Teoria Pós-colonial e Condição Pós - Aijaz Ahmad

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A TEORIA PÓS-COLONIAL E A ‘CONDIÇÃO PÓSAijaz Ahmad O Fim da História é a morte do Homem como tal. Alexandre Kojève Vamos, neste momento, nos deter com algum detalhe acerca da questão da ‘teoria pós- colonial’. 1 Meu ponto de partida será refletir sobre o outro termo que aparece no título da discussão em tela: a Pós-Condição. A frase é tomada de empréstimo a Niethammer, cujo livro sobre histórias anteriores à ‘pós-história’ 2 foi publicado em Hamburgo apenas alguns meses depois que Francis Fukuyama, o filósofo da Rand Corporation, publicou seu famoso ensaio, posteriormente revisado e ampliado em um livro no qual expõe sua visão sobre o fin de l’histoire, 3 uma versão bastante mais dócil da tese filosófica de Kojève. Os dois autores dificilmente poderiam ser mais diferentes no que concerne à persuasão política, a perspectiva filosófica e a estrutura do argumento. É de estranhar, portanto, que ambos estivessem preocupados Fukuyama exortando e Niethammer em uma posição ao mesmo tempo antagônica e nuançada com as múltiplas e algumas vezes mutuamente contraditórias posições na história intelectual européia que tendem, periodicamente, a anunciar que a História acabou. Como hoje em dia muito ouvimos falar sobre o fim da História e de suas “metanarrativas de emancipação” – no registro de Fukuyama, mas também em registros de posições pós-modernistas, desconstrutivistas e pós-colonialistas talvez seja interessante iniciar esta conversa com uma breve reflexão sobre algumas das origens políticas dessa reação “pós-ista” da filosofia. I As origens da idéia, obviamente, podem ser rastreadas até Hegel. Enunciações deste tipo, porém, quase sempre em versões muito distantes de qualquer coisa que Hegel pudesse ter dito ou pensado, tornaram-se mais estridentes e confusas em duas conjunturas históricas distintas: 1 Texto base para uma conferência ministrada na York University, Toronto, em 27 de novembro de 1996. Notas de rodapé e alguns esclarecimentos foram acrescentados para a publicação. Tradução da Profª. Maria Célia M. de Moraes, PPGE/UFSC, em novembro de 2001. Revisão e notas complementares, Prof. Ricardo G. Müller, PPGSP/UFSC, maio de 2004. Obs.: Decidimos incluir as expressões originais em inglês nos trechos de tradução e compreensão mais complexas. 2 Lutz Niethammer, Posthistoire: Has History Come to an End?, London, 1992. [original alemão, 1989]. 3 Francis Fukuyama, ‘The End of History?’, The National Interest, Summer 1989; e The End of History and the Last Man, London, 1992. A versão de Fukuyama é bem mais dócil que as aulas de Kojève sobre Hegel, nos anos de 1930, e nas quais buscou inspiração para sua interpretação da “Dialética do Senhor e do Escravo”. Nos anos de 1950, entretanto, também Kojève passou a ver os Estados Unidos como o Estado Final da igualdade e da liberdade, como veremos.

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texto sobre pós colonialismo

Transcript of Teoria Pós-colonial e Condição Pós - Aijaz Ahmad

  • A TEORIA PS-COLONIAL E A CONDIO PS

    Aijaz Ahmad

    O Fim da Histria a morte do Homem como tal.

    Alexandre Kojve

    Vamos, neste momento, nos deter com algum detalhe acerca da questo da teoria ps-

    colonial.1 Meu ponto de partida ser refletir sobre o outro termo que aparece no ttulo da

    discusso em tela: a Ps-Condio. A frase tomada de emprstimo a Niethammer, cujo livro

    sobre histrias anteriores ps-histria2 foi publicado em Hamburgo apenas alguns meses

    depois que Francis Fukuyama, o filsofo da Rand Corporation, publicou seu famoso ensaio,

    posteriormente revisado e ampliado em um livro no qual expe sua viso sobre o fin de

    lhistoire,3 uma verso bastante mais dcil da tese filosfica de Kojve. Os dois autores

    dificilmente poderiam ser mais diferentes no que concerne persuaso poltica, a perspectiva

    filosfica e a estrutura do argumento. de estranhar, portanto, que ambos estivessem

    preocupados Fukuyama exortando e Niethammer em uma posio ao mesmo tempo antagnica

    e nuanada com as mltiplas e algumas vezes mutuamente contraditrias posies na histria

    intelectual europia que tendem, periodicamente, a anunciar que a Histria acabou. Como hoje

    em dia muito ouvimos falar sobre o fim da Histria e de suas metanarrativas de emancipao

    no registro de Fukuyama, mas tambm em registros de posies ps-modernistas,

    desconstrutivistas e ps-colonialistas talvez seja interessante iniciar esta conversa com uma

    breve reflexo sobre algumas das origens polticas dessa reao ps-ista da filosofia.

    I

    As origens da idia, obviamente, podem ser rastreadas at Hegel. Enunciaes deste tipo,

    porm, quase sempre em verses muito distantes de qualquer coisa que Hegel pudesse ter dito ou

    pensado, tornaram-se mais estridentes e confusas em duas conjunturas histricas distintas:

    1 Texto base para uma conferncia ministrada na York University, Toronto, em 27 de novembro de 1996. Notas de

    rodap e alguns esclarecimentos foram acrescentados para a publicao. Traduo da Prof. Maria Clia M. de Moraes,

    PPGE/UFSC, em novembro de 2001. Reviso e notas complementares, Prof. Ricardo G. Mller, PPGSP/UFSC, maio de

    2004. Obs.: Decidimos incluir as expresses originais em ingls nos trechos de traduo e compreenso mais complexas.

    2 Lutz Niethammer, Posthistoire: Has History Come to an End?, London, 1992. [original alemo, 1989].

    3 Francis Fukuyama, The End of History?, The National Interest, Summer 1989; e The End of History and the Last

    Man, London, 1992. A verso de Fukuyama bem mais dcil que as aulas de Kojve sobre Hegel, nos anos de 1930, e

    nas quais buscou inspirao para sua interpretao da Dialtica do Senhor e do Escravo. Nos anos de 1950, entretanto,

    tambm Kojve passou a ver os Estados Unidos como o Estado Final da igualdade e da liberdade, como veremos.

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    durante aos anos de 1930 juntamente com a Revoluo, a Depresso, o fascismo e a guerra

    mundial e, posteriormente, no atual perodo de triunfalismo capitalista. No entanto, o repertrio

    do imaginrio ps-histrico manteve-se perpassando tradies de pensamento complexas e rivais

    e seria um erro identific-lo no interior de uma nica concepo poltica. Nas reflexes de Hegel

    sobre a Revoluo Francesa, naturalmente, a idia do Fim possua o significado predominante

    de Inteno ou Vocao: em outras palavras, tratava-se da proposio de que a Histria

    encontrara finalmente sua vocao na Idia de Liberdade, que se tornara o solo irreversvel sobre

    o qual as lutas humanas coletivas seriam travadas dali em diante.

    Nos anos de 1930, no entanto, tempos do Nacional-Socialismo, surgem trs verses que

    rivalizavam em uma definio da posthistoire. Na apologia nazista, o prprio Terceiro Reich era

    apresentado como o Estado Final, ainda em seu processo de universalizao, da qual se dizia ser a

    tendncia da histria. Em segundo lugar, aqueles que posteriormente se desiludiriam com o

    Reich, seja pela forma como se concretizou ou porque simplesmente deixou de existir, passaram

    a cultivar uma melancolia ps-histrica, tornando-se profundamente cticos no apenas no que se

    refere exeqibilidade de qualquer tipo de projetos sociais coletivos, mas tambm sobre o que

    Spengler j havia chamado de progresso cor-de-rosa. Assim, as vrias formas de retrao se

    estenderam de uma estica a-sociabilidade ao (tomando a frase foucaultiana para nossos prprios

    propsitos) Cuidado do Eu (Self), at o quase aristocrtico clericalismo do Ser. 4

    Por outro lado, em uma perspectiva completamente diversa, alguns dos mais poderosos

    pensamentos que emergiram entre a intelligentsia alem em oposio aos nazistas, notadamente

    os escritos de Horkheimer e Adorno, identificaram um pouco depressa demais uma crtica ao

    barbarismo tecnologicamente eficiente dos nazistas com um eclipse global da razo e da arte de

    4 Niethammer, sobretudo, se destaca nesta segunda categoria de intelectuais ps-histricos. Heidegger praticamente no

    usa o termo, mas sua participao entusistica no projeto nazista e subseqente retrao naquilo que aqui chamei de

    clericalismo do Ser, ilustra a mudana sociolgica de uma categoria a outra. Nas ambigidades desse episdio, o

    criticismo de Habermas nunca foi respondido de modo apropriado, embora seja vasta a literatura sobre o tema. Ver, a

    respeito, seu captulo sobre Heidegger em The Philosophical Discourse of Modernity (Cambridge, 1987) e,

    especialmente, seu ensaio posterior Work and Weltanschauung: the Heidegger Controversy from a German

    Perspective, in Jurgen Habermas, The New Conservatism: Cultural Criticism and the Historians Debate (Cambridge,

    1989). Ver, tambm, de Pierre Bourdieu, The Political Ontology of Martin Heidegger (London, 1991, original francs

    de 1988), que mereceria ser mais conhecido. Os dois autores, brilhantemente, associam a questo da relao entre o

    pensamento heideggeriano e sua afiliao nazista sem negar ou absolutizar a autonomia do pensamento filosfico. Deve-

    se acrescentar, ainda, que h pouco a encontrar, nos ltimos e supervalorizados escritos de Heidegger, acerca da questo

    da tecnologia que no estivesse antecipada em Man and Technics, de Spengler, publicado pela primeira vez em 1931,

    aproximadamente na poca em que Heidegger j fortalecia sua associao com outros pensadores conservadores de

    orientao poltica fascista, como Carl Schmitt e os irmos Junger.

  • 3

    fato, identificaram aquele barbarismo particular com uma armadilha que aprisiona a prpria razo

    tecnolgica da modernidade. O vanguardismo implacvel (remorseless) de Adorno no que

    concerne a arte e a literatura, como os refgios confiveis tanto da razo tecnolgica como o da

    cultura popular, consistente com o pessimismo de seu Minima Moralia e com a percepo de

    que uma poltica coletiva de tipo revolucionrio impossvel diante da massificao da cultura

    moderna; massa e popular so, nos escritos de Horkheimer e Adorno, palavras de degradao

    pontual e irrecupervel. Aquilo que Bourdieu chama de o conservantismo ultra-revolucionrio

    e populismo aristocrtico de Heidegger, encontra seu contrrio e complemento nos escritos de

    Adorno, na forma de um aristocratismo avant-garde no qual a arte freqentemente cumpre o

    mesmo papel do ser nos efeitos de profecia sacerdotal de Heidegger.5 Nesta verso, o Terceiro

    Reich, e a difusa razo tecnolgica da qual o Reich parece ser a principal corporificao, soletra o

    fim da Histria. No, porm, como sua realizao, desejo dos apologistas do nazismo, mas como

    sua negao final, pela impossibilidade, seja de pensar ou construir a Histria como um projeto

    emancipatrio em qualquer futuro previsvel.

    Mas sejamos mais precisos. Para boa parte da filosofia de esquerda que amadureceu na

    Europa Ocidental entre Petrogrado e Munique, em particular nos anos que testemunharam a

    depresso e o triunfo de Hitler, a realidade poltica foi trs vezes cruel: houve o barbarismo

    nazista, por certo, mas tambm o golpe desfechado pela Unio Sovitica de Stalin nas

    possibilidades bolchevistas e nas esperanas revolucionrias, bem como a depresso que atingiu,

    de um lado, o que era conhecido como capitalismo liberal, de outro, a intensificao do

    fetichismo consumista. Confrontado com tal histria, Gramsci, na solido de uma priso fascista,

    permaneceu fiel a uma mxima que assumiu como sua, a do otimismo da vontade, pessimismo

    do intelecto, embora, provavelmente, no compreendesse em sua totalidade a extenso do

    revisionismo bolchevista aps a consolidao de Stalin. Por contraste, Adorno que, ao que parece,

    jamais pertenceu intrinsecamente a um movimento de massa, mesmo de algum derrotado,

    identificava otimismo apenas com as intensidades estticas e a plenitude estreita da arte de

    vanguarda; a Histria, no antigo sentido filosfico de um projeto no qual a emancipao de

    alguns estava visceralmente ligada emancipao de todos, parecia, ento, no ter, virtualmente,

    qualquer perspectiva.

    Este elitismo acadmico e de vanguarda como uma reao ao desencanto com a poltica

    5 Bourdieu, P., ibid., p. viii, 49 e 96.

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    retornaria, em escala muito maior, entre os intelectuais parisienses que dominaram a cena depois

    de maio de 1968, especialmente quando muitos deles se retiraram da extrema esquerda para se

    reconciliar com o novo e neoliberal conservadorismo.

    O que impressiona nessa retomada do elitismo cultural, no entanto, o fato de que todos

    os temas da Escola de Frankfurt antinomias da Ilustrao, eclipse da razo, as ambigidades do

    progresso, a massificao da cultura, o declnio das possibilidades revolucionrias que

    causaram tanto desconforto e mesmo pessimismo moral em Adorno e Benjamin, so agora

    reencenados como fontes de prazer e sinais de uma nova liberdade, como se esta nova sensao

    de ser contemporneo ao fim do sentido, morte do social, etc. tivesse produzido um campo sem

    precedentes de possibilidades para o ldico, o jogo (play) como se Adorno estivesse sendo

    relido por Daniel Bell, Marshall McLuhan e Pato Donald.

    Um aspecto importante, que caracteriza a esttica ps-moderna, o fato de aquilo que foi

    vivido como uma fonte de angstia na esttica modernista encena-se agora no registro de um

    prazer infinito. Mais ainda, o ps-moderno ps-histrico no sentido preciso de ser um discurso

    sobre o fim do sentido no sentido de Derrida, da submisso (deferral) infinita de todo

    significado linguagem e ao trabalho filosfico, ou no de Lyotard, tanto no que denomina

    incredulidade em relao s metanarrativas da emancipao, como em sua proposio de que

    no h critrios para a escolha entre diferentes jogos de linguagem externos aos respectivos

    jogos. No por coincidncia, a conscincia filosfica ps-moderna se distingue da sensao de

    sofrimento inerente a uma problemtica existencialista anterior, caracterizada pela ausncia de

    sentido, pelo absurdo e pela afirmao de seu discurso do fim do sentido como uma feliz

    libertao do prprio Logos.

    Portanto, temos no apenas uma, mas duas vindicaes referentes ao Fim da Histria.

    H a de Fukuyama, quase-hegeliana, que prope um forte gesto de reconciliao com

    Nietzsche, como veremos adiante.

    Mas h tambm a ps-modernista, que possui uma herana bem mais complexa:

    conectada no com Hegel, mas com Heidegger e por meio da mediao de Heidegger, com o

    ambiente filosfico da Alemanha ps-Weimar e descendente mais ou menos direta de

    Nietzsche, mas de um veio nietzscheano bastante diverso ao que recorre Fukuyama. Tais

    proposies filosficas so distintas entre si e possuem diferentes modos de argumentao. H,

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    no entanto, semelhanas entre elas, sendo a mais surpreendente de todas a que nenhuma capaz

    ou mesmo deseja pensar um possvel futuro para a humanidade que possa ser basicamente

    diferente do atual triunfo neoliberal e a conseqente universalizao do fetichismo da mercadoria.

    Pergunta-se, ento, como filsofos to distintos como Fukuyama e os ps-modernos

    chegam mais ou menos mesma concluso? A associao mais substantiva , obviamente, um

    compromisso comum s modalidades existentes da democracia capitalista; mas h tambm

    influncias determinantes, notadamente a de Kojve, que nos fazem lembrar que as duas atuais

    linhas de pensamento ps-histrico, no obstante suas divergncias em outros aspectos, possuem

    algumas origens filosficas comuns.

    II

    O prprio Fukuyama reconhece sua dvida com Kojve e bastante conhecido o fato de

    que esta influncia lhe foi filtrada por meio de Leo Strauss e Allan Bloom. Por si s, j bastante

    significativo que a influncia de Kojve tenha se exercido sobre um setor da intelligentsia norte-

    americana por meio de interlocutores to solidamente reacionrios o que, de alguma forma,

    explica como a argumentao de Fukuyama que se prope a examinar seriamente a dialtica do

    Senhor e do Escravo de Hegel passa, sem qualquer esforo, convico radiante de que a

    democracia capitalista, liderada pelos Estados Unidos, no apenas triunfou sobre seus principais

    adversrios, particularmente o comunismo, como tambm provou ser algo assim como um ponto

    final na evoluo poltica da humanidade.6

    Menos amplamente reconhecidas so a extenso e a natureza contraditria da influncia

    de Kojve em Paris, do incio dos anos de 1930 em diante. Seus Seminrios sobre Hegel, em

    particular os sobre a Fenomenologia, no perodo de 1933 a 1939, foi um dos eventos definitivos

    para tornar Hegel uma figura central nos debates filosficos franceses durante as duas ou mais

    dcadas seguintes. Mas tratava-se de uma leitura muito particular de Hegel, filtrada, igualmente,

    6 Allan Bloom, professor de Fukuyama, era amigo ntimo de Leo Strauss e do editor em ingls da obra de Kojve sobre

    Hegel. Cf. Kojve, A., Introduction to the Reading of Hegel, transl. James H. Nicholls Jr., ed. Allan Bloom, Ithaca,

    N.Y., 1969. Strauss, por sua vez, era amigo de Kojve desde os anos de 1930 (ambos partilhavam a mesma admirao

    por Heidegger), como tambm de Carl Schmitt, terico jurista e antigo fascista. Quando Strauss publicou seu famoso

    livro sobre a tirania, Kojve respondeu, a convite do amigo, com seu ensaio Tyranny and Wisdom, ao qual Strauss

    ofereceu a trplica. Para textos relevantes desta interlocuo, ver a edio de On Tyranny, organizada por Victor

    Gourevich e Michael Roth (New York, 1991). No referido ensaio, Kojve declara que de todos os estadistas possveis,

    incontestavelmente o tirano o mais apto a receber e aplicar os conselhos do filsofo. Sem inteno, a observao

    acabou por se transformar em um irnico comentrio porque Kojve passou as ltimas duas dcadas de sua vida como

    funcionrio do governo francs e Fukuyama, autodeclarado discpulo de Kojve, trabalha para a Rand Corporation e

    para o Departamento de Estado dos Estados Unidos.

  • 6

    por Marx e Heidegger; deve-se a Kojve ter introduzido Heidegger intelligentsia francesa. De

    fato, a juno (the pairing) entre Marx e Heidegger, que se tornou to convencional (a

    convention) na desconstruo de Derrida, pode ser traada diretamente a Kojve, com a diferena

    chave de que os desconstrutivistas tendem a desprezar totalmente Hegel e reivindicam a

    radicalizao de Marx submetida autoridade superior de Heidegger.7 Esta radicalizao de

    Hegel e Marx sob a aplicao de Heidegger cujo pensamento Karl Jaspers, professor de Kojve

    e uma vez amigo de Heidegger, considerava em essncia, privado de liberdade, ditatorial,

    privado de comunicao8 um lado da histria. Nesta mesma fase Kojve foi, juntamente com

    Baudrillard, um comunista.9 Foi, tambm, simpatizante do clebre grupo de extrema esquerda,

    Socialisme ou Barbarie, que entre seus seguidores inclua Lyotard e Castoriadis, e com o qual

    Walter Benjamin tambm teria contato por meio de Georges Bataille, um membro chave dos

    seminrios de Kojve.10

    De fato, Kojve exerceria influncia decisiva sobre Bataille e Lacan, que

    figuravam entre seus alunos prediletos e que mais tarde seriam figuras seminais no pensamento

    ps-estruturalista. 11

    .

    7 Derrida reafirma o status da desconstruo como uma radicalizao do marxismo em Spectres of Marx (London e

    New York, 1994, e Rio: Relume Dumar, 1995). Mas esta reivindicao pode ser encontrada no prprio Heidegger.

    Como assinala Bourdieu: De todos os esquemas manipuladores de Carta sobre o humanismo, nenhum poderia afetar os

    importantes marxistas de modo mais eficaz como a estratgia de segundo grau de (...) usar a linguagem de um dilogo

    produtivo com o marxismo, a estratgia tipicamente heideggeriana de uma (artificial) superao mediante a

    radicalizao (p. 94; grifos e parnteses no original). Meus prprios e breves comentrios sobre a utilizao do esquema

    heideggeriano por Derrida podem ser encontrados em Reconciling Derrida: Spectres of Marx and Deconstructive

    Politics, New Left Review, n. 208, November-December 1994; publicado tambm em Aijaz Ahmad, Lineages of the

    Present, New Delhi: 1996, e S. Paulo: Boitempo, 2002.

    8 Citado por Habermas, em The New Conservatism, op. cit, p.142, a partir de um relatrio de Jaspers, em 1945, a um

    comit de des-nazificao estabelecido na Universidade de Freiburg, na qual Heidegger foi reitor sob o nazismo.

    9 Depois da Guerra, no entanto, uma comisso do Partido Comunista Francs denunciou a filosofia de Kojve como de

    tendncia fascista.

    10 Para o compromisso de Derrida com o hegelianismo de Bataille, mediado por Kojve, ver From Restricted to General

    Economy: a Hegelianism without Reserve, em Jacques Derrida, Writing and Difference, Chicago, 1978 e S. Paulo:

    Perspectiva, 1967 (original francs de 1967). Em uma nota de rodap, Derrida afirma (1978, p. 334): Anunciamos aqui

    e agora que, pelo menos para Bataille, no havia uma ruptura fundamental na leitura hegeliana de Kojve, qual ele

    subscrevia quase totalmente, e a verdadeira instruo do marxismo (sem grifos no original). O que Bataille considera a

    verdadeira instruo do marxismo naturalmente uma outra coisa. (Obs.: Esse ensaio no foi includo na edio

    brasileira).

    11 Para a influncia de Kojve sobre Lacan, cf. Anthony Wilden, Language of the Self (Baltimore, 1968). Como Wilden

    assinala: Os primeiros usos de Lacan da noo hegeliana de desejo repetem as frmulas kojevianas. De fato, h poucas

    leituras contemporneas de Hegel que no guardam considervel dvida ao comentrio de Kojve, e ele prprio tem

    dvida igual com Heidegger (...) Embora seja s vezes difcil saber se Kojve, Heidegger ou Hegel quem fala, o

    trabalho de Lacan com freqncia refere-se diretamente a Kojve (p. 193-4). Ver tambm uma breve digresso sobre

    Kojve em Elisabeth Roudinesco, Jacques Lacan & Co.: A History of Psychoanalysis in France, 1925-1985. (London e

    Chicago, 1990). Enfatizando o fato de que a leitura de Hegel por Kojve foi to original que pouco se parece com o

    que Hegel realmente escreveu, Roudinesco afirma: No foi por coincidncia que Lacan pode descobrir no discurso de

  • 7

    No se busca traar algo to direto como uma linhagem poltica ou intelectual uniforme,

    mas certa ambincia, uma matriz ideolgica complexa, quase um clima, e certas formas de

    pensamento que cresceram juntos e entraram em confronto uns com os outros de modos

    complexos. Heidegger parece ter sido uma figura central (enquanto Kojve ministrava seu

    seminrio em um auditrio, Henri Cobin expunha o Ser e Tempo de Heidegger no auditrio ao

    lado). Embora em seu index o livro de Fukuyama abra apenas uma entrada para Heidegger

    razovel afirmar que, pela influncia de Bloom e Strauss, ele tambm se relacionava com aquela

    ambincia intelectual de radical conservadorismo no perodo entre guerras na Alemanha, cujas

    amarras ideolgicas Niethammer explicita, e que incluam Heidegger e Schmitt como figuras

    centrais. O prprio Kojve foi fortemente influenciado pela filosofia heideggeriana, mas no h

    evidncias de que tenha se aproximado do nacional-socialismo, muito embora suas relaes

    intelectuais com Carl Schmitt, sua parceria com Leo Strauss e seu fascnio filosfico com a

    violncia paream indicar que a questo da formao de Kojve no possa ser facilmente

    dissociada daquele clima intelectual de ampla disposio autoritria.12

    A questo torna-se ainda

    mais complexa pelo fato de que Lyotard e Derrida, a quem ningum em s conscincia pode

    acusar de simpatias nazistas, lideraram uma campanha, na Frana, para proteger Heidegger de

    qualquer discusso acerca de sua vinculao aos nazistas e de sua subseqente recusa em

    reconhecer publicamente tal associao. Na Alemanha, este mesmo papel foi desempenhado,

    entre outros, por Ernst Nolte, o qual tambm recupera temas especficos de declaraes polticas

    pr-nazistas de Heidegger no curso de seu esforo revisionista de normalizar a experincia

    nazista como uma resposta aceitvel ascenso de Stalin na Unio Sovitica e como um

    elemento, entre outros, do que Nolte, fazendo eco a muitos apologistas do nazismo do passado,

    chama de guerra civil internacional.

    Finalmente, h o fato de as mudanas fundamentais na prpria carreira e em atitudes de

    Kojve, que nos faz lembrar de tantas outras. O Kojve que primeiramente encontramos como

    professor dos legendrios seminrios, via-se a si mesmo como um comunista, analisava a

    interpretao hegeliana das histrias gmeas da religio e da filosofia mediante as categorias

    marxianas de alienao, falsa conscincia e, sobretudo, trabalho. Sobre esse perodo de seu

    Kojve os meios necessrios para efetivar uma nova interpretao de um corpo de pensamento original. Ao lado de

    Kojve ele aprendeu como fazer os textos de Freud dizer aquilo que no dizem (p. 138).

    12 Niethammer refere-se ao juzo de Kojve sobre as estruturas do mundo moderno como tendo sede de sangue (p. 91)

    e Descombes fala de sua concepo terrorista da histria. Ver a respeito, Vincent Descombes, Modern French

  • 8

    pensamento, Roth assinala que: para Kojve, a dinmica da relao entre Senhor e Escravo o

    motor da Histria: a dominao pe a histria em movimento e seu fim ser a igualdade. 13

    Nesta leitura, h duas verses do que Kojve denomina fin de lhistoire. Uma das verses indica

    que vivemos em um perodo ps-histrico no sentido de que um projeto de igualdade foi

    historicamente iniciado com a Revoluo Francesa e pela filosofia de Hegel, e tudo o que resta

    finalizar praticamente aquele projeto ao qual, de todo modo, no h alternativas. Em uma

    verso mais forte, o fim da histria s poderia ser alcanado com o fim da luta de classes e o

    triunfo das ideologias escravas, i.e. o triunfo da igualdade sobre a hierarquia, aproximadamente

    identificada com o Estado Final em uma sociedade sem classes.

    Nos anos de 1950, quando Kojve recriava-se a si prprio sob o disfarce de um ilustre

    funcionrio pblico, trs grandes mudanas ocorreram. Primeiro, a luta de classes, e com ela a

    luta pelo reconhecimento, foram declaradas essencialmente mortas em pases de capitalismo

    avanado, nos quais a maior parte da mais-valia, a seu ver, retornava ao trabalhador: ... os

    Estados Unidos j alcanaram o estgio final do comunismo marxista uma vez que, com efeito,

    todos os membros de uma sociedade sem classes podem se apropriar daquilo que se lhes apraz,

    sem que tenham que trabalhar mais do que querem e o estilo de vida americano o adequado

    (fitted) ao perodo ps-historico.14 Segundo: tal Fim da Histria, no entanto, foi identificado a

    um sentido weberiano de racionalizao completa da sociedade e uma sensao de nusea, vazio

    e tdio similar que se tornara moda na Frana, poca, por meio das diferenciadas fices de

    Sartre, Camus, Franoise Sagan, et al. Terceiro, os interesses de Kojve mais e mais se afastaram

    da filosofia da Histria em direo elaborao de Discursos e o tom de sua prosa tambm

    mudou, coerentemente, para um registro notadamente no-hegeliano e surpreendentemente

    similar ao dos ps-estruturalistas: O propriamente chamado aniquilamento definitivo do

    Homem tambm significa o desaparecimento definitivo do discurso (logos), no sentido estrito,

    escreveu em uma nota da edio de 1962 de seu livro sobre Hegel (grifos e parnteses no

    original).

    Vale a pena sublinhar, uma vez mais, dois aspectos de sua carreira. Por um lado, a

    vertigem dessas mudanas faz lembrar, inevitavelmente, as carreiras dos luminares da ps-

    Philosophy, Cambridge: 1980, p 14 (original francs de 1979).

    13 Michael S. Roth, Knowing and History: the Resurgence of French Hegelianism from the 1930s through the Postwar

    Period, Princeton, 1988, p.102.

  • 9

    modernidade francesa, os quais Daniel Singer, de modo cruel, uma vez chamou de bastardos de

    maio e vira-casacas maostas.15 Mas tambm esclarece que Fukuyama, o qual retoma um

    aspecto do pensamento de Nietzsche, enquanto os ps-modernos retomam vrios outros, duas

    vezes leal a Kojve: ele adota a interpretao de Kojve, de 1930, da Dialtica do Senhor e do

    Escravo, mas a separa do marxismo heideggeriano adotado por Kojve no perodo,

    recombinando-a com o duplo carter do pensamento de Kojve dos anos de 1950: a celebrao

    dos Estados Unidos como o Estado Final, o que finaliza a Histria, mas tambm um lamento pelo

    Fim da Histria como uma racionalizao weberiana e o reino de mediocridade. no terreno

    dessa dupla face de Kojve (duplicidade?) que o fim de todas as metanarrativas, de Lyotard,

    encontra o fim da histria de Fukuyama, e que a ps-modernidade torna-se uma outra verso do

    fin de lhistoire. No, porm, no sentido hegeliano de uma Histria descobrindo sua vocao por

    perseguir a igualdade e a liberdade, mas em seu sentido mais recente e vulgar de viver, com

    jbilo, os momentos subseqentes ao prprio fim do sentido.16

    Tal complexidade, na herana

    filosfica da ps-condio, indica que o pensamento de Fukuyama no , de forma alguma, sui

    generis. Ao contrrio, ele partilha boa parte de sua formao intelectual, de suas convices

    polticas e viso de mundo com as linhas dominantes da ps-modernidade, tenha ele ou no

    simpatia aos presunosos modos parisienses, em qualquer sentido mais evidente. No se trata

    apenas do fato de que Lyotard reordenou (repackaged) na linguagem filosfica francesa, em um

    formato mais atraente, o que ele havia ouvido de Daniel Bell, entre outros, mas tambm de que a

    influncia de Kojve em Paris, e alhures, se estendeu muito alm de Fukuyama. Assim, se um dos

    principais registros da declarao de Fukuyama sobre o fim da histria de alguma forma se

    assemelha declarao de Lyotard do fim de todas as metanarrativas ou do anncio de

    Baudrillard sobre a morte do social, tal semelhana no meramente acidental.

    III

    Naturalmente, o discurso de Fukuyama est preso, de modo peculiar, a uma contradio

    14

    Citado por Niethammer, p 67.

    15 Daniel Singer, Be Realistic: Ask for the Impossible. Nation (May 31, 1993).

    16 O jbilo, de fato, caracteristicamente ps-moderno. Nietzsche, por exemplo, possua uma percepo muito mais

    forte e irnica disso tudo. Como afirma, em Assim falou Zaratustra, em uma seo da qual Fukuyama tirou parte de seu

    ttulo: Tm-se pequenos prazeres para o dia e pequenos prazeres para a noite: mas tm-se um olhar para a sade. Ns

    inventamos a felicidade, dizem os ltimos homens, e eles piscam.

  • 10

    interna insupervel, uma vez que ele buscou reconciliar duas tendncias contrastantes de uma

    tradio filosfica mais ampla, como indicam os dois termos que escolheu para o ttulo de seu

    livro, O Fim da Histria e o ltimo Homem. Pode parecer, primeira vista, que a figura do

    ltimo Homem representa marcadamente (seamlessly) o momento no qual a prpria Histria

    chega ao fim. No entanto, na estrutura do argumento de Fukuyama h um considervel desvio

    (slippage). Ele busca em Hegel a retrica do fim da histria com vistas a assinalar que

    testemunhamos em nossa poca, nos anos de 1990, o advento da to esperada liberdade que

    Hegel havia vislumbrado na figura do Homem a Cavalo, em Jena, e que na concepo de

    Fukuyama, agora assume a forma final no triunfo global do capitalismo neoliberal e na derrota

    derradeira de seus adversrios. A retrica do ltimo Homem, ao contrrio, descende da

    rejeio nietzscheana aos alinhamentos intelectuais ao humanismo e Ilustrao, bem como de

    sua elitista rejeio, no apenas do que posteriormente passou a ser conhecida como sociedade

    de consumo, mas de qualquer tipo de poder popular, de modo que a narrativa da Modernidade

    torna-se uma narrativa secular, raivosa, agnstica, da queda do homem. Uma narrativa,

    portanto, do advento da mediocridade universal, cujo desencanto dificilmente poderia ser aliviado

    pela persistncia de uma aristocracia espiritual constituda por alguns poucos, como o prprio

    Nietzsche, para no mencionar os mais recentes nietzscheanos.

    Que o ponto de partida hegeliano do pensamento de Fukuyama pudesse, eventualmente,

    levar a concluses nietzscheanas um paradoxo quase delicioso demais. Uma reflexo mais

    atenta, porm, indica que este resultado no assim to surpreendente, uma vez que Hegel e,

    mesmo Kojve, so filtrados no pensamento de Fukuyama por meio de uma tradio intelectual

    cuja prpria estrutura inseparvel do severo clima ideolgico dos anos de 1930, quando no

    apenas um dio ao comunismo, mas uma profunda desconfiana em relao democracia liberal

    seduziu setores da intelligentsia europia sob a presso do nacional-socialismo. A figura do

    ltimo Homem, na elaborao de Fukuyama, de alguma forma tem a cara de Janus. Graas

    emergncia da democracia liberal, este ltimo Homem, localizado no ocidente, conheceu a

    verdadeira liberdade sob a forma de um reconhecimento universal assegurado pelo Estado liberal

    e, complementando as satisfaes do reconhecimento scio-poltico, conheceu tambm as

    satisfaes que acompanham a plenitude consumista. Agora ele busca emancipao no pela

    Razo, mas da Razo; no pela Histria, mas da Histria, sob a forma daquela liberdade

    dionisaca e privatizada a qual, mais recentemente, Foucault chamou de regime de prazeres.

    Tais satisfaes, a de um reconhecimento universal e a da plenitude consumista, possuem, no

  • 11

    entanto, no interior mesmo da auto-realizao mxima do ocidente, uma armadilha (catch)

    encravada. O dilema da democracia liberal, o segredo de sua possvel autodestruio , de acordo

    com Fukuyama, o fato de que qualquer prtica de igualdade universal s pode produzir um estado

    de mediocridade universal, porque o reconhecimento mtuo de cada um por todos s pode ser

    universalizado pela aceitao do menor denominador possvel para o que merece reconhecimento

    igual (only by accepting the lowest possible denominator for what merits equal recognition).

    Assim, o triunfo da democracia liberal para Fukuyama um fim da histria em dois sentidos

    bastante diferentes.

    Um sentido muito forte , por certo, o que descreve os Estados e sociedades ocidentais do

    capitalismo avanado como totalmente confortveis em sua afluncia e ordem liberal; aliviados

    com a derrota de seus adversrios e no imaginam qualquer outro futuro para si mesmos; o

    triunfo do capitalismo liberal, at onde se pode perceber, definitivo. Um segundo sentido,

    porm, segue-se imediatamente: este mesmo fim da histria parece produzir nada mais do que

    uma infinita falta de perspectiva, mediocridade, consumismo, um nivelamento de todas as

    distines, uma uniformizao de todas as vontades polticas sob a forma de uma franchise

    universal, um futuro desrtico de completa homogeneidade. Ele cita a reveladora indagao de

    Leo Strauss a Kojve: seria realmente possvel dissolver a oposio hegeliana do Senhor e do

    Escravo sem produzir a mais absoluta igualdade e homogeneidade?.

    Fukuyama indica seu apoio posio de Strauss em trs importantes afirmaes.

    Primeiro, uma vez que a igualdade s pode basear-se em uma mediocridade universal, o que o ser

    humano realmente deseja no pertencer a uma igualdade universal, mas a uma comunidade

    especial que lhe prpria, no interior de um complexo sistema de numerosas outras comunidades

    do mesmo tipo; no a democracia liberal de cidadania universal, mas um sistema heterogneo de

    comunidades mutuamente exclusivas nas quais pode-se alcanar a satisfao do reconhecimento

    apenas por aqueles que se reconhecem como pares. Segundo, citando a descrio de Nietzsche

    sobre o Estado, como o mais frio de todos os monstros frios, Fukuyama afirma que bem

    maior a satisfao humana por pertencer a uma comunidade imediata, diretamente experienciada,

    do que em uma cidadania igual no interior do Estado; a poltica assim dissolvida na

    sociedade e a sociedade, ela prpria, em suas unidades constitutivas, em um jogo infinito de

    heterogeneidades. Nessa direo, Fukuyama chega a ponto de insinuar que os regimes autoritrios

    que supervisionaram o extraordinrio crescimento capitalista na sia Oriental podem ser

  • 12

    humanamente mais satisfatrios na medida em que tm como base, no a igualdade universal no

    domnio poltico, mas em comunidades integrais e mutuamente distintas no interior da sociedade

    capitalista mais ampla: a conscincia-comunidade a palavra laudatria para tal

    reconhecimento dentro do estmago do regime autoritrio. Para os que tm familiaridade com

    os debates acadmicos em torno da questo de conflitos e denominaes sectrias

    (denominational identitarianism) na ndia, esta celebrao da conscincia-comunidade e esta

    forma de apresentar a positividade da comunidade contra a negatividade do Estado, guarda

    impressionante similitude com os argumentos expostos, agora de forma mais ou menos

    colaborativa, pelos indigenistas (indigenists) de direita e os ps-modernos da subalternidade.

    Longe de ser uma crnica puramente triunfal, o discurso de Fukuyama, de fato, divide-se

    entre uma profunda devoo ao capitalismo liberal e uma igualmente forte tentao em rejeit-lo

    em favor de regimes ditatoriais; o discurso divide-se, tambm, entre as polaridades, de um lado,

    de certo otimismo hegeliano sobre a marcha da Histria como um desdobramento da Idia de

    Liberdade e, de outro, de um surpreendente (overwhelming) ceticismo nietzscheano sobre as

    concepes de histria e liberdade como projetos coletivos emancipatrios possveis, ou mesmo

    desejveis. Essas posies filosficas contraditrias que ele simultaneamente busca sustentar no

    interior de suas prprias proposies centrais, tendem, inevitavelmente, a cancelarem-se

    mutuamente. Em primeira instncia, ele ideologicamente compromissado com uma ilimitada

    celebrao do livre mercado e de seu triunfo global; nesta retrica, o livre mercado a prpria

    essncia da liberdade. Ao mesmo tempo, no entanto, ele tambm declara que a emergncia do

    consumo como fundamento bsico para o exerccio da liberdade na atual sociedade capitalista de

    massas, seja no Ocidente ou na sia Oriental, degrada a prpria Idia de Liberdade, enquanto tal.

    O ltimo homem, produzido no fim da histria graas ao triunfo global do capitalismo

    neoliberal, se constitui, na prpria formulao de Fukuyama, em uma massa de humanidade

    assolada pela mediocridade, regimes autoritrios e apetite voraz para o mais puro consumo.

    Assim, as texturas e tonalidades de sua prosa oscilam entre o triunfalismo neoliberal e uma

    melancolia ps-histrica. O que tambm tem lgica, uma vez que este filsofo burocrata do

    Imprio Americano pensa-se a si mesmo, formalmente, como um hegeliano, mas no Fim da

    Histria encontra, no a figura de Hegel, mas a de Nietzsche.

    Fukuyama, porm, no se considera ps-moderno ou ps-colonial. Diferentemente de

    tantos ps-modernos e ps-coloniais, de Derrida a Spivak, ele no reivindica para si as

  • 13

    credenciais de ser um radical ou ser de esquerda no atual campo poltico. Diferentemente de

    Lyotard, Kristeva, Glucksmann e outros novos conservadores da ps-modernidade francesa,

    Fukuyama no tem um passado trotskysta, maosta ou qualquer coisa similar. Ele no tem

    nenhum pudor sobre o fato de que ele , e sempre foi, um homem da direita e um defensor do

    capitalismo neoliberal; afinal, ele passou boa parte de sua vida entre o Departamento de Estado

    dos Estados Unidos e a Rand Corporation. Se me refiro aqui a Fukuyama, flutuando (hovering)

    entre uma ps-condio e a lealdade (allegiance) especfica ao ps-colonialismo, por

    diferentes razes.

    A primeira delas a mais difcil de expor no atual clima intelectual, qual seja, que,

    comparativamente, considero Fukuyama um pensador mais consistente e compromissado do que

    outros, como Lyotard e Baudrillard, que tanto alimentaram o jargo da teoria ps-colonial. Digo

    isto apesar do fato de que, a meu ver, ao fim e ao cabo Fukuyama est virtualmente errado em

    todos os pontos importantes. Ele acerta, por exemplo, embora sem nenhuma originalidade, ao

    afirmar que o capitalismo encontra-se mais universalmente dominante e firmemente enraizado do

    que em qualquer outro momento deste sculo; mas erra ao associar o triunfo capitalista

    emergncia da igualdade e do reconhecimento universal. O que se universalizou no nem um

    estado universal do bem comum ou um acesso igual a bens e servios, mas mercados integrados

    para a circulao do capital e para a expropriao do trabalho e, no domnio cultural, a

    universalizao da ideologia do fetichismo da mercadoria. Pode-se argumentar, sem muito

    exagero, que se subtrairmos o fetichismo da mercadoria, quase nada que seja fundamentalmente

    capaz de universalizao mantm-se na cultura do capitalismo atualmente existente. De fato, a

    histria desse capitalismo demonstra que a dissoluo das comunidades tradicionais e a

    mobilidade de populaes sob a presso capitalista produzem, no uma cultura universal de

    valores humanos e igualdades radicais amplamente compartilhados, mas um processo altamente

    malevel de decomposio que constantemente recompe identidades de naes, raas, etnias e

    grupos religiosos, para no mencionar o modismo recente que reivindica a tradio e o

    primitivismo (a condio primordial/primordiality). Pode-se mesmo especular que a grande

    intensificao das polticas de identidade e da ideologia e poltica multi-culturalistas demonstra,

    em alguns aspectos cruciais, a realidade viva de quanto o capitalismo contemporneo est no

    processo de abandonar a idia de igualdade universal, mesmo em suas zonas mais avanadas, de

    modo que os Estados modernos, inclusive nessas zonas, podem se reorganizar como mltiplas

    ilhas de identidades tnicas supervisionadas pelo olhar benigno, mas sempre vigilante, daquela

  • 14

    etnicidade que domina tanto que no precisa se definir a si mesma como etnicidade.

    Fukuyama erra at mesmo nesse ponto: a ideologia comunitria, como um complemento

    do capitalismo industrial, de forma alguma seria atributo exclusivo da sia Oriental e, de fato,

    cresce na prpria Amrica do Norte; ao mesmo tempo, as verses mais estridentes do

    comunitarismo, em zonas atrasadas do capital, esto explodindo legados de governos civis

    seculares to diversos como a Arglia, Egito e ndia. No entanto, a idia de comunidades

    religiosas autogovernadas, como uma alternativa para a cidadania secular no moderno Estado-

    nao, ganha fora no campo da teoria ps-colonial que se autodenomina Estudos Subalternos

    (Subaltern Studies), como transparece na produo mais recente de suas figuras principais.17

    De

    fato, este um recuo de propores histricas. A idia da igualdade universal, at recentemente,

    constitua-se na fora ideolgica mais potente nas lutas contra o imperialismo europeu e contra os

    racismos eurocntricos, complementos necessrios a este imperialismo.

    Naturalmente, Fukuyama nos adverte que precisamente a aspirao da igualdade

    universal que est produzindo uma cultura de mediocridade universal. Por outro lado, Lyotard e

    seus seguidores ps-colonialistas, como Gyan Prakash, um dos ltimos adeptos do paradigma

    subalterno (subalternist), nos asseguram que a prpria idia de universalidade eurocntrica,

    simplesmente mais uma daquelas metanarrativas da emancipao que se tornaram obsoletas

    quando o mundo entrou na ps-modernidade, e que o refgio do eurocentrismo e do racismo deve

    ser buscado no relativismo filosfico e cultural.18

    No obstante suas inspiraes hegelianas, a

    idia de Fukuyama de que o reconhecimento de uma comunidade exclusiva o nico

    reconhecimento que vale a pena encaixa-se em um mundo ps-modernista de implacvel

    relativismo, de absolutizao da diferena e da recusa em admitir que nada que no seja consumo

    de bens e servios pode definir um horizonte de universalidade ou valor normativo.

    Fukuyama, como se v, partilha com a ps-modernidade filosfica muitos de seus temas e

    convices, em particular, aqueles mais prezados pela teoria ps-colonial: por exemplo, sua

    convico de que o heterogneo intrinsecamente superior aos valores da universalidade e da

    igualdade; sua oscilante, mas preferncia ltima por comunidades auto-referentes em detrimento

    17

    Ver, por exemplo, Partha Chatterjee, Secularism and Toleration, Economic and Political Weekly, vol. XXIX, n. 28,

    July 9, 1994. Para uma crtica a todo o espectro de estreitos comunitarismos prevalescentes na ndia hoje em dia, ver

    KumKum Sangari, Politics of Diversity: Religious Communities and Multiple Patriarchies, Economic and Political

    Weekly, vol. XXX, n. 51 & 52, December 30, 1995.

    18 Gyan Prakash, Postcolonial Criticism and Indian Historiography, Social Text, n. 31/32, 1992.

  • 15

    de projetos integradores para a criao de Estados modernos, democrticos e seculares; o tom

    nietzscheano de suas concluses sobre o moderno, etc. Mesmo assim, seu forte compromisso com

    Hegel, embora mediado por Kojve, ainda me impressiona como sendo filosoficamente muito

    interessante. E, no domnio poltico, certamente ele no muito pior do que os tipos ps-

    modernos de pluralismo e pragmatismo americanos, representados, por exemplo, por Richard

    Rorty.19

    Por outro lado, h algo muito honesto e quase encantador na percepo um tanto tardia

    de Fukuyama de que aquilo que ele imaginou ser o advento da Liberdade, produziu uma condio

    humana fundamentalmente desumanizada e srdida, de forma que sua declarao do Fim da

    Histria, contraposta, como , narrativa da Queda do Homem (poised as it is against the

    narrative...), parece ser muito mais ambivalente, mesmo trgica, quando comparada aos tons

    glorificantes do discurso sobre o fim de todas as metanarrativas de Lyotard e seus seguidores ps-

    coloniais. Mas, de acordo com o esprito do tempo, o ecletismo de Fukuyama quase comparvel

    ao dos ps-modernos; e, da mesma forma que o terico ps-colonial tpico regularmente apela

    para sistemas de pensamento contrrios para sustentar uma posio singular, como em um tipo de

    pastiche filosfico, tambm Fukuyama considera plausvel juntar Hegel e Nietzsche no interior de

    uma nica linha de argumentao, no apenas em sua generalidade, mas com referncia precisa

    quelas idias sobre Histria e Razo que mais opem os dois pensadores.20

    Estes comentrios mais extensos sobre Fukuyama se fizeram necessrios porque o fato

    desta convergncia to substantiva entre a ps-modernidade, que se prope a ser um discurso de

    esquerda, e Fukuyama, o qual confiantemente se anuncia como partidrio do conservadorismo

    neoliberal, deve nos levar, acredito, a uma pausa. O paralelismo entre Lyotard e Fukuyama em

    mesclar euforia ps-histrica com melancolia ps-histrica enrazam-se na convico comum de

    que os grandes projetos de uma mudana histrica emancipatria que pontuaram este sculo

    fracassaram. Quando se referem a este fracasso ambos tm em mente, penso eu, as mesmas trs

    marcas (markers) nacionalismo antiimperialista; democracia social de esquerda e comunismo

    que Lyotard, com desdm, repudia como simples metanarrativas da Razo e do Progresso e

    Fukuyama considera ameaas prpria civilizao ocidental; o que ambos partilham uma

    19

    Para uma discusso sobre a convergncia entre pragmatismo e ps-modernidade, ver Sabina Lovibond, Feminism and

    Postmodernism, New Left Review, n. 178, November-December 1989, e Feminism and Pragmatism: a Reply to

    Richard Rorty, New Left Review, n. 193, May-June 1992.

    20 Como afirma Bataille: Nietzsche conhecia de Hegel apenas a vulgata usual. A Genealogia da Moral a prova

    singular do estado de ignorncia geral em que permanecia, e ainda permanece, a dialtica do senhor e do escravo, cuja

    lucidez cega. Citado em Jacques Derrida, Writing and Difference, p. 252.

  • 16

    imensa sensao de alvio com a derrota. A meu ver, est fora de dvida que a derrota desses trs

    projetos de mudana histrica positiva, desses trs modos de conceber a universalidade de nossas

    necessidades comuns, tenha sido decisiva para moldar os discursos dominantes no capitalismo

    avanado.21

    Uma maneira generosa de pensar o ps-modernismo e o ps-colonialismo pode assinalar

    que o prefixo ps desses termos no apenas compartilha um clima intelectual de uma ps-

    condio generalizada, mas contm em si mesmo a percepo desses fins no domnio poltico,

    mesmo que tal percepo neles provoque, no uma sensao de perda, mas de euforia. O que

    admira nessa euforia, contudo, que se o colapso daqueles trs projetos de emancipao universal

    considerado definitivo, a ps-modernidade e seus descendentes ps-coloniais raramente se

    empenham com o que triunfou em conseqncia de tais derrotas. Mesmo se dermos crdito

    palavra metanarrativa penso ser necessrio assinalar, acredito, que to-somente as

    metanarrativas da emancipao encontraram a derrota; a mais meta de todas as metanarrativas

    dos ltimos sculos a sutil e furtiva (creeping) anexao do globo para o domnio do capital

    sobre a humanidade trabalhadora , nessas mesmas dcadas e com espantoso sucesso, adquiriu

    uma forma muito especfica, a do conservadorismo neoliberal. Precisamente no perodo em que

    as grandes lutas pela redistribuio de renda para os de baixo (downwards) foram derrotadas, as

    ofensivas para a redistribuio de renda para os de cima (upwards) foram bem sucedidas e de

    um modo espetacular. A derrota das assim chamadas metanarrativas da emancipao no

    produz entre os ps-modernos apenas incredulidade, como afirma Lyotard, mas tambm grande

    prazer. Na verdade, a ps-modernidade possui sua grande metanarrativa de emancipao em

    outras palavras, emancipao de sculos de dominao da Razo, do Progresso, etc. Por contraste,

    o triunfo da metanarrativa da sujeio universal regra do capital no provoca qualquer

    perturbao na maioria dos ps-istas. Fukuyama apresenta-se como superior em todos os

    sentidos: ele nomeia o vitorioso, o capitalismo neoliberal; ele se identifica abertamente com tal

    vitria, nada camuflando; e ainda, diferentemente dos ps-istas, ele vivencia esta vitria como se

    tivesse um punhado de cinzas em sua boca. No se pode esperar muito mais de um conservador

    quando tantos radicais oferecem to pouco.

    21

    Foucault, que possua sua prpria, mais sutil verso da posthistoire, coloca a questo de modo mais sucinto: Talvez

    estejamos vivendo o fim da poltica. Pois se verdade que a poltica um campo que se abriu pela existncia da

    revoluo, e se a questo da revoluo no pode mais ser posta nesses termos, ento a poltica pode desaparecer. Ver

    Michel Foucault, Entrevista com Bernard-Henry Levi, The Oxford Literary Review, vol. 4, n. 2, 1980, p 12.

  • 17

    IV

    Minha principal razo para comentrios to longos sobre a formao bsica dessa ps-

    condio pode agora ser anunciada mais diretamente: se a ps-modernidade filosfica , no

    momento, uma das formas, seno a forma dominante do pensamento social e poltico euro-

    americano, o que hoje se denomina teoria ps-colonial encontra-se entre as mltiplas formas

    discursivas ps-modernas ou, mais precisamente, um estilo cultural auto-reflexivo no interior

    da ps-modernidade filosfica. Naturalmente, do ponto de vista cronolgico o termo ps-

    colonial apareceu muito antes, nos anos de 1970, em uma abrangente discusso poltica na qual

    participou certo nmero de pessoas, de Hamza Alavi a John Saul, e para a qual eu mesmo

    contribuo, nos anos de 1980, apenas em papel secundrio. No vamos nos deter, no momento, em

    detalhes dessa discusso. No entanto, recapitulei seus principais argumentos em um ensaio

    recente,22

    principalmente para mostrar quo diferente e to mais especfico era o significado deste

    termo antes de sua apropriao pelos estudos literrios e culturais e depois proposto como uma

    hermenutica ps-moderna interdisciplinar. Os participantes daquele debate preocupavam-se, em

    primeiro lugar, com um momento temporal especfico, a onda de descolonizaes que se

    seguiram Segunda Guerra Mundial; em segundo, uma estrutura de poder singular, isto , o tipo

    de Estado que emergiu nos pases recm-independentes; e, em terceiro, o problema terico de

    reconceituar a teoria marxista do Estado capitalista tendo como referncia, no o Estado do

    capital avanado, mas o Estado que emergiu das histrias do capital colonial no momento da

    descolonizao. Em outras palavras, todo o debate centrava-se em um problema muito especfico

    da teoria poltica e relacionava-se a uma conjuntura histrica particular.

    O aspecto surpreendente da teoria culturalista do ps-colonialismo, tal como surgiu mais

    tarde, seguindo-se remodelao (worked over) da academia euro-americana pelo ps-

    estruturalismo francs, que ela no guarda qualquer das virtudes daquele debate, mas todos os

    seus defeitos e acrescenta muitos outros. O binrio colonial/ps-colonial agora utilizado como

    uma categoria fundante no apenas para certos Estados em pases particulares, mas para

    formaes trans-continentais, trans-histricas do mundo em geral. O escopo das citaes pode ser

    omitido por enquanto. No momento, basta simplesmente dizer que quando se examina a

    abrangncia dos crticos ps-coloniais Bill Ashcroft, Gareth Grifiths, Helen Tiffin, Vera

    22 Aijaz Ahmad, Postcolonialism: Whats In a Name?, in Roman de la Campa, E. Ann Kaplan & Michael Sprinker

    (eds.) Late Imperial Culture, London, 1995.

  • 18

    Kutzinski, Sara Suleri Goodyear, Edward Said, Homi Bhabha, Ann McClintock, Gayatri Spivak,

    entre outros percebe-se que o termo virtualmente aplicado em todo o globo, inclusive,

    notadamente, nos EUA, Austrlia, Nova Zelndia, nas Ilhas do Pacfico Sul, nos Estados que

    emergiram do colapso da Unio Sovitica e da Yuguslvia, para no mencionar a totalidade da

    sia, frica e Amrica Latina. s vezes, o termo se aplica ao perodo histrico inaugurado, mais

    ou menos, em 1492; em escritos no to srios, aplica-se a formaes muito mais antigas, tais

    como os Incas e a China das dinastias imperiais. Alguns crticos asseveram que qualquer

    resistncia ao colonialismo sempre j ps-colonial, de tal forma que o termo ps-colonialismo

    passa a incluir o prprio colonialismo e tudo o que vem depois, tornando-se alguma coisa similar

    a uma universalidade sem compaixo, na qual, certamente, a totalidade da experincia moderna

    inclusive as experincias pr e ps-modernas aparecem como uma entre as mltiplas variantes

    dessa universalidade.

    Em outras palavras, quando este incrivelmente elstico ps-colonialismo se aplica ao

    mundo, parece incluir virtualmente todas as coisas. Contudo, quando designa teorias e crticos,

    este mesmo termo ps-colonial se contrai fortemente e passa a se referir no a todos os

    trabalhos tericos produzidos hoje em dia, no a todos os crticos escrevendo nesses tempos

    alegadamente ps-coloniais, mas a um nmero muito pequeno de crticos que partilham um ponto

    de partida terico reconhecidamente comum. Temos, assim, uma notvel discrepncia: de um

    lado, uma imensa trans-historicidade do objeto de anlise; de outro, a constituio de uma

    reduzida elite acadmica para decifrar este objeto globalizado. Esta discrepncia nos leva a uma

    situao na qual, ao fim de tamanha disperso, o ps-colonialismo torna-se, pelo menos em uma

    verso, simplesmente uma hermenutica de leitura, um estilo cultural. Como afirma Helen Tiffin:

    Tambm o ps-colonialismo deve ser caracterizado como possuindo dois registros

    (archives). O primeiro o constri como uma escrita (mais do que como arquitetura ou

    pintura) fundada nas sociedades cuja subjetividade foi constituda em parte pelo poder

    subordinador do colonialismo europeu isto , como escrita de pases ou regies que anteriormente foram colnias da Europa. O segundo registro do ps-colonialismo est

    intimamente relacionado ao primeiro, mas no de modo co-extensivo. Neste caso, o ps-

    colonialismo concebido como um conjunto de prticas discursivas, entre as quais

    predomina a resistncia ao colonialismo (...) Freqentemente no algo intrnseco a um

    trabalho de fico que o coloca como ps-moderno ou ps-colonial, mas a forma pela

    qual o texto discutido.23

    O modo pelo qual os dois termos, ps-moderno e ps-colonial so virtualmente

    23

    Helen Tiffin, in Ian Adam e Helen Tiffin (eds). Past the Last Post. Calgary, 1990, p. vii.

  • 19

    colocados como sinnimos e como ambos so constitudos, no por qualquer experincia

    histrica no acadmica sobre a qual os crticos concentrariam seu poder de anlise, mas

    simplesmente como prticas textuais e formas de discusso , indica um procedimento ps-

    colonial muito mais amplo. H o caracterstico hbito crtico literrio de construir o prprio ps-

    colonialismo como um arquivo, bem como o gesto tpico de tratar a resistncia ao colonialismo

    como uma prtica discursiva que j trans-historicamente ps-colonial. Gareth Griffiths

    afirma algo similar, no mesmo tom expansivo:

    O perfil ps-colonial de um texto no depende de uma simples qualificao temtica ou

    do objeto, mas do grau em que expe aspectos discursivos ps-coloniais. O que podem

    ser esses aspectos est aberto interpretao, assim como os de qualquer discurso que

    busca constituir-se como diferente, mas posso sugerir que certos interesses, tais como o

    deslocamento lingstico, inter-culturalismo e autenticidade ou inautenticidade da

    experincia, exlio fsico, esto entre os aspectos que podem ser caracteristicamente

    identificados como ps-coloniais. 24

    No est bem claro para mim porque o fenmeno do exlio fsico ou o deslocamento

    lingstico e a questo filosfica da experincia autntica, que muito transcendem a experincia

    histrica do colonialismo, devam ser considerados como caracteristicamente ps-coloniais. O

    que espantoso nessas recentes formulaes de Tiffin e Griffiths, que antes, juntamente com

    Ashcroft, escreveram o texto bsico do ps-colonialismo australiano,25

    que ambos consideram o

    ps-colonialismo um tipo de hermenutica textual, de forma que todo o campo de aplicao desta

    hermenutica, qualquer que seja seu objeto, torna-se ps-colonial em virtude de ser lido de uma

    determinada maneira; e ambos consideram o ps-colonialismo como um discurso especfico que,

    no obstante, no possui um objeto especfico, nem mesmo um conjunto de aspectos no

    discursivos definidos; sob qualquer ponto de vista, o que diz ser.

    Homi Bhabha, com rara clareza, definiu a teoria ps-colonial como uma hermenutica

    ps-moderna: Optei por dar ao ps-estruturalismo uma provenincia especificamente ps-

    colonial. 26 Podemos lembrar tambm que os trs mais influentes crticos ps-colonialistas

    Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha derivam suas respectivas inspiraes, se no

    metodologias em larga escala, de trs tendncias bastante distintas mas igualmente influentes do

    ps-estruturalismo francs: a anlise do discurso de Foucault, a desconstruo de Derrida e a

    24

    Gareth Griffiths, Being there, being There, Kosinsky and Malouf, in Adam & Tiffin, ibid., p. 154.

    25 Bill Ashcroft, Gareth Griffiths & Helen Tiffin. The Empire Writes Back: Theory and Practice of Postcolonial

    Literatures. London, 1989.

    26 Homi K. Bhabha. The Location of Culture. London, 1994, p. 64.

  • 20

    psicanlise de Lacan. Said, naturalmente, tornou-se bem mais ambguo em relao a Foucault

    desde seu Orientalismo. Mesmo assim, o ponto de diferena mtua entre esses mestres do ps-

    colonialismo, no apenas no que se refere a preferncias metodolgicas, mas na textura de seus

    respectivos estilos de prosa, precisamente o fato de que cada um subscreve uma tendncia

    diferente na construo da hermenutica religiosa ps-moderna (hagiography).27

    V

    O que , ento, a teoria ps-colonial? Como ponto de partida gostaria de sugerir que at

    onde efetivamente uma teoria, a teoria ps-colonial no se distingue pela especificidade de seu

    objeto, uma vez que seu objeto infinitamente disperso e indeterminado, mas por seu

    procedimento hermenutico, sobretudo como um estilo. No que se refere ao ps-colonialismo

    literrio, ento, podemos dizer que a emergncia da teoria ps-colonial ao final dos anos de 1980

    significa a dissoluo de certos objetos pedaggicos limitados tais como a Literatura do

    Terceiro Mundo, Discurso Colonial, Novas Literaturas em Ingls, mesmo a Literatura

    Comparada, em sentido estrito e sua reconstituio sob os sinais das ps-modernidades cultural

    e filosfica, que estenderam o significado de ps-colonialismo para incluir toda e qualquer

    estrutura de poder e dominao. Em uma outra direo, tambm dissolveram a diferena entre os

    procedimentos de estudos literrios e as metodologias de estudos histricos, de modo que os

    Estudos Subalternos - cujo fundador, Ranajit Guha, foi apropriadamente definido como ps-

    estruturalista por Edward Said28

    - foram renomeados como Criticismo Ps-Colonial por um dos

    mais jovens membros do Grupo, Gyan Prakash, que evoca diretamente a autoridade de Lyotard,

    Derrida e Spivak quando, juntamente com outros, busca assimilar a subalternidade ao ps-

    27

    A ligao de Spivak a Derrida e de Bhabha a Lacan to bvia que no precisa ser demonstrada, mas as mudanas nas

    relaes com Foucault no trabalho de Said merecem alguns comentrios. Ele no um foucaultiano no sentido em que

    Spivak uma derridariana; retirando-se Foucault, a obra de Said permaneceria com seus contornos essenciais. Mesmo

    assim, e muito antes de Orientalismo, onde ele claramente expressa sua dvida metodolgica com Foucault, o argumento

    em Abecedarium Culturae, o clebre captulo do primeiro livro mais importante de Said sobre o crticismo,

    Beginnings: Intention & Method (Baltimore; 1975), preocupa-se bastante com Foucault e finaliza com um grande elogio

    a seu trabalho por ser afirmativo, progressista e por suas enrgicas descobertas (p. 342), comparado radicalidade

    niilista de Derrida (p. 343). Pode-se imaginar o que pensaria Foucault e mesmo o que Said possivelmente quis dizer

    com isso do termo progressista. Em um ensaio posterior, Criticism Between Culture and System, em The World,

    the Text, and the Critic (Cambridge, Mass; 1983) ele expressa uma viso menos crtica de Derrida e, de alguma forma,

    se distancia de Foucault, censurando ambos por sua inabilidade de perceber a prevalncia do que ele chama do

    orientalismo no pensamento europeu. Mesmo neste caso, entretanto, prefere Foucault por seu maior cosmopolitismo

    (worldliness).

    28 Edward Said, Culture and Imperialism. London, 1993, p 296. Em um conjunto de instigantes observaes (hindsights)

    em uma nica sentena, Said primeiro descreve o livro de Guha, de 1963, como arqueolgico e desconstrutivo,

    referindo-se de forma afvel a Foucault e Derrida, e depois lembra que 1826 foi o ano da aprovao do Ato da Fixao

    Permanente (Act of Permanent Settlement).

  • 21

    modernismo e ao ps-colonialismo.

    Esta dissoluo ps-colonialista da categoria da diferena entre Histria e Literatura,

    embora no presente caso filosoficamente muito mais ingnua, no deixa de lembrar a crtica de

    Habermas a Derrida, que efetiva uma dissoluo similar da categoria da diferena entre Literatura

    e Filosofia, que traz como conseqncia a expanso da supremacia da retrica sobre o campo da

    lgica e do acentuado privilgio da funo potica da linguagem sobre suas outras funes

    cognitivas.

    Estava me referindo dissoluo de coisas tais como Literatura do Terceiro Mundo ou

    Anlise do Discurso Colonial e sua reconstituio sob o signo do ps-colonialismo. Pode-se

    avaliar como este processo recente pelo fato de que mesmo o atualizado livro de Robert Young,

    de 1990, que inclui captulos separados sobre Said, Spivak e Bhabha, no apresenta entradas no

    ndice para as palavras ps-colonialismo, ps-colonial, etc., embora haja doze entradas para o

    termo terceiro mundo e vinte e duas para o termo discurso colonial.29 Poucos anos depois,

    contudo, Arif Dirlik indicava em Critical Inquiry, que o [termo] ps-colonial tem penetrado no

    lxico dos programas acadmicos em anos recentes e, nos ltimos dois anos ocorreram

    conferncias e simpsios inspirados por vocabulrios a ele relacionados.30 Ademais, o autor

    corretamente assinala que intelectuais vindos de um pas, a ndia, especificamente,

    desempenharam notvel e proeminente papel na formulao e disseminao deste

    vocabulrio, e afirma,

    O ps-colonial o mais novo participante a alcanar proeminente visibilidade nas fileiras

    daquelas palavras marcadas com o ps (...) reivindica[ndo] como seu bero principal o terreno que tempos atrs era denominado Terceiro Mundo. Pressupe-se, dessa forma,

    que alcance uma autntica globalizao de discursos culturais pela extenso global de

    preocupaes e orientaes intelectuais originrias nos espaos centrais do criticismo

    cultural euro-americano (...) A meta, de fato, nada menos do que abolir todas as

    distines entre centro e periferia bem como outros binarismos que, declaradamente, so uma herana dos modos de pensar colonial[ista] e revelar sociedades globalmente em

    sua complexa heterogeneidade e contingncia (p. 329).

    Como sugeri anteriormente, s muito rapidamente (fleetingly) o termo ps-colonial

    reivindicou como seu bero principal o terreno que tempos atrs era denominado Terceiro

    Mundo. O movimento caracterstico, quando o ps-colonialismo foi assimilado ps-

    29

    Robert Young, White Mythologies: Writing History and the West. London 1990.

    30 Arif Dirlik, The Postcolonial Aura: Third World Criticism in the Age of Global Capitalism, Critical Inquiry, Winter

    1994.

  • 22

    modernidade, no foi meramente o de abolir todas as distines entre centro e periferia, mas

    abolir inteiramente as coordenadas espaciais e temporais; ps-colonialismo, passou a ser agora

    o lugar onde a condio humana tem vivido tempos mais simples. Mesmo com essas

    modificaes, a formulao de Dirlik sem dvida refora pelo menos trs dos pontos que

    enfatizei. Primeiro, o ps-colonialismo apenas o ltimo (mais recente) dos conceitos que se

    originam no interior da ps-condio. Segundo, o objeto real no visa produzir novos

    conhecimentos sobre os mecanismos do imperialismo, passado e presente, mas reestruturar

    corpos de conhecimento j existentes em paradigmas ps-estruturalistas e ocupar lugares de

    produo intelectual externas s zonas euro-americanas, globalizando preocupaes e orientaes

    originrias nos espaos centrais da produo cultural euro-americana. Terceiro, o objetivo de

    muito desse criticismo sobretudo o de Homi Bhabha, o mais influente dos ps-colonialistas

    hoje em dia - o de dissolver todas as questes permanentes do imperialismo e do

    antiimperialismo em um jogo infinito de heterogeneidade e contingncia.

    Este ltimo giro (turn) no criticismo cultural algo assim como um ponto culminante de

    um processo muito mais longo, iniciado em meados dos anos de 1970, bem examinado em meu

    livro In Theory. No tentarei recapitular os argumentos aqui. Basta dizer que meu prprio livro,

    naturalmente, chegou bem mais tarde, mas uma sensao de ameaa a sensao de que a

    apropriao ps-moderna de histrias e textos no europeus seria o resultado inevitvel do

    domnio ps-modernista no interior da academia euro-americana j se fazia sentir bem antes,

    estava virtualmente inscrita no prprio fazer-se dessa dominao. Uma das primeiras a ler os

    sinais foi Kumkum Sangari, em seu ensaio Politics of the Possible, publicado em 1987, mas

    cujo esboo inicial a julgar pelas notas de rodap data de trs anos antes.31 No final do ensaio,

    ela se refere ao que denomina

    os procedimentos academizados de uma epistemologia ps-moderna particularmente

    ocidental, historicamente singular, que universaliza a dissoluo autoconsciente do

    sujeito burgus, com sua agora clebre postura caracterstica de auto-ironia, atravs do

    tempo e do espao.

    E continua:

    o ps-modernismo possui uma tendncia a universalizar suas preocupaes

    epistemolgicas uma tendncia que aparece mesmo no trabalho de crticos de convices polticas radicais. Por um lado, o mundo se contrai no ocidente; uma

    perspectiva eurocnctrica (por exemplo, a narrativa ps-stalinista, anti-teleolgica, anti-

    31

    Kumkum Sangari, The Politics of the Possible, Cultural Critique, n. 7, Fall 1987.

  • 23

    senhor (antimaster) desencantada do marxismo euro-americano) passa a influenciar (bear

    upon) os produtos culturais do Terceiro Mundo; um ceticismo especializado, como modo de ver, se espalha para todos os lugares como parafernlia cultural e aparato

    epistemolgico; e a problemtica ps-moderna torna-se o quadro mediante o qual os

    produtos culturais do resto do mundo so vistos. Por outro, o ocidente se expande no

    mundo; o capitalismo recente envolve o mundo e homogeneza (ou ameaa

    homogeneizar) toda produo cultural esta uma narrativa-mestra que, por alguma razo, raramente descartada, como deveria ser, se as diferentes formaes econmicas,

    de classe e cultural dos pases do Terceiro Mundo forem levadas em conta. Os textos que emergem dessa posio, no importa quo crticos possam ser dos discursos

    coloniais, tristemente retiram o poder da nao como uma idia potencializadora, colocando os impulsos de mudana em todos os lugares e em lugar nenhum (...) Mais

    ainda, a crise de legitimao (dos sistemas de sentido e de conhecimento) torna-se, ela

    mesma, uma narrativa-mestra estranhamente vigorosa, uma vez que se prope a reescrever ou processar os sistemas de conhecimento do mundo sua prpria imagem; a crise ps-moderna torna-se autoritria porque (...) est fortemente implicada na estrutura das instituies. Na verdade, ela ameaa tornar-se to imperiosa quanto o

    humanismo burgus, uma manobra baseada em uma srie de afirmaes, enquanto o ps-

    modernismo parece ser uma manobra baseada em uma srie de negaes e auto-negaes

    mediante as quais o ocidente reconstri sua identidade (...) De modo significativo, a

    renncia s modalidades objetivas e instrumentais das cincias sociais ocorre nas

    academias no momento em que o conhecimento utilitrio junta-se certeza e ao controle

    crescentes pela Euro-Amrica por meio de avanadas tecnologias de informao negadas

    (retrieval from) ao resto do mundo.

    Recorri longa citao deste ensaio porque sumariza uma srie de idias muito poderosas

    embora algo da fraseologia (por exemplo, o ocidente reconstri sua identidade) indique o

    momento saidiano de sua elaborao. Kumkum Sangari, de todo modo, foi possivelmente a

    primeira, certamente uma das primeiras, a perceber como a hermenutica do capitalismo mais

    recente, desenvolvida nas zonas metropolitanas, necessariamente precisava proclamar-se uma

    hermenutica universal, tratando o mundo todo como sua matria bruta. Penso que este ponto vai

    ao cerne de minha observao anterior sobre o exagero da teoria ps-colonial, quando inclui, em

    sua origem, mais e mais pocas histricas, mais e mais pases e continentes, ao mesmo tempo em

    que restringe a possibilidade de produo de um conhecimento desse terreno abrangente a uma

    aceitao prvia da hermenutica ps-moderna.

    VI

    A obra de Homi Bhaba um exemplo particularmente revelador do modo pelo qual este

    tipo de hermenutica tende a se apropriar do mundo inteiro como sua matria bruta e, no entanto,

    oblitera a questo de diferenas historicamente sedimentadas. Por um lado, da prpria estrutura

    do tempo histrico, por outro, no jogo vazio das heterogeneidades infinitas, o impulso

  • 24

    incontrolvel de apresentar conflitos histricos como se fossem um psicodrama. No processo,

    acontece uma srie de erros. As categorias da psicanlise freudiana, que Lacan reelaborou no

    modelo lingstico, visavam, de todo modo, compreender tipologias de desordens psquicas no

    plano individual e familiar; duvidoso que possam ser to facilmente transportadas ao plano da

    histria sem que os conceitos se transformem em meras metforas. Bhabha faz este problema

    evaporar oferecendo um grande nmero de generalizaes sobre duas singularidades opostas,

    virtualmente maniquestas em sua repetio como abstraes em conflito: o colonizador e o

    colonizado, os quais aparecem excepcionalmente livres de relaes de classe, gnero, tempo

    histrico, localizao geogrfica, de fato de qualquer tipo de historicidade ou especificao. Os

    dois universais abstratos apresentam-se sob presses psquicas e necessidades identificveis que,

    excepcionalmente, permanecem as mesmas em todos os lugares.

    Do colonizador, por exemplo, afirma-se estar sempre ameaado por qualquer colonizado

    que, em qualquer grau, conseguiu adotar a cultura do colonizador. Traduzido em linguagem

    concreta, isto significa que os colonizadores no se atemorizavam com movimentos de massa.

    (Resting on the social basis of a populace very unlike themselves but by the upper class, well educated

    intellectual elite that had imbibed European culture).

    No obstante, Bhabha mostra-se indiferente a tais questes de facticidade e de prova

    histrica; provavelmente porque a histria, nessa perspectiva, seja considerada uma inveno do

    tempo linear perpetrada pelo racionalismo e, mais imediatamente, porque a partir da psicanlise

    j se sabe que o Eu (Self) no to ameaado pela Alteridade absoluta como pela Alteridade que

    preserva nela muito de si mesma. O que ameaa verdadeiramente, em outras palavras, perceber-

    se em pantomima e caricatura.

    Para Bhabha, a contradio central do encontro colonial que o hbrido intelectual

    colonial imita o colonizador e, dessa forma, produz no colonizador uma sensao de parania.

    Essa contradio, a seu ver, possui carter basicamente discursivo e psquico. A mmica, que

    Naipaul32

    representa como um sinal de uma sensao de inferioridade por parte do colonizado,

    torna-se, nas palavras de Bhabha, sinais de resistncia espetacular. Bhabha desconsidera, com

    notvel tranqilidade, a possibilidade de que o anticolonialismo revolucionrio possa ter

    enfraquecido o poder colonial em um grau maior do que os senhores coloniais que aprenderam a

    imitar os senhores europeus: No considero as prticas e discursos da luta revolucionria como o

    32

    Nota sobre Naipaul.

  • 25

    outro lado do discurso colonial. 33

    Paralelamente a esta particular noo de mmica como resistncia espetacular, a outra

    idia central ao discurso de Bhabha sobre o ps-colonialismo a de hibridismo. Ela se apresenta

    como uma crtica ao essencialismo, partilha de um colapso carnavalesco e de jogos de identidades

    e mostra-se sob mltiplos e grandes nomes. Em verdade, entretanto, toma basicamente duas

    formas: hibridismo cultural e o que pode ser chamado de hibridismo filosfico e mesmo

    hibridismo poltico. A idia bsica contida no hibridismo cultural bastante simples, a de que o

    trnsito entre as culturas modernas tornou-se agora to intenso que se tornou difcil falar de

    culturas nacionais distintas ou isoladas, e que no sejam fundamentalmente transformadas nesse

    trnsito. Em sua generalidade, tal idia s pode ser tratada como um trusmo, uma vez que uma

    generalizao deste tipo no pode, em qualquer sentido, ser considerada errada. No entanto, os

    passos que se seguem a este trusmo so mais problemticos. Em dois extremos dessa mesma

    argumentao tal condio de hibridismo cultural definida como: (a) especfica ao imigrante,

    mais especificamente ao imigrante intelectual que vive e trabalha nas metrpoles ocidentais e, ao

    mesmo tempo, (b) uma condio generalizada de ps-modernidade, na qual todas as culturas

    contemporneas esto hoje inevitavelmente mergulhadas de tal forma que a figura do imigrante,

    particularmente a do imigrante intelectual (ps-colonial) residente nas metrpoles, passa a

    significar uma condio universal de hibridismo e considerado o Sujeito de uma Verdade que os

    indivduos que continuam a viver no interior dos limites territoriais e culturais de seu prprio

    Estado-nao no podem possuir. O termo usado por Edward Said para tais Sujeitos-Verdades do

    ps-colonialismo o de anfbios culturais; tambm para Salman Rushdie, a imigrao

    (flutuando acima (floating upward) da histria, da memria, do tempo, como ele a define) se

    reveste da idia de que o imigrante possui uma compreenso mais ampla de ambas as culturas do

    que indivduos mais sedentrios possam ter de suas prprias culturas.34

    Voltando a Bhabha, a

    celebrao do hibridismo cultural, disponvel ao imigrante intelectual nas metrpoles, acentuada

    ainda com mais fora:

    A Amrica conduz frica; as naes da Europa e da sia encontram-se na Austrlia;

    as margens da nao deslocam o centro (...) A grande sensibilidade de Whitman em

    relao Amrica foi trocada pelas fotografias de Warhol, por uma instalao de

    33

    Os argumentos apresentados nas prximas pginas seguem de perto uma seo de meu ensaio, The Politics of

    Literary Postcoloniality, in Race & Class, vol. 36, n. 3, 1995.

    34 As frases aqui citadas foram extradas do ensaio de Said, Third World Intellectuals and Metropolitan Culture, in

    Raritan, Winter 1990; e de Salman Rushdie, Shame, New York, Vintage Edition, 1984, p. 91.

  • 26

    Kruger ou pelos corpos nus de Mapplethorpe.35

    Nos textos de Bhabha, o ps-colonial que tem acesso a tais prazeres monumentais e

    globais parece ter, por suposto, um olhar masculino e burgus, no apenas o do senhor que tudo

    pode alcanar, mas tambm seduzido por sua prpria condio de no-senhor.

    Ao mesmo tempo em que nos dizem que o olho mais verdadeiro pode agora pertencer

    dupla viso do imigrante,36 indicam- nos tambm o lcus ideolgico em que opera tal olho

    mais verdadeiro: Quero assumir minha posio nas margens cambiantes do deslocamento

    cultural que confunde todo o sentido profundo ou autntico de uma cultura nacional ou de

    um intelectual orgnico....37 Uma vez desobrigando-se em relao a Antonio Gramsci e, de

    modo geral, da idia de que um sentido de lugar, de pertencimento, de algum compromisso

    estvel com uma classe, um gnero ou nao possa ser til para definir uma poltica Bhabha

    passa a expor seu prprio sentido de poltica:

    A linguagem da crtica eficaz no porque mantm sempre separados os termos do

    mestre e do escravo, o mercantilista e o marxista, mas na medida em que ultrapassa as

    bases da oposio e abre o espao para a traduo: um lugar do hibridismo (...) Este um sinal de que a histria est acontecendo, nas pginas da teoria...

    38

    O hibridismo cultural (olhar verdadeiro) do imigrante intelectual, apresentado como a

    negao do intelectual orgnico, tal como concebido por Gramsci, ento associado a um

    hibridismo filosfico (a linguagem da crtica, de Bhabha) que, da mesma forma, confunde a

    distino entre o mercantilista e o marxista, de tal modo que a histria torna-se realmente um

    mero acontecimento na maior parte nas pginas da teoria. Tais hibridismos, cultural e

    filosfico, os conduzem a uma concepo de poltica, defendida por Bhabha em seu ensaio The

    Postcolonial and the Postmodern: The Question of Agency. Ali, mais uma vez, somos alertados

    para o fato de que A individuao do sujeito (agent) ocorre em um momento de deslocamento39

    porque os discursos ps-coloniais contemporneos enrazam-se em histrias especficas de

    deslocamento cultural. 40 O par formado pelo hibridismo e o deslocamento do agir demanda,

    ento, uma poltica de contingncia, contingncia explicitada como o termo definidor das

    35

    Homi K. Bhabha (ed.). Nation and Narration. London: Routledge, 1990, p. 6.

    36 Homi Bhabha. The Location of Culture. London: Routledge, 1994, p. 5.

    37 Location, p. 21

    38 Location, p. 25.

    39 Location, p.185.

    40 Location, p.172.

  • 27

    estratgias contra-hegemnicas. Muitos escritores, como Ranajit Guha (As elaboraes de

    Guha sobre a conscincia rebelde como contradio sugerem fortemente que o agir humano

    (agency) a atividade do contingente) 41 e Veena Das, contribuem fortemente para a formulao

    dessas formas hbridas, deslocadas, contingentes de poltica. Deteremo-nos um pouco nesta

    ltima referncia, uma vez que extrada de uma citao direta de Das, bastante aceita por

    Bhabha, na qual nega que exista algo como uma conscincia de casta permanente que possa servir

    de referncia para compreender qualquer conflito de casta particular, tipo de conflito bastante

    comum na ndia nos dias de hoje. Cito ambos, Bhabha e Das, j que ela prpria citada por

    Bhabha:

    Em seu excelente ensaio Subalternidade como perspectiva, Das exige uma historiografia da subalternidade que desloca o paradigma da ao social tal como definida

    pela ao racional. Ela busca uma forma de discurso no qual a escrita afetiva e interativa

    desenvolve sua prpria linguagem (...) Este o movimento histrico do hibridismo como

    camuflagem, como um agir contestador e antagonstico operando no lapso (lag) de tempo

    do signo/smbolo, que um espao entre as regras de engajamento. esta forma terica

    de agir poltico que procurei desenvolver e que Das, de modo to belo, expe em um

    argumento histrico:

    a natureza do conflito no qual uma casta ou tribo est confinada que pode fornecer as

    caractersticas do momento histrico; assumir que se pode saber a priori as mentalidades

    das castas e das comunidades adotar uma perspectiva essencialista, que a evidncia

    produzida nos volumes dos Estudos Subalternos no poderia suportar.42

    Deixando de lado a questo do a priori (ningum defendeu conhecimentos a priori), o

    que surpreende na perspectiva adotada por Das sua defesa de que quando se trata de conflitos de

    casta o momento histrico deve ser tratado como sui generis, como se contivesse em si mesmo

    sua prpria explicao a menos que se queira ser acusado daquela palavra obscena (dirty word),

    essencialismo. O fato de que qualquer compreenso de um conflito particular deva incluir uma

    compreenso de sua particularidade to bvio que no vale a pena nele insistir. O que Das

    advoga aqui no apenas este ponto bvio, mas a compreenso de que cada conflito est

    confinado s suas prprias caractersticas. O que ela nega radicalmente que mentalidades de

    casta possam realmente possuir profundidade histrica e caractersticas duradouras anteriores

    sua emergncia sob a forma de um conflito particular. O que se nega, em outras palavras, que a

    casta seja um aspecto estrutural e no apenas conjuntural na distribuio de poderes e privilgios

    na sociedade indiana, e que membros de uma casta particular efetivamente carregam consigo as

    41

    Location, p.187.

    42 Location, p. 192-3. Das citada a partir do texto de R. Guha (ed.). Subaltern Studies VI (Delhi, Oxford University

    Press, 1989).

  • 28

    histrias anteriores de poder e de obstculos ao direito propriedade (dispossession), de modo

    que os conflitos nos quais a casta est trancada (para usar a reveladora expresso de Das) so

    inseparveis dessas histrias, no importa o quanto cada expresso particular desse permanente

    conflito possa ser estudada em sua singularidade.

    Nos termos de sua prpria lgica, no entanto, Bhabha est correto. A negao de Das, de

    que possa haver uma mentalidade de casta, e sua afirmao, de que todos os momentos histricos

    so sui generis, so inteiramente consistentes com a assero de Bhabha de que as explicaes do

    agir humano devem ser no-racionais e que sujeitos histricos so constitudos no deslocamento.

    Tais premissas constrangem (preclude), de meu ponto de vista, as prprias bases da ao poltica.

    Pois, a idia de um sujeito humano coletivo (por exemplo, grupos organizados de castas

    exploradas lutando por seus direitos contra privilgios de castas mais altas) pressupe tanto o que

    Habermas chama de racionalidade comunicativa como a possibilidade do agir racional, como tal;

    presume, em outras palavras, que o agir humano no se institui no fluxo e no deslocamento, mas

    em situaes histricas dadas.

    No entanto, pode parecer, a partir da Amrica do Norte, e o que o olho mais verdadeiro

    do imigrante escolha ver, que o ponto em questo que a Histria no constituda pela

    imigrao perptua, de tal forma que a universalidade do deslocamento que Bhabha considera

    tanto uma condio humana geral como a posio filosfica desejvel, no se mantm nem como

    descrio do mundo ou como possibilidade poltica generalizada. Talvez ele almeje erradicar a

    distino entre comrcio e revoluo, entre o mercantilista e o marxista, e no vamos

    questionar suas preferncias. Mas dificilmente levam a uma teoria ou a algo denominado ps-

    colonialismo. A maior parte dos indivduos realmente no tem liberdade para se renovar a cada

    dia que passa, nem as comunidades surgem e desaparecem no ar rarefeito do infinitamente

    contingente. Entre os prprios imigrantes, apenas os privilegiados podem viver uma vida de

    constante mobilidade e mais-prazer (surplus pleasure), entre Whitman e Warhol, por exemplo.

    Os imigrantes, em sua maioria, tendem a ser pobres e experimentam o deslocamento no como

    plenitude cultural, mas como tormento; o que buscam no o deslocamento, mas, precisamente,

    um lugar no qual possam comear outra vez, com alguma perspectiva de um futuro estvel.

    VII

    Esta discusso sobre Bhabha aparece no contexto de uma sugesto que minha, por

  • 29

    certo, mas tambm de Sangari e Dirlik, tal como os leio de que o ncleo da teoria ps-colonial,

    como enunciada por seus principais arquitetos, particularmente por Bhabha e Spivak, um dos

    mais importantes instrumentos para estabelecer a autoridade hermenutica do ps-moderno sobre

    o material cultural recuperado (cultural materials retrieved from outside) do exterior dos pases

    capitalistas avanados. O realinhamento do paradigma da subalternidade no campo da pesquisa

    histrica com o ncleo da teoria ps-colonial e a imensa aceitao que o paradigma encontra nos

    Estados Unidos, um elemento significativo nessa globalizao particular do ps-moderno.

    Gostaria de ilustrar este ponto com algumas observaes sobre o clebre ensaio possivelmente

    o mais clebre de Gayatri Spivak, Can the Subaltern Speak?.43 Trata-se de um longo ensaio e,

    em hiptese alguma minha inteno sintetiz-lo ou analisar sua tendncia geral (drift). Quero,

    apenas, rastrear a lgica no interior das intenes mais amplas de Spivak.

    Spivak inicia seu texto com uma longa e vivaz crtica a Foucault e Deleuze tendo como

    base o fato de que seus delineamentos das estruturas de poder esto fatalmente comprometidas,

    uma vez que tratam a Europa como uma entidade auto-enclausurada e auto-geradora por

    negligenciarem o papel central do imperialismo na prpria construo da Europa e, portanto, as

    prprias estruturas de poder que so objetos de anlise para Foucault e Deleuze. O argumento

    irrefutvel e Spivak o explora com muito vigor - embora, justia deva ser feita a Said que, uma

    dcada antes, discutiu longamente este aspecto sobre a Europa, em Orientalismo. No momento

    em que Spivak publicou seu ensaio, em 1988, Said tambm j criticara Foucault por negligenciar

    tanto a questo do imperialismo europeu como das resistncias ao poder imperialista fora da

    Europa. Spivak estava certa, mas basicamente limitou-se a ampliar uma discusso bastante

    conhecida. Deve-se lembrar, tambm que crtica a Foucault e Deleuze segue-se, em outra seo

    do ensaio, uma longa discusso sobre a imolao de vivas, uma discusso fortemente inspirada

    na pesquisa anterior de Lata Mani sobre o que ela denominou Discurso Colonial sobre Sati. 44

    Podem ser encontradas, naturalmente, muitas outras digresses sobre Marx, Freud, feministas do

    Primeiro e Terceiro Mundos, essencialismo, Ranajit Guha e assim por diante. Somente aps a

    leitura de dois teros do ensaio que se pode perceber o verdadeiro objeto de sua escrita o que

    se segue.

    43

    Gayatri Chakravorty Spivak, Can the Subaltern Speak?, in Cary Nelson e Lawrence Goldberg, Marxism and the

    Interpretation of Culture, Chicago, 1988. Daqui em diante citado como CSS.

    44 Uma entre as muitas verses desse assunto publicadas podem ser encontradas em Cultural Critique, n. 7, Fall 1987.

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    difcil recordar, hoje em dia, que nos meados dos anos de 1980, quando o referido

    ensaio foi escrito, a maior autoridade do ps-estruturalismo francs nos pases a