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Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de Mello Da MPB do “povo” às “comunidades” na música popular Dissertação de Mestrado Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, como requisito parcial à obtenção do título em Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Santuza Cambraia Naves Rio de Janeiro Outubro de 2007

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Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de Mello

Da MPB do “povo” às “comunidades” na música popular

Dissertação de Mestrado

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, como requisito parcial à obtenção do título em Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Santuza Cambraia Naves

Rio de Janeiro Outubro de 2007

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Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de Mello

Da MPB do "povo" às "comunidades" na música popular

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Santuza Cambraia Naves Presidente / Orientador

Departamento de Sociologia e Política– PUC-Rio

Profa. Elizabeth Travassos Lins UNIRIO

Prof. Valter Sinder Departamento de Sociologia e Política– PUC-Rio

Prof. João Pontes Nogueira Coordenador Setorial

do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 05 de outubro de 2007

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de Mello

Graduado em Ciências Sociais pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 2005. Além de pesquisador interessado em diferentes manifestações musicais, é também compositor de canções.

Ficha Catalográfica

Mello, Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de Da MPB do “povo” às “comunidades” na música popular / Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de Mello ; orientadora: Santuza Cambraia Naves. – 2007. 117 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Sociologia)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Inclui bibliografia 1. Sociologia – Teses. 2. Música popular. 3. MPB. 4. Buarque, Chico. 5. Comunidades. I. Naves, Santuza Cambraia. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Sociologia. III. Título.

CDD: 301

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Dedicatória

A Louise e a Sophia, pela poesia de todos os dias.

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Agradecimentos A Louise, Ana Helena e Isabella, pelo apoio incondicional.

Aos colegas do curso de Mestrado: Antonio Engelke, Olívia Hirsch, Ana Carolina Rodrigues da Silva, Leonardo Lucena, Dulce Duarte, Érica Amorim, Élvia Helena Iser, Diego Araújo e Samara Mancebo.

A Elizabeth Travassos e Valter Sinder, pelos valiosos comentários tecidos no Exame de Qualificação desta dissertação.

Aos professores do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em especial a: Sonia Maria Giacomini, Marcelo Baumann Burgos, Ricardo Ismael, Eduardo Raposo, Maria Isabel Mendes de Almeida, Roberto DaMatta e Angela Paiva. Todos foram importantes no percurso.

A Ana Roxo, pela santa paciência com que sempre ajudou os alunos do Mestrado em questões administrativas e existenciais.

A Caio Campos, Pedro e Sérgio Kahn, Marcelo Liao, André Prates, André Werneck, Paulo Pilha, Renato Frazão e Lucas Dain, parceiros de música, poesia e amizade.

A meu pai, Thiago de Mello, pela leitura crítica do texto, seus comentários e sugestões, na maior parte das vezes consentidas, sempre com afeto e amor.

A Enrica Bernadelli, pelas boas conversas sobre o tema e pelas obras carinhosamente cedidas.

A Frederico Coelho, pela gentileza e a solicitude com que me emprestou seus livros.

A CAPES, pelo financiamento durante todo o período do curso e da pesquisa.

E a Santuza Cambraia Naves, pelo rigor e a generosidade na orientação deste trabalho.

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Resumo

Mello, Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de; Naves, Santuza Cambraia. Da MPB do “povo” às “comunidades” na música popular. Rio de Janeiro, 2007. 117p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Sociologia e Política, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O trabalho compara concepções de música “popular”, “nação” e “camadas

populares” desenvolvidas em dois períodos da “música popular brasileira”: o de

meados dos anos 1960, em que se construiu a idéia de “MPB”, e o atual,

caracterizado por sonoridades oriundas das periferias de grandes cidades, muitas

vezes denominadas “comunidades” por seus habitantes. Partindo das categorias

musicais de Mário de Andrade criadas na década de 1920, analiso o contexto de

formação da “MPB” como um momento de desenvolvimento do “populário”, em

que se propôs uma estética que expressasse musicalmente o Brasil. Em 67, a

Tropicália, questionando os fundamentos do projeto nacional-popular, ensejou

outra proposta de representação do “país”, ao reunir repertórios “locais” e

“globais”. Contemplando mudanças nas interpretações sobre música “popular”,

“nação” e “camadas populares”, contrasto a produção da MPB dos anos 60 com a

obra mais recente de Chico Buarque, o Cd Carioca, de 2006, através de sua

assimilação de ritmos e segmentos da “cena” musical brasileira contemporânea,

especialmente o hip-hop, o manguebeat e os sons eletrônicos.

Palavras-Chave

Música Popular, MPB, Chico Buarque, comunidades.

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Abstract

Mello, Thiago de Ana Ribeiro Gomes Thiago de; Naves, Santuza Cambraia. From the “people’s” MPB to the “communities” in popular music. Rio de Janeiro, 2007. 117p. Msc. Dissertation – Departamento de Sociologia e Política, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This thesis compares conceptions of “popular” music, “nation” and “popular

layers” developed in two periods of the “Popular Brazilian Music”(MPB): The

one in the middles of the 60’s, in which the idea of "MPB" was built, and the

current days, characterized by sonorities originating from the suburbs of big cities,

so-called "communities" for his inhabitants. Leaving from the musical categories

of Mário de Andrade created in the decade of 1920, I analyse the context of

formation of the "MPB" like a moment of development of the "populário", in

which there was proposed an aesthetics that was representing musically Brazil. In

67, while questioning the bases of the popular-national project, the Tropicália

provided with an opportunity for another proposal of representation of the

"country", while joining “locals” and “globals” repertoires. Contemplating the

changes in conceptions of “popular” music, “nation” and “popular layers”, I

contrast the “MPB of the 60’s” with the most recent production of Chico Buarque,

the 2006-year-old Cd Carioca, through his relation with rhythms and segments of

the musical Brazilian contemporary "scene", specially the hip-hop, the

manguebeat and the electronic sounds.

Keywords

Popular music, MPB, Chico Buarque, communities.

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Sumário 1. Introdução 11

2. “Quem canta comigo, canta o meu refrão”: a “música popular brasileira” de meados dos anos 60

21

2.1. A idéia de MPB, o discurso nacionalista e o postulado da autenticidade inerente ao “povo”

21

2.2. O projeto musical de Mário de Andrade e o uso do “populário”...

38

3. “Caminhando contra o vento”: guitarras elétricas e fragmentos políticos na MPB

52

3.1....Uma solução para o impasse nacionalismo x “entreguismo” na “música popular brasileira”.

53

3.2. Uma estética “política” voltada para o presente 64

3.3... Tropicalismo e antropofagia 70

4. “Subúrbio”: vozes das “comunidades” cantam vários “brasis” 77

4.1. MPB e musicalidades “periféricas” contemporâneas 79

4.2... As “comunidades” e a “nação” 85

4.3. Músicas de “autor” num mundo globalizado 94

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5. Considerações Finais... 101

6. Referências Bibliográficas 110

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El silencio es más bonito cuando está lleno de música.

Todas las notas musicales van hacia él. Después que la orquesta deja de tocar,

de que el maestro agradece los aplausos, los músicos salen de la sala

y quedan silenciosos los instrumentos. El silencio es la más completa melodía.

Matéria indefinida, gas del sueño sonoro, es la suma de todos los sonidos.

Qué bonito cuando un músico sabe quedarse en silencio

y logra escuchar su respiración. El silencio une a los voces.

En todo hay silencio: en cada idea, en cada ser vivo.

Por eso todo nace de la música. El músico es un agente del silencio. Solo en un momento, lo que parece

silencio no lo es: Cuando un músico se muere

y su cuerpo deja de vivir. El silencio parece silencio, pero no lo es:

cuando un músico deja de vivir, toda la música que hizo en vida

pasa a sonar en la memória de los vivos y su ausencia es música,

su silencio es sueño musical.

Manduka

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1 Introdução

Desenvolvo o tema da música nas Ciências Sociais desde a minha

monografia do curso de graduação (UERJ, 2005), em que analisei a trilha sonora

do filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002). Observei, na

ocasião, a interação entre som e imagem, pensando as músicas, naquele contexto,

como subtextos para designar “favela”, “comunidade”, “refavela”, “morro”,

“conjunto habitacional”, etc.1 Noto que já nesse trabalho inaugural me debrucei

sobre representações sociais das “camadas populares”. Meu interesse de pesquisa

se relaciona diretamente ao fato de ser músico, mais precisamente um compositor

de canções, que trabalha em conjunto melodia, harmonia e letra, e querer discutir

alguns rumos atuais da “música popular brasileira”, expressa na sigla “MPB”. Esta dissertação tem como principal objetivo (é bom dizê-lo logo)

contrastar formas de “música popular brasileira” desenvolvidas atualmente nas

periferias do Brasil, e sua assimilação por Chico Buarque, com a que se criou (ou

melhor, foi “inventada”) em meados dos anos 1960. Analisando a bibliografia,

verifiquei que a categoria “MPB” se institucionalizou na cena musical brasileira,

em meados daquela década, num embate entre nacionalismo e “estrangeirismo”,

vivido acirradamente no campo musical, principalmente na oposição entre a MPB

e a Jovem Guarda.

Ao longo do trabalho concentrei-me nas relações entre as diferentes

concepções de “música popular”, “nação” e “camadas populares”, que nos vêm à

mente quando pensamos em “música popular brasileira”, relacionando as duas

épocas através da produção de alguns de seus principais artistas: Chico Buarque,

Edu Lobo, Geraldo Vandré, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Foi sobre a criação e a

figura de Chico, entretanto, que mais me atentei. Não pretendi abranger todo seu

vasto trabalho, de mais de 40 anos dedicados às canções, peças de teatro e

romances literários. Privilegiei somente algumas músicas de seus primeiros discos,

produzidos nos anos 60, e do Cd Carioca, de 2006, seu mais recente lançamento. 1 “Qualé a música de CDD? Um exercício de análise sociológica das músicas do filme Cidade de Deus”. Monografia do curso de Graduação em Ciências Sociais, IFCH/UERJ. Apresentada em janeiro de 2005.

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Minha intenção aqui não foi realizar uma “história social” da “MPB”,

abrangendo seus mais de 40 anos. Escolhi fazer uma sociologia da “música

popular brasileira” expressa nesta categoria, comparando em dois momentos as

diferentes concepções de “música popular”, “nação” e “camadas populares”. Para

isso, lidei com uma bibliografia específica sobre o tema, destacando algumas

hipóteses já em circulação, como, por exemplo, as de Marcos Napolitano (2001),

Celso Favaretto (2000) e Santuza Cambraia Naves (1998). Também entrei em

contato, desde cedo, com obras que abordassem as diferenças e semelhanças entre

as duas gerações de “música popular”. Procurei organizar, dentro do possível, o

que já havia sido escrito, falado e debatido sobre o assunto, estruturando textos

atuais e “nativos” da década de 1960: entrevistas com compositores, matérias de

jornal, análises de sociólogos, músicos, antropólogos, escritores, musicólogos,

poetas, historiadores, etc.

No início da pesquisa alguns livros foram fundamentais, dentre os quais

destaco Balanço da Bossa e outras bossas (Augusto de Campos, 2005); O som do

Pasquim – grandes entrevistas com os astros da música popular brasileira (1976);

CPC da Une: uma história de paixão e consciência (entrevistas a Jalusa Barcellos,

1994); e A MPB em discussão: entrevistas (Santuza Cambraia Naves, Frederico

Oliveira Coelho e Tatiana Bacal, 2006). Lancei-me sobre este material tomando os

ensaios, entrevistas e outros documentos produzidos por artistas e intelectuais,

participantes da vida cultural dos dois momentos citados, como textos “nativos”,

ou melhor, como “pontos de vista” ou “versões” desses agentes sobre o tema em

questão.

Apresento no primeiro capítulo o surgimento da categoria “MPB”, em

meados dos anos 60, entendendo-lhe como um constructo cultural (Sandroni,

2006), ou seja: parto da compreensão de que foi algo “inventado” num

determinado período recente do Brasil. Identifiquei como uma referência

importante nas análises sobre a categoria a recorrência ao projeto musical de Mário

de Andrade que, convergindo com a proposta de alguns compositores de “música

popular brasileira” de meados dos anos 60, buscava realizar um “recorte” da

“nação” através da música. Atualizando para aquele momento algumas categorias

musicais do pensador modernista – expostos, especialmente, no “Ensaio sobre a

música brasileira” (1962), de 1928 –, sugiro interpretá-lo como um instante de

desenvolvimento do “populário”. Ainda dialogo com alguns comentadores da obra

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de Mário de Andrade (Moraes, 1999; Schelling, 1997; Naves, 1998; Travassos,

1997).

Em “Nacionalismo musical”,2 artigo de 1939, Mário exaltava compositores

brasileiros que partissem da herança musical européia para representar nossa

“nacionalidade”, estabelecida e fortificada em “suas bases musicais necessárias”.

O artista privilegiaria, assim, segundo Mário, a sua funcionalidade. Em “Música

Brasileira”,3 de 42, o pensador modernista chamava positivamente a atenção para

o fato de “estarmos nacionalizando nossa produção pela regra eterna de transpor

eruditamente a obra anônima do povo” (Andrade, 1963, p. 354).

A união simbólica entre artistas, “nação” e “camadas populares”,

imaginada por Mário, aflui com o modo pelo qual, muitas vezes, compositores da

“primeira geração da MPB” direcionaram seus trabalhos: de encontro ao “povo”,

refletindo o “Brasil”. Para ele, a funcionalidade social da obra “popular” existia

quando artista e “povo” se misturavam, nunca esquecendo “que o cantador não

canta para si mesmo. Canta para os outros. Tem o ofício de cantar para os outros.

Os outros são o nível dele” (Andrade, Op. cit., 356). Sentindo “quente amor pelo

povo”, Mário argüia que nossa arte “folclórica”, por sua “originalidade nacional”,

deveria servir de inspiração à criação de música “erudita”. Deste modo, uma

diferença entre o seu projeto musical e a produção de “música popular brasileira”

de meados dos anos 60 está no lugar “social” do “erudito” e do “popular”.

Enquanto no modernismo a música “nacional” por excelência seria a “erudita”

(caso de Heitor Vila Lobos), a “MPB” privilegiava a canção “popular”, nos

exemplos luminosos de Chico Buarque, Edu Lobo e companhia.

Também realço a distinção entre o “folclórico”, termo privilegiado por

Mário para designar os elementos ainda não contaminados pelo avanço da

modernização capitalista, e o “popular”, amplamente incorporado nas discussões

sócio-culturais de meados dos anos 60. Sebastião Uchoa Leite (1965)4 argumenta

que até meados dos anos 50, com o governo Juscelino Kubitschek, o que se

denominava “cultura popular” eram as manifestações vindas do povo, “folclóricas”

e “populares”. A partir de então, segundo o autor, a consciência da “defasagem

cultural” entre as diversas classes e o acirramento da política nacional- 2 In ANDRADE, Mário de. Música, Doce Música. Obras completas de Mário de Andrade, vol. VII. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963. 3 In ANDRADE, Mário de. Op. Cit. pp. 354-358. 4 Revista Civilização Brasileira. Ano I, número 4, setembro de 1965.

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desenvolvimentista – com os governos de Jânio Quadros e João Goulart – fez da

participação dos intelectuais uma questão cada vez mais enfatizada.

Tal como discutida pelo Centro Popular de Cultura da UNE (1961-1964),

por exemplo, a “cultura popular” tinha acepção nitidamente política. Pois, segundo

Leite, não se valorizava apenas a cultura vinda do “povo”, mas a que se fazia

através dele, conceituada instrumento de educação, visando a conscientizar as

classes econômica e culturalmente desfavorecidas. A difusão do termo “cultura

popular” em meados dos anos 60 ajudava a esclarecer as massas, dando-lhe

“consciência política”. Os intelectuais propunham ao “povo” a “tomada de

consciência da realidade brasileira”, dando forma, assim, a uma concepção de

“cultura popular” específica à época.

No segundo capítulo analiso as transformações realizadas pelo tropicalismo

(1967-68-69) no cenário cultural do país, então marcado pelo projeto nacional-

popular, atuante desde fins da década de 1950. Em 1966 várias “crises” atingiam a

“música popular brasileira” (Barbosa, 1966). No livro Música Popular: um tema

em debate, do mesmo ano, José Ramos Tinhorão defendia uma concepção “pura”,

“autêntica”, “tradicional” e “legítima” de música “popular”, contrária, por

exemplo, à “linguagem universal” dos adeptos da bossa nova. Segundo o crítico,

não haveria música “popular autêntica” feita por compositores de classe média, os

quais, trabalhando com elementos “universais” de escrita musical sob fontes

tradicionais, descaracterizavam a “cultura popular” (Tinhorão apud Lamarão,

2007).

É interessante nos atentarmos à referência de Tinhorão ao “popular”,

quando justifica sua preferência pelo samba “tradicional”, segundo ele, depositário

de valores permanentes e históricos, diferentes da “cultura da classe média”,

transitória e alienada. A “cultura das camadas mais baixas” deveria defender-se da

influência norte-americana, cujos ritmos distorciam o caráter nacionalista de nossa

música “popular” (Tinhorão apud Lamarão, 2007). Caetano Veloso, na época em

posição claramente oposta a Tinhorão, defendia a retomada da “linha evolutiva” da

“música popular brasileira”, dando continuidade à inovação trazida pela bossa

nova. Luisa Lamarão (2007) recorda que Caetano fora definitivo em Verdade

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Tropical (1997): “Tínhamos [os tropicalistas] de destruir o Brasil dos

nacionalistas, [...] acabar de vez com a imagem do Brasil nacional-popular”.5

Contemplo mudanças nas concepções de “música popular”, “nação” e

“camadas populares” ao comparar a produção de Caetano Veloso e Gilberto Gil

com a de artistas ligados à primeira geração da “MPB”: Chico Buarque e Edu

Lobo. Na segunda metade daquela década alguns setores artísticos alegavam que a

“música popular tradicional” encontrava-se estagnada. Em “O Universalismo e a

Música Popular Brasileira” (1968), Sidney Miller analisava o surgimento do

movimento tropicalista, argumentando que os seguidos avanços nos sistemas de

comunicação eliminavam as fronteiras nacionais. Buscava-se uma nova linguagem

para a canção popular, num ambiente cultural de grande popularidade da chamada

música jovem.

A aceitação, por parte dos artistas baianos, da “grande estrutura comercial

que envolve compositores e consumidores”, abarcava o “ecletismo” que se

manifestava nas “formas tradicionais”: a produção de “música popular brasileira”

deixava de privilegiar os ritmos “tradicionais” – samba, baião, marcha-rancho,

entre outros – que imaginavam um “povo autêntico”, passando a englobar o

público da indústria cultural no Brasil, que consumia o rock, a música

“estrangeira” e o que era visto por setores médios da população como sendo de

“mau gosto”.6 Abria-se, sobretudo com a televisão, caminho livre para a

comunicação direta entre artistas e público, então cada vez maior,

independentemente de suas “origens de classe”. Definido por Miller como um

movimento de vanguarda, o “universalismo” (que logo ficaria conhecido como

tropicalismo) propunha a libertação formal nas criações, sem deixar de preservar

um “olhar” para o “Brasil”, mantendo por base a nossa própria “tradição musical”:

[...] utilizar-se de quaisquer formas, independentemente de suas origens culturais, sem que, no entanto, deixe de tratar os problemas específicos de nossa realidade (Miller, Op. cit., p. 208).

O processo de consolidação da indústria cultural no Brasil não foi estranho

ao movimento tropicalista que, declaradamente, tirou proveito do “marketing”

5 VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. 1997. pp. 50. 6 “Assumir a estrutura comercial”, segundo Miller, não implicava em desnacionalização da “música popular”, “pois ainda que o ídolo em sua comercialidade seja desnacionalizado, nada impede que ele próprio delibere sobre o seu repertório.” (Miller, p. 210)

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envolvido no confronto com a “música popular brasileira”. De acordo com Miller,

no auge dos embates restava somente uma

[...] distinção na maneira de ver do consumidor: música jovem (universalizada em ritmo, melodia e harmonia) e música popular brasileira (tradicional). Não importa mais as verdades contidas em cada uma delas. Quem não faz uma está fazendo a outra. E só. (idem, p. 213)

Não tendo vivido na década de 60 (não sendo, portanto, um “nativo”, neste

sentido), lembro que, principalmente para as pessoas da minha geração, não se

costuma vislumbrar atualmente qualquer diferença crucial entre os projetos

musicais de Chico Buarque e Caetano Veloso nos anos 1960 (ou entre os de Edu

Lobo e Gilberto Gil, por exemplo). Grosso modo, todos se enquadrariam na

categoria “MPB”. Por isso foi necessário expor os debates, através de análises

“históricas”, como essa de Miller. A sigla “MPB”, que a partir da década de 70

abrangeria quase toda a produção de música “popular” no Brasil (Napolitano,

2001), passou inicialmente por desdobramentos específicos, analisados nos dois

primeiros capítulos deste trabalho.

Em 1965, quando a sigla ainda não estava institucionalizada integralmente,

Edu Lobo comentava a situação da música “popular” após a Bossa Nova. A “bossa

novíssima ou que nome se queira dar”, segundo Edu, reunia letras de conteúdo

político com maior simplificação harmônica e aprimoramento das melodias. A

“tomada de posição” dos artistas, incluindo ele, seria uma “fuga aos esquemas”

propostos pela Bossa Nova. A “ampliação” permitiria que os músicos tratassem

dos temas sociais historicamente ligados ao cinema e ao teatro, lembrando que a

música, e as artes em geral, refletiriam fenômenos sociais (Lobo et al, 1965).

Nelson Lins e Barros (1965) examinou o “impasse” vivido pela bossa nova no

início dos anos 60. A questão principal da “nova música popular brasileira” seria a

sua inserção nas massas:

Como se manter nacionalista e artisticamente boa? Como se manter artisticamente boa e penetrar nas massas? Os compositores mais nacionalistas procuraram a solução através de uma integração com a música tradicional, com o folclore e com outros setores artísticos nacionais, todos vítimas do mesmo mal [...] A integração levou esses artistas a uma linha comum nacionalista visando a uma cultura popular brasileira”(Lins e Barros, 1965, p. 234 e 235; grifo meu).

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Acompanhando Lins e Barros (idem), percebemos que a integração da

“bossa nova nacionalista – ou outro nome que tenha ou venha a ter – (p. 236)”,

com músicas brasileiras “tradicionais” e outros setores artísticos, propiciou a

retomada de uma “cultura popular nacionalista e participante”. Ao mesmo tempo

em que se distanciava da bossa nova mais “ortodoxa”, cujas soluções estariam fora

das “bases culturais autênticas”, a “nova” música “popular” se afastava de “toda

música nacional e estrangeira de baixo nível comercial” (idem):

Dessa integração não resultará, certamente, uma música uniforme, com as mesmas características culturais para todas as classes que representa. Mas, com o inevitável processo da interação, inclusive com a boa música de outras tendências, surgirá, sem dúvida, uma música popular de maior nível cultural e artístico, onde os artistas se trocarão técnica e tradição, lirismo e epopéia, amor e protesto, forma e conteúdo (idem, p. 237).

Se em seu instante inicial a “MPB” concorreu com o projeto musical de

Mário de Andrade, como vimos, a partir da segunda metade dos anos 60, com o

tropicalismo, a maior referência do modernismo brasileiro passou a ser Oswald de

Andrade. Assim como singularizamos o pensamento musical do primeiro autor por

alguns de seus trabalhos, faz-se pungente destacar que a alusão a Oswald se refere,

principalmente, ao “Manifesto da poesia pau-brasil”, de 1924, e ao “Manifesto

Antropófago”, de 1928. Neles estão contidas as idéias mais importantes,

emblematizadas pelos participantes do movimento tropicalista. A mais difundida,

sem dúvida, foi a da “antropofagia cultural”. Discuto ainda com a produção de

alguns de seus comentadores, que caracterizaram a inserção de Oswald no

modernismo e na cultura brasileira (Nunes, 1979; Moriconi, 1980; Naves, 1998).

O terceiro capítulo trata das criações mais recentes de Chico Buarque, cujo

Cd Carioca, de 2006, interage de forma poética e sonora com ritmos e segmentos

da “cena” musical brasileira contemporânea, que abrange, entre tantos outros

ritmos, o rock, funk, hip-hop, manguebeat e sons eletrônicos. Esclareço, pois, a

opção por Chico Buarque como fio condutor da minha discussão. Não pude deixar

de considerar, inicialmente, sua declaração de que talvez estejamos vivendo um

processo de “fim” da canção7, impulsionado por formas atuais de produção e

execução musical efetuadas, por exemplo, pelo rap e hip-hop. Analiso ainda as

7 Cf. entrevistas: Revista Trip, abril/2006 e Estado de São Paulo de 06/05/2006.

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expressões de “Brasil” cantadas por estes artistas, muitas vezes afinadas com

novas maneiras que estudos das Ciências Sociais compreendem a “nação”.

Chico Buarque é visto aqui como um artista de “música popular

brasileira”, de acordo com diversos depoimentos seus ao longo da carreira. Em

entrevista ao Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em 1966, disse que

sua primeira formação musical remontava às cantigas folclóricas, a Ataulfo Alves

e Noel Rosa. Seu interesse pelo violão aprofundou-se com a Bossa Nova, em 1958,

quando passou a compor, influenciado pela batida inovadora de João Gilberto.

Chico tinha 19 anos quando ocorreu o golpe militar de 1964, sentido por ele como

a grande derrota de sua geração, maior inclusive do que a vivida pelo acirramento

do regime com o AI-V, em 68. Seu primeiro disco – Chico Buarque de Hollanda

(1966) – apresentou 12 de suas canções, todas ritmadas em sambas e marchas-

rancho, harmonizadas por violão, instrumentos de percussão e, raras vezes, por

metais. Algumas músicas privilegiaram temas do universo do trabalhador urbano e

de tipos populares, como o “sambista” e o “malandro”. O compositor também foi

identificado por setores da crítica musical como um cantor de “protesto”, assim

como Edu Lobo, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré. Chamava a atenção na época

que, tendo nascido em “berço esplêndido” e convivido desde cedo com

intelectuais, expressasse uma temática “tão povo”, como se referiram os

entrevistadores do MIS, aos quais contestou:

Eu não vivia entre intelectuais, eu não vivia fechado. Minha infância foi toda mais aberta, com cinco anos era moleque de rua, jogava pelada. Atrás de casa tinha um circo, ia pro circo, era um moleque, como outro qualquer, não vivia fechado em nada. Meus pais nunca me fecharam em casa. Desde moleque eu tinha uma vida que era povo, afinal [...] Sempre tive (Entrevista MIS p. 7)

Também considerei a imagem de Chico Buarque como artista

ligado ao “povo” quando o escolhi para discutir alguns rumos atuais da “música

popular brasileira”. Percebi, em algumas músicas de seu Cd Carioca (2006), que

sua obra ainda dialoga com as produções artísticas das chamadas “camadas

populares”. Atentei-me, neste caso, para a ascensão das camadas subalternas no

processo de construção de suas próprias identidades nas últimas décadas e para o

enfraquecimento da possibilidade da intelligentsia nacional em dirigir tal processo,

como se deu na década de 60. Passou a vigorar, ao invés disso, a idéia de “povo

como sujeito” (Valladares, 2005). Sendo o elo entre os dois momentos analisados,

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Chico ainda é personagem importante da “MPB”, pois continua atuando e

refletindo sobre suas mais novas expressões e significados, nos ajudando a

compreender os traços mais marcantes das relações que compõe meu objeto.

Nas “Últimas Considerações”, longe de esboçar qualquer “conclusão”,

retomo as principais hipóteses do trabalho, expondo os contrastes entre as

diferentes concepções de música “popular”, “nação” e “camadas populares” nos

dois momentos estudados. Lido com as hipóteses de Silviano Santiago (2004)

sobre a nova “configuração cosmopolita” dos pobres e com as de Clifford Geertz

(2001) sobre novas possibilidades de se pensar as “nações” no século XXI.

O ideal de não viver “fechado em nada”, exposto mais acima por Chico

Buarque, explica sua atitude generosa diante da divisão entre a “música popular

brasileira”, entendida como “MPB”, e a música “estrangeira”, como o “iê-iê-iê”.

Sim, pois apesar da projeção de Chico Buarque como o grande artista da

“resistência nacional” contra os motivos estrangeiros nos anos 60, não se pode

deixar de apontar ao longo de toda sua obra a postura aberta ao diálogo com novas

gerações que, desde a década de 70, reinventam suas canções com ritmos

“estrangeiros”, como o rock e a música “eletrônica”. Ele próprio, muitas vezes,

veio á público contra este tipo de idealização. Alçado à figura de símbolo maior da

luta contra a ditadura, Chico também foi concebido o outro do movimento

tropicalista, chegando a se afastar, em dado momento, dos músicos baianos. Em

depoimento nos anos 70, declarou que a oposição criada entre ele e,

principalmente, Caetano Veloso, foi “uma espécie de guerrinha de bastidores,

criada para promover uma porção de coisas, onde eu entrei de Cristo apesar de ser

amicíssimo de todo mundo aí” (Entrevista Bondinho, 12/71, p. 5).

O compositor confere ao mercado e à indústria cultural a sustentação do

contraste entre a sua produção e a dos músicos tropicalistas. Em entrevista ao O

Pasquim (1970), nitidamente magoado8, quando levado a comentar sobre seu

afastamento de Gil e Caetano, novamente se referiu a um problema de

“divulgação” em torno dos baianos:

Eu vi que estava toda a opinião pública dividida de uma maneira que não era real. Os jornais diziam: amanhã a grande decisão entre a revolução dos Mutantes e o tradicionalismo de Chico Buarque. Nesse festival eles [Gilberto Gil e Caetano Veloso]

8 Conforme também percebeu Caetano Veloso em Verdade Tropical (1997).

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nem estavam, eram os Mutantes que representavam o movimento tropicalista. Eu nunca quis ser tradicional e nunca pretendi ser, apesar de fazer samba, entende? Criaram uma imagem minha que foi muito ruim pra mim, me chateou pessoalmente. Não sei quem foi que resolveu fazer isso. Não sei de que forma eles contribuíram para isso. A partir daí eu perdi um pouco o contato com eles. Eu só quero dizer que eu não sou responsável sobre tudo isso e eu nunca quis levantar uma bandeira em nome da tradição da música e da integridade da música popular brasileira. Muito pelo contrário (Buarque, p. 5).

Da mesma forma que “relativizo” a posição “engajada” de Chico Buarque

no cenário cultural dos anos 60, quando ressalto que, à época, o compositor

afirmava não defender a “integridade da música popular brasileira”, é preciso

também distinguir os demais artistas contemplados durante o trabalho: Edu Lobo e

Geraldo Vandré, num primeiro momento, e, mais adiante, Caetano Veloso e

Gilberto Gil. Todos têm sua própria individualidade. Embora na década de 60 os

dois primeiros terem sido comumente designados “artistas de protesto”, é possível

observar inúmeras diferenças entre as suas propostas musicais, exercício que

escaparia dos objetivos deste trabalho. E mesmo os dois últimos, com toda a

convergência que os une, apresentam suas especificidades. Lembro que enquanto

Geraldo Vandré esbravejou sempre furiosamente contra a “invasão estrangeira” na

“música popular brasileira” ao longo de toda sua trajetória artística nos anos 60,

Edu Lobo, por sua vez, demonstrava visão mais conciliadora quando, por exemplo,

em 65, deu o seguinte depoimento:

Hoje de qualquer modo o samba deve ser considerado mais como fonte. Esta é a visão do futuro. Os que querem o samba sempre igual não passam de conservadores derrotados de saída. (p. 312)

Com isso, deixo claro que, ao lidar com “rótulos” (“bossa nova”, “canção

engajada”, “MPB”, “tropicalismo”, “Jovem Guarda”, “música jovem”), não perco

de vista a dimensão histórica dos atores sociais que constituem meu objeto. A fuga

de esquemas simplificadores move-se, ainda, pela posição ambígua de quem é, ao

mesmo tempo, compositor de “música popular brasileira” e cientista social. Desta

maneira, o que escrevo torna-se reflexo do olhar de um músico que faz

antropologia, ou de um antropólogo compositor. Se por um lado esta condição me

favorece, tornando o tema “familiar”, por outro me obriga a um fatal

distanciamento, revelador de aspectos já quase “naturalizados” para mim. Este foi,

sem dúvida, o desafio mais instigante em escrever a dissertação.

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2 “Quem canta comigo, canta o meu refrão”1: a “música popular brasileira” de meados dos anos 1960.

“Pra que dizer que existe música Brasileira? Existe o som de Paulinho [da Viola],

de Pixinguinha, de Sinhô, de Bororó, de Nelson Cavaquinho, de Candeia e outros, como existe o som das abelhas e o zumbido da alma de cada um”. José Carlos Capinam, 1970.2

Apresento a discussão sobre as origens da formação da sigla MPB em

meados dos anos 1960, associada ao projeto nacional-popular vigorante desde o

fim da década de 50. As “reformas de base” – apoiadas por boa parte da

intelectualidade do país – impulsionavam a democratização social e política

(Ridenti, 2000). Naquela época, vários desses intelectuais, oriundos da juventude

universitária, fundavam os Centros Populares de Cultura (CPC) em diversas

capitais: Salvador, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro (Barcellos, 1994).

Mantinham a convicção de que nosso processo de modernização fazia-se através

de profunda aliança com o “povo” brasileiro.3 A formação de um homem novo,

de uma “nação” que se sonhava moderna – desde fins da década de 50, com a

Bossa Nova, o Cinema Novo e Brasília – uniu-se a uma revalorização da cultura

“popular”: a intelligentsia dirigia-se ao “povo autêntico”, não “contaminado” pela

modernização capitalista. Percebi nos textos “nativos” de meados da década de

60, de artistas e intelectuais, um forte sentimento nacionalista, crucial para a

criação do construto “música popular brasileira”. Sugiro, assim, num segundo

momento, pensar o contexto inicial de aparecimento da “MPB” por um olhar que

privilegia um determinado postulado modernista de pensar o “Brasil” através da

música, como foi o caso de Mário de Andrade.4

1 Ouvir “Meu refrão” em Chico Buarque de Hollanda (Som Livre, 1966). 2 Cf. encarte do disco Paulinho da Viola (EMI, 1970). 3 “O CPC da UNE atua com o proletariado, com a intelectualidade e com a área estudantil (principalmente universitária), objetivando atingir as mais amplas massas (Relatório do Centro de Popular de Cultura apud Barcellos, 1994)”. 4 Neste caso, estou me referindo às idéias expostas no “Ensaio sobre a música brasileira” (1962), de 1928.

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2.1. A idéia de MPB, o discurso nacionalista e o postulado da autenticidade inerente ao povo

Uma análise do surgimento da sigla MPB nos leva a observar que não foi

desde sempre que se convencionou chamar por este nome a produção de “música

popular” no Brasil. O ambiente no qual ela surgiu, conforme exponho adiante, era

impregnado de forte sentimento nacionalista, contrário a atitudes consideradas

“imperialistas”, atribuídas principalmente aos norte-americanos. Sentimento

acirrado pelo golpe civil-militar de 1964. Antes da “institucionalização” da

“MPB” na segunda metade daquela década (Napolitano, 2003), falava-se em

“música brasileira” (Araújo, 2006), e não propriamente em “música popular

brasileira”. Na medida em que tomamos a MPB como um construto cultural

(Sandroni, 2006), vimos a necessidade de acompanhar historicamente o seu

surgimento e de contrastá-la – noutro capítulo desta dissertação – com um sentido

atual de “música popular” desenvolvido no Brasil.

Não há consenso entre músicos, historiadores, cientistas sociais e outros

pensadores sobre um suposto marco inicial. É certo, porém, que as raízes da

categoria “MPB” podem desvendar-se no embate que passou a existir, em meados

dos anos 60, entre compositores como Edu Lobo e Geraldo Vandré, que assim

concebiam a “música brasileira”, e outros que faziam um tipo de canção

considerada “estrangeira” e anti-nacional, como o iê-iê-iê, ritmo característico do

programa da TV Record, “Jovem Guarda”, estrelado, em 1965, por Roberto

Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia.

Convém observar que, desde 63, a marcante presença das músicas de

Roberto e Erasmo Carlos no mercado musical brasileiro passou a dividir o espaço

antes ocupado quase totalmente por artistas que faziam e cantavam bolero –

Anísio Silva, Altemar Dutra, Carlos Alberto, Silvinho, Evaldo Gouveia, Jair

Amorim – e os que lidavam com “música brasileira” – samba, bossa nova,

marchas de carnaval, toada, samba-canção, marcha-rancho, ciranda, baião,

maracatu, entre outros –, como Carlos Lyra, Elizeth Cardoso, Roberto Menescal,

Dolores Duran, Nelson Gonçalves, Raul Sampaio, Ataulfo Alves, Haroldo

Barbosa, Paulo Vanzolini, Tom Jobim, Zé Kéti, Baden Powell, entre outros

(Severiano, 1998 e Araújo, 2006).

“Parei na Contramão” (de Roberto e Erasmo Carlos) foi o primeiro grande

sucesso nacional do que posteriormente se chamaria de Jovem Guarda, programa

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de televisão que batizou o movimento. Mais do que isso, foi porventura a primeira

composição brasileira de “rock” – chamado por nós de iê-iê-iê, o “novo ritmo da

juventude”, numa referência aos famosos “yeh, yeh, yeh” que na época os Beatles

exclamavam em algumas de suas músicas – a figurar no início dos anos 60 entre

as mais tocadas nas rádios, alcançando grande público. Destaco, deste modo, que

a Jovem Guarda representou “a contrapartida brasileira à beatlemania”, num

movimento de atualização da linguagem tecnológica empregada na música pop

americana e européia (Napolitano, 2001).

De acordo com Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (1998), a música

“Arrastão” (composição de Edu Lobo e Vinicius de Moraes), interpretada por Elis

Regina no I Festival de Música Popular Brasileira, em 1965, foi um verdadeiro

“divisor de águas” entre a bossa nova e o novo tipo de música “moderna” que

surgia no Brasil, articulada com a música “de protesto”. Segundo Marcos

Napolitano (2003), dentre as várias “origens” da “MPB”, uma das mais

determinantes foi a canção “engajada”, que tendo o seu sentido transformado, foi

importante fator para a mudança que se daria no público de “música popular” no

Brasil ou do “lugar social” da canção, processo que se esboçava desde 1958, com

a Bossa Nova (Napolitano, 2003). De acordo com Carlos Sandroni (2006), não

haveria um exato momento do aparecimento da sigla “MPB”. Ele reconhece,

entretanto, que um dos registros mais antigos deve-se ao grupo MPB-4, que em

1962 iniciou sua carreira no CPC da Universidade Federal Fluminense (ligado ao

CPC da UNE), com nome de Quarteto do CPC. Após o fechamento destas

entidades pelo regime militar, dois anos depois, passou a se chamar MPB-4.

Sandroni também considera a “MPB” categoria abrangente tanto de significações

propriamente musicais – como a oposição entre “popular” e “folclórico” ou entre

“popular” e “erudito” – quanto de associações políticas, exemplo que pode ser

constatado na continuidade que deram alguns artistas da “moderna” MPB às

práticas culturais do CPC, de cunho nacional-popular.

A transformação apontada por Marcos Napolitano na audiência de “música

popular brasileira” se deve ao papel determinante que teve o mercado na história

da MPB e vice-versa. Contrariando certa interpretação – purista, digamos – que

não vê possibilidade da música socialmente “comprometida” veicular-se na

televisão, Napolitano aponta a “MPB” como peça fundamental para o

estabelecimento da indústria cultural no país e para a reorganização do mercado

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nacional de bens culturais. E o oposto não seria menos verdadeiro: o mercado

estimulava a oposição entre a MPB e a Jovem Guarda, contribuindo

decisivamente para que estes “segmentos musicais” se tornassem populares.

Lembro, a propósito, que os dois programas de maior audiência na televisão em

1965, “O Fino da Bossa”, reduto emepebista, e o “Jovem Guarda”, da turma do

iê-iê-iê, eram da mesma emissora, a TV Record, conduzindo para a esfera da

cultura de massa o embate ideológico-musical – nacionalismo x “estrangeirismo”

– travado entre as duas correntes (Napolitano, 2001).

A “música popular brasileira”, entendida como “MPB”, se construiu de

certo modo em oposição à “Jovem Guarda”, identificada por setores da

“esquerda” brasileira aos “efeitos de ‘entreguismo’ cultural e ‘alienação’ política

no seio da juventude e, neste sentido, a ponta de lança dos militares na guerrilha

cultural que o país parecia vivenciar (Napolitano, 2001:95)”. Enquanto a primeira

pautava sua produção pela acuidade formal, a temática pelo ideário nacional-

popular, tendo por meta o “engajamento”, a segunda era acusada de “alienada”

com relação aos problemas da “nação”, ao lidar com informações do rock

americano e europeu. Muitas vezes se fazia apenas uma versão para o português

de músicas estrangeiras. Mas é bom notar, no entanto, que a maioria das letras

não correspondiam ao que era cantado em inglês ou italiano, sendo muitas vezes

recriações que incorporavam elementos e modos de falar “nacionais”. Não se

deve deixar de apontar, ainda, um conteúdo que expressava aspirações e temas

ligados à juventude: a velocidade e a rebeldia, o poder de encantamento pelos

carros modernos, os cabelos longos e o uso do couro na indumentária, bem ao

estilo dos primórdios do rock norte-americano dos anos 50. A este rol, aliava-se

uma estética dançante vinda dos arranjos feitos com bateria, teclados, contrabaixo

e guitarras elétricas (Araújo, 2006).

Nada mais diferente do que era a “música popular brasileira” na época,

defensora do nacionalismo5. As harmonizações de violão e instrumentos de

percussão juntavam-se a temáticas do universo do trabalho rural e urbano,

5 Sobre as diferenças timbrísticas entre MPB e Jovem Guarda, Marcos Napolitano (2001) afirma que a “incorporação, ainda que tímida, [pela Jovem Guarda] de timbres eletrônicos nos arranjos, à base de teclados e guitarras, também não era bem vista, pois a MPB deveria se manter fiel ao violão e aos instrumentos de percussão ligados ao sambas e outros gêneros ‘autênticos’ (Napolitano, 2001:97)”.

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inclinadas a certa idealização de “povo”.6 Por este quadro, não é difícil perceber

que estavam definidas as bases para um enfrentamento entre as duas tendências.

Os festivais de música da época – promovidos por emissoras de televisão – foram

palcos de verdadeiras guerras entre segmentos musicais: de um lado, os

“autênticos” representantes do “povo”, os compositores brasileiros e as suas

canções; de outro, a Jovem Guarda, representando a indústria cultural e a mídia.7

O livro Balanço da Bossa e outras bossas (2005), organizado em 68 pelo

poeta “concretista” Augusto de Campos, reuniu uma série de ensaios, entrevistas

e artigos sobre “música popular”, analisando principalmente o advento da bossa

nova, a cena musical carioca e paulista do início dos anos 60, a era dos festivais

televisivos, a “Jovem Guarda”, a “MPB” e a Tropicália8. Em artigo do próprio

Campos, de 66, podemos aferir o nível em que se encontrava o debate sobre

“música popular” na época. O autor analisava a disputa por público (dos

programas da TV Record) entre a “música popular brasileira” e o “iê-iê-iê”, e

destacava a figura do cantor e compositor Jorge Ben como um exemplo de

intercomunicação que transitava entre ambos os grupos, abrandando a oposição

entre os segmentos. Argumentava que havia um declínio no interesse por música

“brasileira” em face do “ascenso vertiginoso do iê-iê-iê entre nós (Campos,

2005:51)”, decididamente impulsionado pelo esplendoroso sucesso de “Quero que

vá tudo pro inferno”, de Roberto e Erasmo Carlos, que em 1965 teria dado voz “a

um estado de espírito geral na atualidade brasileira (idem, p.52)”. Em outro artigo, 6 Na música “Meu refrão”, por exemplo, do primeiro disco de Chico Buarque (1966), o compositor representa o “povo”, exaltando o samba como amortecedor das mazelas sociais: “Quem canta comigo, canta o meu refrão/ Meu melhor amigo é meu violão/ Eu nasci sem sorte/ Moro num barraco/ Mas meu santo é forte/ O samba é meu fraco/ No meu samba eu digo/ O que é de coração/ Quem cantar comigo, canta o meu refrão”. 7 Destaco a hipótese de Marcos Napolitano (2001) em relação ao mito que se criou sobre a identificação quase automática da “MPB” como algo “autêntico” e da Jovem Guarda como produto meramente comercial. Sua proposição é que a “MPB foi um ‘produto’ comercial muito mais eficaz do que a jovem guarda, pois consolidou um comportamento musical específico, demarcou um público consumidor (concentrado na ‘elite’socioeconômica) e instituiu uma nova tradição musical e cultural. Enquanto isso, a jovem guarda se diluiu mais tarde na música romântica tradicional ou na música ‘brega’ dos anos 70 (embora, isoladamente, Roberto Carlos tenha permanecido como um grande fenômeno da música de consumo internacional) (Napolitano, 2001:101)”. 8 Neste livro, o musicólogo Brasil Rocha Brito, em seu ensaio Bossa Nova, considerado a primeira apreciação técnica fundamentada que se fez da bossa-nova, já em 1960, se remete a aspectos polêmicos da música brasileira no momento após o movimento, claramente se referindo ao conflito entre Jovem Guarda e MPB, que passava pela música “de protesto”, pelos novos programas de televisão e pelos festivais de música. É muito interessante a colocação dos termos. Por exemplo, quando o autor comenta um dos festivais: uma verdadeira “batalha do último grande certame da música popular brasileira”.

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“Boa palavra sobre a música popular”, Campos novamente dava o tom da

discussão:

Não é segredo para ninguém que a “brasa” da jovem guarda provocou um curto-

circuito na música popular brasileira, deixando momentaneamente desnorteados os articuladores do movimento de renovação, iniciado com a bossa-nova. Da perplexidade inicial, partiram alguns para uma infrutífera “guerra santa” ao iê-iê-iê [...] (Campos, 2005:59).

Quando lançada, “Quero que vá tudo pro inferno” não foi considerada

(tanto pela crítica ou pelo público, quanto pelos próprios músicos) “música

brasileira”. Na época, era rígida a divisão entre música “brasileira” – samba,

baião, marchinha de carnaval, frevo, forró, entre outros ritmos – e música

“estrangeira”, como o “iê-iê-iê”. Paulo César de Araújo (2006) argumenta que, a

partir do sucesso da música de Roberto e Erasmo Carlos, instaurou-se de forma

definitiva a competição comercial e ideológica entre a “MPB” e o “iê-iê-iê”,

justamente pelo fato de ter levado à consagração nacional um artista que não

baseava sua produção em nenhum ritmo considerado brasileiro, como os citados

acima.9

Em 1965/66, período em que a “Jovem Guarda” ascendeu e passou a ser

vista como emblema da juventude “alienada”, ameaçando a “MPB” na disputa por

público e audiência, músicos e intelectuais discutiram a presença cada vez mais

inevitável do mercado na “música brasileira”. Trago à análise algumas questões

levantadas em famoso encontro sobre “música brasileira”: a mesa redonda que a

revista Civilização Brasileira promoveu, sob a coordenação do músico Airton

Lima Barbosa, em maio de 1966, para tratar “Que caminhos seguir na música

popular brasileira?”. Os principais debatedores foram os músicos Caetano Veloso

e Nara Leão, os poetas Ferreira Gullar e José Carlos Capinam e os críticos Flávio

Macedo Soares e Nelson Lins e Barros. O tema deflagrava uma situação crítica da

“música popular” no Brasil e pedia uma análise dos problemas de sua realidade.

Notavam-se “várias crises consecutivas”, que lançavam novos problemas a 9 De acordo com Paulo César de Araújo (2006), antes “havia um apartheid entre rock e samba, era cada qual no seu espaço: sambista era sambista, roqueiro era roqueiro. Não havia esse negócio de misturar rock com maracatu ou baião. Assim, todos os principais nomes da MPB faziam samba e suas variantes: bossa nova, samba moderno, samba de raiz, samba enredo, etc. Wilson Simonal, por exemplo, era um cantor de samba moderno; Jorge Ben, a mesma coisa; Chico Buarque, Caetano Veloso e Gal Costa se lançaram em 1965 como cantores de samba. Nara Leão, com canções de protesto. Maria Bethânia idem. A mudança começou a ocorrer exatamente após a explosão de Roberto Carlos com Quero que vá tudo pro inferno (Araújo, 2006:182)”.

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enfrentar e novas soluções a procurar: a “música popular feita no Brasil em

meados dos anos 60” estava numa encruzilhada, vivendo um período

“excepcionalmente difícil”, brigando por segmentos do público com a “Jovem

Guarda”. Na abordagem de Flávio Macedo Soares, era preciso debater a cultura

brasileira, melhorando seu “nível geral”, e estabelecer uma relação mais “direta”

com os problemas do “povo”. Em relação à “música popular”, o crítico afirmava

que estava pouco agressiva e contaminada por uma arte comercial e “alienada”,

voltada para o mercado e desligada da “realidade” do “povo”.

A partir de 1964, a MPB passou a ser um pólo de discussão de questões

políticas e culturais do país, identificando-se com a “canção de protesto” (Naves,

2004). Os artistas “engajados” buscavam exprimir a “realidade do povo

brasileiro”, partindo de sonoridades “populares” – sobretudo nordestinas e dos

morros cariocas –, como salta aos olhos nas primeiras criações de Edu Lobo e

Chico Buarque. Ponho também em alto relevo o disco Opinião de Nara, gravado

por Nara Leão no segundo semestre de 1964. Cantora de bossa nova desde fins da

década de 50, seu disco – inspiração para o show Opinião – foi uma mudança

importante na “música brasileira”, rompendo com a temática “mar-sorriso-flor”

privilegiada pelos bossa-novistas, constituindo-se numa importante vertente do

processo de institucionalização da nova música moderna (Napolitano, 2001).10

O objetivo de Nara Leão, oriunda da classe média, moradora de

Copacabana, era recuperar os “valores autênticos da realidade brasileira” (Castro,

1990). Para isso, gravou sambas de Zé Kéti, – “sambista de morro” carioca –

música de “protesto” do compositor nordestino João do Vale (“Sina de Caboclo”),

capoeiras do folclore baiano, marchinhas de carnaval, sambas de Vinicius de

Moraes e Baden Powell, além de canções “comprometidas” de Sérgio Ricardo e

Edu Lobo. No espetáculo (1964-65), realizado no teatro de mesmo nome do disco

em Copacabana, Nara, Zé Kéti e João do Vale apresentavam-se para um público

majoritariamente estudantil. O texto do seu programa-manifesto (apud

Napolitano, 2001:70) exaltava a integração nacional, unindo a jovem

intelectualizada de classe média a dois representantes da cultura “autêntica” do

10 Cf. sobre a Bossa Nova, de maneira geral, Balanço da bossa e outras bossas – coletânea de debates organizada pelo poeta concretista Augusto de Campos e publicada pela primeira vez em 1968. Ver, em especial, os ensaios de Brasil Rocha Brito (“Bossa Nova”) e de Júlio Medaglia (“Balanço da bossa nova”).

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“povo” – um ligado ao universo camponês nordestino e outro ao “samba de

morro” carioca. Concebia-se um contato “direto” com a “cultura popular”, pela

organização da “resistência” contra o autoritarismo do governo militar e o

fortalecimento de uma consciência “nacionalista e revolucionária”. Neste

espetáculo musical – emblemático dos primórdios da idéia de “MPB” – se

percebia um ideal coletivo, que se alinhava à afirmação “utópica” de um povo-

nação, em detrimento de um governo ditatorial, visto como cúmplice dos

interesses estrangeiros, notadamente norte-americanos. É interessante observar

através de entrevista da cantora na época das apresentações, como parte da

intelligentsia carioca relacionava “povo” e “música popular”:

Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento.

Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho (apud Castro: 348; grifos meus).

Pelo menos desde a fundação do Centro Popular de Cultura da UNE (1961),

pensava-se num “povo autêntico”, ainda não “contaminado” pela modernização.

O CPC foi imaginado um “organizador coletivo” da produção de intelectuais e

artistas populares (Barcellos, 1994), para resgatar a “cultura popular brasileira”,

que àquele instante esta intelectualidade sentia marginalizada. Segundo o cientista

político Luis Werneck Vianna, em entrevista a Jalusa Barcellos (1994), o grande

feito do CPC, do qual fez parte, foi a “fusão da arte popular com uma elaboração

mais desenvolvida (Vianna, 1994:315)”. Vianna sugere que esta idéia se

encontraria no solo de toda uma geração de artistas que aí se formava: Gilberto

Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, entre outros. Em meados dos anos 60, estes

artistas, embora com projetos distintos, iriam centralizar o debate em torno da

“MPB”. Mencionar o CPC da UNE é essencial por ressaltar o ideal nacional-

popular que o permeava, pois não se queria somente estabelecer uma relação

“direta” com o “povo” e reformular a maneira como era vista a cultura popular,

mas a questão cultural brasileira como um todo, pensada em termos nacionais.

Em artigo do final da década de 50, Nelson Werneck Sodré (2006)11

chamava atenção para o interesse generalizado que vinha despertando o

Nacionalismo (sempre em maiúscula) entre nós, “fenômeno central” na vida

política brasileira. Forças e interesses econômicos estrangeiros representariam um 11 SODRÉ, Nelson Werneck. Raízes históricas do nacionalismo brasileiro apud Munteal, Ventapane e Freixo, 2006.

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obstáculo para o desenvolvimento e a realização da “nação”. Diante desse quadro,

o “Nacionalismo” se apresentaria como “solução natural” para superar a

“colonização”. É interessante perceber o nexo entre o “nacional” e o “popular”,

quando o autor afirma que a classe trabalhadora adquirira “consciência política” e

se alinhava ao “empreendimento nacional”, revelando “que o Nacionalismo é

popular, o que não pode surpreender a ninguém uma vez que só é nacional o que

é popular (Sodré, 2006:108; grifo meu)”.

Dirigindo-se aos críticos, “ferrenhos adversários” do nacionalismo, quem

Werneck Sodré afirma terem perdido o “fio da história”, o autor sentencia:

Nova é a composição social que inclui uma burguesia capaz de realizar-se como

classe e começa a compreender que a sua oportunidade é agora ou nunca [...] Novo é, pois, o povo. Nada ocorrerá mais sem a sua participação. Nova é a indústria nacional, superada a etapa de bens de consumo e iniciada a de bens de produção [...] Novo, em suma, é o Nacionalismo, que corresponde ao que nos impulsiona para a frente e rompe com o que nos entrava e entorpece [...] Nós escolhemos o futuro. Não pretendemos “perder o fio da história” (Sodré, 2006:109-110).

Em 1962, quando o debate sobre integração nacional, imperialismo e

“reformas de base” estava a todo vapor no governo João Goulart, a editora

Civilização Brasileira publicou a coleção Cadernos do Povo Brasileiro.

Organizada por Ênio Silveira e Álvaro Vieira Pinto, sua quarta edição apresentava

o seguinte registro:

Os grandes problemas de nosso país são estudados nesta série com clareza e sem qualquer sectarismo; seu objetivo principal é o de informar. Somente quando bem informado é que o povo consegue emancipar-se (apud Côrtes, 2004).

Partindo desta breve exposição de idéias podemos apreender o propósito da

intelligentsia brasileira: ensinar o povo a entender os seus “verdadeiros”

problemas, para alcançar a “libertação nacional”. Destaco da coleção o trabalho

de Nelson Werneck Sodré, Quem é povo no Brasil que, segundo Norma Côrtes

(2004), expunha o discurso nacionalista brasileiro do início dos anos 60,

integrando linha editorial bastante avançada, levando ao grande público os temas

mais importantes que dividiam a discussão política. De acordo com Côrtes

(2004), o livro

compartilhava da mesma inclinação democratizante de vários outros movimentos políticos ou culturais da época, uma vez que pretendia trazer o popular para a arena pública. Esse traço, portanto, não lhe era exclusivo. Afinal, idêntica vocação também grassava nos movimentos culturais do CPC da UNE; nas manifestações artísticas da

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música, nas artes plásticas ou na arquitetura de Brasília; no imaginário existencialista dos anos dourados; nas primeiras formulações da pedagogia de Paulo Freire; ou mesmo no planejamento econômico e nas reformas de base de João Goulart E foi no interior dessa constelação socialmente inclusiva, culturalmente voltada ao homem ordinário, politicamente democrática, economicamente desenvolvimentista e intelectualmente igualitária que os primeiros livrinhos da série Cadernos do povo brasileiro convidaram o povo a refletir sobre... (Côrtes, 2004).

Convém apresentar outros títulos da mesma coleção: Quem dará o golpe no

Brasil?, de Wanderley Guilherme, Quem são os inimigos do povo?, de Theotônio

Júnior, Que é a revolução brasileira?, de Franklin de Oliveira, Quem são as ligas

camponesas?, de Francisco Julião, Como atua o imperialismo ianque?, de Sylvio

Monteiro, entre outros. Chamo a atenção para o fato desta idéia de informar ao

“povo” estar presente no imaginário da época como força expressiva da luta pela

“emancipação nacional”, contra os “interesses estrangeiros”. Werneck Sodré

configurava um traço geral e permanente da característica do que seria o “povo”:

em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive (apud Côrtes, 2004).

Não eram, portanto, diferenças econômicas e sociais o que definiam o

“povo”, mas atitude política relacionada “ao problema da emancipação

nacional”.12 O que orientava o debate sobre a incorporação do “popular” era o

choque ideológico entre nacionalistas e “entreguistas”, “engajados” e “alienados”,

que se refletia, como já frisei, no campo da “música popular”.

O prédio da UNE no Rio de Janeiro foi incendiado no 1o de abril de 1964.

Foi no caldo cultural dos CPCs – “fusão da arte popular com uma elaboração mais

desenvolvida”, como disse Werneck Vianna (1994) – que aconteceu a formação

de Chico Buarque de Hollanda, considerado por muitos um dos maiores

representantes do que se convencionou chamar de “canção engajada” e, segundo

Fernando de Barros e Silva “o grande herói da resistência civil dentro da [história

da] MPB (Barros e Silva, 2004)”. Vivendo sua juventude nos anos 1950, em que

12 “Quem é o povo hoje no Brasil? São as partes da alta e da média burguesia que permanecem fiéis ao seu país, é a pequena burguesia que, salvo reduzidas frações corrompidas, forma com os valores nacionais e democráticos, é o numeroso campesinato que acorda para a defesa de seus direitos, é o semiproletariado e principalmente o proletariado que se organiza amplamente e comanda as ações políticas. É este o povo que vai realizar a Revolução Brasileira” (Sodré apud Côrtes, 2004).

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vigorava o nacional-desenvolvimentismo13 – governo Juscelino Kubitschek, “50

anos em 5”, intensa industrialização impulsionada pela substituição de

importações –, Chico acreditava que o país se modernizava acertando contas com

o seu passado de desigualdades sociais profundas. Ele já declarou, mais de uma

vez, considerar o golpe de 64 um retrocesso em vários aspectos, interrompendo

esse processo transformador. Foi sua grande desilusão daquela época (mais do

que o AI-5 e o endurecimento do regime em 68), posto que desmobilizara

imediatamente a atividade estudantil.14

O embate entre cultura “de esquerda” e governo “de direita”, traduzido nas

dicotomias nacionalismo x “entreguismo” e “MPB” x “Jovem Guarda”, por sua

vez, está intrinsecamente ligado ao episódio do golpe militar, uma espécie de

“derrota” para a “esquerda”. Se seus segmentos sentiram que perderam no campo

político-institucional, restava resguardar o plano da cultura que, supervalorizada,

passou a ser “o único espaço de atuação da esquerda derrotada (Napolitano,

2003:58)” após sua ruptura com o “povo”, empreendida pelas ações dos militares:

fechamento de vários sindicatos, dissolução de organizações estudantis e censura

(Schwartz, 2003). Pois os militares acabaram fechando os canais de contato

“direto” dos artistas com o “povo” – organizações e espaços culturais postos na

ilegalidade, caso do próprio CPC da UNE –, para o qual tocavam “música

brasileira”, nascida do desenvolvimento do repertório popular. A partir daí, o

espaço privilegiado para este encontro se deu no mercado.15 A contradição não é

apenas aparente. Senão, vejamos.

Após o golpe militar e o corte inicial da relação entre os artistas de música

“engajada” e seu público, a indústria cultural brasileira foi fundamental para a

articulação do termo “MPB”.16 Desde 1964 uma série de shows de “música

13 De acordo com Barros e Silva, estava no ar, “entre meados dos anos 50 e início dos 60, um imaginário social novo, uma espécie de comunhão nacional, na qual estariam reunidos, de um lado, uma elite com sentido patriótico e ciente de suas atribuições históricas, e, de outro, um povo fiel a seu destino, cujas tradições, riquezas e sofrimentos acumulados seriam incorporados ao país que se desenhava no horizonte” (Barros e Silva, 2004:8). 14 Cf. entrevista à revista Vogue/Senhor, de março de 1979 em www.chico.buarque.com.br. 15 O “Relatório do Centro Popular de Cultura” (apud Barcellos, 1994) indica que o CPC não mantinha relação profícua com os meios de comunicação na época: “O CPC tem total impossibilidade de acesso às emissoras de TV na Guanabara [...] O CPC não tem ação direta nas emissoras de rádio na Guanabara, embora algumas anunciem freqüentemente as atividades do CPC [...] A imprensa na Guanabara está fechada para a divulgação das posições do CPC. Alguns jornais divulgam esparsamente as atividades do CPC (apud Barcellos, 1994:451)”. 16 José Roberto Zan (2005) afirma que já no fim década de 60 surgiram instituições de fomento às produções artísticas e culturais que estimularam, ainda mais, a modernização da indústria cultural

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popular brasileira” ocorreu em vários teatros do Rio e São Paulo, juntando um

público jovem e universitário em torno da revitalização do samba “autêntico”,

escutando músicos ainda desconhecidos, como Chico Buarque, Elis Regina e

Gilberto Gil, recém chegado da Bahia.17 Um desses espetáculos, em maio de

1964, no Teatro Paramount, em São Paulo, foi O fino da bossa, logo transformado

em programa de televisão. Segundo Marcos Napolitano (2001):

O sucesso desse show junto ao público estudantil, logo percebido como uma afirmação da cultura nacional frente à ‘ditadura entreguista’ no poder, abriu caminho para muitos outros, deslocando o centro do consumo musical para São Paulo (Napolitano, 2001:61).

Como já observamos na discussão da “crise” na “música popular brasileira”,

um dos aspectos mais debatidos foi a ampliação de sua audiência, considerando

sua relação com a “Jovem Guarda”, cujo canal entre artista e público foi sempre o

mercado, diga-se, a televisão. Já a “música popular brasileira” expressava o “povo

autêntico” em entidades afastadas do mercado capitalista, como eram os CPCs e

outras associações culturais, estudantis e sindicais (Napolitano, 2001 e Barcellos,

1994). Nestas, os músicos – cuja maioria constituía uma intelligentsia – cantavam

“canções de protesto” contra a opressão social e a ditadura, que fechara os canais

com o público, forçando o artista “engajado” “ir ao mercado”.

Segundo Napolitano (2001), nos dois anos seguidos ao golpe, este tipo de

arte não foi estranha ao mercado. Sua relação com ele foi, contudo, “instrumental

e neutra”, vendo-o como distribuidor de suas idéias.18 A partir de 68, com o

brasileira. “Essas iniciativas eram compatíveis com a ideologia de segurança nacional dos governos militares e com a política de integração nacional, um dos seus principais desdobramentos. De certo modo, o governo reconhecia a importância estratégica do desenvolvimento das indústrias de bens simbólicos e dos meios de comunicação de massa por reconhecer o potencial desses setores de promover a unificação política das consciências. Por outro lado, os segmentos empresariais que se beneficiavam de tais medidas estavam mais interessados na integração do mercado resultante dessa política. A afinidade de interesses entre o Estado e grupos empresariais possibilitou a rápida expansão das indústrias da cultura no Brasil nos anos 60 e 70” (Zan, 2005:185). 17 O grande potencial de público percebido nessas apresentações foi imediatamente notado pelos empresários ligados à televisão. Antes do início da era dos festivais, em 1965, foram lançados ainda alguns LPs, registros ao vivo desses espetáculos, que ajudaram a popularizar a nova música moderna brasileira que estava sendo feita (Napolitano, 2001). 18 Naquela época, conforme aponta Marcelo Ridenti (2000): “Desenvolvia-se aceleradamente a mercantilização universal das sociedades, o que se convencionou chamar na época de sociedade de consumo: todos os bens e serviços, inclusive culturais, eram crescentemente subordinados ao mercado, tornavam-se objetos descartáveis de consumo, numa sociedade claramente movida pelo poder do dinheiro (Ridenti, 2000:35)”.

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endurecimento do regime, as críticas da “esquerda” se fizeram mais severas em

relação à indústria cultural por ela ter, entre outras coisas, transformado a noção

de “revolução” (antes voltada para o entendimento do “povo”) num “produto

vendável”, palatável e dirigido aos setores médios da população, destoando do

ideário nacional-popular, fundador da idéia de “MPB”. Mas até chegar a esse

impasse – discutido decisivamente pela Tropicália em 1968 –, não havia conflito

entre a posição de um músico nacionalista “engajado” e sua “ida ao mercado”.

Redimensionando a hipótese de Napolitano (2001) sobre o uso pragmático

do mercado pelos músicos da “MPB de meados dos anos 60”, apresento atitudes

de duas de suas figuras centrais. Ocorridas em épocas diferentes, reforçam o

argumento de alteridade em relação ao mercado. É emblemática uma posição de

Chico Buarque, sustentada em entrevista de 1966, que robustece a idéia de

“autenticidade” da “MPB”, mantida mesmo com o advento do mercado. A

respeito da “mudança” nos rumos da “música popular brasileira”, Chico definia:

Não, a mudança só foi de popularidade, passei a tocar em boate, toquei em televisão. A mudança foi assim, não do ponto de vista de composição, foi do ponto de vista de atuação.19

Nessa ocasião, quando lhe perguntaram pelo sucesso alcançado graças ao

mercado, que “envolve você numa máquina do sucesso, a máquina do êxito”,

Chico respondeu se sentir “mal pra burro”, já que atrapalhava seu objetivo

principal, o exercício da composição. Este posicionamento dúbio, embora não

menos crítico em relação ao mercado, sempre esteve associado a alguns artistas da

“MPB de meados dos anos 60”, diferente do que ocorria em relação à “música

estrangeira”, como por exemplo, da Jovem Guarda, imediatamente conectada à

“indústria cultural”. Da mesma forma, atento para trecho de rara entrevista que

concedeu o enigmático Geraldo Vandré (reconhecido no imaginário nacional, à

sua revelia, como um cantor de “protesto”), ao repórter Alberto Villas (2005), em

que critica o capitalismo. Quando perguntado sobre a marca do carro em que

percorrera a Europa em certa oportunidade, Geraldo exclamou:

Você quer saber a marca do carro para ganhar dinheiro. Para o dono da sua revista ganhar dinheiro ao revelar a marca do carro. É por isso que não gosto de dar entrevistas.

19 Buarque, 1966; grifos meus.

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Você quer saber a marca do carro para colocar na reportagem e ganhar muito dinheiro. A fábrica de automóvel vai se aproveitar disso e também ganhar dinheiro [...] O Brasil virou isso: selvagem e capitalista! (Villas, 2005:201).

De qualquer modo, descontando o mito em torno da figura de Geraldo

Vandré, podemos notar mais uma vez a “tomada de posição” de um artista de

“música popular brasileira” daquele período dos anos 60 em relação ao mercado e

à modernização capitalista. Foram, no entanto, nos festivais televisivos de música

daqueles anos, que artistas da “MPB” se tornaram reconhecidos nacionalmente,

como Geraldo Vandré, Edu Lobo, Elis Regina, Jair Rodrigues, Chico Buarque,

Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e, posteriormente, Ivan Lins e

Luiz Gonzaga Jr.20 Deve-se perceber, contudo, uma diferença crucial entre o que

se passou a chamar de “MPB” – a partir dos festivais e do diálogo com a “Jovem

Guarda” – e o cenário de “música popular brasileira” existente antes do golpe, em

que se exigia dos artistas e intelectuais brasileiros uma postura que fizesse “com

que o popular desse sentido ao nacional (Napolitano, 2001:69)”, numa mediação

“direta” entre “povo” e intelligentsia, em que a última representasse os interesses

do primeiro para a “nação”. É oportuna a análise de Maria Alice Rezende de

Carvalho (1994) sobre a construção de imagens do Rio de Janeiro, no que

concerne ao papel desempenhado pela intelligentsia carioca desde o início do

século XX. Segundo a autora, a cidade carrega uma marca muito forte da

produção de cronistas, poetas, músicos e intelectuais, cujo ponto de partida para

suas observações, em geral, não foram instituições, mas o mundo das ruas, o

mundo popular. Longe do mercado e das agências culturais estatais, se

desenvolveu um tipo de intelectual “livre”, que elaborou sua identidade “como

vanguarda do povo, como intelligentsia” (Carvalho, 1994:47).

É neste sentido que a autora qualifica o tipo de pacto entre intelectuais que

formavam uma intelligentsia e as classes sociais excluídas do processo de

modernização econômica. O mundo popular, simbolizado pelo morro e pela 20 Sobre a consolidação da mudança do lugar social da canção efetivada pela televisão, que ampliou e alterou o público de “música popular brasileira” de maneira altamente significativa, Marcos Napolitano afirma: “A TV incrementou o panorama musical brasileiro, principalmente do ponto de vista mercadológico, com as conseqüências culturais inerentes desse novo circuito de massa. O circuito universitário, secundado pela boêmia mais sofisticada, que ainda tinha uma certa homologia com o circuito de shows profissionais direcionados aos jovens e intelectuais (como Opinião e Arena conta Zumbi, entre outros), é deslocado, perdendo o papel que tinha de centro gerador do mercado musical brasileiro (Napolitano, 2001:80)”. Como apontou também Roberto Schwartz (2003), para quem “a produção de esquerda veio a ser um grande negócio, e alterou a fisionomia editorial e artística do Brasil em poucos anos (Schwartz, 2003:14)”.

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favela carioca, ganhou visibilidade através da produção de intelectuais, que

faziam o elo, o canal de comunicação com a comunidade nacional. Esta “super-

representação” da intelligentsia na esfera política e cultural brasileira, que a levou

a agir como porta-voz das “camadas populares”, ocorreu num contexto em que

estas últimas não se faziam representar “social e politicamente”, tendo suas

demandas junto ao Estado e à sociedade representadas por outra classe (Ridenti,

2000:52-53).

O espetáculo Opinião, como vimos, é revelador desta lógica. Fruto da

proposta de um grupo de intelectuais – Ferreira Gullar, Paulo Pontes, Oduvaldo

Vianna Filho, entre outros – para alargar o público de “música popular brasileira”,

segmento então percebido com um potencial enorme para atingir este objetivo.

Em Opinião, a perspectiva nacional-popular já fora, segundo Napolitano (2001),

transformada pelo golpe, funcionando menos como caráter reformista e mais

como um “núcleo ético e político para a construção da resistência (Napolitano,

2001:69)”. Depois do êxito de espetáculos deste gênero em 64/65, no Rio e em

São Paulo, a indústria fonográfica tornava-se realidade para o artista “engajado”.

Entre manter-se “popular” e atingir um grande público – já que as opções foram

limitadas – estava o mercado, de portas abertas para a “música brasileira”,

mediando a relação dos artistas brasileiros com o “povo”. Este já não era o

“povo” pensado pela lógica nacional-popular: o público aumentara, abrangendo

segmentos de outras origens e classes sociais. Além disso, como lembra Ridenti

(2000), a população brasileira deslocava-se a saltos largos do campo para as

cidades, com perfil definitivamente mais urbano do que rural. Este processo de

rápida transformação, por sua vez, gerou reações que podem ser definidas, de

maneira geral, assim:

[...] resistência ao processo de industrialização, urbanização, concentração de

riquezas e ausência de liberdades democráticas; combate ao dinheiro, à indústria cultural e à fetichização impostos pela sociedade de consumo do mercado capitalista; identificação com o camponês, tomado como autêntico representante do povo oprimido, cujas raízes seria preciso resgatar; escolha do campo como local para o início da revolução social; e valorização da ação, da vivência revolucionária, por vezes em detrimento da teoria (Ridenti, 2000:42).

Desde fins da década de 1950 – com a Bossa Nova, o Cinema Novo, o

movimento de poesia concreta de São Paulo, o nacional-desenvolvimentismo, a

construção de Brasília, a seleção brasileira de futebol ganhando seu primeiro

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troféu de Copa do Mundo, o CPC – sentia-se no país um clima de otimismo, que

estava ligado à idéia de modernização e construção nacional. Mais do que isso, o

que se percebe é um projeto coletivo para a “nação”, como nesta entrevista de

Chico Buarque:

Nos anos 50 havia um projeto coletivo, ainda que difuso, de um Brasil possível, antes mesmo de haver a radicalização de esquerda dos anos 60. Ela (Brasília) foi construída sustentada na idéia daquele Brasil que era visível para todos nós. Inclusive nós, que estávamos fazendo música, teatro etc. Aquele Brasil foi cortado evidentemente em 64. Além da tortura, de todos os horrores de que eu poderia falar, houve um emburrecimento do país. A perspectiva do país foi dissipada pelo golpe.21

Os primeiros discos lançados por Chico – em 1966, 1967 e 1968, todos com

o título de Chico Buarque de Hollanda – representam uma espécie de retomada

do ideal cepecista de aliar tradição e modernidade, samba de raiz e bossa nova. As

primeiras canções do repertório do artista eram, em sua maioria, sambas e

marchas-rancho, e extraíam seus enredos da cultura nacional-popular. Daí a

valorização que teve o violão – não somente nos arranjos mas nos próprios temas

das músicas22 –, o samba, o carnaval e personagens populares, também o sambista

e o trabalhador, o que denotava uma postura crítica bastante clara em relação aos

rumos políticos tomados pelo novo governo do país, analisado por Schwartz como

“pró-americano e anti-popular” (Schwartz, 2003:24). Segundo Fernando de

Barros e Silva (2004):

Não é à toa que essas canções, ou as mais marcantes deste período, sejam expressões de uma saudade, variações em torno de algo que se perdeu, que sua estrutura recorrente estabeleça uma espécie de contraste entre um presente sem sentido, desenganado, traído ou frustrado, e um passado sobre o qual se projetam uma felicidade, uma plenitude, uma pureza autêntica que desapareceram (Barros e Silva, 2004:13 – grifos meus).

Uma certa tradição é valorizada para dar conta da perda do Brasil

“profundo”, idealizado pelo CPC. Daí o interesse pelo samba feito nos morros

cariocas, pela figura de Noel Rosa, pela marcha-rancho, modinha e valsa: toda

uma recuperação daquilo que havia de mais puro, mais simples e mais popular.

Basta lembrarmos de “A banda”, enorme sucesso de Chico. Quando a banda

21 Entrevista à Folha de São Paulo, publicada em 18/03/1999 (apud Barros e Silva, 2004). 22 Por exemplo: “A Rita”, “Amanhã, ninguém sabe”, “Olé, Olá”, “Meu refrão” em Chico Buarque de Hollanda (Som Livre, 1966).

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passava, tudo ao redor se modificava; quando acabava, tudo voltava ao seu lugar.

Os personagens do enredo aludem a um tempo lúdico que é utopicamente

revivido quando passa a banda de samba.

A “MPB” – que brotava designando certo sentido de “música popular” feita

no Brasil em meados dos anos 60 –, além de um olhar carinhoso para o passado,

preservou a esperança que havia na década anterior em um projeto para o futuro

(Naves, 2004a), que se mesclava à idéia de brasilidade, de uma nova “nação”. O

primeiro disco de Chico Buarque é pleno de imagens e metáforas que dão suporte

a este ponto, seja interpretando o samba como uma redenção do futuro, seja pelas

idéias de “povo” e “nação” percebidas na estética musical e nas letras. Em “Tem

mais Samba” – que Santuza Naves (2004b) denomina um “samba franciscano”,

por lidar com o ideal de redenção através da humildade – resulta uma postura

voltada para “o cotidiano e o popular” (Naves, 2004b:51), em que o samba surge

como condição para a felicidade: Tem mais samba no encontro que na espera [...] Tem mais samba o perdão que a despedida [...] Vem que passa teu sofrer Se todo mundo sambasse, seria tão fácil viver.

No final da canção, reforça-se a estética sonora de uma roda de samba,

quando são realçados a percussão e o coro de vozes femininas e o andamento da

música é acelerado, dando a entender a chegada de um tempo novo que

compensaria o infortúnio do presente. Ou como diz Santuza Naves (2004b):

Se a atmosfera está fechada, sombria, é possível reverter a situação com uma mudança de postura. “Sambar”, neste caso, significa assumir uma posição de maior comprometimento com a vida (Naves, 2004b:54).

Samba e “libertação nacional” andaram juntos neste momento dos anos 60,

se entendermos que o “comprometimento” era contrário ao governo militar. Em

“Olé, Olá”, mais uma vez o presente aparece como ruim e opressor e o samba

possibilita um futuro libertador:

Não chore ainda não Que eu tenho a impressão que o samba vem aí.

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É um samba tão imenso Que eu às vezes penso Que o próprio tempo

vai parar pra ouvir

Identificado imediatamente como um artista da “moderna” MPB,

nacionalista e de “esquerda”, não havia espaço para o uso de guitarras elétricas

nas primeiras canções de Chico. Muito pelo contrário, a redenção viria pelo

samba, recriação da música “autêntica” do “povo”, através do filtro “moderno” de

um compositor intelectualizado. A linguagem política nacionalista dava o tom das

músicas da MPB, sendo preciso demarcar bem o nosso território cultural.

2.2. O projeto musical de Mário de Andrade e o uso do “populário”

Mário de Andrade, na década de 1920, pensou num projeto musical que

desenvolvesse questões do nacionalismo e da “música popular” a partir do

“populário”, em que já se encontraria definida nossa identidade nacional. Um dos

principais pensadores do modernismo brasileiro, Mário definia-se um artista

interessado, que fazia obra de “ação” e “circunstância”, ou como definiu Manuel

Bandeira, “realizada em função do momento social brasileiro (Bandeira, 1954:3)”.

Escreveu prosa e verso, romance e poesia, foi crítico de literatura, música e artes

plásticas; além de professor de música, história da música e filosofia. Manuel

Bandeira, poeta seu amigo, o definiu como grande “animador da cultura musical

brasileira”, seguidor de um pragmatismo patriótico e de uma consciência musical

que possibilitasse aos músicos e compositores brasileiros a criação de uma obra

verdadeiramente nacional. Neste sentido, Mário combatia a “degeneração da

música em comércio” e qualquer concepção individualista de arte, propondo um

conceito coletivista de música. Interessado basicamente na formação de uma

coletividade musical – de ouvintes e intérpretes – via “a cultura musical como a

mais intensa força socializante” (idem, p.6).

Santuza Naves (2006) argumenta que o modo como a MPB dos anos 60

reunia o “nacional” e o “popular” – seus ingredientes formadores – foi próprio de

um tempo em que se retomou um ideal modernista, especialmente o de Mário de

Andrade, de “costurar” a “nação” através da música. De acordo com Naves, o

ideal de Mário era que o compositor brasileiro investisse seu potencial de criação

no desenvolvimento refinado do “populário”, de onde extrairia toda a informação

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necessária para elaboração de uma música artística, concebida à época pelo

pensador modernista como música erudita, exemplo emblemático o de Heitor

Villa-Lobos. Buscava-se beber na fonte de composições populares e folclóricas

ainda não atingidas pela modernização. Este é o sentido do “populário”. Da

mesma forma, segundo Naves, a produção de Chico Buarque e de Edu Lobo em

meados dos anos 60 seria uma recriação elaborada das sonoridades populares,

mas com a diferença de operar dentro da esfera da “música popular”, em vez da

“erudita”. Os ingredientes sonoros dos morros cariocas e dos compositores

nordestinos submeteram-se a formas de escrita musical e a instrumentais técnicos

universalizados, filtrados por artistas que eram intelectuais. O universal, neste

sentido, submetia-se ao projeto nacional.

Marcos Napolitano (2001) considera a produção musical de Edu Lobo um

dos maiores trunfos da corrente de músicos e intelectuais nacionalistas na busca

por uma “música popular”, baseada em sonoridades e temáticas folclóricas, de

origem camponesa, trabalhadas formalmente à exaustão com o intuito de aliar

qualidade (estética, basicamente) e popularidade. É interessante se atentar para a

análise de Eduardo Jardim de Moraes (1999) sobre o pensamento estético de

Mário de Andrade, concebido a partir de duas idéias centrais sobre arte: seu

caráter social, com uma dimensão comunicativa e funcional, e a postulação de um

critério estético, orientado por um ideal de contenção formal. O que significa

levar em consideração tanto a dimensão artesanal da arte como seu contato com o

público, “função genuína que é social” (Moraes, 1999:25).

Eduardo Jardim de Moraes argumenta que, segundo Mário de Andrade, a

arte contemporânea se encontraria numa situação de “impasse”. Mário, de acordo

com Moraes, foi sempre crítico em relação aos rumos tomados pelos artistas na

construção de uma obra nacional: deveriam compor o “retrato-do-Brasil” partindo

de “pesquisa e descoberta” dos materiais folclóricos do “populário”, submetidos a

uma transfiguração “erudita”. Somente assim conseguiríamos entrar para o rol dos

países “civilizados”, participando do Concerto das Nações e contribuindo com

algo específico de nossa nacionalidade, com o que nos singularizaria,

enriquecendo a “Civilização” com algo único. Deve-se notar a indicação

universalista destes objetivos que visavam contemplar a humanidade em geral.

Além disso, ressalto a importância dada ao aspecto social, em vez do lado

estético, posto que “a beleza não deve ser um fim, mas é a conseqüência da arte”,

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ou seja, os elementos estéticos precisavam se adequar à função expressiva da arte,

ao desejo de comunicação ou “desejo de amigo”, que eram os termos usados por

Mário, que em carta a Manuel Bandeira sentenciava: “A obra de arte só se dá

quando chegou ao destino a que foi destinada”.23

Edu Lobo citou Mário de Andrade (apud Napolitano, 2001) num debate dos

anos 60, lembrando de sua advertência em relação a qualquer tipo de “xenofobia

musical”, ao se referir ao uso que alguns faziam do samba no início daquela

década, entendido como “fonte”, “quer como documentação, quer como

inspiração”, de folclore. O “conselho” – “a reação contra o que é estrangeiro deve

ser feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele, não como repulsa”

– foi exposto no “Ensaio sobre a música brasileira” (1962), de 1928, em que

Mário apresentou diversos aspectos do projeto musical modernista, elaborado

num período de nacionalização do país, em especial nas artes, marcado, de início,

pela noção de que “a nação brasileira é anterior à nossa raça” (Andrade, 1962:3) –

“raça” entendida no sentido cultural e não biológico. A idéia de “brasilidade” foi

acompanhada pela de “mistura”, da fusão da cultura de índios, portugueses e

africanos, afastando-se de uma concepção “purista”. Para Mário, da mesma

maneira como não existiria valor nacional em cada “raça” separadamente, não

haveria música “nacional” que fosse composta, exclusivamente, por elementos

indígenas, europeus ou africanos. Queria-se evitar, através deste procedimento,

uma leitura exótica do país – as tais sensações fortes, como “vatapá”, “jacaré” e

“vitória-régia” – bem como uma determinação excessiva dos ditames artísticos

europeus. Ambos não se constituiriam como parâmetros para a produção de uma

música legitimamente “brasileira”, em fase de construção24. Desviava-se da

representação do país por traços unicamente regionais, já que se buscava critérios

universais, baseados na junção das três “raças” (culturas) e, por isso mesmo, sem

caráter racial. Na visão de Elizabeth Travassos (1997), Mário “não tomava a sério

propostas de uma cultura brasileira calcada em particularismos étnicos e

combateu a inspiração exclusiva em criações aborígenes e africanas” (Travassos, 23 Mário de Andrade, Cartas a Manuel Bandeira, p. 81, apud Moraes, 1999. 24 Segundo Mário de Andrade, o nacionalismo era uma fase de definição pela qual tínhamos que passar com o intuito de criarmos uma tradição verdadeiramente nossa. Nas palavras de Vivian Schelling, era um “nacionalismo vinculado a um desenvolvimento futuro, voltado para o internacionalismo [...] uma fase pela qual o Brasil teria de passar – um momento dialético no processo mais amplo de desenvolvimento – a fim de se libertar dos modos de ver e pensar que alienavam o país de sua própria experiência (Schelling, 1990:112)”.

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1997:158), criticando a unilateralidade, já que o valor estaria no encontro coletivo

e harmonioso das três culturas que formavam o Brasil.25

Segundo Vivian Schelling (1990), o projeto musical de Mário exigia que o

artista mergulhasse de cabeça na “experiência coletiva da entidade nacional”, da

qual se tornaria meio de expressão, descobrindo a “realidade” brasileira e fazendo

dela seu material de criação, não imitando obras européias. Deste modo

enriqueceríamos o mundo com uma produção original, fruto da concepção que a

elite artística do país fazia da cultura “popular” e do “folclore”, ensejando uma

“cultura brasileira autêntica (Schelling,1990:105; grifo meu)”. Schelling enfatiza

no modernismo brasileiro a formação de um “espírito crítico”, calcado em

“pesquisa e descoberta”, destruidor de tabus ao romper com vários aspectos da

cultura oligárquica brasileira. Para se libertar das arestas academicistas, por

exemplo, havia o interesse pela cultura “popular” e pelo primitivismo; para

relaxar das preocupações com métrica e rima – ideal tipicamente parnasiano com

o qual se queria romper – e criar uma “cultura brasileira autêntica”, buscava-se o

verso livre, quebrando inclusive com a divisão entre português correto e incorreto.

O modernismo pensava a produção cultural como um todo e propunha à classe

artística a participação no processo de formação de uma “consciência criativa

nacional”.

De acordo com os ideais nacionalistas de Mário de Andrade, todo artista

brasileiro deveria assumir uma posição antiformalista, pautada pela economia de

recursos técnicos utilizados na concepção da obra de arte, de modo que não

houvesse nenhum exagero formal que ganhasse uma importância

superdimensionada e ofuscasse o sentido primeiro da arte, que seria o social.

Segundo Moraes (1999), a técnica deveria ajustar-se às “próprias exigências da

matéria”, dando sentido ao honesto fazer que não distinguia o artesão do artista.

Combatia-se a idéia de um artista-indivíduo, cuja arte fosse a expressão subjetiva

de sua personalidade e a busca desenfreada do ideal da beleza, e também a noção

de que a figura do artista pudesse ser maior do que a própria obra. Para Elizabeth

Travassos (1997), Mário condenava o sentimentalismo romântico na arte,

25 Na interpretação de Santuza Naves (1998), “as manifestações populares, sobretudo as folclóricas, são tomadas como matrizes para composições eruditas, elaboradas, que apresentam ao mesmo tempo uma caracterização nacional. E coerentemente com essa concepção unificadora que subjaz à confecção do ‘retrato-do-Brasil’, evita-se que tais manifestações se confundam com o exótico ou se restrinjam a um único elemento, como o indígena (Naves, 1998:33)”.

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opondo-lhe a sensibilidade moderna como modo de impor um ideal de contenção

da exteriorização dos sentimentos. Os modernistas abominavam “formas de

expressão que julgavam repetidas, calculadas ou envelhecidas (Travassos,

1997:33)”, advindas principalmente do Romantismo, que representavam

exacerbadamente os sentimentos. Travassos ressalta que não era com o

sentimento propriamente que os modernistas queriam romper, mas com o

sentimentalismo, com sua “exteriorização rutilante (idem,p.34)” e grandiloqüente,

através de uma postura que privilegiava o despojamento e o coloquialismo,

aproximando a arte da vida. Da mesma forma, se reproduziria “na discussão do

virtuosismo, a necessidade de resguardar um lugar legítimo para as manifestações

da subjetividade, afastando-a das convenções sentimentais e expressões

estereotipadas (idem, p. 73)”.

Recorrendo ao estudo da história da música realizado por Mário de

Andrade, Moraes (1999) demonstra que do seu surgimento até a modernidade

ocidental, a música apresentava um caráter social (ligado à vida), desempenhando

função religiosa, de fusão social, presente nas mais diversas manifestações

coletivas do “povo”. Aí, não havia espaço para individualismos, entendidos na

forma de artistas virtuoses que chamariam mais a atenção para si do que para o

que estava em torno26. Aqui está a chave para entender a posição crítica assumida

por Mário em relação à situação da arte moderna no Ocidente, em que o

parâmetro individual passou-se a constituir como “critério para toda experiência

humana (Moraes, 1999:58)”. Vejamos a interpretação que faz Eduardo Moraes:

Ao perder a referência aos princípios orientadores com valor social, uma sociedade pode certamente chegar a conceber a arte em sua importância estritamente estética, como arte pura. No entanto, nota-se que nestes momentos uma nova situação de subordinação passa a se impor, quando a arte submete-se às liberdades sentimentais do eu. É o momento do aparecimento do individualismo, o maior responsável pelo empobrecimento da arte, que faz com que ela perca seu caráter de experiência global, se dessocialize e em que se manifesta o aprofundamento da orientação formalista (Moraes, 1999:35-36).

Propôs-se uma arte que aliava, no mesmo plano, critérios de cunho social e

estético, numa concepção coletivista que não comportava individualismos 26 Elizabeth Travassos (1997) chama a atenção que os virtuoses “(ou virtuosos) eram os indivíduos que se realizavam artisticamente com seus próprios recursos, à revelia do meio social e cultural, como Guiomar Novaes e Carlos Gomes, cujo sucesso não devia ser creditado ao estado do cultivo das artes no Brasil [...] A observação histórica e sociológica explicava a falta de comprometimento social dos virtuoses, alienados de sua condição nacional e da virtude de servir ao público (Travassos, 1997: 70-71)”.

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exacerbados em forma de virtuoses, na figura do artista entendido como gênio. Ao

mesmo tempo, no caso da música em particular, articulava-se a “utilização do

material sonoro” com a questão da “arte para a vida”, reafirmando que, da

Antigüidade à Idade Média, vigorou a funcionalidade social da arte, não

entendida separadamente da vida dos povos, sendo a expressão de seus “valores

fundamentais”. O elemento estético não teria autonomia ou valor próprio, já que o

ideal coletivista da arte impedia o estabelecimento da beleza, descolada de função

social. Ou como nas palavras de Vivian Schelling:

Sendo acima de tudo uma forma de crítica e comunicação, a arte tinha que “servir a vida”, humanizar o mundo. Apenas depois, no mundo assim humanizado, é que a arte poderia se permitir ser a busca desinteressada da beleza e do prazer estético (Schelling, 1990:110).

De acordo com esta autora, a “concepção de Mário de Andrade sobre a

natureza do artista, portanto, distinguia-se da concepção individualista do artista

como ‘gênio’ (idem, p.108)”, já que o valor estava na experiência coletiva: o

artista deveria abdicar-se da inquietação individual de perseguir a beleza para se

destinar a juntar partes fragmentadas de uma “nação” heterogênea e estratificada

numa unidade, agregando interesses individuais e particulares aos objetivos gerais

da pátria. O “engajamento” marioandradino referia-se ao envolvimento do artista

brasileiro na formação de uma cultura nacional autônoma, afirmando a “diferença

específica do particular” como única forma de inserir a “‘entidade nacional’

dentro da matriz universal mais ampla da cultura européia (Idem, p. 106)”.

Foi também na década de 1930 que Walter Benjamin escreveu “A obra de

arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (Benjamin, 1981), em que analisa as

transformações impulsionadas pelo advento do capitalismo pelas quais passava a

arte contemporânea, dando ênfase mais acentuada ao cinema e à fotografia. A

reprodução técnica da obra de arte – através de xilogravura, litografia, fotografia,

cinema, indústria do disco – permitia manter o mercado com produções e criações

novas, num processo de alta rotatividade. De acordo com Benjamin, com isso

perdia-se “o aqui e agora” da obra de arte original, a sua “existência única”, o que

determinava a essência da sua autenticidade.27

27 Para Benjamin, a “autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem , desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da

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É revelador constatar que um pensador alemão, contemporâneo a Mário de

Andrade, também defendesse a “autenticidade” da obra de arte em função do

avanço e consolidação da reprodução técnica, promovida pela sociedade de

consumo capitalista que punha, segundo o autor,

a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar do indivíduo a obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco (Benjamin, 1981:168).

Nesta passagem, se perderia o que o autor chamou de “aura”, atrofiada pelo

fato da “existência única” da obra de arte ter sido substituída por uma “existência

serial”, não comprometida com sua função social. Para abarcar este declínio na

idéia de “aura” na arte, motivado pelo surgimento de uma sociedade de massa,

Benjamin distingue a imagem propriamente dita da sua reprodução. Á primeira se

relacionariam a unidade e a durabilidade enquanto à cópia seriam associadas a

repetibilidade e a transitoriedade.

Outro elemento que possibilita relacionar Benjamin a Mário de Andrade é a

percepção, em ambos, de que a arte, nos seus primórdios, surgiu em função e “a

serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso [... O] valor único da

obra de arte ‘autêntica’ tem sempre um fundamento teológico (Benjamin,

1981:171)”. Da mesma forma, para Mário, a origem da música teve caráter

“mágico-social”, congregando diversas comunidades em rituais religiosos

(Moraes, 1999:34-35). Mais do que isso, porém, o que permite associá-los ainda

mais é uma “tomada de posição” em relação à situação contemporânea da arte que

conheceram, transformada pelas novas condições de sua reprodução técnica, com

a qual, segundo Benjamin,

a obra de arte se emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do ritual. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida (Benjamin,1981:171).

Deste modo, perderia sentido a “autenticidade” da obra de arte, ligado à sua

função ritualística. Com a mudança, a função social da arte passa a operar menos

no campo artístico do que na esfera da política, justamente pela obra de arte

reprodução, também o testemunho se perde. Sem dúvida, só esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional (Benjamin, 1981:168)”.

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passar a ter um grau de exposição nunca antes vivido, estando em diversos lugares

e ocasiões:

a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a ‘artística’, a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária (idem, p. 173).

O modernismo brasileiro dos anos 1920 – como mais tarde a geração de

meados dos anos 60 – buscava chegar à produção artística de um país “profundo”,

em que os sentidos social, ritualístico e integrador da música ainda estivessem

preservados do processo que transformava a “música em comércio”. Daí o

interesse pelo elemento folclórico. Contra o desvirtuamento moderno da técnica

artística, Mário defendia a adoção de uma atitude estética por parte dos artistas,

que envolvesse a superação do interesse individual e a valorização da dimensão

artesanal que está na origem da arte, que no limite, “diz respeito a todos os

procedimentos operativos e a todos confere dignidade (Moraes,1999:71-72)”. Seu

interesse era sempre combater a perspectiva de uma arte individualista, descolada

de seu propósito funcional, já que sua visão privilegiava a manifestação artística

junto ao cotidiano das pessoas, como um “utensílio” que servisse para algo. Isto já

não ocorreria, para o multifacetado autor modernista, pelas condições propiciadas

pelo processo de industrialização das sociedades capitalistas, que enfraqueceriam

o “poder socializante” da arte em outros tempos. Interessava-se pelo folclore,

ainda não contaminado pela modernização. 28 Além disso, preservava a idéia de

que as constantes de nossa identidade se encontrariam nas produções culturais do

“povo”.

Entre 1964 e 1965, a produção musical de Edu Lobo caracterizou-se pelo

tratamento estilístico de temas ligados ao folclore nacional, com harmonização e

28 “O tema do folclore teve importância central na proposta de Mário de Andrade de nacionalização da cultura. Desde os anos 20, o ingresso da cultura brasileira na modernidade foi pensado pelo movimento modernista, e de modo destacado por Mário de Andrade, como a inserção do país no ‘concerto das nações cultas’. A partir de 1924, essa inserção passou a depender da afirmação dos traços específicos da nossa cultura, pois pensava-se que apenas uma contribuição própria asseguraria ao Brasil o acesso ao contexto moderno. O retrato do Brasil que Mário de Andrade propôs-se traçar nesse momento terminava por identificar o ser nacional à ‘coisa folclórica’. No folclore estariam enraizados os traços da nacionalidade. Ora, a manifestação folclórica é coletiva, social, não há como definir a autoria individual de um produto seu. Já este fato aponta para a inexistência nela de qualquer traço de individualismo. A ‘coisa folclórica’ tampouco está sujeita a qualquer desvio formalista, sendo a sua principal característica a economia de recursos inventivos (Moraes, 1999: 79/80)”.

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arranjo “mais funcionais e menos ornamentais” (Napolitano, 2001: 113), o que

fica nítido se prestarmos atenção à performance do próprio Edu em seus primeiros

discos, em que ressaltava o ideal modernista de contenção formal. Ao mesmo

tempo, sua música era de tal forma elaborada que confundia os limites entre

“popular” e “erudito”, já que trabalhava num material folclórico extraído do

“populário”, dando-lhe roupagem mais moderna e cosmopolita, e fazendo na

música “popular” o que Mário ansiava que fizessem na música “erudita”: a

transfiguração desenvolvida dos temas folclóricos – ainda não modificados pelo

avanço do capitalismo – em música artística nacional. Conforme argumenta

Travassos, o “trabalho consciente dos artistas” sobre a “expressão instintiva do

povo” daria forma à “arte moderna nacional”, segundo o ideal de Mário de

Andrade (Travassos, 1997:158).

Uma semelhança entre a geração modernista dos anos 20 e 30 e a que

fundou a idéia de “MPB” em meados dos anos 60 foi a implementação de um

programa cultural para o Brasil. A “missão” de artistas e intelectuais de formar

uma “consciência nacional”, fundamentada na pesquisa das representações

coletivas e na interpretação consciente da tradição, criavam uma memória

histórica, “uma tradição autônoma a que pudessem se referir as gerações futuras

(Schelling, 1990:123)”: o artista deveria “sacrificar a preocupação individual com

a beleza e a criação artística e dedicar-se ao projeto de sintetizar as partes

fragmentadas numa unidade (1990: 109)”. Ou seja, além da idéia de uma

intelligentsia conduzir o processo, havia um discurso de integração nacional,

valorizando o “povo autêntico”.

O debate sobre a música e a cultura “brasileira” em meados dos anos 60

pregava uma atitude crítica – e por que não dizer “de combate”? – em relação aos

rumos seguidos. Esta “tomada de consciência” relacionava-se à influência cada

vez maior da comunicação de massa. A música da “Jovem Guarda” era vista

como “estrangeira” e anti-nacional, entre outros motivos, por reproduzir a forma e

o conteúdo das tendências americanas e européias. Já a “MPB de meados dos

anos 60” era tida como a exacerbação de um ideal nacionalista e, assim como no

momento de “formação nacional” dos anos 20, devia evitar a influência

esmagadora vinda das tecnologias da comunicação de massa, entendida por

setores intelectuais como puro entretenimento. Embora Mário pregasse uma

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nacionalização “sem xenofobia”,29 ele insistia em valorar nossa música folclórica,

repleta de elementos da nossa identidade. Neste sentido, faz a distinção entre

música popularesca – de “massa” – e a música do nosso “populário”.

Uma diferença fundamental, contudo, entre o projeto modernista de Mário

de Andrade e a MPB consistiria, a meu ver, no valor dado ao músico erudito no

primeiro caso e ao músico popular no segundo. A transformação do nosso

populário nacional em música artística, feita a partir da sua “observação

inteligente”, encabeçada por músicos eruditos na década de 20 – como foi o caso

exemplar de Villa-Lobos – foi feita por artistas de “música popular” nos anos 60 –

como Edu Lobo e Chico Buarque. Portanto, se a música artística era a música

“erudita” (Naves, 1998) no primeiro caso, décadas à frente era, sem dúvida, a

“música popular”. Em ambos os momentos, porém, prevalece a idéia de que o

compositor brasileiro devia basear-se no desenvolvimento da manifestação

“popular”, no folclore, sem, no entanto, ser exclusivista ou unilateral. A este

respeito, Mário propunha aos artistas brasileiros que selecionassem a

documentação que lhes serviria de base e aperfeiçoasse os elementos estranhos –

já que a “transposição de processos” era “justa e bem recomendável (Andrade, p.

26)” – evitando, com isso, cair num exclusivismo reacionário. Para ele, a cultura

brasileira devia equilibrar-se entre as influências estrangeiras e nacionais, não

devendo haver grandes desproporções. Fica claro que o nacionalismo

marioandradiano não excluía o universal. Ainda mais se lembrarmos que a fase

era de construção e não de destruição. Por isso mesmo defendia, com freqüência,

a incorporação em nossa música do que chamava de “excessivo característico”,

que embora não devesse transformar-se em critério único de criação, poderia ser

utilizado como forma de “determinar e normalizar os caracteres étnicos

permanentes da musicalidade brasileira (Idem, p. 10)”. 30

29 Como estávamos em uma fase criativa – e não destrutiva – tínhamos que considerar a cultura européia e os seus gênios e não cairmos numa total ignorância estética. Entretanto, a questão que se colocava era como amoldar a invenção aos processos populares nacionais. 30 A noção de “excessivo característico” dizia respeito, na década de 20 – “fase de predominância rítmica” – ao “problema da síncopa”. “O brasileiro se acomodando com os elementos estranhos e se ajeitando dentro das próprias tendências adquiriu um jeito fantasista de ritmar. Fez do ritmo uma coisa mais variada, mais livre e sobretudo um elemento de expressão racial (Idem, p. 12)”. O ritmo sincopado encontrava-se na base de nosso “populário”, de onde o compositor extraía toda a informação necessária para o desenvolvimento da música artística. No momento de definição de nossa nacionalidade, recorreu-se freqüentemente às expressões sincopadas de nosso folclore bem como a “manifestações consideradas dionisíacas, como o Carnaval (Naves, 1998)”. Como o período era mesmo o de formação, chegava-se mesmo a estimular o “excessivo característico”,

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Podemos estabelecer um paralelo da postura “comprometida” e “engajada”

de Chico Buarque e outros músicos de sua geração com a idealização, de Mário

de Andrade, do artista de “ação” e de “circunstância”, integrado à construção da

identidade nacional, tendo sua obra “realizada em função do momento social

brasileiro (Bandeira, 1954:3)”, como se referiu Manuel Bandeira ao amigo. Além

da identificação com a atitude de articular vida e obra, existem outros pontos que

realçam a aproximação de Chico Buarque com uma sensibilidade modernista que

valorizava o ideal de despojamento (Naves, 2004b).

Sob esta ótica, e retomando os sambas do primeiro disco de Chico,

proponho nos determos mais uma vez em “Tem mais samba”, em que tanto a

interpretação e o arranjo harmônico como a linguagem textual propõe uma

estética simples, “pequena”, sem grandes orquestrações e valorizando o homem

comum. Ainda de acordo com Naves, Chico valorizaria “o pequeno, o homem

comum e o cotidiano (p. 52)” em detrimento da “estética do monumental”,

voltada para as coisas grandiosas, o que logo o identifica, a meu ver, com ideal

presente em vários músicos e intelectuais dos anos 60 de valorização da cultura

popular no que ela havia de mais “autêntico” e preservado do mundo da

comunicação de massa. Então, como vimos, o arranjo da música não recorre a

sons de guitarras elétricas nem a rápidas e fortes viradas de bateria – o violão foi

utilizado no arranjo de todas as músicas e em muitas serviu como parte da própria

temática das canções – (ou ao uso de saxofone e teclados), como eram

harmonizadas as músicas do iê-iê-iê, dando o sentido claro de oposição entre os

dois segmentos. Quero também chamar a atenção para o uso de sambas e marcha-

ranchos no primeiro disco de Chico, no sentido de que ele criou uma ambientação

rítmica extraída de nosso “populário” nacional. Além disso, nota-se na maioria

das músicas a recorrência a melodias já cristalizadas em nosso imaginário

popular, que sugerem forte noção de coletividade.

Segundo Santuza Naves (1998), Mário de Andrade distinguia a música

“popular” da “popularesca”, a definindo como “submúsica”, motivada por valores embora Mário atentasse para o risco de haver uma banalização devido a seu uso constante. Mas a questão não se resolvia de modo tão simples, visto que ele próprio afirmava que a música tinha valores diretamente dinamogênicos, que atuavam criando estados “cenestésicos” novos dentro do corpo, acentuando “estados-de-alma sabidos de antemão”. E a músico do nosso “populário”, em especial, era fortemente dinamogênica, e desta maneira, altamente expressiva posto que não era o resultado de falsas erudições nem de individualismos exclusivistas, já que brotava de “necessidades gerais humanas inconscientes (Idem, p. 16)”.

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e interesses comerciais, engendrando uma arte voltada para o consumo. Os

resultados seriam obras “falsas” e “plagiárias”, que entravam num circuito de

repetição no mercado e eram logo substituídas umas às outras, como se o

conteúdo não fosse mesmo importante: quase uma arte artificial criada pelos

ditames da mídia. Por outro lado, “o elemento popular, sobretudo o folclórico, se

converte em matriz imprescindível para a realização da música artística ou

interessada (p. 48)”. Quero chamar a atenção, num primeiro instante, para a forma

como estava sendo pensado o “popular” por Mário de Andrade num movimento

tanto em direção à valorização do folclore – elemento de fusão nacional, visto

como “autêntico” posto que intacto à modernização capitalista – como em

oposição ao elemento “popularesco”, voltado unicamente para o comércio. Ainda

de acordo com Naves:

[...] o popular (ou populário, na acepção de Mário de Andrade), identificado sobretudo com as manifestações folclóricas das “três raças”, é agora valorizado, enquanto se rejeita o popularesco. Como prevalece a idéia de uma modernidade em construção, seleciona-se um repertório condizente com o modelo a ser implantado, o qual, se é mais democrático, não deixa também de ser excludente. Por outro lado, ao rejeitarem o popularesco – buscando um registro mais elevado para a composição popular –, os modernistas musicais demonstram também seu comprometimento com a idéia do sublime. Só seria válido, nesse sentido, dedicar-se a um tipo de música que capte a alma popular, que leve à comoção, criando-se interdições que se aplicam às obras banais, cujo intuito é despertar da sensualidade fácil das massas em busca do prazer (Naves, 1998: 49).

Assim, pela própria colocação dos termos marioandradinos, sugiro pensar a

“MPB de meados dos anos 60” como portadora dos valores desta acepção

modernista, ao enfatizar a cultura do “povo” e operar com “um tipo de música que

capte a alma popular”. A condição de “popularesco” – “obras banais”, “fáceis” –

seria atribuída, portanto, às canções da “Jovem Guarda”. Foram discussões e

embates ideológicos e culturais em um tempo que prevalecia o que Marcelo

Ridenti (2000) chamou de utopia de um romantismo revolucionário, já que a

própria palavra “revolução” parecia abarcar vários sentidos (além do político),

entrando na esfera pessoal e cultural.31 A atitude romântica revolucionária

buscava uma alternativa à modernização capitalista, a partir de um resgate do

homem do povo, ainda não desumanizado pelo consumismo. Ridenti ressalta que

o 31 Marcelo Ridenti retoma o conceito de “romantismo revolucionário”, de Michel Lowy, para discutir o “engajamento” dos anos 1960.

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romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado, mas também modernizador. Ele buscava no passado elementos para a construção da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no sentido da perspectiva anti-capitalista prisioneira do passado, geradora de uma utopia irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário. De fato, visava-se resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades [...] (Ridenti, 2000 : 25).

Este culto ao “povo”, segundo alguns críticos do “romantismo” deste

período, acabava por dar lugar à “práticas totalitárias, opressoras das

individualidades (Ridenti, 2000:31)”, posto que artistas e intelectuais, como

vimos anteriormente, agiam como “guias” para o povo conseguir a emancipação

nacional dos interesses estrangeiros32. É possível, através da análise de Ridenti

(2000), estabelecer e reforçar um vínculo entre o imaginário do romantismo

revolucionário dos anos 60 e um determinado aspecto romântico do modernismo

brasileiro, “que pode ser caracterizado ao mesmo tempo como romântico e

moderno, passadista e futurista (p. 49)”. Para este autor, “a afirmação das

tradições da nação e do povo brasileiro como base de sustentação da modernidade

fez-se presente nos mais diferentes movimentos estéticos a partir da Semana de

Arte Moderna de 1922 (idem)”. Como notou Moraes (1999), na avaliação da

nossa história cultural feita pelo modernismo, o Romantismo foi valorizado – em

contraposição ao parnasianismo – por constituir em um momento em que a arte

possuía um valor coletivo e social determinante, posto que “seria a expressão do

enraizamento na nacionalidade” (Moraes, 1999:31).

Percebo que no modernismo da década de 20 e na geração dos 60, artistas e

intelectuais – os redescobridores do país, como disse o cineasta do Cinema Novo

Cacá Diegues (apud Ridenti, 2000) – se propuseram a pensar o “Brasil” como um

todo, de acordo com o ideal de arte interessada defendido por Mário de Andrade,

para quem “só seria justificável fazer música meramente ‘desinteressada’ quando

ultrapassássemos o momento de formação nacional (Naves,1998:30)”, que exigia

o empreendimento do artista-operário, entendido o “depositário de uma

concepção útil e moralizante de arte (idem, p. 31)” em um período de afirmação

de nossa identidade nacional. O artista dessa fase, segundo Moraes (1999),

32 Aqui compartilho da mesma opinião que Ridenti (2000), para quem o aspecto totalitário de muitos movimentos culturais e políticos dos anos 60 “não deve obscurecer a riqueza e a diversidade desses movimentos, que também são portadores, contraditoriamente, de potencialidades libertárias (p. 32)”.

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deveria se colocar como um “intérprete da tradição em que está guardada a

nacionalidade. Ele é, também, quem a atualiza [...] O artista é o agente que oficia

a transmissão do legado da identidade nacional (Moraes, 1999:119)”. Mais do que

isso, ele era um dos principais agentes na formulação do que o “povo” brasileiro

precisava ouvir e saber.

Entre o projeto musical de Mário de Andrade e a MPB dos anos 60, deve-se

apontar um paradoxo. O primeiro vislumbrava através da elaboração “erudita” da

música do nosso “populário”, a possibilidade de uma inserção plenamente

original na ordem mundial e, sobretudo, de chegar a um Brasil “profundo”,

preservado da modernização capitalista que transformava a “música em

comércio”. A contradição se dá quando a MPB, surgida num embate entre

nacionalismo e “imperialismo” (dominação cultural estrangeira) no começo dos

anos 60, retoma o ideal de Mário de “costurar” o Brasil através de um tipo de

música que fosse a recriação desenvolvida da música folclórica (nos termos de

Mário) ou popular (nos termos dos anos 60), com a diferença que a nação

imaginada pela moderna “música popular brasileira” chegou ao público através da

televisão, do mercado. Ou seja, a arte se fez plenamente – pois chegou ao seu

destino (conforme os ideais de Mário) – a partir de um veículo que, à priori, a

degeneraria, tendo os “músicos populares” conseguido realizar a “transfiguração

do populário”.

Os artistas iniciais da MPB colocaram-se criticamente – buscando um ideal

de neutralidade, como disse Napolitano (2001) – em relação ao mercado. Mas

essa estranheza, percebida no discurso dos principais agentes culturais da época,

perde força e se dissolve quando contrastada ao papel crucial que teve o mercado

(TV, festivais, empresários, etc.) na história da MPB. A “força socializante” da

música pôde ser sentida via mercado, lugar por excelência da “sub-música”, com

as pessoas acompanhando das salas de estar de suas casas a disputa ideológica

entre a “consciência nacionalista” da MPB e a “alienação” da Jovem Guarda.

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3 “Caminhando contra o vento”: guitarras elétricas e fragmentos políticos na MPB

“O trabalho que fizemos, eu e Caetano, surgiu mais de uma preocupação

entusiasmada do novo do que propriamente como um movimento organizado. Eu acho que só agora, em função dos resultados dessas nossas investidas iniciais, se pode pensar numa programação, numa administração desse material novo que foi lançado no mercado”. Gilberto Gil, 1968.1

Neste capítulo apresento as mudanças realizadas pelo tropicalismo no final

da década de 1960, ao questionar as concepções de “povo” e “nação”,

fundamentos da “moderna música popular”, com a sigla MPB. Vimos no primeiro

capítulo que a produção artística de Chico Buarque e Edu Lobo expressou uma

idéia de Brasil extraída, principalmente, da imagem do trabalhador rural e urbano,

camponês e operário, do Nordeste e dos morros cariocas. Nos arranjos das

canções de seus primeiros discos predominaram o violão e instrumentos de

percussão relacionados a ritmos do “povo”, – samba, marcha-rancho, moda-de-

viola, toada, entre outros nordestinos – considerados por setores intelectuais e

artísticos os autênticos e verdadeiros representantes do nacionalismo a nos

proteger dos interesses estrangeiros. Por volta de 1965/66, o termo MPB estava

fortemente identificado como pólo aglutinador de questões sociais e culturais do

país, com base no ideário de valorização do projeto nacional-popular. Atualizando

as categorias musicais de Mário de Andrade para este contexto, sugiro pensá-lo

como um momento de desenvolvimento do “populário”, visando a construir uma

estética totalizante, convergente com a idéia de Estado-nação.

Em 1967, a Tropicália, “movimento” que reuniu diversas produções de

música, cinema, jornalismo, teatro e artes plásticas, abriu caminho para

sensibilidades fragmentadas – no sentido de não almejar uma totalidade brasileira

–, ao colocar em interação os elementos nacionais e internacionais da cultura.

Deste modo, os músicos tropicalistas repensaram tanto a concepção de “música

popular brasileira” quanto o entendimento do “Brasil” que permeou a primeira

geração da MPB. Os artistas escolheram certos elementos locais do que seria a

1 In Campos ( 2005). Conversa com Gilberto Gil.

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nossa “tradição”, mostrando-se abertos às novidades da música pop e a outras

informações internacionais. A representação social das camadas populares como

“povo”, categoria importante do projeto nacional-popular, foi substituída por

imagens mais fragmentadas e associadas à cultura de massa. Ao propor uma

solução ao conflito entre “nacionalismo” e “estrangeirismo” na “música popular

brasileira”, questionando os fundamentos nacionais e populares da MPB, o

tropicalismo, de acordo com Marcos Napolitano (2001), gerou tensões cuja

conjuntura, em 1968, “culminou na radicalização do debate estético e ideológico

em torno da canção (Napolitano, 2001:290)”.

3.1. Uma solução para o impasse nacionalismo x “entreguismo” na “música popular brasileira”

“O 3o Festival de Música Popular, promovido pela TV-Record, em 1967, foi o palco onde se desenrolaram as primeiras escaramuças de uma nova batalha, a que agora travam Caetano Veloso e Gilberto Gil por uma ‘abertura’ na música popular brasileira. Os dois compositores são os primeiros a pôr em xeque e em confronto, criticamente, o legado da bossa-nova, através do seu mais radical inovador, João Gilberto, e a contribuição renovadora dos Beatles. Esse movimento, que ainda não tem nome definido, vai incorporando novos dados informativos: som universal, música pop, tropicalismo, música popular moderna. Oswald de Andrade, o grande pai ‘antropofágico’, o profeta da nossa poesia de vanguarda, é invocado também pelos jovens compositores”. Augusto de Campos, 1968.2

Em meados de 67 a contradição político-musical entre a MPB e a Jovem

Guarda acirrou-se em dois episódios decisivos, conhecidos como a “Passeata

contra a guitarra elétrica” e o “Manifesto do iê-iê-iê contra a onda de inveja”. O

primeiro é de julho daquele ano, organizado pela TV Record e artistas de “música

popular brasileira”, para promover o programa “Frente Única da MPB”, que

substituiria o “Fino da Bossa”. Partindo de tradicional ponto de manifestação

política de São Paulo – o Largo de São Francisco –, uma multidão acompanhou

Edu Lobo, Geraldo Vandré, Elis Regina, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, MPB-4,

entre outros, numa passeata que contou com a estrutura necessária (caminhonetes,

carros de som, cartazes, alto-falantes, banda de música) para que a mensagem

nacionalista fosse devidamente assimilada. Vale citar uma estrofe do “Hino da

Frente Única”, cantado na ocasião pelo público e pelos artistas: “Moçada querida/

cantar é a pedida/ cantando a canção da pátria querida/ cantando o que é nosso/

2 Campos (2005). “Informação e redundância na música popular”.

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com o coração” (Araújo, 2006 e Napolitano, 2003). Era evidente a defesa de um

nacionalismo musical.

A resposta da Jovem Guarda veio no mês seguinte, através da publicação do

“Manifesto do iê-iê-iê contra a onda de inveja” na revista Manchete:

Olha, essa gente engajada, esses nacionalistas, na verdade, são demagogos. Nós é que fazemos realmente pensando no povo. Esses burgueses acham que estão defendendo o povo, mas, na verdade, estão defendendo suas carreiras profissionais. Eles estão ocupando o espaço da mídia e usando a fome do Nordeste para ocupar esse espaço. E somos nós, da Jovem Guarda, acusados de alienados, que fazemos caridade, fazemos shows beneficentes (apud Napolitano, 2003) [...] Fazer música reclamando da vida do pobre e viver distante dele não é o nosso caso. Preferimos cantar para ajudá-lo a sorrir e, na hora da necessidade, oferecer-lhe uma ajuda mais substancial (apud Araújo, 2006).

As posições estavam definitivamente marcadas no seio da discussão política

entre “nacionalistas” e “alienados” no campo da música popular. O General Artur

da Costa e Silva empossado presidente da República, decreta em dezembro de

1968 o Ato Institucional número V – o AI-5 –, de triste fama pelo aumento da

repressão aos setores dissidentes e da censura às práticas democráticas. Seu

governo intensificou políticas de modernização industrial, crescimento,

urbanização e investimento em tecnologia, através de uma ordem política

autoritária e uma política econômica de combate à inflação (Süssekind, 2005:39).

Em artigo do fim dos anos 1960, Roberto Schwartz (2003) destacava a forte

cultura de “esquerda” no país, observando as produções de teatro, cinema,

literatura, música e a teoria marxista, “assimilada” por vários artistas e

intelectuais que se proclamavam “anti-imperialistas” e se assumiam

representantes legítimos do “povo” que, segundo Schwartz, para a “esquerda”,

abrangia todos os

interessados no progresso do país [...] No plano ideológico, resultava uma noção de “povo” apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpenzinato, a intelligentsia (Schwartz, 2003:13).

A crítica de Schwartz, escrita no calor dos acontecimentos, privilegia o

caráter “paternalista” da “esquerda” brasileira daquela fase, ao determinar quem

era o “povo” do país e constatar depois como esta concepção se revelava

abrangente. Relaciona-se também a uma perspectiva que via sua produção

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simbólica, como disse Fernando de Barros e Silva, “numa espécie de estufa3,

apartada das bases sociais e dos enfrentamentos históricos que lhe deram origem e

lastro substantivo no início dos anos 60 (Barros e Silva, 2004:16)”. A descrição

de Roberto Schwartz do cenário cultural e ideológico de meados dos anos 60, de

toda forma, aponta para a determinante presença do ideário “esquerdista”,

envolvendo a bandeira de um nacionalismo “anti-imperialista”, desfraldada por

uma juventude que sonhava com o poder.

O ano de 1967, segundo alguns autores, foi crucial para o desenvolvimento

da idéia tropicalista (além de Süssekind, 2005, também Naves e Coelho, 2005).

Na cena musical destacavam-se Caetano Veloso e Gilberto Gil, compositores

baianos que, havia pelo menos três anos, mudaram-se para o Rio de Janeiro e São

Paulo. Suas novas composições alteraram a maneira como então se concebia a

“MPB” – identificada ao projeto nacional-popular –, incorporando elementos da

música pop internacional. Em artigo daquele ano, Augusto de Campos (2005)

examina a “intercomunicabilidade universal”, argumentando que os

novos meios de comunicação de massa, jornais e revistas, rádio e televisão, têm suas grandes matrizes nas metrópoles, de cujas “centrais” se irradiam as informações para milhares de pessoas de regiões cada vez mais numerosas. A intercomunicabilidade universal é cada vez mais intensa e mais difícil de conter, de tal sorte que é literalmente impossível a um cidadão qualquer viver a sua vida diária sem se defrontar a cada passo com o Vietnã, os Beatles, as greves, 007, a lua, Mão ou o Papa. Por isso mesmo é inútil preconizar uma impermeabilidade nacionalística aos movimentos, modas e manias de massa que fluem e refluem de todas as partes para todas as partes (Campos, 2005:60).

As produções culturais mais destacadas foram a instalação Tropicália, de

Helio Oiticica, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; o filme Terra em

Transe, de Glauber Rocha; a encenação de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade,

dirigido por José Celso Martinez Corrêa; as músicas “Alegria, Alegria” e

“Tropicália”, de Caetano Veloso e “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil. Flora

Süssekind (2005) vê o tropicalismo como “estado mais aberto e profundo”, “arena 3 De acordo com Schwartz (2003), em Opinião, por exemplo, acontecia o combate ideológico ao imperialismo e “a música resultava principalmente como resumo, autêntico, de uma experiência social, como a opinião que todo cidadão tem o direito de formar e cantar, mesmo que a ditadura não queira. Identificavam-se assim para efeito ideológico a música popular – que é com o futebol a manifestação chegada ao coração brasileiro – e a democracia, o povo e autenticidade, contra o regime dos militares (Schwartz, 2003: 37; grifos meus)”. Em outro trecho do ensaio, o autor sentencia: “[em Opinião] a esquerda derrotada triunfava sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito. Opinião produzira a unanimidade da platéia através da aliança simbólica entre música e povo, contra o regime (p. 41)”.

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de agitação” ou “momento tropicalista” sem considerá-lo um “movimento”, no

sentido programático e organizacional. Recuperando depoimento de José Celso

Martinez Corrêa, Süssekind lembra que, segundo o teatrólogo, as manifestações

artísticas de diversas áreas agrupadas no termo “tropicalismo” representaram

“rupturas em diversas frentes”, dentro de um “estado criativo geral”, mas não

ocorreram, num primeiro momento, com “plena consciência de suas

interconexões”.4

O fundamento “nacional-popular” das canções feitas no Brasil de 1964 a

1967 passou a conviver com um imaginário feito por alguns artistas, relacionando

ingredientes “locais” com elementos da cultura “global”. De acordo com Santuza

Naves e Frederico Coelho (2005), rompia-se com o momento de formação da

sigla MPB, na medida em que

as várias formas do Tropicalismo que emergiram em 1967 exacerbaram as discussões entre artistas e intelectuais que aconteciam desde meados dos anos 1960. Novas divisões surgiram na arena cultural assim que alguns artistas começaram a criticar os que apoiavam o projeto nacional-popular e que fundaram os CPCs (Centro Popular de Cultura), por sua excessiva ortodoxia (Naves e Coelho, 2005:196; tradução minha).

“Alegria, Alegria” (1967), canção paradigma, considerada por alguns

críticos a “abre-alas” do movimento tropicalista (Severiano, 1998 e Campos,

2005), aproximou Caetano Veloso das vanguardas literárias concretistas – os

poetas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari – ao mesmo tempo em

que lhe abriu caminho para o universo do rock – até então rejeitado por aqueles

que faziam o que se considerava “música popular brasileira” –, já que o

compositor convidara o conjunto argentino “Beat Boys” para acompanhá-lo na

apresentação do III Festival de MPB da TV Record.5 Tínhamos, assim, a música

que misturava os sons elétricos das guitarras e contrabaixos a uma base de

marcha, articulando a “música brasileira” com as últimas tendências do pop

internacional. Por sua importância para o que viria a ser chamado “tropicalismo”,

4 Os termos entre aspas, em inglês na versão original, foram traduzidos aqui por mim. 5 Seu interesse inicial era convidar a banda que acompanhava o cantor Roberto Carlos (Araújo, 2006), o que constituiria em 1967, a meu ver, uma afronta ainda maior à base nacional-popular que orientava o que era considerada “música popular brasileira”. O RC-7, no entanto, participou do disco Caetano Veloso (1968).

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cito trecho de sua letra, chamando a atenção às referências de elementos

“modernos” advindos dos processos de comunicação de massa:

Caminhando contra o vento/ Sem lenço, sem documento/ No sol de quase dezembro/ Eu vou/ O sol se reparte em crimes/ Espaçonaves, guerrilhas/ Em cardinales bonitas/ Eu vou/ Em cara de presidentes/ Em grandes beijos de amor/ Em dentes, pernas, bandeiras/ Bomba e Brigitte Bardot/ O sol nas bancas de revista/ Me enche de alegria e preguiça/ Quem lê tanta notícia/ Eu vou/ Por entre fotos e nomes/ Os olhos cheios de cores/ O peito cheio de amores vãos/ Eu vou/ Por que não?/ Por que não? [...] Eu tomo uma coca-cola/ Ela pensa em casamento/ E uma canção me consola/ Eu vou [...] Ela nem sabe/ Até pensei em cantar na televisão [...]

Augusto de Campos (2005) atribui a Caetano Veloso papel fundamental na

superação do impasse entre a MPB e a Jovem Guarda: “Alegria, Alegria”

confundiu os limites entre os segmentos, introduzindo uma estética pop no terreno

da “música popular brasileira”.6 Revelo este trecho do artigo de Campos,

ressaltando a distinção entre a música de Caetano e “A Banda”, de Chico

Buarque, como metáfora especial da relação da Tropicália com a “moderna”

MPB:

Furando a maré redundante de violas e marias, a letra de “Alegria, Alegria” traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada, isomorficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da “implosão informativa” moderna: crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidentes, beijos, dentes, pernas, bandeiras, bomba ou Brigitte Bardot. É o mundo das “bancas de revista”, o mundo de “tanta notícia”, isto é, o mundo da comunicação rápida, do “mosaico informativo”, de que fala Marshall McLuhan. Neste sentido, pode-se afirmar que “Alegria, Alegria” descreve o caminho inverso de “A Banda”. Das duas marchas, esta mergulha no passado na busca evocativa da “pureza” das bandinhas e dos coretos da infância. “Alegria, Alegria”, ao contrário, se encharca de presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo (Campos, 2005:153).

Acompanhando Celso Favaretto (2000), a marchinha pop “Alegria, Alegria”

foi “fruto da vivência urbana de jovens imersos no mundo fragmentário de

notícias, espetáculos, televisão e propaganda (Favaretto, 2000:20)”, e trouxe

nítida mudança aos rumos que seguia a “música popular brasileira”, sendo uma

solução ao confronto entre a “MPB” e a “Jovem Guarda”. Santuza Naves (1988)

observa que, até meados da década de 60, Caetano Veloso mostrou-se sensível à

arte “engajada” e de “protesto”, definidora do panorama das produções culturais

6 CAMPOS, Augusto de. A explosão de Alegria, Alegria (1967) In CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas (2005).

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no Brasil (Naves, 1988). Paulo César de Araújo (2006) lembra, a propósito, que

Caetano se lançou em 1965 como cantor de samba, vindo do ambiente da música

universitária e bossa-novista. Neste sentido, houve mesmo nítida ruptura,

evidenciada aqui por um trecho do texto que Caetano escreveu para seu primeiro

disco – Gal e Caetano Veloso (1967) – em que se mostra claramente

comprometido com o futuro da música popular:

Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores do samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas [...] Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está tendendo pra caminhos muito diferentes do que segui até aqui [...] A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto do futuro (apud Campos, 2005: 144).

Não foi somente a utilização de guitarras elétricas nos arranjos o que mais

chamou a atenção dos críticos e do público. Em entrevista a Paulo César de

Araújo (2006), Edu Lobo disse que se surpreendeu menos com as guitarras do que

com a mudança de posição de Caetano em relação a Roberto Carlos, execrado

pela corrente “nacionalista”: “Foi uma virada muito rápida e radical, e que eu não

acompanhei (apud Araújo, 2006:188)”. “Domingo no parque”, de Gilberto Gil,

também causou forte repercussão quando foi apresentada no festival, ficando em

segundo lugar. Assim como a canção de Caetano, a de Gil trazia a novidade do

uso das guitarras elétricas em seu arranjo e uma sensibilidade fragmentada na

construção de letra e música, misturando instrumentos clássicos, berimbau, ruídos

e sons de parque.

Observamos através da bibliografia “várias crises” na “música popular

brasileira” em meados dos anos 60 (Barbosa, 1966). Naquela situação, o

tropicalismo sugeriu a retomada de sua “linha evolutiva”, abrindo-a a

experimentações na procura de novas letras e sonoridades em cenário cultural

caracterizado pela restritiva oposição entre a MPB e a Jovem Guarda, entre violão

e guitarra elétrica. É emblemática, neste sentido, uma declaração de Caetano

Veloso comentando sua incursão no campo da “música popular brasileira”:

O meu negócio foi que eu tinha algumas idéias sobre o problema de música popular no Brasil e coloquei essas idéias em ação (Coleção Pasquim, 1976:107).

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Segundo Luiz Tatit, estudioso da canção no Brasil, o tropicalismo

nasceu num país enrijecido por maniqueísmos que se infiltravam nos setores artísticos coibindo diversas formas de criação. Em relação a essa ordem, nítida e definida, o tropicalismo introduziu a fratura (apud Favaretto, 2000: 11; grifo original).

Num momento histórico marcado pelo aumento da repressão política do

governo militar, era muito clara a divisão entre música “brasileira” e música

“estrangeira”, e a “esquerda” condenava quem ousasse ir contra os princípios

nacionais e populares que consolidavam a MPB. No princípio, não foi diferente

com os tropicalistas. Além disso, eram também desdenhados pela “direita”, que os

considerava “subversivos”. Na entrevista citada, Caetano explica a atitude de

incorporação de elementos da música pop, em especial a guitarra elétrica,

utilizada no Brasil pela Jovem Guarda, cujos músicos eram vistos como

“entreguistas” e “alienados” por parte da intelligentsia nacional:

O que me interessou a princípio foi o problema da música comercial no Brasil. Antes disso o que me interessou foi quebrar o cerco de bom gosto então vigente; então todas as coisas que estavam fora desse cerco começaram a me fascinar mais do que estava dentro e eleito; o que estava dentro e eleito passou a me desinteressar (Coleção Pasquim, 1976:110).

Percebe-se o posicionamento crítico de Caetano Veloso em relação ao que

representava a “MPB”, de base nacional-popular. A hipótese do historiador

Marcos Napolitano (2001) é de que o tropicalismo constituiu-se em

pólo ativo de uma nova inserção de artistas e intelectuais na sociedade, passagem de uma cultura política de matriz romântica (o nacional-popular) para uma cultura de consumo, que acompanhou o quadro geral do novo estágio de desenvolvimento capitalista no Brasil, alcançado na segunda metade dos anos 60 (Napolitano, 2001: 238).

Voltando-se ao que havia de mais “avançado” na música pop americana e

européia, os músicos tropicalistas não desconheciam, muito pelo contrário, a

memória musical do país. O “Brasil” extraído das primeiras canções do

movimento abraçava de uma só vez o elemento tradicional da cultura e o ideal de

modernidade buscado pela sensibilidade pop, articulando Luiz Gonzaga e Andy

Warhol, Beatles e João Gilberto, baião e guitarra elétrica. Este procedimento, nas

palavras de Celso Favaretto (2000),

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[...] consistia em redescobrir e criticar a tradição, segundo a vivência do cosmopolitismo dos processos artísticos, e a sensibilidade pelas coisas do Brasil. O que chegava, seja por exigência de transformar as linguagens das diversas áreas artísticas, seja pela indústria cultural, foi acolhido e misturado à tradição musical brasileira (Favaretto, 2000: 31-32).

Isto explicaria, ainda segundo o autor, a enorme

[...] importância que atribuíram à reinterpretação de compositores e cantores da tradição musical brasileira – alguns totalmente esquecidos; outros, mais recentes, considerados apenas comerciais pela crítica, e outros ainda estrangeiros, que marcaram o gosto do público e influenciaram a música brasileira (Favaretto, 2000:38).

Indo contra o “cerco de bom gosto” instituído/representado pela idéia inicial

de “MPB”, os tropicalistas propunham a mistura do “comercial” com o

“tradicional”, privilegiando o aspecto brega ou o “efeito cafona” (Favaretto,

2000:49) da sociedade brasileira. Na entrevista citada de Caetano Veloso ao

Pasquim, os entrevistadores lhe disseram:

Você gravou ‘Coração Materno’ [música de Vicente Celestino, no disco “Tropicália ou Panis et circensis”, de 1968] e naquela época pras pessoas de bom gosto, aquilo era o que podia haver de pior. Aí, deu um pé bárbaro, você gravou divinamente e tudo (Coleção Pasquim, 1976).

Os tropicalistas baianos ainda se relacionaram com músicos de “vanguarda”

de São Paulo – Rogério Duprat, Julio Medaglia, Damiano Cozzela –, que já

faziam experimentações com música eletrônica, aleatória e concreta havia mais de

uma década. Trabalhando criticamente a tensão entre o erudito e o popular, os

arranjos que fizeram para algumas canções de discos “tropicalistas” – por

exemplo, “Domingo no parque” de Gilberto Gil (1968) – foram desenvolvidos em

estúdio por conjuntos de iê-iê-iê, como os Mutantes. Se compararmos o uso dos

materiais sonoros nos primeiros discos de Chico Buarque e Edu Lobo (violões,

percussões e piano) com os procedimentos adotados pelos músicos tropicalistas,

veremos, conforme salientou Celso Favaretto (2000), que estes últimos

articularam “uma linguagem musical postulada tanto pelo interesse de renovar a

tradição quanto de refletir sobre a situação cultural (Favaretto, 2000:45)”; na

interpretação de Marcos Napolitano (2001), tratou-se de ruptura “em busca de

uma nova forma de expressão artística e inserção no mercado (Napolitano,

2001:233)”. Esta dupla operação – experimentação estética e relação aberta com o

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mercado – parece definir o ideal do grupo tropicalista que, assumidamente, lidou

com esta ambigüidade, incorporando o lado comercial ao artístico, sendo um dado

a mais da sua produção (Favaretto, 2000).

Desde 1966 as discussões sobre o “lugar” da música popular andavam a

todo vapor. No debate da Civilização Brasileira (Barbosa, 1966), o poeta e letrista

musical José Carlos Capinam afirmava que a diferença fundamental entre a

Jovem Guarda e a “música popular brasileira” era que o iê-iê-iê chegava ao

grande público através do mercado, que “produz e vende” (usando, por assim

dizer, a máquina do capitalismo a seu favor), enquanto a produção de “música

brasileira” se valeria da condição de estar fazendo “música boa”, esperando que o

público simplesmente a contemplasse:

A música popular brasileira deve surgir agora reconhecendo a necessidade de organizar sua infra-estrutura e revitalizar sua linguagem em intensa pesquisa de raízes e recursos contemporâneos da música [...] A nossa música pode aprender do iê-iê-iê muita coisa, mas não ser substituída por ele [...] Preservar a música dos riscos do mercado é uma posição negativa de acanhamento que terá como efeito o contínuo afastamento desta música das áreas onde deveria estar agora, e influindo, trocando recursos, informando, alimentando a nossa juventude com aquilo que ela necessita e em potencial a nossa música possui nas raízes: calor, participação e movimento (Capinam apud Barbosa, 1966).

Na mesma ocasião, Caetano Veloso propôs uma “organicidade de cultura

brasileira”, projeto que relacionasse música, literatura, artes plásticas, intelectuais,

tudo em conjunto. A “música brasileira”, assim como sua cultura, buscava estética

própria, num embate entre nacionalismo e mercado que tinha como pano de fundo

o surgimento de uma cultura “global”. O mercado deveria incorporar-se à

discussão sobre os rumos da “música brasileira”, a ser atingido plenamente,

alcançando programas de televisão, festivais e o que mais pudesse. Vê-se aqui

outra diferença importante quanto às atitudes de artistas ligados à “esquerda” e ao

projeto nacional-popular (Geraldo Vandré, Edu Lobo, Chico Buarque), cujo fazer

artístico pautava-se pelo discurso da autenticidade inerente ao “povo” e

condenava interesses comerciais na música. Caetano Veloso e Gilberto Gil, ao

contrário, não se sentiam traidores da “música popular brasileira” por atuar

abertamente dentro do universo pop. A interpretação de Celso Favaretto (2000) é

de que os músicos tropicalistas

[...] compartilhavam do cinismo com que a vanguarda assume a ambigüidade existente entre mercado e crítica da sociedade capitalista. Não consideravam o

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compromisso com esta ambigüidade como uma “contaminação” ou “prostituição inelutável” do artista. Incorporando o lucro na atividade artística, eliminaram o “persuasor oculto” que, introduzindo-se entre o artista e o consumidor, pretende fazer crer que o consumo de arte é neutro. No tropicalismo, a colocação do aspecto estético e do aspecto mercadoria no mesmo plano faz parte do processo de dessacralização, da estratégia que dialetiza o sistema de produção de arte no Brasil por distanciamento-aproximação do objeto-mercadoria (Favaretto, 2000:139-140).

Marcos Napolitano (2001) lembra que não foram poucas as controvérsias

em torno do tropicalismo no campo cultural da “esquerda”, enfatizando a relação

com o mercado. A Tropicália, segundo este autor, situa-se historicamente como o

ponto inicial em que as condições técnicas e os interesses comerciais das grandes

corporações passaram a determinar diretamente o processo de feição musical no

Brasil. Os artistas trabalharam criticamente a questão da música enquanto

mercadoria, colocando os desenvolvimentos formais da bossa-nova no mesmo

plano dos ruídos e sons kitsch, abrindo “um leque de novas possibilidades de

escuta que a diretriz ideológica do ‘nacional-popular’, já em crise, não mais

comportava” (Napolitano, 2001:285).

Favaretto (2000) mostra como as canções tropicalistas se opunham ao

cenário anterior de “música popular brasileira”, sobretudo o identificado à canção

de “protesto”. O autor afirma que, diferentemente delas, as músicas

“comprometidas” lidavam menos com a linguagem do que com o tema, mais com

o conteúdo do que com a forma. As canções “engajadas” relacionavam-se a um

projeto de comentário da “nação”, que se pretendia voz do “povo” explorado pelo

capitalismo: falar pelos que não podiam, os pobres, da “verdade da realidade

brasileira”. Consumida por um público jovem, universitário e intelectualizado em

meados dos anos 60 – através de discos, peças teatrais e festivais musicais

televisivos –, a MPB, inicialmente caracterizada pela valoração do samba e outros

gêneros urbanos e das formas musicais ligadas ao folclore, idealizaria noções

“universais” de “povo” e “nação”. O tropicalismo, em posição oposta, não se

propunha a porta-voz nem a sujeito das camadas populares, desconstruindo a

própria idéia de uma “realidade nacional”.

Já percebemos transformações importantes alcançadas pelas canções

tropicalistas na relação entre “música popular”, nacionalidade e “camadas

populares”. Buscou-se um “Brasil” em diálogo com o mundo. A “música

popular” deixou de ser a representação da música autêntica do “povo”, ligada a

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ideais nacionais. De acordo com Celso Favaretto (2000), os parâmetros que

demarcavam o que era reconhecido por “música brasileira” pelo público e pela

crítica oficial tornaram-se confusos a partir das obras dos compositores baianos, já

que nelas não era identificada a postura política “comprometida” com posições

nacionalistas, como nas obras de Chico Buarque, Edu Lobo e, principalmente,

Geraldo Vandré, em que a noção de “brasilidade” conjugava-se ao

“engajamento”. As canções de Caetano, Gil, Torquato Neto e José Carlos Capinan

rompiam, dessa maneira, “com o discurso explicitamente político” (Favaretto,

2000:30).

Em “Alegria, Alegria”, de forma neutralizante, segundo Favaretto, “as

conotações políticas e sociais não tinham relevância maior que Brigitte Bardot ou

coca-cola, saltando estranhamente da multiplicidade dos fatos narrados (idem,

p.21)”. Acompanhando este autor, ressalto que este tipo de procedimento não

afastou as canções tropicalistas da “posição privilegiada que a música popular

ocupava na discussão das questões políticas e culturais (p. 32)”. Pelo contrário, ao

aliar cosmopolitismo e tradição brasileira por meio de colagens, livres associações

e uso de materiais sonoros eletrônicos, cinematográficos e de encenação, foram

fundamentais na transformação da canção no Brasil: esta deixou de ser pensada

pela dicotomia “participação-alienação” e ganhou autonomia artística.7

Com plena consciência das forças do mercado, da indústria do

entretenimento e do “star system”, o momento tropicalista foi mesmo de

“provocação”, expondo os mecanismos de produção e consumo artísticos que

envolviam a canção no seu aspecto mercadoria.8 Esta atitude destoava

inteiramente das estratégias da “arte de protesto” do começo dos anos 60,

simbolizada pelos Centros Populares de Cultura (Süssekind, 2005). A canção

“comprometida” – veiculada em discos, shows, cinema e festivais da canção –

expressava o inconformismo dos artistas, assimilada por setores intelectuais e

universitários como resistência política. O tropicalismo se opôs a esta forma de

7 Segundo Favaretto, “a simples introdução da guitarra elétrica nos acompanhamentos de Alegria, Alegria e Domingo no Parque desencadeou a hostilidade contra Caetano e Gil, como se realmente estivesse em questão a integridade da música brasileira. Desta forma, o desenvolvimento do uso dos instrumentos eletrônicos nos arranjos posteriores assim como a exploração de possibilidades vocais lancinantes por Gil e Gal, embora não representassem novidade, tiveram importância decisiva na modificação da forma da canção no Brasil (Favaretto, 2000: 33)”. 8 Chico Buarque, em entrevista a Paulo César de Araújo (2006), assume posição bastante distinta: “Na verdade, não levava muito a sério essa coisa do star system. Eu recusava isso, recusei o tempo todo” (apud Araújo, 2006:184).

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engajamento, preferindo explorar a ambigüidade de estar no mercado e criticá-lo,

apresentando fatores que impossibilitavam inovações artísticas e sociais

(Favaretto, 2000:142).

3.2. Uma estética “política” voltada para o presente

“Eu penso que o mundo é o que importa”. Caetano Veloso, 1971.

Os discos Gilberto Gil, Caetano Veloso e Tropicália ou Panis et circensis

(que reuniu Nara Leão, Gal Costa, Tom Zé e Os Mutantes) foram lançados em

1968, data simbólica da valorização da diferença, da singularidade e da alteridade

na arena política. Maria Paula Nascimento Araújo (2000) considera que as

revoltas ocorridas nesse ano no mundo ocidental

implodiram a visão tradicional de política, valorizando-se as emoções, a

subjetividade (entendida como a vivência particular de sentimentos e de experiências pessoais privilegiadamente ligados à liberdade ou à opressão), as relações pessoais e afetivas estabelecidas entre os participantes dos movimentos, passando-se a recusar as formas tradicionais de participação e representação política e toda e qualquer forma de hierarquia. Foi nesse caudal, gestado pelas experiências do final da década de 1960, que nasceram e se desenvolveram movimentos de novo tipo – os movimentos de minorias políticas, os “movimentos da diferença” (Araújo, 2000:97).

Segundo a autora, os movimentos das “minorias” – mulheres, negros,

homossexuais, índios, jovens, hippies, etc – eram contrários às formas tradicionais

de atuação e representação política de meados dos anos 60, que privilegiavam as

categorias de totalidade e universalidade da cultura marxista para a interpretação

da realidade. Araújo afirma que as principais características das “novas

esquerdas” no mundo ocidental – valorização do cotidiano, das relações pessoais,

dos sentimentos e emoções – foram conseqüência radical da idéia de democracia

direta e participativa. A busca por novas posturas políticas através da valoração de

subjetividades individuais se refletiu na recusa a instâncias gerais de

representação, privilegiando assim as vivências pessoais e o “falar em nome de si

próprio” (Araújo, 2000:43).9

9 Segundo José Antonio B. Fernandes Dias (2001), este contexto histórico é marcado pela “redescoberta da diferença”, que fez com que cada cultura se tornasse “um mundo em que identidade, diferença e valor cultural são permanentemente produzidos e contestados. Os chamados ‘novos movimentos sociais’, emergentes nos anos 60, atravessam as divisões políticas e sociais tradicionais (de classe), apelando para as dimensões mais pessoais das identidades dos seus

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As lutas de “minorias” políticas que eclodiram no “Maio francês” – para

Araújo o “marco das revoltas de 1968” – buscavam afirmar suas especificidades.

Surgia, segundo Olgária Matos (1989), um novo estilo de ação, que rompia com

formas tradicionais de se fazer política, ao afirmar a subjetividade e a

espontaneidade contra o mundo burocratizado e exigir uma transformação total

dos valores. Ocorriam em outros países movimentos semelhantes ao Maio francês.

Referindo-se à ânsia por “liberação, pessoal e individual, das estruturas do sistema

(Matos, 1989:28)”, Matos chama a atenção para a Nova Esquerda dos Estados

Unidos. Surgida nos anos 60, a New Left abrigava correntes que lutavam pelos

mesmos ideais: o movimento negro realçava a “diferença” – em detrimento de um

projeto “universal” – como base de uma identidade étnica, portadora de uma visão

de mundo particular; o movimento feminista, assim como o francês, enfatizava a

“diferença” como meio de tornar as mulheres “sujeitos”, ao invés de “objetos”

(Araújo, 2000:48-50).

Octavio Paz (1984) também observa que no fim dos anos 60 as categorias

universalidade e igualdade deixaram de definir os parâmetros de ação da

“esquerda”, sendo substituídas por visões abrangentes, valorizadoras das

diferenças. Estas constituiriam as novas identidades, construídas pelas

especificidades dos grupos. Em sua crítica à modernidade, Paz sugere que o

capitalismo ocidental – baseado nos ideais protestantes de trabalho e poupança –,

pretensamente revestido de universalidade, comprometeu-se com a construção de

um futuro do qual se podia apropriar, fundamentada num entendimento linear da

história:

A idade moderna começa com a insurreição do futuro [...] A operação crítica da modernidade inverteu os termos: a única eternidade que o homem conheceu foi a do futuro [...] Agora, na segunda metade do século XX, aparecem certos signos que indicam uma mudança em nosso sistema de crenças. A concepção da história como um processo linear progressivo revelou-se inconsistente [...] a modernidade começa a perder a fé em si mesma (Paz, 1984: 190-191).

Nos anos 60 os indivíduos passariam a suspeitar dos valores da técnica e da

ciência, os quais fariam do futuro um lugar seguro. A “mudança de sensibilidade

da época” (Paz, 1984:196), sugerida por Paz, evidenciava-se nas rebeliões das

membros [...], mas questionando-as politicamente e na praça pública – o pessoal é político”. (Dias, 2001:115).

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“minorias políticas”, que não propunham projeto algum, sendo somente uma

negação do “atual estado de coisas”. O desencantamento da certeza do futuro

demandaria viver intensamente os valores “corporais, intuitivos e mágicos” do

presente:

A confiança nos poderes da espontaneidade está em proporção inversa à repugnância ante as construções sistemáticas. O descrédito do futuro e de seus paraísos geométricos é geral. Não é de se estranhar: em nome da edificação do futuro, a metade do planeta cobriu-se de campos de trabalhos forçados [na 2a Guerra Mundial]. A rebelião dos jovens é um movimento de justificada negação do presente, porém não é uma tentativa de se construir uma nova sociedade. Os moços querem acabar com a situação atual porque é um presente que nos oprime em nome de um futuro quimérico. Esperam instintiva e confusamente que a destruição deste presente provoque o aparecimento do outro presente e seus valores, corporais, intuitivos e mágicos. Sempre a procura de outro tempo, o verdadeiro (Paz, 1984:194-195).

Os movimentos das “minorias políticas” se voltavam para o presente,

exprimindo o “descrédito do futuro” que, de acordo com o autor, relacionava-se

com o desenvolvimento de uma sensibilidade pós-utópica. A crítica é direcionada

para o futuro, o qual, segundo Paz, “rouba-nos a realidade, nos rouba a vida” (Paz,

1984:197). Distinguia-se, assim, o aspecto de viver o “agora” e experimentar o

presente – um presente “puro”, independente de um tempo linear. Os novos

movimentos, desta maneira, não perseguiam mais a construção de uma futura

sociedade “sem classes”, como pregavam, por exemplo, grupos ortodoxos

marxistas, mas sim a legitimação de suas especificidades e diferenças. A

experimentação do presente, valorizadora da subjetividade, manifestou-se no

“Maio francês” através do slogan escrito nos muros de Paris: “a imaginação no

poder” (Araújo, 2000:53), que se opunha à idéia do progresso vindo do

desenvolvimento da ciência (Matos, 1989:24-25).10

O elemento estético ganhava lugar na contestação política. As agitações em

diversos países – França, Eua, Alemanha, Itália, Polônia, Japão, México, Chile,

Argentina, Uruguai, Brasil, entre outros – não se detinham no debate político,

abarcando o campo cultural. Olgária Matos (1989) identifica no movimento da

Tropicália “a dimensão poética da revolta ao mesmo tempo política, ética e

estética do Maio francês (Matos, 1989:35)”. Cantando o “Brasil violento e

10 Outro slogan bastante difundido nas ruas francesas – “é proibido proibir” – foi nome de uma música de Caetano Veloso de 1968.

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cordial”, o tropicalismo violou, “as regras do jogo que as oposições dominam (p.

13)”, como se referiu Matos ao Maio de 68.

Artistas tropicalistas também incorporaram o tema das “diferenças”.

Santuza Naves (1988) observa que Gilberto Gil agregou elementos estéticos

vinculados à música “negra”, como foi o caso do “reggae” e do “funk”, no disco

“Expresso 2222” (1972), gravado após a volta do exílio em Londres (vivido desde

o fim de 1969). A apropriação do ideário da negritude por Gil o vinculava

simbolicamente às lutas de grupos negros americanos por “liberdade”, “poder” e

“autodeterminação”.11 Percebe-se identificação de Caetano Veloso com a

temática das “minorias políticas” em seu disco Velô (1984), no qual em algumas

músicas o compositor flerta com o assunto.12 Segundo Marcos Napolitano (2001),

o tropicalismo rompia com a necessidade de limitar os materiais sonoros que

levavam a MPB a uma idealização de “nação” provida de unidade estética. Assim,

à busca por uma identidade “nacional” na “música popular brasileira” foram

incorporadas novas tendências musicais e culturais da Europa e dos Estados

Unidos. Napolitano argumenta que as sonoridades “estrangeiras” foram

assimiladas pelos músicos baianos a partir dos discos Caetano Veloso e Gilberto

Gil, de 1968. O conjunto RC-7 (que na época acompanhava o cantor Roberto

Carlos) fez algumas bases instrumentais para o disco de Caetano, adicionando um

naipe de metais às guitarras elétricas e aos teclados, ressoando a black music

norte-americana. O trabalho de Gilberto Gil com os Mutantes o aproximava do

rock inglês mais voltado para experimentações sonoras. Além disso, segundo

Napolitano, seus improvisos vocais articulavam-se com o soul, unindo estilos de

cantadores do sertão a influências da música negra de língua inglesa (Napolitano,

2001: 240-254-255).

Augusto de Campos, como já vimos, definiu “Alegria, Alegria” como

estética voltada para o presente, se envolvendo “diretamente no dia-a-dia da

comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo” (Campos, 2005:153).

Santuza Naves (1988) verifica que o procedimento artístico da Tropicália realizou 11 No programa do Black Panther Party isto se torna claro: “Nós queremos liberdade. Nós queremos poder para determinar o destino da Comunidade Negra” (apud Araújo, 2000: 50). 12 Santuza Naves, (1988) observa que a música “Língua”, cantada em forma de rap, apresenta a palavra “frátria” que, segundo a autora, sugere relações de similaridade ou fraternidade tanto com o negro brasileiro como com o americano (Naves, 1988: 48). Em “Podres Poderes”, Caetano se remete aos “índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes”, mencionando o tema das “minorias”.

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a “passagem de temáticas utópicas para uma poética da agoridade, enfatizando o

cotidiano e a subjetividade (Naves, 1988:13; grifo meu)”. A autora refere-se, neste

caso, ao momento anterior da música brasileira marcado pela canção de “protesto”

que, ao denunciar as mazelas do presente, idealizaria um futuro no qual se

resolveriam as contradições e injustiças.

A representação mais totalizadora do “popular”, característica do momento

anterior, foi substituída nas canções tropicalistas por noções fragmentadas,

associadas à cultura de massa. Ao invés da busca pelo “povo puro e autêntico”,

vieram à tona em 68 os papéis desempenhados pelas “massas”. Olgária Matos

(1989) afirma que os diversos grupos sociais envolvidos no “Maio francês” não

constituíram uma unidade, não seguiram dogmas totalitários nem respeitaram

hierarquias. Desempenharam, simplesmente, um “tênue papel nas manifestações

de massa” (Matos, 1989:23). O desenvolvimento de “comunicações globais”,

seguindo seu argumento, trazia ao debate público os segmentos consumidores da

indústria cultural, telespectadores e leitores de revistas e jornais. O tropicalismo,

neste contexto histórico, deslocava o “lugar” social das discussões ao atuar

abertamente dentro do mercado e redimensionava as formas de envolvimento

político na música (Favaretto, 2000:46), sem perseguir o “povo” infenso à

modernização capitalista (como era o ideal dos CPCs), mas abrangendo uma

diversidade de sujeitos sociais. Noto nisso outra descontinuidade em relação ao

surgimento da “MPB”, quando os artistas se dispunham, como “guias” para o

“povo”, alcançar a “libertação nacional”. Os músicos tropicalistas, como vimos,

não se propunham a ser porta-vozes das camadas populares, abalando a própria

idéia de uma “realidade nacional” (Favaretto, 2000).

Chamo a atenção, acompanhando Marcos Napolitano (2001), para a

mudança na acepção de “popular” realizada pelos tropicalistas. O lançamento do

disco Tropicália ou Panis et circensis (1968), no Rio de Janeiro e em São Paulo,

ocorreu em estabelecimentos considerados “populares”, respectivamente o

Dancing Avenida e o Avenida Dancing. Ambos, de acordo com o historiador,

[...] eram salões dançantes extremamente “populares”. Não o “popular” que era identificado com as expressões ditas “genuínas” do samba, por exemplo. Mas o “popular” que até então era visto como exótico, “cafona” e grotesco pela classe média herdeira do ideal de “bom gosto” da bossa nova (Napolitano, 2001:269).

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Pedro Alexandre Sanches (2000) argumenta que o movimento tropicalista

coincidiu com a eclosão da sociedade “pós-moderna” e da arte pop, que surgiu

entre as décadas de 1950 e 1960, reagindo ao subjetivismo e hermetismo

modernos, sendo considerada uma antiarte por não se restringir ao espaço dos

museus e galerias convencionais (Santos, 1986). As produções pop articulavam

linguagens assimiladas pelo grande público – os signos e objetos de massa –,

conferindo valor artístico a elementos do cotidiano: “anúncios, heróis de gibi,

rótulos, sabonetes, fotos, stars de cinema, hamburgers” (Santos, 1986: 36-37). A

arte pop, desta maneira, questionava as definições “modernas” de arte. Segundo

Jair Ferreira dos Santos (1986), ela se constituía na forma mais direta de

relacionar os artistas às massas:

Vivemos imersos num rio de signos estetizados. O artista Pop pode diluir a arte na vida porque a vida já está saturada de signos estéticos massificados. A antiarte trabalha sobre a arte dos ilustradores de revistas, publicitários e designers, e acaba sendo uma ponte entre a arte culta e a arte de massa; pela singularização do banal (quando Andy Warhol empilha caixas de sabão dentro de uma galeria e diz que é escultura) ou pela banalização do singular [...] Elite e massa se fundem na antiarte (Santos, 1986: 37-38).

A concepção da “massa” pós-moderna ilustrada por Santos (1986) torna-se

interessante quando oposta ao ideal de “povo”, fundamental na época de formação

da sigla MPB em meados dos 60. O autor diferencia o que designa massa

“moderna” e “pós-moderna”. Chamo a atenção, no próximo trecho citado, para a

relação estabelecida entre o “mass media”, o enfraquecimento da participação nos

interesses da “nação” e o fortalecimento das causas das chamadas “minorias”:

Até há pouco a massa moderna era industrial, proletária, com idéias e padrões rígidos. Procurava dar um sentido à História e lutava em bloco por melhores condições de vida e pelo poder político. Crente no futuro, mobilizava-se para grandes metas através de sindicatos e partidos ou apelos nacionais. Sua participação era profunda (basta lembrar as duas guerras mundiais). A massa pós-moderna, no entanto, é consumista, classe média, flexível nas idéias e nos costumes. Vive no conformismo em nações sem ideais e acha-se seduzida e atomizada (fragmentada) pelo mass media, querendo o espetáculo com bens e serviços no lugar do poder. Participa, sem envolvimento profundo, de pequenas causas inseridas no cotidiano – associações de bairro, defesa do consumidor, minorias raciais e sexuais, ecologia (Santos, 1986: 89-90).

O tropicalismo valorizou o diálogo com elementos culturais do mundo

globalizado. Em entrevista ao Pasquim (1976), Caetano Veloso comentou sua

relação com o Brasil e o mundo, tornando nítida a opção por um procedimento

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artístico no qual o elemento “local” não excluísse o “global”. Pelo contrário, se

complementariam:

Eu sou em princípio – como vocês todos sabem pelas coisas que eu tentei fazer em música – internacionalista. Eu penso que o mundo é o que importa, todas as pessoas de todos os lugares do mundo. Agora, a nacionalidade, a pessoa ser de um país é muito importante [...] não é uma necessidade, mas uma realidade [...] A tentativa de conseguir ter uma vivência mundial, sentir o mundo, estar integrado numa coisa mundial depende inclusive de você saber se relacionar com esse problema da sua nacionalidade (1976:104; grifo meu).

3.3. Tropicalismo e antropofagia

“Só me interessa o que não é meu. Lei do Homem. Lei do Antropófago”. Oswald de Andrade, 1928.

“O tropicalismo, a antropofagia e seu desenvolvimento são a coisa mais importante hoje na cultura brasileira. Agora nós não temos mais medo de afrontar [...] a nossa realidade, em todos os sentidos e em todas as profundidades”. Glauber Rocha, 1969.13

Em “Tropicalismo, Antropofagia, Mito, Ideograma 69”,14 o cineasta

Glauber Rocha afirma que o movimento modernista de 1922 iniciou uma

revolução cultural no Brasil, reagindo à “cultura acadêmica e oficial”:

Deste período o expoente principal foi Oswald de Andrade. Seu trabalho cultural, sua obra, que é verdadeiramente genial, ele definiu como antropofágica, referindo-se à tradição dos índios canibais. Como esses comiam os homens brancos, assim ele dizia de haver comido toda a cultura brasileira e aquela colonial (Rocha, 1981:118).

A antropofagia – ou, segundo Glauber, o tropicalismo (1981, p. 118) –

incorporava-se no fim da década de 1960 em diversas manifestações artísticas do

país – cinema, teatro, música, artes plásticas – representando uma nova atitude:

aberta, porém crítica, diante de estéticas “estrangeiras”. Tropicalismo e

antropofagia cultural, nos moldes modernistas de Oswald de Andrade, abraçaram,

segundo Flora Süssekind, a idéia de devorar e reinventar sistematicamente

modelos culturais estrangeiros, assim como o ideal da nação sendo uma

“encruzilhada sincrética de perspectivas, línguas e ritmos relativos a tempos

13 ROCHA, Glauber. Tropicalismo, Antropofagia, Mito, Ideograma 69 In Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro. Alhambra/Embrafilme, 1981. 14 In ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro. Alhambra/Embrafilme, 1981.

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diferentes (Süssekind, 2005:37)”. Tanto Oswald quanto os tropicalistas

acreditaram que o processo cultural brasileiro baseava-se na tensão e movimento

constante entre “alta cultura” e “mau gosto”, cultura literária e tradição oral,

“nacional” e “estrangeiro”, “arcaico” e “moderno” (Süssekind, 2005).

Assimilo as posições de Süssekind (2005) quanto às diferenças entre o

momento antropofágico modernista e a experiência tropicalista. As práticas

artísticas se desenvolveram, segundo essa autora, em ambientes culturais bem

distintos. No caso dos modernistas haveria um otimismo na crença de um “país

novo” e nas transformações sociais. Já o “momento tropicalista” foi marcado pelo

aumento da repressão política no campo cultural, não cabendo nenhum otimismo

em relação ao presente. Percebe-se aqui importante diferença também em relação

ao contexto de surgimento da sigla MPB que, como vimos no primeiro capítulo,

envolvia-se ao otimismo no país que marcou o Centro Popular de Cultura (CPC)

da UNE. Compartilho também o argumento de Naves e Coelho (2005) de não

focalizar possíveis influências de um movimento sobre o outro, não interpretando

o tropicalismo como mero resultado de um processo cumulativo de manifestações

culturais, vindo do modernismo brasileiro dos anos 1920/30, passando pela poesia

concreta dos anos 50, a Bossa Nova e o Cinema Novo.

Em mesa-redonda organizada pela revista Civilização Brasileira (1966),

Caetano Veloso expôs sua determinação em retomar a “linha evolutiva” da música

brasileira, o que significava romper com o discurso nacionalista da MPB ao adotar

um ideal em que a polarização de elementos “nacionais” e “estrangeiros” não se

fizesse de maneira excludente:

Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás, João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira (apud Barbosa, 1966).

O fato de Caetano Veloso eleger João Gilberto e a bossa nova como seus

referenciais de modernidade foi talvez o que mais impressionou o grupo

concretista de São Paulo, na época em intenso trabalho de revisão crítica da obra

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de Oswald de Andrade, para quem a relação do “local” com o “global” era

essencial para o desenvolvimento de uma arte “brasileira”. Mesmo admitindo que

Caetano não conhecesse a obra de Oswald antes de compor, por exemplo, a

canção “Tropicália” (1967), é inegável a influência de Oswald sobre o compositor

logo em seguida, que chegou a revelar, em entrevista a Augusto de Campos e

Gilberto Gil, em 1968, considerar o tropicalismo um “neo-Antropofagismo”15. Na

mesma ocasião constatou:

Uma outra importância muito grande de Oswald para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos para discutir e para continuar criando, para conhecer melhor a minha própria posição. Todas aquelas idéias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem argumentos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo (In Campos, 2005: 204-205).

Em ensaio clássico sobre a “antropofagia” de Oswald de Andrade, Benedito

Nunes (1979) defende a originalidade da invenção brasileira em relação aos

canibalismos europeus da época, destacando o processo de dialogação

estabelecido com as vanguardas européias. Tal atitude aludiria, por sua vez, à

noção de receptividade crítica, oposta ao conceito de reflexo das influências ou de

assimilação passiva, mera transposição direta do ambiente artístico europeu.16

Partindo do reconhecimento de uma realidade múltipla e fragmentada e da

impossibilidade de realizar pretensas cópias fiéis, Oswald buscava uma linguagem

nova na literatura, através de uma expressão alinhada à sensibilidade da época.

Foram importantíssimas neste processo as viagens que fez a Paris no começo dos

anos 1920. Segundo Nunes,

cada encontro, nessa trajetória intelectual por entre idéias, personalidades e obras, pode ter sido, para a receptividade atmosférica de Oswald, uma fonte estimuladora poderosa. Com a sua impaciência teórica, com a sua particular avidez do novo e da novidade, ele foi, dos nossos modernistas, aquele que mais intimamente comungou do espírito inquieto das vanguardas européias (Nunes, 1979:11).

Torna-se clara a atenção dispensada ao que estava acontecendo nas artes

européias como uma maneira de manter-se atualizado e informado (Moriconi Jr,

15 Campos, 2005: 207. 16 Flora Süssekind (2005) destaca em trabalho de Helio Oiticica (o texto “Esquema Geral da Nova Objetividade”, de 67) inspiração no “Manifesto Antropofágico (1928)”, de Oswald de Andrade, quando o artista se propõe a absorver criticamente tanto modelos estrangeiros quanto imagens do repertório brasileiro, seus mitos e caracterizações nacionais.

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1980: 72). Ítalo Moriconi concorda com Benedito Nunes quando considera

Oswald pensador que não deixava de acompanhar a “marcha da revolução

artística mundial (Nunes, 1979:20)” “com a precisão de quem participa da transa

cultural internacional (Moriconi Jr, p. 66)”. Outro elo comum entre esses dois

críticos do modernismo brasileiro é o reconhecimento da atitude irônica e

desmistificadora de Oswald frente à cultura “bachaleresca”, norteadora de

diversas manifestações artísticas da época. O “canibal brasileiro” a enfrentava

com os recursos da “polêmica feroz, do sarcasmo e da ironia” (Moriconi Jr,

1980), aliados às provocações, ataques pessoais, frases-choque e cenas satíricas

(Nunes, 1979), desmontando o ideal “doutoresco” e de seriedade da intelligentsia

nacional e das autoridades letradas, reduto erudito da época do Império.

Ganhou força, com isso, o argumento de que a inspiração poética estava

nos pequenos gestos banais do cotidiano, incluindo os novos elementos da

comunicação de massa – cartazes, outdoors, anúncios, jornais, cinema. Santuza

Naves (1998) identifica em alguns momentos do modernismo brasileiro dos anos

1920/30 a prática de uma estética da simplicidade, que atuaria sob a ótica da

fragmentação, em oposição à concepção abrangente de arte. O ideal de

simplicidade buscaria aliar o bárbaro ao técnico, é dizer, o elemento “tradicional”

ao “civilizado”. Tal procedimento estético se inclinaria a um tipo de uso do

repertório cultural que recortasse tanto elementos ligados ao ideal de

despojamento moderno como peças que ficaram de fora do “processo

civilizador”, por exemplo, a arte africana. 17 O tratamento cômico-sério que

Oswald de Andrade dispensava às temáticas de suas obras, misturado à maneira

fragmentada e caleidoscópica com que registrava as novidades do dia-a-dia,

somava-se à busca por formas simples e não compromissadas com temas

sacralizados (Naves, 1998).

Podemos perceber, em entrevista de Caetano Veloso de 68, a valoração

positiva do aspecto de ruptura, presente no trabalho de Oswald:

17 O ideal de despojamento presente no modernismo brasileiro, segundo Santuza Naves (1998), privilegiaria elementos prosaicos da linguagem comum do cotidiano, desprezada pela tradição bacharelesca que buscava um registro elevado. A vida diária, com isso, tornava-se material artístico tão importante quanto a cultura clássica.

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Fico apaixonado por sentir, dentro da obra de Oswald, um movimento que tem a violência que eu gostaria de ter contra as coisas da estagnação, contra a seriedade (apud Campos, 2005: 204).

Nota-se em vários momentos do trabalho de Caetano e Oswald de Andrade

o recurso estético da colagem. Na obra deste último, de acordo com Naves (1998),

tal procedimento artístico pressupunha a incorporação de elementos de certas

tradições originais que não perderiam, entretanto, a alteridade. Numa atitude

dessacralizadora da arte, tanto um quanto outro recorreram a artefatos culturais

tidos como menores ou de “mau gosto” – ligados ao cotidiano das grandes

cidades mundiais e a aspectos da cultura de massa –, deslocando-os de seu

contexto originário e os desenvolvendo através de uma linguagem simples e

objetiva. O tropicalismo, segundo Flora Süssekind, aproveitou-se

conscientemente dos canais do mercado (discos, festivais, programas de televisão)

e realizou apropriações satíricas da retórica do desenvolvimento e do mito das

“raízes” da identidade nacional, propondo visões fragmentadas e dolorosas do

país. Süssekind chama a atenção para a intertextualidade das produções

tropicalistas (muitas faziam citações a outras obras), e para confluências,

referências, trabalhos coletivos, improvisações e colagens (Süssekind, 2005).

Atitudes artísticas de Gilberto Gil também foram associadas à prática

antropofágica, bem no sentido de recepção crítica de que falava Benedito Nunes.

Em entrevista a Augusto de Campos e Torquato Neto, Gil assume o sentido

“antropofágico” com que misturou o som “popular” do berimbau às sonoridades

elétricas das guitarras em “Domingo no parque”, colocando a “monocultura junto

da indústria”. 18 A esse respeito, vale a pena citar o comentário de Augusto de

Campos:

E o importante é que isso permite responder, através de certos vínculos instrumentais brasileiros, à provocação dos instrumentos elétricos, fazendo com que a consciencialização do mundo eletrônico, que nos vem dos Beatles, não se processe passivamente (In Campos, 2005:198; grifos meus).

18 Nesta mesma época, outros artistas – além de Gil e Caetano, Glauber Rocha, Helio Oiticica, Torquato Neto – também definiam suas obras como “antropofágicas” (Süssekind, 2005).

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Reaparece aqui o ideal oswaldiano de unir a floresta à escola – o “melhor de

nossa tradição lírica” ao “melhor de nossa tradição moderna”.19 A própria

formação musical de Gilberto Gil – baseada em Luiz Gonzaga, João Gilberto e

Beatles, conforme seu depoimento – é ótimo exemplo de união do elemento

tradicional ao da modernidade, trabalhados no mesmo plano. Gil pretendia se

afastar de uma concepção de “música brasileira” baseada exclusivamente nos

elementos considerados nacionais – fundamentos da chamada “moderna” MPB –,

alertando positivamente para os fatores trazidos pela cultura internacional, como

foi o caso de João Gilberto e a bossa nova, realizadores desse tipo de síntese

elaborada do “local + global”. O compositor defende uma concepção de “música

popular brasileira” aberta à cultura musical internacional e justifica a retomada da

“linha evolutiva”, proposta por Caetano, como resposta à crescente preocupação

de músicos ligados à MPB em

voltar àquelas coisas bem nacionais. O samba de morro. A música de protesto. A nordestinização absurda da música brasileira. A busca irrefreada de temas ligados ao Nordeste [...] Foi aquela busca terrível de coisas que tivessem nascido no nosso próprio terreno. Então, a linha evolutiva devia ser retomada exatamente naquele sentido de João Gilberto, na tentativa de incorporar tudo o que fosse surgindo como informação nova dentro da música popular brasileira, sem essa preocupação do internacional, do estrangeiro, do alienígena (In Campos, 2005:190).

Em outra entrevista, de fins de 67, Gil define as suas composições e as de

Caetano Veloso como “música pop”, segundo ele aquela que se comunicaria da

maneira mais simples e direta, “como um cartaz de rua, um outdoor, um sinal de

trânsito, uma história em quadrinhos (apud Campos, 2005:155)”. Tal acepção

aproximava os músicos baianos dos concretistas paulistas que, dentre outros

trabalhos, debruçavam-se sobre a obra de Oswald de Andrade, quem se

importava, segundo Nunes (1979), com a “marcha para frente”. A “música

popular” defendida por Augusto de Campos, da mesma forma, era a que tivesse

condições de caminhar livremente, num movimento sempre renovador,

articulando a “tradição musical brasileira” com as tecnologias modernas e tendo

como fruto um produto cultural “acabado”:

19 Manifesto da Poesia Pau-Brasil. In ANDRADE, Oswald. Obras Completas, VI. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias.

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[A música brasileira] Não tem que temer coisa alguma. Pode e deve caminhar livremente. E para tanto não se lhe há de negar nenhum dos recursos da tecnologia moderna dos países mais desenvolvidos: instrumentos elétricos, montagens, arranjos, novas sonoridades (In: Campos, 2005:157).

A valorização feita pelos tropicalistas dos elementos “estrangeiros”

privilegiava, segundo Marcos Napolitano (2001), a idéia de “evolução cultural”.

Vinda da “deglutição” seletiva do material disponível no mundo contemporâneo

de informações de massa, demonstrava a diferença em relação ao momento de

“invenção” da sigla MPB que, convergindo com o projeto musical “nacionalista”

de Mário de Andrade, demandava pesquisar os elementos “populares” mais

afastados da modernização capitalista: as sonoridades nordestinas e dos morros

cariocas. Os artistas “engajados nacionalistas”, que marcaram o surgimento da

sigla MPB em meados dos anos 1960, lidaram com sonoridades e ritmos do

“povo”, fazendo uma espécie de “comentário” da “nação”. O tropicalismo surgiu

propondo um país interligado com o resto do mundo, juntando estéticas pop com

certas tradições “brasileiras”, transformando o sentido embrionário de “MPB”.

Negando-lhe criticamente (ou simplesmente se aproveitando do fato da mídia ter

incentivado essa competição), contribuiu decisivamente para consolidar a sigla

que, a partir de então, passou a abranger genericamente quase toda a produção de

“música popular” no país, incluindo a música pop, inicialmente símbolo do

“entreguismo” cultural.

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“Subúrbio”1: vozes das “comunidades” cantam vários “brasis”

“A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito [...] Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal qual a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou”. Chico Buarque, 2004.2

Partindo do Cd Carioca, lançado por Chico Buarque em 2006, desenvolvo

uma reflexão sobre a “música popular” criada nos dias de hoje no Brasil. A

escolha deste artista se deve, por um lado, à sua participação, nos anos 60, da

“invenção” da MPB; por outro, pelo fato de seu trabalho atual tematizar, poética e

sonoramente, produções musicais nascidas nas décadas de 80 e 90 –

especialmente o hip-hop e o manguebeat –, afinadas com novos modos de

conceber a “nação” e as “camadas populares”.

Também me pareceu importante lidar com a figura de Chico Buarque neste

capítulo devido ao papel de “resistência” desempenhado ao longo de sua

trajetória, função hoje senão exercida, pelo menos vinculada a artistas ligados a

“comunidades”. Além deste aspecto, sua obra sempre se destacou pela

originalidade e preocupação com o apuro formal. Assim, tomando como assunto

não apenas a “realidade” das “comunidades” mas também musicalidades

específicas às periferias, o compositor se torna personagem essencial para

contrastar com compositores atuais ligados ao fenômeno da “desconstrução da

canção”, principalmente porque Chico é, por excelência, um cancionista.

Vimos no segundo capítulo de que maneira o tropicalismo alterou as

concepções de “povo” e “nação” – norteadoras do que se entendia por “MPB” em

meados dos anos 1960 – através de um procedimento estético de incorporação das

“diferenças”, que transformou o entendimento da “música popular brasileira”. A

1 Nome da música que abre o disco Carioca (2006), de Chico Buarque. 2 Folha de São Paulo, 26/12/2004. “O tempo e o artista”. Entrevista a Fernando de Barros e Silva In: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html.

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compreensão das camadas populares como “povo” – categoria fundamental do

projeto nacional-popular – foi substituída por imagens mais fragmentadas e

associadas à cultura de massa, que imaginaram um “Brasil” conectado com o

mundo. Em comparação com a cena cultural da década de 60, em que a expressão

“música popular brasileira” cunhou-se para designar “as músicas urbanas

veiculadas pelo rádio e pelos discos”, desempenhando o papel de “defesa

nacional” (Sandroni, 2004:29), é possível perceber nos dias atuais, através da

proliferação dos discursos das “comunidades”, o enfraquecimento do projeto de

comentar a “nação” – entendida como “Estado-nação” ou “Brasil” – através da

“música popular”. Muitos artistas atuais de rap e hip-hop definem-se “militantes”

de seus locais de moradia e expressam musicalmente suas próprias realidades ao

invés de serem supostamente representados por nomes “nacionais” da MPB. 3

Em “Adeus à MPB”, Carlos Sandroni (2004) constata que a categoria MPB

não constitui mais uma idealização político-cultural do país, como era na década

de 60, passando a ser compreendida como outro gênero musical, feito “rock”,

“pagode”, “sertanejo”, “axé”, etc. Atentando para uma redefinição das categorias

musicais desenvolvidas no Brasil a partir da década de 90, Sandroni afirmou só

fazer sentido interpretar a sigla MPB recentemente como “etiqueta

mercadológica”, pois nem ela

nem qualquer outro termo parecem capazes de unificar ou sintetizar as múltiplas identidades expressas nas músicas brasileiras veiculadas pelos meios de comunicação (Sandroni,2004:31).

Levando uma história consigo, a “MPB” é também considerada aqui uma

“tradição inventada”, de acordo com a formulação de Eric Hobsbawn (1984), de

algo construído, institucionalizado e estabelecido num período delimitado de

tempo. As “tradições inventadas”, de acordo com este historiador, ainda se 3 A perda de “autoridade” dos artistas da “MPB” reflete processo mais amplo no campo artístico. Estabelecido nos anos 60, o lugar “social” dos atores culturais da intelligentsia foi constantemente questionado na década seguinte. Flora Süssekind (2004) destaca o debate em torno da “autoridade intelectual” na produção literária brasileira de meados dos anos 70. Segundo a autora, as polêmicas foram travadas entre grupos críticos da “teoria” (estruturalista) e os que defendiam a “formalização”, revelando, sobretudo, a vontade dos primeiros de “provar competência, sobressair entre seus ‘iguais’ e conquistar uma fatia maior de poder no meio intelectual” e a reação dos últimos, ao ver ameaçada “uma ‘autoridade intelectual’ pouco acostumada a discussões que não se transformem em duelos, [e] à argumentação que não seja apenas retórica [...]” (Süssekind, 2004, p. 58).

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vinculariam, por exemplo, à “inovação histórica” que representam as “nações”,

legitimando instituições e status, socializando idéias, sistemas de valores e

padrões de comportamento. Observamos anteriormente que a categoria “MPB”

surgiu identificada com o projeto nacional-popular, que concebia a “nação” como

uma unidade estética a partir do desenvolvimento do “populário”. Consolidando-

se após o tropicalismo, a “MPB” passou a englobar no final daquela década e no

início dos anos 70, de acordo com Marcos Napolitano (2001), “quase todas as

expressões da canção popular, independentemente do lugar ocupado por elas na

hierarquia de valores culturais” (Napolitano, 2001:239). Para Carlos Sandroni

(2004), o vigor da “MPB” nos anos 1960, 70 e 80 deveu-se à sua função de

categoria analítica (diferenciando-se tanto de produções de música “folclórica”

quanto de “erudita”), opção ideológica (ligada à oposição ao governo militar) e

perfil de consumo (constituindo uma gama de opções diversas, mas com

“organicidade”) (Sandroni, 2004: 31).

Acompanhando Hobsbawn, penso que não “é necessário recuperar nem

inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam (Hobsbawn, 1984:

16)”. Mas os “usos” da “música popular brasileira”, expressos no termo “MPB”,

mudaram bastante desde a sua “invenção” em meados dos anos 1960, razão pela

qual me dispus a analisar os diferentes significados que o tropicalismo lhe propôs.

Agora se trata de desvendar os sentidos que novas musicalidades elaboradas nas

“comunidades” empregam à idéia de uma “nação” e de um “povo brasileiro”.

Um fenômeno importante foi o surgimento, no contexto político-cultural

brasileiro destas últimas décadas, da possibilidade de as “camadas populares”

exporem, elas mesmas, sua visões de mundo, partindo da noção privilegiada de

“povo como sujeito” da sua história.4 Lícia Valladares (2005) observa que, desde

o final da década de 60, pesquisas em ciências sociais no Brasil apontam para a

valorização desta perspectiva: “De uma concepção passiva da participação,

passou-se a outra, fundamentada no reconhecimento da ‘capacidade ativa do

povo’” (Valladares, 2005:134). A relação de novas práticas musicais “periféricas” 4 Cito, por exemplo, o livro organizado por Dulce Chaves Pandolfi e Mario Grynspan – A favela fala: depoimentos ao CPDOC (2003). Chamo a atenção para a relação entre os discursos das “comunidades” e a busca por um país menos fragmentado: “Este livro reúne depoimentos de 12 líderes comunitários de favelas da cidade do Rio de Janeiro, num documento raro e precioso, que revela um mundo conhecido por muito poucos fora das comunidades faveladas. De extraordinário valor pedagógico, esses depoimentos aproximam mundos separados pelo preconceito, facilitando o diálogo entre brasis distantes e contribuindo para a construção de uma nação menos fragmentada”. (Pandolfi; Grynspan, 2003).

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com a mais recente produção artística de Chico Buarque será observada através

deste entendimento.

4.1. MPB e musicalidades contemporâneas “periféricas” “O momento atual, prefigurado desde a década passada [1990], se caracteriza pela

descentralização. Os acontecimentos musicais são muito mais ricos e variados, até porque contam com recursos nem sequer sonhados nos idos dos anos sessenta. E a força do talento dos novos cancionistas também não diminuiu. O problema é outro. Como encontrá-los?”. Luiz Tatit, 2006.5

Desde seu aparecimento no cenário artístico, em meados dos anos 60, Chico

Buarque foi identificado com a intelligentsia, entendida como vanguarda do

povo. 6 Sua relação com o imaginário das “camadas populares” se estabeleceu no

começo da carreira, logo em seu disco de estréia – Chico Buarque Holanda, de

1966 –, em que sobressaiu a temática nacional-popular, na preferência por sambas

e marcha-ranchos como ritmos para as suas canções. Suas primeiras letras

rodeavam o universo da cultura popular, do carnaval e das rodas de samba, de

sambistas e desencontros amorosos. A assimilação ao imaginário das camadas

subalternas foi imediata. Almir Chediak (1999), por exemplo, em texto para um

de seus songbooks sobre a obra de Chico Buarque, o considerou

um dos compositores mais queridos e respeitados em todas as classes sociais, uma conquista que se deve não só ao seu talento e carisma, mas, também, aos seus atos como cidadão (Chediak,1999:6).

Paulo César de Araújo, em artigo para o Jornal do Brasil (apud Pires,

2006), sugere um novo tipo de relação entre o compositor e as “camadas

populares”, comentando a recente “falta de contato entre o cantor e o povo”:

5 TATIT, Luis. Cancionistas invisíveis. In: CULT, n. 105, ano 9. Agosto de 2006. 6 A figura de Chico Buarque é também aqui entendida como um tipo de “intelectual livre”, que atuou na representação social do Rio de Janeiro e do Brasil, no sentido que Maria Alice Rezende de Carvalho (1994) atribui a um modelo de intelectual que se desenvolveu nos anos 1960, construído “como vanguarda do povo, como intelligentsia (Carvalho, 1994:47)”. O papel histórico que Chico representou nos tempos da ditadura estaria, a meu ver, vinculado à redenção messiânica do povo e à “intervenção ilustrada sobre o mundo (p. 42)”. É desta maneira que Carvalho qualifica o “pacto” entre intelectuais que formavam uma intelligentsia e as camadas populares excluídas do processo de modernização econômica e dos direitos à cidadania. O mundo “popular” – singularizado pelos morros e favelas cariocas e pela figura do retirante nordestino – ganhava visibilidade através da idealização de artistas e intelectuais que faziam o elo, o canal de comunicação com a “nação”.

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Hoje, os discos e canções de Chico são para consumo e deleite majoritariamente do público de classe média, da Zona Sul carioca ou de áreas nobres das grandes metrópoles do país. Ele é, neste sentido, um artista basicamente local, e restrito a sua classe social. Não há muita comunicabilidade entre Chico Buarque e as raízes do Brasil, aquele Brasil, mais profundo, mais pobre, maior. (“Chico Buarque e as raízes do Brasil – Em questão a falta de contato entre o cantor e o povo”, Jornal do Brasil, p. B8).

O atual cenário cultural contempla vozes periféricas que antes não se

escutavam, formando dissonante coral, intérprete das mais variadas músicas

“brasileiras” e de múltiplas visões de “Brasil”.7 Nesse sentido, uma diferença

fundamental com a “música popular” feita nos anos 60, expressa na sigla MPB,

está no lugar de onde partem os discursos, não mais centralizados em torno de

artistas “nacionais”.8 É interessante observar a posição de Chico Buarque neste

processo. Sendo protagonista das discussões sobre o “lugar social” da “música

popular” no Brasil naquela década, pode ser considerado um dos atores culturais

mais importantes na configuração de “invenção” da “MPB”, desta maneira

também entendida “tradição inventada” (Hobsbawn, 1984). Deve-se notar, no

entanto, que novas sonoridades vinculadas a práticas culturais “periféricas” não

lhe passam despercebidas. Em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, em 2004,

comentou as mudanças realizadas pelo rap no imaginário social sobre as

“camadas populares”:

[...] à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do rap muito interessante. Não só o rap em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de “lata d´água na cabeça” etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média. O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia

7 O mesmo parece ocorrer com a poesia feita atualmente no Brasil. Rodrigo Petrônio (2007) chama a atenção para a diversidade da produção contemporânea: “O fim das demarcações de território foi uma das melhores coisas que aconteceram para a poesia nas últimas décadas. Ele possibilitou o aparecimento da multiplicidade de vozes que temos hoje em dia”. (“Múltiplos cantos”, Prosa&Verso, O Globo, 28/07/2007: 6). 8 É valioso perceber na cinematografia brasileira a partir da década de 90 a expressão da mesma novidade: os discursos e produções vindos das próprias camadas populares. Como notou Leite (2006), partindo “das margens para o centro da sociedade”, a realização de filmes documentários por “segmentos populacionais que se consideram à margem da sociedade brasileira [...] tornaram-se uma das principais modalidades de acesso das ‘classes populares’ urbanas à esfera pública, constituindo-se em mediações cada vez mais significativas para que suas vozes nela se façam presentes com a esperança de serem ouvidas e consideradas (Leite, 2006: 51)”.

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essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no rap. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí. 9

Chico Buarque também participou de regravações de suas canções em

versão “eletrônica”, feitas por novos artistas, e incorporou numa das faixas de seu

último disco (2006) – “Ode aos ratos”, composta em parceria com Edu Lobo – a

programação, recurso tradicionalmente utilizado pela “música eletrônica”, e a

forma rap de cantar, lembrando uma embolada nordestina. Em alguns momentos,

seu novo trabalho indica que se mostra sensível às transformações que ocorreram

na representação das questões das “camadas populares”. Principalmente pelo fato

de que deixaram de ser imaginadas basicamente pelo samba – ritmo que a

primeira geração da MPB entendia como “autêntico” do “povo” –, sendo

definidas pela incorporação das linguagens de novos “movimentos” musicais,

principalmente o funk, o rap e o hip-hop – ritmos e culturas dos Estados Unidos

reinventados no Brasil. Chamo a atenção para o fato de que a emergência de

ritmos “populares” vinculados às periferias das grandes cidades modificou o

entendimento da “música popular” desenvolvida no Brasil, pois definiu novas

possibilidades de vocalização de grupos antes submetidos à interlocução de

artistas de MPB, que “falavam em nome do povo”.

Atento para o próprio nome do disco aqui contemplado – Carioca –,

sugerindo que acompanha certa tendência do campo artístico e cultural das

“comunidades”, a qual identifico adiante, de caracterização cultural pelo

território: se a “MPB de meados dos anos 60” foi marcada pela obsessão com a

idéia nacionalista de “povo”, algumas formas e temáticas atuais de “música

popular” feitas no Brasil reforçam as singularidades de cada lugar, atentas aos

discursos das diversas “periferias”, e não do “povo” em geral.10 Conforme frisei

nos capítulos anteriores, a produção musical de Chico Buarque nos anos 60

privilegiou, entre tantos outros elementos, o universo do trabalhador urbano, em 9 Buarque, Chico. O tempo e o artista, Folha de São Paulo, 26/12/2004. In: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html. 10 Não desconheço, evidentemente, que estas localidades de alguma forma se relacionam entre si, o que não sugere, entretanto, que representem uma totalidade, tal como o “povo” era imaginado no momento de formação da categoria MPB em meados dos anos 60. Os Centros Populares de Cultura da UNE (CPCs) idealizavam o encontro com o “povo” autêntico, intacto à modernização capitalista. Nele estariam as bases “nacionalistas” para enfrentar a possibilidade da “dominação estrangeira” (Sodré, 2006). Conforme se depreende do trecho citado na nota anterior, as diversas periferias do final do século XX e início do XXI apontam para um “Brasil” fragmentado, ou melhor, para vários “brasis”.

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arranjos elaborados pelo violão e instrumentos de percussão ligados ao samba –

pandeiro, surdo, tamborim, cuíca. Com o desenvolvimento dos ritmos e temas

populares, fazia-se uma espécie de comentário da “nação brasileira”. Penso que

sua última obra se refere a um local específico. Vejamos o que o próprio Chico

Buarque disse sobre o Cd:

“Carioca” é o nome do disco, não sou eu me declarando – não se trata de uma afirmação pessoal. O disco acabou resultando carioca pela temática de várias canções e pela linguagem musical – essa, sim, talvez mais acentuadamente do que em outros discos meus, é carioca. 11

Carioca apresenta 12 canções suas, incluindo parcerias com Edu Lobo,

Jorge Élder, Ivan Lins, Carlinhos Vergueiro e Tom Jobim. Prevalece ritmicamente

o samba e a bossa nova. Algumas músicas já haviam participado da trilha sonora

de filmes – “Porque era ela, Porque era eu” em A máquina, de João Falcão (2005),

e “Sempre”, em O maior amor do mundo, de Cacá Diegues (2006) – e peças de

teatro – “Ode aos ratos”, de Cambaio, de Adriana e João Falcão. Chico Buarque

não produzia um Cd com músicas inéditas desde 1998, com “As cidades”. De

fato, se percebe grandes intervalos entre os lançamentos de seus discos. Boa parte

dos críticos, pelo apuro melódico e harmônico da obra, considerou Carioca

“difícil”. Joaquim Ferreira dos Santos, por exemplo, afirmou que Chico Buarque

fez um CD de canções densas e partiu para arranjos complexos. Soa frio, coração trancado [...] Chico cansou de ser assobiável e tentou transferir para a canção as estruturas sofisticadas de seu romance “Budapeste” [..] Não quer mais ninguém cantando junto nos shows. Prefere se alinhar ao culto dos cultos, ao esgar tenso dos densos [...] Alça letras com o brilho de sempre, mas cercado de sisudez musical. 12

Em entrevista para divulgar o disco, o compositor comentou a suposta

sofisticação sonora, sugerida no trecho acima. Realço, no trecho citado, sua

procura pela “linguagem da canção” que, aparentemente, aconteceria longe do

“grande público”, representado pelas rádios:

Há um depuramento maior, certamente. Quando faço um disco novo, quero gravar um disco novo em relação ao que já fiz. Mas não há nenhuma busca de complicações,

11 Buarque, Chico. Folha de São Paulo, 06/05/06. Entrevista a Fernando de Barros e Silva. In: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html. 12 Segundo Caderno, O Globo, 25/09/2006: 10. “Chico e Caetano – Os novos CDs deles saíram quase ao mesmo tempo. Qual o melhor?”.

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pelo contrário. Gostaria até que fosse tudo mais simples. Quando digo que tenho que abandonar a literatura [Chico Buarque é autor de alguns romances], é para conseguir encontrar de novo a linguagem da canção. Mas também discordo que a música tem de ser facilmente escutável porque me acostumei com a idéia de que as músicas não vão tocar no rádio.13

Leonardo Drummond, recentemente, questionou “se a Música Popular

Brasileira, a sigla MPB, faz jus ao ‘popular’ no nome”. 14 Martinho da Vila

acusou a categoria genérica MPB de não abranger a “música popular” feita no

Brasil como um todo, somente a da região Sudeste, ainda assim quando não

elaborada por “compositores indutivos, oriundos das favelas e periferias, que não

tenham freqüentado as escolas de música”. 15 Caetano Veloso já declarou (apud

Weinschelbaum, 2006) renegar o uso que se faz do termo MPB como gênero

musical. Segundo ele, boa parte dos críticos nas últimas décadas se acostumou a

referenciar a MPB como um estilo mais nobre, mesmo sendo bastante variado e

não tendo nenhuma unidade que permita caracterizá-lo como gênero. Estas

ponderações sugerem importante mudança na acepção de “MPB”. Antonio Carlos

Miguel (2006) observa que, a partir da década de 80, independentemente da

qualidade da produção de muitos artistas, houve uma “pasteurização” e um

“esgotamento” da “tal de música popular brasileira”, entendida pela sigla MPB.

Paralelamente, músicos ligados ao “rock brasileiro dos anos 1980”, ao se voltar

para produções internacionais do gênero, rompiam com a concepção nacionalista

de construção da identidade, predominante entre os cancionistas dos anos 60

(Ribeiro, 2005). Na análise de Júlio Naves Ribeiro (2005), vemos interessante

relação entre a ascensão do “rock brasileiro dos anos 80” e o declínio da “MPB”:

Quando o rock desabrocha no país em meados dos anos 80, um sentimento recorrente (conforme observado no discurso de críticos do período e mesmo em entrevistas com as personalidades roqueiras) era o de que a MPB estava “estagnada”, “anódina”, somente “diluindo velhas fórmulas”, tornando-se “conformista” em termos estéticos e comportamentais. Seus mais notórios representantes – incluindo agora os tropicalistas e diversos outros artistas – eram vistos como pessoas deslocadas do “mundo real”, tanto pelas temáticas que abordavam então (ecologia, misticismo, etc.) quanto por assumirem uma postura de “estrelas” frente ao público, mídia e gravadora (Ribeiro, 2005:53-54).

13 Buarque, Chico. Entrevista a Lauro Lisboa Garcia. Estado de São Paulo, 06/05/06. In: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html. 14 Drummond, Leonardo In: O Globo, 12/01/2007: 7. 15 O Globo, 17/12/2006: 7.

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Este autor observa na produção de muitos artistas do “rock brasileiro dos

anos 80” a adoção de estéticas mais “simples”, características da economia formal

que distinguia a música pop mundial, afastando-se do tipo de elaboração que

norteava, por exemplo, artistas da bossa-nova e da “MPB”.16 Os músicos do

“Rock Brasil”, num momento inicial, valorizariam mais a “mensagem” das letras

do que propriamente a sua “poética”, e mais a batida (ou o “pulso”, segundo José

Miguel Wisnik (1999)) do que a melodia.17

Nos dias atuais, de acordo com Wisnik (1999), “duas formas imemoriais das

músicas populares entram em mutações repetitivas e mixagens: a música rítmica,

dançante, e a canção (Wisnik, 1999:214)”. Isto representa um sentido descontínuo

ao da “MPB” de meados dos anos sessenta, cuja oposição ao ritmo “dançante” da

“Jovem Guarda”, por exemplo, fez predominar a canção. Estas duas “concepções”

de “música popular”, a “rítmica” e a canção, certamente se misturaram com o

tropicalismo. Para os interesses deste trabalho, observo que, atualmente, as

diversas maneiras com as quais a sigla MPB expressa a “música popular” feita no

Brasil refletiriam a afirmação de José Miguel Wisnik (1999), de que a maioria

“das músicas [inseridas em circuitos] de massa marca o pulso rítmico, a repetição

e apela à escuta linear (Wisnik, 1999:209)”.

4.2. As “comunidades” e a “nação” na “música popular” contemporânea

Observemos a letra da primeira canção de Carioca, “Subúrbio”, samba de

notável apuro formal e melódico, com arranjo de violão, baixo acústico, pandeiro,

piano acústico, clarinete, flauta e violoncelo:

Lá não tem brisa/ Não tem verde-azuis/ Não tem frescura nem atrevimento/ Lá não figura no mapa/ No avesso da montanha, é labirinto/ É contra-senha, é cara a tapa/ Fala, Penha/ Fala, Irajá/ Fala, Olaria/ Fala, Acari, Vigário Geral/ Fala, Piedade/ Casas sem cor/ Ruas de pó, cidade/ Que não se pinta/ Que é sem vaidade/ Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção/ Traz as cabrochas e a roda de samba/ Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae/ Teu hip-hop/ Fala na língua do rap/ Desbanca a outra/ A tal que abusa/ De ser tão maravilhosa/ Lá não tem moças douradas/ Expostas, andam nus/ Pelas quebradas teus exus/ Não tem turistas/ Não sai foto nas revistas/ Lá tem Jesus/ E está de 16 Júlio Naves Ribeiro (2005) nota que a pobreza formal foi tomada como um valor positivo pela primeira geração do “Rock Brasil”, sendo destituída de caráter pejorativo. 17 Para Wisnik, o “rock é a centelha que espalha, no campo das músicas dançantes, a novidade do pulso-ruído (Wisnik, 1999:216)”.

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costas/ Fala, Maré/ Fala, Madureira/ Fala, Pavuna/ Fala, Inhaúma/ Cordovil, Pilares/ Espalha a tua voz/ Nos arredores/ Carrega a tua cruz/ E os teus tambores/ Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção/ Traz as cabrochas e a roda de samba/ Dança teu funk, o rock, forró, pagode/ Teu hip-hop/ Fala na língua do rap/ Fala no pé/ Dá uma idéia/ Naquela que te sombreia/Lá não tem claro-escuro/ A luz é dura/ A chapa é quente/ Que futuro tem/ Aquela gente toda/ Perdido em ti/ Eu ando em roda/ É pau, é pedra/ É fim de linha/ É lenha, é fogo, é foda/ Fala, Penha/ Fala, Irajá/ Fala, Encantado, Bangu/ Fala, Realengo.../ Fala, Maré/ Fala, Madureira/ Fala, Meriti, Nova Iguaçu/ Fala, Paciência...

O advérbio “lá” com que Chico Buarque referencia as periferias do Rio de

Janeiro alude à alteridade que ultimamente marca a relação do compositor com as

“camadas populares”, mostrando as diversificadas práticas culturais

contemporâneas – expressas no “samba”, “choro-canção”, “funk”, “rock”,

“forró”, “pagode”, “rap”, “hip-hop”: “Fala, Penha/ Fala, Irajá/ Fala, Encantado,

Bangu/ Fala, Realengo”. De acordo com o compositor:

Existe mesmo na canção a intenção de fazer cantar a periferia – ou antes, a periferia da periferia da periferia. O Brasil sempre ocupou uma posição periférica no mundo e o Rio, cada vez mais, está numa situação periférica em relação às decisões nacionais, ao poder, a São Paulo. O subúrbio do Rio é a periferia dessa cidade meio marginalizada e está literalmente fora do mapa.18

Também se percebe o procedimento de evocar as “comunidades” em

compositores de “samba” e “pagode”:

“Antes aqueles morros não tinham nomes/ Foi pra lá o elemento home/ Fazendo barraco, batuque e festinha/ Nasceu Mangueira, Salgueiro,/ São Carlos e Cachoeirinha/ Andaraí, Caixa d´Água, Congonha,/ Alemão e Borel/ Morro do Macaco e Vila Isabel”, em “Aqueles morros”, de Bezerra da Silva e Pedro Butina, de 1994 (apud Oliveira e Marcier, 2004).

E de rap:

“Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D'Abril, Parelheiros, Mogi, Jardim Brasil, Bela Vista, Jardim Ângela, Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis”, em “Diário de um detento”, dos Racionais MC’s, de 1997.

Algumas práticas da diversificada cena musical contemporânea brasileira

questionam interpretações que até pouco tempo gozavam de enorme legitimidade

18 Buarque, Chico. Entrevista a Fernando de Barros e Silva. Folha de São Paulo, 06/05/06. In: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html.

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no imaginário sobre a “nação”, entre elas as que cantavam o Brasil como um país

sem sérios conflitos entre raças e classes sociais (Herschmann, 1997:54). O ruir

deste imaginário se relacionaria de certa forma, segundo Micael Herschmann,

com a ascensão da cultura “funk” e “hip-hop” no Rio de Janeiro e em São Paulo,

que promoveria uma sociabilidade capaz de oferecer à juventude novos modos de

representação que estivessem ligados, cada vez mais, a expressões que

contestassem o mito de que o “Brasil é uma nação diversa mas não-conflitual

(idem, p. 56)”.19 As novas formas culturais vindas das “comunidades” refletiriam

sua insatisfação com o ideal de “nação” expresso pelo samba e, a meu ver, com o

termo MPB, que supostamente abarcaria a produção musical do país como um

todo. George Yúdice afirma que o funk e o hip-hop estabeleceram novas formas

de identidade desvinculadas das premissas do Brasil como uma nação sem

diversidades conflitantes (Yúdice, 1997:27).

José Roberto Zan (2005) ressalta que a assimilação do funk e da soul music

norte-americanos pelos artistas dos subúrbios do Rio de Janeiro na década de 70

identificou-se com a luta pela afirmação da etnia negra nos Estados Unidos,

dando-lhe conotação política. Faz-se necessário observar, mais uma vez, a

diferença em relação ao samba, que não simbolizaria papel contestador de

aspectos hegemônicos da cultura nacional (Vianna, 2004). Assim como Yúdice

(1997), Zan percebe um sentido de resistência cultural na opção das “camadas

populares” pelo funk (Zan, 2005:188). No início da década de 1990, desenvolveu-

se no Rio de Janeiro o mito de uma “cultura do medo e da violência”

(Herschmann, 1997:54), relacionada imediatamente aos jovens “funkeiros” das

periferias, cujas produções artísticas constituiriam um tipo de cultura “local” do

carioca (Yúdice, 1997). Os discursos dos novos artistas – considerados a outra

face de um “país libertário e malandro” ou “o lado podre do sistema”, conforme

19 Certa literatura sobre rap, hip-hop e funk no Brasil enfatiza estas culturas como uma negação crítica do mito da cordialidade brasileira ao afirmar a condição negra (Cf. Rocha, Domenich e Casseano, 2001 e Salles, 2002). Um ótimo exemplo deste tipo de atitude seria o grupo de rap Racionais MC’s e seu disco independente Sobrevivendo no Inferno, de 1997, que chegou a vender 1 milhão de cópias. Já existe, contudo, outra tradição entre grupos de rap e hip-hop no país, que privilegiaria a idéia de miscigenação e de hibridismo. O procedimento estético de cada uma das tendências é revelador de suas diferenças, sendo a primeira mais crua e visceral e a última mais variada, incorporando diversos ritmos à sua musicalidade, como samba, soul, rock e reggae. A figura exemplar neste caso seria Marcelo D2, cujo último disco, Meu Samba é assim, de 2006, mistura sonoridades e referências do hip-hop, soul, rap, samba e funk.

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sugerem algumas letras de músicas que denunciam a violência do cotidiano, a

repressão policial, a ineficiência do Estado, enfim, a situação conflituosa geral –

rompiam, segundo George Yúdice, com idéias que privilegiavam o samba como

meio de expressão das aspirações político-sociais dos “populares”, e ainda as que

o celebravam como mantenedor da “identidade brasileira”:

Na transição para a democracia (cada vez mais distante) entre os anos 80 e 90, ficou evidente a inviabilidade da emancipação política e social por meio das práticas culturais formadoras de um “consenso”, que permite a distribuição da riqueza para as elites e de uma pobreza ainda maior para os segmentos subalternos [...] Hoje, o cenário cultural está em rápida transformação, refletindo a grande insatisfação com a nação [...] O colapso da identidade nacional brasileira ocorre tanto política como racial e culturalmente (Yúdice, 1997:26).

Tricia Rose (1997) interpreta o surgimento da cultura hip-hop na Nova York

dos anos 70 como a “expressão cultural da diáspora africana” (Rose, 1997). Seria

fenômeno emergente do caldo cultural das populações que viviam às margens da

América urbana e pós-industrial, possibilitando a negociação da experiência da

marginalização, ao se apoderar, transformando, do que foi considerado “lixo” pela

indústria e cultura dominantes. Os artistas elaboraram um criativo material de

“resistência”, partindo de poucos recursos e se apropriando de tecnologias

consideradas avançadas.20 A autora destaca que a cultura “hip-hop” iluminou as

contradições do cenário público urbano, marcado por denso processo de

“desindustrialização”, contestando os papéis sociais legados aos jovens

subalternos no final do século XX. Segundo Tricia Rose,

[i]mportantes mudanças pós-industriais na economia, como o acesso à moradia, a demografia e as redes de comunicação, foram cruciais para a formação das condições que alimentaram a cultura híbrida e o teor sócio-político das canções e músicas de hip-hop (Rose, 1997:194).

O “hip-hop” seria fonte formadora de uma identidade alternativa, num

contexto em que as instituições mais próximas de apoio teriam sido destruídas. A

música, neste cenário, valorizaria um tipo de identidade social ancorada no

20 Cf. Yúdice (1997), a respeito da resistência à cultura oficial e dominante promovida por jovens funkeiros da Zona Norte do Rio de Janeiro no início da década de 1990. A propósito, a descrição da cultura funk elaborada por este autor realça o caráter “ativo destes jovens na delimitação do próprio território, sempre em oposição à identidade cultural e nacional (Yúdice, 1997:44)”.

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estabelecimento de grupos locais, com sistemas próprios de segurança, elaborando

uma nova cultura, ligada à experiência “local”. Segundo o DJ Marlboro, por

exemplo, um dos mais influentes “criadores” do “funk” no Rio de Janeiro desde a

década de 80, os funkeiros buscariam “nas galeras – com nomes de morros e

favelas, a pátria que não conhecem (apud Yúdice, 1997:36)”. No Brasil, estas

novas musicalidades não se fecharam, entretanto, a informações culturais

“estrangeiras” – tendo em vista a incorporação do “miami bass”, ritmo

“americano”. No início do século XXI, enormes desigualdades sociais marcam as

grandes cidades brasileiras, cujas camadas subalternas produzem um material

artístico aberto, segundo Yúdice (1997), à “formas culturais transnacionais que

confundem a cultura consensual (Yúdice, 1997:26)”. Micael Herschmann

argumenta que um dos resultados da dinâmica cultural contemporânea seria

o fenômeno da fragmentação/pluralização que tem atingido não só o Brasil, mas de modo geral, a grande maioria dos países do Ocidente. Poder-se-ia afirmar que este fenômeno é resultado, em parte, da dinâmica do processo de modernização desencadeado pelo capitalismo transnacional, característico da era da globalização (que não só tem conduzido na direção de um processo de homogeneização mas também de fragmentação) e, em parte, da impossibilidade de realização das utopias modernas. Entretanto, esse cenário não parece implicar o ‘fim do social ou da política’ [..], mas a construção de um outro contexto em que as diferenças e os processos de homogeneização se encontram em negociação permanente (Herschmann, 1997:58).

José Roberto Zan (2005) analisa a formação da Banda Black Rio nos anos

1970 e os processos “híbridos” sofridos por alguns gêneros musicais “populares”.

A emergência de novos movimentos identitários – associados, muitas vezes, à

black music norte-americana, principalmente o funk e o soul – conferiu novos

significados ao samba, visto tradicionalmente símbolo da brasilidade. O

movimento funk no Brasil realizou fusões, desde seu instante inicial, segundo o

autor, entre a “música popular brasileira” e gêneros internacionais, afirmando com

isso a “universalidade da música” (Zan, 2005:194). Este aspecto foi percebido na

produção tropicalista do final dos anos 1960. Zan, contudo, diferencia os

experimentalismos propostos por Gilberto Gil, Caetano Veloso e companhia dos

hibridismos elaborados pela BBR. De acordo com o autor, esses últimos foram

desenvolvidos num momento em que a cultura de massa já havia se consolidado

no país, sendo interpretados como resultado de uma lógica internacional-popular:

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Sob o impacto da integração da sociedade brasileira a circuitos cada vez mais mundializados de bens simbólicos, emergiam novos segmentos sociais e novas identidades culturais. Contrariando o esforço do governo militar de reativar, até certo ponto, o sentimento nacionalista, a globalização provocava um certo arrefecimento dos processos de identificação com a cultura nacional e abria brechas para novas configurações culturais locais e regionais (Zan, 2005:195).

Produções musicais de hip-hop no Brasil acenaram para imagens

conflituosas e fragmentadas do país. A novidade não está propriamente na

concepção da “nação” desenvolvida por esta forma de “música popular”21, mas

no lugar de onde parte o enunciado: não mais de uma intelligentsia, mas das

próprias “camadas populares”, num discurso construído muitas vezes na primeira

pessoa do singular, com forte componente de afirmação territorial, percebido pela

valorização de suas “comunidades”. A consolidação do rap, do funk e do hip-hop

nas práticas musicais contemporâneas elabora, assim, novos “desenhos mentais”

do país. A letra de “Subúrbio” alude a esta novidade, acenando para “culturas”

das “periferias”: “Dança o teu funk, o rock, forró, pagode/ Teu hip-hop/ Fala na

língua do rap/ Fala no pé/ Dá uma idéia”.

Estas musicalidades atuais se diferenciam da Tropicália na medida em que

seus artistas eventualmente se definem como “militantes” de seus locais de

moradia, comprometendo-se com o ativismo político. Os músicos tropicalistas, no

final dos anos 1960, numa postura mais anárquica, não pensavam estar

representando o “povo”, relacionando-se, por sua vez, com os públicos da

indústria de massa. Assim como o tropicalismo, estas novas sonoridades não

buscariam critérios de “autenticidade” na compreensão das camadas populares,

mesclando influências “locais” com estéticas pop.

Nas últimas décadas ganhou legitimidade o imperativo de “falar em nome

próprio” das diferenças e especificidades. O potencial de transformação social

estaria nas mãos das “minorias” situadas “no outro lado do capitalismo”,

propondo várias “versões”, particulares e específicas, em vez de uma visão de

mundo homogênea e totalizadora. Na interpretação de Octavio Paz (1984), tais

movimentos exprimiram

21 Basta lembrarmos que as canções tropicalistas feitas no final dos anos 1960 expressaram um descontentamento com o entendimento de “nação” proposto pela MPB em meados daquela década, sugerindo novas formas de interação entre elementos locais e internacionais da cultura, ensejando assim um ideal de país conectado com o mundo, ao invés de buscarem uma totalidade brasileira.

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particularismos humilhados durante o período de expansão do Ocidente, e por isso se converteram nos modelos da luta das minorias étnicas nos Estados Unidos e em outras partes. As revoltas do Terceiro Mundo e as rebeliões das minorias étnicas e nacionais nas sociedades industriais são a insurreição de particularismos oprimidos por outro particularismo travestido de universalidade: o capitalismo do Ocidente [...] Os movimentos contemporâneos [...] são afirmações da particularidade de cada grupo [...]. O marxismo prometeu um futuro no qual se dissolveriam todas as classes e particularidades em uma sociedade universal; hoje somos testemunhas de uma luta pelo reconhecimento imediato da realidade concreta e particular de cada um (Paz, 1984:195-196).

Benedict Anderson (2000) considera o final da década de 1960 um

importante momento para discussão dos nacionalismos no mundo inteiro, em que

vários escritos foram produzidos. De acordo com este autor, as “reverberações

globais” do nacionalismo vivido na guerra dos Estados Unidos contra o Vietnã –

transmitida mundialmente pela televisão – impulsionaram surtos nacionalistas em

outras partes do planeta, como África, Ásia e Américas. Ele também chama a

atenção para a ascensão de vários movimentos nos Estados Unidos que

motivaram, por exemplo, o desenvolvimento de “comunidades supranacionais”,

opostas aos Estados Nacionais – luta por direitos civis, que culminou num

“nacionalismo negro que em pouco tempo cruzou as fronteiras nacionais

(Anderson, 2000:13)”; movimento feminista de alcance global; movimento

transcontinental pela emancipação dos homossexuais.

Tais eventos resultaram, acompanhando Anderson, na “crise iminente do

hífen que, durante duzentos anos, uniu o Estado e a nação (2000:15)”, com o

binômio Estado-nação, garantindo prosperidade e tranqüilidade aos seus membros

que, em troca, eram supostamente obedientes e leais. Na interpretação de Otto

Bauer, recuperada por Anderson, a nação exigia uma “solidariedade baseada em

uma cultura abstrata superior (p.10)”. O desenvolvimento eletrônico e tecnológico

dos países gerou novas formas de comunicação e trocas comerciais, incapazes de

serem controladas pelos Estados. Isto ocorreu numa época em que os

sistemas de produção transnacionais se espraiaram, enquanto o fordismo no velho estilo começou a dar lugar a sistemas de produção descentralizados, fora do país, e à criação de nichos de mercado sofisticados e flexíveis [...] O transporte barato e veloz possibilitou movimentações populacionais sem precedentes no mundo inteiro” (Anderson, 2000:15).22

22 A interpretação de Anthony Giddens (1996) sobre o processo de globalização que se intensificaria nas décadas seguintes não é muito diferente: “eu a defino como ação à distância, e

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Depois da Revolução Francesa, de acordo com Anderson, o nacionalismo

tornou-se conceito globalmente compreendido (assim como “democracia”,

“liberalismo”, “socialismo”), assimilado por milhões de pessoas que sacrificaram

a vida por suas nações (Anderson, 2000). Em 1968 vigorou a noção de

“nacionalidade portátil”, fruto da facilidade de locomoção entre os países. Com

isso, a defesa dos cidadãos pelos interesses nacionais – estruturante da idéia de

Estado-nação – perdeu enorme força. Não por acaso, a “música popular

brasileira” de meados dos anos 60 (1964/65/66) foi marcada pela defesa do

nacionalismo – conforme expus no primeiro capítulo – num contexto histórico

que, conforme Anderson analisa, se relaciona à crença da “esquerda” de que o

capitalismo podia ser substituído.

Destaco a crítica de Partha Chatterjee à tese de Benedict Anderson segundo

a qual “a experiência histórica do nacionalismo na Europa Ocidental, nas

Américas e na Rússia fornecera a todos os nacionalismos posteriores um conjunto

de formas modulares (Chatterjee, 2000:229)” a serem seguidas. Partindo da

premissa andersoniana das nações enquanto “comunidades imaginadas”, ou seja,

existindo antes pela imaginação do que por determinadas condições sociológicas

(língua, religião, raça), Chatterjee questiona o fato dos nacionalismos de outros

lugares do mundo estarem necessariamente vinculados a certas formas

“modulares” fornecidas pela Europa e Américas, “únicos verdadeiros sujeitos da

história (2000:229)”. Isto acarretaria, de acordo com o autor, uma extensão da

exploração colonialista, posto que as próprias formas de “resistência anticolonial”

estariam subjugadas aos moldes “ocidentais”. Percebe-se vontade de “falar em

nome próprio” no discurso “pós-colonialista”, ao invés de ter sua história contada

por outros, a partir de modelos fornecidos pela cultura dominante.23

relaciono sua intensificação nos últimos anos ao surgimento da comunicação global instântanea e ao transporte de massa (Giddens, 1996: 13; grifo meu)”. David Harvey (2005) também afirma que a passagem da década de 1960 para 1970 abrangeu a transição do modelo de produção fordista para a “acumulação flexível” (Harvey, 1989). 23 Partha Chatterjee defende a noção de que os nacionalismos “anticoloniais” existem muito antes do confronto político com os “impérios”: “Se a nação é uma comunidade imaginada, então é nesse ponto que ela nasce. Nesse, que é seu campo verdadeiro e essencial, a nação já é soberana, mesmo quando o Estado está nas mãos do poder central. Os textos convencionais, em que a história do nacionalismo começa a partir da disputa pelo poder político, perdem de vista a dinâmica desse projeto histórico” (Chatterjee, 2000:231).

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Santuza Naves (2004) afirma que os novos atores sociais e culturais das

periferias brasileiras conferiram novos significados a conceitos legados pelo

Iluminismo, particularmente os de “democracia” e “cidadania”, ao postularem

formas alternativas de inserção na sociedade.24 As novas práticas culturais –

especialmente as vinculadas ao rap – negariam a categoria “Estado-nação” para

pensar o país. Segundo a autora, ao aludirem discursiva e musicalmente à noção

de “comunidade”, estas novas sonoridades promoveriam

um deslocamento do conceito de “nação”, substituindo o espaço geográfico que corresponde às suas fronteiras por um outro, cujo limite obedece a um corte transversal no planeta marcado pela trajetória do negro (Naves, 2004: 40).

A autora sublinha a variedade de influências que os atuais músicos

brasileiros de rap possuem, dando margem a uma identidade musical que abrange

do sambista de “morro” Candeia ao cantor de hip-hop norte-americano Snoopy

Doggy Dog, passando por música africana, bossa-nova e canção pop. As

temáticas seriam mais dos lugares e periferias onde vivem os artistas do que

propriamente do país. A recorrência à noção de “comunidade” pelos rappers

possibilitaria a formação de “modernidades alternativas”, que conciliariam os

elementos locais de suas culturas com perspectivas universais. Assim, ao mesclar

a valorização de condições minoritárias – negro, morador de “comunidade” – com

informações da cultura globalizada, se relacionaria o “local” com o

“internacional”, e não mais a “nação” com o mundo (Naves, 2004), como foi o

caminho trilhado pela “MPB” consolidada no fim dos anos 60.

Marcelo Ridenti (2000) interpreta a compreensão das “camadas populares”

como “povo”, em meados dos anos 1960, a partir do conceito de romantismo

revolucionário. Ridenti lhe utiliza para pensar as questões do “engajamento”

naquela década, em que se buscava recuperar o homem do “povo, cuja essência

estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades

(Ridenti, 2000:25)”. Ao imaginar o “retrato do Brasil” através da música, a

primeira geração da “MPB” idealizou uma “autenticidade” inerente ao “povo”. A

hipótese de Marcos Napolitano (2001) é de que o tropicalismo, a partir de 67,

24 Em estudo sobre consumo e cidadania, Néstor Garcia Canclini (2005) conclui que a insatisfação com o “sentido jurídico-político” de cidadania levou à valorização de uma “cidadania cultural, e também de uma cidadania racial, outra de gênero, outra ecológica, e assim podemos continuar despedaçando a cidadania em uma multiplicidade infinita de reivindicações (Canclini, 2005:37)”.

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representou a transição de uma cultura política de base romântica – o nacional-

popular – para uma cultura de consumo, em que o “popular” abrangia o público –

considerado muitas vezes “cafona” – da indústria de massa no Brasil.

Néstor Garcia Canclini (2005) afirma que, desde meados dos anos 1990,

vivemos definitivamente a passagem da afirmação “épica” das identidades

populares e nacionais ao “reconhecimento dos conflitos e das negociações

transnacionais na constituição das identidades (Canclini, 2005:195)”. De acordo

com Canclini, “romantismo” e “nacionalismo” deixaram de ser bases ideológicas

da conceitualização sobre a nacionalidade. Estas se constituiriam mais nos

mercados econômicos e de bens simbólicos, construindo identidades pelo

consumo de bens privados e dos meios de comunicação de massa, ao invés de

serem configuradas por essências a-históricas:

As culturas nacionais pareciam sistemas razoáveis para preservar, dentro da homogeneidade industrial, certas diferenças e certo enraizamento territorial, que mais ou menos coincidiam com os espaços de produção e circulação de bens [...] Já não podemos considerar os membros de cada sociedade como elementos de uma única cultura homogênea, tendo portanto uma única identidade distinta e coerente. A transnacionalização da economia e dos símbolos tirou a verossemilhança desse modo de se legitimar a identidade (idem, p. 31 e 196).

José Antonio B. Fernandes Dias (2001) associa o processo de globalização à

destruição de identidades tradicionais e, simultaneamente, à criação de novas

diferenciações. O surgimento de redes e instituições “translocais”, segundo ele,

reformulou as concepções sobre as identidades nacionais, que deixaram de ser

pensadas através de uma suposta homogeneidade interna para serem vistas pelo

que se tem chamado multiculturalidade. Neste contexto de “interpenetração de

culturas, orlas, híbridos e fragmentos”, de acordo com Dias, os “antigos

‘primitivos’ isolados [da modernização capitalista] estão hoje localizados num

tempo e num espaço que é contemporâneo do nosso (Dias, 2001:115)”.

4.3. Músicas de “autor” num mundo globalizado

O trabalho de Chico Buarque não costuma ser associado às práticas

contemporâneas que marcam a “música popular brasileira” pela mistura de

sonoridades “regionais” – baião, coco, afoxé, maracatu, violada, etc. – com

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musicalidades de tendências “mundiais” – rock, pop, eletrônico, hip-hop. São

vários os artistas que propõem o ecletismo destes gêneros. Marcelo D2, por

exemplo, mescla freqüentemente “batidas” e formas de cantar ligadas ao rap e ao

hip-hop com harmonias de sambas antigos. No Prêmio Multishow de Música

Brasileira de 2006, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, apresentou-se ao lado

de Diogo Nogueira – cantor ligado ao samba, filho do compositor João Nogueira

– e do grupo de “pagode” Fundo de Quintal. Outra figura seria Caetano Veloso

que, sempre atento ao surgimento de novos conjuntos, participa, por exemplo, de

projetos musicais da ong Afro-Reggae, no Rio de Janeiro, e pelo menos desde o

LP Velô, de 1984, incorpora a forma rap, a exemplo de “Língua”, 11a faixa do

disco. No Cd Noites do Norte, de 2001, desenvolveu a estética hip-hop em “Zera a

reza”, música de abertura do disco.25

Em Carioca, contudo, observo o diálogo de Chico Buarque com alguns

desses gêneros musicais – especialmente o hip-hop, o “manguebeat” e a “música

eletrônica”. Privilegiando as maneiras pelas quais constantemente reconfiguram a

compreensão de “música popular brasileira”, lembro que estes ritmos surgiram

articulando-se com o mundo “globalizado. A “MPB”, em seu momento inicial nos

anos 1960, representou o nacionalismo contra “interesses estrangeiros”. Trata-se

agora de analisar o sentido que Chico Buarque lhe dá, relacionando a sua “música

brasileira” com segmentos marcados por “hibridismos” musicais.

Segundo Hermano Vianna (apud Naves, Coelho e Bacal, 2006), não

existiria nos dias de hoje um “acompanhamento crítico da música brasileira”

como na década de 1960. Por um lado, isto se explicaria pela quantidade de

fontes, discos lançados e sons misturados: quem conseguiria captar e apreender

tudo? Por outro, Vianna atribui esta falta à prática mecânica de “notinhas” na

imprensa que, impedindo a “sedimentação da informação”, também obstruiriam a

chegada de novos artistas à cena musical. De toda forma, haveria atualmente uma

re-significação dos termos “MPB”, “rock”, “pop”, etc., bem como uma nova idéia

de “canção”, de música “pronta”. 25 O 13o Prêmio Multishow de Música Brasileira, realizado em maio de 2006, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, foi um evento que consagrou a “diversidade” da “música brasileira”. A começar pelo próprio tema: “hip rock samba pop”, demonstrando o valor positivo que empregamos às “misturas”. A música Tropicália, de Caetano Veloso, foi interpretada pelo compositor ao lado de Zeca Pagodinho (representando o “pagode” e o “samba”), Andréas Kisser (guitarrista do Sepultura, banda de rock), Gabriel, o Pensador (rap, pop), Toni Garrido (pop, reggae) e Tico Santa Cruz (rock, pop).

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Através das mixagens e samplers, as combinações sonoras tornaram-se

praticamente infinitas. A “crise da canção”, sugerida por Chico Buarque (2004),

diz respeito ao desenvolvimento de novas formas de composição, produção e

execução, trazidas, por exemplo, pela chegada da música “eletrônica”, do rap e do

hip-hop. Para Luiz Tatit (2006), em posição claramente contrária a de Chico,

um dos equívocos dos nossos dias é justamente dizer que a canção tende a acabar porque vem perdendo terreno para o rap! Equivale dizer que ela perde terreno para si própria, pois nada é mais radical como canção do que uma fala explícita que neutraliza as oscilações “românticas” da melodia e conserva a entoação crua, sua matéria prima. A existência do rap e outros gêneros atuais só confirma a vitalidade da canção (Tatit, 2006:55).

Chico Buarque (2006) ressaltou seu ideal em produzir músicas “novas” em

Carioca:

Eu tenho impressão que não faço tudo sempre igual. São 12 músicas, 12 canções bem diferentes. Com tratamento orquestral diferente para cada uma. Cada uma é uma história à parte...26

“Ode aos ratos”, parceria de Chico com Edu Lobo, tem arranjo de violão,

guitarra, contrabaixo, piano, programação, percussões, flautas e rabeca. O ritmo é

o baião. O artista inova ao introduzir em um trecho da canção a forma rap de

cantar, lembrando uma embolada nordestina. Digo inovar porque o compositor

não costuma ser identificado com a atual estética da periferia que remete ao hip-

hop. Chico considera o rap a negação do formato musical que lhe é característico

– a canção –, pelo fato de nele a percussão prevalecer sobre a harmonia e a

melodia. Por isso, ao introduzir este novo elemento em sua composição, preferiu

aproximá-lo da embolada, pois, segundo ele, enquanto o rap se relacionaria à

música comercial, esta se remeteria a Jackson do Pandeiro e ao Nordeste,

enaltecendo a “melodia, [...] o ritmo dos fraseados, as rimas internas, as

aliterações” (Folha de São Paulo, 06/05/2006 e Trip, abril/2006).

A programação utilizada no arranjo é um recurso musical geralmente

aproveitado por artistas de “música eletrônica”. Tatiana Bacal (2003) identificou

nas práticas recentes de DJs, produtores e compositores brasileiros, a mistura de

26 Buarque, Chico. Entrevista à Revista Trip, abril de 2006. In: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html.

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sons eletrônicos com ritmos considerados “autenticamente” brasileiros, por

exemplo o samba e a bossa-nova. Tais procedimentos transformariam o sentido da

“música popular brasileira”, na medida em que valorizariam mais os sons e

timbres do que as letras. Polarização que Wisnik (1999) identificou entre “a

música que convida à ‘dança do intelecto’ e a música que se limita à ‘dança

hipnótica dos quadris’ (Wisnik, 1999:209)”. Além disso, a produção dos

compositores de “música eletrônica” contaria com as “facilidades” da

comunicação moderna, conectando-a com músicos de outras partes do mundo.

O uso dos samplers sobre canções de artistas já consagrados (como Chico

Buarque, Jorge Ben, Tom Jobim, entre outros) renovaria o ânimo da “MPB” para

as novas gerações. Entretanto, como percebe Bacal (2003), a “liquidificação da

música gera uma crise para a ‘função-autor’” (Bacal, 2003:68) do compositor

popular. A autora (2003) diferenciou o que seria a música eletrônica no Brasil e a

“música eletrônica brasileira”. A primeira se desenvolveria por um grupo atento

às referências americanas e européias, os “puristas” ou “universalistas”.

Representando a última corrente, os “brasileiristas” privilegiariam as misturas

com os sons considerados tipicamente “brasileiros”. Esta oposição torna-se

interessante para os objetivos deste trabalho por revelar uma inversão percebida

por Bacal: se nos anos 1960, quando foi “inventada” a sigla MPB, os artistas

buscavam nas manifestações “populares” os elementos “autênticos” da música

“brasileira”, nos dias atuais alguns músicos relacionariam o ideal de “pureza” à

música eletrônica mais internacionalista. Está-se discutindo, conforme sublinhou a

autora, a idéia de que algo autenticamente “novo” e “brasileiro” pudesse

eventualmente surgir.

A alusão ao Nordeste feita anteriormente sugere novas interpretações

daquelas produzidas pela corrente nacional-popular na música dos anos 1960, à

qual Chico é referido. Como vimos, o uso do material sonoro nordestino pela

primeira geração da MPB privilegiou a “autenticidade” inerente ao “povo”. Daí a

preferência pelo violão e elementos de percussão em vez do uso de instrumentos

elétricos, identificados à modernização capitalista. Em “Ode aos ratos”, chama a

atenção o uso das guitarras e das programações conciliado ao violão e à rabeca.

Esta nova forma de expressar musicalmente o Nordeste remete, por sua vez, ao

movimento manguebeat, formado no Recife nos anos 1990.

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Insatisfeitos com a produção pop brasileira, alguns músicos (Chico Science,

Fred Zero Quatro, Otto, Jorge Du Peixe, entre outros) aproveitaram o incremento

da internet no Brasil para atualizarem as informações da música pop internacional

(Calazans, 2006). Definido por seu caráter antropofágico à maneira de Oswald de

Andrade, a cena mangue produziu “encontros surpreendentes”, relacionando certa

tradição “local” com o cenário internacional de “música popular”, conectando

assim a criatividade do Recife com os circuitos mundiais. Rejane Calazans (2006)

atenta para o diálogo estabelecido pelos “mangueboys” com as mais diferentes

musicalidades, não se restringindo ao elemento local da cultura. Segundo a autora,

as práticas musicais contemporâneas articulam-se com a herança musical e os processos de mudança histórica que ocorrem na cultura musical internacional são absorvidos pelas práticas musicais da ‘cena’. Esses processos internacionais de mudança se configuram como uma base significativa na forma como as práticas musicais se manifestam no nível local da ‘cena’ [...] o local atua no interior da lógica da globalização. Dessa forma, mesmo sendo uma articulação local, o Mangue não está, de forma alguma, desconectado do global (Calazans, 2006:6 e 17).

Calazans atribui à “velocidade” do mundo contemporâneo as diversas

influências do manguebeat, identificando no caráter cosmopolita do movimento a

relação entre “mistura” e fragmentação. Penso que neste contexto, manguebeat e

hip-hop podem ser interpretados pelo vínculo estabelecido com manifestações

culturais pop e tradicionais. Bem como o tropicalismo, estas novas sonoridades

não buscariam critérios de “autenticidade” na compreensão das camadas

populares, mesclando influências “locais” com estéticas pop.27 Segundo a autora

(2006), no manguebeat a tradição não é petrificada, já que incorporada ao

cotidiano – procedimento que a alia à modernidade e legitima as misturas das

influências. Santuza Naves (2004) não identifica nas práticas de alguns rappers o

compromisso com a inovação constante, como o assumido pelas vanguardas

históricas, cujos protagonistas ela aproxima da figura do “engenheiro”,

contraposto por Claude Lévi-Strauss (1970) ao bricoleur. Os rappers tenderiam,

desta forma, – ao contrário do “engenheiro”, que visa a criação de uma forma a

27 Noto que alguns destes artistas negam, no entanto, a influência tropicalista. Recente matéria do jornal O Globo (06/08/2007) lembra, por exemplo, que Marcelo D2, comumente associado como suposto herdeiro do movimento, recusa a filiação, dizendo-se formado pelo “samba” e não pela “MPB” (referindo-se, entre outros, aos tropicalistas). Jorge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi, sustenta que o grupo nunca se baseou na Tropicália para mesclar rock, hip-hop e maracatu: “Desde o início, vêem a Nação como sendo uma espécie de conseqüência daquilo, mas nunca bebemos dessa fonte”. O Globo, Segundo Caderno, “Geléia Geral”, 06/08/2007. pp. 2.

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partir do nada – a desenvolver a atitude do bricoleur, ao adotarem o procedimento

de “recriar e atualizar estrategicamente determinadas tradições (Naves, 2004:

43)”. Naves observa que alguns estudos antropológicos associam o rapper à

imagem do bricoleur (Naves, 2004) – tal como foi pensada por Lévi-Strauss

(1970) –, associando o rap à colagem.28

Caetano Veloso, em entrevista para Jornal O Globo em 2006, considerou o

Cd Carioca “hermético”, identificando-o com a sonoridade de Guinga. Carlos

Althier de Souza Lemos Escobar, o Guinga, compositor e violonista, nasceu em

1950 num bairro do subúrbio do Rio de Janeiro. Seu último disco, Casa de Villa,

de 2007, é explícita homenagem a Heitor Villa-Lobos. Antonio Carlos Miguel, em

crítica publicada no mesmo jornal, qualificou o artista como o “último moicano da

MPB”. Seu disco foi descrito como um “caldeirão de referências” – de Garoto a

Baden Powell, de Igor Stravinski a Tom Jobim –, quebrando assim “qualquer

barreira entre músicas clássica e popular”.29 Atentei-me à sua concepção de uma

“obra original, cheia de novas soluções”, definição que remonta à compreensão de

“autor”, de alguém que está sempre criando algo “novo”. Embora Guinga

dialogue com certas tradições (Villa-Lobos, Pixinguinha, Radamès Gnatalli, Tom

Jobim), suas criações sempre seriam, segundo Antonio Carlos Miguel, “músicas

originais, plenas de novas idéias e bem arquitetadas soluções. Diversificado

ritmicamente, [o disco] inclui também samba, choro, jongo, valsa”.

Chico Buarque também orienta seu trabalho pelo critério da “nova

invenção”, que não se deixa determinar pela “velocidade” cotidiana. Para a revista

Trip (2006), o compositor comentou sua busca pela “originalidade”, que

demandaria seu próprio tempo:

Você já seguiu muitos caminhos e quer fazer o que não fez ainda. Você começa a desconfiar quando tudo parece fácil, tem de abrir o olho. Não é uma esterilidade, mas uma vontade de procurar um caminho novo, original e, portanto, mais difícil. Você

28 O bricoleur é caracterizado por Lévi-Strauss (1970) basicamente pelo fato de lidar com elementos fragmentados de obras já desenvolvidas, enquanto a figura do engenheiro demandaria a criação de matéria-prima e objetos específicos para realização do seu trabalho. 29 Lembro que José Miguel Wisnik (1999) considera que “nunca foi tão fluida a passagem entre músicas ‘eruditas’ e ‘populares’ [...] A faixa de onda dos mais diversos repertórios se contaminam e se interferem, levadas pela aceleração geral do trânsito das mercadorias e pelo traço polimorfo da sua base social e cultural: as músicas da Europa e da África se fundindo sobre as Américas. Esse processo bate e volta sobre o conjunto através de misturas intuitivas e desenvolvimentos reflexivos. Processos elementares são convertidos em processos de alta densidade que são convertidos em processos elementares (Wisnik, 1999:210)”.

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sempre pode descobrir coisas novas. Depois há um trabalho de depuramento que você começa a curtir mesmo [...] Então cada canção leva um bocado de tempo para nascer, outro tanto para terminar e outro para burilar e chegar à forma final.30

A busca desses dois compositores por obras “novas” os diferencia de

artistas ligados ao rap e ao manguebeat, cujas práticas musicais se relacionam à

fragmentação da “velocidade” do mundo moderno e à figura do bricoleur. A

maneira como Chico trabalha sua obra nos leva a pensar na figura do “autor” que,

desenvolvido no mundo moderno (e ocidental, como afirmam os analistas do

assunto), teria como encargo a criação de obras “originais” (Lévi-Strauss, 1970).

Seu disco foi descrito por críticos e músicos como “estranho” e “hermético”. Mas,

pelo que indicam os números da turnê, o público não se afastou, lotando todas

suas apresentações no Brasil e no exterior. Aliando popularidade e “sofisticação”

musical numa época em que prevalecem reciclagens de materiais sonoros já

existentes, sua obra mais recente ainda nos permite vislumbrar os papéis

desempenhados pelas “camadas populares” na construção de suas identidades:

não seguindo uma lógica de comentário do país, optam por relacionar suas

“comunidades” – e não a “nação” – com o mundo.

O cenário cultural contemporâneo abarca vozes periféricas que antes não se

ouviam. Estes novos segmentos geralmente não privilegiam a acuidade formal,

que nos anos 60 orientou o trabalho de vários artistas de “MPB”. Adotam, ao

contrário, o procedimento de “recriação” ou “colagem” de matérias já existentes.

Além desta, outra diferença fundamental entre as novas musicalidades aqui

mencionadas e a “música popular” dos anos 60 no Brasil tanto está no lugar de

onde partem os discursos – não mais centralizados em torno de artistas

“nacionais”, representantes de uma intelligentsia –, quanto em seus conteúdos,

sem privilegiar mais a discussão da “nação brasileira”.

30 BUARQUE, Chico. Entrevista à Revista Trip, abril de 2006. In: http://chicobuarque.uol.com.br/texto/index.html.

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5 Considerações Finais

O que precisamos, ao que parece, não é de idéias grandiosas nem do abandono completo das idéias sintetizadoras. Precisamos é de modos de pensar que sejam receptivos às particularidades, às individualidades, às estranhezas, descontinuidades, contrastes e singularidades, receptivos ao que Charles Taylor chamou de ‘diversidade profunda’, uma pluralidade de maneiras de fazer parte e de ser, e que possam extrair deles – dela – um sentimento de vinculação, de uma vinculação que não é abrangente nem uniforme, primordial nem imutável, mas que, apesar disso, é real [...] É que existem quase tantas maneiras de reunir essas identidades, fugazes ou duradouras, abrangentes ou íntimas, cosmopolitas ou fechadas, amistosas ou sanguinárias, quantos são os materiais com que uni-las e as razões para fazê-lo.

Clifford Geertz, 2001.

Comparei a “MPB” que surgiu e se consolidou como categoria musical em

meados dos anos 1960 com a música “popular” feita atualmente nas periferias do

Brasil, dando ênfase à sua assimilação por Chico Buarque. Nesta última parte, ao

invés de tecer “conclusões” da análise das relações entre música “popular”,

“nação” e “camadas populares” nesses dois momentos da “MPB”, preferi

relembrar as principais características que as definiram. Depois dialogo com

outras concepções contemporâneas sobre os “países” e suas camadas subalternas.

Inicialmente foi imprescindível ressaltar que a “invenção” da MPB em

meados dos anos 60 ocorreu num ambiente cultural marcado pelo projeto

nacional-popular. A oposição aos motivos estrangeiros na “música popular

brasileira” demonstrou-se na preferência dos artistas que integravam parte da elite

intelectual brasileira pelo desenvolvimento de ritmos do “povo”, sobretudo

“nordestinos” e dos morros cariocas. O apuro formal das composições distinguia a

MPB de outros segmentos musicais, como, por exemplo, o “iê-iê-iê”, ritmo da

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Jovem Guarda. A corrente nacional-popular a caracterizava pela “banalidade”

com que combinava melodia, harmonia e letra (Napolitano, 2001). Além disso, o

“engajamento nacionalista” de muitos artistas da MPB se diferenciava da postura

“comercial” dos músicos da Jovem Guarda: se os primeiros, através da elaboração

do “populário” e de tema sociais, propunham um “comentário” do “Brasil”, os

últimos lidavam com a recriação da produção pop americana e européia, não se

baseando nos elementos “populares” do Brasil.

A acepção de “popular” deste primeiro momento mencionava uma

idealização de “povo autêntico”, ainda não incorporado totalmente pela

modernização capitalista. Neste sentido, artistas e intelectuais se lançaram como

representantes dos interesses das “camadas populares”, visando à educação e à

conscientização do “povo”, para torná-lo livre da dominação “estrangeira”. Os

músicos tropicalistas, a partir de 67, se dirigiram diretamente aos públicos da

comunicação de massa, tomando rumos bem distintos aos trilhados por artistas na

primeira “fase” da MPB. Esses músicos não se representavam como enviados da

“esquerda” nacional para salvar o “povo” e faziam uma junção do rock e do pop

com ritmos “tradicionais” de algumas regiões do Brasil, como o samba e o baião.

Inovaram com o timbre das guitarras elétricas nos arranjos de “música popular

brasileira”, solucionando de certa forma o impasse vivido entre a MPB e a Jovem

Guarda desde 65. Ao invés da procura por uma “totalidade brasileira”, suas

canções expressaram um país integrado com o mundo, mudando o significado

original da categoria “MPB”.

Observei que a “música popular brasileira” atualmente inventada nas

periferias das grandes cidades se configura por uma prevalência dos discursos das

“comunidades” sobre possíveis comentários da “nação”. Carioca, de Chico

Buarque, acompanhou este processo, sendo definitivamente, segundo o próprio

autor, o disco mais “carioca” que já compôs. Não apenas pela “linguagem

musical”, como ele mesmo realçara, mas pelas temáticas desenvolvidas. A

primeira faixa, “Subúrbio”, por exemplo, alude aos diversos segmentos e ritmos

musicais das “camadas populares”: “funk”, “pagode”, “rap”, “hip-hop”.

Diferentemente dos anos 60, quando Chico Buarque surgiu no cenário

musical, identificado às questões do “povo” (e este era super-representado pela

intelligentsia (Ridenti, 2000)), atualmente, numa concepção “ativa” de

participação, as próprias “camadas populares” defendem seus interesses. Foi

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importante lidar com o exemplo deste compositor para discutir as rupturas

empreendidas por artistas de novas musicalidades, ligadas às “periferias”, que

descartam a mediação de nomes “nacionais” da MPB para se fazerem escutar.

Prestei a atenção à recepção da crítica musical ao seu Cd, visto como “hermético”

e “experimental”, afastado do gosto “popular”. Este suposto distanciamento entre

Chico e o “povo” me possibilitou ainda discutir novas representações sociais das

“camadas populares”, num processo assinalado pelo declínio da atuação da

intelligentsia nos rumos da “pátria” e pela dificuldade em se definir quem é,

afinal, “povo” no Brasil. Dizer que seriam simplesmente os “pobres” e

“excluídos” da modernização econômica não é mais suficiente, já que a noção de

cidadania, como interpretou Canclini (2005), se encontra intimamente vinculada

ao consumo de bens culturais, nacionais e transnacionais.

Entre uma geração e outra, concretizou-se nos estudos culturais o paradigma

da “pós-modernidade” como o tempo da implosão das principais características

pelas quais se pensava e vivia desde, pelo menos, o fim da Segunda Grande

Guerra. Fala-se, geralmente, do estreitamento da relação tempo-espaço, do fim

das “meta-narrativas” e das grandes “histórias” revolucionárias. Muito já se

debateu, neste sentido, sobre o fim dos “ismos”, da “utopia” e da dicotomia

estruturante entre “esquerda” e “direita”.1

Privilegiou-se cada vez mais, de 60 para cá, a alteridade dos diversos grupos

e atores sociais, levando à idéia, segundo Harvey (1989), “de que todos os grupos

têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria voz, e de ter aceita essa voz

como autêntica e legítima (Harvey, 1989, p. 52)”. Lembro mais uma vez Octavio

Paz (1984), para quem esses seriam movimentos de expressão das singularidades

oprimidas e postas em segundo plano durante o período de expansão do Ocidente.

Então, particularidades de todo tipo – étnicas, sexuais, raciais, etc – vieram à tona

na segunda metade do século XX, clamando pelo reconhecimento imediato de

suas realidades (Paz, 1984).

A recente globalização econômica, os avanços tecnológicos e a aproximação

de múltiplos “universos sociais” deram à luz, segundo Suely Rolnik (2000), a

1 Segundo Clifford Geertz (2001), no “pós-modernismo”, “a busca de padrões abrangentes deve ser simplesmente abandonada, como um resto da busca antiquada do eterno, do real, do essencial e do absoluto. Não existem, segundo se afirma, narrativas mestras sobre a ‘identidade’, a ‘tradição’, a ‘cultura’ ou qualquer outra coisa. Há apenas acontecimentos, pessoas e fórmulas passageiras, e, mesmo assim, incoerentes” (Geertz, 2001, p. 194).

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“novas maneiras de viver [...] em incontáveis os mundos possíveis”, contribuindo

para o enfraquecimento de subjetividades fixas e estáveis, expressas na referência

identitária. A palavra de ordem parece ser o surgimento de identidades

globalizadas flexíveis, extraídas de kits de perfis-padrão, produzidos por

subjetividades cuja experiência extrapola os limites geográficos da “cultura” e da

“nação” (Rolnik, 2000).

As transformações nas maneiras de pensarmos a identidade e a “nação”,

sugeridas pela “pós-modernidade”, foram paralelas ao esgarçamento da idéia de

“MPB” enquanto categoria musical, expressão do “povo” do “país”. Mas, se

desde a década de 80 esta perdeu a centralidade que ocupava no mercado

fonográfico brasileiro, não deixa ainda, conforme observamos no último capítulo,

de suscitar instigantes discussões no meio musical e acadêmico.2 As principais, a

meu ver, dizem respeito às suas possibilidades atuais de expressar, através das

canções, uma “nação” e um “povo” brasileiros. Ainda mais se considerarmos que

a sigla recentemente passou a representar, de acordo, por exemplo, com Jaldes

Reis de Meneses,

[...] uma espécie de vasta zona de fronteira mutante, incorporadora das mais díspares origens e influências (inclusive estrangeiras), uma amálgama de ritmos, sons, atitudes e referências poético-literárias cujo chão social significa a presença de um público repleto de afinidades eletivas (Meneses, 2007).

Em “O Cosmopolitismo do pobre”, Silviano Santiago (2004) alude à

“instável e pós-moderna aldeia global”, movida pelos círculos econômicos do

mundo globalizado, e distingue dois tipos de pobreza: uma anterior à Revolução

Industrial, em que predominava uma representação romântica do “autóctone”,

adverso à modernização (basicamente o “camponês” isolado); e outro, surgido

logo após, caracterizado por sua inserção “desigual” na sociedade capitalista.

Desde então se intensificariam as migrações de trabalhadores entre os países.

Segundo Santiago, esta modalidade do capital transnacional junto às nações

periféricas levou a uma forma de desigualdade social inédita, que

2 Antonio Carlos Miguel, em artigo para O Globo, em 2006, observou que a “indústria do disco” no Brasil, em meio à crise promovida por novas formas de produção e execução musical, continua investindo no relançamento de obras antigas de artistas da “MPB”: “[...] os velhos catálogos da música brasileira têm sido uma fonte inesgotável. E a sigla MPB – que, num sentido mais restrito, se aplica à geração pósbossa-novista, surgida nos grandes festivais dos anos 60 – ainda é moeda forte no mercado”. In: “MPB, a revanche”. O Globo, Segundo Caderno, 27/08/2006: 1.

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[...] não pode ser compreendida no âmbito legal de um único estado-nação, nem pelas relações oficiais entre governos nacionais, já que a razão econômica que convoca os novos pobres para a metrópole pós-moderna é transnacional e, na maioria dos casos, também é clandestina. O fluxo dos seus novos habitantes é determinado em grande parte pela necessidade de recrutar os desprivilegiados do mundo que estejam dispostos a fazer os chamados serviços do lar e de limpeza e aceitem transgredir as leis nacionais estabelecidas pelos serviços de migração (Santiago, 2004, p. 51).

De acordo com ele, movidas por nossa ideologia da cordialidade,

amplamente discutida nos anos 30, as diferenças entre os diversos “povos”

formadores do “Brasil” moldaram uma cultura nacional “original”. Referindo-se à

noção andersoniana das nações como “comunidades imaginadas”, Santiago nos

lembra que a idéia de “comunidade” nacional, tal como apresentada por Benedict

Anderson (2000) e formulada no caso brasileiro, reforça um ideal em que as

diferenças e desigualdades se amenizam, em prol de um “companheirismo

profundo e horizontal”:

As diferenças étnicas, linguísticas, religiosas e econômicas, raízes de conflitos intestinos ou de possíveis conflitos no futuro, foram escamoteadas a favor de um todo nacional íntegro, patriarcal e fraterno, republicano e disciplinado, aparentemente coeso e, às vezes, democrático [...] A construção do Estado pelas regras desse multiculturalismo teve como visada prioritária o engrandecimento do estado-nação pela perda da memória individual do marginalizado e em favor da artificialidade da memória coletiva (Santiago, 2004, p. 58).

A economia transnacional e a fonte multirracial de países periféricos e

hegemônicos, seguindo Santiago, fizeram com que os “estados-nações” se

tornassem co-extensivos com o resto da humanidade, num processo em que sua

soberania, referente à “leis e modelos civilizacionais”, foi duramente posta à

prova. Deflagrando a ineficiência das políticas públicas e as injustiças

“históricas”, a crítica dos “marginalizados” contemporâneos se construiria menos

nas instâncias da política oficial dos governos e mais no diálogo entre culturas

afins, “que se desconheciam mutuamente até os dias de hoje”. Ao perder a

condição utópica de “nação” – sustentada secularmente pelas elites –, formula-se

uma “reconfiguração cosmopolita” do país, abrangendo tanto novos habitantes

quanto os “excluídos” pelo processo histórico. De acordo com Santiago, a “cultura

nacional” assume novo feitio, levando os atores culturais “pobres” a se exprimir

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por uma “atitude cosmopolita”, “até então inédita em termos de grupos carentes e

marginalizados” (idem, p. 60).

O autor apresenta alguns exemplos desta nova “configuração cosmopolita”

dos “pobres” e “excluídos”. Ele chama a atenção para o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que luta “pela permanência do camponês

num mundo motorizado e tecnocrático que os exclui (idem, p. 50)”, através de um

caráter internacionalista de ação, como prova a página do grupo na internet

(www.mst.org.br), disponível, além do português, em várias línguas estrangeiras.

Conforme discutidas no capítulo anterior, as novas modalidades de música

“popular”, expressas no rap e no manguebeat, seriam também bons modelos de

“cosmopolitismo do pobre”.

Marcelo D2 e Chico Science, por exemplo, recorreram às influências

estéticas do mercado pop mundial, mesclando-as com temáticas e ingredientes

sonoros “locais”, integrando-se, pela internet e pelo contato direto, a redes de

compositores de outras “periferias” do planeta. A “atitude cosmopolita” destes

novos atores sociais “pobres”, a meu ver, empregaria à “cultura nacional” caráter

bastante distinto ao que possuía em meados dos anos 60. Naquela época, a linha

nacionalista, unindo vários setores artísticos, levou compositores de “música

popular brasileira” (quase todos de classe média) a se integrar com a música

“tradicional” e com o “folclore”, visando a uma “cultura popular brasileira” (Lins

e Barros, 1965).

Clifford Geertz (2001) sugere que a queda do Muro de Berlim, em 89, pôs

também a baixo “um mundo de potências compactas e blocos antagônicos”,

instaurando um modelo muito mais pluralista de relações entre os vários povos do

mundo. O fim das “polarizações” – com o “relaxamento da rigidez ideológica e

das escolhas forçadas de um mundo bipolar” – trouxe consigo, de acordo com

Geertz, um estado geral de “incerteza”, não produzindo a sensação de uma “nova

ordem mundial”, mas, justamente, o sentimento de “dispersão, particularidade,

complexidade e estranhamento (Geertz, 2001, p. 192)”.

Neste contexto, as “nações” deixariam, segundo Geertz, de ser entendidas

como “unidades de espírito e valor”, a serem contrastadas com outras supostas

unidades. Ao contrário, se compreenderiam como conglomerados de “diferenças

profundas, radicais e resistentes aos resumos” (idem, p. 196): “[...] o que de fato

nos confronta é um mundo de dessemelhanças compactadas de maneiras diversas,

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e não de Estados nacionais inteiriços, reunidos em blocos e superblocos [...]”

(idem, p. 198). No cenário atual, longe de convergir para um modelo único, os

países passariam a se ordenar de maneira inédita, ou melhor, deixariam de seguir

basicamente a “dinâmica da construção ocidental das nações” (idem, p. 202).

Perguntando-se o “que é um país, se não é uma nação?”, Geertz indaga sobre as

possibilidades atuais de construção de identidades coletivas “nacionais”. Afinal,

teria se desencadeado nos últimos decênios um processo de “desmontagem” dos

grandes conceitos totalizantes e integradores que, dentre outros propósitos,

usávamos para pensar a “nação”. Tanto no caso brasileiro, russo ou canadense (a

lista poderia prosseguir), essa deixou de se apresentar um “todo coeso”, passando

a compreender

[...] um encontro multifacetado de “diversidades profundas”, que se desenrola num

território imenso, insuficientemente conhecido, imperfeitamente concebido, não uniformemente ocupado e desigualmente dotado de recursos (idem, p. 208).

Vimos que a “música popular brasileira feita em meados dos anos 1960”,

por Chico Buarque, Edu Lobo e Geraldo Vandré, por exemplo, buscou realizar um

“recorte” da “nação” através da canção. O “Brasil” foi imaginado minimamente

como uma totalidade, onde as diferenças musicais (e étnicas) de diversas

localidades integravam algo maior: a “música (e a cultura) brasileira”, logo

expressa como “MPB”. Atualmente o termo “música brasileira” tem conotação

bem mais abrangente, permitindo que a música feita no Brasil incorpore recursos

e linguagens estrangeiras. Além disso, ao invés de expressão musical do “país”,

parecem predominar na produção mais recente, como atentei no último capítulo,

os nexos dos vários discursos “locais” com o “Brasil” e o mundo.3

Eventualmente surgem canções de “música popular brasileira” que ainda

tomam a “nação” como mote. “O herói”, do último Cd de Caetano Veloso, Cê

(2006), por exemplo, é interpretada na primeira pessoa do singular por um suposto

morador de “comunidade”, que “sempre quis tudo o que desmente esse país

encardido”. Diferentemente da criação mais recente de Chico Buarque, em que

predomina o asseio formal sobre ritmos de samba e bossa nova, o trabalho do

compositor baiano foi quase inteiramente composto em base de rock.

3 Não se pode deixar de notar os nomes de alguns grupos de manguebeat e hip-hop, como, por exemplo, a “Nação Zumbi” e a “Nação Maré”, que sugerem noções de “brasilidade” bastante diferentes das que propunham as canções da “MPB dos anos 60”.

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No samba “Subúrbio”, Chico Buarque comentou as novas sonoridades

“populares” do Rio de Janeiro, denunciando a situação marginalizada em que se

encontram as populações “periféricas” da cidade. Conforme propus, prevaleceu a

postura de quem se designa um artista “brasileiro”, constituído no “canône” da

música “popular” convencionada como MPB, homenageando, à distância, as

“camadas populares”. Caetano Veloso, desenvolvendo a maneira rap de cantar,

aludindo ao hip-hop, alinhou-se, por sua vez, ao discurso de alguns artistas

moradores de favelas que descartariam o suporte de uma identidade “brasileira”,

baseada, por exemplo, no encontro mais ou menos “harmonioso” das três “raças”.

Surge uma acepção que nega o ideal da “mestiçagem” como proposta para o país,

sugerindo, por outro lado, “a separação nítida entre as raças”.

Hermano Vianna (2004) lembra que nas discussões do início do século

passado sobre a imigração no Brasil, a tendência à valorização da miscigenação

demonstrou-se em clara opção pela “unidade da pátria” e pela homogeneização.

Um de seus maiores entusiastas, Gilberto Freyre, defendia que a “cultura

brasileira”, fruto da mestiçagem, deveria se preservar, nos singularizando

enquanto “nação”. Finalmente, chamo a atenção, na letra de Caetano, para a

inversão do lugar social do “homem cordial” (Holanda, 1995), não desempenhado

mais pelo “mulato” – típico “brasileiro” –, mas pela “identidade disruptiva do

negro” (Salles, 2002). Constituiria-se, assim, uma visão do país em que a “mistura

final” deixa de ser fonte de orgulho nacional. Chega a se afastar também de certa

concepção modernista – como a de Oswald de Andrade, por exemplo, para quem

possuíamos uma “formação étnica rica” – segundo a qual nada seria “puro” entre

nós, “tudo estaria misturado, começando a ser outra coisa a todo momento”

(Vianna, op. cit., p. 105):

Nasci num lugar que virou favela/ Cresci num lugar que já era/ Mas cresci à vera/

Fiquei gigante, valente, inteligente/ Por um triz não sou bandido/ Sempre quis tudo o que desmente esse país encardido/ Descobri cedo que o caminho/ Não era subir num pódio mundial/ E virar um rico olímpico e sozinho/ Mas fomentar aqui o ódio racial/ A separação nítida entre as raças/ Um olho na bíblia, outro na pistola/ Encher os corações e encher as praças/ Com meu guevara e minha coca-cola/ Não quero jogar bola pra esses ratos/ Já fui mulato, eu sou uma legião de ex-mulatos/ Quero ser negro 100%/ Americano, sul-africano, tudo menos o santo/ Que a brisa do brasil beija e balança/ E no entanto, durante a dança/ Depois do fim do medo e da esperança/ Depois de arrebanhar o marginal, a puta/ O evangélico e o policial/ Vi que o meu desenho de mim/ É tal e qual/ O personagem pra quem eu cria que sempre/ Olharia com desdém total/ Mas não é assim comigo/ É como em plena glória espiritual que digo:/ Eu sou o homem cordial/ Que vim

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para instaurar a democracia racial/ Eu sou o homem cordial/ Que vim para afirmar a democracia racial/ Eu sou o herói/ Só deus e eu sabemos como dói.

O contraponto entre essas músicas de Chico Buarque e Caetano Veloso,

além de distinguir, mais uma vez, a relação de cada um deles com o imaginário

“nacional” e das “camadas populares”, também nos permite afirmar que a

expressão “música popular brasileira”, entendida como “MPB”, ainda configura,

para o espanto de muitos, significados diversos. Ambos os compositores parecem

concordar que a “canção brasileira” passa por transformações eminentes – mesmo

Caetano Veloso se pronunciou a respeito, dizendo que a forma canção pode vir a

se abater, pois já existiriam “muitas canções no mundo” (apud Meneses). Diante

da perda do referencial identitário “nacional” – culminado pelo desgaste da idéia

de “Estado-nação” – e da nova “configuração cosmopolita” das camadas

subalternas, nos vemos hoje rodeados por inúmeras possibilidades de criar e fruir

“música popular brasileira”.

O cenário atual é marcado pela pluralidade de vozes, hegemônicas ou

periféricas. Grupos de artistas com diferentes propostas musicais se integram com

muito mais freqüência do que nos anos 60, quando se “inventou” a MPB. Naquele

tempo, a lógica de conceitos “totalizantes” e “integradores” que regiam o

entendimento do mundo se refletiu na oposição criada entre muitos gêneros e

segmentos do mercado fonográfico. No Brasil contemporâneo cada vez mais se

misturam ritmos de variadas “origens”, num processo de permanente reinvenção

das categorias musicais.

Quais diferentes sentidos poderíamos apreender das relações entre música

“popular” e nacionalidade, ou entre novas idealizações das “camadas populares” e

da “nação”, por exemplo, a partir de uma roda de samba com Arlindo Cruz

(compositor de sambas), MC Marcinho (compositor de “funk”), Leandro

Sapucahy (ligado ao samba e aos sons eletrônicos) e DJ Tubarão? De um show

em conjunto de Lenine e Marcelo D2? Ou de uma composição de Paulinho da

Viola e Arnaldo Antunes? Há de se ficar atento ao significado das fusões e

observar se existe, sob o enorme conjunto de relações transculturais que, afinal, as

fundamentam, qualquer projeto atual de “nacionalização” na música “popular”.

Será que se poderia vislumbrar ainda uma unidade estética e musical da “nação”?

E em que medida esta se produziria pelos modos de interação entre artistas

“brasileiros” e o imaginário das “camadas populares”?

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