Telma de Souza Birchal e Lincoln Frias - Aborto e Biotecnologias

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    Aborto e BiotecnologiasTelma de Souza Birchal e Lincoln Frias

    Introdução

    O presente capítulo apresentará uma análise da relação entre dois tipos de prática que levantam problemas de cunho moral e jurídico: o aborto, por um lado, e as biotecnologias, por outro. Pretende mostrar que a aceitação atual da reproduçãoassistida e a defesa da produção de embriões para a pesquisa, ao afirmarem valoreshumanitários que suplantam o valor da vida do embrião, é racionalmente incompatívelcom a condenação moral do aborto nos estágios iniciais da gravidez (especialmente, o primeiro trimestre). Por consequência, a criminalização do aborto, tal como ocorre noBrasil, é moralmente inconsistente com a permissão destas práticas.

    O aborto é sabidamente um problema complexo, pois diz respeito aconvicções religiosas e filosóficas sobre o ser humano, faz apelo aos conhecimentos da biologia sobre o embrião e o feto, relaciona-se às questões de gênero, é objeto delegislação e foi admitido por alguns governoscomo um “problema de saúde pública”. Na vida concreta, as várias dimensões da questão estão interligadas e todas elas

    contribuem, em maior ou menor proporção, para formar os diferentes julgamentosmorais sobre o tema.

    A partir da década de 70, surgiu um novo componente que tornou aindamais complexa a discussão: as biotecnologias, na figura das técnicas de reproduçãoassistida e das pesquisas com células-tronco embrionárias. O que ocorre hoje é queessas novas práticas recolocam em questão temas de grande relevância ética e játradicionalmente tratados na discussão sobre o aborto: o estatuto do embrião, seus

    presumíveis direitos, o valor da vida humana e o direito das pessoas (homens emulheres) de decidirem sobre assuntos de reprodução. As biotecnologias, por sua vez,introduzem novos temas, ausentes da discussão sobre o aborto: a liberdade de pesquisa,o progresso da ciência, o valor do bem estar e da vida dos pacientes beneficiários das pesquisas com células-tronco, a alteração do genoma, a superação dos limites dasespécies, etc. Há evidentemente um solo de problemas compartilhado pela discussãosobre o aborto e a as novas biotecnologias, embora haja questões que sejam específicas

    de cada um destes campos.

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    No que se segue, a relação entre o aborto e as biotecnologias é tratada emtrês partes. Na primeira, a partir de uma análise da discussão sobre o aborto nos EstadosUnidos e no Brasil, mostramos como o tema do estatuto do embrião é filosoficamenterelevante e permanece como questão de fundo, seja quando o aborto é enfocado peloviés dos direitos humanos, seja quando o é pelo viés da saúde pública. Na segunda parte, exploramos os conceitos dedireitos e de valor da vida e defendemos a idéia deque só o segundo se aplica no caso do embrião. Na terceira, mostramos que, no caso dareprodução assistida e da pesquisa com células-tronco, a idéia devalor da vida humana regula o tratamento dado ao embrião e que este não é considerado uma pessoa. Aconclusão é que o mesmo deveria ocorrer no caso do aborto.

    I – O estatuto do embrião

    Analisaremos, rapidamente, a discussão sobre o estatuto do embrião nocontexto norte-americano e no brasileiro, como ponto de partida para um tratamentomais amplo do problema.

    No Estados Unidos, desde 1973, no famoso caso Roe versus Wade , a proibição do aborto antes do segundo trimestre de gravidez, praticada por alguns

    estados da Federação, foi considerada inconstitucional, remetendo-se a decisão jurídicaao fato de que a Constituição dos Estados Unidos reconhece o direito à privacidade naesfera das decisões sobre a reprodução. Sendo assim, este direito estaria sendo negadoàs mulheres no caso de a lei proibir o aborto. O que, de resto, significaria que asmulheres seriam objeto de um tratamento desigual em relação aos homens. Trata-se, portanto, do reconhecimento dos limites da regulação do Estado quando está em jogoalgo que diz respeito à vida privada e ao foro íntimo.

    Ora, esta decisão judicial só pode ser compreendida sob a suposição de queo feto, em seus estágios iniciais, não tem o mesmo estatuto de um recém nascido ou deum adulto, não é, enfim, uma “pessoa” – pois, caso contrário, o aborto seria igual a umassassinato e a proibição do aborto uma exigência moral1. Em termos estritamentelegais, o ponto de partida da decisão foi o reconhecimento do direito da mulher à privacidade; portanto, só uma razão extremamente forte poderia autorizar ao Estado

    1 De fato, esta conseqüência não é consensual. Ver THOMSOM, 1971, onde se defende a idéia de quemesmo que o feto tenha direito à vida, ele não tem direito sobre o corpo da mulher.

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    violar este direito – por exemplo, o feto ter constitucionalmente o mesmo estatuto deuma pessoa e, portanto, direito à vida – o que não foi reconhecido pelos juízes no caso.Entendeu-se que o Estado tem interesse em proteger a vida humana, inclusive em suaforma fetal; este interesse, porém, não é suficiente para fundamentar a proibição doaborto e negar os direitos da mulher (DWORKIN, 1994: 108-112).

    Em artigo publicado em 2003, Janet L. Dolgin analisa longamente odiscurso sobre o estatuto do embrião tal como se desenvolveu nos Estados Unidos, doséculo XIX até o momento atual. Ela mostra que, a partir do pós Guerra e sobretudodesde a sentença sobre o caso Roe versus Wade , o discurso pró-vida sofre umatransformação: deixa de recorrer aos valores da família e à imagem da mulher comoessencialmente esposa e mãe, que já não refletiam a realidade norte-americana, e passaa recorrer à idéia de que todo ser humano tem direito à vida a partir do momento daconcepção.

    Alguns dos argumentos mais mobilizados para sustentar tal afirmação, sedesconsiderarmos os de cunho nitidamente religioso, são: 1- por possuir possui o códigogenético dohomo sapiens , o embrião é um ser humano e 2- não há um ponto preciso nodesenvolvimento do embrião até o bebê em seu primeiro ano que possa ser identificadocomo o momento no qualele se torna uma “pessoa” . A idéia de que o feto é uma pessoa

    ou um ser humano pleno – identificando, portanto, o aborto a um homicídio – torna-seessencial para sustentar a oposição a esta prática numa sociedade que já não se organizanos moldes tradicionais. A análise de Dolgin sugere que o discurso sobre os direitos doembrião pode de fato encobrir um não-dito, ou seja, pode funcionar como um véu queoculta a defesa de tradicionais paradigmas da família e da mulher, num momento emque isto já não pode ser feito explicitamente.

    Embora essa sugestão seja pertinente, não é menos verdade que a questão

    do estatuto do embrião, uma vez colocada, tem que ser analisada e respondida em seus próprios termos. De fato, como reconhecem os defensores da posição pró-escolha,“o pensamento liberal é obviamente inconsistente com qualquer afirmação de que um fetoem estágios iniciais é uma pessoa com direitos e interesses próprios.” (DWORKIN,1994, p. 32).

    Passemos para o caso brasileiro. O Código Civil atual, retomando umaformulação do texto de 1916, ao definir pessoas e direitos da pessoa, assim se expressa:

    “Art. 2o

    - A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei

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    põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Ao definir o nascituro comosujeito de direito à vida, não enquanto pessoa, mas compartilhando com elas estedireito, o Código Civil Brasileiro dá as bases para a criminalização do aborto emqualquer ponto da gravidez. De fato, o Código Penal Brasileiro, de 1940, nos artigos124 a 128, define o aborto como um crime contra a vida, embora este crime não sejaimputável nos casos de risco de vida da mãe e de estupro. Além disso, apesar de nãohaver legislação a respeito, autorizações jurídicas têm sido concedidas para que se pratique o aborto em casos de incesto e grave má-formação fetal.

    No entanto, a questão se torna mais complexa e fica evidente que a lei nãoconsidera o feto uma pessoa, nas seguintes ocorrências: caso alguém atropele umagestante, provocando sua morte e a do feto, a lei considera que apenas um homicídio foicometido; caso a gestante sobreviva, mas perca o bebê, não se considera que houvehomicídio, apenas lesão corporal.

    A Constituição, por sua vez, afirma a dignidade da pessoa, a igualdade plena entre homens e mulheres, a inviolabilidade da vida privada e a liberdade deconsciência. Estes direitos, entretanto, não foram interpretados, até os dias de hoje, demodo a fundamentar o direito da mulher de decidir quanto ao fato de levar ou não atermo uma gestação, o que se deve seguramente à força que tem a definição do embrião

    e do feto (ou, nos termos do Código Civil, do nascituro) como sujeitos de direito à vida.Prova disso é a discussão atual sobre se o aborto de anencéfalos é ou nãoinconstitucional, que desde 2004 se arrasta no Supremo Tribunal Federal, e os avanços erecuos do governo federal na tentativa de incluir a descriminalização do aborto noPrograma Nacional de Direitos Humanos.

    Do outro lado da cena, entre 750 mil e 1 milhão e 400 mil abortosclandestinos são praticados no Brasil a cada ano (GOLLOP, 2009, 5)2, e 70 mil

    mulheres morrem por causa de complicações geradas por esta situação precária.3 Tantoo Presidente Lula quanto o Ministro da Saúde José Gomes Temporão, já deram váriasdeclarações de que o aborto é um tema de saúde pública e deve ser tratado como tal. OPresidente afirmou que, apesar de ser pessoalmente contra o aborto, defende suadescriminalização, por ser um grave problema de saúde pública. O que isso quer dizer?Quer dizer que, ainda que o aborto seja imoral, é imoral não legalizar o aborto – pois os

    2 Dados fornecidos pela Rede Feminista de Saúde, para o ano de 2005. A Revista Veja, em 24 de janeirode 2009 apresenta o número aproximado de 1 milhão de abortos anuais e3 Dados da Federação Internacional de Planejamento Familiar, em estudo feito no ano de 2007.

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    abortos clandestinos, feitos em condições precárias, matam muitas mulheres pobres. Háindicações de que nem a proibição diminui significativamente o número de abortos nema legalização o aumenta significativamente.

    Em geral, a discussão sobre a moralidade do aborto parte do pressuposto deque as pessoas seguirão o que mostra ser moralmente correto e legal. No entanto, istonão é bem o que ocorre, neste caso como em outros. Suponhamos um cenário no qualseja teoricamente claro que o feto tenha direito à vida desde a concepção e que a lei proíba o aborto. Disso não se seguiria que todas as gestantes levariam a gravidezadiante, pois a decisão por um aborto em geral é feita sob pressão de circunstânciasmuito adversas a uma gravidez. Na prática, um número exorbitante de abortos já é feito,implicando em mortes de mulheres e outras complicações, e é este fato que se colocadiante das autoridades políticas responsáveis pela saúde no Brasil. Parece impossívelreduzi-los sem que haja transparência e assistência médica. Se o interesse da legislaçãoé diminuir o número de abortos e de mulheres mortas, a melhor maneira édescriminalizá-lo, por mais contraditório que isso pareça à primeira vista. É a estratégiachamada de“política de redução de danos”, presente também na prática de distribuiçãode seringas entre viciados em drogas, visando evitar a contaminação pelo vírus daAIDS. Pode ser que a moralidade exija que conceda o direito de fazer o que é errado

    fazer. O slogan dos ativistas norte-americanos – “aborto legal, seguro e raro” – expressa bem essa visão. É razoável pensar que um ponto de consenso entre os dois lados dodebate – o movimento pró-vida e o movimento pró-escolha – seja que o númeromulheres mortas deve ser o menor possível, assim como o número de abortos.

    No entanto, mesmo que haja razões substantivas em defesa da legalizaçãodo aborto pelo viés da saúde pública, a questão do estatuto do feto continua inescapável.Isto porque, no caso de assassinatos, não consideraríamos uma estratégia eticamente

    defensável a permissão de alguns assassinatos no intuito de impedir que um maiornúmero deles ocorresse. Portanto a questão moral da permissibilidade do aborto sedecide, final e fundamentalmente, como questão do estatuto do embrião. A presentediscussão, portanto, vai além de uma justificada ação governamental e legal no caso deum assunto polêmico, e propõe pensar o direitolegal à vida fundamentando-se numdireitomoral à vida, ou seja, que a atribuição de direitos a um sujeito deve basear-se noestatutomoral deste sujeito, passível de uma análise racional.

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    ampla em um universo simbólico, religioso e filosófico. “Pessoa” não é um fato no

    mundo, não é apenas um fato biológico, social ou mesmo legal. É uma categoria moralampla.

    Como nos lembra Aristóteles, o domínio da ética não é o da matemática e nãocomporta demonstrações cabais independentemente das circunstâncias. Assim, asolução para o problema tem de ser o estabelecimento de uma medida, o traçado de umafronteira, não resultante de um cálculo, mas de aproximações.

    Cada um de nós sabe que é uma pessoa, mas pode questionar, pontualmente, emsi ou em outros, características que normalmente entram no conceito de “pessoa”:Somos, de fato, livres? É a consciência que nos define? Tudo isto pode serrigorosamente colocado em questão. No entanto, assumimos para nós (e a lei o faztambém), que somos pessoas e que tal fato nos torna sujeitos de direitos e deresponsabilidades. Para elaborar esta categoria, é preciso partir de compreensão mínimade pessoa, lembrando sempre de que neste caso não partimos de um vazio, mas de umsignificado amplo e já pressuposto em muitas de nossas práticas e que envolve váriosaspectos: em princípio a consciência, a capacidade de responder pelos seus atos, mastambém o fato de ter sensibilidade, desejos, projetos, de estabelecer relações comoutros, de ter uma história própria, de poder falar em primeira pessoa, etc. Em geral

    atribuímos estatuto moral a um ser humano por estas características. São pessoas quemerecem respeito, proteção e têm direitos. Este é o ponto de partida. Mas apenas um ponto de partida, que não é como uma premissa da qual se deduzem conclusões, masum centro a partir do qual se pode traçar um círculo, definindo os limites de aplicaçãoda idéia. Colocando a questão desta forma, não é absurdo pensar que algumas formas devida humana possam ficar fora do círculo de aplicação da noção de pessoa, e,consequentemente, não seriam sujeitosde “direitos”. Este movimento está sendo feito

    pela sociedade hoje.

    II- Direito à vida e valor da vida

    Diante da tarefa de enfrentar a questão do estatuto do embrião, e sendoimpossível percorrer aqui todos os aspectos do problema, uma perspectiva que parece promissora é a que propõe distinguir entre dois tipos de abordagem quanto à vida

    humana: uma a partir dosdireitos e outra a partir dovalor da vida. Esta distinção

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    aparece em autores como Ronald Dworkin, Richard Hare e Jeff McMahan. De ummodo geral, direitos são garantias de interesses; são atribuíveis apenas a pessoas e sefundam em suas características essenciais de terem consciência, interesses e projetos.Os direitos são absolutos e incomensuráveis: assim, o direito à vida de um indivíduonão lhe dá o direito sobre a vida de outro, não sendo, por exemplo, moralmenteadmissível que se sacrifique 1 pessoa para que seus órgãos sejam usados para salvar avida de 5, de 10 ou mesmo de 500 pessoas.

    Ora, se um embrião for uma pessoa, ele terá este tipo de direito. No entanto,muitos já nos referimos à dificuldade de ter uma definição inequívoca de pessoa. Adificuldade se torna ainda maior ao se tentar atribuir o caráter de pessoa ao embrião ouao feto nos primeiros estágios da gravidez. Se é fácil dar as razões pelas quais crianças pequenas, mulheres e homens (adultos e idosos) são pessoas, o mesmo não ocorre emrelação ao embrião ou ao feto pouco desenvolvido: ele não tem sensações, interesses econsciência de si – características usualmente atribuídas às pessoas e que contam, emgeral, para se atribuir estatuto moral de pessoa a um ser humano (WARREN, 2007).

    Levando em conta algumas práticas e comportamentos, veremos que, defato, geralmente, nem a legislação nem a opinião pública atribuem ao feto o status plenode pessoas:

    não há um combate policial sistemático às clínicas de aborto clandestino,como há ações sistemáticas e constantes de combate a quadrilhas de assassinosou mesmo de traficantes de drogas. De fato, pouca gente realmente acredita queum aborto seja tão sério quanto um assassinato;

    a legislação, ao reconhecer o direito ao aborto em caso de estupro, mostraque não apenas a sobrevivência, mas a saúde psíquica da mãe suplanta o direitoà vida do embrião; nesse caso o feto não está sendo tratado como uma pessoa;

    o exemplo caso citado no começo do texto a respeiro do homicídio degestantes também reforça esta idéia;

    um último exemplo, que será desenvolvido mais longamente, diz respeito àsatitudes em relação à perda embrionária. Sabemos que a reprodução naturalimplica numa alta taxa de perda embrionária. As estimativas maisconservadoras, encontradas em manuais de embriologia, afirmam que a taxa de perda embrionária é de 45%, isto é, aproximadamente, a cada dois embriões, um

    morre, seja devido às anomalias genéticas, seja devido à falta de condições

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    uterinas necessárias para seu desenvolvimento. Estimativas ainda mais altas sãoencontradas em artigos científicos, segundo os quais cerca de 75% dos embriõesnão sobrevivem por razões naturais. Depois de revisar a literatura, Toby Ord(2008) considerou que o mais razoável seria estimar a taxa de perda embrionáriaem 63%. Isso significa que cada embrião tem apenas 37% de chance desobreviver até o final da gestação. Sendo assim, se considerássemos os embriõese fetos pessoas, poderíamos dizer que o aborto espontâneo é responsável por ¾das mortes anuais no mundo. Neste caso, todo esforço deveria ser feito paraimpedir que esses abortos espontâneos aconteçam, mesmo que isso signifiqueretirar dinheiro das pesquisas sobre a cura do câncer e da AIDS. Como isto nãoocorre, vemos que não se computa a perda embrionária como morte de pessoas,ou seja, também neste caso, a prática mostra que não se confere ao embrião oestatuto de pessoa.

    Assim, como opina o médico brasileiro Thomaz Gollop em artigo publicadona Revista da SBPC, ao conceder ao embrião o estatuto de pessoa e criminalizar oaborto, o direito brasileiro está simplesmente endossando concepções morais religiosas;de fato, observamos nós, neste caso o direito vai muito além do que autorizariam tantoas evidências objetivas quanto uma mínima possibilidade de consenso em torno do

    estatuto do embrião.Dada a dificuldade de usar o conceito de pessoa para se falar do feto

    humano em seus primeiros estágios, Richard Hare e Ronald Dworkin propõem pensá-loa partir da noção devalor da vida humana , afirmando que essa é a categoria que de fatose aplica ao embrião ou os seres humanos potenciais. Referir-se à vida humana comoalgo que temvalor significa reconhecer, prima facie, que ela é um bem em si mesma eque deve ser protegida. Isto faz com que, em qualquer circunstância, a perda de uma

    vida humana seja considerada um mal, mesmo que não haja, no caso,alguém que tenhaum interesse em viver ou que sofra um prejuízo com sua morte.

    No entanto, ao contrário do que ocorre quando estão em jogo pessoas edireitos, a idéia de valor da vida implica em que um valor possa ser contraposto a outro,que bens e males possam ser comparados em situações específicas. No caso do aborto,em situações concretas o mal da perda de uma vida humana em seu início pode sercontrabalançado por um mal considerado maior, como o fato de a gravidez ocorrer

    muito cedo ou muito tarde na vida de uma mulher ou de ela não ter as condições

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    psicológicas ou materiais de sustentar a futura criança. O reconhecimento do valor davida do embrião, por sua vez, exige políticas públicas que diminuam efetivamente orecurso ao aborto: incentivo à contracepção, cuidado na educação da população jovem,apoio às mulheres e famílias que desejam ter filhos, garantia de proteção e educação para as crianças – mas não autoriza a proibição do aborto ou a supressão dos direitos damulher. Reconhecer o valor da vida significa investir na continuidade e noflorescimento da vida humana, de muitas maneiras, inclusive no florescimento da vidadas mulheres.

    III- Fertilização in vitro , pesquisa com células-tronco e valor da vida

    A introdução recente4 de novas tecnologias de reprodução no cenáriomundial mostra que, de fato, o valor da vida do embrião já tem sido contrabalançado por valores considerados maiores. Sabemos que as técnicas de fertilizaçãoin vitro , permitidas no Brasil, geram um número maior de embriões do que os que serãoefetivamente implantados e terão a possibilidade de nascer. O destino destes embriões éo descarte, a criopreservação (congelamento) ou, como foi decidido recentemente peloSupremo Tribunal Federal, o de serem usados em pesquisa de células-tronco. Ao

    permitir a reprodução assistida, claramente se confere um valor maior à superação dainfertilidade do que à vida do embrião, já que embriões serão necessariamentedescartados neste processo. Comparando o caso da reprodução assistida com o doaborto, vemos que, no primeiro, o embrião pode ser produzido e sacrificado em nomede valores considerados maiores, como os projetos e desejos das pessoas. Já segundocaso, o desejo ou condição da mulher de tornar-se mãe ou os efeitos de uma gravidezindesejada sobre sua vida não justificam a morte do embrião. Ocorre que a legislação, e

    até certo ponto os costumes, assumem que há grande diferença entre o embriãoin vitro e o embrião no útero materno (ou nascituro). Pode-se perguntar se esta distinção, feitalegalmente, assenta-se em evidências que a tornariam razoável.

    4 1978 - primeira fertilização in-vitro bem sucedida na Inglaterra1984 - primeira fertilização in-vitro bem sucedida no Brasil1998 - isolamento das células embrionárias2007 - liberação de clonagem terapêutica na Inglaterra

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    essa relevantíssima questão [...], apesar da tramitação de alguns projetos de lei, nuncafoi objeto de regulamentação pelo Congresso Nacional(...)”. 6

    Identificando uma inconsistência semelhante em alguns setores nasociedade norte-americana, Janet Dolginescreve: “A jur isprudência que foidesenvolvida em torno dos embriões supranumerários produzidos através da fertilizaçãoin vitro reflete uma sociedade frequentemente pronta para definir os embriõesinstrumentalmente, mas ansiosa, ao mesmo tempo, por esconder este fato de si mesma”.(p. 156).

    Indo além do que é praticado e permitido no Brasil, sabe-se que odesenvolvimento das pesquisas com células-tronco, notadamente na direção doconhecimento e busca da cura de algumas doenças, depende da produção de embriões para fins específicos, especialmente mediante clonagem. A defesa da permissibilidadeda produção de embriões para fins de pesquisa, assumida por muitos, implica em que,uma vez mais, o valor da vida do embrião é contrabalançado e considerado menor doque outros valores: a promessa da saúde, a diminuição do sofrimento dos doentes e, porúltimo, mas não menos importante, o desenvolvimento da ciência e a liberdade de pesquisa. Nestes casos, o sofrimento palpável de uma pessoa e sua esperança de umfuturo melhor são considerados boas justificativas para a produção e manipulação dos

    embriões.Ora, se a diminuição do sofrimento de um doente pode ser considerada uma

    justificativa aceitável para que um embrião seja criado com o fim de servir à pesquisa, éclaro que a ele não está sendo dado o estatuto de pessoa desde a concepção, nem sendoreconhecido seu direito à vida. Se tal atitude é considerada humanitária e moralmentecorreta, o aborto de uma gravidez indesejada também teria que ser examinado à luzdesta convicção.

    A presumida distinção legal entre o embrião dentro e fora do útero,necessária para que simultaneamente se defenda a produção de embriões para pesquisa ese proíba o aborto, também deve ser objeto de exame. Cabe lembrar que, quando alegislação brasileira foi escrita, o único embrião existente era o embrião dentro do úteromaterno. Na nova realidade, ou os direitos a ele reconhecidos devem ser estendidos a

    6 Voto da Ministra Ellen Gracie ao julgar a ação de inconstitucionalidade sobre o uso de embriõessupranumerários em pesquisa com células-tronco.

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    todos os embriões existentes, pois todos são seres humanos potenciais , ou devem serrepensados em conjunto.

    Conclusão

    Retomando o que foi dito até aqui e para concluir, diremos que, embora nãohaja identidade entre o moral e o legal, a lei deve assentar-se em convicções moraisamplamente aceitas e em boas razões. Não há, já há muitas décadas no Brasil, umaconvicção compartilhada sobre a atribuição do estatuto de pessoa ao embrião e ao fetode até um trimestre de gestação. Isto se evidencia em muitas situações, e maisclaramente hoje, no caso do embrião, pela prática da reprodução assistida.

    Diferente do direito à vida, atribuível apenas às pessoas, o valor da vidahumana, atribuído ao embrião e ao feto e afirmado prima-facie , pode sercontrabalançado por outros valores. Assim sendo, o mal representado por sua morte pode ser contrabalançado pelo mal causado à mulher e eventualmente à sua família poruma gravidez indesejada. Num nível ainda mais fundamental, o valor da vida doembrião deve ser suplantado por um grande valor reconhecido universalmente a todas as pessoas humanas – a igualdade – e que é negado às mulheres ao se recusar a elas o

    direito de decidir sobre sua vida reprodutiva.A lei reconhece o direito de pessoas, homens e mulheres, de serem

    progenitores, com o sacrifício de alguns embriões. A justiça exige que também sereconheça, com o mesmo sacrifício, o direito da mulher de não ser mãe quando isto nãolhe parecer bom ou desejável. As conclusões acima apontam na direção da necessidadeda descriminalização do aborto no Brasil, assim como de uma regulamentação queestabeleça o período de desenvolvimento da gravidez no qual a situação física e mental

    do feto tornaria o aborto aceitável moralmente.

    Bibliografia

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