souza Martins, minha leitora predileta, leu e comentou criticamente estes trabalhos, aju- dando-me a enxergá-los de um modo mais objeti- vo. Finalmente, sou agradecido aos rneus alunos de todos estes anos que, com suas indagações, aju- daram-me a definir e situar pontos de vista aqui contidos. JOSÉ DE SOUZA MARTINS l de novembro de 1977 XIV l — Tio Patinhas no centro do universo "Bem, é que no nosso país", disse Alice, ainda um pouco ofegante, "o mais certo seria chegar a outro lugar depois de correr tanto como nós fizemos". "Um país muito lento!", retorquiu a Rainha. "Não, aqui, como vês, é preciso correr o mais que se pode para ficar no mesmo lugar. Se quise- res ir para outro lugar tens de correr, pelo menos, duas vezes mais depressa!" (Lewis Carroll, Alice do outro lado do espelho) A grande esperança "de" cada um dos membros dessa incrível família de patos trajados de gente é a de que o caminho que os leva educativamente de coloridas folhas de papel aos nossos olhos e à nossa mente seja um caminho sem retorno. Aloja- dos na nossa inteligência, esperam demarcar aí a posse ilícita do terreno em que pretendem vegetar na continuidade do imobilismo em que foram ge- rados e que constitui a razão de ser de sua existên- cia. Nada de voltar às origens enriquecidos pela crítica vital de seus hospedeiros para, ao menos,. (*) Publicado originalmente em Ciência e Cultura, vo- lume 27, número 9, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Setembro de 1975, pp. 943-948. Reproduzido no Caderno de Sábado (suplemento literário do Correio do Povo), Porto Alegre, 4 de setembro de 1976, pp. 8-9.

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Discussão da problemática da alienação no capitalismo, a partir da análise do personagem Tio Patinhas e seus familiares etc.

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a explicitar algumas das idéias ali contidas. JoséJeremias de Oliveira Filho não me tem faltado coma sua palavra amiga de estímulo, mesmo quando setrata de trabalhos menores, como os que reúnoaqui, palavra que sobremodo valorizo porque ditaem momentos de grande desânimo. O mesmo possodizer de José César A. Gnaccarini e de Braz Joséde Araújo. Aos professores e alunos do curso depós-graduação em Sociologia Rural da Universi-dade de Brasília sou agradecido pelos comentários,críticas e sugestões que fizeram ao texto aqui in-cluído como último capítulo. Heloisa Helena Tei-xeira de Souza Martins, minha leitora predileta,leu e comentou criticamente estes trabalhos, aju-dando-me a enxergá-los de um modo mais objeti-vo. Finalmente, sou agradecido aos rneus alunosde todos estes anos que, com suas indagações, aju-daram-me a definir e situar pontos de vista aquicontidos.

JOSÉ DE SOUZA MARTINS

l de novembro de 1977

XIV

l — Tio Patinhas no centro do universo

"Bem, é que no nosso país", disse Alice,ainda um pouco ofegante, "o mais certo seriachegar a outro lugar — depois de correr tantocomo nós fizemos".

"Um país muito lento!", retorquiu a Rainha."Não, aqui, como vês, é preciso correr o maisque se pode para ficar no mesmo lugar. Se quise-res ir para outro lugar tens de correr, pelo menos,duas vezes mais depressa!"

(Lewis Carroll, Alice do outro lado doespelho)

A grande esperança "de" cada um dos membrosdessa incrível família de patos trajados de gente

é a de que o caminho que os leva educativamentede coloridas folhas de papel aos nossos olhos e ànossa mente seja um caminho sem retorno. Aloja-dos na nossa inteligência, esperam demarcar aí aposse ilícita do terreno em que pretendem vegetarna continuidade do imobilismo em que foram ge-rados e que constitui a razão de ser de sua existên-cia. Nada de voltar às origens enriquecidos pelacrítica vital de seus hospedeiros para, ao menos,.

( * ) Publicado originalmente em Ciência e Cultura, vo-lume 27, número 9, Sociedade Brasileira para o Progressoda Ciência, Setembro de 1975, pp. 943-948. Reproduzidono Caderno de Sábado (suplemento literário do Correiodo Povo), Porto Alegre, 4 de setembro de 1976, pp. 8-9.

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comprometerem-se com a vida do mundo que osproduz. Seu modo de ser impõe que, nesse plano,um par de aspas seja, por prudência, colocado nosextremos da palavra "educativamente". É que aexistência autoritária dos personagens é condição daditadura dos quadrinhos. A reflexão crítica consti-tui inequívoca manifestação subversiva, pois de-mocratiza a educação, transformando o hospedeiro--objeto de coisa passiva em pessoa. Nesse pequenomundo fantasioso não é apenas cada personagemuma coisa contemplada, mas o próprio leitor écoisa, repositório passivo que nele se integra paraabrigar sem reflexão cada membro da sociedadecentrada nessa família.

Neste trabalho registro uma leitura sociológicadas histórias cujos personagens são os habitantesde Patópolis, figuras criadas pela empresa de WaltDisney. Procuro descrever as relações sociais quevinculam os vários personagens e, através do seuconteúdo, mostrar que elas hierarquizam os pato-politanos por meio de uma escala implícita de va-lores fundada na figura do capitalista clássico. Essaescala de valores é que se pretende educativa, pormeio da definição do gosto do leitor, procurandoincutir nele as noções morais de bom, ridículo, de-linqüente e louco, entre outras. Tal leitura seriaimpossível sem a constatação preliminar de quecada personagem é, antes de tudo, mercadoria, quese vende e se compra. Daí resulta o imobilismoque explica os vários tipos e a posição passiva doleitor "educando". Torna-se possível, desse modo,a leitura sociológica das historietas, uma vez quea substância das relações sociais não está primeironos vínculos entre os personagens, mas sim na re-lação da empresa que produz e vende a históriae o consumidor que a compra. A historieta sistema-tiza o universo simbólico que suporta e explica arelação entre produtor-vendedor e o comprador de

[ história em quadrinhos, projetando-o, no entanto,para todas as outras relações, como se substanti-vamente fossem uma única relação e, em decorrên-cia, os personagens se reduzissem a um l.

Tio Patinhas, além das suas excentricidades derico, tem parentes, amigos e inimigos. Cada umpossuído por suas próprias características, só con-segue definir-se, no entanto, contraponteando comele. Patinhas é o único personagem que serve dereferência na definição e constituição de todos osoutros.

Donald, seu sobrinho, vem primeiro na lista doscircunstantes. Um dos herdeiros da fortuna de Pa-tinhas, persegue dolorosamente a existência anôma-la de rico potencial, cuja vida oscila entre o desem-prego e os empregos que o Tio lhe oferece. Quandoempregado pelo Tio vive, entre irado e apavorado,as humilhações que aquele o faz sofrer, desde o salá-rio miserável até as artimanhas e engenhos utiliza-dos para mantê-lo desperto e ativo conforme as

l. Com este artigo não tenho a descabida pretensãode parafrasear o surpreendente e ótimo estudo de ArielDorfman e Armand Mattelart (Dorfman e Mattelart,1972) sobre o conjunto dos personagens das historietasindustrializadas de Walt Disney. Apenas retomo uma aná-lise que fiz em 1970, como recurso didático, em cursosde Sociologia para alunos de currículos diferentes do deCiências Sociais. Recebi de diversas pessoas, especial-mente ex-alunos, a sugestão para sistematizar e publicaras minhas formulações de então. Depois de resistir poralgum tempo, arrisco-me a fazê-lo agora por várias razões,a principal das quais é a de que, fundando-se o trabalhona mesma perspectiva que orientou aqueles autores —decorrendo daí vários pontos de contato — guarda, noentanto, uma identidade própria que sugere a exploraçãode outros aspectos do mesmo tema, como notará o leitor.

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expectativas do patrão. Sua humilhação é maiorporque o delírio acumulativista de dinheiro do Tiotransforma-o numa das peças de um sistema deproduzir riquezas, cujo caráter espoliativo consegueperceber, mas ao qual se conforma para não serdeserdado. Excluído dos benefícios da riqueza queajuda a crescer, com ela se compromete, como sepor antecipação fosse sua. Vive o sonho de desfru-tar a riqueza que na realidade lhe é vedada.

Seu drama é imenso. É pai sem- ter filhos. Hu-guinho, Zezinho e Luizinho, os três sobrinhos, re-presentam para ele um encargo paterno e um pesa-delo. Podem acompanhar, de modo adulto, toda aincompetência de Donald para o desempenho damaior parte das atividades a que o obrigam as cir-cunstâncias, no emprego ou em casa. Sua determi-nação de vencer, a desesperada necessidade de sercapaz a que as expectativas inflexíveis de Patinhaso submetem, impedem-no de reconhecer-se inca-pacitado, bem como o impedem de aceitar suges-tões e auxílios dos três sobrinhos. É na interferên-cia dos três que se apoia a maior parte das vitóriasde Donald. São eles que, depreciando-o ainda mais,de fato se realizam segundo as regras de Patinhas.

Embora os três correspondam melhor às espe-ranças de Patinhas do que Donald, eles não repe-tem o modo de ser, as táticas, as intenções, os re-cursos do tio senil. São de uma geração de tecno-cratas, para os quais não é viável o projeto do enri-quecimento pessoal pelo trabalho, pela sorte e pelaastúcia. Por isso, agem coordenadamente. Nuncacada um deles é senhor de um pensamento com-pleto. No mais das vezes cada um se limita a emi-tir uma única palavra que se junta à palavra dooutro e à do outro para que surja uma sentençae uma idéia. Estão articulados entre si como peçasajustadas de um mecanismo rigoroso. Eles têm oque falta a Donald — apenas os pedaços das idéias

— enquanto Donald tem o que já é obsoleto — asidéias por inteiro. Isso seria paradoxal, em se tra-tando de idéias, se para eles o pensamento e a ins-piração não fossem objetivamente determinados.Para toda nova situação não há uma idéia nova: háo "Manual do escoteiro", fonte inesgotável de in-formações que cobre todo o saber possível e doqual se pode receber qualquer resposta ou dadocom rapidez, como se viesse de um computador.Para eles a situação é clara: não existem para repe-tir individualizadamente as mesmas palavras, osmesmos gestos e os mesmos atos que criaram o uni-verso de Patinhas. Não nasceram para produzir ouniverso, mas para reproduzi-lo.

É aí que representam um pesadelo para Donald,pois este é compelido a repetir sozinho palavras,gestos e atos do criador — Patinhas — sem efeitoalgum. Seus ataques de ira são indicativos de umaincapacidade fundamental para entender porque asua atividade é estéril. É que sua condição de her-deiro obscurece a sua condição de trabalhador.Não está entre os deserdados da terra. Não podever na riqueza o produto do trabalho, inclusive doseu trabalho, porque ela constitui a massa de bensque espera receber e que é totalmente despropor-cional à sua pequena participação na tarefa de pro-duzi-la. Não pode ver-se na condição de exploradoporque se vê na de beneficiário da exploração. Porisso, a sua indignação é sempre e justificadamenteuma indignação pessoal, escoada para o nível dairritação descontrolada. Essa é a articulação ade-quada para transformar o pesadelo de Donald-tra-balhador e Donald-desempregado em irritação cô-mica, em atividade comicamente desastrada. Odrama do trabalhador é obscurecido pela comicida-de do herdeiro.

Donald é também marido sem ter mulher. Suanamorada Margarida o submete ao regime duro do

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parceiro de cama e mesa, sem as vantagens do car-go, transformado no perene carregador de pacotese fazedor de serviços. Margarida não lhe oferece aspenas cálidas e macias para que recoste a cabeçaatormentada. Ela também o submete ao duro re-gime da exploração doméstica. De Margarida nãose ouve ou vê uma palavra ou atitude de amor, deafeto desinteressado. Para ela, pata venal, a relaçãoentre os sexos é assexuada e utilitária. Nesse plano,ela estabelece com Donald uma relação que ampliaa sua esterilidade: não se acasalam nem procriam.Margarida é a fêmea fútil à espera da doação e darendição incondicional e material dos patos. Nãotrabalha. Afora o trato das três sobrinhas (Laia,Lelé e Lili), resumido no adestramento que, porcontraposição aos sobrinhos de Donald, as trans-formará em novas Margaridas, esgota o seu tempo,acompanhada da galinha Clara, nas festinhas dasociedade, vivendo vicariamente a condição de con-sumidora, não se sabe a partir de que. Para elaDonald é importante apenas enquanto é servil.

Para manter Donald subjugado aos seus capri-chos, não hesita em aceitar a corte de outros patos,enciumando-o. O primo de Donald, Gastão, patode vida fácil, de características mais próximas àsde Margarida, sistematicamente empenhado em cor-tejá-la, pode satisfazê-la em seu afã de consumo,representando sempre um desafio a mais para queDonald se empenhe na luta para preservar ouganhar aquilo que deseja e nunca alcança: dinhei-ro ou companhia feminina. Só Margarida não perde— com Donald ou Gastão ela é herdeira virtualde uma parcela da fortuna de Patinhas.

Mas, Gastão é dotado de um dom: ele temsorte, que lhe é dada por um infalível pé-de-coelho,desde que o tenha sempre consigo. Para ele, tudose resolve graças aos eflúvios desse talismã, suporte

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externo que legitima seu modo de ganhar a vida eaté a futura herança de parte da riqueza de Pati-nhas. O talismã tem aí uma importância muitogrande, pois Patinhas também tem o seu — a moe-dinha n.° 1. A presença desse componente mágicono universo de Patinhas constitui como que a fontede um direito natural, o direito de enriquecer. Jáque todos trabalham — Donald trabalha, Hugui-nho, Zezinho e Luizinho trabalham e vários outrosmembros do universo trabalham — é preciso ex-plicar porque uns têm a riqueza e outros não a têm.Esse componente mágico institui uma diferenciaçãointerna fundamental no universo de Patinhas: há ospredestinados e escolhidos, cujos talentos se multi-plicam (estou aqui trocadilhando com a palavrabíblica "talento", usando-a ao mesmo tempo nosentido de moeda e de dom) e há os demais que nãosão servos nem bons nem fiéis, de tal modo quemisteriosa entidade sobrenatural neles não confia.A sorte representa, portanto, um chamamento má-gico, apoiado em símbolos externos. Com isso, nemGastão nem Patinhas parecem senhores de si mes-mos, pois ambos estão subjugados pelos objetosmágicos que lhes garantem a sorte e a riqueza.Dessa maneira, a excepcional riqueza de Patinhastorna-se legítima em face, por exemplo, da modestaexistência de Donald. O componente mágico instau-ra a ordem do universo, pois, do contrário, o PatoDonald subversivamente declararia guerra a seuTio, dando estrutura e direção à sua irritação pe-rene, efetivando, pois, a profecia de que no fim dostempos filhos lutariam contra pais, irmãos contrairmãos.

Aparentemente, a sorte de Gastão é destinada acontrabalançar as adversidades de Donald, ,'ítravésde um contraste que torna a este último mais umavez cômico. Quase sempre, no entanto, a ajudatecnocrática e secularizada dos sobrinhos de Do-

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nald, senhores de um "talismã" moderno, o já re-ferido "Manual do escoteiro", mediante recursosque separam o pé-de--coelho de seu dono, atenua,desvia ou inverte a privilegiada sorte de Gastão.Esse personagem serve, a um só tempo, para refor-çar os fundamentos mágicos da existência de Pa-tinhas e a sua negação, que é o recurso tecnocráti-co ao "Manual". O "Manual" é a esperança dosdesesperançados. Num mundo crescentemente se-cularizado, o reinado absoluto dos talismãs na dis-tribuição dos bens produzidos pelo trabalho comumpoderia fazer com que o Donald irascível se trans-formasse no Donald consciente, descobrindo que amágica supremacia dos talismãs poderia ser ques-tionada e até destruída. O "Manual" "democratiza"mais do que o acesso à riqueza, a convivência coma distribuição desigual da riqueza, pois restaura, noplano secular, o princípio ordenador da vida socialque encontrara sua primeira eficácia na sorte jus-tificada pelos talismãs.

O Pato Donald não cumpre sozinho as adversi-dades do universo de Patinhas. Seu primo Peninhaacompanha-o, de modo diverso, na trajetória des-favorável. Enquanto Donald é essencialmente umcumpridor de ordens, um pato no trabalho ou embusca de trabalho, Peninha é um pato cheio deimaginação e in ic ia t iva . Sua imensa submissão eboa vontade no atendimento das ordens do Tio le-va-o à constante tentativa de inovar. Entretanto,cada iniciativa e cada inovação revelam-se sempredesastrosas. Ao contrário de Donald, não amargaa impossibilidade do cumprimento formal do quelhe é determinado. Não consegue entender por quesuas intenções nunca se realizam, por que levamsempre a atos que produzem resultados opostos aosdesejados. Peninha não consegue entender nunca oque faz, pois entre a intenção, o ato e o resultadointrometem-se outros componentes da situação que

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não estão sob seu controle, desvirtuando os seusobjetivos. Por isso, não pode decifrar o sentido doque faz. Em termos mannheimianos, Peninha estámergulhado na racionalidade funcional de um uni-verso instituído que "dispensa" os patos e os ho-mens, absorvendo-os apenas no cumprimento doritual dos papéis sociais rigidamente demarcados.

Peninha e Patinhas estão contrapostos, pois, noplano da criatividade. Enquanto o segundo é cria-dor e criatura na gênese do universo, é senhor dasações e das conseqüências das ações, tem o domí-nio do que faz, com Peninha se dá o contrário. Éque a criatividade de Patinhas se torna impessoalna medida em que ele se submete ao querer obje-tivo representado pela "moeda n.° l". Nesse pro-cesso, submetido ao reinado das coisas, ele se tornaagente e não sujeito da reprodução das coisas e douniverso coisificado. Patinhas não é senhor dodinheiro, mas servo do dinheiro. Não é ele quem"diz" ao dinheiro o que deve ser feito, mas é odinheiro que precisa do cérebro de Patinhas, detodos os seus músculos e sentidos, para cumprir asua lei natural que é a reprodução crescente, inces-sante e inexorável. Por isso Patinhas é um homematormentado com a segurança do seu dinheiro, poisestá irremediável e totalmente identificado com ele.Peninha inverte a imagem de Patinhas. Tomadode iniciativas é vitimado por elas constantemente.É que essas iniciativas não são canalizadas para oleito natural do que nesse universo é concebidocomo criação. Peninha quer criar soluções. Pati-nhas quer criar dinheiro. Peninha não sucumbiuainda à desumanização que a posse impessoal dosujeito pela riqueza impõe. É que as possibilidadesde criar de novo o mesmo universo já estão esgo-tadas. A fase da acumulação originária encerra-secom Patinhas.

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Donald, Gastão e Peninha nascem num mundoconstituído e integrado. Nenhum pato pode possuirmais a envergadura heróica do civilizador Patinhasporque no momento histórico por este vivido osdons podiam ser encontrados no mesmo pato. Jáseus sobrinhos receberam fatias de um mundo espe-cializado: o trabalho para Donald, a sorte paraGastão, a iniciativa para Peninha. A associação en-tre eles, porém, não reconstitui o pato heróico: jáestão confrontados e em conflito, à espera da he-rança que virá com a morte do Tio sovina e obso-leto, com suas suíças e polainas à antiga. Os peda-ços não podem ser juntados para começar de novoporque cada um deles ainda está tomado pelo mitodo capitalista-herói e considera, pois, que o seupróprio dom é o dom essencial. Desse modo, asfreqüentes associações entre Donald e Peninha re-sultam em fracasso, pois cada um tenta a seu mo-do assumir individualmente a totalidade do mundo.Os pedaços podem ser juntados apenas para re-produzir o já produzido, como fazem Zezinho,Huguinho e Luizinho. Não pode criar de novo quemnão tem acesso à moeda n.° l e à sua "vontade"impessoal. Os sujeitos misturam-se aos objetos, serndistinção entre uns e outros. Os sujeitos estão so-brecarregados de exigências e significações que nãodecorrem deles mesmos, tornando-se, portanto, es-tranhos em relação a si próprios. A natureza hu-mana é subvertida pela mediação dos objetos cria-dos pela atividade humana.

Somente quando essa família volta à naturezaé que pode encontrar a sua paz. É na fazenda daVovó Donalda, no retorno ao mundo natural, quePatinhas aparentemente deixa de reinar. Vovó Do-nalda o substitui. Aí ela é a senhora do mundo. Anatureza dadivosa atenua a exploração dos patospelos patos. Gansolino, o empregado da fazenda,pode tranqüilamente tirar as suas sonecas nos mon-

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tes de feno sem que por isso a vida animal e vege-tal do estabelecimento rural sofra grandes conse-qüências. Nem por isso Vovó Donalda deixará defazer as suas tortas, sempre disponíveis para todos,inclusive para o próprio Gansolino. Por essas ra-zões, as únicas reuniões familiares, em que todosconfraternizam, são presididas por Vovó Donalda,apesar da completa anomalia na estrutura familiar:ela é avó sem ter tido filhos; Patinhas é tio sem tertido irmãos e o mesmo se dá com Donald; os trêssobrinhos não conhecem pai e mãe. A trágica es-terilidade biológica de todos os membros da famí-lia só é possível porque na verdade estão em dife-rentes graus destituídos de humanidade. Vovó Do-nalda simboliza apenas a recomposição artificiosado mundo natural. Ainda aí, por trás das aparên-cias, é Patinhas quem reina. A unidade familiar emface da natureza é apenas utopia que ocasional-mente se concretiza para logo mais ser desfeita emresultado de processos substantivos que separamao invés de unir, que conflitam ao invés de harmo-nizar.

É que a unidade do universo de Tio Patinhasnão é garantida pela apropriação comum das con-dições de existência. Por isso, os parentes não for-mam uma comunidade, nem mesmo uma comuni-dade familiar e por isso não formam uma família.Os vínculos familiares mais constantemente presen-tes não são de parentesco por consangüinidade ouafinidade, mas são vínculos dominados pela linhade herança das riquezas. Entre um parente e outrointerpõem-se os bens tidos ou esperados. Estão jun-tos porque a riqueza foi acumulada, foi juntada.

Em conseqüência, as relações sociais que piodu-zem outros personagens do universo, não parentes— amigos e inimigos — em nada diferem das re-lações aparentemente familiares.

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Maga Patalójika, auxiliada por Madame Min,está obcecadamente voltada para a captura da jioe-da n.° 1. Deseja para si a fonte mágica da riquezae supõe que a posse do talismã fará com que ela,que já dispõe de tantos e variados poderes, possareproduzir em seu benefício a riqueza de Patinhas,Nesse plano, ela e Patinhas são iguais. Ambos acre-ditam na importância transcendental do talismãcomo produtor e reprodutor de riquezas. O talis-mã representa aí, para Patinhas e Maga, os riscosimponderáveis do capitalismo: a sorte de um é adesgraça do outro. Preservar a dimensão mágicada reprodução da riqueza não é apenas um elemen-to de coerência interna na ditadura dos quadrinhos,mas é também a tentativa de mostrar que o talismã,embora necessário, não é exclusivo. Maga tem po-deres excepcionais, pode fazer e desfazer, mas aãopode criar e recriar o capital, pois os outros doiscomponentes presentes na consciência burguesa dePatinhas — a iniciativa e o trabalho — não podemser substituídos por bruxaria. Com Maga reforça-seo princípio do direito natural à riqueza, ao talento.No fundo, Maga serve para situar nos limites daordem o pretenso caráter mágico da acumulação dariqueza. Não é o pato que escolhe o talismã, maso talismã que escolhe o pato.

Enquanto Maga deseja apossar-se do que elasupõe ser a fonte da riqueza, os irmãos Metralhabuscam apossar-se diretamente da riqueza já acumu-lada. No universo de Patinhas eles representam aconduta anêmica dos que aceitam os fins do siste-ma, mas não os meios institucionais para alcançá--los. Tanto quanto Patinhas, estão sedentos de ri-queza. Mas repudiam os caminhos institucionaispara obtê-la. Na verdade, as experiências de cadaum dos outros membros do universo, parentes,amigos e inimigos de Patinhas, constituem a reite-rada demonstração de que os Metralha têm razão.

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Acontece, porém, que a mesma riqueza gerada paraas mãos de Patinhas cria os outros componentes domundo, inclusive os recursos de defesa dá apropria-ção privada da riqueza. A diferença entre Patinhase os Metralha é que Patinhas chegou primeiro. Ainstitucionalização dos canais de acesso à riquezalegitimou essa primazia, transformando em ilícitastodas as outras formas de apropriação dos bens.Daí que a vida livre dos Metralha seja sempre ape-nas curta temporada fora da cadeia. Estão sempreretornando à prisão. Basicamente são iguais a Pa-tinhas, concordam quanto à acumulação da rique-za, discordando apenas quanto aos detalhes naforma de fazê-lo. Estão certos de que a melhor coi-sa do capitalismo é ser capitalista. O grau de orga-nização dos Metralha para obtenção da riquezachega a ser empresarial. Os ardis que são interpos-tos por Patinhas mostram que entre este e aque-les o que há é uma verdadeira competição, freqüen-temente decidida através da polícia que respondepela observância da conduta institucionalizada, que,garantindo a igualdade jurídica, garante ao mesmotempo a desigualdade econômica (Dahrendorf,1966:29). Em suma, os amigos de Patinhas sãoamigos do capital. Os seus inimigos são inimigosdas formas institucionais e dos mitos de sustentaçãodo capital, embora na verdade sejam amigos docapitalismo.

As histórias se tornam atraentes e engraçadas namedida em que os seus vários cômicos, como Do-nald e Peninha, retiram a sua comicidade das dis-crepâncias que há entre suas condutas e o per-sonagem-padrão: Patinhas. A trama das historinhasé una e sólida, amarrada pela valorização do capi-talista-herói chamado Patinhas. Ora, Patinhas, sa-bemos, personifica o capital, assumindo a vida dacoisa, vivificando o que é morto, o que é trabalhomorto, social, acumulando em suas mãos particula-

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rés. Portanto, cada um é ridículo, delinqüente, in-gênuo ou louco na medida em que a sua razãoparticular não é a razão pela qual o capital se insti-tucionalizou socialmente.

É nesse tipo de contraste que o cientista tambémtem a sua parte na degradação moral que vinculacada um ao Tio Patinhas. O prof. Pardal, inventordesastrado, desespera-se na tentativa de solucionarcom a sua inteligência, as suas pesquisas e a suaincansável dedicação à invenção e à descoberta osgrandes e pequenos problemas de Patópolis. Seudesligamento do mundo é proverbial nos quadrinhos,em que o cientista é freqüentemente apresentadocomo louco, ingênuo, alienado, sonhador, perigosoenfim. Por isso, Pardal não pode ter no universo dePatinhas senão a tolerância que piedosamente anossa hipocrisia burguesa dedica aos alienados men-tais. Ele se preocupa com pequenas coisas (e nissoé quase infantil), como a invenção de um pula-pulaque facilite o transporte das pessoas, ou de umcombustível que torne mais rápido, os meios detransporte, ou de uma banheira voadora. Vive, en-fim, na esperança de resolver aflitivos problemas dodia-a-dia dos patopolitanos ou na esperança de an-tecipar e solucionar os problemas que os patopoli-tanos provavelmente enfrentarão no futuro. Só quePardal esquece freqüentemente de uma coisa muitoimportante no universo de Patinhas: é que aí nãohá lugar para a primazia da utilidade dos objetos.Cada objeto tem que ser, antes de mais nada, umamercadoria. Por isso, as loucuras de Pardal só de-saparecem quando são absorvidas pelo delírioacumulativista de Patinhas. Quando este faz umaencomenda ou solicita uma invenção que resolvaum problema crucial para o capital, como umadefesa contra os Metralha ou um equipamento queo torne mais rico. O cientista só deixa de ser doidoquando trabalha para o capital, quando perde de

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vista a perspectiva tola e infantil da condição hu-mana dos patos para atender a demanda da repro-dução do dinheiro pelo dinheiro. Aí ele se tornaracional, porque a racionalidade é a dos objetos e ado enriquecimento que propiciam quando são com-prados e vendidos.

Entre Pardal e Peninha há semelhanças e dife-renças. As semelhanças dizem respeito à crença ine-ficaz na atividade criadora. As diferenças dizemrespeito a que um se apoia no pensamento cientí-fico e o outro no senso comum para pôr em práti-ca o impulso criador. Ambos são iguais, porém,quando ignoram que tudo "já está criado" se se le-va em conta que a dinâmica do universo é regidapela riqueza acumulada que insaciavelmente preci-sa crescer.

De fato, o universo de Patinhas é educativo setomamos a educação como veículo impositivo devalores. Diante dele as crianças e os adultos podemdescobrir como são estúpidos, como são ridículose alienados quando toleram que na sua personali-dade se manifestem grotescos traços humanos. Pati-nhas constitui um chamado à razão: a razão quefaz com que as coisas se relacionem umas com asoutras como se fossem dotadas de condição huaia-na e que faz com que as relações entre os homenspareçam relações entre coisas, conforme já cbser-vou um sábio alemão.

REFERÊNX-1AS

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3-S.M.C.P.

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