Texto 1 - LEVINE, D Visoes Da Tradicao Socioologica - A Tradicao Americana

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Tradução: ÁLVARO CABRA L Donald N. Levine ; VISÕES DA TRADIÇÃO SOCIOLÓGICA Consultaria: RENATO LESSA Professor e diretor-executivo, Juperj Professor-titular de ciência política, UFF Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

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Tradução:ÁLVARO CABRA L

Donald N. Levine

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VISÕES DATRADIÇÃO SOCIOLÓGICA

Consultaria:RENATO LESSA

Professor e diretor-executivo, JuperjProfessor-titular de ciência política, UFF

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

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6. Como Juan Linz observou, Michels parece não ter percebido que faz diferença se os líderessão desalojados por eleições, nas quais a maioria decide quem liderará, ou por morte ou revoluçãoviolenta (1968, 267).

7. Apenas com um leve toque de timidez, um jovem scho/ar italiano compôs recentemente umaoriginal interpretação da história da sociologia italiana que a representa na forma de ciclos culturais,"à maneira de Vico - como correntes e contracorrentes sociológicas (corsi e ricorsi sociologici)"(Burgalassi, 1990,2, 19).

8. Posteriormente, Gramsci chegaria até a equiparar seu papel histórico ao de Kant, No final doséculo XIX, o idealismo alemão exerceu mais influência sobre a teoria social na Itália do que, talvez,em qualquer outro país. A fronteira entre idéias hegelianas e marxistas era facilmente cruzada. Ohomem que foi chamado ° primeiro marxista na Itália, Antonio Labriola, amadureceu sob a égideda escola hegeliana em Nápoles, antes de aderir à filosofia marxista em Roma. Exerceu aí muitainfluência sobre o jovem Benedetto Croce que, por sua vez, repudiou subseqüentemente o marxismopara tornar-se um neo-hegeliano. Através de Croce e de seu contemporâneo Giovanni Gentile, cujafilosofia de "idealismo real" deu particular ênfase à ação subjetiva e forneceu mais tarde suporteintelectual ao fascismo italiano, as idéias hegelianas passaram a dominar grande parte da vidaintelectual italiana.

9. Croce e Gramsci foram chamados, por vezes, o Hegel e o Marx da filosofia italiana.10. Para análises adicionais de influências italianizadas sobre Gramsci, ver Garin, 1958, e Nairn,

1982.

..,

CAPÍTULO 12

A Tradição Americana

Talvez a característica mais notável da tradição sociológica americana seja seu caráterdecididamente empírico. Esse aspecto pode ser percebido desde cedo. Considere-seque bases para a criação da ciência social surgiram na Europa Ocidental por volta de1790, um século antes da fecunda década de 1890 que produziu as obras decisivas dasociologia moderna. A Inglaterra viu obras de Bentham e Malthus que prepararam oterreno para as sociologias utilitarista e darwiniana, e a Escócia osPrincípios de morale ciência política de Adam Ferguson, com freqüência denominado o pai da modernasociologia sistemática. A França testemunhou as formulações decisivas de Condorcet,Bonald e Maistre, as quais inspiraram as grandes sínteses de Saint-Simon e Comte. AAlemanha presenciou a publicação da Crítica da razão prática, de Kant, e dasReflexões, de Herder, as obras seminais que serviram de esteio para as tradiçõesidealistas alemãs de ciência social. Em contraste, o mais notável acontecimentocomparável nos Estados Unidos nessa época foi o censo nacional de 1790, consideradoo primeiro recenseamento periódico no mundo.'

Reconhecer seu molde empírico não é dizer que a sociologia americana não foiimpulsionada por preocupações éticas. Se existe alguma diferença, será para assinalarque os primeiros sociólogos americanos manifestaram suas preocupações morais deum modo mais patente do que ninguém, em sua proverbial e vigorosa espontaneidade.Essas preocupações morais seguiram duas direções. Uma resultou do secularizadoUnitarismo de Emerson e dos transcendentalistas da Nova Inglaterra que, rebelando-secontra a ganância dos líderes políticos e empresariais da América, denunciaram aescravatura, o expansionismo imperialista e a mediocridade cultural. A outra direçãoteve origem em compromissos religiosos protestantes através do que foi chamado oEvangelho Social- o movimento de puritanismo reconstituído do final do século XIXque promoveu boas obras por meio da investigação detalhada dos grandes malessociais. A década de 1890- a década formativa para a sociologia nos Estados Unidos,como em outros países - presenciou uma explosão de tais males, fruto dos efeitoscombinados da imigração em massa, rápida urbanização e exploração industrial.Orientações tanto religiosas como seculares alimentaram um veemente envolvimentocom esses problemas. Inspiraram o movimento de denúncia social, semelhante ao

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jornalismo muckraking de denúncia de corrupção política e administrativa, que tipi-camente promoveu a reforma social através da compilação de correlações estatísticasde doença, pobreza e condições hahitacionais. Assim, os que desejaram mobilizar aciência social emergente para as lutas morais concordavam em caracterizar a ciênciacomo indução a partir de fatos observados.

Em virtude da aparência ateórica da sociologia americana, pareceu a autores daestirpe de Sorokin e Parsons, desejosos de promover "o retorno da teoria", quedeveriam voltar suas vistas para a Europa e aí procurar as espécies de produçõesintelectuais que dariam plena respeitabilidade à disciplina nos Estados Unidos.é Nãoobstante, a sociologia americana estava impregnada de teoria desde os seus primórdios(Hinkle, 1980) e certamente não é verdade que a busca por uma ética secular racionalque estimulou os fundamentos teóricos de sociólogos europeus não tinha uma contra-parte americana. O movimento pragmatista desempenhou esse papel com grandebrilho.

DE KANT A PEIRCE

Durante as décadas em que scholars criativos começaram a aparecer nos EstadosUnidos, a Alemanha forneceu-lhes seu campo de treinamento. As universidadesalemãs atraíram cerca de nove mil americanos entre 1815 e o início da I GuerraMundial, sobretudo nas últimas décadas do século XIX. Eminentes filósofos morais esociólogos lá estudaram, incluindo William James, Josiah Royce, George HerbertMead, James Hayden Tufts, Albion Small, William Graham Sumner, W.I. Thomas eRobert Park. A filosofia social americana ganhou forma, em grande parte, em resposta àestimulação propiciada pelos ensinamentos da tradição alemã. Entretanto, assim comoJohn Stuart Mil! adotou o positivismo comtiano somente para converter sua abordagemsociológica em uma forma de individualismo metodológico, também os teóricos ameri-canos transformaram o idealismo alemão em doutrinas que exibiam o cunho de seuspróprios e distintos traços culturais - e assim produziram o que muitos acolheriam comouma filosofia aceita "quase como a nossa religião americana" (Coughlan, 1973, 161).

Charies Sanders Peirce (1839-1914) tem sido freqüentemente descrito como umgênio e a figura originária da filosofia americana.é O enfoque filosófico de Peirce eramais epistemológico do que ético; no entanto, sua obra derivou de fortes interesseséticos e contém profundas implicações éticas. A tradição que adotou o nome por eleinventado contribuiu muito para articular uma ética social e uma patente intelectualpara a ciência social americana. Embora Peirce não tivesse estudado na Alemanha, seuponto de partida foi a filosofia de Kant - em particular, a caracterização de Kant dosujeito cognitivo." Ao rejeitar a noção cartesianade que a mente pode adquirir algumaintuição não-rnediata de verdade, Peirce seguiu Kant ao sustentar que a verdade denoções gerais sobre todo e qualquer conhecimento somente pode ser possível emvirtude do conhecimento estar na dependência da lógica. Mas para Peirce, em contrastecom Kant, a lógica desenvolve-se e, portanto, o mesmo deve ocorrer com qualquerfilosofia baseada nela. Na medida em que Peirce avançou para realizar novas desco-bertas em lógica, sua filosofia geral evoluiu de acordo.

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Ao mesmo tempo, Peirce ia assinalando sua intenção de oferecer uma contribuiçãogenuinamente americana para a filosofia. Nos Estados Unidos, ironizou ele em 1866,a filosofia não podia mostrar mais do que meia dúzia de rudimentares produtoscaseiros, em comparação com as refinadas marcas importadas da Alemanha, Escócia,Inglaterra e França. Esperava que seu país pudesse algum dia ocupar o lugar que lhecabia perante o mundo no domínio da criação filosófica. Era mais do que tempo de "otalento e a inventiva ianques" perceberem o potencial de "um povo tão sagaz quantoqualquer outro sob o sol e que promete eclipsar todas as nações desde os gregos emseu gênio para os estudos abstratos" (1982, 1:456-8, 358). Três décadas mais tarde,Peirce declarou ser sua ambição "erguer um edifício filosófico que sobreviva àsvicissitudes do tempo", criar nada menos do que "uma teoria tão abrangente que, porum largo tempo vindouro, todo o trabalho da razão humana, em filosofia de todas asescolas e gêneros, em matemática, em psicologia, na ciência física, em sociologia ...parecerá estar apenas preenchendo detalhes" ([1898] 1931-58, 1:1).

Embora as concepções filosóficas de Peirce mudassem com o transcorrer dos anos,os seus diferentes sistemas tratam de problemas semelhantes e adotam pontos de vistafundamentalmente similares. Em dois artigos seminais - "A fixação das crenças" e"Como tornar claras as nossas idéias" - publicados originalmente na Popular ScienceMonitor em 1877-8 e na França na Revue Philosophique no ano seguinte, Peirceapresentou dois princípios básicos de sua doutrina em desenvolvimento. O primeirointerpretou as crenças como hábitos usados para satisfazer carências e necessidades,e a dúvida como uma ruptura de hábitos - um desagradável estado de não saber oque fazer. O segundo princípio era que o significado de um conceito reside inteiramentenos efeitos práticos que poderiam resultar de se sustentar o conceito. Isso permite queconceitos sejam traduzíveis em resultados observáveis sob condições de teste; assim, osignificado de "água em ebulição" é que a temperatura da água registrará por volta de 100°em um termômetro centígrado. Com essas fórmulas, Peirce expressou seu princípiofundamental de que o pensamento é essencialmente uma ação intencional.

Em conversas com William James e outros em Harvard no início da década de 1870,Peirce começara a se referir a essa doutrina como pragmatismo. Adaptou o nomedevido ao uso por Kant de pragmática na Crítica da razão pura para designar a espéciede crença que, embora contingente, fornece uma base para selecionar os meiosadequados à execução de ações necessárias - em evidente contraste com o conceitode prâtica: O termo foi pouco notado até fins da década de 1890, quando James ousou em uma conferência na Universidade da Califómia, "Philosophical Conceptionsand Practical Results" ["Concepções filosóficas e resultados práticos"]. O próprioPeirce usou-o pela primeira vez em texto publicado em um artigo para um dicionáriofilosófico em 1902. Com a publicação de Pragmatismo por Jarnes em 1907, o termotornou-se amplamente conhecido. Por essa época, Peirce quis desautorizar o nome,afirmando que sua popularização tinha desvirtuado o que ele pretendia significar comessa palavra. Peirce propôs substituí-Ia por pragmaticismo, uma palavra "suficiente-mente feia para ficar a salvo dos raptores" ([1905] 1931-58,5:277). Mas pragmatismopassou a ser o símbolo de convocação para um exército de teóricos sociais americanos,os quais compartilhavam todos de certas noções de que ele tinha sido o pioneiro.

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A doutrina pragmatista de Peirce reflete uma quíntupla modificação da noção deKant de que o conhecedor adquire conhecimento através da aplicação de categorias apriori. Redefiniu cognição como uma atividade que se alterna entre modos fixos deagir (hábitos) e experiências desintegradoras (dúvidas). Considerou essa atividade umprocesso que envolve mudança: as categorias cognitivas não são fixas e inatas, poisadmitem novidade no decorrer de novas investigações estimuladas por dúvidas.Identificou o veículo desse processo como um terceiro elemento fora das impressõessensoriais e disposições mentais - a linguagem ou, de modo geral, os signos. Situouessa atividade na obra de uma comunidade indefinida de investigadores experimentais.E localizou o processo coletivo de investigação em um contexto mais vasto dedesenvolvimento evolutivo humano. Esse tratamento do sujeito cognitivo por referên-cia aos conceitos de experiência, hábitos, novidade, linguagem, comunidade, inves-tigação e evolução foi compartilhado por todos os autores que vieram a estar as-sociados ao movimento pragmatista, por mais que diferissem entre si.

Embora o próprio Peirce vivesse, tragicamente, às margens das instituições acadê-micas americanas, as idéias pragmatistas eram desenvolvidas através da obra deprofessores em três universidades: Harvard, Michigan e Chicago. A filosofia prag-matista cultivada nessas instituições orientaria os preeminentes modeladores da socio-logia americana nas primeiras décadas do século xx. Mas, primeiro, tinha que sofrera transformação de uma teoria do significado, como Peirce a concebeu, para uma teoriade ética e sociedade.

Parte da transformação foi realizada por William James, amigo de longa data ecolega de Peirce em Harvard. James empregou a teoria da evolução de Darwin maisradical e sistematicamente do que Peirce, procurando entender todos os aspectos daação humana - todas as crenças e sentimentos, incluindo os sentimentos religiosos- como formas de adaptação evolutiva. James também desenvolveu ainda mais anoção de Peirce do self como baseado em conversação interna, distinguindo entre um"eu" (I) e um "eu" (me) e identificando um "eu social" (social me) externamenteconstituído como parte deste último. Sobretudo, ele transferiu o interesse pragmatistaessencial pelas conseqüências práticas das crenças de uma preocupação com o queuma crença poderia significar para umpúblico de observadores científicos para umapreocupação 'com as repercussões que a crença poderia ter sobre a forma como osseres humanos vivem. Por meio dessas inovações e de suas atividades públicas maisbem-sucedidas, James desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento e dis-seminação da filosofia pragmatista. Entretanto, o seu impacto sobre a sociologiaamericana foi indireto, uma vez que foi principalmente conhecido como psicólogo epermaneceu preocupado com os caprichos da consciência individual. As figurascentrais para a adaptação do pragmatismo à teoria social foram John Dewey e GeorgeHerbert Mead.

DE HEGELA DEWEY E MEAD

o jovem John Dewey teve aulas de graduação com Peirce durante o breve período emque este lecionou na Johns Hopkins, mas só algumas décadas mais tarde, confessou

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ele, passou a apreciar o que Peirce estava fazendo. Inicialmente, Dewey desenvolveuum ponto de vista pragmatista em reação ao idealismo alemão mas por um caminhobastante diferente do adotado por Peirce.

Após o término de um curso de filosofia moral escocesa para universitáriosamericanos da época, Dewey recebeu a influência do neo-hegeliano George Morrisna Johns Hopkins e iniciou sua jornada filosófica adulta como seguidor de Hegel. Adissertação de Dewey descreveu Kant como o fundador do moderno método filosófico,enquanto permaneceu fiel à concepção da razão ou espírito como o centro da expe-riência humana, mas sustentou que na medida em que Kant se desviou dessa concepçãocaiu em contradições que coube depois a Hegel resolver." Na Johns Hopkins, Deweytambém foi atraído para G. Stanley Hall, cuja obra o levou a escrever um ensaio, "Anova psicologia", que exaltava a fisiologia por introduzir técnicas experimentais naexploração de processos psíquicos. Esse ensaio aplaudiu também a nova psicologiapor suas implicações éticas ao reconhecer tendências humanas para concretizarpropósitos e procurar realizar a experiência religiosa. Assinalou assim uma tensãolatente no pensamento de Dewey entre a descoberta da moralidade no desdobramentosupra-individual da idéia absoluta e sua localização nas necessidades de um organismoque procura dar expressão a seus conflitos interiores.

Em 1884, Dewey acompanhou Morris para a Universidade de Michigan comoinstrutor, categoria docente abaixo da de professor assistente, e começou a elaborar osproblemas envolvidos em sua adesão dual à filosofia hegeliana e à psicologia empírica.De Hegel tinha derivado uma perene aversão ao formalismo em lógica e à tendênciabritânica para descrever os processos psíquicos e os atores individuais como entidadesauto-subsistentes. Adoutrina hegeliana, recordou ele mais tarde, ajudou-o a abandonara suposição comum de que o homem possui "um espírito preparado de antemão parao confronto com um mundo físico como um objeto" e convenceu-o "de que a únicapsicologia possível ( ...) é uma psicologia social" (Jane Dewey, 1939, 17-8). Mas a suadevoção ao naturalismo psicológico aumentou com a leitura em 1891 de Psicologia,de James, o que o levou finalmente a desafiar a concepção hegeliana ao sublinhar osaspectos não-reflexivos da experiência humana - a tratar os seres humanos menoscomo sujeitos cognitivos e mais como criaturas que agem, sofrem e gozam - assimcomo os aspectos da cognição que podiam ser diretamente elucidados pela inves-tigação experimental. Por fim, a réplica crítica de Dewey ao idealismo alemão seconverteria em franca oposição. Ao eclodir a I Guerra Mundial, ele publicou umpanfleto denunciando a filosofia alemã por idealizar o dever para com o Estado de ummodo que favorecia o militarismo e reclamou uma "filosofia americana" que promova"um futuro em que a liberdade e o companheirismo pleno sejam o objetivo supremo,e a inteligente experimentação cooperativa, o método" ([1915] 1942, 145).

Tal como Dewey, George Herbert Mead também se voltou para a filosofia alemãem busca de uma Weltanschauung secular que substituísse as suas ainda mais sinuo-samente abandonadas crenças religiosas e acabou elaborando uma crítica doutoral deKant (que nunca completou). Em 1887, Mead iniciou seus estudos de graduação embusca de uma ética filosófica secular, atraído para Harvard por um outro dos devotosamericanos de Hegel, Josiah Royce. Royce tinha estudado na Johns Hopkins antes de

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Peirce lá ter lecionado (e, como Dewey, receberia seu diploma de Morris), mas ficousubseqüentemente sob a influência de idéias peircianas. Mesmo assim, permaneceufiel ao idealismo alemão em sua busca por um modo de combinar a filosofia com umavisão teológica cristã da realidade; por vezes, Royce descreveu sua própria posiçãocomo "pragmatismo absoluto". Royce ofereceu a Mead uma filosofia da história queinterpretou o reino de Deus como a realização histórica de uma "ComunidadeBem-Amada" de seres que mutuamente se inspiram e enaltecem. Por muito que Meadapreciasse a liberdade de exploração intelectual manifestada por Royce, recusou-se acomprometer-se com o idealismo germânico de Royce, pois sentiu "tratar-se doproduto de mais um enxerto cultural na cultura americana, não de uma autênticainterpretação da vida americana e de um guia para a ação em C.. ) seu presenteamericano" (Joas, 1980, 17).

Também como Dewey, Mead sentiu-se atraído desde cedo pelas promessas dapsicologia fisiológica, escrevendo que "o espírito científico da psicologia moderna (...)salva a classe dos filósofos, como um todo, de se perderem em um emaranhado defórmulas sem o menor sentido"." Mead também manteve um relacionamento informalcom James, tendo sido preceptor de seu filho no verão seguinte ao seu primeiro anoem Harvard. É provável que James tenha reforçado a decisão de Mead de trocar afilosofia pelo estudo de psicologia, a que se dedicou então em Leipzig (com Wundt)e em Berlim (com Dil they e outros). Em 1891 aceitou um convite para deixar Berlime ir lecionar na Universidade de Michigan, onde deu aulas sobre Kant e a história dafilosofia, assim como de psicologia fisiológica e teoria da evolução. Em Michigan,iniciou uma longa e cordial amizade com Dewey, Tufts e o psicólogo James Angell(que estudara com James em Harvard). Uma das razões que atraíram Mead paraMichigan foi a perspectiva de adquirir alguma elucidação de seu sistema de crençafilosófica através de um estudo aprofundado de Hegel com os renomados hegelianosque lá ensinavam. Sua chegada coincidiu com um período de intensa criatividadedurante o qual Dewey estava forjando as idéias essenciais de sua filosofia pragmática.Encontrou em Dewey um estimulante expoente do idealismo, porém devotado àciência naturalista. Asituação deixou Mead extasiado: "Atingi finalmente uma posiçãocom que costumava sonhar em Harvard, onde é possível, pelo menos, aplicar a boa ecorreta psi [cologia] fi [siológica] a Hegel, e não sei o que mais um mortal pode quererneste mundo", escreveu ele a um amigo.f

Em 1892, Tufts deixou Michigan para ingressar na nova Universidade de Chicago.Por recomendação de Tufts, dois anos depois o reitor Harper nomeou Dewey, comMead e Angell a reboque, para a cátedra de filosofia. Os quatro antigos colegas deMichigan orientaram o novo departamento de filosofia de acordo com diretrizespragmatistas.9 Encorajados pelo intenso sentimento de esforço coletivo que distinguiaa nova universidade, Dewey, seus colegas e seus estudantes produziram em estreitacooperação uma profusão de idéias que estimularam pensamentos e investigaçõesoriginais em economia, educação, psicologia, sociologia e teologia, assim como emfilosofia. Aspiravam a nada menos que um programa para resolver todas as questõesfilosóficas através de análises da ação prática. Impeliram o pragmatismo muito alémdos limites traçados por Peirce e James a fim de criar o que Darnell Rucker, em The

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Chicago Pragmatists (1969), descreveu como a primeira escola autêntica de filosofiaamericana. 10 O seminário de Dewey sobre lógica formou o epicentro da escola. Umacoletânea de dissertações apresentadas nesse seminário foi publicada em 1903 com otítulo de Studies in Logical Theory, despertando hiperbólica admiração em WilliamJames.!' Ao apresentar o programa pragmatista genérico que radica todas as crençasnas exigências de ação, afirmou a existência de conexões íntimas entre os processosde pensamento, tal como são estudados no laboratório, e os princípios normativos dalógica, e entre o modo como apuramos fatos físicos e como formulamos juízos devalor.

As noções básicas para esse desenvolvimento ficaram cristalizadas no famosoensaio de Dewey de 1896, "O conceito de arco reflexo em psicologia", no qualcontestou o modelo de arco reflexo dos fenômenos psíquicos a que tinha sido favorávelaté poucos anos antes, um modelo que descreve as reações psíquicas como respostaspassivas a estímulos externos. Passou agora a descrever os seres humanos comoagentes criativos, e não passivos, que selecionam ativamente estímulos e lhes atribuem- e a seus efeitos - um significado específico. Dewey tratou então de distinguir asatividades habituais, nas quais não existe nenhuma resposta a um estímulo porque aação obedece simplesmente a uma seqüência ordenada de eventos, das ações emsituações problemáticas, nas quais o organismo se depara com estímulos de significadoincerto, para os quais a resposta apropriada está longe de ser clara. Neste último caso,o organismo deve usar a imaginação para ensaiar imagens antecipatórias de váriasrespostas que poderia usar e suas conseqüências. Com essa formulação, Deweyconseguiu apresentar uma descrição naturalista do pensamento humano e estabelecerassim as bases para as suas ulteriores análises dos fenômenos da inteligência, da lógicada investigação, das técnicas de educação e do processo de avaliação.

Mead ampliou essa concepção de uma forma que Dewey rapidamente acolheu. Porum lado, Mead fixou o pensamento humano mais radicalmente em processos bioló-gicos, mostrando como ele promana de padrões de resposta adaptativa que os orga-nismos consideram seletivamente vantajosos no decorrer da evolução natural. Em suasrespostas por tentativa-e-erro a problemas situacionais, escreveu Mead mais tarde, "oanimal está fazendo a mesma coisa que o cientista faz" (1936, 419). Por outro lado,Mead ligou o pensamento mais radicalmente a fenômenos sociais, vinculando a'evolução da mente à evolução do eu (selfJ e fazendo deste último, por sua vez, umaconseqüência de interações sociais. Por fim, forneceu um modo mais refinado paradeterminar critérios éticos ao associar todo o processo à evolução de uma sociedadecada vez mais abrangente e universalmente orientada.

Entre os dois, Dewey e Mead elaboraram uma síntese de princípios desenvolvidospor Peirce e James e fundiram-na com os interesses sociais de seu próprio meio.Aceitaram a clara concepção de Peirce do método científico e generalizaram-na a todaatividade cognitiva. Ao entender a ciência como o epítome de criatividade humana ecomunidade democrática, eles neutralizaram as ansiedades jamesianas acerca daciência como uma ameaça aos valores humanos e transcenderam a restrição de Peirceà ênfase pragmática sobre questões de teoria. Também encontraram um modo deligá-Ia a seus impulsos melioristas, vinculando a investigação à reparação de injustiças

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sociais e à reforma da educação, assuntos a que ambos devotaram considerável somade energia - Dewey através de sua obra na Escol a-Laboratório da universidade e dosprogramas da Hull House para estudo dos problemas sociais e econômicos resultantesda urbanização e do crescente afluxo de imigrantes, Mead ao complementar essesenvolvimentos com o serviço a muitas causas cívicas, incluindo a reforma do códigopenal juvenil, a luta pelos direitos da mulher, uma escola para crianças com problemasemocionais, trabalho de mediação em greves e a reforma dos serviços municipais desaúde.12 Dewey e Mead unificaram magnificamente teoria e prática - na teoria e naprática.

PRAGMATISMO E SOCIOLOGIA AMERICANA

Em seus anos de formação, cada um dos principais filósofos pragmatistas experimen-tou alguma forma de luta relacionada com o conflito entre ciência e religião.POriundos de meios impregnados de pietismo puritano, todos eles estavam ávidos poraderir aos métodos da investigação científica secular. Em particular, eram todosdevotos das verdades da teoria darwiniana da evolução e estavam empenhados emconciliá-Ias com as verdades morais de suas raízes cristãs. 14 A forma filosófica queessa luta assumiu foi dupla. Expressou-se primordialmente como um conflito entrenaturalismo e idealismo ou voluntarismo. Também se apresentou como uma luta entreo atrativo secular do individualismo competitivo e os ideais da solidariedade comuni-tária e do serviço em prol da sociedade. Os conflitos que se manifestaram nos principaiseixos do pensamento social europeu - entre o individualismo britânico e o coletivis-mo francês, e entre o voluntarismo alemão e o naturalismo anglo-francês _ foramassim internalizados na experiência dos fundadores pragmatistas. Sua missão tornou-se a de reconciliar essa oposições e assim fizeram, em grande parte, ao esvaziá-Ias.

Esse processo foi particularmente manifesto na biografia de Dewey. No final desua vida, Dewey referiu-se a traumas que sofrera em conseqüência da cultura de suajuventude, com suas "divisões como forma de isolar o eu do mundo, a alma do corpo,a natureza de Deus." Esses conflitos produziram uma "laceraçâo interior" e uma"exigência de unificação que era, sem dúvida, um intenso anseio emocional". Nassínteses hegelianas, com sua unificação "de sujeito e objeto, de matéria e espírito, dedivino e humano", ele encontrou "um imenso alívio" (1930, 2:19) - para logo se verenvolvido com a experiência de um novo conjunto de tensões entre o idealismohegeliano e o naturalismo da biologia evolutiva e da psicologia fisiológica. Deweyconseguiu finalmente resolver todas essas oposições transformando seus componentesem elementos de um campo interativo. Um ano antes de escrever as reminiscênciasque acabamos de citar, ele declarou:

Nem eu nem mundo, nem eu nem natureza (...) é o centro, assim como a Terra ou o Sol nãosão o centro absoluto de um único universo e o necessário quadro de referência. Há um todomovente de partes interatuantes; um centro surge sempre que se registra um esforço paramudá-Ias em uma determinada direção (1929, 291 ).15

O colapso dessas oposições abriu o caminho para um novo e distinto conjunto derespostas às perenes questões que abordamos ao examinar as tradições anteriores. Em

A TRADIÇÃO AMERICANA 233

vez de tomar partido sobre a velha questão de se somente os indivíduos são reais ouse os fenômenos sociais possuem uma realidade própria e irredutível, os pragmatistasadotaram a noção de que os próprios indivíduos são fenômenos sociais - as realidadeshumanas consistem em atos de eus sociais. Em vez de tomar partido sobre se osfenômenos sociais fornecem os objetos exclusivos do conhecimento e as bases para aação ou se os seres humanos podem transcender as limitações impostas pela natureza,os pragmatistas argumentaram que os seres humanos possuem distintas capacidadesmentais que, não obstante, surgem dos mecanismos ordinários da evolução biológica.Mente e eu (sei/) são produtos de um mesmo processo a longo prazo de adaptaçõesorganísmicas ao meio ambiente. Os pragmatistas-biologizaram a subjetividade. Arespeito de como os fenômenos humanos devem ser interpretados' e explicados, é lícitodizer, portanto, que Dewey e Mead formularam oque poderemos chamar, ainda quede modo pouco elegante, o Postulado de Evolução de Eus Sociais Mentais Naturais.

À questão de como o pensamento secular pode fornecer um fundamento racionalparajuízos morais, eles propõem o que pode ser chamado um Postulado de Normari-vidade Situacional Social: normas defensáveis surgem em situações concretas na basede análises socialmente executadas das condições e conseqüências de ações alterna-tivas. Guias para a ação não derivam de verdades antecedentemente determinadassobre a natureza nem de cálculos de razão abstrata, mas adquirem forma no decorrerde tentativas para diagnosticar uma situação confusa. Os pragmatistas marcharam àsombra da bandeira onde se inscreveu a sentença de Dewey: "Assim como a ciêncianatural encontrou sua saída não admitindo nenhuma idéia, nenhuma teoria, como fixapor si mesma, exigindo de toda e qualquer idéia que se torne fecunda em experimento,também a ciência ética deve depurar-se de todas as concepções, de todos os ideais, salvoos que são desenvolvidos interiormente e para fins de prática" ([1893] 1967-72,4:53). Oaperfeiçoamento de juízos normativos dá-se através da expansão do universo social emque esse diagnóstico é conduzido e da valorização de recursos coletivos para a determi-nação de fatos. Nunca pode pretender a certeza absoluta mas envolve a exploraçãoexperimental e a permanente reconstrução de concepções do desejável. A filosofia tem atarefa de mediar o choque entre instituições herdadas e os mais novos fins sociais.

Para a questão da fonte e caráter de disposições morais humanas, eles oferecem umPostulado de Moralidade Socialmente Receptiva: a moralidade consiste em hábitosda mente, engendrados pela interação com outros significativos, para processardecisões desde o ponto de vista dos grupos envolvidos em uma determinada situa-ção.16 Este postulado difere do dos teóricos franceses, do qual é talvez o mais próximo,ao substituir uma noção de normas socialmente instiladas por uma concepção maisfluida e orientada para o futuro de disposições socialmente geradas para considerarperspectivas de grupo na tomada de decisões. O próprio Dewey contrastou com nitidezessa concepção da disposição moral com o individualismo benthamista; ele concordoucom a crítica de Mill a Bentham, mas foi mais longe para fazer da capacidade deaceitação do ponto de vista social uma parte integrante do eu socialmente constituído.A capacidade para empreender a reconstrução de ideais em um quadro de referênciasocial é o resultado de programas educacionais e o ingrediente indispensável de umademocracia bem-sucedida.

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o desafie apresentado pela síntese pragmatista para uma ciência da sociologia foitriplo. A sociologia precisava desenvolver uma concepção de fenômenos sociais quecaracterizasse os processos mentais subjetivos de agentes mas entendesse tais proces-sos subjetivos como efeitos e causas de processos sociais. Precisava desenvolver umaconcepção de dinâmica social que descrevesse os estados de desordem como ocor-rências naturais que propiciavam oportunidades para a inovação adaptativa. Acima detudo, precisava ajudar a criar públicos que pudessem exercer alguma espécie decontrole moral esclarecido sobre problemas correntes e direções futuras. Essas tarefasforam abordadas com extraordinária criatividade por Charles Horton Cooley, WilliamI. Thomas e Robert Ezra Park.

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(1864 .1944)

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influência intelectualamizade

relação professor - aluno

Figura 13. Ligações na tradição americana.

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Cooley, Thomas e Park destacaram-se como as três figuras intelectualmente domi-nantes da sociologia americana nas primeiras décadas deste século. 17 Como a Figura13 mostra, os três homens eram contemporâneos exatos, embora as publicaçõessignificativas de Cooley começassem a aparecer muito antes das de Thomas e Park.Os três estudaram com Dewey e através desse contato e de outras influências vierama injetar idéias pragmatistas na tradição sociológica americana. 18

Os três sociólogos elaboraram o tema da subjetividade social teórica - emformulações relativas ao eu social- e metodologicamente - através de procedimen-tos especiais para obtenção de dados sobre fenômenos subjetivos. Cooley era talvezo mais radical em suas formulações teóricas, declarando que "sociedade" e "indivíduo"não designam fenômenos separados mas diferentes aspectos da mesma coisa, pois "umindivíduo isolado é uma abstração desconhecida da experiência, e o mesmo ocorrecom a sociedade quando considerada como algo separado dos indivíduos" (1902, 36).Veio a referir-se à mente individual como um "complexo mental-social" (1930, 295 e seg.).Cooley ampliou a noção de James de "mim" com seu conceito de "eu no espelho": o eué construído imaginando como ele se apresenta aos olhos de uma outra pessoa, imaginandoa opinião da outra a respeito dessa apresentação e experimentando então alguma espéciede sentimento íntimo como o orgulho ou a humilhação. A sociedade, na concepção deCooley, consiste no entrelaçamento desses eus mentais em uma ampla mente social.

Thomas enfatizou igualmente o funcionamento conjunto de fenômenos sociais eindividuais, e o que ele chamou a "dependência recíproca entre organização social eorganização da vida individual". Em sua obra-prima, The Polish Peasant in EuropeandAmerica (em co-autoria com Florian Znaniecki), Thomas apresentou seu conceitocentral para representar essa interdependência como a "atitude", definida como umadisposição consciente para atuar de uma certa maneira no mundo social. O estudodessas atitudes pertencia à esfera da psicologia social, definida como a "ciência dolado subjetivo da cultura social". Por outro lado, certas atitudes tornam-se manifestasem regras de comportamento consubstanciadas em costumes e rituais, em normaslegais e educacionais etc. Essas regras são "valores" que se agrupam em sistemasorganizados aos quais se dá o nome de instituições sociais, que formam, por sua vez,o objeto de estudo da sociologia. Thomas identificou três tipos principais de agentescom base em sua atitude dominante em relação aos valores sociais: a pessoa conformis-ta, a rebelde e a criativa. E ressuscitou a noção de Dewey de agente criativo genéricocom a sua noção de que antes da ação autodeterminada as pessoas examinam e refletemsobre o que está diante delas a fim de produzir uma "definição da situação" e com oseu famoso teorema segundo o qual "se [as pessoas] definem situações como reais,elas são reais em suas conseqüências" (1966, caps. 15, 10,9; 1928,572).

Park avançou a compreensão do eu social quando deu à noção de Thomas deorganização vital o nome de "concepção do eu" (seL[-conception) e a vinculou aoconceito de papéis sociais. Àrgumentou que cada pessoa está sempre e em toda partedesempenhando, mais ou menos conscientemente, um papel, que é nesses papéis queas pessoas conhecem a si mesmas e conhecem umas às outras, e que as concepçõesque as pessoas formam de si mesmas parecem depender do reconhecimento e do statusque a sociedade confere a esses papéis. As pessoas que estão sujeitas a definições

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conflitantes de si mesmas devido à participação em culturas duais, observou ele emsua famosa análise do "homem marginal", sofrem estresse e alimentam concepçõesdo eu incertas, mas também se beneficiam de horizontes mais amplos e de umaperspectiva mais "civilizada" (1967, xxxvii-xl).

Por causa de sua convicção comum da importância explicativa da subjetividadesocialmente situada, todos os três homens foram pioneiros na criação de metodologiasdestinadas a captar realidades subjetivas. Coolev identificou o processo de intros-pecção simpática - o que os psicanalistas mais' ie meio século depois reinventariamcomo o método de "introspecção empática" - corno sendo o método indispensável àobtenção de conhecimento social. O verdadeiro conhecimento dos outros, afirmou ele,consiste em colocarmo-nos em contato com vários tipos de pessoas em várias situaçõese adquirirmos consciência dos sentimentos que alimentamos quando pensamos. nelasnessas situações (1909, 7; 1930,289-309). Thomas criou um conjunto de técnicas afim de propiciar um acesso mais objetivo às realidades subjetivas: a coleta sistemáticade registros da vida pessoal, incluindo diários, cartas, autobiografias, poemas etc.Parker recomendou a seus alunos que estudassem as atitudes de diferentes camadassociais indo morar e familiarizando-se intimamente com elas, uma abordagem empí-rica que veio a ser conhecida como observação participativa.

Ao aprofundarem os fenômenos sociais, os três germinais sociólogos americanoselucidaram a alternação de ordem e desordem sociais. Suas interpretações refletemduas ênfases. Uma é o esforço para descrever a organização social mais com referênciaa normas consensuais do que como mero resultado de impessoais forças do mercado.Cooley discutiu o ponto de vista de que mesmo as instituições econômicas pudessemser entendidas somente como resultado de tais forças. Elas envolvem necessariamenteo pensamento e o julgamento moral humanos; todas as formas de organização socialconsubstanciam "a lenta cristalização de muitas formas e cores da vida do espíritohumano" (1902,22). Thomas definiu as instituições sociais como sistemas interligadosde regras e regulamentações, e a organização social como a totalidade de instituiçõesencontradas em qualquer grupo social. Park descreveu uma "ordem moral" supervenientea uma ordem ecológica gerada por competição desregrada.

O outro ponto enfatizado pelos três é uma avaliação da inexorabilidade e daspossibilidades criativas da desorganização social. Nisso eles estavam de pleno acordocom a concepção dos pragmatistas das potencialidades criativas de períodos de dúvidaalternando com períodos de crença rígida e ação habitual. Embora não rejeitem o custohumano e social de normas erodidas, eles viram que tais condições poderiam tambémpromover o crescimento humano e cultural. Thomas entendeu que a estabilidade deinstituições sociais envolve um equilíbrio dinâmico de processos de desorganização ereorganização. Ele também estabeleceu um contraste entre o desejo do grupo deestabilidade normativa e o desejo do indivíduo de novas experiências, e elogiou aspessoas criativas que conciliam esses desejos. As pessoas criativas conciliam essesdesejos opostos redefinindo situações e criando novas normas de um valor socialsuperior. Assim procedendo, elas se tomam agentes de "reconstrução social", a espéciede resposta de que os grupos necessitam quando a desorganização atinge uma faseaguda (1966, cap.1). Falando com um sotaque evidentemente americano, Cooley

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observou que a dissolução de tradições tem o seu lado bom, produzindo "a espécie devirtudes, assim como de vícios, que encontramos na fronteira: (...) lealdade, amor aocaráter e à força, gentileza, esperança, hospitalidade e coragem" (1909, 355). Ossociólogos pragmatistas divergiram também da tendência, mais comum entre pensa-dores sociais europeus, para ver com alarme as multidões desordeiras. Assim, quandoSighele e Le Bon sublinharam os efeitos destruidores das multidões, Cooley e Parkviram os ajuntamentos espontâneos como inerentes à transição para a modernasociedade urbana e uma fonte de saudável estímulo social.

Assim, esses sociólogos americanos adaptaram a noção pragmatista de realidadecomo fluxo contínuo aos fenômenos ordinários de controle e de mudança sociais.Redefiniram a mudança mais como um contínuo processo endógeno da vida do grupohumano do que como um resultado episódico de fatos extrínsecos interferindo naestrutura estabelecida. Na concepção deles, a vida do grupo humano parece sempreincompleta e sujeita a constante desenvolvimento, em vez de saltar de um estadocompleto para um outro. A desorganização social é vista não.como um colapso daestrutura existente, mas como incapacidade para mobilizar uma ação eficaz em facede um dado problema.

Finalmente, Cooley, Thomas e Park adotaram um papel profissional neutro, por-quanto os observadores sociológicos ainda definiam esse papel em termos de serviçopúblico. Consideraram a missão da sociologia na promoção das capacidades dasociedade para a autodireção inteligente um processo a que se referiram como controlesocial. Coolley considerou que a sociologia estava contribuindo para a crescenteeficiência dos processos intelectuais que elucidariam a mais ampla vontade pública.Thomas considerou que esses esforços contribuíam para uma ciência da intervençãosocial deliberada e sustentou que a "aplicabilidade prática essencial" constituiria "oúnico critério seguro e intrínseco da sociologia, como de qualquer ciência (1966, 53).

Em certo sentido, toda a carreira de Park pode ser interpretada como um esforçopara realizar a visão de Dewey do moderno povo democrático. Após colaborar comDewey em um malfadado projeto para fundar uma revista dedicada ao esclarecimentodo povo com informações factuais fidedignas sobre assuntos de interesse social,passou vários anos trabalhando como jornalista e outros tantos como relações públicaspara Booker T. Washington. A dissertação alemã de Park retratou o povo como umacoletividade criativa sem compromissos com quaisquer normas convencionais, dife-rente da multidão por ser acessível a diversas orientações de valor, embora orientadopara um conjunto compartilhado de fatos idôneos; ele ofereceu um curso anual sobreo assunto, "A multidão e o povo", durante a primeira década em que lecionou emChicago. Para Park, a missão da sociologia era ajudar a criar o povo mais numerosodefendido por Dewey e Mead habilitando diversos setores da grande sociedade aconhecerem-se mutuamente e ajudar a informar o povo mediante a apresentação defatos imparcialmente observados e analisados sobre os processos naturais da vidasocial. Para esse fim, ele guiou seus estudantes para microcosmos tão pouco co-nhecidos como os das comunidades negras urbanas, guetos judeus, gangues juvenis,trabalhadores itinerantes, dançarinas de cabarés, cortiços e bairrós residenciais da elite:Ao elevar assim a consciência do povo a seu próprio respeito e ao revelar as "causas

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perturbadoras" de problemas sociais, a sociologia pôde tomar-se parte do formidávelprocesso de esclarecido controle social.

NOTAS

1. Não se pretende com isso minimizar as realizações intelectuais de figuras como Madison,Hamilton e Jefferson. Entretanto, o pensamento deles não se tomou parte integrante de uma contínuatradição que consolidou os alicerces da sociologia moderna. Sobre a descontinuidade entre asfilosofias psicológica e social dos Pais da Pátria e as dos pragmatistas subseqüentes, ver Wiley, 1995.

2. Apesar disso, Sorokin, ao invés de Parsons, mostrou-se familiarizado com as principais figurasda sociologia americana, como Ward, Sumner, Ross, Cooley, Thomas, Park e Burgess. Para umasugestiva interpretação dos motivos pelos quais Parsons preferiu ignorar certos autores americanospertinentes para o seu projeto, ver Camic, 1992.

3. Essa opinião a respeito de Peirce é compartilhada por scholars de orientações muito diver-gentes, incluindo C. Wright Mills (1964, 127-8), Josiah Lee Auspitz(1983, 51)e Philip Wiener(1958,ix).

4. Quando Peirce tinha 16 anos, seu pai, um eminente professor de matemática em Harvard,começou a supervisioná-Io durante três anos de leituras regulares em alemão da Crítica da razãopura, de Kant, de modo que o jovem memorizou enormes trechos dessa obra. Embora Peirce lesseextensamente a história da filosofia, "ele parece ter sido influenciado por Kant mais do que porqualquer outro filósofo" (Thompson, 1953, xvii).

5. Alguns dos amigos de Peirce, recordou ele mais tarde, queriam que ele chamasse sua doutrinade "praticismo" ou "praticalismo", termos mais próximos do grego praktikos, mas "para alguém quetinha aprendido filosofia a partir de Kant (...) e que ainda pensava com a maior espontaneidade emtermos kantianos, praktisch e pragmatisch estavam tão distantes entre si quanto os dois pólos,pertencendo o primeiro a uma região do pensamento onde a mente de nenhum experimenta listajamais pode fazer uso de terreno sólido sob seus pés, enquanto que o segundo expressa a relação comalgum propósito humano definido. Ora, a característica mais notável da (minha) teoria era o seureconhecimento de uma inseparável conexão entre cognição racional e propósito racional" ([1905]1931-58,5:274). O locus classicus na primeira Crítica de Kant é A824, B852; "/ch nennedergleichenzufãlligen Glauben, der aber dem wirklichen Gebrauche der Mittel zu gewissen Handlungen zumGrunde liegt, den pragmatischen Glauben". [Denomino crenças contingentes, aquelas que cons-tituem de todos os modos o fundamento para o emprego efetivo de meios com a finalidade de executardeterminados atos, crenças pragmáticas.]

6. A própria dissertação perdeu-se. Esse resumo baseia-se em uma carta que Dewey escreveu arespeito na época, citada em Coughlan, 1975 (41). ,

7. A declaração consta de uma carta para seu amigo Henry Castle em maio de 1887. A decisãode Mead de se voltar para a psicologia também foi instigada por um certo senso de oportunidadesde carreira nesse novo campo. Ele receava tentar realizar uma carreira em filosofia em universidadesamericanas, as quais estavam nessa época quase totalmente controladas por intolerantes igrejasprotestantes (Joas, 1980, 17, notas 11 e 12).

8. Mead a Henry Castle, 12 de janeiro de 1894. A carta prossegue, em palavras que antecipam aexposição de Mead em Movements ofThought in the Nineteenth Century: "Estive lendo ultimamentealguns textos de Fichte e fiquei impressionado com a idéia de que ele deslindou e expôs com clarezao princípio da categoria de sujeito - que Schelling objetificou e a que Hegel deu conteúdo" (MeadPapers, University of Chicago Library, caixa 1, arquivo 3).

9. James recomendara a Harper a nomeação de Peirce mas uma carta falsa de um outro professorde Harvard impugnando o caráter de Peirce foi, segundo parece, suficiente para dissuadir Harper(Rucker, 1969, 10). Dewey altercou mais tarde com Harpersobre algumas medidas tomadas a respeitoda Escola-Laboratório e se demitiu. Entretanto, o departamento de Chicago continuou a ser dominado

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por filósofos pragmáticos muito depois de 1905, quando Dewey se mudou para a Universidade deColumbia e Angell se dedicou à psicologia, uma vez que a Mead e Tufts se juntaram os colegaspragmatistas Edward Ames e A.W. Moore. Sua hegemonia perdurou até finais da década de 1920.

10. "Somente na nova Universidade de Chicago, na virada do século, se desenvolveu uma escolade filosofia americana. O pragmatismo que John Dewey e seus colegas e estudantes elaboraram emconjunto tinha suas raízes em James e Pierce, mas o que resultou de seus esforços era distintamenteobra deles e refletiu com maior dose de verdade o solo de onde brotou do que o pensamento de Jamesou Pierce" (Rucker, 1969, vi).

11. Ao ler o volume, James exclamou: "A Universidade de Chicago, durante os últimos seismeses, divulgou o fruto de seus dez anos de gestação sob a égide de John Dewey. O resultado émaravilhoso - uma verdadeira escola, e um verdadeiro pensamento. E um importante pensamento,também! lá ouviram falar alguma vez de tal cidade ou de tal Universidade? Aqui [em Harvard] temospensamento mas não temos escola. Em Yale, uma escola mas nenhum pensamento. Chicago temambas as coisas" (Rucker, 1969,3).

12. Tufts também participou intensamente em atividades cívicas, propondo legislação que afetouo trabalho de agências sociais e presidindo uma junta de arbitragem na indústria de vestuário.Provavelmente nunca antes nem depois se viu uma quantidade de notáveis filósofos tão engajadosem um extenso e construtivo ativismo social.

13. De fato, de acordo com os autores de uma competente história da filosofia na América, "opapel central da filosofia no pensamento americano foi o de sintetizador ou de mediador entre ciênciae religião" (Flower e Murphey, 1977, xvii).

14. Aos 25 anos de idade, Dewey ainda dizia, "as declarações de Cristo e de seus seguidoresimediatos são explícitas (...) Há uma obrigação de conhecer Deus, e não cumprir essa obrigação nãoé errar intelectualmente, é pecar moralmente" ([1884] 1967-72, 1:61). Uma década depois, quandoseus pontos de vista tomaram-se mais seculares, as publicações de Dewey foram predominantementedirigidas para ajudar aqueles que se esforçavam por conciliar ensinamentos científicos e evolutivoscom backgrounds teológicos protestantes - e encontrou um público ávido por orientação. Nasbiografias de Peirce, James e Mead, tais conflitos acarretaram episódios de profunda angústia. Parauma interpretação reveladora dos modos como tais conflitos afetaram a formação de identidadesadultas entre os contemporâneos de Dewey que foram atraídos para a sociologia, ver Henking, 1988.

15. Flower e Murphey subintitularam apropriadamente seu capítulo sobre Dewey, "Batalhandocontra os dualismos" (1977, 811). A experiência de Dewey ilustra muito bem a tese de Erik Eriksonde que os líderes históricos são aqueles que resolvem intensos conflitos pessoais, os quais são, aomesmo tempo, os principais conflitos de sua era (1958). Pode-se discutir a asserção de Dewey deque as suas lutas filosóficas nada tinham a ver com a sua crise pessoal a respeito de crenças religiosas;ele próprio nos sugere isso ao afirmar espontaneamente que nossas lutas externas são, na realidade,a respeito de uma luta que se trava em nosso íntimo (1930, 19, 17).

16. Conforme o expressou Dewey: "A pessoa genuinamente moral é aquela [que]. .. forma seusplanos, regula seus desejos e, por conseguinte, desempenha seus atos com referência ao efeito queeles têm sobre os grupos sociais de que participa" (Dewey e Tufts, 1908, 298).

17. Cooley foi mencionado com mais freqüência como um autor influente pelos depoentes napesquisa de Bernard de 258 sociólogos americanos em 1927 e figura invariavelmente entre os autoresmais citados em tratados de sociologia dessa época. Thornas e Park forneceram a liderança intelectualpara o departamento dominante de sociologia nas duas décadas seguintes a 1910, e foram citadosquase tantas vezes, senão mais, que Cooley (Levine, Carter e Gorman, 1976, 840-2). Merton certavez chamou Thomas de "o decano dos sociólogos americanos" ([1949] 1968,475), e Ralph Turnerescreveu que "provavelmente nenhum outro homem influenciou de forma tão profunda a direçãotomada pela sociologia empírica americana quanto Robert Ezra Park" (1967, ix).

18. Cooley e Parker freqüentaram as aulas de Dewey na Universidade de Michigan. Tal comoDewey (e Park, por sua vez), Cooley tinha sido fortemente influenciado pela Psicologia de James.Park estudou mais tarde com James em Harvard. Thomas iniciou seus estudos de graduação emChicago um ano após a inauguração da universidade e recebeu aulas de Dewey anos depois. Daí emdiante, Thomas tomou-se um colega particularmente íntimo de Mead.